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AMÉRICO DE SOUSA

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a persuasão

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Série - Estudos em Comunicação

Direcção: António Fidalgo

Design da Capa: Jorge Bacelar

Execução Gráfica: Serviços Gráficos da Universidade da Beira Interior

Tiragem: 300 exemplares

Covilhã, 2001

Depósito Legal Nº 166331/01

ISBN – 972-9209-76-6

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ÍNDICE

Prefácio ............................................................................. 5Introdução ......................................................................... 7

I PARTERETÓRICA: DISCURSO OU DIÁLOGO?

1. O despertar da oratória .............................................. 112. A técnica retórica de Aristóteles ...............................17

2.1. Os meios de persuasão ......................................172.2. As premissas de cada tipo de oratória .............19

2.2.1. Na oratória deliberativa ...........................202.2.2. Na oratória forense ..................................212.2.3. Na oratória de exibição ...........................25

2.3. Premissas comuns aos três tipos de oratória ....262.3.1. Indução e dedução ...................................262.3.2. Persuasão pelo carácter ............................282.3.3. As paixões do auditório ..........................292.3.4. O discurso: estilo e ordem .....................31

3. A retórica clássica: retórica das figuras ....................33

II PARTEA NOVA RETÓRICA

1. Crítica do racionalismo clássico ................................392. Por uma lógica do preferível: demonstração

versus ar gumentação .................................................433. A adesão como critério da comunicação persuasiva ...50

3.1. O duplo efeito da adesão ..................................503.2. Persuasão e convencimento:

do auditório particular ao auditório universal ....52

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4. Estratégias de persuasão e técnicas argumentativas ...614.1. A escolha das premissas ....................................614.2. As figuras de retórica na criação do efeito

de presença ..........................................................674.3. Técnicas e estruturas argumentativas .................68

5. Amplitude da argumentação e força dos argumentos ....806. A ordem dos argumentos no discurso ......................83

III PARTERETÓRICA, PERSUASÃO E HIPNOSE

1. Os usos da retórica ....................................................871.1. A revalorização da subjectividade .....................871.2. Liberdade ou manipulação? .............................. 101

2. Da persuasão retórica à persuasão hipnótica .......... 1292.1. A emoção na retórica....................................... 1292.2. Persuasão e retórica..........................................1432.3. Critérios, tipologias e mecanismos da persuasão... 1522.4. O modelo hipnótico da persuasão ................... 183

Conclusão .......................................................................201

Bibliografia .....................................................................209

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PREFÁCIO

Contrariamente ao que se passa nos Estados Unidos, aEuropa, e especialmente Portugal, não tem, actualmente, umatradição no campo dos estudos retóricos.

A retórica, entre nós, ou se foi confinando ao domínioda estilística nos estudos literários ou, muito simplesmente,se relegou ao empobrecimento do campo semântico de umtermo, retórica, que se exprime hoje mais como arma dearremesso acusatória no discurso.

Dizer de um discurso que ele é só retórico, sendo corrente,mostra bem a privação a que o termo foi submetido emtermos de conteúdo.

A conotação mais corrente do termo retórica é, actual-mente, a do puro vazio.

Só muito recentemente, na universidade portuguesa, secomeçou a dar mais atenção à problemática específica daretórica e os seus estudos começaram, ainda que parcamente,a aparecer.

O presente trabalho de Américo de Sousa que tem, tambémele, origem numa dissertação académica, vem dar uma notávelcontribuição para os estudos retóricos entre nós.

Colocando, desde logo, a noção de “persuasão” no centroda sua atenção crítica, o autor dá bem o sinal da sua justificadaintenção de prosseguir uma abordagem do tema recentradasobre os procedimentos de argumentação e não tanto sobrea tropologia a que uma certa retórica, não ousando o seunome, se tinha relegado sob o manto da estilística.

Não é também na linguística que a sua intenção de“delimitar fronteiras” irá integrar a disciplina mas antes nocampo mais vasto de um processo de comunicação.

Começando por uma visitação histórica às origenshelénicas da retórica enquanto teoria da argumentação, muitopertinente por ter sido aí que as problemáticas fundamentaisda disciplina se definiram com Platão, Aristóteles e os sofistas,

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o autor prossegue a sua indagação pela modernidade po-lémica que tanto nos marcou o pensar sobre estes temas.

O renascimento dos estudos retóricos em meados doséculo passado, a partir sobretudo da obra de Perelman,é o que ocupa a segunda parte deste trabalho. Aí se operouuma restauração a que Perelman chamou Nova Retórica,e que merece aqui uma atenta e informada análise por partedo autor, centrada não tanto no estratégico conceito deauditório universal mas também na complexidade dasmúltiplas técnicas argumentativas.

Mas é talvez na terceira e última parte que Américo deSousa nos traz a sua contribuição mais pessoal e até ousadapara compreender o fenómeno persuasivo.

Ao colocar a hipnose como tema do seu esforço com-preensivo, o autor avança em terreno incógnito mas tambémpor isso a sua démarche merece uma atenção particular.

Com efeito, ele chegou aí depois de definir muito acer-tadamente uma problemática posta já por Perelman: comoopera a estratégia retórica da persuasão entendida comoadesão dos espíritos? Perelman tinha limitado a sua inqui-rição ao âmbito dos “recursos discursivos”.

Procura-se aqui ir mais longe e o caminho escolhido passa,muito pertinentemente, por A. Damásio e a sua teoria dasemoções. É por essa via que o autor chega ao “modelohipnótico de persuasão”.

Ao leitor caberá julgar uma proposta e um esforço deindagação que, pela sua inteligência e originalidade, merecedesde já, uma atenta e interessada leitura.

Tito Cardoso e Cunha

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INTRODUÇÃO

O estudo da persuasão pressupõe uma viagem pelos ter-ritórios teóricos que a sustentam: a retórica, a argumentaçãoe a sedução. A retórica, porque originariamente concebidacomo “a faculdade de considerar para cada caso o que podeser mais convincente”1; a argumentação, na medida em quevisa “provocar ou aumentar a adesão de um auditório àsteses que se apresentam ao seu assentimento”2 e, finalmente,a sedução, porque a resposta do auditório pode também“nascer dos efeitos de estilo, que produzem sentimentos deprazer ou de adesão”3. É este contexto teórico de solidáriavizinhança e interdependência funcional que Roland Barthesalarga ainda mais quando propõe que “a retórica deve sersempre lida no jogo estrutural das suas vizinhas (Gramática,Lógica, Poética, Filosofia)”4. O mesmo se diga de ChaimPerelman ao defender que, para bem situar e definir a retórica,“é igualmente necessário precisar as suas relações com aDialéctica”5. Já se antevê, por isso, a extrema dificuldadeque aguarda quem ouse meter ombros a uma rigorosa de-limitação de fronteiras entre os diferentes domínios teóricospresentes num processo de comunicação persuasiva. Mas se,desde Aristóteles, a retórica tem por objectivo produzir emalguém uma crença firme que leve à anuência da vontadee correspondente acção, então, no âmbito deste estudo, farátodo o sentido admitir uma aproximação conceptual entrea retórica e a persuasão. Aliás, num momento em que a_______________________________1 - Aristóteles, Retórica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 522 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 293 - Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa:

Edições 70, 1998, p. 204 - Cit. in Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,

p. 215 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 21

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evolução histórica da retórica vem sendo analisada em funçãode três importantes períodos, cronologicamente denomina-dos de Retórica Antiga, Retórica Clássica e Nova Retórica,deve notar-se que, em qualquer delas, foi a persuasão quepermaneceu como seu principal elemento distintivo, inde-pendentemente das particulares técnicas e procedimentosdiscursivos nelas utilizados. Podemos, por isso, considerara retórica como o principal instrumento de comunicaçãopersuasiva, tanto mais que tendo surgido na antiguidade comotécnica de persuasão, é ainda dessa forma que continua aser encarada por Perelman e pela generalidade dos autorescontemporâneos. A retórica parece, pois, estar para o acto(de comunicar) assim como a persuasão está para o efeito(da comunicação).

Como objectivo geral deste trabalho, propusemo-nosinvestigar os diferentes modos pelos quais a persuasão semanifesta no processo comunicacional, quais as estratégias,técnicas e procedimentos mais adequados a uma comuni-cação influente (ou deliberada) e até que ponto, a retórica- enquanto instrumento de persuasão crítica - pode favorecera afirmação das subjectividades numa sociedade pluralista.A hipótese de que partimos e que intentamos confirmar nestenosso estudo, é a de que a persuasão, ao promover o confrontode opiniões e a afirmação de subjectividades, potencia oexercício da própria cidadania. Para a sua formulação muitopesou a constatação de que nos diferentes planos do nossoquotidiano, são numerosas as situações de comunicação quetêm como objectivo conseguir que uma pessoa, um auditórioou um público, adoptem um certo comportamento ou par-tilhem determinada opinião. E estando a persuasão assimtão estreitamente ligada ao acto de convencer, ocorriaperguntar: não poderá ela funcionar como alternativa aosempre possível uso do poder ou até da violência física,para se conseguir de outrem um comportamento por siinicialmente não desejado? Será que ao traduzir-se pela

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Introdução

renúncia ao uso da força, a persuasão retórica pode con-tribuir decisivamente para assegurar uma ligação socialpartilhada em vez de autoritariamente imposta? Foi com aexpectativa de poder vir a responder a este conjunto dequestões que iniciamos a nossa pesquisa e reflexão.

Por razões de ordem sequencial inerentes ao desenvol-vimento teórico, mas também pela necessidade de limitara extensão do próprio trabalho, decidimos, por um lado,circunscrever o objecto de estudo à persuasão discursiva epor outro, preterir a abordagem da persuasão de massas, tantomais que os efeitos exponenciais e a respectiva inserção sócio--política em que radica, justificam uma investigação maisprofunda do que aquela que lhe poderíamos reservar noâmbito desta dissertação. Ainda assim, julgamos que algu-mas das considerações que fazemos na parte final do tra-balho, deixam antever como o conhecimento retórico podecontribuir para uma reacção mais crítica dos seus destina-tários. Temos também a esperança de que tal delimitaçãonos tenha permitido não só aprofundar o alcance e asparticularidades que a persuasão pode imprimir aos proces-sos comunicacionais como, de algum modo, realçar a suaimportância no contexto da reflexividade contemporânea.

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I PARTE

RETÓRICA: DISCURSO OU DIÁLOGO?

1. - O despertar da oratória

Desde sempre os gregos foram inveterados amantes dapalavra, apreciando a eloquência natural mais do que qual-quer outro povo antigo. A comprová-lo estão os brilhantesdiscursos que enchem as páginas da Ilíada e as fervorosaspalavras que os comandantes militares dirigiam às suas tropasantes de entrar em combate. Os próprios soldados caídosna guerra eram logo honrados com solenes discursos fú-nebres. Mas foi com o advento da democracia que esseinteresse pela eloquência e oratória cresceu de uma maneiraexplosiva. Compreende-se porquê: o povo - onde não seincluíam, nem as mulheres, nem os escravos, nem os fo-rasteiros - passou a poder reunir-se em assembleia geral paratratar e decidir de todo o tipo de questões. Assembleia geralque era ao mesmo tempo o supremo órgão legislativo,executivo e judicial. Nela se concentravam os mais altospoderes. Podia declarar a guerra ou a paz, alterar as leis,outorgar a alguém as máximas honras mas também mandá-lo para o exílio ou condená-lo à morte. Tratava-se de reuniõespúblicas e livres, pois todos os cidadãos podiam assistir,participar e votar. Logicamente, os que melhor falavam eramtambém os mais influentes. Logo, quem aspirasse a ter algumainfluência nessas assembleias, forçosamente teria de possuirassinaláveis dotes oratórios. Além do mais, os conflitos entrecidadãos dirimiam-se perante tribunais constituídos porjurados eleitos por sorteio. Aquele que com suas palavraspersuasivas lograsse prender a atenção dos jurados econvencê-los da sua posição, sairia vencedor do pleito. Aoratória passou assim a ser fundamental, já não apenas paraaqueles que aspiravam à política - que era a ambição oucarreira mais normal para os cidadãos livres daquele tempo- mas também para os cidadãos em geral que, dedicados

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aos seus negócios e ocupações agrícolas ou artesanais, comalguma frequência se viam envoltos em acusações e julga-mentos no âmbito de infracções ou delitos, contratos,impostos, etc.

Nem toda a gente, porém, era capaz de falar em públicocom brilho e eficácia. Os menos hábeis na oratória tinhamde pedir a ajuda dos mais preparados. Daí ao florescimentode uma classe profissional de especialistas na arte de bemfalar e escrever, foi um passo. Esses especialistas, oratransmitiam ensinamentos de retórica, ora representavampessoalmente os seus clientes nos pleitos ou cediam-lhesdiscursos já feitos que aqueles pronunciariam como se fossemescritos por eles próprios. Com o passar do tempo a ex-periência oratória foi sendo reunida em máximas e preceitostendentes à obtenção do êxito no tribunal ou na assembleia.A oratória tornava-se desse modo uma técnica e, por meadosdo séc. V a. C., surgiam na Sicília os primeiros tratadosde retórica, atribuídos a Kórax e Tísias, embora confinadospraticamente à oratória forense e dando especial relevo aostruques a que o advogado poderia recorrer para vencer emjuízo.

O verdadeiro fundador da técnica retórica, porém, foi umoutro siciliano, Górgias Leontinos que surgiu em Atenas,no ano de 427 a. C., como embaixador da sua cidade natal,e que desde logo causou a maior sensação, devido aosbrilhantes e floreados discursos com que se dirigia aosatenienses, a solicitar a sua ajuda. Muitos deles, fascinadospela sua oratória, tornaram-se seus discípulos, fazendo deGórgias o primeiro professor de retórica de que há conhe-cimento. Para Górgias, a oratória deveria excitar o auditórioaté o deixar completamente persuadido. Não lhe interessavauma eventual verdade objectiva, mas tão somente o con-vencimento dos ouvintes. Para o efeito, o orador deveriater em conta a oportunidade do lugar e do momento, paraalém de saber adaptar-se ao carácter dos que o escutassem.Mas sobretudo, teria de usar uma linguagem brilhante e

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Retórica: Discurso ou Diálogo?

poética, cheia de efeitos, figuras e ritmos. Ele foi, pode dizer--se, o introdutor de uma oratória de exibição ou de aparato,sem obediência a qualquer finalidade política ou forense eorientada fundamentalmente para fazer realçar o próprioorador. Neste aspecto, em nada se afastava de muitos outrossofistas do seu tempo.

Aristóteles estudou os tratados de retórica deixados porGórgias e seus seguidores, chegando mesmo a resumi-losnuma só obra em que procedeu à compilação das técnicasretóricas. Considerou, porém, tais tratados pouco satisfatórios,por não irem além do recurso aos truques legais e às maneirasmais absurdas de suscitar a compaixão dos jurados. Faltavauma apresentação séria e mais abrangente das regras e dosmétodos da retórica, especialmente, os mais técnicos eeficazes, aqueles que se baseiam na argumentação.

Quando Aristóteles chegou a Atenas, Isócrates era o maisfamoso e influente Mestre de retórica e possuía uma escolamais bem sucedida que a Academia de Platão, com a qualde resto rivalizava, na formação dos futuros homens polí-ticos da cidade. Logo por altura da fundação da sua escola,Isócrates escreveu uma obra com o muito elucidativo títulode Contra os sofistas, na qual acusava estes últimos deperderem o seu tempo e fazerem perder o dos demais comsubtilezas intelectuais sem qualquer relevância para a vida,para a política ou para a acção. Igualmente condenava osretóricos formalistas por inculcarem nos seus alunos a falsaideia de que a aplicação mecânica de um receituário de regrasou truques pode levar ao êxito. Demarcando-se do que atéaí tinha sido a orientação dominante dos grandes mestresda retórica, Isócrates proclama a necessidade de uma for-mação integral que, partindo de um carácter adequado, incluao estudo tanto da temática política como da técnica retóricaem toda a sua dimensão. Só assim se poderia formar ci-dadãos virtuosos e preparados para o êxito político e social.Assinale-se que era a esta formação integral, onde a retóricaassumia um papel de relevo, que Isócrates chamava de

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Filosofia. Os demais filósofos, incluindo Platão, não pas-sariam de sofistas pouco sérios.

Contra essa concepção se pronunciou Platão, por acharque o ensino de Isócrates, para além de frívolo e superficial,era dirigido unicamente ao êxito social, ficando à margemde todo o questionamento filosófico ou científico sobre anatureza da realidade. Estava em causa a educação superiorateniense e, segundo Platão, a hegemonia da retórica, quevisa a persuasão e não a verdade, era um perigo que urgiaatacar decididamente. No seu diálogo Górgias, podemos vercomo ele confronta a retórica e a filosofia, defendendoclaramente uma espécie de tecnocracia moral, em que osverdadeiros especialistas (os filósofos) conduzam os cida-dãos àquilo que é o seu interesse, isto é, a serem cada vezmelhores. Condena a democracia onde os políticos oradoresbajulam o povo e seguem servilmente os seus caprichos,o que só pode tornar os cidadãos cada vez piores. E esgrimeos seus contundentes argumentos contra a retórica, negando--lhe o carácter de uma verdadeira técnica, por não se basearem conhecimento algum. Para ele, a retórica não passa deuma mera rotina concebida para agradar ou adular. É apenasum artifício de persuasão. Não da persuasão do bom ou doverdadeiro, mas sim da persuasão de qualquer coisa. Lembraque é graças à retórica que o injusto se livra do castigo,quando, segundo ele, valeria mais ser castigado, pois ainjustiça é o maior mal da alma. Platão conclui que a retóricanão tem mesmo qualquer utilidade a não ser que se recorraa ela justamente para o contrário: para que o faltoso oudelinquente seja o primeiro acusador de si mesmo e de seusfamiliares, servindo-se da retórica para esse fim, para tornarpatentes os seus delitos e se livrar desse modo do maiordos males, a injustiça.

Isócrates, por certo, não comungava de tão exaltadomoralismo, pois a sua retórica estava orientada basicamentepara a defesa de qualquer postura, para ganhar os pleitos,para persuadir a assembleia. Foi, porém, o mais moralista

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e comedido de todos os retóricos, em grande parte, devidoàs suas reais preocupações políticas, mas também por estarconvencido que o virtuoso acaba sempre por ter mais êxitodo que o depravado. Por isso se insurgia, tal como Platão,contra os sofistas mais cínicos e amorais. Compreende-seassim que Platão, com o decorrer dos tempos, tenha tem-perado a veemência das suas iniciais críticas à retórica,chegando mesmo a elogiar Isócrates, embora sem reconhe-cer à oratória outro mérito que não fosse o meramenteliterário. Na sua obra Fedro viria inclusivamente a admitira possibilidade de uma retórica distinta, verdadeira e boa,que se confundiria quase com a filosofia platónica.

Idêntica mutação de pensamento parece ser de assinalara Aristóteles, que depois de ter inicialmente enfrentadoIsócrates para defender a supremacia das teses platónicas- cujo êxito lhe valeu o convite para dirigir o primeirocurso de retórica na Academia - acabou por ir abandonandopouco a pouco as posições exacerbadamente moralistasdestas últimas, em favor da incorporação de cada vez maiselementos da técnica oratória. Com isso, pode dizer-se quea sua concepção final da retórica, muito precisa e realista,se situa, pelo menos, tão próximo de Isócrates como dePlatão.

Aristóteles insurge-se contra os retóricos que o prece-deram, acusando-os de se terem contentado com o compilarde algumas receitas e um sem número de subterfúgios ouevasivas aplicáveis à oratória, que visam apenas a com-paixão dos juízes. E isto, quando há outros tipos de oratóriapara além da forense, tornando-se necessário proceder àsua distinção. Além do mais, os especialistas da oratóriatinham até ali passado ao lado do recurso técnico maisimportante a que pode deitar mão o orador: a argumen-tação, em especial, o entinema. São essas lacunas queAristóteles se propõe suprir. Haveria que estudar as razõesporque os oradores que pronunciam os seus discursos, umasvezes têm êxito e outras não. Sistematizar e explicitar essas

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razões é a grande tarefa da técnica, no caso, da técnicaretórica.

Ao assumir essa posição, Aristóteles vai afastar-se detoda a concepção negativista da retórica, reconhecendo--lhe, finalmente, a dignidade de fundamento e de uso queaté aí tanto fora questionada, especialmente por Platãoe seus seguidores. Agora a técnica retórica é consideradaútil para todos os cidadãos e até para os filósofos, poisperante os auditórios populares que formam as assembleiase os tribunais, de nada servem as demonstrações pura-mente científicas, sendo imprescindível recorrer à retó-rica, para obter o entendimento e convencer os restantesco-participantes. De contrário, corre-se o risco de servencido e ver a verdade e a justiça escamoteadas. De-finitivamente, o saber defender-se com a palavra, passoua ser uma parte essencial da educação e cultura geral grega.E Aristóteles explica porquê: “se é vergonhoso que al-guém não possa servir-se de seu próprio corpo [para sedefender], seria absurdo que não o fosse no que respeitaà razão, que é mais própria do homem do que o uso docorpo”1. É certo que uma das maiores acusações que Platãofizera à retórica tinha sido a de que esta poderia trazergraves consequências quando alguém dela se servisse parafazer o mal, mas Aristóteles riposta categoricamente,lembrando que “se é certo que aquele que usa injusta-mente desta capacidade para expor razões poderia causargraves danos, não é menos certo que isso ocorre com todosos bens, à excepção da virtude, sobretudo com os maisúteis, como o vigor, a saúde, a riqueza ou a capacidademilitar, pois com eles tanto pode obter-se os maioresbenefícios, se usados com justiça, como os maiores custos,se injustamente utilizados”2._______________________________1 - Aristóteles, Retórica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 512 - Ibidem.

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2. - A técnica retórica de Aristóteles

2.1. - Os meios de persuasão

A técnica retórica de Aristóteles consiste nos principaismeios ou recursos persuasivos de que se vale o orador paraconvencer o auditório. Esses meios de persuasão podemclassificar-se, antes de mais, em técnicos e não-técnicos. Osmeios de persuasão não-técnicos são os que existem inde-pendentemente do orador: leis, tratados, testemunhos, do-cumentos, etc. Os meios de persuasão técnicos são aquelesque o próprio orador inventa para incorporar a sua própriaargumentação ou discurso, e que se repartem por três grupos,tantos quantas as instâncias da relação retórica: ethos, ocarácter do orador; pathos, a emoção do auditório e logos,a argumentação. Impõe-se, contudo, precisar um pouco melhorcada uma destas instâncias. Em primeiro lugar, o ethos. Semdúvida que o carácter do orador é fundamental, pois umapessoa íntegra ganha mais facilmente a confiança do au-ditório, despertando nele maior predisposição para serpersuadido. Mas trata-se aqui da impressão que o oradordá de si mesmo, mediante o seu discurso, e não do seucarácter real ou da opinião que previamente sobre ele têmos ouvintes, pois estes dois últimos aspectos, não são téc-nicos. Quanto ao pathos, tem de se reconhecer que a emoçãoque o orador consiga produzir nos seus ouvintes pode serdeterminante na decisão de serem a favor ou contra a causadefendida. Se o orador suscita nos juizes sentimentos dealegria ou tristeza, amor ou ódio, compaixão ou irritação,estes poderão decidir num sentido ou no outro. Foi aliáseste o ponto mais estudado nos anteriores tratadistas daretórica. Por último, o logos, constituindo o discursoargumentativo, é a parte mais importante da oratória, aquelaa que se aplicam as principais regras e princípios da técnica

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retórica. E os recursos argumentativos são fundamentalmen-te dois: o entinema e o exemplo3. O entinema é o tipo dededução próprio da oratória. Parece um silogismo mas nãoé, pois só do ponto de vista formal mantém semelhançascom o silogismo científico ou demonstração. A grandediferença reside nas suas premissas que, contrariamente aoque acontece no silogismo científico, não são nem neces-sárias, nem universais, nem verdadeiras. O entinema partede premissas apenas verosímeis, que se verificam em muitoscasos e são aceites pela maioria das pessoas, particularmen-te, pela maioria dos respectivos auditórios. Quanto aoexemplo, ele é o tipo de indução característico da oratóriae consiste em citar oportunamente um caso particular, parapersuadir o auditório de que assim é em geral.

Aristóteles concebe três géneros de oratória: a delibe-rativa, a forense e a de exibição4. A oratória deliberativaé a que tem lugar na assembleia e visa persuadir a que seadopte a política que o orador considera mais adequada. Éa mais importante, a mais prestigiada, própria de homenspúblicos e aquela para a qual preferentemente se orientavao ensino de Isócrates e Aristóteles. A oratória forense, comoo seu nome indica, é a utilizada perante os juízes ou juradosdo tribunal, para os persuadir a pronunciarem-se a favor oucontra o acusado. Embora útil, não é muito valorizada.Finalmente, a oratória de exibição, também chamada deepidíctica, é a que tem lugar na praça ou outro local similar,perante o público em geral, que o orador procura impres-sionar exibindo os seus dotes de oratória, normalmentefazendo o elogio de alguém ou de algo, ainda que isso sejaum mero pretexto para o orador brilhar.

Cada um destes três géneros de oratória, possui umaespecial relação com o tempo, conforme o efeito da per-suasão se manifeste no passado, no presente ou no futuro._______________________________3 - Aristóteles, Retórica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 554 - Ibidem, p. 64

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Na oratória deliberativa, por exemplo, está em causa o futuro,pois os membros da assembleia são chamados a deliberarsobre o modo como as coisas irão decorrer. A oratória forense,remete-nos para o passado pois os juizes ou jurados dotribunal decidem sobre actos que já decorreram. Por último,na oratória de exibição (ou epidíctica) é o presente que seassume como dimensão temporal, pois aí os ouvintes ana-lisam e julgam a habilidade que o orador manifesta no precisomomento em que usa da palavra. Evidentemente que cadaum destes três géneros de oratória tem também o seuespecífico objectivo: a oratória deliberativa procura obter umacerta utilidade ou proveito, a oratória forense visa a justiça,e a oratória de exibição serve ao enaltecimento do orador,ainda que à custa do elogio de alguém. No que respeitaaos meios de persuasão propriamente ditos, os exemplos sãomais adequados à oratória deliberativa e os entinemas àoratória forense, ainda que ambos se utilizem numa e outra.Quanto ao encarecimento ou elogio, esse é mais frequentena oratória de exibição.

2.2. - As premissas de cada tipo de oratória

O orador fará uso abundante dos entinemas que são oprincipal instrumento de persuasão de que dispõe. O entinemaé uma inferência ou dedução (um silogismo, segundo aterminologia aristotélica) parecido na forma com a demons-tração científica mas menos rigoroso, ainda que tanto oumais convincente quando usado perante um público menosculto. No entinema “comem-se” com frequência as premis-sas, aparecendo só algumas e subentendendo-se as outras.Além disso, as premissas não precisam de ser verdadeiras,basta que sejam verosímeis. Nem o que as premissas doentinema formulam em geral necessita cumprir-se sempre,basta que se cumpra com frequência. A técnica retórica deveproporcionar um amplo repertório de premissas, verdadeirasou verosímeis, ou geralmente aceites acerca de cada tema,

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de tal modo que a partir delas se possa construir os entinemas.Por isso Aristóteles dedica os capítulos IV, V, VI, VII e VIIIdo Livro I da sua Retórica à apresentação de lugares outipos de premissas utilizáveis em discursos deliberativos.

2.2.1. - Na oratória deliberativa

Os temas mais frequentes na oratória deliberativa, pe-rante a assembleia popular, são por excelência, os temaspolíticos, nomeadamente, impostos, guerra e paz, defesa,comércio exterior e legislação e é também sobre eles queAristóteles faz uma série de considerações da maior utili-dade para o orador, após o que chama a atenção para ofacto de, em última instância, toda a gente decidir tendoem vista a sua própria felicidade, coisa que o orador políticoou deliberativo não pode ignorar. A técnica retórica deveráentão proporcionar ao orador premissas sobre a felicidade,que começarão pela sua própria definição e a dos seuselementos, pois é apelando à felicidade que esse oradorconseguirá convencer os membros da assembleia. Aristótelesdá uma definição de felicidade, que pode ser facilmente aceitepor todos: “Seja pois felicidade a prosperidade unida à ex-celência ou suficiência dos meios de vida, ou a vida maisagradável, acompanhada de segurança ou plenitude depropriedades e do corpo, bem como a capacidade de ossalvaguardar e usar, pois pode dizer-se que todos coincidemem que a felicidade consiste numa ou mais destas coisas”5.Mas como por vezes se apela não à felicidade plena massomente a uma das suas partes, o orador deve dispor tambémde premissas sobre essas partes da felicidade que são,nomeadamente, a nobreza, a riqueza, a boa fama, as honras,a saúde, a beleza, o vigor e a força, o ter muitos e bonsamigos, a boa sorte e a excelência ou virtude.

_______________________________5 - Aristóteles, Retórica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 71

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Quando o orador recomenda algumas coisas à assembleia,apresenta-as como proveitosas ou convenientes, ou seja, comobens ou como permitindo a obtenção de bens. Necessita,por isso, de dispor também de premissas sobre os bens, acomeçar pela sua própria definição e classes em que se podemagrupar. Esses bens são, em primeiro lugar, a felicidade,depois, a riqueza, a amizade, a glória, a eloquência, amemória, a perspicácia, os saberes, as técnicas e a justiça.Aristóteles preocupa-se em oferecer sobre todos esses benspontos de vista que podem ser utilizados como premissas,por exemplo aquilo cujo contrário é um mal, é ele mesmoum bem. Nas situações em que todos estão de acordo emque duas propostas convêm ou são boas, o que se tornanecessário é dizer qual delas convém mais ou é melhor. Porisso Aristóteles fornece uma bateria de critérios de com-paração que podem ser usados pelo orador para apresentarum bem como preferível a outro.

2.2.2. - Na oratória forense

Na oratória forense, que tem lugar no tribunal, o temabásico é saber se se cometeu ou não injustiça num casodeterminado. E também ao orador forense a técnica retóricadeve oferecer um vasto conjunto de definições, classifica-ções, critérios e dados que ele possa utilizar como premissasdos seus entinemas. Aqui a noção fundamental que está emjogo é a de acto injusto, que Aristóteles define como equi-valente a “causar voluntariamente um dano contrário à lei”6.Ou seja, para que haja injustiça são necessários três requi-sitos: a produção de um dano, intenção de o provocar eviolação da lei. Por sua vez, o acto é intencional quandoé praticado sem estar forçado ou submetido a uma violênciaou a uma necessidade exterior. Considerando que tudo oque se faz voluntariamente será agradável ou dirigido aoprazer, Aristóteles define este último como “um processo_______________________________6 - Aristóteles, Retórica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 104

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de alma e um retorno total e sensível à sua forma naturalde ser”7 e descreve os diversos tipos de prazeres tais comoprazeres naturais do corpo, prazeres da imaginação e recor-dação, prazer de se vingar, prazer de vencer, prazer da honra,prazer do amor, prazer de aprender, prazer de mandar, etc.,ao mesmo tempo que fornece as opiniões geralmente aceitese utilizáveis como premissas ao falar sobre se o acto foirealizado voluntariamente ou não e o que com ele poderiater querido obter o agente.

Um outro conjunto de premissas para possíveis entinemasreferem-se a quem é provável que cometa injustiça e quemé provável que a sofra. Assim, diz-nos que quem podefacilmente cometer injustiça são os que pensam que sairãodela impunes, porque ficarão ocultos ou porque conseguirãoesquivar-se do castigo graças a determinadas influências,como acontece, por exemplo, com aqueles que “são amigosdas vítimas dos seus delitos ou dos juizes, porque os amigosnão se previnem contra as injustiças e preferem chegar aum acordo antes de recorrer aos tribunais, enquanto que osjuizes favorecem os seus amigos, absolvendo-os ou impon-do-lhes castigos leves”8. Quanto aos que considera quefacilmente podem ser vítimas de injustiça, são os que nãotêm amigos, os estrangeiros e os trabalhadores. Recordemosque o acto para ser injusto tem de ir contra a lei. Aristótelesporém distingue a lei particular, que a polis estabelece parasi própria, da lei comum resultante da natureza humana.Dentro da lei particular distingue igualmente a escrita danão escrita (costume). Diz ainda que a equidade vai maisalém da lei escrita e que tem mais a ver com a intençãodo legislador do que com o espírito da letra. Por isso apelamais a uma arbitragem que a um juízo, porque o árbitroatende ao equitativo, enquanto o juiz atende à lei.

_______________________________7 - Aristóteles, Retórica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 1088 - Ibidem, p. 117

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Por último, Aristóteles estabelece os meios de persuasãoque considera imprescindíveis nos julgamentos e que sãocinco: as leis, os testemunhos, os contratos, as declaraçõessob tortura e os juramentos. E é aqui que nos aparece comoeminente técnico retórico, colocando-se num plano amoral,capaz de atacar e defender qualquer posição e de dar a voltaa qualquer argumento, como se espera de um bom advogado.Chega ao ponto de mostrar como a própria lei pode sermanipulada:

(...) Falemos, portanto, em primeiro lugar, das leise de como delas se deve servir quem exorta ou dissuadee quem acusa ou defende. Pois é evidente que quandoa lei escrita seja contrária ao nosso caso, há que recorrerao geral ou ao razoável como melhores elementos dejuízo, pois isso é o que significa “com o melhor critério”,não recorrer a todo o custo às leis escritas. E tambémque o razoável permanece sempre e nunca muda, comosucede com a lei geral (pois é conforme à natureza),enquanto que as leis escritas o fazem com frequência(....) atenderemos também ao que é o justo, não à suaaparência, o que é verdadeiro e conveniente, de formaque a escrita não é lei, porque não serve como a lei.E também que o juiz é como o contrastador de moeda,que deve distinguir entre a justiça adulterada e a legítima(....). Pelo contrário, quando a lei seja favorável ao caso,há que dizer que o “com o melhor critério” não servepara julgar contra a lei, mas sim para evitar prejuízospelo desconhecimento do que a lei prescreve. E queninguém escolhe o bom em absoluto, senão o que é bompara ele9.Em resumo, se a lei escrita nos é favorável, há que aplicá-

-la. Se a mesma não nos favorece há que ignorá-la e substituí--la pela não escrita ou pela equidade.

No que se refere aos testemunhos, Aristóteles elaboratambém algumas regras técnicas de como proceder, quer_______________________________9 - Aristóteles, Retórica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, pp. 130-131

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quando dispomos de testemunhas, quer quando não aspossuímos. “Argumentos convincentes para quem não temtestemunhos são que é necessário julgar a partir do verosímile que isto é o que significa ‘com o melhor critério’, já queo verosímil não pode enganar, ao contrário do suborno, nempode ser afastado por falso testemunho. Ao invés, para aqueleque tem testemunhos, frente ao que não os tem, os argu-mentos serão que o verosímil não é algo que possa submeter--se a juízo e que não fariam falta os testemunhos se fossesuficiente a consideração dos argumentos apresentados”10.

Quanto aos contratos, Aristóteles diz que “o seu empregonos discursos consiste em aumentar ou diminuir a suaimportância, torná-los fidedignos ou suspeitos. Se nos fa-vorecem, fidedignos e válidos, e o contrário, se favorecema outra parte. Pois bem, fazer passar os contratos por fi-dedignos ou suspeitos em nada se diferencia do procedi-mento seguido com as testemunhas, pois os contratos sãomais ou menos suspeitos, segundo o sejam os seus contratan-tes ou fiadores. Se o contrato é reconhecido e nos favorece,há que engrandecer a sua importância, sobre a base de queum contrato é uma norma privada e específica, não que oscontratos constituam uma lei obrigatória, mas porque sãoas leis que fazem obrigatórios os contratos conformes à lei,e que, em geral, a própria lei é uma espécie de contrato,de tal forma que quem desconfia de um contrato ou o rompetambém rompe com as leis”11. Igualmente no caso dasconfissões realizadas sob tortura, formula regras técnicas deproceder conforme tais confissões nos são ou não favoráveis.“As declarações sobre tortura são também testemunhos edão a impressão de que têm credibilidade, porque há nelasuma certa necessidade acrescentada. Nem sequer é difícilver os argumentos precisos no que a elas se refere e cujaimportância devemos engrandecer, no caso de nos serem_______________________________10 - Aristóteles, Retórica, Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 13411 - Ibidem, p. 135

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favoráveis, no sentido de que são estes os únicos testemu-nhos verídicos. No caso de nos serem contrários e favoráveisà outra parte, trataremos de minimizá-los, falando em geralsobre qualquer género de tortura, pois não se mente menosquando alguém se vê coagido, seja enchendo-se de coragempara não dizer a verdade, seja recorrendo facilmente a mentiraspara terminar a tortura mais cedo”12. Por aqui se vê como,no que respeita à persuasão, Aristóteles acaba por se colocarnum plano estritamente técnico, estudando os meios semtomar partido pelos fins. Com isso se afasta definitivamentedo exaltado moralismo platónico, compreendendo, assim, oponto de vista dos retóricos profissionais, que assume agoracomo seu.

2.2.3. - Na oratória de exibição

Na oratória de exibição ou epidíctica, recordemos, pre-tende-se acima de tudo fazer luzir o orador, embora a pretextode elogiar alguém. E para tal, Aristóteles recomenda, antesde mais, que se tenha em conta em que lugar e peranteque auditório se irá pronunciar o discurso, para que se louveo que em cada lugar mais se estime ou valorize. É certo,porém, que, o que sempre se elogia, costuma ser um qualquertipo de excelência. Logo, o que o orador epidíctico precisaé de dispor de um repertório de opiniões admitidas ou lugaresacerca da excelência.

Mas o que é a excelência? Aristóteles define-a como afaculdade de criar e conservar bens, mas também de pro-duzir muitos e grandes benefícios, de prestar numerosos eimportantes serviços. Elementos ou partes da excelência, sãoa justiça, a valentia, a temperança, a liberalidade, a mag-nanimidade e a racionalidade. Sobre todas estas excelênciasou virtudes dá Aristóteles preciosas opiniões e conselhos

_______________________________12 - Aristóteles, Retórica, Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 136

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técnicos. Considerando que se elogia alguém pelas suasacções, e que é próprio de um homem insigne actuar porvontade deliberada, recomenda que se procure mostrar queo elogiado agiu deliberadamente. É mesmo convenienterealçar que assim agiu muitas vezes, nem que para tal sejapreciso “tomar as coincidências e casualidades como sefizessem parte do seu propósito”13.

2.3. - Premissas comuns aos três tipos de oratória

2.3.1. - Indução e dedução

Nos capítulos XVIII a XXV do Livro II da Retórica,Aristóteles refere os tópicos ou lugares comuns que podemser muito úteis ao orador em qualquer dos três tipos de oratóriajá definidos. Para ele, os principais recursos lógicos de quese pode valer um orador para persuadir são o exemplo eo entinema, que correspondem à indução e à dedução,respectivamente. A indução costuma implicar uma certapassagem do particular ao geral, da parte para o todo. Porém,no exemplo, considerado como uma espécie de induçãoretórica, não se vai da parte para o todo, como na induçãopropriamente dita, nem do todo para a parte como na dedução,mas sim, de uma parte a outra parte, do semelhante parao semelhante, e tem lugar quando os dois casos pertencemao mesmo género, mas um é mais conhecido que outro. Seriacomo dizer que Dionísio14, ao pedir uma escolta, aspira àtirania, só porque antes, também Pisístrato pedira uma escoltacom essa intenção e depois de a obter, fez-se um tirano,aliás, como sucedera com outros, quando – diz Aristóteles– não se sabe ainda se é por isso que ele pede a escolta15.

_______________________________13 - Aristóteles, Retórica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 10114 - Dionísio, tirano de Siracusa, em 405 a.C.15 - Aristóteles, Retórica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 61

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O exemplo é então um caso particular que o orador utilizapara apoiar a sua afirmação sobre outro caso anterior,distinto, mas do mesmo género, por apresentar certascaracterísticas comuns. Há dois tipos de exemplos: os casosrealmente sucedidos e os casos inventados. Entre os exem-plos inventados contam-se as parábolas e as fábulas. Asfábulas - diz Aristóteles - são muito adequadas para osdiscursos ao povo e têm a vantagem de ser mais fácil comporfábulas do que achar exemplos de coisas semelhantes re-almente ocorridas. Contudo, “os acontecimentos são maisproveitosos para a deliberação, pois a maioria das vezeso que vai ocorrer é semelhante ao que já ocorreu”16.

O entinema, por sua vez, é uma dedução em que aspremissas são opiniões verosímeis, prováveis ou geralmen-te admitidas. E depois de ter elaborado separadamente pre-missas por cada tipo de oratória, Aristóteles oferece agoraoutras orientadas para temas ou tópicos comuns a todoseles. É assim que agrupa opiniões e critérios por tópicoscomo o possível e o impossível, se algo ocorreu ou iráocorrer, sobre a magnitude, sobre o mais e o menos, quepodem ser muito úteis em todo o tipo de situações ora-tórias. Entre as opiniões geralmente admitidas, são utili-záveis como premissas de entinemas, as máximas, senten-ças ou provérbios. Uma máxima é uma afirmação sobretemas práticos relativos à acção humana, tratados em geral.Algumas máximas são evidentes, triviais e não requeremjustificação alguma. Outras, mais ambíguas, já requeremum epílogo que as explique ou justifique o que vai convertê-las, por sua vez, numa espécie de entinema. Mas porquerecomenda Aristóteles o uso de máximas? Porque estas,por serem comuns e divulgadas, como se todos estivessemde acordo com elas, são consideradas justas.

_______________________________16 - Aristóteles, Retórica, Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 197

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2.3.2. - Persuasão pelo carácter

Para ser um bom orador são necessárias duas coisas: saberargumentar bem e possuir perspicácia psicológica. Por issoAristóteles, para além de analisar e sistematizar os recursosargumentativos, estuda também os factores psicológicos dapersuasão, a começar pelo carácter (ethos) do orador.

Com efeito, o poder de convicção do orador sobre o seuauditório não depende só dos factos que aduza, das pre-missas que empregue, nem da sua boa argumentação. “Osargumentos não só derivam do raciocínio demonstrativo, comotambém do ético, e acreditamos em quem nos fala na basede que nos parece ser de uma determinada maneira, querdizer, no caso de parecer bom, benévolo ou ambas as coisas”17.Não se trata, portanto - frise-se uma vez mais - da opiniãoprévia que o auditório possa ter sobre o orador, nem tãopouco do carácter que este realmente possui, mas sim, doque aparenta ter quando se dirige ao auditório. É isso quepode ser decisivo para inclinar o auditório a aceitar as suaspropostas. Persuade-se pelo carácter quando “o discurso sepronuncia de forma que torna aquele que fala digno de créditopois damos mais crédito e demoramos menos a fazê-lo, àspessoas moderadas, em qualquer tema e em geral, mas demaneira especial parecem-nos totalmente convincentes nosassuntos em que não há exactidão mas sim dúvida (....) enão há que considerar, como fazem alguns tratadistas dadisciplina, a moderação do falante como algo que em nadaafecta a capacidade de convencer, mas antes, que o seucomportamento possui um poder de convicção que é, porassim dizer, quase o mais eficaz”18.

Para despertar a confiança nos ouvintes, o orador precisaque estes lhe reconheçam três qualidades: racionalidade,excelência e benevolência. Porque se o orador não é racional

_______________________________17 - Aristóteles, Retórica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 9418 - Ibidem, pp. 53-54

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na sua maneira de pensar, então será incapaz de descobriras melhores soluções. Já um orador racional mas semescrúpulos, pode encontrar a solução óptima mas ou nãoa comunica ou tenta enganar, propondo gato por lebre. Sónum homem insigne, a um tempo racional, excelente ebondoso, se pode confiar. Logo, o orador deve dar a impressãode que possui um tal carácter, se pretende persuadir, poiso seu êxito não depende só do que disser mas também daimagem que de si próprio projectar no auditório.

Sendo importante que o orador saiba dar a impressãode possuir um carácter digno de confiança, é igualmentenecessário que conheça o carácter dos seus ouvintes e a elesaiba adaptar-se. Por isso Aristóteles nos capítulos XII a XVIIdo Livro II da Retórica procede à análise e classificaçãodo carácter em relação com a idade e a fortuna. No querespeita à idade, distingue três classes: os jovens, os adultose os velhos. Os jovens são apaixonados, pródigos, valentese volúveis. Os velhos, são calculistas, avarentos, covardese estáveis. Só os adultos maduros adoptam uma atitudeintermédia e sensata. “Falando em termos gerais, o homemmaduro possui as qualidades proveitosas que estão distribu-ídas entre a juventude e a velhice, ficando num termo médioe ajustado, pois que uma e outra ou se excedem ou ficamaquém do necessário”19. Em relação à fortuna, Aristótelesconsidera os factores de nobreza, riqueza, poder e boa sorte.Assim, os nobres tenderão a ser ambiciosos e depreciativos,os ricos serão insensatos e insolentes, e os poderosos pare-cerão como ricos, mas ainda mais ambiciosos e viris.

2.3.3. - As paixões do auditório

O orador de êxito não pode contudo limitar-se ao co-nhecimento passivo do carácter dos seus ouvintes. Temtambém que influenciar activamente o seu estado de ânimo,_______________________________19 - Aristóteles, Retórica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 185

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provocando-lhes as emoções ou paixões (pathos) que maisconvenham à causa, pois este despertar das paixões ade-quadas no auditório é um dos mais importantes recursos depersuasão. É que, como já ficou dito a propósito dos juradose juízes, segundo a emoção que experimentem num dadomomento, os ouvintes estarão predispostos a decidir numsentido ou no seu oposto. Nos capítulos II a XI do LivroII da Retórica, Aristóteles estuda as paixões dos ouvintese fornece ao orador lugares, opiniões, informações e critériosque o ajudarão a provocar essas paixões quando isso fordo seu interesse. Fá-lo agrupando as paixões em pares decontrários, como por exemplo a ira e a calma, o amor eo ódio, etc. De cada paixão dá uma definição, considerandoalém disso, a disposição mental em que surgem, as pessoassobre quem recaem e os objectos ou circunstâncias que asprovocam. Por exemplo, em relação ao amor, define-o como“o querer para alguém o que se considera bom, no seuinteresse, e não no nosso, e estar disposto a levá-lo a efeito,na medida das nossas forças”20. Daqui deriva a sua con-cepção de amizade pois que para ele “amigo é o que amae é correspondido no seu amor”21. Mas apesar da profun-didade com que analisa cada uma das paixões, a sua fi-nalidade é sempre eminentemente técnica: “Portanto, éevidente que é possível provar que tais pessoas são amigosou inimigos; se não o são, dar a impressão de que são ese se presume que o sejam, refutá-los, e se discutem porira ou inimizade, levá-los para o terreno que se prefira”22.Com isto Aristóteles leva a cabo, de certo modo, o programaque Platão traçara na sua obra Fedro para uma possível técnicaretórica genuína e onde punha como condição o conheci-mento dos diversos tipos de emoção e de carácter, a fimde que fosse possível actuar também sobre cada carácterdespertando nele a emoção adequada._______________________________20 - Aristóteles, Retórica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 15221 - Ibidem22 - Ibidem, p. 156

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2.3.4. - O discurso: estilo e ordem

Os capítulos I a XII do Livro III da Retórica tratam daelocução, a que Aristóteles chamava a expressão em pa-lavras do pensamento. Na prosa científica essa expressãoé directa, sem adornos, como convém aos que têm espíritoaberto e buscam a verdade. Mas não costumam ser assimos ouvintes da oratória, pois trata-se maioritariamente de gentevulgar e sem grande preparação intelectual. Aristótelesreconhece que o justo “seria não debater mais que os purosfactos, de sorte que tudo o que excede a demonstração ésupérfluo. Contudo, [tal excesso] tem muita importância,devido às insuficiências do ouvinte”23.

A intensidade e o tom da voz que emprega, o ritmo quedá ao seu discurso e a gesticulação com que o acompanha,configuram aquilo a que se pode chamar a actuação do orador,que neste aspecto, é como um actor de teatro. Será neces-sário cuidar da expressão já que “não é suficiente quesaibamos o que devemos dizer, é forçoso também saber comodevemos dizer, pois isso contribui em muito para que odiscurso pareça possuir uma determinada qualidade”24. Porisso a técnica retórica deve abranger a actuação do orador.

Quanto ao discurso retórico propriamente dito, pode dizer--se que, ao contrário da prosa científica, ele tem pretensõesliterárias, pois brilhar, surpreender e até divertir, podecontribuir decisivamente para persuadir o auditório. Mas isso,segundo Aristóteles, não deve confundir-se com o recursoa um estilo poético, pesado, como o de Górgias, já que ouso de um estilo sereno, claro e natural é o mais adequadoquando se pretende ser convincente. “Por isso não convémque se note a elaboração nem dar a impressão de que sefala de modo artificial mas sim natural (este último é opersuasivo, pois os ouvintes predispõem-se para contrariar,_______________________________23 - Aristóteles, Retórica, Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 239x24 - Ibidem, p. 237

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quando ficam com a ideia de que se está a metê-los numaarmadilha, tal como acontece com os vinhos misturados)”25.O recurso literário mais importante da oratória é a metáfora.Mas é preciso saber encontrar metáforas adequadas, nemmuito obscuras nem triviais. Por outro lado, o discurso,embora sem cair no verso, não pode renunciar ao ritmo.E Aristóteles explica porquê: “a forma que carece de ritmoé indefinida e deve ser definida, ainda que não seja em verso,já que o indefinido é desagradável e difícil de entender”26.Aristóteles critica o estilo pomposo, poético e artificial, oabuso de palavras complicadas, de epítetos desnecessáriose de metáforas obscuras. O discurso deve ser claro, ade-quado, escorreito e ser pronunciado de forma eficaz. De-fende igualmente que, embora o estilo escrito costume sermais exacto e o falado mais teatral, mais apropriado àinterpretação, o orador técnico deverá dominar os recursosde ambos.

Nos capítulos XIII a XIX do Livro III, Aristóteles abordaa ordem do discurso e define que as suas partes essenciaissão a exposição do tema e a argumentação persuasiva datese do orador. Diz, além disso, que costuma juntar-se noinício do discurso um preâmbulo que equivale ao prólogodo poema e ao prelúdio da composição musical e no final,um epílogo. A função principal do preâmbulo é a de exporqual é o fim a que se dirige o discurso, de modo a queo ouvinte possa seguir melhor o fio do mesmo. No epílogo,pelo contrário, refresca-se a memória do ouvinte sobre oque (supostamente) foi provado. E isto, não só porque “énatural que depois de se ter demonstrado que alguém é sinceroe o seu contrário, um mentiroso, por meio deste recursose elogie, se censure e finalize”27, mas também porque a

_______________________________25 - Aristóteles, Retórica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 24226 - Ibidem, p. 26327 - Ibidem, p. 314

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recapitulação dos pontos essenciais em que se baseou aargumentação irá facilitar a formação de uma opinião finalsobre o seu grau de acerto ou eficácia.

Como já ficou dito, a Retórica de Aristóteles terá cons-tituído, em parte, a realização do programa platónico ex-posto em Fedro de uma verdadeira técnica retórica. Só queenquanto levava a cabo essa tarefa, Aristóteles foi-se afas-tando das posições moralistas de Platão, ao mesmo tempoque se aproximava cada vez mais da concepção técnica neutraldos oradores e Mestres da altura, sobretudo, de Isócrates.

3. - A retórica clássica: retórica das figuras

Durante a Idade Média, a retórica foi apenas utilizadacomo meio para o estudo de textos, menosprezando-se oseu uso prático. Nessa medida, foi aliás da maior impor-tância na constituição do discurso literário durante orenascimento e o barroco, assim como influenciou os planosde estudos das humanidades e marcou particularmente aoratória sagrada. Chaim Perelman interroga-se sobre as razõesque terão levado a que “a retórica dita clássica, que se opôsà retórica dita antiga, tenha sido reduzida a uma retóricadas figuras, consagrando-se a classificação das diversasmaneiras com que se podia ornamentar o estilo”28. E aprincipal explicação sobre o modo como terá ocorrido essatransformação, vai encontrá-la num artigo que Gérard Genetteescreveu na revista Communications, denominado Larhétorique restreinte:

Aparentemente é desde o início da Idade Média quecomeça a desfazer-se o equilíbrio próprio da retórica antiga,que as obras de Aristóteles e, melhor ainda, de Quintiliano,testemunham: o equilíbrio entre os géneros (deliberativo,judiciário, epidíctico), em primeiro lugar, porque a mortedas instituições republicanas, na qual já Tácito via uma das

_______________________________28 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 16

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causas do declínio da eloquência, conduz ao desapareci-mento do género deliberativo, e também, ao que parece,do epidíctico, ligado às grandes circunstâncias da vida cívica:Martianus Capella, depois Isidoro de Sevilha, tomaram notadestas defecções, rhetorica est bene dicendi scientia incivilibus quaestionibus; o equilíbrio entre as “partes”(inventio, dispositio, elocutio), em segundo lugar, porquea retórica do trivium, esmagada entre gramática e dialéctica,rapidamente se vê confinada ao estudo da elocutio, dosornamentos do discurso, colores rhetorici. A época clássica,particularmente em França, e mais particularmente aindano século XVIII, herda esta situação, acentuando-a aoprivilegiar incessantemente nos seus exemplos o corpusliterário (e especialmente poético) relativamente à oratória:Homero e Virgílio (e em breve Racine) suplantamDemóstenes e Cícero; a retórica tende a tornar-se, noessencial, um estudo da lexis poética29.

Genette, no mesmo artigo, vai mais longe ainda, quandoidentifica a história da retórica com a restrição do seu próprioâmbito:

O ano de 1969-70 viu aparecer quase simultaneamentetrês textos de amplitude desigual, mas cujos títulos con-vergem de maneira bem sintomática: trata-se da Rhétoriquegénérale do grupo de Liège, cujo título inicial era Rhétoriquegénéralisée; do artigo de Michel Deguy “Pour une théoriede la figure généralisée”; e do de Jacques Sojcher, “Lamétaphore généralisée”: retórica-figura-metáfora: sob a capadenegativa, ou compensatória, duma generalização pseudo-einsteniana, eis traçado nas suas principais etapas o per-curso (aproximativamente) histórico de uma disciplina que,no decurso dos séculos, não deixou de ver encolher, comopele de chagrém, o campo da sua competência, ou pelo

_______________________________29 - Cit. in Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993,

p. 17

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menos da sua acção. A Retórica de Aristóteles não sepretendia “geral” (e ainda menos “generalizada”): ela era-o, e de tal modo o era na amplitude da sua intenção, queuma teoria das figuras ainda aí não merecia qualquer mençãoparticular; algumas páginas apenas sobre a comparação ea metáfora, num livro (em três) consagrado ao estilo e àcomposição, território exíguo, cantão afastado, perdido naimensidão de um Império. Hoje, intitulamos retórica geralo que de facto é um tratado das figuras. E se temos tantopara generalizar, é evidentemente por termos restringidodemasiado: de Corax aos nossos dias, a história da retóricaé a de uma restrição generalizada30.

Paul Ricoeur, na sua obra sobre a metáfora, veio cla-rificar ainda mais esta restrição de que já nos fala Genette,ao lembrar que “a retórica de Aristóteles cobre três campos:uma teoria da argumentação que constitui o seu eixo prin-cipal e que fornece ao mesmo tempo o nó da sua articulaçãocom a lógica demonstrativa e com a filosofia (esta teoriada argumentação cobre, por si só, dois terços do tratado),uma teoria da elocução e uma teoria da composição dodiscurso. Aquilo que os últimos tratados de retórica nosoferecem é, na feliz expressão de G. Genette, uma ‘retóricarestrita’, restringida em primeiro lugar à teoria da elocução,depois à teoria dos tropos (....) Uma das causas da morteda retórica reside aí: ao reduzir-se, assim, (...) a retóricatornou-se uma disciplina errática e fútil. A retórica morreuquando o gosto de classificar as figuras suplantou inteira-mente o sentido filosófico que animava o vasto impérioretórico, mantinha unidas as suas partes e ligava o todo aoorganon e à filosofia primeira”31.

Sobre as figuras, no entanto, é necessário proceder a umaimportante distinção. Como diz Ricouer, ao lado da retórica

_______________________________30 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 1731 - Ibidem, p. 18

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fundada na tríade retórica-prova-persuasão, Aristóteles ela-borou também uma poética que não é técnica de acção massim técnica de criação e que corresponde à tríade poiésis-mimésis-catharsis. Ora, ao referir-se à metáfora nos doistratados, Aristóteles mostra-nos que a mesma figura pertenceaos dois domínios, exercendo não só uma acção retórica,como desempenhando também um papel na criação poética.É por isso que Chaim Perelman estabelece uma diferençanítida entre figuras de retórica e figuras de estilo, quandoafirma: “Consideramos uma figura como argumentativa seo seu emprego, implicando uma mudança de perspectiva,parece normal em relação à nova situação sugerida. Se, pelocontrário, o discurso não implica a adesão do auditor a estaforma argumentativa, a figura será entendida como orna-mento, como figura de estilo. Ela poderá suscitar admiração,mas no plano estético, ou como testemunho da originalidadedo orador”32. É indispensável, por isso, examinar as figurasdentro do contexto em que surgem. De outro modo, escapa--nos o seu papel dinâmico e todas se tornarão figuras deestilo. “Se não estão integradas numa retórica concebida comoa arte de persuadir e de convencer, deixam de ser figurasde retórica e tornam-se ornamentos respeitantes apenas àforma do discurso”33.

Perelman fixa a instauração da retórica clássica no séc.XVI, quando Pedro Ramo define a gramática como a artede bem falar (falar correctamente), a dialéctica como a artede bem raciocinar e a retórica como a arte de bem dizer(fazer um uso eloquente e ornamentado da linguagem). Note--se a amplitude com que a dialéctica surge nesta classifi-cação, abrangendo tanto o estudo das inferências válidas comoa arte de encontrar e julgar os argumentos. Com estaampliação da dialéctica, naturalmente, a retórica de Aristótelesteria que ficar privada das suas duas partes essenciais, a_______________________________32 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 1933 - Ibidem

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invenção e a disposição, restando-lhe apenas a elocução,traduzida pelo estudo das formas de linguagem ornamen-tada. E é na sequência desta classificação de Pedro Ramo,que o seu amigo Omer Talon, publica em 1572, na Colónia,a primeira retórica sistematicamente limitada ao estudo dasfiguras, sob o entendimento de que a figura é “uma expres-são pela qual o desenvolvimento do discurso difere do rectoe simples hábito”34. É aqui que Perelman estabelece onascimento da retórica clássica, uma retórica das figuras que,por degenerescência, iria conduzir progressivamente à morteda própria retórica.

No mesmo sentido vai Philippe Breton quando se inter-roga sobre as razões porque a partir do séc. XIX, a retórica,como matéria de ensino, desapareceu dos programas esco-lares e universitários em França. Também ele pensa que odefinhamento da retórica começou muito antes do séc. XIX,fundando essa sua posição, nomeadamente, no pensamentode Roland Barthes: “este descrédito é trazido pela promoçãode um valor novo, a evidência (dos factos, das ideias, dossentimentos) que se basta a si mesma e passa sem a lin-guagem (ou crê poder passar), ou pelo menos, finge já seservir dela apenas como de um instrumento, de uma mediação,de uma expressão. Esta ‘evidência’ toma, a partir do séc.XVI, três direcções: uma evidência pessoal (no protestan-tismo), uma evidência racional (no cartesianismo), umaevidência sensível (no empirismo)”35. E é justamente nocartesianismo e na sua rejeição do verosímil que se develocalizar a grande dificuldade da retórica em manter um lugarcentral nos sistemas de pensamento moderno. Em traçosgerais, pode dizer-se que este foi um período de confron-tação entre a cultura da evidência e a cultura da argumen-

_______________________________34 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 2335 - Breton, P., A argumentação na comunicação, Lisboa: Publicações

D. Quixote, 1998, p. 16

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tação, com esta última a ficar para trás, alvo de um des-crédito que afinal, não lhe diz respeito, na medida em quetal descrédito se relacionava apenas com o aspecto estéticodo discurso. Como sublinha Breton, foi preciso esperar atéaos anos 60 para renascer o interesse da retórica, precisa-mente numa “época em que se começa a tomar consciênciada importância e do poder das técnicas de influência e depersuasão aperfeiçoadas ao longo de todo o século e emque a publicidade começa a invadir com força a paisagemsocial e cultural”36.

_______________________________36 - Breton, P., A argumentação na comunicação, Lisboa: Publicações

D. Quixote, 1998, p. 17

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II PARTE

A NOVA RETÓRICA

1. - Crítica do racionalismo clássico

O renascimento do interesse pela retórica muito deve àchamada “Escola de Bruxelas”1, onde - não obstante asdiferentes perspectivas de análise - três dos seus maioresrepresentantes, Dupréel, Perelman e Meyer, convergiam numponto fundamental: a crítica ao racionalismo clássico. Éjustamente a partir dessa ruptura com uma razão necessária,evidente e universal que Perelman vai elaborar a “filosofiado razoável” com que, epistemológica e eticamente, recobrea sua nova retórica, propondo um novo conceito deracionalidade extensivo ao raciocínio prático, mais compa-tível com a vivência pluralista e a liberdade humana do queo consentiria a respectiva noção cartesiana de conhecimento.Sabe-se, com efeito, como ao fazer da evidência o supremocritério da razão, Descartes “não quis considerar comoracionais senão as demonstrações que a partir de ideias clarase distintas, propagariam, com a ajuda de provas apodícticas,a evidência dos axiomas a todos os teoremas”2. O que surgisseao espírito do homem como evidente, seria necessariamenteverdadeiro e imediatamente reconhecível como tal. Porprincípio e por método, não se deveria conceder qualquercrença quando se trate de ciência, da qual, afirma Descartes,cumpre eliminar a menor dúvida. É, de resto, nesta linhade pensamento que surge a sua conhecida tese de que acada vez que sobre o mesmo assunto dois cientistas tenhamum parecer diferente “é certo que um dos dois está enga-

_______________________________1 - Cf. Grácio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edições ASA,

1993, p. 142 - Perelman, C., De l’évidence en métaphysique, in Le Champ de

L’argumentation, Presses Universitaires de Bruxelles, 1970, p. 236

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nado; e até nenhum deles, parece, possuiu a ciência, pois,se as razões de um fossem certas e evidentes, ele poderiaexpô-las ao outro de uma tal maneira que acabaria porconvencê-lo por sua vez”3. Mas, como sublinha Perelman,a questão não reside no método cartesiano em si mesmo,mas sim, no desmesurado âmbito da sua aplicação, querelembremos, seria o de “todas as coisas que podem cairno conhecimento dos homens”4. É que Descartes tão poucoquis limitar as suas regras ao discurso matemático, antesse propôs fundar uma filosofia verdadeiramente racional eé aí, como acentua Perelman, que ele dá “...um passoaventureiro, que o conduz a uma filosofia contestável, quandose lembra de misturar uma imaginação propriamente filo-sófica com as suas análises matemáticas, transformando asregras inspiradas pelos geómetras em regras universalmenteválidas”5.

A sua filosofia teria, assim, como finalidade, a descobertada verdade, e como fundamento, a evidência. Seria umafilosofia inteiramente nova, uma verdadeira ciência queprogrediria de evidência em evidência. Apenas enquanto nãose alcançasse por este método o conhecimento da verdadeseria necessário deitar mão a uma moral provisória cujanecessidade Descartes justifica do seguinte modo: “para nãoficar irresoluto na minha conduta, enquanto a razão meobrigasse a sê-lo nos meus juízos, e, para não deixar deviver, desde então, o mais felizmente possível, formei paramim próprio uma moral provisória constituída somente portrês ou quatro máximas....”6.

Há aqui, como bem observa Rui Grácio, uma nítidadistinção entre os domínios da teoria e da prática e o implícito_______________________________3 - Descartes, Oeuvres, ed. de la Pléiade, Paris, 1952, p. 40 cit in

Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 2114 - Descartes, R., Discurso do Método, Porto: Porto Editora, 1988, p. 735 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 1636 - Descartes, R., Discurso do Método, Porto: Porto Editora, 1988, p. 78

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reconhecimento das dificuldades que o recurso à epochésempre coloca quando se trate de articular a razão com aacção. É que se “teoricamente, é possível permanecer-seirresoluto, sendo mesmo, como Descartes pensa, indispen-sável esse momento de purificadora suspensão para que oespírito se purgue de todo o tipo de preconceitos e paraque as opiniões possam ser ajustadas ‘ao nível da razão’,já no domínio da acção o mesmo não se passa, pois estamossempre, irremediavelmente in media res, incontornavelmenteinseridos em contextos e situações, apegados a valores,convicções e normas ou, para o dizer abreviadamente,indissociavelmente ligados a uma ordem prévia determinantedas possibilidades de sentido para a nossa acção”7. Daquidecorre o diferente estatuto que o cartesianismo confere atodo o conhecimento anterior. No plano teórico, tudo o queé prévio surge como não confiável, como potencial fontede erro e obstáculo à clareza e distinção de uma razão quese crê portadora de uma garantia divina e que por isso mesmocontém em si própria o critério para distinguir o verdadeirodo falso. No plano prático, porém, o prévio impõe-se comoindispensável sob pena de se ficar condenado a uma totalarbitrariedade. É o que Descartes reconhece quando depoisde ter formulado os seus preceitos morais provisórios, atribuia estes um fundamento que não vai além da utilidadeinstrumental de que se revestem: “as três máximas prece-dentes [as regras da sua moral provisória] outro fundamentonão tinham senão o propósito de continuar a instruir-me....”8.

Ficam assim evidenciadas as duas principais aporias dateoria do conhecimento cartesiana, por um lado, o carácterassocial e an-histórico do saber e por outro, a nítida se-paração entre teoria e prática, aporias que irão ser, de resto,o principal alvo da vigorosa crítica de Perelman. Com efeito,

_______________________________7 - Grácio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edições ASA, 1993,

p. 188 - Descartes, R., Discurso do Método, Porto: Porto Editora, 1988, p. 82

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no dizer do “pai da nova retórica”, Descartes elaborou umateoria do conhecimento não humano, mas divino, de umespírito único e perfeito, sem iniciação e sem formação, semeducação e sem tradição. E deste ponto de vista, a históriado conhecimento seria unicamente a dos seus crescimentose nunca a das suas modificações sucessivas, pois “se, parachegar ao conhecimento, é mister libertar-se dos preconcei-tos pessoais e dos erros, estes não deixam nenhum vestígiono saber enfim purificado”9. Por outro lado, a separação clarae absoluta entre a teoria e a prática, faz com que, quandose trate, não da contemplação da verdade mas do uso davida, na qual a urgência da acção exige decisões rápidas,o método cartesiano não nos sirva para nada.

Mas Perelman não poderia estar em maior oposição àtese cartesiana. Rejeitando a possibilidade de acedermos aoabsoluto, vai condicionar a qualificação de conhecimento àdimensão probatória do saber afirmado: “enquanto a intuiçãoevidente, único fundamento de todo o conhecimento, numDescartes ou num Locke, não tem a menor necessidade deprova e não é susceptível de demonstração alguma, qua-lificamos de conhecimento uma opinião posta à prova, queconseguiu resistir às críticas e objecções e da qual se esperacom confiança, mas sem uma certeza absoluta, que resistiráaos exames futuros. Não cremos na existência de um critérioabsoluto, que seja o fiador de sua própria infalibilidade;cremos, em contrapartida, em intuições e em convicções,às quais concedemos nossa confiança, até prova em con-trário”10. Já se antevê o relevo que a prova vai ter na suaconcepção de saber e, em especial, na recuperação do mundodas opiniões para a esfera da racionalidade, uma racionalidadeassim alargada, que não se confinando mais aos estreitoslimites da verdade ou certeza absoluta, opera igualmente e_______________________________9 - Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 15910 - Ibidem, p. 160

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com não menor eficácia nos domínios da razoabilidade ondeo critério qualificador do racional será o acordo ou consensoe já não a evidência cartesiana. Para isso, é necessário afastardo espírito qualquer ideia de uma razão impessoal e ab-soluta. E é o que Perelman faz, quando rejeita a identificaçãodo racional com o necessário, e do não-necessário com oirracional, no reconhecimento de que há entre esses doisextremos absolutos todo um imenso campo em que a nossaactividade racional se exerce enquanto instância darazoabilidade. Analisando sobretudo as características doraciocínio prático, ele propõe-se mostrar como a razão é aptaa lidar também com valores, a ordenar as nossas preferênciasou convicções, logo, a determinar, com razoabilidade, asnossas decisões. Esse é o campo da argumentação que eleidentifica com a retórica e por cuja reabilitação e renovaçãose bate ao fundar a sua teoria da argumentação numa fi-losofia do razoável. Desse modo, a razão humaniza-se e ganhaum novo rosto: a racionalidade argumentativa.

2. - Por uma lógica do preferível: demonstração versusargumentação

Sabe-se como Perelman foi conduzido à retórica. Inici-almente interessado na investigação de uma hipotética lógicade juízos de valor que permitisse demonstrar que uma certaacção seria preferível a outra, acabou por retirar desse estudoduas inesperadas conclusões: primeiro, que não existia, afinal,uma lógica específica dos juízos de valor e, segundo, queaquilo que procurava “tinha sido desenvolvido numa dis-ciplina muito antiga, actualmente esquecida e menosprezada,a saber, a retórica, a antiga arte de persuadir e de conven-cer”11. Confessa, aliás, que foi da leitura e estudo da retóricade Aristóteles e de toda a tradição greco-latina da retórica_______________________________11 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 15

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e dos Tópicos, que lhe surgiu a surpreendente revelação deque “nos domínios em que se trata de estabelecer aquiloque é preferível, o que é aceitável e razoável, os raciocíniosnão são nem deduções formalmente correctas nem induçõesdo particular para o geral, mas argumentações de toda aespécie, visando ganhar a adesão dos espíritos às teses quese apresentam ao seu assentimento”12. Daí que parta igual-mente da distinção aristotélica entre duas espécies de ra-ciocínio - os raciocínios analíticos e os raciocínios dialécticos- para evidenciar a estreita conexão destes últimos (osdialécticos) com a argumentação. Percebe-se que Perelmanquer deixar bem clara a diferença entre estas duas espéciesde raciocínio, porque, além do mais, a análise dessa dife-rença serve na perfeição para ilustrar a indispensabilidadeda retórica. Para o efeito socorre-se dos Analíticos ondeAristóteles estuda formas de inferência válida, especialmenteo silogismo, que permitem inferir uma conclusão de formanecessária, sublinhando o facto de a inferência ser válidaindependentemente da verdade ou da falsidade das premis-sas, ao contrário da conclusão que só será verdadeira se aspremissas forem verdadeiras. Assim, a afirmação “se todosos A são B e se todos os B são C, daí resulta necessariamenteque todos os A são C”, traduz uma inferência que é pu-ramente formal por duas razões: é válida seja qual for oconteúdo dos termos A, B e C (na condição de que cadaletra seja substituída pelo mesmo valor sempre que ela seapresente), e estabelece uma relação entre a verdade daspremissas e a da conclusão. Naturalmente que se a verdadeé uma propriedade das proposições, independentemente daopinião dos homens, o raciocínio analítico só pode serdemonstrativo e impessoal. Esse não é, porém, o caso doraciocínio dialéctico, que Aristóteles define como sendo aqueleem que as premissas se constituem de opiniões geralmente

_______________________________12 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 15

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aceites, por todos, pela maioria ou pelos mais esclarecidos(o verosímil será então aquilo que for geralmente aceite,cabendo aqui referir, no entanto, que, para Perelman aexpressão “geralmente aceite” não deve ser confundida comuma probabilidade calculável, por ser portadora de um aspectoqualitativo que a aproxima mais do termo “razoável” do quedo termo “provável”). Mas se o raciocínio dialéctico partedo que é aceite, com o fim de fazer admitir outras tesesque são ou podem ser controversas, é porque tem o propósitode persuadir ou convencer, de ser apreciado pela sua acçãosobre outro espírito, numa palavra, é porque não é impes-soal, como o raciocínio analítico. Pode então fazer-se adistinção entre os raciocínios analíticos e os raciocíniosdialécticos com base no facto dos primeiros incidirem sobrea verdade e os segundos sobre a opinião. É que, como dizPerelman, seria “...tão ridículo contentarmo-nos com argu-mentações razoáveis por parte de um matemático como exigirprovas científicas a um orador”13.

Constata-se assim uma nítida preocupação de revalorizaros raciocínios dialécticos, sem contudo pôr em causa aoperatividade dos raciocínios analíticos. O que Perelmamdenuncia é a suposta “purificação” feita pela lógica moder-na, especialmente depois de Kant e dos lógicos matemáticosterem identificado a lógica, não com a dialéctica, mas coma lógica formal, acolhendo os raciocínios analíticos, enquan-to os raciocínios dialécticos eram pura e simplesmenteconsiderados como estranhos à lógica. Essa denúncia assentabasicamente na constatação de que se a lógica formal e asmatemáticas se prestam a operações e ao cálculo, é tambéminegável que continuamos a raciocinar mesmo quando nãocalculamos, no decorrer de uma deliberação íntima ou deuma discussão pública, ou seja, quando apresentamos ar-gumentos a favor ou contra uma tese ou ainda quandocriticamos ou refutamos uma crítica. Em todos estes casos,_______________________________13 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 22

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não se demonstra (como nas matemáticas), argumenta-se.Daí que Perelman conclua: “É pois normal, se se concebea lógica como estudo do raciocínio sob todas as formas,completar a teoria da demonstração, desenvolvida pela lógicaformal, com uma teoria da argumentação, estudando osraciocínios dialécticos de Aristóteles”14.

No âmbito da nova retórica, porém, o estudo da argu-mentação, visando a aceitação ou a rejeição duma tese emdebate, bem como as condições da sua apresentação, nãose limita à recuperação e revalorização da retórica deAristóteles. Comprova-o, desde logo, o facto de Perelmanassumir um diferente posicionamento quanto à relação entrea retórica e a dialéctica. Recordemos que nos seus Tópicos,Aristóteles concebe a retórica como oposta à dialéctica,chegando a considerá-la mesmo como o reverso desta última.Essa oposição, contudo, é fortemente tributária da distinçãoque o velho filósofo fazia entre uma e outra: a dialécticacomo estudo dos argumentos utilizados numa controvérsiaou discussão com um único interlocutor, e a retórica, comodizendo respeito às técnicas do orador “dirigindo-se a umaturba reunida na praça pública, a qual não possui nenhumsaber especializado e que é incapaz de seguir um raciocínioum pouco mais elaborado”15. Mas a nova retórica vem rompertotalmente com essa distinção, na medida em que passa adizer respeito aos discursos dirigidos a todas as espéciesde auditórios, quer se trate de reuniões públicas, de um grupofechado, de um único indivíduo ou até, de nós mesmos(deliberação íntima). Essa é, aliás, uma das novidades danova retórica em que Perelman põe mais ênfase e para aqual apresenta a seguinte justificação: “Considerando queo seu objecto é o estudo do discurso não-demonstrativo, aanálise dos raciocínios que não se limitam a inferênciasformalmente correctas, a cálculos mais ou menos mecaniza-

_______________________________14 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 2415 - Ibidem

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dos, a teoria da argumentação concebida como uma novaretórica (ou uma nova dialéctica) cobre todo o campodiscursivo que visa convencer ou persuadir, seja qual foro auditório a que se dirige e a matéria a que se refere”16.Quando muito, Perelman admite que se possa completar oestudo geral da argumentação com metodologiasespecializadas em função do tipo de auditório e o géneroda disciplina, o que levaria à elaboração, por exemplo, deuma lógica jurídica ou de uma lógica filosófica, as quaismais não seriam do que aplicações particulares da novaretórica ao direito e à filosofia. Nesta afirmação poderemossurpreender uma outra inovação no seu pensamento retórico,pois dela decorre, como ele próprio assume, uma subordi-nação da filosofia à retórica, ao menos, no momento emque se trate de verificar se as teses da primeira merecemou não ser acolhidas. A questão é esta: ou se admite quese pode fundar teses filosóficas com base no critério daevidência e, nesse caso, a filosofia bastar-se-á a si própria,não só quanto à sua elaboração mas também no tocante àsua demonstração, ou não se admite que se possa fundarteses filosóficas sobre intuições evidentes e será precisorecorrer a técnicas argumentativas para as fazer prevalecer.Como já vimos, Perelman toma partido por esta segundahipótese, o que o leva a considerar a nova retórica comoum instrumento indispensável à filosofia, na convicção deque “todos os que crêem na existência de escolhas razoáveis,precedidas por uma deliberação ou por discussões, nas quaisas diferentes soluções são confrontadas umas com as outras,não poderão dispensar, se desejam adquirir uma consciênciaclara dos métodos intelectuais utilizados, uma teoria daargumentação tal como a nova retórica a apresenta”17.Vislumbram-se aqui os primeiros alicerces fundacionaisdaquilo a que, numa das suas obras, virá a chamar “O império

_______________________________16 - Perelman, C., O império retórico. Porto: Edições ASA, 1993, p. 2417 - Ibidem, p. 27

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retórico” e que se tornam ainda mais visíveis quando afirmaque a nova retórica “não se limitará, aliás, ao domínio prático,mas estará no âmago dos problemas teóricos para aqueleque tem consciência do papel que a escolha de definições,de modelos e de analogias, e, de forma mais geral, aelaboração duma linguagem adequada, adaptada ao campodas nossas investigações, desempenham nas nossas teorias”18.

Torna-se pois imperioso distinguir entre demonstração eargumentação, o que Perelman faz com assinalável clareza,começando por salientar que, em princípio, a demonstraçãoé desprovida de ambiguidade (ou, pelo menos, assim éentendida) enquanto a argumentação, decorre no seio de umalíngua natural, cuja ambiguidade não pode ser previamenteexcluída. Além disso, a demonstração - que se processa emconformidade com regras explicitadas em sistemas forma-lizados - parte de axiomas e princípios cujo estatuto é distintodo que se observa na argumentação. Enquanto numa de-monstração matemática, tais axiomas não estão em discus-são, sejam eles evidentes, verdadeiros ou meras hipóteses,e por isso mesmo não dependem também de qualqueraceitação do auditório, na argumentação, a discutibilidadeestá sempre presente, já que o seu fim “não é deduzirconsequências de certas premissas mas provocar ou aumen-tar a adesão de um auditório às teses que se apresentamao seu assentimento”19. Pode então dizer-se que, no quadrodo pensamento perelmaniano, a diferença entre demonstra-ção e argumentação surge umbilicalmente ligada ao modocomo nele se distingue a lógica tradicional da retórica. Nãosurpreende, por isso, que a própria noção de prova tenhaque ser significativamente mais lata do que na lógica tra-dicional e nas concepções clássicas de prova, pois a neces-sidade e a evidência não se coadunam com a natureza daargumentação e da deliberação. Nem se delibera quando a

_______________________________18 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 2719 - Ibidem, p. 29

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solução é necessária, nem se argumenta contra a evidência.Daí que Perelman venha dizer-nos que ao lado da provapara a lógica tradicional, dedutiva ou indutiva, impõe-seconsiderar também outro tipo de argumentos, os dialécticosou retóricos. Este alargamento da noção de prova, mostra--se, aliás, em perfeita harmonia com o já referido alarga-mento da própria noção de razão. Organizada por um conjuntode processos que tendem a enfatizar a plausibilidade da teseque se defende, a prova retórica manifesta-se pela força domelhor argumento, que se mostrará mais forte ou mais fraco,mais ou menos pertinente ou mais ou menos convincente,mas que, pela sua natureza, afasta, à partida, qualquerpossibilidade de poder ser justificado como correcto ouincorrecto. Além disso, o acto de provar fica assimindissociavelmente ligado a uma dimensão referencial queimplica a consideração das condições concretas do uso dalinguagem natural e da ambiguidade sempre presente nasnoções vagas e confusas que integram aquela. Do que setrata agora é de realizar uma prova nas e para as situaçõesconcretas em que se elabora e face às quais se apresentacomo justificação razoável de uma opção, pois, como dizPerelman, “a possibilidade de conferir a uma mesma ex-pressão sentidos múltiplos, por vezes inteiramente novos,de recorrer a metáforas, a interpretações controversas, estáligada às condições de emprego da linguagem natural. Ofacto desta recorrer frequentemente a noções confusas, quedão lugar a interpretações múltiplas, a definições variadas,obriga-nos muito frequentemente a efectuar escolhas, deci-sões, não necessariamente coincidentes. Donde a obrigação,bem frequente, de justificar esta escolha, de motivar estasdecisões”20. Rui Grácio assinala aqui uma deslocação fun-damental na noção de prova, no sentido da suadesdogmatização, sem que, contudo, se tenha de cair no

_______________________________20 - Perelman, C., cit. in Grácio, R., Racionalidade argumentativa, Porto:

Edições ASA, 1993, p. 79

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cepticismo radical. O que se passa é que as exigências derigor e certeza deixam de se cingir à polaridade certezaabsoluta-dúvida absoluta, passando a ser apreciadas à luzde uma lógica do preferível (ou informal) que já não visaa verdade abstracta, categórica ou hipotética, mas tão so-mente o consenso e a adesão. Abre-se assim espaço a umlivre confronto de opiniões e argumentos, que permite“dimensionar criticamente o acto de provar, ajustando-o àspossibilidades e limites da condição humana (ligação como passado, historicidade, impossibilidade de uma linguagempura ou de um grau zero do pensamento) e mostrar quea própria exigência de provar só tem verdadeiramente umsentido humano quando nela se vêem implicadas a nossaresponsabilidade e a nossa liberdade”21. É que se o raciocínioteórico, onde a conclusão decorre das premissas de uma formaimpessoal, permite elaborar uma lógica da demonstraçãopuramente formal, de aplicação necessária, o raciocínioprático, pelo contrário, ao recorrer a técnicas de argumen-tação, implica sempre um determinado poder de decisão,ou seja, a liberdade de quem julga a tese, para a ela aderirou não. O fim do raciocínio prático não é já o de demonstrara verdade, mas sim, mostrar em cada caso concreto, quea decisão não é arbitrária, ilegal, imoral ou inoportuna, numapalavra, persuadir que ela é motivada pelas razões indicadas.

3. - A adesão como critério da comunicação persuasiva

3.1. - O duplo efeito da adesão

Que a retórica visa persuadir e que a adesão é, simul-taneamente, o fim e o critério da comunicação persuasiva,é ponto assente. Mas qual a natureza e extensão dessa adesão?Quando se pode afirmar que há ou não adesão? Bastará para

_______________________________21 - Grácio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edições ASA, 1993,

p. 80

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tanto que o interlocutor ou o auditório passem a comungarda mesma ideia que o orador? Poder-se-á falar de adesãopassiva e adesão activa? Mais: será possível estabeleceralguma distinção entre adesão e convencimento? SantoAgostinho vem ao encontro deste conjunto de questões quandoconsidera que o auditório só será verdadeiramente persu-adido “se conduzido pelas vossas promessas e aterrorizadopelas vossas ameaças, se rejeita o que condenais e abraçao que recomendais; se ele se lamenta diante do que apresentaiscomo lamentável e se rejubila com o que apresentais comorejubilante; se se apieda diante daqueles que apresentais comodignos de piedade e se afasta daqueles que apresentais comohomens a temer e a evitar”22. Dele nos diz Perelman que,falando aos fiéis para que acabassem com as guerras in-testinas, não se contentou com os aplausos e falou até quevertessem lágrimas, testemunhando assim, que estavampreparados para mudar de atitude. Evidentemente que nãopodemos, hoje em dia, aceitar integralmente as ideias re-tóricas de Santo Agostinho, nomeadamente quando nos falade “verdades práticas” e preconiza o aterrorizar do auditório.O que interessa aqui destacar é a sua visível preocupaçãopor aquilo a que podemos chamar de “adesão activa”, ouseja, a ideia de que em muitos casos, ao orador não bastarálevar o auditório a concordar com a sua tese - o que emsi mesmo se traduziria pelo mero assentimento ou disposiçãode a aceitar - antes terá de se certificar que a adesão obtidaconfigura também a acção ou a predisposição de a realizar.Ora a nova retórica contempla igualmente esse duplo efeitoda adesão, já que “(...) a argumentação não tem unicamentecomo finalidade a adesão puramente intelectual. Ela visa,muito frequentemente, incitar à acção ou, pelo menos, criaruma disposição para a acção. É essencial que a disposiçãoassim criada seja suficientemente forte para superar os

_______________________________22 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 32

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eventuais obstáculos”23. Um discurso argumentativo será entãoeficaz se obtiver êxito num dos dois objectivos possíveis:ou conseguir do auditório um efeito puramente intelectual,ou seja, uma disposição para admitir a plausibilidade de umatese (quando a tal se limite a intenção do orador), ou provocaruma acção a realizar imediata ou posteriormente. Logo, combase no critério da tendência para a acção, poderemosconfigurar o primeiro dos efeitos como “adesão passiva” eo segundo, como “adesão activa”. Num e noutro caso, porém,sempre está em causa a competência argumentativa do orador,os metódos e as técnicas retóricas a que recorre e, de ummodo muito especial, o tipo de auditório sobre o qual queragir.

3.2. - Persuasão e convencimento: do auditório parti-cular ao auditório universal

Segundo Perelman, é justamente pela análise dos diver-sos tipos de auditório possíveis que poderemos tomar posiçãoquanto à distinção clássica entre convencimento e persuasão,no âmbito da qual se concebem os meios de convencer comoracionais, logo, dirigidos ao entendimento, e os meios depersuasão como irracionais, actuando directamente sobre avontade. A persuasão seria pois a consequência natural deuma acção sobre a vontade (irracional) e o convencimento,o resultado ou efeito do acto de convencer (racional). Masse, como sugere Perelman, analisarmos a questão pela ópticados diversos meios de obter a adesão das mentes, forçososerá constatar que esta última é normalmente conseguida“por uma diversidade de procedimentos de prova que nãopodem reduzir-se nem aos meios utilizados em lógica formalnem à simples sugestão”24. É o caso da educação, dos juízos

_______________________________23 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 3124 - Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 63

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de valor, das normas e de muitos outros domínios onde sejulga impossível recorrer apenas aos meios de prova “pu-ramente” racionais. Além disso, afigura-se igualmente muitoproblemática a possibilidade de determinar à partida quaisos meios de prova convincentes e aqueles que o não são,segundo se dirijam ao entendimento ou à vontade, pois que,como se sabe, o homem não é constituído por faculdadescompletamente separadas. Acresce que “Aquele que argu-menta não se dirige ao que consideramos como faculdades,como a razão, as emoções, a vontade. O orador dirige-seao homem todo...”25. Daí que a distinção entre persuasãoe convencimento, quando centrada nos índices deconfiabilidade e validação inerentes ao par racional/irraci-onal, pareça nada poder vir a acrescentar à compreensãodo acto retórico. Estará mesmo contra-indicada pois “oscritérios pelos quais se julga poder separar convicção epersuasão são sempre fundamentados numa decisão quepretende isolar de um conjunto – conjunto de procedimentos,conjunto de faculdades – certos elementos consideradosracionais”26. Surpreendentemente, porém, eis que Perelmansubmete essa mesma distinção a uma reciclagem conceptuale dela se serve não já para validar racionalmente os meiosutilizados ou as faculdades às quais o orador se dirige, nemtão pouco para precisar o que se deve entender por per-suasão e por convicção mas para estabelecer uma polémicadiferenciação entre duas intencionalidades discursivas, quepoderíamos prefigurar como intencionalidade técnica eintencionalidade filosófica, conforme se vise unicamente aadesão do auditório particular ou uma aprovação universal.O que, a nosso ver, se traduz numa diferente forma deperspectivar o convencimento fazendo-o convergir agora, doponto de vista da argumentação, mais com a potência do

_______________________________25 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 3226 - Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca, L., Tratado da argumentação, S.

Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 30

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que com o acto, mais com o que deve ser do que com oque é, mais com a intenção do orador do que com a adesãodo auditório. A essa constatação nos reconduz a naturalanterioridade de toda a intenção relativamente à apresen-tação e recepção efectivas de cada argumento. Reconheça--se, por isso, que, da concepção clássica de uma convicçãofundada na verdade do seu objecto, já pouco resta neste modoperelmaniano de distinguir a persuasão do convencimento.A resposta de Perelman, mais do que solucionar, parece“matar” o problema. Da inicial pretensão à verdade, ficaapenas uma intenção de verdade e um método para a retóricatendencialmente dela se aproximar, método esse que desdelogo se vislumbra no modo como estabelece a diferença entreargumentação persuasiva e argumentação convincente quan-do se propõe “chamar persuasiva a uma argumentação quepretende valer só para um auditório particular e chamarconvincente àquela que deveria obter a adesão de todo oser racional”27. Notemos aqui, antes de mais, que as expres-sões pretende valer e deveria obter são certamente sufici-entes para afirmar uma intenção de se chegar à persuasãoou à convicção, mas nunca para definirem o que seja umaou outra. Logo, são os meios de obter a adesão das mentesque ficam definidos e não a persuasão nem a convicção.Ou seja, é principalmente a atitude do orador e o seu modode argumentar que estão em causa. Resta saber o que podeser entendido por uma argumentação “que deveria obter aadesão de todo o ser racional”. É aqui que entra a con-troversa noção de auditório universal perelmaniano.

Já deixamos antever que para Perelman a questão doconvencimento é indissociável da natureza do auditório. Oraeste pode ser representado como “o conjunto daqueles queo orador quer influenciar pela sua argumentação”28, o que

_______________________________27 - Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca, L., Tratado da argumentação, S.

Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 3128 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 33

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é algo mais do que circunscrevê-lo ao número de pessoasfísica e directamente presentes ao orador. O deputado quediscursa na Assembleia da República, será aqui um bomexemplo. Embora se dirija formalmente ao Presidente daMesa, ele fala, não só para os restantes deputados queintegram o Parlamento como também, frequentemente, parao conjunto de cidadãos que o irão ouvir, em suas casas,na reportagem do telejornal. Pode mesmo falar para todosos portugueses, se a causa que defende a todos respeita,e até para os europeus ou, ainda, no limite, para todo omundo, no caso do respectivo interesse nacional de algumaforma ser dimensionável ao nível da globalização. Teremosaqui o primeiro afloramento do que seja um auditóriouniversal, no sentido que Perelman lhe atribui? Obviamen-te que não, pois a sua noção de auditório universal nãose funda numa qualificação numérica ou espacial, em funçãoda quantidade e localização dos destinatários de uma dadaargumentação. Além disso, o auditório do exemplo queacabamos de referir insere-se na própria realidade, enquan-to que o auditório universal de Perelman pura e simples-mente não existe, não se oferece a qualquer observaçãofísica, é uma pura construção ideal do orador. Não é poisnem uma universalidade concreta e delimitável, nem tãopouco uma universalidade teórico-abstracta autónoma einvariável que pudesse servir de garantia ou padrão qua-lificativo da argumentação convincente. Neste sentido, éperfeitamente compreensível a advertência de Perelman:“Em vez de se crer na existência de um auditório universal,análogo ao do espírito divino que tem de dar o seuconsentimento à ‘verdade’, poder-se-ia, com mais razão,caracterizar cada orador pela imagem que ele próprio formado auditório universal que busca conquistar para as suasopiniões. O auditório universal é constituído por cada quala partir do que sabe de seus semelhantes...”29. Mas daqui

_______________________________29 - Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca , L., Tratado da argumentação,

S. Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 37

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não decorre que seja convincente toda a argumentação queobedeça ao que cada uma das pessoas, num dado auditório,entenda como real, verdadeiro e objectivamente válido (deresto, tarefa impossível), e sim, a argumentação em queo orador crê que “todos os que compreenderem suas razõesterão de aderir às suas conclusões”30. Pode então deduzir-se que, de algum modo, o orador fica cometido de umaimportante função prospectiva: a de avaliar antecipadamen-te o que os destinatários da sua argumentação devem (oudeveriam) pensar e concluir quanto às razões que ele própriolhes irá apresentar. Mas ocorre perguntar se, nestas con-dições, estaremos ainda face a uma situação retórica. Atéque ponto esta “convicção prévia” do orador sobre o carácterracional (logo, inatacável...) dos seus argumentos não irádificultar ou até mesmo violar a livre discutibilidade a queaquela não pode nunca eximir-se? E de que poder oufaculdade tão especial dispõe quem argumenta, para de-finir, à partida, o que os seus auditores deveriam entendercomo racionalmente válido? Pensamos que nesta suaconcepção de auditório universal Perelman não resistiu ao“assédio” da razão objectiva (ainda que numa versãofortemente mitigada) que tanto critica em Descartes. Bastaatentar nesta breve passagem do seu Tratado da argumen-tação: “É por se afirmar o que é conforme a um factoobjectivo, o que constitui uma asserção verdadeira e mesmonecessária, que se conta com a adesão daqueles que sesubmetem aos dados da experiência ou às luzes da razão”31.Facto objectivo? Que valor de universalidade pode seratribuído a este conceito ao mesmo tempo que se reconheceque “não contamos com nenhum critério que nos possibilite,em qualquer circunstância e independentemente da atitudedos ouvintes, afirmar que alguma coisa é um facto”?32 Luzes

_______________________________30 - Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca , L., Tratado da argumentação,

S. Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 3531 - Ibidem32 - Ibidem, p. 76

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da razão? Mas quem apela à razão, como diz Thomas Nagel,“...propõe-se descobrir uma fonte de autoridade em si mesmoque não é meramente pessoal ou social, mas antes universal- e que deverá também persuadir outras pessoas que estejamna disposição de a ouvir”33. Ora este modo de descrevera razão, como o reconhece o próprio Nagel, é de nítidainspiração cartesiana ou platónica34. O mínimo que se podedizer, portanto, é que Perelman não explicitou com sufici-ente clareza esta sua noção de auditório universal, querenquanto instância normativa da argumentação, quer comocritério do discurso convincente. Tal como a apresenta, querno Tratado da argumentação, quer no Império retórico ouna Retóricas, fica-nos, aliás, a impressão de que, movidopela louvável preocupação de conferir à retórica um cunhomarcadamente filosófico, dela terá exigido mais do que amesma poderia dar. É certo que “toda a argumentação quevisa somente a um auditório particular oferece um incon-veniente, o de que o orador, precisamente na medida emque se adapta ao modo de ver dos seus ouvintes, arrisca--se a apoiar-se em teses que são estranhas, ou mesmo fran-camente opostas, ao que admitem outras pessoas que nãoaquelas a que, naquele momento, ele se dirige”35. Mas nãoé o próprio Perelman quem, sem qualquer reserva, afirmaque “é, de facto, ao auditório que cabe o papel principalpara determinar a qualidade da argumentação e o compor-tamento dos oradores”?36 E como conciliar a imposiçãoracional do auditório universal37 com a tolerância de situ-ações em que a adesão do auditório se fica a dever à utilização_______________________________33 - Nagel, T., A última palavra, Lisboa: Gradiva-Publicações, Lda, 1999,

p. 1234 - Cf. Ibidem35 - Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca , L., Tratado da argumentação,

S. Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 3436 - Ibidem, p. 2737 - Ou do modo como o orador o imagina

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de premissas cuja validade não é reconhecida pelo orador?Ainda que pareça algo estranho e incoerente, é o que Perelmanfaz quando refere, a certa altura, na sua obra Retóricas: “Épossível, de facto, que o orador procure obter a adesão combase em premissas cuja validade ele próprio não admite.Isto não implica hipocrisia, pois o orador pode ter sidoconvencido por argumentos diferentes daqueles que poderãoconvencer as pessoas a quem se dirige”38. Será que, noentender de Perelman, a função normativa do auditóriouniversal exerce-se quanto aos fins mas já não quanto aosmeios da argumentação? Não estaríamos aqui perante umsério atropelo às preocupações ético-filosóficas na base dasquais Perelman formula a própria intenção de universalidadeque deve animar o orador? É provável que estas contradiçõesou ambiguidades em que a sua noção de auditório universalparece mergulhar, e até mesmo o pendor universalista quea caracteriza, fiquem a dever-se, em grande parte, aoproposicionalismo e correspondente acento lógico-intelectu-al da própria concepção perelmaniana de retórica (ou ar-gumentação). Recordemos que esta remete-nos para o “es-tudo das técnicas discursivas que permitem provocar ouaumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhesapresentam ao assentimento”39. Mas Meyer (a quem vol-taremos na III Parte deste estudo) veio mostrar como “aretórica não fala de uma tese, de uma resposta-premissa quenão corresponde a nada, mas da problematicidade que afectaa condição humana, tanto nas suas paixões como na suarazão e no seu discurso”40. E, na medida em que, segundoeste mesmo autor, “a relação retórica consagra sempre umadistância social, psicológica, intelectual, que é contingente

_______________________________38 - Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 7139 - Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca, L., Tratado da argumentação, S.

Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 440 - Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa:

Edições 70, Lda., 1998, p. 31

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e de circunstância, que é estrutural porque, entre outras coisas,se manifesta por argumentos ou por sedução”41, já não sevê razões para que a negociação dessa distância (em quese traduz toda a situação retórica) deva fazer-se sob aimperatividade de qualquer generalização prévia exterior aopróprio confronto de opiniões e, muito menos, quando talgeneralização tenha lugar apenas na cabeça do orador (comopreconiza Perelman), por muito qualificado e honesto queele seja. A ideia de auditório universal, que surge em Perelmanalgo nebulosamente identificada com a razão, parece assimdesprovida de qualquer valor operatório enquanto critérioou método de aproximação à verdade. Surpreende, aliás, quedepois de recusar o auditório íntimo como encarnação plenado auditório universal, sob o argumento de que não se podeconfiar na sinceridade do sujeito que delibera para consigomesmo, dado que “a psicologia das profundezas ensinou-nos a desconfiar até do que parece indubitável à nossa própriaconsciência”42, Perelman tenha acabado por tão confiada-mente fazer depender a racionalidade argumentativa “...deuma universalidade e de uma unanimidade que o oradorimagina...”43. Concluindo, o auditório universal pode nãocorresponder à fórmula mais feliz de satisfazer a exigênciade sinceridade e lucidez que se impõe a todo o orador,enquanto “ser para o outro”, mas é, sem dúvida, umaafirmação do ideal ético que o deve nortear. O que não pareceadmissível é ver nele o (único) critério para se classificarum discurso como convincente ou “apenas” persuasivo,conforme a intenção do orador seja a de obter a adesãode todo o ser de razão ou só de alguns44. Porque a intençãode convencer não é ainda o convencer, nem a convicçãodo orador se propaga automaticamente ao seu próprio discurso

_______________________________41 - Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa:

Edições 70, Lda., 1998, p. 2642 - Perelman, C., Tratado da argumentação, S. Paulo: Martins Fontes,

1999, p. 4643 - Ibidem, p. 3544 - Cf. Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 37

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ou àqueles a quem este se dirige. De resto, quando situadano plano comunicacional, a convicção, como assinala Mellor,não se limita ao que pretendemos comunicar. “Há tambéma convicção que temos de qual seja essa nossa convicção,que é a que vai determinar que a digamos. E, finalmente,há, claro, a nossa convicção de que quem nos ouvir ficaráconvencido do que dizemos”45. Quem decide, em últimaanálise, se o discurso é ou não convincente é o auditório,de acordo com a maior ou menor intensidade da sua adesão.E ainda que se admita que um discurso convincente é aquelecujas premissas e argumentos são universalizáveis, no sen-tido de aceitáveis, em princípio, por todos os membros doauditório universal (como o faz Perelman), não se pode retirarao auditório o seu direito de sancionar ou não tal genera-lização ou universalidade. No seio da retórica crítica, tãoreiteradamente defendida pelo próprio Perelman, faria algumsentido intrometer um orador “iluminado” com a transcen-dente função de estabelecer à partida o que é válido paratodo o ser racional? Uma coisa é a convicção com que oorador argumenta, outra, que pode ser bem diferente, é aconvicção com que o auditório cimenta as suas crenças, osseus valores ou a que nele se forma sobre a pertinência eadequação dos argumentos que lhe são apresentados. Oraesta última terá sido praticamente ignorada por Perelman,facto tanto estranho quanto se tenha presente a sua própriarecomendação de que o orador deve adaptar-se ao auditório(como veremos no capítulo seguinte). É que, implicando taladaptação uma prévia selecção das premissas já aceites, paraa partir delas se justificar uma proposta ou conclusão, bemcomo a constante atenção do orador às sucessivas reacçõesdaqueles a quem se dirige, como permanecer alheio àconvicção com que o auditório perfilha tais crenças e valores

_______________________________45 - Mellor, D., Falar verdade, in Mellor, D., (Org), Formas de comu-

nicação, Lisboa: Editora Teorema, 1995, p. 97

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ou até mesmo ao convencimento que nele se produz duranteo desenvolvimento da argumentação? Cremos, por isso, que,ao nível do respectivo processo de comunicação, Perelmandeu o maior relevo à convicção do emissor, mas descurousistematicamente o papel que a convicção do receptor exercena orientação e sentido do próprio acto de adesão.

4. - Estratégias de persuasão e técnicas argumentativas

4.1. - A escolha das premissas

O principal objectivo de um orador é conseguir a adesãoàs suas propostas. Logo, como observa Perelman, deve antesde mais saber adaptar-se ao seu auditório, sob pena de verseriamente afectada a eficácia do seu discurso. Essa adap-tação consiste, essencialmente, no reconhecimento de quesó pode escolher como ponto de partida do seu raciocínio,teses já admitidas por aqueles a quem se dirige, mesmo quelhe pareçam inverosímeis. Já vimos que a finalidade daargumentação - ao contrário da demonstração - não é provara verdade da conclusão a partir da verdade das premissas,mas sim, como lembra Perelman, “transferir para as con-clusões a adesão concedida às premissas”46. Não se preo-cupar com a adesão do auditório às premissas do seu discurso,levaria o orador a cometer a mais grave das faltas - a petiçãode princípio - ou seja, apresentar uma tese como já aceitepelo auditório, sem cuidar primeiramente de confirmar seela beneficia previamente de uma suficiente adesão. Aargumentação, como o seu próprio nome sugere, correspondea um encadear de argumentos intimamente solidários entresi, com o fim de mostrar a plausibilidade das conclusões.Se uma das premissas do raciocínio argumentativo forcontestada, quebra-se essa cadeia de solidariedade, indepen-dentemente do valor intrínseco da tese apresentada pelo

_______________________________46 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 41

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orador. É que uma coisa é a verdade da tese, outra é a adesãoque ela suscita, pois “mesmo que a tese fosse verdadeira,supô-la admitida, quando é controversa, constitui uma petiçãode princípio característica”47. E porque a adesão pressupõeconsenso, o orador deve recorrer aos possíveis objectos deacordo para neles fixar o ponto de partida da sua argumen-tação. Neste ponto, Perelman faz uma distinção entre osobjectos de acordo que incidem sobre o real, sejam factos,verdades, ou presunções, e aqueles que recaem sobre opreferível, tais como valores, hierarquias e lugares, após oque procura explicitar cada um deles no quadro da novaretórica. Analisando o estatuto retórico dos factos e dasverdades que a linguagem e o senso comum associam aelementos objectivos e oponíveis a todos, salienta que, doponto de vista argumentativo não podem, contudo, serdesligados da atitude do auditório a seu respeito. É que seconcebemos os factos ou as verdades como algo de objectivo,esse estatuto impor-se-á a todos, ou seja, será, em princípio,admitido pelo auditório universal, logo, o orador nãoprecisará, neste domínio, de reforçar a adesão do auditório.Mas quando um facto ou uma verdade são contestados peloauditório, o orador já não pode valer-se deles, excepto semostrar que o oponente se engana ou que não há razão paraatender à sua contestação. Nesse caso, estaríamos numasituação característica de desqualificação do oponente, re-tirando-lhe - no contexto argumentativo - a qualidade deinterlocutor competente e razoável.

Tanto basta para que se tenha de reconhecer que no campoda argumentação, um facto ou uma verdade nunca têm oseu estatuto definitivamente assegurado, excepto quando seadmita a existência de uma autoridade infalível ou divina.Sem a garantia absoluta que decorreria desta última, todosos factos e verdades poderão então ser postos em causa,independentemente de serem admitidos como tais pela opinião

_______________________________47 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 42

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comum ou pela opinião de especialistas. Sublinhe-se, con-tudo, que, “se o acordo a seu respeito for suficientementegeral, ninguém os pode ignorar sem se tornar ridículo, amenos que forneça razões capazes de justificar o cepticismoa seu propósito”48. Nesse caso, ao oponente não resta outraposição que não seja a de tentar desqualificar os factos ouverdades apresentadas pelo orador mas que não merecema sua aprovação. E a forma mais eficaz de desqualificar umfacto ou uma verdade é, segundo Perelman, “mostrar a suaincompatibilidade com outros factos e verdades que seafiguram mais seguras, e mesmo, de preferência, com umfeixe de factos ou de verdades que não se está preparadopara abandonar”49. Mas para além dos factos e das verdades,o orador recorre também às chamadas presunções, que nãoapresentando a mesma garantia que aqueles, ainda assim,permitem fundar uma convicção razoável. Em certas situ-ações retóricas serão mesmo um recurso argumentativoindispensável. Estão ligadas à experiência comum, ao sensocomum, são elas que nos permitem orientar na vida. Fun-dam-se numa certa constatação estatística e assentam naconvicção de que o que acontece habitualmente em cadasituação de vida, é o normal. É neste contexto que pode-remos, por exemplo, considerar as presunções de credibilidadenatural, de ligação acto-pessoa e ad hominem, como pra-ticamente omnipresentes em todas as situações retóricas. Comduas reservas, porém: primeiramente, a presunção tem sempreum carácter provisório, podendo vir a ser contraditada pelosfactos; depois, como a noção de normal que está subjacentea toda a presunção é sempre mais ou menos ambígua, logoque sejam dados a conhecer os factos e a causa, a presunçãopode vir a ser considerada não aplicável na ocorrência.Estaremos então perante uma tentativa de inverter a pre-sunção que favorece a tese do adversário, tirando partido

_______________________________48 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 4449 - Ibidem

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do efeito mais imediato de uma presunção, que é o de imporque sejam apresentadas provas àquele que se opõe à suaaplicação.

Vimos já que aos juízos que se supõe exprimirem o realconhecido ou presumido, podem opôr-se os que exprimemuma preferência - valores e hierarquias – e os que indicamo que é preferível - lugares do preferível. Perelmam vai buscara Louis Lavelle um conceito operatório de valor: “pode dizer--se que o termo valor se aplica sempre que tenhamos deproceder a uma ruptura da indiferença ou da igualdade entreas coisas, sempre que uma delas deva ser posta antes ouacima de outra, sempre que ela é julgada superior e lhe mereçaser preferida”50. Este conceito de valor parece adequar-sesobretudo às hierarquias, onde os elementos hierarquizadosestão expressamente indicados. Mas lembra Perelman que,com muita frequência, os valores positivos ou negativos,traduzem também uma atitude favorável ou desfavorável sobredeterminado acto ou objecto, sem qualquer intenção com-parativa, como quando se qualifica (valorizando) algo dejusto, belo, verdadeiro, real, ou (desvalorizando) como mau,injusto, feio ou falso. Sendo controversos, os juízos de valorforam considerados pelos positivistas como não possuindoqualquer objectividade, ao contrário dos juízos de realidade,onde a experiência e a verificação permitiria o acordo detodos. Mas Perelman entende que há valores universais,admitidos por todos, tais como o verdadeiro, o bom, o beloe o justo, embora reconheça que essa sua universalidade sefica a dever ao facto de permanecerem indeterminados. Umavez que se tente precisá-los, aplicando-os a uma situaçãoconcreta, aí, sim, surgirão imediatamente os desacordos. Osvalores universais serão pois um importante instrumento depersuasão, no dizer de E. Dupréel, uma “espécie de uten-sílios espirituais totalmente separáveis da matéria que per-mitem moldar, anteriores ao momento do seu uso, e ficando

_______________________________50 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 45

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intactos depois de terem servido, disponíveis, como antes,para outras ocasiões”51. Além disso, permitirão representaros valores particulares como um aspecto mais determinadodos valores universais.

Mas o estudo da argumentação centrada nos valores,leva-nos a considerar igualmente a distinção entre valorconcreto e valor abstracto, conforme o mesmo se refiraou não a um ser particular, a um objecto, a um grupo ouinstituição, com acentuação no seu carácter único. Por issoPerelman dá exemplos de comportamentos ou virtudes quesó se podem compreender em relação a tais valores con-cretos - a fidelidade, a lealdade, a solidariedade, a honra- e enuncia, como valores abstractos (muito caros aoracionalismo) as regras válidas para todos e em todas ascircunstâncias: a justiça, a veracidade, o amor à humani-dade, o imperativo categórico de Kant, em que a moralé definida pelo universalizável, e o princípio do utilitarismode Bentham que define o bem como aquilo que é maisútil à maioria. Tanto os valores concretos como os valoresabstractos são indispensáveis na argumentação, mas sur-gem sempre numa relação de subordinação de uns aosoutros, subordinação que parece oscilar, por vezes, radi-calmente, ao longo da história. Para Aristóteles, por exem-plo, o amor à verdade (valor abstracto) prevalece sobrea amizade a Platão (valor concreto). Já Erasmo defendeque é preferível uma paz injusta (valor concreto) à justiça(valor abstracto). De um modo geral, sustenta Perelman,“os raciocínios fundados sobre valores concretos parecemcaracterísticos das sociedades conservadoras. Ao invés, osvalores abstractos servem mais facilmente a crítica e estarãoligados à justificação da mudança, ao espírito revolucio-nário”52.

_______________________________51 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 4652 - Ibidem, p. 48

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A argumentação apoia-se ainda sobre hierarquias, tantoabstractas como concretas, sejam elas homogéneas ouheterogéneas. Exemplo de uma hierarquia concreta são osraciocínios que partem da ideia de que os homens sãosuperiores aos animais e os deuses aos homens. Mas hátambém as hierarquias abstractas, como a superioridade dojusto sobre o útil ou da causa sobre o efeito. Estas hi-erarquias, por outro lado, tanto podem ser heterogéneasquando relacionam entre si valores diferentes (a verdadeacima da amizade de Platão, no caso de Aristóteles), comohomogéneas, quando se baseiam numa diferença de quan-tidade (uma dor mais fraca é preferível a uma dor maisforte). De salientar, porém, que, contrariamente ao que sepassa com o que se opõe ao real ou ao verdadeiro, quesó pode ser aparência, ilusão ou erro, no conflito de valoresnão se opera nunca a desqualificação do valor sacrificado,pois, como diz Perelman “um valor menor permanece, apesarde tudo, um valor”53. E esta é uma ideia que não podedeixar de estar presente na discutibilidade argumentativa,como referência básica do respeito pela liberdade do outro.Quanto aos lugares do preferível, estes desempenham naargumentação um papel análogo ao das presunções.Aristóteles dividiu-os em lugares comuns e lugares espe-cíficos. Os primeiros correspondendo a afirmações muitogerais sobre o que se presume valer mais seja em quedomínio for e os segundos, que se identificam com o queé preferível em domínios particulares. No elenco de lugarespossíveis descritos por Perelman, o destaque vai para osmais usuais: o lugar de quantidade, pelo qual se enunciaaquilo que é mais útil para a maioria ou nas situações maisdiversas, e o lugar de qualidade, quando a preferência dealgo é fundada no facto de ser único ou raro.

_______________________________53 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 48

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4.2. - As figuras de retórica na criação do efeito de pre-sença

O facto do orador ter que colher as premissas da suaargumentação entre as teses já admitidas pelo auditório, paraalém de implicar uma escolha de factos e valores, faz surgira necessidade de decidir previamente sobre a melhor formade os descrever, que tipo de linguagem deverá utilizar, quala insistência com que o fará, tudo isso, em função daimportância que lhes atribui. Naturalmente que a essa escolhade factos e valores seguir-se-á o recurso a adequadas téc-nicas de apresentação, no intuito de os trazer para o primeiroplano da consciência, conferindo-lhes uma visibilidade oupresença que torne quase impossível ignorá-los. É este efeitode presença que Perelman resolve ilustrar com uma curiosanarrativa chinesa já citada por Mencius:

Um rei vê passar um boi que deve ser sacrificado. Tempiedade dele e ordena que seja substituído por um carneiro.Confessa que tal lhe aconteceu por ter visto o boi e nãoter visto o carneiro54.Reconhecendo que a presença actua directamente sobre

a nossa sensibilidade, Perelman põe, porém, algumas reser-vas à apresentação efectiva de um objecto com o intuitode comover ou seduzir o auditório, pois daí poderão decorrertambém alguns efeitos perversos, tais como distrair osparticipantes ou orientá-los numa direcção não desejada peloorador. Diz, aliás, que as técnicas de apresentação, criadorasda presença, são sobretudo essenciais quando se trata deevocar realidades afastadas no tempo e no espaço. O queestá aqui em causa, portanto, não é tanto uma presençaefectiva mas antes uma presença para a nossa consciência.Estamos, pois, em sede dos efeitos de linguagem e da suacapacidade de evocação, que pode oscilar entre uma retórica

_______________________________54 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 55

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concebida como arte de persuadir e uma retórica como técnicade expressão literária. E se Perelman critica o reducionismodesta última enquanto definição do que seja a retórica, nãodeixa, simultaneamente, de reconhecer a operatividade dorecurso às figuras, nomeadamente quando o orador visa criaro aludido efeito de presença. Importa, por isso, reconhecerque “(...) o esforço do orador é meritório quando ele consegue,graças ao seu talento de apresentação, que os acontecimen-tos, que sem a sua intervenção teriam sido negligenciados,venham ocupar o centro da nossa atenção”55. Dividir o todonas suas partes (amplificação) ou terminar com uma síntesedestas últimas (conglomeração), repetir a mesma ideia poroutras palavras (sinonímia), descrever as coisas de modo aque pareçam passar-se sob os nossos olhos (hipotipose),insistir em certos tópicos apesar de já entendidos peloauditório (repetição), ou perguntar sobre algo quando já seconhece a resposta (interrogação), são apenas alguns dosmodos pelos quais se pode criar um efeito de presençapotenciador da própria argumentatividade. Mas, como des-taca Perelman, é somente quando a figura de estilo desem-penha também uma função argumentativa que ela se tornauma figura de retórica. De contrário, permanecerá no dis-curso como mero ornamento de linguagem.

4.3. - Técnicas e estruturas argumentativas

Tomando por base o mesmo critério que permite adistinção entre figuras de retórica e figuras de ornamentoou de estilo da linguagem, poderemos então afirmar que,em geral, os meios de que se serve o orador só serãoconsiderados como retóricos na medida em que se mostreminterconexionados e idóneos à obtenção da adesão. Estãonesse caso, em primeiro lugar, os próprios argumentos, quer

_______________________________55 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 56

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quando servem de ligação para transferir para a conclusãoa adesão concedida às premissas, quer quando revestem aforma de dissociação, para separar os elementos que alinguagem ou uma tradição reconhecida tinham anteriormen-te ligado entre si.

É conhecida a classificação dos argumentos elaborada porPerelman, em função do específico tipo de ligação (oudissociação) para que remetem: argumentos quase lógicos,

argumentos fundados na estrutura do real e aqueles quefundam essa estrutura. Da minuciosa caracterização que oautor nos faz de cada um destes três grupos de esquemasargumentativos56 interessa-nos, porém, reter apenas aquelesaspectos que nos parecem mais ilustrativos da força per-suasiva que determinadas figuras ou procedimentosdiscursivos podem imprimir, num ou noutro sentido, aoprocesso global da argumentação. Naturalmente que sempresem perder de vista, como aliás o próprio Perelman adverte,que a compreensão última do sentido e alcance de umargumento isolado só é possível na sua estreita relação coma totalidade do respectivo discurso, com o contexto e asituação em que se insere.

No caso dos argumentos quase lógicos, a primeira coisaque salta à vista é a sua falta de rigor e precisão relati-vamente ao que se observa na demonstração. Mas as razõesque o orador invoca e desenvolve para tentar ganhar a adesãodo seu auditório são, efectivamente, de outra natureza. Nãose trata já de uma demonstração correcta ou incorrecta, falsaou verdadeira, mas de um encadeamento de argumentos maisou menos fortes, mais ou menos plausíveis, que visamestabelecer um acordo, uma adesão. Argumentos que são“quase lógicos” precisamente pela aparência demonstrativaque lhes advém do facto de apelarem para estruturas lógicas

_______________________________56 - Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca , L., Tratado da argumentação,

S. Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 219

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tais como contradição, identidade e transitividade ou pararelações matemáticas como a relação da parte com o todo,do menor com o maior e a relação de frequência. Só que,enquanto num sistema formal o aparecimento de umacontradição o fere de morte, tornando-o incoerente e inútil,o mesmo já não sucede na linguagem corrente, onde acontradição joga um papel completamente diferente. Perelmancita a famosa expressão de Heráclito “entramos e nãoentramos duas vezes no mesmo rio” para mostrar como vemosnela apenas uma contradição aparente que logo desapare-cerá, ao interpretarmos de duas formas diferentes a expres-são “o mesmo rio”, ou seja, como podendo significar asduas margens (sempre as mesmas) e as águas que nele correm(sempre diferentes). A contradição só leva ao absurdo quandoa univocidade dos signos não deixa em aberto qualquerhipótese de lhe escapar, o que não sucede com as expressõesformuladas numa língua natural, sempre que se possa pre-sumir que aquele que nos fala não diz coisas absurdas. Épor isso que Perelman sustenta que na argumentação nuncanos encontramos perante uma contradição propriamente dita,mas sim, perante uma incompatibilidade, quando uma tesesustentada em determinado caso, entra em conflito com umaoutra, já afirmada anteriormente ou geralmente admitida eà qual é suposto o auditório aderir. É que, ao contrário dacontradição que nos levaria ao absurdo, a incompatibilidadeapenas nos obriga a escolher uma das teses em conflito ea abandonar a outra ou restringir-lhe o alcance.

O carácter quase lógico de que este tipo de argumentosse reveste, traduz-se, portanto, num recurso à configuraçãorepresentacional de operações tradicionalmente tidas comoestritamente lógicas, mas sem que delas se possa necessa-riamente extrair o mesmo tipo de consequências que ocor-rem no seio da lógica formal. É o caso, por exemplo, daidentidade e definição. Como se sabe, uma identidadepuramente formal ou se funda na evidência ou é estabelecidaconvencionalmente. Logo, não é susceptível de controvérsia.

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Mas esse não é o caso das identificações que têm lugar nalinguagem corrente. No caso da definição, ao pretender-seidentificar o “definiens” com o “definiendum”, está-se a fazerum uso argumentativo da identidade, já que as definiçõestratam o termo definido e a expressão que o define, comointermutáveis. Diz Perelman que os lógicos tendem a con-siderar as definições como arbitrárias mas que isso só é válidonum sistema formal no qual se supõe não terem os signosoutro sentido do que aquele que lhes é convencionalmenteatribuído, pois numa língua natural já tal não acontece, amenos que se trate de termos técnicos nela introduzidos como sentido próprio que lhes impõe. “Se o termo já existe,ele é solidário, na linguagem, de classificações prévias, dejuízos de valor que à partida lhes conferem uma coloraçãoafectiva, positiva ou negativa, já não podendo a definiçãodo termo ser considerada arbitrária”57. Ora os valores, sendocontroversos, devem ser justificados através de uma argu-mentação que leve ao reconhecimento do argumento quaselógico com base no qual se justifica aderir à definição. Porisso, ou uma noção pode ser definida de várias maneirase terá de se efectuar uma escolha, o que pressupõe a suadiscussão, ou essa noção orienta o raciocínio, como no casode uma definição legal e deverá ser justificada, excepto sese dispuser da autoridade do legislador.

Também a regra da justiça e a reciprocidade que lheé inerente, fundadas no tão proclamado princípio de igual-dade de tratamento perante a lei são, como nos lembraPerelman, a expressão de uma regra de justiça de naturezaformal, segundo a qual “os seres de uma mesma categoriaessencial devem ser tratados da mesma forma”58. O recursoao precedente e o costume não são mais do que aplicaçõesdessa regra e correspondem à crença de que é razoável reagir

_______________________________57 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p.8058 - Ibidem, p. 84

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da mesma forma que anteriormente, em situações análogas,se não tivermos razões suficientemente fortes para o lamen-tar. Uma forma de agir será então injusta se se traduzir porum comportamento diferente face a duas situações seme-lhantes. Perelman dá-nos como exemplo de utilizaçãoargumentativa desta regra de justiça, uma breve passagemde um sermão de Demóstenes: “Pretenderão eles, por acaso,que uma convenção, se contrária à nossa cidade, seja válida,recusando-se, no entanto, a reconhecê-la se lhe servir degarantia? É isso o que vos parece justo?”59. Estas palavrasde Demóstenes confirmam como importante instrumento depersuasão, o argumento de reciprocidade, que consiste naassimilação de dois seres ou duas situações, com o objectivode mostrar que os termos correlativos numa relação devemser tratados da mesma forma. Sabendo-se que em lógicaformal, os termos a e b, antecedente e consequente de umarelação R, podem ser invertidos sem inconveniente, desdeque tal relação seja simétrica, tudo o que é necessário fazerno campo argumentativo é mostrar que entre esses dois seresou duas situações, há uma simetria essencial. Provada esta,torna-se possível aplicar o princípio da igualdade de tra-tamento. A regra de ouro, “não faças aos outros o que nãoqueres que te façam a ti” é talvez a mais famosa aplicaçãoda regra de justiça a situações que se pretendem simétricas.

Argumentos quase lógicos são também os que aparen-temente se estruturam com base em propriedades lógico--formais como a transitividade e a inclusão, onde as relaçõespuramente formais “igual a” “incluído em”, “maior que” ou“o todo é maior que cada uma das suas partes” conferemuma acentuada persuasividade ao que é afirmado, mesmoquando tal ligação lógica seja susceptível de ser desmentidapela experiência ou dependa de prévios juízos de valor. Omesmo se diga da propriedade de divisão, quando se tende

_______________________________59 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p.85

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a mostrar que só resta uma alternativa e que esta consisteem escolher a parte que constitui o mal menor, ou seja, quandoa questão é apresentada sob a forma de um dilemaconstringente.

Também a comparação pode constituir um argumentoquase lógico, quando na argumentação se utiliza um sistemade pesos e medidas sem que dê lugar a uma pesagem oumedição efectiva. O efeito persuasivo da comparação só serealiza, contudo, por haver a convicção de que se pode validá--la por uma operação de controlo. Dizer “as suas faces sãovermelhas como maçãs” ou “é mais rico do que Cresus”são dois dos exemplos avançados por Perelman, em queparece exprimir-se um juízo controlável. Esse efeito persu-asivo é de natureza variável, em função do termo decomparação que for escolhido. Assim, afirmar que um escritoré inferior a um reputado mestre ou considerá-lo superiora uma nulidade patente, é, segundo Perelman, “exprimir, emqualquer dos casos, um juízo defensável, mas cujo alcanceé bem diferente”60. Numa pesagem ou medição real, a escalade medida é neutra e invariável. Mas na argumentação quaselógica, é muito raro que o termo de comparação sejadeterminado de forma rígida. Aqui o objectivo é maisimpressionar do que informar e por isso mesmo, a indicaçãode uma grandeza relativa pode ser mais eficaz do que aindicação de uma grandeza absoluta, desde que o termo decomparação seja bem escolhido. Como diz Perelman, “pararealçar a imensidão de um país, será mais útil dizer, emParis, que ele é nove vezes maior que a França do que indicarque cobre metade do Brasil”61.

Quanto aos argumentos fundados no real, eles fazem apeloa dois tipos de ligação de inegável importância persuasiva:as ligações de sucessão, como a relação causa e efeito, e

_______________________________60 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 9361 - Ibidem, p. 94

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as ligações de coexistência, centradas na relação entre a pessoae os seus actos. Se nas ligações de sucessão, o que se relacionasão fenómenos de nível idêntico, já as ligações de coexis-tência, apoiam-se em termos de nível desigual, como porexemplo, entre a essência e as suas manifestações. No casodas ligações de sucessão, a ideia de que existe um vínculocausal entre fenómenos, permite à argumentação dirigir-seem três direcções: para a procura das causas (e dos motivos,no caso dos actos intencionais), para a determinação dosefeitos, e para a apreciação das consequências. E com basenas correlações, nas leis naturais e no princípio de que asmesmas causas produzem os mesmos efeitos, é possívelformular hipóteses numa dada situação e submetê-las aocontrolo de apropriadas investigações. Vão neste sentido, osdois exemplos adiantados por Perelman: aquele que numjogo de sorte ganha excessivas vezes poderá tornar-se suspeitode trapaça, pois uma tal suspeita torna a sua façanha maiscompreensível, e no tribunal, se várias testemunhas concor-dam na descrição de um certo acontecimento, sem que antesse tenham previamente entendido, o juiz tenderá a concluirque todas assistiram a esse mesmo acontecimento, cujarealidade atestam.

Ao contrário das ligações de sucessão que unem elemen-tos da mesma natureza, com base num vínculo de causa-lidade, as ligações de coexistência estabelecem um vínculoentre realidades de nível desigual, em que uma é apresentadacomo expressão ou manifestação da outra. Estão neste casoas relações entre a pessoa e os seus actos, os seus juízosou as suas obras. Com efeito, tudo o que se diz sobre umapessoa, diz-se em função das suas manifestações e tem porbase a unidade e a estabilidade observáveis no conjunto dosseus actos. Presumimos essa estabilidade quando interpre-tamos o acto em função da pessoa. Se alguém age nodesrespeito dessa estabilidade, acusamo-la de incoerência oude mudança injustificada. É o carácter de uma pessoa queconfere sentido e delimita o alcance do seu comportamento,

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mas são também as suas manifestações que nos permitemformar uma ideia sobre qual seja o seu carácter. Donde sepode concluir que a ideia que se faz da pessoa e a maneirade compreender os seus actos estão em constante interacção.É certo que, como refere Perelman, não se pode encarara pessoa apenas no quadro da sua estabilidade, pois a sualiberdade e espontaneidade estão sempre associadas à pos-sibilidade de mudança e adaptação, quer por iniciativa própria,quer por imposição do real. Reconhecer-se-á por isso anatureza ambígua das ligações de coexistência que se es-tabelecem entre as pessoas e os actos que praticam. Masdado que só se conhecem as pessoas através das suasmanifestações, são os actos que influenciam, sem dúvida,a nossa concepção sobre esta ou aquela pessoa. Umaconcepção que, no entanto, mantém sempre uma certarelatividade, pois como salienta Perelman, “todo o acto éconsiderado menos como índice de uma natureza invariáveldo que como uma contribuição para a construção da pessoaque apenas termina com a sua morte”62. Feita essa reserva,é imperioso reconhecer que os actos passados contribuempara a boa ou má reputação. O prestígio de que se gozapode ser visto como um capital que se incorpora na pessoa,passando a constituir um activo a que é legítimo recorrerem caso de necessidade. E é nesse contexto que se cria umpreconceito favorável ou desfavorável que irá influenciar ainterpretação dos actos, conferindo-lhes uma dada intençãoem conformidade com a ideia que se faz da pessoa em causa.Dito de outro modo, o prestígio de uma pessoa exerce umadeterminada influência na maneira como são interpretadose acolhidos os seus actos. Daí o papel muito importante queo argumento de autoridade pode assumir na argumentação.É que, como diz Perelman, se nenhuma autoridade podeprevalecer sobre uma verdade demonstrável, o mesmo já não

_______________________________62 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 107

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se passa quando se trata de opiniões ou juízos de valor. Aliás,na dinâmica argumentativa, muitas vezes nem é o argumentode autoridade que se põe em questão mas sim a autoridadeque concretamente foi invocada. Neste sentido, o oradortenderá a enfatizar a autoridade que está de acordo com asua tese e a desvalorizar a autoridade em que se apoiamos que sustentam uma tese contrária. Entendemos, porém,que a importância da ligação acto-pessoa não se limita àesfera de credibilização ou descredibilização das autoridadesinvocadas pelo orador, antes se assume também comoindicador da sinceridade ou insinceridade com que ele própriose dirige ao auditório. Porque um orador pode ser dotadode uma excepcional competência argumentativa, pode mesmoaliar à técnica de raciocínio e expressão um natural encantoou sedução pessoal, mas dificilmente conquistará a adesãodo auditório se este o associar a um passado de actos tãoreprováveis que infundam o legítimo receio de manipulação.

Caracterizada por Perelman como “uma relação departicipação, assente numa visão mítica ou especulativa deum todo do qual símbolo e simbolizado fazem igualmenteparte”63, a ligação simbólica é uma outra estruturaargumentativa fundada no real de forte potencial persuasivo.Basta atentar no sentido injurioso de que geralmente se revesteo acto de queimar em público a bandeira de determinadopaís. Como o são igualmente os argumentos de duplahierarquia, tanto de natureza quantitativa como qualitativa.As primeiras estarão presentes quando, por exemplo, do “factode um homem ser maior do que outro se conclui que assuas pernas são também mais compridas”64 e as segundas,que Perelman considera serem as mais interessantes, têmlugar quando da superioridade de um fim se conclui pelasuperioridade do meio que o permite realizar. É o que se

_______________________________63 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 11564 - Ibidem, p. 116

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passa quando a superioridade do adulto sobre a criança levaa que esta seja confrontada muitas vezes com a recomen-dação: “porta-te como um adulto!”. Não negligenciável dentrodeste tipo de argumentos é ainda a distinção entre diferençasde natureza ou de ordem e as simples diferenças de grau.Põe-se aqui a questão de saber quando é que uma diferençaquantitativa se torna uma diferença qualitativa. Perelman dá--nos um exemplo sugestivo: “quantos cabelos é precisoarrancar a um cabeludo para que ele se torne careca?”65.A resposta a esta questão exige sempre uma tomada de posiçãoque permita transformar uma inicial diferença de grau numaposterior diferença de natureza (a passagem de cabeludo acareca). Pode ser muito útil, por exemplo, quando se pre-tenda defender que dois fenómenos não são tão distintoscomo parece à primeira vista. É, aliás, a um argumento desimples diferença de grau que recorreremos na parte finaldeste nosso estudo para mostrar a proximidade que nos pareceexistir entre a retórica e a hipnose, ao nível dos respectivosprocessos de comunicação.

Uma terceira espécie de ligações argumentativas, sãoaquelas que, no dizer de Perelman, fundamentam a estruturado real. Englobam a fundamentação através de um casoparticular (exemplo, ilustração, modelo e anti-modelo) mastambém o raciocínio por analogia, onde se situa a própriametáfora enquanto analogia condensada. O exemplo, que,como se sabe, permite a passagem do caso particular parauma generalização, mostra-se um recurso mais ambiciosodo que a ilustração com a qual se espera, sobretudo,impressionar. Já com o modelo, o que se pretende é a puraimitação do caso particular. E na medida em que no ar-gumento pelo modelo o que se pretende seja imitado já nãoé uma acção mas uma pessoa, é possível, segundo Perelman,descobrir-lhe uma grande afinidade com o argumento de

_______________________________65 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 117

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autoridade, já que, num e noutro, o prestígio da pessoa quese pretende imitar surge como elemento persuasivo ecaucionador da própria acção visada. Quanto à analogia,Perelman começa por apresentá-la como “uma similitude deestruturas cuja fórmula mais genérica seria: A está para Bassim como C está para D”66, após o que - depois de designarpor tema o conjunto dos termos A e B (sobre os quais recaia conclusão) e por foro o conjunto dos termos C e D (queestribam o raciocínio) - faz incidir a sua força probatóriano pressuposto (nem sempre confirmado) de que, “normal-mente, o foro é mais bem conhecido que o tema cuja estruturaele deve esclarecer ou estabelecer o valor, seja valor deconjunto seja valor respectivo dos termos”67. Mas como dizPaul Grenet, citado por Perelman, “o que faz a originalidadeda analogia e o que a distingue de uma identidade parcial,ou seja, da noção um tanto corriqueira de semelhança, éque em vez de ser uma relação de semelhança, ela é umasemelhança de relação”68. Semelhança, portanto, da relaçãoexistente entre os termos A e B (do tema) com a relaçãoem que se encontram os termos C e D (do foro). E éprecisamente esta semelhança das duas relações que permitea transferência de valor do foro para o tema e do valor relativodos dois termos do foro para o valor relativo dos dois termosdo tema. O raciocínio por analogia obedece, pois, a umaforma mais ou menos estável que permite a ligação da relaçãoanterior (já admitida) com a relação posterior (que se quermostrar), forma essa que assenta no recurso aos termos deligação “assim como...” e “também...” que antecederão adescrição de uma e outra. Condição essencial é que se procedaa uma criteriosa escolha do foro, sob pena de se obter umefeito contrário ao pretendido e, em certos casos, cair até

_______________________________66 - Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca , L., Tratado da argumentação,

S. Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 42467 - Ibidem68 - In ibidem

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no ridículo. Dizer, por exemplo, que um respeitável rei merecea coroa, como um ladrão a corda, adverte Perelman, podeexprimir o mais nobre espírito de justiça, mas é certamenteuma forma extremamente infeliz, se não mesmo, risível, deo afirmar, dado o despropósito de uma tal aproximação.Idêntica precaução deve guiar-nos na escolha da metáforamais eficaz do ponto de vista persuasivo, tanto mais que,quando integrada no processo de persuasão, ela pode servista como uma analogia condensada por fusão de umelemento do foro com um elemento do tema. Como descrevePerelman, “a partir da analogia A está para B assim comoC está para D, a metáfora assumiria uma das formas “Ade D”, “C de B”, “A é C”. A partir da analogia “a velhiceestá para a vida assim como a noite para o dia”, derivar--se-ão as metáforas “a velhice do dia”, “o anoitecer da vida”ou “a velhice é uma noite”69. Dessas três formas possíveis,as metáforas do tipo “A é C” serão certamente as maisfalaciosas, por se tender a ver nelas uma identificação, quandoapenas se pode compreendê-las adequadamente através dareconstrução da analogia. Acresce o facto desta espécie demetáforas surgirem por vezes ainda mais condensadas quandoresultam da confrontação de uma qualificação com a rea-lidade à qual se aplicam. É o que sucede se para descreveras façanhas de um guerreiro utilizamos a expressão “esteleão arremeteu” querendo com isso dizer que ele é, em relaçãoaos outros homens como o leão em relação aos outros animais.Com efeito, dizer que um homem é um leão ou um cordeiro,é descrever metaforicamente o seu carácter ou comporta-mento, com base na ideia que se tem do comportamentodesta ou daquela espécie animal. É a chamada fusãometafórica do foro (animal) com o tema (homem). Dadaa importância da metáfora no discurso persuasivo, a elavoltaremos, nomeadamente, para destacar a sua “mais valia”

_______________________________69 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 133

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em termos de inteligibilidade e persuasão, face à correspon-dente expressão literal.

5. - Amplitude da argumentação e força dos argumentos

Para o sucesso de um orador muito poucas coisas serãotão decisivas como o saber em que momento deve pôr fimà acumulação dos argumentos. O problema da amplitude daargumentação está pois intimamente relacionado com onúmero e a extensão dos argumentos necessários para queo auditório dê assentimento às teses que lhe são propostas.Ainda que muito esquematicamente, as tarefas ou etapas daargumentação que todo o orador deve percorrer, podem serescalonadas do seguinte modo:

1º. Assegurar-se que as premissas são admitidas peloauditório.

2º. Reforçar, se for caso disso, a sua presença no espíritodos auditores.

3º. Precisar o seu sentido e alcance.4º. Extrair os argumentos em favor da tese que defende.Ora, sabendo-se que no discurso retórico nenhum argu-

mento é constringente, antes contribui para reforçar aapresentação no seu conjunto, poder-se-ia supor que a eficáciade tal discurso depende do número de argumentos utilizados.Nesse sentido, quanto maior fosse a acumulação de argu-mentos, mais consolidada ficaria a adesão do auditório. MasPerelman vem lembrar que há boas razões para rejeitar essavisão tão linear e optimista, já que:

1º- Um argumento que não esteja adequado ao auditóriopode suscitar uma reacção negativa junto dos audi-tores. E, parecendo um argumento, irá afectar nãosó o conjunto do discurso como também a imagemdo próprio orador.

2º- Apresentar razões em favor de uma tese é sempre,por outro lado, admitir que ela não é evidente, quenão se impõe a todos.

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3º- Há limites psicológicos que impedem uma ampliaçãonão considerada dos argumentos. Se se trata de umdiscurso, a atenção e a paciência de quem escuta temlimites que é perigoso ultrapassar. Se se trata de umdiálogo, não se pode esquecer que o tempo tomadopor um orador é tirado àquele de que os outrosdisporiam.

Daí que o orador tenha todo o interesse em obter osmelhores efeitos persuasivos com a maior economia dediscurso possível, o que implica uma cuidadosa escolha dosargumentos, em função da sua respectiva força persuasiva.Mas o que é um argumento forte? Para Perelman, a apre-ciação da força de um argumento, parecendo marcadamenteintuitiva, requer, contudo, a prévia separação entre duasqualidades: eficácia e validade. Uma coisa seria o argumentoque persuade efectivamente, outra, o argumento que deveconvencer todo o espírito razoável. Dito de outro modo, aeficácia de um argumento estaria para o auditório a queconcretamente é apresentado, como a validade para umauditório competente, em última análise, para o auditóriouniversal. Pela nossa parte, contudo, retomando as reservasque já colocamos ao auditório universal, entendemos quenão se deve associar a validade à força dos argumentos.Aliás, os próprios termos aqui utilizados por Perelman, forçae validade, sugerem diferentes níveis de apreciação de umargumento, o primeiro, mais adequado à argumentação(retórica) e o segundo, próprio da demonstração (lógica).Porque se a metáfora da força parece uma expressão felizpara figurar a intensidade da persuasão, talvez já não façasentido falar de força da validade. A validade revela-se, éevidente, impõe-se por si mesma, sem precisar de qualquer“empurrão” argumentativo exterior. É certo que a retóricarecorre às verdades lógicas como bases de sustentação oude inferência para fazer acolher um argumento. Mas nãoé quando convoca os valores lógicos que ela verdadeira-mente se exerce, pois só se pode argumentar no terreno das

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opções. Logo, o orador tem que avaliar a força dos argu-mentos em função do auditório, das suas convicções, dassuas tradições, dos métodos de raciocínio que lhe são próprios.Contudo, uma coisa é descobrir a força de um argumento,outra é conseguir transmiti-la ao auditório. Neste campo,o sucesso do orador dependerá não somente da sua particularintuição comunicativa, mas também do recurso a certaspráticas ou procedimentos argumentativos susceptíveis deaumentar (ou preservar) a força dos argumentos. Em situ-ações pontuais pode até ser prudente restringir voluntari-amente o alcance da argumentação, ficando aquém dasconclusões que delas se poderiam retirar, para melhor re-forçar no auditório a predisposição à confiança. São porémconhecidas diversas técnicas específicas para favorecer aaceitação dos argumentos, tais como elogiar o adversário,realçando a sua habilidade ou talento como orador, o quetenderá a diminuir na mesma proporção a força dos seuspróprios argumentos, pois quanto mais se enaltece as suasqualidades oratórias, mais se insinua que por trás da aparenteeficácia do seu discurso se esconde uma insuficiente argu-mentação; preferir o argumento original por ter, regra geral,mais força que o argumento já conhecido; pegar no argumentodo adversário para o voltar contra ele, já que este, depoisde o ter utilizado e reconhecido a sua força, fica sem qualquerpossibilidade de o rejeitar, sem cair no descrédito geral; fazeruma convergência de argumentos, para obter o mesmoresultado através de métodos diferentes ou então, mostrarcomo vários testemunhos, independentes uns dos outros,coincidem no essencial e por último, perante a dúvida sobrequal o argumento que será mais eficaz, recorrer a váriasargumentações, complementares ou até incompatíveis, sejauma segunda argumentação que vem apoiar e reforçar aprimeira, seja a chamada dupla defesa, muito usada nostribunais, quando, por exemplo, o advogado de defesa começapor sustentar que o facto supostamente ilícito não ocorreu,mas logo em seguida, afirma que, ainda que tivesse ocorrido,

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tal facto não configuraria qualquer ilicitude. Mas em últimaanálise forçoso é concluir que tanto a determinação daamplitude da argumentação como a selecção das técnicasde apresentação que visem reforçar a persuasividade dosrespectivos argumentos, devem obedecer às particularescircunstâncias concretas de cada situação argumentativa.

6. - A ordem dos argumentos no discurso

Desde sempre foi reconhecida a necessidade de se or-denar as matérias a tratar, a fim de mais facilmente se obtera adesão do auditório. Uma primeira forma de ordenaçãoconsiste em proceder à divisão do discurso em partes, segundoa específica função que cada uma delas nele exerce. Com-preende-se assim que o discurso retórico tenha chegado aser dividido em cinco partes: exórdio, narração, prova,refutação e recapitulação. Aristóteles, porém, fazendo notarque uma divisão tão pormenorizada seria válida apenas paraum ou outro género oratório mas nunca para todos, con-sidera que há somente duas partes que são indispensáveis:o enunciado da tese e os meios de a provar. Perelman, queparece acolher esta divisão de Aristóteles, recorre uma vezmais ao confronto com a demonstração para justificar aimportância que se deve atribuir à ordenação dos argumen-tos. “Notemos, desde já, que numa demonstração puramenteformal a ordem não tem importância; trata-se, com efeito,graças a uma inferência correcta, de transferir para os teoremaso valor da verdade, atribuída por hipótese, aos axiomas. Aoinvés, quando se trata de argumentar, tendo em vista obtera adesão de um auditório, a ordem é importante. Com efeito,a ordem de apresentação dos argumentos modifica as con-dições da sua aceitação”70. Mas o facto de se olhar a divisãodo discurso em duas partes verdadeiramente essenciais, não

_______________________________70 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 159

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significa que a primeira das divisões aqui citada – exórdio,narração, prova, refutação, recapitulação – se revele total-mente inútil em termos de ordenação dos argumentos, mastão só, que não é susceptível de uma aplicação taxativa atodos os géneros oratórios. O exórdio, por exemplo, aindaque em princípio o seu objecto seja estranho à discussãopropriamente dita, tem uma finalidade funcional muitoprecisa: suscitar a benevolência e o interesse do auditórioe criar neste uma predisposição favorável ao respectivo orador.Simplesmente, o exórdio pode ser suprimido, por exemplo,se o orador já é bem conhecido do seu auditório, ou, comoé cada vez mais vulgar, quando a sua apresentação sejaconfiada a outra pessoa, que poderá ser até o própriopresidente da sessão. De qualquer modo, sempre que tenhalugar, o exórdio incidirá sobre o orador, o auditório, o temaou sobre o adversário. No que respeita ao orador e aoadversário, Aristóteles diz que, consoante os casos, o exórdiovisa fazer desaparecer um preconceito desfavorável ao oradorou criar um preconceito desfavorável ao adversário. Noprimeiro caso, é indispensável que o orador comece por aí,pois não se escuta de bom grado alguém que se considerahostil ou desprezível; no segundo caso, ou seja, quando setrata de enfraquecer o adversário, “o orador deve colocaros seus argumentos no fim do discurso, de modo a que osjuizes se lembrem claramente da peroração”71. O lugar deum argumento deverá pois ser determinado em função dasua finalidade e do meio mais eficaz de a alcançar. Se anarração dos factos é indispensável no processo judicial, jánão o é muitas vezes num discurso deliberativo, quando osditos factos são perfeitamente conhecidos do auditório. Comefeito, seria totalmente contra-indicado proceder a umaexaustiva e enfadonha descrição de situações que o auditóriojá domina, quando se reconhece que o interesse e a atenção

_______________________________71 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 160

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dos auditores é essencial para se obter a sua adesão às tesesdo orador. Também no discurso epidíctico, quer esteja emcausa um elogio ou uma censura, a narração só se tornaráindispensável se tais factos forem ainda desconhecidos dopúblico a que o discurso se dirige. Mas a opção ou nãopela narração dos factos pode depender também de outrasrazões. No caso do processo judicial, por exemplo, enquantoo acusador recorrerá a uma narração pormenorizada que dêaos factos uma presença tal que faça com que o juiz nãomais os perca de vista, o defensor, em princípio, procuraráopor-se à narração do adversário, detendo-se especialmentesobre o que o justifica ou desculpa. Não se pode por issoestabelecer à partida uma divisão do discurso demasiadoapertada ou muito rígida, já que nem todos os discursos têma mesma estrutura. Esta, dependerá sempre da concretasituação retórica a que o discurso se aplica, particularmentedo seu objecto, do auditório e do tempo de que se dispõe.

Qualquer que seja a divisão do discurso escolhida,subsistirá sempre a questão de se determinar, mesmo nointerior de cada uma das partes, qual a ordem pela qualse devem apresentar os diversos argumentos. Tomando porbase a força de cada argumento, Perelman analisa as trêsordens que têm sido preconizadas: a ordem da força cres-cente, a ordem da força decrescente e a ordem nestoriana,em que se começa e acaba com argumentos fortes, deixandoos restantes para o meio da argumentação. Qual delas seráa mais eficaz? Parece que as três apresentam vantagens einconvenientes. Na ordem crescente, o facto de se começarpelos argumentos mais fracos pode instalar uma certa le-targia no auditório e, principalmente, induzir neste umaimagem menos favorável do orador, o que fatalmente iráesmorecer o seu prestígio e a atenção que lhe é dispensada.Na ordem decrescente, ao terminar o discurso com osargumentos mais fracos, o orador deixa no auditório umaimpressão igualmente fraca, que, por ser a última, pode muito

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bem ser a única de que os auditores se vão lembrar. A ordemnestoriana, não apresenta nenhum desses dois inconvenien-tes, na medida em que começa e acaba com argumentosfortes, mas tem contra si o facto de pressupor a força dosargumentos como uma grandeza imutável, isto é, não levaem linha de conta que a força de um argumento varia sempreem função do auditório e que este, por sua vez, tambémmuda com o desenrolar do próprio discurso. É o que Perelmanpretende mostrar quando afirma: “(...) se a argumentaçãodo adversário impressionou o auditório, interessa refutá-lade início, em aplanar, por assim dizer, o terreno, antes dese apresentar os próprios argumentos. Ao invés, quando sefala em primeiro lugar, a refutação dos eventuais argumentosdo adversário nunca precederá a prova da tese que se defende.Haverá muitas vezes, aliás, interesse em não as evocar paranão dar aos argumentos do adversário um peso e uma presençaque a sua evocação antecipada acaba, quase sempre porreforçar”72. O que é importante é não perder de vista quea eficácia do discurso muda com o seu próprio desenrolare que, por isso mesmo, cada argumento deve surgir nomomento em que possa exercer mais efeito e mostrar-sedevidamente ajustado ao modo como os respectivos factosvão sendo interpretados. Se a finalidade do discurso épersuadir o auditório, então a ordem dos argumentos nãopode deixar de ser constantemente adaptada a tal finalidade.

_______________________________72 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 161

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III PARTE

RETÓRICA, PERSUASÃO E HIPNOSE

1. - Os Usos da Retórica

1.1. - A revalorização da subjectividade

A retórica suscita e dá lugar à afirmação da subjectividade.Desde logo, porque se mostra especialmente apta para lidarcom valores, para justificar preferências e, em última ins-tância, para fundar as nossas decisões. Depois, porque aargumentação, que lhe confere operacionalidade, desenvol-ve-se em obediência a uma lógica do preferível, do razoávelou plausível, para além de ficar sempre vinculada a um critériode eficácia eminentemente pluralista: a adesão do respectivoauditório. Porém, mais do que reconhecer a expressão dasubjectividade na dinâmica argumentativa, importa agoratentar compreendê-la através das condições em que surgee dos modos em que se manifesta.

Em primeiro lugar, deve notar-se que o espaço em queintervém esta subjectividade coincide com o campo deactuação da própria retórica, ou seja: entre o necessário eo arbitrário, entre a verdade evidente, objectiva e impessoale a intuição, crença ou vontade individual. Confirma-oPerelman, quando diz que somente uma teoria da argumen-tação permitirá “reconhecer, entre o evidente e o irracional,a existência de uma via intermediária, que é o caminho difícile mal traçado da razoável”1 . Ora entre o evidente e o irracionalestá a opinião, o saber comum. E o que a nova retóricafaz é recuperar a validade consensual da opinião, comoportadora de uma racionalidade prática que, não obstantese afirmar decisionalmente em múltiplas situações de vida_______________________________1 - Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 217

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A Persuasão

- desde logo, na esfera do nosso quotidiano -, tem perma-necido sistematicamente fora dos quadros de produção dochamado conhecimento racional. Simplesmente, “não éeliminando todas as opiniões, a contribuição da tradição eos ensinamentos da história que se explicará, a um só tempo,a constituição progressiva das ciências e a persistência dosdesacordos em muitos domínios”2 .

Mas o que é afinal a opinião? Philippe Breton definiu--a como “conjunto das crenças, dos valores, das represen-tações do mundo e das confianças noutros que um indivíduoforma para ser ele próprio”3 . Independentemente, porém, damaior ou menor coerência com que se estruture, a opiniãonão se constitui nunca como definitiva ou imutável, antesse encontra sujeita a uma perpétua mutação, pela conside-ração e confronto com outras opiniões. A opinião está,portanto, no centro da argumentação, da discutibilidade.Significará isso que tudo é discutível?

Breton assinala três grandes domínios que escapam àopinião, por se integrarem na certeza: a ciência, a religiãoe os sentimentos. Com efeito, os resultados científicos nãose discutem, impõem-se a todos, graças às suas caracterís-ticas de objectividade e universalidade. Se existem contro-vérsias neste domínio elas confinam-se ao círculo restritodos próprios cientistas e, ainda assim, subordinam-se aespecíficas regras técnicas, elas mesmas em ruptura com osenso comum, próprio das opiniões. Enquanto o conheci-mento científico se situa do lado da objectividade e daverdade, a opinião emerge da subjectividade, do verosímil.Aliás, se a opinião fosse uma certeza objectiva, infalível,a argumentação deixaria de fazer qualquer sentido, pois nãose argumenta contra o que é evidente e necessário._______________________________2 - Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 2173 - Breton, P., A argumentação na comunicação, Lisboa: Publicações

D. Quixote, 1998, p. 29

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Retórica, Persuasão e Hipnose

Outro domínio que escapa à argumentação é a religião.A fé “partilha-se, comunica-se, mas não se explica nem sediscute”4 . É certo que na religião, como salienta Breton,nem tudo é pura revelação ou fé no mistério, pelo que,naturalmente, também ocorrem debates, discussões. Mas talcomo no caso dos cientistas, é necessário distinguir entreas discussões internas a uma crença e a argumentação querespeita a cada um na sua universalidade, pois não seriaaceitável generalizar esse tipo de discussão a toda a soci-edade humana, fazendo dele o centro de todos os debates.

Por último, também os sentimentos que nos movem enos comovem nada têm a ver com opiniões, independen-temente da sua origem ser estética ou afectiva. De resto,a própria sabedoria popular reconhece essa distinção atravésda expressão “gostos não se discutem”. Pode-se ter umaopinião sobre determinada relação afectiva, mas não sobreos sentimentos que nela emergem. No mesmo sentido, umcomentário em matéria estética, perfeitamente configurávelna opinião, já não pertence contudo à própria arte, mas sim,a uma determinada ordem de racionalização valorativa.

Feita esta caracterização da opinião - nos precisos termosem que ela se constitui como objecto da argumentação -importa ainda assim não a confundir com a mera informa-ção, mesmo se a fronteira entre uma e outra, nem sempresurge com muita nitidez. É que a argumentação não visatransmitir e fazer partilhar uma informação, mas sim, umaopinião. A informação é aqui entendida como traduzindo ouapontando para a objectividade, enquanto a opinião seapresenta como um ponto de vista que pressupõe sempreoutro possível. Trata-se de uma distinção algo idealizada masque ainda assim, no que respeita à argumentação, parecemanter uma significativa operacionalidade. Assim, de acordo

_______________________________4 - Breton, P., A argumentação na comunicação, Lisboa: Publicações

D. Quixote, 1998, p. 31

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com Breton, quando alguém afirma está a nevar fá-lo numcontexto de informação, sem qualquer intenção argumentativa.Mas se disser está a nevar, portanto, vamos ficar no quente,este enunciado já se apresentará como elemento de umaargumentação. É, aliás, a distinção entre informação e opiniãoque faz com que o jornalista dê ao mesmo facto um tra-tamento diferente, conforme o objectivo seja informar opúblico ou fazer um comentário, emitir uma opinião.

Uma vez situada fora dos conhecimentos científicos, dossentimentos e das crenças religiosas e não se confundindotambém com a mera informação, a opinião permite delimitaro espaço público de discussão que é, por excelência, o nossoquotidiano, onde a argumentação ocupa um lugar central.Um espaço público laico, assim o designará Breton, “feitodos mundos de representações que partilhamos com todosos outros seres humanos, das metáforas em que habitamose que estruturam a nossa visão das coisas e dos seres. Estesmundos são, no fundo, criados pela argumentação, e é aargumentação que os transforma. Ela constitui a sua dinâ-mica essencial, a máquina que dá forma à matéria-primadas crenças, das opiniões, dos valores. Neste sentido, aargumentação é essencial para a ligação social. A ‘laicidade’do espaço em que evolui e que circunscreve é uma dimensãoessencial que lhe permite manter-se à distância de qualquerdogmatismo”5 .

É no seio desta discutibilidade que a retórica se traduzpor uma revalorização da subjectividade ou, talvez maisexactamente, das subjectividades. Quando se pensa, porexemplo, na discussão entre dois interlocutores, é possívelcaracterizar as intervenções de ambos como manifestaçõesde liberdade. Um deles inventando argumentos para susten-tar a sua tese ou para rebater a tese adversa, o outro,concedendo ou recusando a sua adesão às teses que lhe são

_______________________________5 - Breton, P., A argumentação na comunicação, Lisboa: Publicações

D. Quixote, 1998, p. 33

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apresentadas. De um lado, a liberdade de invenção, do outro,a liberdade de adesão. Uma simetria de posições onde ofluxo comunicacional resulta da troca e do confronto dosrespectivos argumentos. Num e noutro caso, uma procurade consenso com base na plena participação, na expressãoe afirmação de uma subjectividade cujos sinais e presençapodemos referenciar, segundo Meyer, através “(...) da con-tingência das opiniões, da livre expressão das crenças e dasoposições entre os homens, que procuram sempre afirmaras suas diferenças ou, pelo contrário, superá-las para libertarum consenso”6 . Como diz Paul Ricoeur, a propósito doDireito, existe “(...) um lugar da sociedade – por violentaque esta seja, por origem e por costume – onde a palavraprevalece sobre a violência”7 . Esse lugar é também o daretórica pois o consenso a que esta se dirige é inseparávelde uma ideia de justiça. No direito como na retórica, “éno estádio do debate que melhor vemos confrontarem-se epenetrarem-se a argumentação, em que predomina a lógicado provável e a interpretação em que prevalece o poderinovador da imaginação da própria produção dos argumen-tos”8 .

Mas se a retórica é esse encontro dos homens na livreexposição das suas diferenças, não menos importante é opapel que ela desempenha no reconhecimento e na recons-trução das identidades. As metáforas da distância e daproximidade revelam-se então muito apropriadas para figu-rar, respectivamente, a razão de ser e o efeito da argumen-tação, que o mesmo é dizer, o que leva a que se argumentee o que pode resultar do acordo, do consenso. É por issoque Meyer vê a retórica como negociação da distância entre_______________________________6 - Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa:

Edições 70, Lda., 1998, p. 197 - Ricoeur, P., O Justo ou a essência da Justiça, Lisboa: Instituto Piaget,

1997, p. 98 - Ibidem, p. 22

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os sujeitos. “Esta negociação acontece pela linguagem (ou,de modo mais genérico, através da – ou de uma – lingua-gem), pouco importa se é racional ou emotiva. A distânciapode ser reduzida, aumentada ou mantida consoante o caso.Um magistrado que pretenda suscitar a indignação, procu-rará impedir qualquer aproximação ou identificação entreo réu e os jurados. Em compensação, um advogado quepleiteia a favor de circunstâncias atenuantes, esforçar-se-ápor encontrar pontos de contacto e semelhanças entre osjurados e o acusado. O que está em jogo na retórica é adistância, mesmo se o objecto do debate é sempre parti-cularizado por uma questão”9 . Por uma questão que, acres-cente-se, seja susceptível de receber mais do que uma solução,pois só quando portadora de diferentes possíveis justificaa convocação da argumentatividade.

É precisamente a partir da actividade de questionação,inerente a todo o processo retórico, que Meyer chega à suaconcepção de racionalidade interrogativa, para melhor captara pluralidade de sentidos da retórica e o contraditório detoda a argumentação. Pelo caminho, desembaraça-se, emprimeiro lugar, do proposicionalismo e de um logos queraramente é entendido como o que se ocupa do problemáticoe da problematicidade em geral. Ele é visto antes “comoaquilo que reenvia para a ordem das coisas, aquilo quecorresponde aos referentes do discurso, aquilo que constituios factos e as opiniões que debatemos, as teses que são objectode discussão (...), etc.”1 0. Para Aristóteles, com efeito, “ainterrogação dialéctica, longe de ser um verdadeiro processode questionamento, é na realidade a colocação à prova deuma tese provável para toda a gente, para a maioria, oupara os sábios”11. Segundo o velho filósofo não nos interro-_______________________________9 - Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa:

Edições 70, Lda., 1998, p. 2610 - Ibidem, p. 2911 - Ibidem

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gamos sobre o problemático: apenas discutimos teses opos-tas. Uma vez obtida a respectiva adesão, a tese aprovadaou escolhida constituir-se-ia como resposta ou afirmaçãoexclusiva. O termo do processo retórico ficaria a assinalarigualmente o fim de toda a problematicidade ou alternativa.“Parece mesmo que o ideal proposicional se perpetua. Trata--se de chegar, tanto quanto possível, a uma proposição queexclua o seu contrário, esperando que a ciência possa decidirapodicticamente, quer dizer, com toda a precisão. Não éportanto o problemático que é preciso conceptualizar, masas respostas que não o são e que gostaríamos muito queo fossem. A retórica seria como que um paliativo da lógica,aquilo que, à falta de melhor, utilizamos para responder comprobabilidade, quer dizer, como verdade exclusiva,proposicional. É uma solução de expectativa. Mas se preten-dermos julgar os problemas da lógica pela medida daquiloque impede de os tratar como problemas, como alternativas,com A e não-A como co-presentes, talvez nos arrisquemosa condenar a retórica uma vez mais medindo-a por aquiloque ela não é e em relação ao qual é nitidamente inferiornos seus resultados. O que será mais eficaz para afirmaruma proposição do que a lógica, que conclui com toda aprecisão?”12. De qualquer modo, a proposição não é a unidadee ainda menos a medida do pensamento - lembra Meyer.Se a razão e o discurso sustentam o contraditório da retóricaé porque já incorporam o problema ou a questão pois “(...)a retórica não fala de uma tese, de uma resposta-premissaque não responde a nada, mas da problematicidade que afectaa condição humana, tanto nas suas paixões como na suarazão e no seu discurso”13.

Mas é sobretudo através da crítica que faz à classificaçãoaristotélica dos géneros oratórios, que Meyer parece conferir

_______________________________12 - Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa:

Edições 70, Lda., 1998, p. 2913 - Ibidem, p. 31

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maior visibilidade à sua teoria da interrogatividade retórica.Recorde-se que Aristóteles procede à classificação dos gé-neros oratórios segundo o bem que em cada um deles sepretende realizar. Por isso associa o útil ao género delibe-rativo, o justo ao género judiciário e o belo, elogioso ouhonroso, ao género epidíctico. Descobre-se aqui com todaa nitidez uma preferência por um critério ontológico de clas-sificação dos géneros oratórios. Como Meyer bem salienta,“Aristóteles parte do princípio de que é nas brechas daontologia que se joga a emergência dos géneros”14. Temosentão uma razão e um discurso pensados a partir da questãodo ser, no pressuposto de que dizer é dizer o que é. A retóricatrata do que é mas poderia ter sido de outro modo. Sendoassim, o tempo assume uma importância fundamental nacriação das próprias alternativas, além de permitir uma ca-racterização complementar de cada género. O passado defineo género judiciário, na medida em que este respeita a factosou actos que poderiam ter ocorrido de outra maneira. Opresente é o tempo do género epidíctico, que se reporta aoque existe (um elogio, uma censura...) mas que poderia serdiferente. Por último, é o futuro que está em causa no génerodeliberativo, seja através de uma acção política, seja poruma qualquer decisão a tomar.

O que Meyer nos vem dizer é que esta classificação degéneros não faz qualquer sentido. Primeiro porque basta queabandonemos a lógica da exigência ontológica para que sediluam as linhas de fronteira entre cada um dos géneros,tanto mais que qualquer deles faz apelo à possibilidade denão-ser, quer pela admissibilidade da negação de qualquertese ou proposta, quer em função das três modalidades detemporalidade acima referidas. Em segundo lugar, porqueos três bens que supostamente os distinguiriam estão sempremais ou menos presentes em cada género oratório. Já

_______________________________14 - Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa:

Edições 70, Lda., 1998, p. 31

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Quintiliano, de resto, chamara a atenção para o modo comoos três géneros se apoiam mutuamente: “num elogio nãose trata daquilo que é justamente útil? Numa deliberaçãonão tocamos em aspectos da moral? E nos discursos de defesanão existe sempre algo de tudo isto?15. Mas porque é queo útil, o justo e o honroso se misturam em qualquer relaçãoretórica? Meyer encontra a resposta no modo como osinterlocutores - que se apresentam uns aos outros com umadistância variável - procuram negociar esta última, quantoà questão cuja discutibilidade está em jogo. “A justificaçãoé auto-justificação: assenta em valores, mas também sobrea procura de aprovação, o ‘reconhecimento’; e, para obteremisso, os homens procuram agradar e comover. Pathos, logose ethos coincidem assim, e nem sempre conseguimos deslindá--los com precisão”16. Deste modo os géneros oratórios di-luem-se e chegam até a sobrepor-se, o que nos impede decaptar a especificidade do objecto da retórica. É preciso,por isso, encontrar uma outra lógica, que supere a lógicada exigência ontológica e essa é, segundo Meyer, a lógicada interrogatividade, que assenta no reconhecimento da maiorou menor problematicidade da questão levantada. Umaquestão que se inscreve, afinal, na afirmação pluralista dassubjectividades, como é próprio de uma retórica dos homense para os homens.

É certo que já Aristóteles reconhecera o papel centralda questão no processo retórico, quando, após definir aretórica como a faculdade de considerar em cada caso (ouquestão) aquilo que pode ser mais apropriado para persuadir,delimitou igualmente o seu objecto: são as questões acercadas quais deliberamos, ou seja, assuntos que parecem admitirduas possibilidades17. Meyer, porém, vai mais longe e não_______________________________15 - Cf. Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução,

Lisboa: Edições 70, Lda., 1998, p. 3316 - Ibidem17 - Cf. Aristóteles, Retórica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 57

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só retoma a questão como objecto ou motivo da argumen-tação como vê nela as marcas de uma nova racionalidade- a racionalidade interrogativa - que funda e orienta o próprioargumentar. A retórica traduz-se numa negociação da dis-tância entre os homens, daí que o seu despoletar decorra,invariavelmente, do aparecimento de uma questão para a qualnão é possível apresentar apenas uma resposta ou solução.Logo, essa negociação processa-se de acordo com uma lógicaprópria: “Se existe uma racionalidade retórica, é precisoencará-la como uma lógica da identidade e da diferença,identidade entre eles ou identidade de uma resposta paraeles, apesar da diferença entre eles e entre as suas múltiplasopiniões e saberes”18.

É no seio desse jogo de identidades e diferenças queemergem as questões, podendo a respectiva racionalidadeinterrogativa ser analisada justamente em função da sua maiorou menor problematicidade. Para Meyer, é a variação dessaproblematicidade que irá definir os géneros oratórios, no-meadamente, em função dos meios de resolução disponíveis.Nesse sentido podemos dizer que se observa umaproblematicidade crescente à medida que se caminha dogénero epidíctico para o género judiciário e deste para odeliberativo. No género epidíctico, diz Meyer, a questão nãochega a ser verdadeira e radicalmente problemática, pois aresposta está dada, posta à disposição. No género judiciáriojá existe de facto um problema mas que se encontra for-temente relativizado pelas regras de juízo previamentefornecidas pelo direito. Logo, é no género deliberativo quese observa a maior problematicidade pois ninguém detém,à partida, o juízo resolutório, excepto no caso de autoridadenatural ou institucional.

Em síntese, poderemos dizer, segundo Meyer, que “(...)dispomos ou não da solução para as questões; e se não

_______________________________18 - Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa:

Edições 70, Lda., 1998, p. 33

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dispomos dela, podemos encontrá-la através dos meiospresentes, inventados ou não de propósito (como o direitoou os regulamentos políticos), ou então é preciso resolvê--la sem ter à mão os critérios para decidir”19. Em qualquercaso, uma ideia interessa reter: quanto mais uma questãoé incerta, menos a solução possível se limita a uma únicaalternativa, mais vasto é o leque de respostas possíveis, peloque “não se trata então de aprovar ou desaprovar, de julgaruma questão que conseguimos reduzir a uma alternativa ououtra; agora convém decididamente encontrar a resposta maisútil, a mais adequada entre todas as possíveis, e até mesmocriar a alternativa”20.

É no campo dessa interrogatividade em contínuo que osgéneros retóricos poderão ser vistos como correspondendoa três grandes níveis de problematicidade no todo da ar-gumentação. Esses três níveis de problematicidade não seautonomizam necessariamente como poderia sugerir a clas-sificação aristotélica dos géneros, antes se completam,“interpenetram-se sempre mais ou menos, e a singularizaçãode um deles é precisamente apenas um momento, numaestratégia argumentativa que é sempre mais global do queuma radicalização parcial deixa transparecer”21.

Mas quais são e em que consistem esses três grandesníveis de articulações interrogativas? Para Meyer são afactualização, a qualificação e a legitimação. A factualizaçãoque incide sobre o “que”, ou seja, quando está em questãose este ou aquele facto se produziu. Quanto à qualificaçãoesta actua sobre o “o que”, onde já não está em causa seo facto se verificou ou não (por já se encontrar admitido)mas sim a sua caracterização, como por exemplo, quandoencontramos uma pessoa inanimada e nos interrogamos se

_______________________________19 - Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa:

Edições 70, Lda., 1998, p. 3520 - Ibidem21 - Ibidem, p. 44

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terá sido devido a doença, acidente ou crime. Por último,a legitimação - que pode ser considerada como um meta--nível na medida em que se trata da questão de legitimidade– onde o que está em causa é a “legitimidade daquele quefala, do seu direito a interrogar-nos, das razões que podeou não invocar, das normas argumentativas que tambémreconheceremos como válidas entre nós, de facto ou decomum acordo expresso”22. A cada uma destas três grandesarticulações interrogativas Meyer associa ainda uma dife-rente concepção de argumentação. Assim, no primeiro tipode interrogação teremos a argumentação como dialéctica, emque se procura saber se uma proposição é verdadeira ouse um facto ou acontecimento se produziu ou não. No segundotipo de interrogação surge a argumentação como “retóricado sentido, das figuras, da interpretação do sentido e já nãodo debate contraditório”23. O terceiro tipo de interrogaçãoé aquele em que o objecto do debate já não é o sentidomas sim a identidade e a diferença entre os seres que, aocomunicarem o que os identifica, deixam também mais nítidotudo o que os separa.

Nestes termos, a concepção interrogativa não só podeaspirar à elaboração de uma teoria completa da argumen-tação como “permite compreender uma oposição entre doisusos da retórica: aquele que visa manipular os espíritos eaquele que, pelo contrário, torna públicos os procedimentosda primeira, e de um modo mais geral todos os mecanismosda inferência não-lógica”24. Por isso a retomaremos nopróximo capítulo, a propósito do possível uso da retórica

_______________________________22 - Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa:

Edições 70, Lda., 1998, p. 4523 - Meyer, M., As bases da retórica, in Carrilho, M. (org.), Retórica

e Comunicação, Porto: Edições ASA, 1994, p. 6324 - Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa:

Edições 70, Lda., 1998, p. 46

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como instrumento de manipulação ou engano. Por agora,detenhamo-nos um pouco mais sobre o bom uso da retórica,ou seja, aquele que permite aos homens exercer em plenaconsciência o seu sentido crítico e o seu juízo. Uma retóricaque promove “(...) o encontro dos homens e da linguagemna exposição das suas diferenças e das suas identidades. Elesafirmam-se aí para se encontrarem, para se repelirem, paraencontrarem um momento de comunhão ou, pelo contrário,para evocarem essa impossibilidade e verificarem o muroque os separa”25. É que, como sublinha Meyer, se há umaconstante na relação retórica ela é, desde sempre, a dasrelações entre os sujeitos, o que, pressupondo a existênciade um locutor e um interlocutor (ou auditório), prefigurauma dinâmica argumentativa cuja especificidade mais no-tória será o papel que nela desempenham as subjectividades.E uma vez afastada a tentação dogmática, a crença numahipotética verdade absoluta, é a relatividade que se assumecomo condição e possibilidade da própria argumentação. Defacto, como lembra Oswaldo Porchat Pereira,26 a força deum argumento é sempre relativa. É relativa, em primeirolugar, à maior ou menor competência de quem o utiliza.É relativa também aos interlocutores concretos que se visapersuadir. É ainda relativa às circunstâncias particulares emque o argumento tem lugar. Mas, além disso, a argumen-tação, no seu todo, é sempre relativa a uma visão do mundomais ou menos comum aos interlocutores, onde se podeencontrar as premissas consensuais, a partir das quais seestrutura a própria discutibilidade. “Exorcizado o fantasmada verdade, valorizam-se o diálogo e o consensointersubjectivo, mesmo se apenas prático, temporário, rela-tivo. E a argumentação, por eles trabalhando, integra os

_______________________________25 - Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa:

Edições 70, Lda., 1998, p. 2626 - Pereira, O., Cepticismo e argumentação, in Carrilho, M. (org.),

Retórica e comunicação, Porto: Edições ASA, 1994, p. 152

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discursos da subjectividade na trama da racionalidadeintersubjectiva”27.

A retórica aparece-nos então como lugar de encontro doeu com o outro, onde os sujeitos se constituem reciproca-mente, no quadro de uma “intersubjectividade na qual umEu pode identificar-se com outro Eu, sem abandonar a nãoidentidade entre ele e o seu outro”28. Argumenta-se a favorou contra uma tese, uma proposta. Mas em qualquer caso,cada participante é chamado a fazer uma escolha, a decidirsobre uma preferência, com base no critério da razoabilidade.O consenso que daí resulte, pode então ser visto comoascensão ao mundo da intersubjectividade, um mundo emque, segundo Sartre “o homem decide sobre o que ele ée o que são os outros”29.

A subjectividade a que apela a retórica não é pois asubjectividade de uma consciência individual que se debruçasobre si própria nem a de um eu “ontológico” pré-existentea toda a relação. Pelo contrário é na relação interaccionalcom o outro que ela se determina. Na medida em que aauto-consciência é sempre a “consciência de algo” o eu sóé pensável na co-presença de um tu. Logo, dizer tu éestabelecermos uma ponte de nós para os outros. “Não éque apenas o ‘outro’ se implicite no mais rudimentar da nossavida quotidiana, não é que apenas o exijamos nas maiselementares necessidades do dia a dia. Mas como conceberaté um ‘eu’ se o não concebêssemos inexoravelmente num‘tu’? Como imaginar a nossa individualização sem um ‘tu’que a determine?”30.

_______________________________27 - Pereira, O., Cepticismo e argumentação, in Carrilho, M. (org.),

Retórica e comunicação, Porto: Edições ASA, 1994, p. 15228 - Habermas, J., Técnica e ciência como ideologia, Lisboa: Edições

70, 1997, p. 3629 - Sartre, J. e Ferreira, V., O Existencialismo é um humanismo, Lisboa:

Editorial Presença, 1978, p. 25030 - Ferreira, V., II-Existencialismo, in Sartre, J. e Ferreira, V., O Existencialismo

é um humanismo, Lisboa: Editorial Presença, 1978, p. 104

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Retórica dos sujeitos, sim, porque “cada vez que se destróia ideia de sujeito, cai-se na oposição duplamente artificialentre a racionalidade instrumental pura e as multidões ir-racionais”31. Mas uma retórica de sujeitos sociais em queo sujeito não se dissolve na sua individualidade nem se anulanuma obediência cega a qualquer ordem colectiva. Umaretórica, enfim, onde o exercício da liberdade pessoal seentrelaça com o reconhecimento da pertença colectiva. Eé neste sentido que a retórica contemporânea se mostra aptaa promover a revalorização da subjectividade.

1.2. - Liberdade ou manipulação?

Ponto prévio: reflectir sobre o uso da retórica é sempreir além da própria retórica. Com efeito, uma coisa é pensara retórica como técnica argumentativa que visa persuadiruma ou mais pessoas, ou, como diz Breton, enquanto “meiopoderoso de fazer partilhar por outrem uma opinião”32. Outra,bem diferente, é saber se ela se presta ou não a usos indevidosque cerceiem a liberdade de pensamento e de escolha dosauditórios a que se apresenta. A retórica, vimo-lo já, é lugare encontro de subjectividades, manifestação de umaracionalidade humana que não cabe nos estreitos limites darazão científica, mas é também e acima de tudo, um ins-trumento de persuasão. Não é pois negligenciável a hipótesede poder ser utilizada para enganar os outros segundo asconveniências ou interesses de cada um. Pode, inclusivamente,degenerar num modo mais ou menos insidioso de “tomaro poder, de dominar o outro, pelo discurso”33. É isso que_______________________________31 - Touraine, A., Crítica da Modernidade, Lisboa: Instituto Piaget, 1994,

p. 31032 - Breton, P., A argumentação na comunicação, Lisboa: Publicações

D. Quixote, 1998, p. 1333 - Reboul, A., Introdução à retórica, S. Paulo: Martins Fontes,1998,

p. XX

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Platão denuncia quando (embora, a nosso ver, tomando aparte pelo todo) considera que a retórica, por ele identificadaà adulação, “não tem o mínimo interesse em procurar o queseja o melhor, mas, sempre por intermédio do prazer, perseguee ludibria os insensatos, que convence do seu altíssimovalor”34.

Significará isto que devemos considerar a retórica espe-cialmente vulnerável à manipulação? Poderemos condená--la à partida por constituir um meio privilegiado de induzirao engano? Parece que a resposta a tais questões só podeser negativa. Em primeiro lugar, porque, como já vimos,o próprio Aristóteles viria a relativizar as graves acusaçõesde Platão, transferindo-as da técnica retórica para a respon-sabilidade moral dos seus agentes. É o que faz quando, aonível dos respectivos usos possíveis, compara a retórica atodos os outros bens, à excepção da virtude, especialmentecom os mais úteis tais como o vigor, a saúde, a riquezaou a capacidade militar: “com eles tanto poderiam obter--se os maiores benefícios, se usados com justiça como osmaiores custos, se injustamente utilizados”35. Depois, porquenão podendo ficar imune a uma dada instrumentalizaçãoabusiva, a retórica contém no entanto em si própria o melhorantídoto para descobrir e desmascarar quem indevidamentedela se sirva. Ou seja, uma retórica só pode ser desacreditadapor outra retórica. Talvez por isso a generalidade dos autoresse venha referindo não apenas à sua face positiva, enquantogeradora de consensos que aproximam os homens e refor-çam o pluralismo democrático mas também a uma impor-tante acção negativa que se traduz na sua aptidão específicapara desmontar argumentações de valor meramente aparente,duvidoso ou até propositadamente manipulado. Para RuiGrácio, por exemplo, os eventuais abusos de retórica sãomuito mais relativos à avaliação do humano do que à retórica,

_______________________________34 - Platão, Górgias, Lisboa: Edições 70,1997, p. 6135 - Aristóteles, Retórica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 51

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pois é justamente a competência retórico-argumentativa quedeles nos pode prevenir36. No mesmo sentido, se pronunciaPerelman quando, para sublinhar a dimensão crítica daretórica, afirma que “através do estudo dos procedimentosargumentativos, retóricos e dialécticos, é-nos possível apren-der a distinguir os raciocínios aceitáveis dos raciocíniossofistas, os que procuram persuadir e convencer, dos queprocuram enganar e induzir em erro”37. Colocada assim atónica na competência argumentativa como possibilidade dedesmascarar a chamada retórica negra (sofística), impõe--se então retomar aqui a concepção interrogativa de Meyer,na medida em que, como já salientamos, ela pode propor-cionar-nos um critério de distinção entre o uso e o abusoda retórica38.

Tomando por base as críticas que Platão fazia aos poetase sofistas do seu tempo39, por se empenharem em fazer passarcomo verdadeiros discursos desprovidos de qualquer verda-de ou até verosimelhança, que apresentavam como soluçãoaquilo que permanecia um problema, Meyer identifica taispráticas com uma ostensiva redução ou mesmo anulação detoda a interrogatividade discursiva. A origem da manipu-lação retórica consistirá por isso, basicamente, numa deli-berada confusão entre a resposta e a questão, com o fimde fazer tomar por concludente e razoável o que, na re-alidade, permanece problemático. O grande alcance destaintuição de Meyer é o de nos fornecer um critério relati-vamente expedito de distinguir os usos da retórica. Recor-demos que à luz da teoria da interrogatividade, qualquer_______________________________36 - Grácio, R., Introdução à tradução portuguesa, in Perelman, C., O

império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 937 - Perelman, C., L’usage et l’abus des notions confuses, in Éthique

et Droit, Éditions de l’Université de Bruxelles, 1990, p. 81738 - Equivalente à diferença entre um uso crítico e um uso manipulador.39 - Atente-se no violento ataque que Platão faz à retórica na sua obra

Górgias, pp. 47-82

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proposta ou tese em discussão se mantém mais ou menosincerta, pois é precisamente essa sua incerteza que justificaa necessidade de discussão. Aliás, nem mesmo depois deobtido o assentimento do auditório, essa maior ou menorincerteza desaparecerá totalmente, na medida em que qual-quer escolha é sempre uma escolha provisória e o consensoque a torna possível, ao invés de lhe conferir uma evidênciaindiscutível ou certeza absoluta (que não possuía até aí),traduz antes o reconhecimento de uma problematicidade quenenhuma resposta esgotará, pois esta, obrigatoriamente situadano campo do preferível, sempre fica sujeita a um novoquestionar e a sucessivos desenvolvimentos. É pois no seiodesta questionação ou interrogatividade em contínuo de todoo discurso retórico que se pode descortinar de que lado estáo orador: do lado da retórica negra, manipuladora, ou dolado da retórica branca, de uso crítico. Meyer fornece-noso método: “Para se compreender a essência do pensamento,importa portanto restabelecer sempre a diferença pergunta-resposta, aquilo a que eu chamei a diferença problematológica.Tendo em conta esta diferença, podemos então distinguirdois tipos de uso retórico: aquele que é crítico e lúcido sobreos procedimentos de discurso, e aquele que visa ofuscar ointerlocutor, ou em todo o caso adormecê-lo”40. Teremos assimuma retórica branca que, não suprimindo a interrogatividadenas suas respostas nem escondendo a raiz problemática destasúltimas, é, por um lado, lugar de discutibilidade e afirmaçãodo sentido crítico dos que nela participam e, por outro, ummodelo aferidor dos usos retóricos abusivos. Uma retóricabranca que inclui o estudo da retórica e do seu uso, já quena “(...) negociação da distância entre os questionadores,analisa-se a relação questão-resposta porque surge colocadaem prática, mesmo implicitamente. Mas a retórica brancadebruça-se também sobre a maneira como esta interrogatividade

_______________________________40 - Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa:

Edições 70, Lda., 1998, p. 47

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está implicada no responder que se ignora mais ou menoscomo tal, que é mais ou menos manipulador e ideológico,e que recalca a interrogação para ‘passar’ junto daquele aquem se dirige (...)”41.

A interrogatividade de que nos fala Meyer é a que seexpressa no confronto de teses opostas submetidas a umregime dialógico de explicitação que visa gerar o consensosobre a escolha preferível. Logo, a questão de saber se aargumentação em causa se dirige para a verdade ou parao engano, remete-nos, antes de tudo, para a necessidade dedetectar quais são as verdadeiras intenções que animam osparticipantes. É essa necessidade que leva Perelman a verna distinção aristotélica das argumentações erísticas, críticase dialécticas, três tipos de critérios que nos podem ajudara avaliar os debates e as conclusões que deles resultaram.Trata-se de uma distinção que tem por base as diferentesatitudes ou motivos que animam os interlocutores. Assim,em primeiro lugar, poderemos considerar o chamado diálogoerístico, que é aquele em que a única intenção é o desejode vencer, de vergar o adversário ao peso do ponto de vistapessoal do orador. Um segundo tipo de diálogo é o diálogocrítico, aquele em que se visa submeter uma tese a umautêntico teste, tentando mostrar a sua incompatibilidade comas outras teses já anteriormente aceites pela mesma pessoa.Por último, temos o diálogo dialéctico quando osinterlocutores, para além da coerência interna dos discursos,procuram também chegar a um consenso sobre as opiniõesque reconhecem como mais sólidas ou preferíveis.

Perelman tem, porém, o cuidado de nos chamar a atençãopara o facto desta distinção se situar sempre a um nívelde pura idealidade42, já que, na prática, frequentemente estes

_______________________________41 - Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa:

Edições 70, Lda., 1998, p. 4742 - Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 51

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três tipos de intenção surgem misturados, embora comintensidades variáveis. Com efeito, nos debates reais, é certoque os interlocutores procuram fazer triunfar as suas tesesmas, na maioria das vezes, estarão convencidos de que, nãosó não são incompatíveis como se apresentam dotadas dapretendida razoabilidade. De qualquer modo, pese emboraas naturais dificuldades da sua aplicação, os três tipos dediálogo acima referidos configuram uma importante grelhade análise e compreensão do acto retórico que só podefavorecer a detecção de eventuais usos abusivos da argu-mentação.

Do que fica dito pode depreender-se que resulta muitodifícil, se não mesmo impossível, distinguir entre a boa ea má argumentação, com base num único critério, ou se-gundo regras fixas e pré-definidas. Desde logo porque umatal distinção implica uma prévia escolha do plano em quea mesma deverá ter lugar. O que será uma boa argumen-tação? A mais eficaz ou a mais honesta? O desejável seriacertamente que as duas coincidissem, mas como se sabe,nem sempre tal acontece, quer por incompetênciaargumentativa, quer por manipulação voluntária ou exigên-cias próprias de certas situações-limite43. Sobre a argumen-tação eficaz já vimos que ela se define pela adesão que obtémdo auditório a que se dirige. Mas como caracterizar umaargumentação honesta?

Reconheçamos antes de mais que, como sustenta OlivierReboul, “se uma argumentação é mais ou menos desonesta,não é porque seja mais ou menos retórica. Caso contrárioPlatão, cujos textos são infinitamente mais retóricos, peloconteúdo oratório, que os de Aristóteles, seria menos ho-nesto que este!”44. O facto da retórica se situar no mundo_______________________________43 - Em que se opta pela omissão ou pela mentira piedosa para evitar

o choque de verdades brutais e desumanas44 - Reboul, A ., Introdução à retórica, S. Paulo: Martins Fontes, 1998,

p. 99

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do razoável, do preferível, não significa qualquer desprezopela verdade, pelo contrário, por ela se orienta e para elacaminha, no seio de uma discutibilidade onde “são elabo-radas, precisadas e purificadas as verdades, que constituemapenas as nossas opiniões mais seguras e provadas”45. Aeventual desonestidade da retórica terá, pois, de ser impu-tada apenas aos seus agentes. Defender o contrário, seriao equivalente a pretender que todo o objecto cortante é uminstrumento de agressão. Uma falácia, portanto.

Poderíamos também ceder à tentação de classificar umaargumentação em função da causa por ela defendida. Nessecaso, a argumentação honesta seria a que sustentasse uma“boa” causa, o que imediatamente pressupõe que o valorda causa possa ser conhecido antes mesmo da argumentaçãoque visa precisamente estabelecer tal valor. Como diz Reboul,isso seria o mesmo que “julgar antes do processo, elegerantes da campanha eleitoral, saber antes de aprender. Nãoexiste dogmatismo pior”46.

É por isso que este mesmo autor, considerando que acaracterística da boa argumentação não é suprimir o aspectoretórico - pois em nenhum caso uma argumentaçãoinexpressiva se torna, só por isso, obrigatoriamente maishonesta - adianta dois critérios gerais a que se deve submetera boa retórica:

1º. Critério da transparência: que o ouvinte fique cons-ciente, ao máximo, dos meios pelos quais a crençaestá a ser modificada.

2º. Critério de reciprocidade: que a relação entre o oradore o auditório não seja assimétrica, para que fiqueassegurado o direito de resposta.

Respeitados tais critérios, Reboul considera que a argu-mentação não se torna por isso menos retórica, e sim mais

_______________________________45 - Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 36746 - Reboul, A., Introdução à retórica, S. Paulo: Martins Fontes, 1998,

p. 99

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honesta. Mas parece evidente que, sem pôr em causa a eficáciadestes dois critérios, o facto deles conterem os conceitosindeterminados que o ouvinte fique consciente ao máximoe não seja assimétrica sempre introduz uma significativaambiguidade no momento da sua concretização. Por outrolado, pode acontecer também que a incompetênciaargumentativa do auditório, crie a ilusão de uma relaçãoretórica desigual e leve a que se veja manipulação no oradorquando, na realidade, essa desigualdade se fica a dever àinsuficiente capacidade crítica revelada por aqueles a quemse dirige.

Até aqui, no entanto, temos vindo a encarar a possibi-lidade da retórica degenerar em manipulação, unicamentesegundo a óptica do agente manipulador, ou seja, daqueleque joga com as palavras para intentar uma adesão acríticaàs suas propostas. Mas a verdade é que numa situação demanipulação, para além do manipulador existe sempre omanipulado. Poderemos isentar este último da sua quota deresponsabilidade na manipulação de que é alvo? Não haverásempre a possibilidade de se descobrir e desmontar amanipulação em causa? Ou será que o encanto de um certomodo de dizer as coisas, de oferecer as respostas como únicase aparentemente irrebatíveis, é algo de tão subtil ou sedutorque justifica o anestesiamento e aceitação passiva por partede um auditório?

Tentar responder a estas questões significa, antes de mais,deslocar a raiz problemática do ethos, vontade de seduzirou manipular, para o pathos, ou seja, para a aceitação maisou menos consciente da respectiva manipulação. A pertinênciadeste deslocar do problema, do orador para o auditório, estábem presente em Meyer, quando, depois de lembrar umavez mais que a diferença entre a retórica negra e a retóricabranca reside numa diferença de atitude, nos vem dizer quea verdadeira questão é a de saber porque é que os homensse deixam manipular, às vezes de forma perfeitamentedeliberada e consentida:

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(...) A mulher sabe que tal homem procura seduzi-lae que o que ele diz remete para um desejo que seria brutale inaceitável exprimir francamente. O espectador sabeigualmente que este ou aquele produto não tem forçosa-mente as qualidades celebradas na publicidade e que éapenas a vontade de vender que se exprime (...). Tratando-se de discurso figurado, não deveria existir um espaçode liberdade na interpretação e aceitação, espaço que secria e permite aos receptores pronunciar-se sobre o queé proposto sem ter de dizer brutalmente que não? Nãoexistirá na sedução, qualquer que ela seja, uma etapasuplementar que, retardando a resposta final, retarda arecusa eventual, e portanto a rejeição de outrem enquantotal? Não existe como que uma espécie de delicadeza dealma na figuratividade, um respeito que permite evitar semcombater, recusar sem negar? Tudo leva a crer que amanipulação consentida assenta numa dupla linguagem quenão engana, e mesmo de que se tem necessidade para diferira decisão própria sem ter de enfrentar directamente o outro.Um grau mais de liberdade, se se quiser, na qual só osingénuos verão uma traição à verdade una e indivisível,de que os receptores da mensagem seriam vítimasinvoluntárias47.É que além do mais, enquanto discurso persuasivo, a

retórica faz apelo a uma linguagem natural que é inseparáveldo concreto contexto cultural que lhe precisa as significa-ções e determina os seus modos de expressão. Logo, aoveicular desse modo um conhecimento implícito que remetepara um determinado campo de valores e noções, a lingua-gem natural é ela mesma portadora de condições de com-preensão e comunicação, que tornam acessível ao auditóriouma adequada interpretação do discurso, nomeadamente, aseventuais segundas intenções do orador. É certamente isto

_______________________________47 - Meyer, M., As bases da retórica, in Carrilho, M. (org.), Retórica

e Comunicação, Porto: Edições ASA, 1994, p. 69

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que leva Rui Grácio a considerar que “o homem que falanão é uma presa indefesa contra a instrumentalização deque se tornaria alvo por via de eloquências bastardas e deseduções linguísticas duvidosas, que Platão tanto temia”48.Do que ele não pode demitir-se é da responsabilidade dedecifrar as intenções de quem lhe fala, com base nasinferências que tem o direito de fazer a partir do que lheé literalmente dito.

De resto, em certa medida, essa tarefa aparece facilitadana retórica, pois dado que todas as propostas ou teses sãosubmetidas ao teste da discutibilidade, sempre se poderá dizer,como o faz M. Maneli, que “os argumentos podem serrejeitados pelos auditórios por várias razões, mas mentiras,usadas numa troca livre de argumentos, podem ser trazidasà luz mais depressa do que de qualquer outra maneira. Nãohá garantias contra a falácia, mas a falácia é mais difícilde realizar e de manter indetectada quando o interlocutoré livre para pensar, para falar, para recolher material, parainvestigar o caso, quando ele é livre e está preparado paratomar parte no processo da argumentação”49.

Convenhamos que não é a retórica que manipula, massim, o manipulador. E que se este se apodera do discursoe do debate para enganar ou prejudicar o seu interlocutor,então é porque, certamente, já era um manipulador antesde recorrer à retórica. A retórica não contamina ninguém.Nenhum homem é um, fora da retórica, e outro, quandorecorre a ela. A atitude moral é uma das atitudes mais estáveisno sujeito humano. Nem surge de repente, como que porinsight, nem se dá bem com sucessivas oscilações. Constrói--se paulatina e duradouramente na convivência social, noreconhecimento do outro e ao situar-se na esfera do íntimo,

_______________________________48 - Grácio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edições ASA, 1993,

p. 10349 - Cit. in. Grácio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edições ASA,

1993, p. 104

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constitui porventura o principal traço da nossa identidade.É neste quadro de permanência da atitude moral que po-deremos buscar o suporte e a ligação possível entre os actose a pessoa que os pratica. E é também através dele quese pode inferir que, por regra, só manipula pela retórica,quem já é capaz de o fazer por qualquer outro meio. Culparentão a retórica, por induzir ao engano, parece tão absurdocomo inscrever a origem da mentira na linguagem, só porqueesta a veicula. No limite, mesmo considerando os maisgrosseiros abusos de retórica, em que o orador recorre aum discurso emocionante, pleno de figuratividade estilística,de inebriantes sonoridades ou ritmos quase hipnóticos, aindaaí, haveria que interrogar se nos tempos que correm, aspessoas não estarão já suficientemente informadas e até“vacinadas” contra tais métodos de persuasão, nomeada-mente, pela sua contínua exposição a um mercado ondeimperam as técnicas de venda agressivas que chegam a coagirpela palavra, aos discursos demagógicos de políticos diri-gidos mais para os votos do que para os eleitores e a umapublicidade que nem sempre olha a meios para invadir aprivacidade e seduzir ao consumo o mais pacato e indefesocidadão. Até que ponto, não existe mesmo, hoje em dia,um preconceito contra a retórica, frequentemente associadaaos “bem falantes”? Não existirá na generalidade das pes-soas uma ideia prévia de que quem se nos apresenta a falarmuito bem é porque de maneira mais ou menos encobertaou ilusionária nos pretende forçar a alguma coisa, a umaacção ou atitude potencialmente nefastas para nós e queportanto nos deve imediatamente remeter para uma redobra-da atenção e cautela? Se assim for, não será caso para dizerque uma tal tendência se constitui como aviso automáticoao candidato a manipulado, que desse modo tem o ensejode mobilizar toda a sua força de decisão e capacidade críticapara recusa da respectiva proposta retórica, podendo até nemchegar a prestar-lhe a devida atenção? Haverá travão maiseficiente aos eventuais exageros ou abusos de um oradorsem escrúpulos?

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Dir-se-á que neste endossar ao manipulado de uma parteimportante da responsabilidade pela manipulação, há oidealismo de quem pressupõe um justo equilíbrio inter-partes(orador-auditório), uma simetria de posições, de poderes, desaberes, de estatutos, numa palavra, uma igualdade à partidaentre os que recorrem à palavra para enganar ou seduzire os que são alvo de um tal abuso, equilíbrio e simetriaque, em bom rigor, não se observa nunca numa situaçãoretórica concreta. Mas, de facto, não é disso que se trata.Do que se trata é de não transferir para a retórica os nocivosefeitos das desigualdades psicológicas, culturais, sociais, éticase políticas, que caracterizam o encontro dos homens nasmúltiplas situações de vida comum. Quem pretende fazervencer as suas teses, por certo que ficará melhor colocadopara o conseguir, se detiver mais saber acumulado e maispoder do que aqueles que visa persuadir. Um professor defilosofia, por exemplo, terá normalmente uma relação maispróxima com a linguagem e com o raciocínio verbal do queum operário que desempenha diariamente uma actividademais ou menos mecânica, que apela, basicamente, para asua habilidade manual. O detentor de um alto cargo públicopode usar a sua autoridade institucional e o inerente poderpolítico para fazer passar propostas ou teses que não re-sistiriam a um auditório política e institucionalmente menosdependente. Nos dois casos, porém, estão presentes factoresde influência manifestamente extra-retóricos, porque a re-tórica, como já vimos, não pode dispensar a discutibilidadee o livre exercício de um juízo crítico que permita ao ouvintenão apenas dizer que sim ao que lhe é proposto, mas,fundamentalmente, compreender a justificação das razões quefundam a tese sobre a qual lhe compete opinar ou escolher.É por isso que, à adesão, enquanto critério de eficácia, énecessário juntar a compreensão e a liberdade, como pres-supostos de legitimação da própria retórica, sem os quais,toda a persuasão resultará em manipulação ou ilusão deverdade. Um auditório que não compreenda o sentido e o

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alcance das propostas em discussão e até mesmo da suaescolha, pode manifestar a sua adesão, mas não sabe aoque está a aderir. Um auditório que, além disso, não disponhade inteira liberdade de apreciação e decisão, aceita aspropostas do orador mais pelo receio das consequênciasque adviriam da sua eventual recusa, do que pela forçados argumentos que lhe são apresentados. Em ambos oscasos, porém, estaremos já fora da retórica propriamentedita, pois esta, lembremos uma vez mais, remete para umadiscutibilidade, que no primeiro caso se torna impossível,pela ignorância do auditório e, no segundo, não passa demero simulacro devido à situação de poder (e abuso?) doorador. Só a reciprocidade entre orador e auditório assegurao exercício retórico-argumentativo. Só um auditório sufi-cientemente qualificado para debater as propostas que lhesão dirigidas poderá garantir as escolhas mais adequadasnum dado contexto sócio-histórico.

A retórica pressupõe, por isso, a competênciaargumentativa dos seus agentes, pois, como diz Aristóteles,“é preciso que se seja capaz de convencer do contrário,não para que possamos fazer indistintamente ambas as coisas(pois não se deve convencer do mal), mas para que nãonos iludam e se alguém fizer um uso injusto de argumen-tos, sejamos capazes de refutá-los”50. Talvez que esta re-comendação de Aristóteles tenha vindo a ser sistematica-mente interpretada como dizendo respeito essencialmenteao orador, mas o facto é que a discutibilidade da retóricaremete desde logo para o confronto de opiniões, para odebate, para a alternância no uso da palavra, pelo que, semdúvida, aplica-se igualmente ao auditório. Em que consiste,porém, essa capacidade de convencer do contrário?Perelman deixa muito claro que “a competênciaargumentativa não diz, apenas, respeito à arte de falar

_______________________________50 - Aristóteles, Retórica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 50

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eloquentemente, mas a uma eloquência indissociável doraciocínio e do discernimento pensante”51. Não basta por issofalar fluentemente, colocar bem as palavras, fazer um dis-curso que emocione e cative o auditório. Mais do que construirfrases de grande efeito, mais do que dominar as técnicasdo dizer, é preciso saber pensar, articular as razões ou osargumentos, perceber as eventuais objecções, decidir sobrea sua pertinência, acolhê-las ou rejeitá-las, segundo semostrem ou não passíveis de enriquecerem as respectivaspropostas. E acima de tudo, é necessário ter sempre presenteque o falar só faz sentido se for a expressão de um ra-ciocinar. É esta competência argumentativa que se assumecomo requisito da retórica a um tempo eficaz, racional elivre. E só nestes termos se pode falar, como o faz Rui Grácio,de uma ética da discussão, “fundada no princípio da tole-rância, no pluralismo e na rejeição da violência”52.

Como já se viu, pode acontecer que a retórica conduzaà manipulação, mas o mesmo se dirá da discursividade emgeral, pois como tão incisivamente sustenta Meyer, “cen-surar o discurso por ser manipulador reduz-se na realidadea censurar o discurso por ser. Porque está na natureza dadiscursividade apresentar-se desde logo como um responder,como resposta, tal como está nas mãos dos homens decidirencarar ou não esse facto, aceitá-lo ou não, jogar ou nãoo jogo, procurar os problemas subjacentes, enfim, pronun-ciar-se livremente ou fiar-se no que os outros lhe propõem,muitas vezes em função de interesses próprios”53. A situaçãoretórica será pois apenas mais uma entre tantas outrassituações de vida em que os homens surgem no confronto

_______________________________51 - Cit. in Grácio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edições ASA,

1993, p. 14852 - Grácio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edições ASA, 1993,

p. 10353 - Meyer, M., As bases da retórica, in Carrilho, M. (org.), Retórica

e Comunicação, Porto: Edições ASA, 1994, p. 70

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de ideias, crenças, valores, opiniões e interesses, à procuradaquilo a que Norbert Elias chama de “um certo equilíbrioentre conflito e colaboração”54 nas relações que mantêm entresi. E como este mesmo autor acentua, não se pode imaginarestas relações “como algo de semelhante a uma relação entrebolas de bilhar: batem umas nas outras e depois distanciam--se novamente umas das outras. Exercem, assim se diz, umefeito recíproco entre si”55. Os fenómenos de interdepen-dências que se observam no encontro de pessoas, são algocompletamente distinto desse tipo de “acção recíproca” dassubstâncias, pois não se resumem nunca a uma convergênciaou divergência, meramente aditivas. Para ilustrar a distinção,Norbert Elias recorre a uma figura relativamente simplesde relações humanas, a conversação, descrevendo o processoque, regra geral, a caracteriza: “um parceiro fala; o outroreplica. O primeiro responde; o outro replica novamente.Se observarmos não só o enunciado isolado como tambéma réplica ao mesmo, mas todo o diálogo no seu curso comoum todo, a sequência dos pensamentos entrançados, a formacomo mutuamente se movem numa interdependência cons-tante, deparamos com um fenómeno que não pode serdominado de maneira satisfatória, nem pelo modelo físicode uma acção recíproca das esferas, nem mesmo pelo fi-siológico da relação entre o impulso e a reacção. Os pen-samentos tanto dum falante como do outro podem mudarno decurso da conversa”56. Ora a retórica contém em si achave compreensiva desse fenómeno de inter-influências emque, basicamente, se funda toda a conversação, no decursoda qual, em cada um dos participantes, se formam pensa-mentos que neles não existiam antes ou se desenvolvem outros

_______________________________54 - Elias, N., A sociedade dos indivíduos, Lisboa: Publicações D. Quixote,

1993, p. 19955 - Ibidem, p. 4256 - Ibidem

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que já existiam, mas numa formulação diferente. A formaçãoe o desenvolvimento de tais pensamentos, lembra Norbert Elias,“não se explica contudo apenas através da estrutura de umparceiro ou de outro mas pela relação entre este e aquele”57.Relação essa, frisemos, de que é indissociável o elementopersuasivo, como factor determinante para a adesão total ouparcial ao pensamento do outro. É desse modo que os homens,interagindo uns com os outros, redefinem mutuamente o seuespaço de convivência e tecem os consensos que lhes pro-porcionam a estabilidade necessária a uma vida em comum.

Desfeita a esperança de que a razão, a experiência oua revelação, permitam chegar à resolução de todos osproblemas, os homens são chamados a deliberar sobre osvalores e as normas de sua própria criação, pelo recursoa uma discussão que não garante a verdade nem tão poucoa justiça ideal, mas que radica na mais característica dig-nidade a que podem aspirar: o respeito pelo outro, o sentidoda responsabilidade, o exercício da sua liberdade. “Quandonão há nem possibilidade de escolha nem alternativa, nãoexercemos a nossa liberdade”, diz Perelman58. Mas a escolhaa que aqui se alude, não é uma escolha arbitrária, levianaou comodista. É sempre a que se julgue corresponder à melhorescolha, a preferível entre todas as possíveis. É além disso,uma escolha que permanecerá sempre discutível, apesar dese considerar a mais eficaz face às determinações concretasem que ocorre e tendo em consideração o específico pro-blema que urge resolver. É que o critério de eficácia, a quese subordina a retórica, não permite, obviamente, distinguirentre a argumentação de um charlatão e a de um oradorque apela à compreensão e sentido crítico do auditório, desdelogo, porque o verdadeiro charlatão é aquele que se faz passar

_______________________________57 - Elias, N., A sociedade dos indivíduos, Lisboa: Publicações D. Quixote,

1993, p. 4358 - Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 90

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por não o ser. Daí a responsabilidade que de uma qualquerescolha sempre deriva quer para quem a propõe, quer paraquem a aceita. Podemos então retomar, agora de um novoângulo, a questão da co-responsabilidade do manipulador edo manipulado, num eventual uso indevido da retórica.

Defendemos já a ideia de que, face à actual compreensãodo fenómeno retórico, não se deve isentar o manipulado daquota de responsabilidade que lhe cabe pela manipulaçãode que é alvo. É essa mesma ideia que aqui se pretendereafirmar, à luz do binómio responsabilidade-liberdade quepreside a toda a escolha num contexto retórico. Com efeito,parece que endossar todas as culpas ao manipulador seriao mesmo que fazer do manipulado um mero autómato, umser sem discernimento, sem capacidade de reacção, numapalavra, um não-humano. Uma tal posição, porém, não sóse mostra moralmente condenável como estaria igualmentecontra o espírito que enforma todo o movimento da novaretórica, que recordemos, desde o início se afirma como umaretórica, antes de mais, verdadeiramente humanista. De resto,nunca a ausência de manipulação garante o bem fundadodas escolhas consensuais. Para que uma questão retóricareceba a melhor solução possível, exige-se sempre algo maisdo que um orador técnica e eticamente irrepreensível, nãosendo mesmo descabido afirmar que a qualidade da própriaretórica depende mais da capacidade crítica dos auditóriosdo que da eloquência dos respectivos oradores. No mesmosentido, aliás, se pronuncia Perelman, nesta passagem doseu livro Retóricas: “Qual será então a garantia de nossosraciocínios? Será o discernimento dos ouvintes aos quaisse dirige a argumentação”59. O autor explica porquê: “todaa eficácia da argumentação é relativa a um certo auditório.E a argumentação que é eficaz para um auditório de genteincompetente e ignorante não tem a mesma validade quea argumentação que é eficaz para um auditório competente.

_______________________________59 - Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 87

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Daí resulta que derivo a validade da argumentação e a forçados argumentos da qualidade dos auditórios para os quaistais argumentos são eficazes”60. Parece, por isso, que nãose justifica cometer ao orador uma especial posição devantagem ou sobrepoder perante aqueles a quem se dirige,pelo menos, na perspectiva de que daí decorra, inevitavel-mente, que o auditório fica automaticamente privado decontrolar a situação retórica. Pelo contrário, é razoável suporque, devido ao princípio da inércia de que nos fala Perelman,os ouvintes tendam para apreciar e reagir da mesma formaque anteriormente, em situações análogas, se daí não re-sultarem consequências visivelmente funestas. Logo, emprincípio, o ónus da mudança nos costumes e na formahabitual de um auditório apreciar e decidir sobre determi-nado tema, forçoso é concluir, recai, invariavelmente, sobreo orador. E este, por mais que domine as técnicas retóricas,por muito eloquente ou sedutor que se mostre, nunca temantecipadamente garantida a adesão às suas teses. E porquê?Porque numa relação retórica é aquele que toma a palavraque se sujeita a exame, e quem aprova ou reprova, quemse constitui como júri de avaliação do seu desempenho sãoos que o escutam, é o auditório. É sempre este que detéma ultima palavra, o poder de decisão. Decisão sobre a bondadeda tese que lhe é apresentada e, correlativamente, sobre apertinência e adequação das razões invocadas pelo oradore até, sobre a postura assumida por este último no decorrerda sua argumentação.

Algo de parecido se passa na política. Os políticos falam,discutem entre si, apresentam os seus projectos, proclamamo seu sentido de justiça, a sua competência, mas é o chamadopaís real que, em última instância, decide sobre o valor dassuas propostas e candidaturas. Tomemos como exemplo, osdebates que as estações de televisão habitualmente promo-

_______________________________60 - Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 313

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vem em tempo de campanha eleitoral, onde os represen-tantes das diversas forças políticas se mostram especialmen-te pródigos nas chamadas promessas. Precisamente por setratar de promessas, ou seja, do mero anúncio das acçõesa desenvolver, a preocupação de cada representante políticoé a de criar o maior efeito de presença possível, a fim deque aos espectadores não passe despercebida a importânciae o valor com que as rotulam. Sem dúvida que a criaçãodesse efeito de presença, é um recurso retórico, como o sãomuitas outras técnicas argumentativas utilizadas pelos par-ticipantes em tais debates que, desse modo, poderão serdesignados como debates retóricos. Só que não basta dotaro discurso de forma ou estrutura retórica, para que a retóricase realize. Mais do que os estilos de linguagem ou técnicasde dizer a que se recorra é preciso que os argumentos seesgrimam ao nível das próprias razões substantivas, que osparticipantes se subordinem a um confronto pluralista deideias, teses ou propostas, que se empenhem honestamentena procura consensual da solução preferível, ao invés de,como tantas vezes sucede, se predisporem, desde o iníciodo debate, a fazer vencer a sua posição contra tudo e contratodos. Numa palavra, é necessário que os intervenientes, semquebra da convicção com que defendem as suas propostas,revelem abertura às eventuais críticas ou objecções que lhessejam dirigidas e que podem, eventualmente, enriquecer assoluções por si apresentadas. Ora como sabemos, nada dissose passa em tais debates, pois neles cada representante políticocostuma bater-se até à exaustão pelas soluções que o seupartido propõe, mas por regra, ignora ostensivamente aspropostas dos restantes partidos, tal como se elas nãopudessem conter um único aspecto ou uma única medidaaceitáveis. Logo, estamos aqui em sede da já referida retóricanegra, mais ou menos manipuladora. O mesmo se diga quantoao tipo de relacionamento oposição-governo que se instalaapós as eleições, em que o confronto surge normalmenteviciado pelos interesses de cada facção: a oposição denun-ciando as promessas que o governo ainda não cumpriu, e

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o governo acentuando as promessas que já concretizou. Doponto de vista da retórica, nenhum destes dois comporta-mentos é exemplar, pois ambos ficam muito aquém do queseria necessário para o cabal esclarecimento dos respectivoseleitores. Mas ainda assim, será possível afastar destes aresponsabilidade pela escolha que fizeram livremente atra-vés do seu voto? Não detêm eles também a última palavrana eleição dos governantes? Eis aqui a analogia que se podefazer entre a política e a retórica. Os eleitores, na primeirae o auditório na segunda, não se podem alhear das obri-gações que lhe são próprias: escutar a palavra que lhes édirigida, descobrir as razões expressas mas também asimplícitas de quem lhes fala, analisar criticamente as so-luções propostas e fazer a escolha preferível. Fazer, afinal,aquilo a que já são chamados no seu quotidiano, quandonegoceiam a compra de um televisor, quando entram numhipermercado, quando discutem política com um amigo:apreciar a valia de uma proposta, resistir à seduçãoconsumista, argumentar contra ou a favor de uma causa etomar decisões.

Desvalorizar então a retórica por ser passível de mani-pulação, seria equivalente a negar a política só porque algunsdos seus agentes recorrem a práticas mais ou menos cen-suráveis, e supor, além disso, que os destinatários de taispráticas, são potenciais vítimas indefesas sem qualquer outraalternativa que não seja a de caírem nas garras do discursoardiloso. Mas o que, tanto da retórica como da política, sedeve dizer, mais exactamente, é que os eventuais usosabusivos ou manipuladores que nelas têm lugar sempre seinscrevem e têm o seu ponto de partida na dimensão éticados seus protagonistas, não sendo a retórica, como a política,mais do que campos particulares da sua manifestação.

É que nem a eventual ignorância do auditório podejustificar um preconceito especialmente negativo contra aretórica. Certamente que é desejável a maior simetria possívelentre as posições de quem fala e quem escuta, entre quem

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propõe e quem avalia, no que se refere à formação culturale capacidade crítica necessárias à melhor escolha possível.Um auditório menos preparado perante um orador que dominanão só a técnica de argumentar mas também o foro da questãoem apreço, pode não ver motivos para regatear a confiançaem quem lhe parece tão senhor da situação. E há nisso umacerta dose de risco, sem dúvida, como haverá, sempre quese tome uma decisão ou se tenha por válido algo que, poresta ou aquela razão, não tivemos a possibilidade de com-provar. Mas porque deveria a confiança assumir umaconotação tão “perigosa” só porque ocorre no seio da retórica?A verdade é que confiança e risco são, e sempre foram,inerentes ao existir humano, tanto no que diz respeito à acçãocomo ao pensamento. Por mais que se estude, por mais quese aprenda, aquilo que conhecemos é ínfimo se comparadocom o que continuamos a ignorar. Além disso, regra geral,sabemos pouco sobre o que sabemos. Só a confiança nasfontes desse saber nos proporciona a indispensável estabi-lidade psicológica. Como diz Giddens, até “a confiança básicana continuidade do mundo tem de alicerçar-se na simplesconvicção de que ele continuará e isto é algo de que nãopodemos estar inteiramente seguros”61. Que fazemos nós aolongo da vida senão confiar nos outros? Não utilizamos nodia-a-dia um conjunto de conhecimentos cujo fundamentoe validade nunca nos foi dado testar? O que são as nossasrelações sociais senão “laços baseados na confiança, umaconfiança que não é predeterminada mas construída, e emque a construção envolvida significa um processo mútuo deautodesvendamento”?62. Além disso quando, por exemplo,acendemos uma luz, abrimos uma torneira ou ligamos atelevisão, não estamos a fazer mais do que reconhecer anossa confiança naquilo a que Giddens chama de sistemas

_______________________________61 - Giddens, A., Consequências da Modernidade, Oeiras: Celta Editora,

1996, p. 10262 - Ibidem, p. 85

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abstractos, que organizam e asseguram uma prestação deserviços cuja concretização ou funcionamento nem ousamospôr em causa. Isso mostra como cada vez mais nos vemosforçados a confiar em princípios impessoais e em pessoasanónimas que estão por detrás desses sistemas e organiza-ções. Faria sentido confiar em todas estas pessoas ausentese não confiar num orador que temos à nossa frente, desen-volvendo uma argumentação que podemos acompanhar passoa passo, refutar e sancionar com a nossa eventual não adesão?

Sublinhe-se que, na retórica, o auditor é livre de concederou não essa confiança, podendo igualmente condicionar osentido da sua decisão em função da maior ou menorconfiança que lhe mereça o orador e a proposta que estelhe apresenta. Tem, inclusivamente, a possibilidade de contra--argumentar, propor alterações à proposta inicial, participarna sua reelaboração e contribuir, desse modo, para o en-riquecimento da solução que virá a aprovar, o que nem sempreacontece com os referidos sistemas abstractos, nomeadamen-te aqueles em que predominam os chamados contratos deadesão. Energia eléctrica, leasing e seguros, são apenas algunsexemplos de actividades sócio-económicas onde vigoram taiscontratos-tipo cuja principal característica reside no facto doutente apenas poder exercer uma versão mitigada do seudireito de contratar, já que a elaboração de todo o clausuladocompete exclusivamente à entidade que presta o serviço, oque faz com que à outra parte contratante, não reste outraprerrogativa que não seja a de aderir ou não. Ao contrário,a retórica configura uma liberdade individual, no sentidoconvencional definido por Villaverde Cabral como indo “daausência de constrangimentos (...) até à liberdade de esco-lha”63, o que proporciona, sem dúvida, bases mais sólidaspara a criação de um clima de confiança entre osinterlocutores. Contudo, a natureza do próprio acto de

_______________________________63 - Cabral, M., in Rebelo, J. (Org.), Saber e poder, Lisboa: Livros e

Leituras, 1998, p. 109

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argumentar faz com que subsistam sempre algumas dificul-dades, duas das quais saltam imediatamente à vista. Umaprimeira dificuldade assenta na diversidade do humano, quetem a ver com a não homogeneidade das característicasbiológicas e psico-sociais que estão por detrás das desiguaiscompetências argumentativas e atitudes dos sujeitos daretórica. Mas como bem sustenta Joaquim Aguiar, “o tudoigual, o somos todos primos de toda a gente, leva à morte.Não há liberdade sem risco”64. A cada um e só a cada umcompete decidir sobre o grau de investimento cultural a fazerna sua auto-formação, em função das necessidades e am-bições pessoais que também só ele tem legitimidade paradefinir. E se assim é, assumir a responsabilidade pelos seusêxitos e fracassos é uma justa contrapartida dessa liberdade.Outra dificuldade da relação retórica, de que já nos ocu-pamos mas sobre a qual se justifica agora um maioraprofundamento, é o problema da mentira e do engano, cujapossibilidade nunca está, à partida, afastada.

Mendacium est enunciatio cum voluntate falsum enuntiandi– assim definia Santo Agostinho a mentira. E, de facto, mentiré dizer o falso com a intenção de enganar. Mas a aparentesimplicidade desta expressão poderia levar-nos a descurara problematicidade que a encerra, nomeadamente quanto aoque se deve entender por falso e por intenção de enganar.Assim, dizer o falso não significa tão somente dizer ocontrário do verdadeiro. No que à mentira concerne, dizerfalso integra igualmente o dizer o diferente e até, dizer oque nem é falso nem verdadeiro. Por outro lado, limitar odiscurso da mentira àquele em que o respectivo autor tema intenção de enganar o ouvinte, pressupõe, desde logo, aexclusão do discurso meramente equivocado, ou seja, aqueleem que o orador diz, sinceramente, algo de errado, que, no

_______________________________64 - Aguiar, J., in Cabral, M., in Rebelo, J. (Org.), Saber e poder, Lisboa:

Livros e Leituras, 1998, p. 121

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entanto, tem como certo. Quando o sujeito que fala estáconvencido de que diz a verdade, ele não mente, apenaserra. Como assinala Castilla del Pino65, para que estejamosperante uma mentira é necessário que quem fala, preenchaas seguintes condições:

a) Ter consciência do que é o certob) Ter consciência de que não é o certo que dizc) Ter a intenção de enganard) Ter a intenção de ser considerado sincero

Como se pode ver, as três primeiras condições configu-ram uma situação de má-fé perante o interlocutor, na medidaem que o sujeito que fala tem consciência de que não diza verdade e ainda assim, fá-lo, porque deliberadamentepretende enganar aquele a quem se dirige. Note-se que, aocontrário do que pode parecer, as duas primeiras condiçõessão por si só insuficientes para que se possa caracterizaruma situação de má-fé. Basta pensar no caso do professorque enuncia aos seus alunos uma solução falsa (apesar deconhecer a verdadeira) com o único propósito de testar oo seu saber ou de neles estimular o espírito de descoberta,na resolução de um dado problema. Logo, apenas a intençãode enganar torna a acção de dizer o falso, inequivocamentecensurável. Resta analisar a quarta condição, ou seja, aintenção do sujeito que fala em ser tomado como sinceropor quem o escuta. De certa forma, temos aqui a alusãoa uma preocupação muito em voga nos nossos dias que éa de manter a imagem e que constitui um filão sistema-ticamente explorado pela publicidade mediática. Manter aimagem, claro está, mas somente quando dela se possamretirar alguns dividendos, mesmo quando estes se restrinjamao mais elementar nível do reconhecimento pessoal. Mas

_______________________________65 - del Pino, C., Los discursos de la mentira, in del Pino, C. (Org.),

El discurso de la mentira, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 164

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não é seguramente este tipo de reconhecimento que, emprimeira linha, busca aquele que quer fazer passar umamentira, na retórica. Os seus objectivos são bem maispragmáticos: ele pretende, antes de mais, valer-se dacredibilidade de que goza para mais fácil e eficazmente fazeraceitar como verdadeiro aquilo que sabe ser falso. Estamosaqui, por assim dizer, numa aplicação pela negativa, da ligaçãoacto-pessoa de que nos fala Perelman. O interlocutor quefica com a sensação de que está a escutar alguém cujaintegridade moral é inatacável tenderá a deduzir que os seusactos são igualmente íntegros. Confia na boa-fé de quemlhe fala, age por sua parte com real boa-fé e predispõe-sea aceitar naturalmente como verídico tudo o que lhe é ditopor essa mesma pessoa. Torna-se assim presa fácil da mentira,pois regra geral, só mente quem consegue aparentar que diza verdade. E ao conseguir manter a sua imagem decredibilidade, mesmo mentindo, o mentiroso, como queprepara, inclusivamente, o terreno para novas mentiras,reforçando no seu interlocutor uma presunção de veracidadepara todos os seus futuros discursos, sejam eles falsos ouverdadeiros. Com efeito, o mentiroso que é desmacarado,não só vê fugir-lhe os efeitos que da sua mentira pretendiaretirar como terá dificuldades acrescidas, no futuro, em sefazer acreditar, mesmo quando pronuncie um discursoverídico, pois cabe aqui lembrar o provérbio cesteiro quefaz um cesto, faz um cento.

Há por isso que fazer uma distinção que, além de serevestir da maior importância para a compreensão dofenómeno da manipulação na retórica, parece vir confirmara perspectiva que aqui vimos assumindo e que outra nãoé, senão a de se considerar que a responsabilidade por talmanipulação deve ser repartida e co-assumida pelomanipulador e pelo manipulado. É que uma coisa é a mentira,outra, o engano. Se há engano, é porque houve mentira,mas – e este é o ponto que pretendemos salientar – da mentiranão tem que, obrigatoriamente, decorrer o engano. Mentir

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é um propósito, uma intenção. Enganar é algo mais, é obtero resultado ou o efeito intentado. A mentira é do foro domentiroso. O engano está sobe a jurisdição do enganado.O mentiroso pode mentir sempre, mas só engana quandoalguém se deixa enganar. Há sempre, portanto, uma divisãode responsabilidades na manipulação da retórica e, de modoalgum, aquele que escuta pode furtar-se ao ónus de detectaras possíveis transgressões ou rupturas do contrato de sin-ceridade que torna possível tanto a retórica como, afinal,toda e qualquer outra forma de comunicação. Como dizLozano, “que a mentira possa supor uma ruptura do contratofiduciário corresponde unicamente à vontade do destinatárioou à sua interpretação, sempre regida pelo ‘crer’ que é, nãoem vão, uma modalidade ‘subversiva’, já que se pode crertanto no possível como no impossível, no verdadeiro comono falso. E, porque não, também na mentira”66.

Este modo de olhar a mentira, pressupõe, naturalmente,um juízo de vincada negatividade ético-social e discursiva.Mas a questão que agora se coloca é a de saber se, aindaassim, poderemos ignorar o papel que a mentira desempenhaao nível da praxis. Uma primeira advertência, a este res-peito, parece vir de Simel, para quem “o valor negativo queno plano ético tem a mentira, não deve enganar-nos sobrea sua positiva importância sociológica, na conformação decertas relações concretas”67. Ora foi precisamente a partirde uma perspectiva sociológica que Goffman estudou aestrutura dos encontros em sociedade, aqueles em que “aspessoas se vêem na presença física imediata umas dasoutras”68, pondo em marcha estratégias de relacionamento

_______________________________66 - Lozano, J., La mentira como efecto de sentido, in del Pino, C. (Org.),

El discurso de la mentira, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 14067 - Cit. in Carmen, M., La máscara y el signo:modelos ilustrados, in

del Pino, C. (Org.), El discurso de la mentira, Madrid: AlianzaEditorial, 1998, p. 81

68 - Goffman, E., A Apresentação do eu na vida de todos os dias, Lisboa:Relógio D’Água,1993, p. 297

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que pouco devem a uma atitude de sinceridade integral. Paraeste autor o factor-chave na estrutura de tais encontros éa manutenção de uma definição da situação que deve serexpressa e sustentada perante uma multiplicidade de rupturasou perturbações potenciais. Daí a sua analogia com adramatização teatral, já que “os indivíduos que conduzema uma interacção cara a cara no palco de um teatro têmque dar resposta às mesmas exigências de base que encon-tramos nas situações reais”69. É quanto basta para se vis-lumbrar aqui não só a possibilidade da mentira mas tambéma sua própria relativização, quando encarada no concretocontexto social em que ocorre.

Seguindo de perto o ponto de vista de Goffman, teremosde dizer que é através da definição de situação de que nosfala, que os participantes de um auditório concreto fazemuma primeira formulação do que o orador espera deles e,igualmente, do que poderão eles esperar do orador. A maiorou menor segurança dessa formulação dependerá, é certo,da quantidade de informação disponível sobre o orador, maspor maior que esta seja, não será nunca possível prescindirde um complexo jogo de inferências, a partir daquilo queo orador transmite. E é aqui que podemos situar o pontocrítico da definição da situação. É que o orador, em funçãodo seu particular interesse ou objectivo, pode mentir, re-correr a um discurso fraudulento, à dissimulação, tanto maisque também ele faz as suas inferências sobre o auditórioque tem à sua frente, além de nunca ser descartável a hipótesede facilitar ou impedir intencionalmente o processo inferencialdos seus interlocutores. Como minuciosamente descreveGoffman, “pode querer que eles façam uma grande ideiaa seu respeito, ou que pensem que ele faz deles uma grandeideia, ou que se dêem conta do modo como ele realmenteos sente, ou que não cheguem a qualquer impressão demasi-

_______________________________69 - Goffman, E., A Apresentação do eu na vida de todos os dias, Lisboa:

Relógio D’Água,1993, p. 297

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ado precisa; pode querer garantir uma harmonia suficientepara que a interacção se mantenha, ou, pelo contrário, enganá--los, desorientá-los, confundi-los, desembaraçar-se deles, opor--se-lhes ou insultá-los”70. Ao orador, interessará, pois, con-trolar o comportamento dos que o escutam, especialmenteno que respeite ao modo como lhe respondam ou como otratem. Como chegar a esse controlo? Sem dúvida, exer-cendo maior ou menor influência sobre a definição que osoutros formulam, para o que se exprimirá de maneira aproporcionar-lhes a impressão que os levará a agiremvoluntariamente de acordo com a sua própria intenção ouplano. Resta saber se ele próprio mantém um controlo totalsobre o acto de se expressar.

Partindo da clássica distinção entre dois tipos de comu-nicação, expressões transmitidas e expressões emitidas, asprimeiras, predominantemente verbais, e as segundas, pre-dominantemente não verbais, Goffman - para quem o in-divíduo, regra geral, se apresentará do modo que lhe é maisfavorável - constata que “os outros poderão dividir em duaspartes aquilo de que são testemunhas; numa parte, que érelativamente fácil para o indivíduo manipular à sua von-tade, e que consiste sobretudo nas suas declarações verbais,e numa outra parte, relativamente à qual ele parece disporde um menor controlo ou a que dá menos atenção, e queconsiste sobretudo nas expressões que emite”71. E se assimé, a maior ou menor discrepância frequentemente observadaentre o que o manipulador transmite verbalmente e aquiloque ele emite num registo não verbal, constitui para ocandidato a manipulado forte indício de que poderá estarperante uma mentira ou tentativa de manipulação. Logo, umavez detectado tal indício, manter o mesmo nível de creduli-

_______________________________70 - Goffman, E., A Apresentação do eu na vida de todos os dias, Lisboa:

Relógio D’Água,1993, p. 1471 - Ibidem, p. 17

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dade perante o orador em causa, será, de certa forma, sujeitar--se ao engano, por sua conta e risco.

Trata-se aqui, portanto, de descobrir se o orador está ounão a simular apenas um comportamento espontâneo, parafazer crer numa sinceridade que, de facto, não está presenteno seu discurso. A tarefa, não sendo fácil, estará, contudo,ao alcance dos mais avisados, tanto mais que, segundoGoffman, “a arte de penetrar no esforço calculado de existirum comportamento não intencional por parte do indivíduo,parece mais desenvolvida do que a nossa capacidade demanipulação do comportamento próprio, de tal maneira que,seja qual for a fase alcançada pelo jogo de informação, atestemunha estará provavelmente em vantagem sobre oactor...”72.

2. - Da persuasão retórica à persuasão hipnótica

2.1. - A emoção na retórica

Apesar de ter identificado a nova retórica como teoriageral do discurso persuasivo “que visa ganhar a adesão, tantointelectual como emotiva, de um auditório...”73 e de nas suasprincipais obras - Tratado da argumentação, O império daretórica e Retóricas - ter recorrido frequentemente a expres-sões tais como persuasão, discurso persuasivo, linguagempara persuadir e influenciar com a sua argumentação,Perelman nada ou quase nada nos diz sobre a persuasão.E contudo, é o próprio Perelman que reconhece a insufi-ciência da estrutura argumentativa quer para explicar querpara provocar a adesão do auditório: “quando se trata deargumentar, de influenciar, por meio do discurso, aumentar

_______________________________72 - Goffman, E., A Apresentação do eu na vida de todos os dias, Lisboa:

Relógio D’Água,1993, p. 1973 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 172

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a intensidade de adesão de um auditório a certas teses, jánão é possível menosprezar completamente, considerando--as irrelevantes, as condições psíquicas e sociais sem as quaisa argumentação ficaria sem objecto ou sem efeito”74. Nãose trata pois de uma intencional ocultação dos factores “nãointelectuais” sempre presentes no acto persuasivo e a que,de resto, alude logo nas primeiras páginas do seu Tratadoda argumentação quando deixa bem claro que a adesãoretórica é de natureza tanto intelectual como emotiva massim de uma opção pessoal que cedo anuncia e justifica: “nossoestudo, preocupando-se sobretudo com a estrutura da argu-mentação, não insistirá, portanto, na maneira pela qual seefectua a comunicação com o auditório”75.

Mas não será a estrutura da argumentação, ela própria,uma maneira pela qual se efectua a comunicação com oauditório? Salvo melhor opinião, a resposta só pode serafirmativa, pelo que se a intenção fica clara, o mesmo jánão sucede com a justificação. É de admitir que a esta suaposição não seja de todo alheia a intenção de se demarcarda propaganda e dos meios persuasivos de duvidosa legi-timidade a que aquela muitas vezes recorre. Pelo menos,é o que se pode inferir do modo comparativo como Perelmandelimita o condicionamento do auditório no interior daretórica. “Um dos factores essenciais da propaganda (....) éo condicionamento do auditório mercê de numerosas e variadastécnicas que utilizam tudo quanto pode influenciar o com-portamento. Essas técnicas exercem um efeito inegável parapreparar o auditório, para torná-lo mais acessível aos argu-mentos que se lhe apresentarão. Esse é mais um ponto devista que a nossa análise deixará de lado: trataremos apenasdo condicionamento do auditório mediante o discurso...”76.

_______________________________74 - Perelman, C., Tratado da argumentação, S. Paulo: Martins Fontes,

1999, p. 1675 - Ibidem, p. 676 - Ibidem, p. 9

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Uma outra razão que pode ter levado Perelman a cingir--se praticamente ao estudo da estrutura racional da argu-mentação, tem a ver com a sua confessada preferência peloapelo à razão em desfavor do apelo à vontade. Essa pre-ferência poderemos descortiná-la na forma como justificaa importância particular que no seu Tratado da argumen-tação irá conceder às argumentações filosóficas, as quais,no seu entender, são “tradicionalmente consideradas as mais‘racionais’ possíveis, justamente por se presumir que sedirigem a leitores sobre os quais a sugestão, a pressão ouo interesse têm pouca ascendência”77. Não admira por issoque, de quando em vez, nos fale de persuasão racional,no aparente propósito de esconjurar definitivamente toda equalquer hipótese de actuação directa sobre a emoção doauditório. É o que podemos ver nas suas referências aos“ataques dos filósofos à teoria da persuasão racionaldesenvolvida nas obras de retórica”78 ou quando, a propósitoda oposição entre argumentação e violência, vem afirmarque “o uso da argumentação implica que se tenha renunciadoa recorrer unicamente à força, que se dê apreço à adesãodo interlocutor, obtida graças a uma persuasão racional...”79.

Percebe-se aqui uma certa preocupação de Perelman emevitar, desde logo, que a persuasão da retórica, melhordizendo, da “sua” nova retórica, pudesse ser vista como maisuma entre as muitas formas de manipulação emocional,sabendo-se, como se sabe, que esta última surge habitual-mente associada ao cercear da liberdade do interpelado,através de uma pressão ou bloqueamento psicológico quetendem para a redução da sua capacidade crítica e para oinerente conformismo com a solução que lhe é apresentada.

_______________________________77 - Perelman, C., Tratado da argumentação, S. Paulo: Martins Fontes,

1999, p. 878 - Ibidem, p. 5179 - Ibidem, p. 61

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Ainda assim, surpreende o seu quase total silêncio sobrea persuasão.

Antes de mais, porque é o próprio Perelman quemreconhece a presença da emoção e até da sugestão na própriarelação argumentativa, como se pode confirmar por esta suapassagem na Retóricas, onde depois de observar que a áreada argumentação retórica não pode ser reduzida nem aoargumento lógico nem à sugestão pura e simples, caracterizadeste modo os dois possíveis caminhos de investigação: “Aprimeira tentativa consistiria evidentemente em fazer daargumentação retórica uma lógica do provável (....) a se-gunda tentativa consistiria em estudar os efeitos sugestivosproduzidos por certos meios verbais de expressão...”80.Tratando-se, provavelmente, da sua mais explícita aceitaçãoda emocionalidade que os argumentos provocam no audi-tório, não é, porém, a única. Com efeito, já no seu Tratadoda Argumentação admitira que “a intensidade da adesão quese tem de obter não se limita à produção de resultadospuramente intelectuais, ao facto de declarar que uma teseparece mais provável que outra, mas muitas vezes seráreforçada até que a acção, que ela deveria desencadear, tenhaocorrido”81. Ou seja, não só a argumentação produz deter-minadas alterações emocionais no auditório, como taisalterações são voluntariamente provocadas, quando o oradoras considere necessárias para obter a adesão à respectivatese ou proposta.

Compreende-se portanto que Perelman tenha limitado oâmbito da sua investigação aos “recursos discursivos parase obter a adesão dos espíritos”82, mas já parece poucoconsistente que depois de ter admitido que a tentativa deestudar os efeitos sugestivos produzidos pela argumentação_______________________________80 - Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 8281 - Perelman, C., Tratado da argumentação, S. Paulo: Martins Fontes,

1999, p. 5582 - Ibidem, p. 8

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poderia ser fecunda, nos venha dizer que isso, porém,“deixaria escapar o aspecto de argumentação que queremos,precisamente, pôr em evidência”83. Principalmente se, comopensamos, a dissociação operada entre os elementos inte-lectuais e emocionais da argumentação, levar a uma ar-tificial fragmentação do acto retórico que só pode dificultara comprensão global deste último.

Com efeito se a eficácia da retórica é medida pela adesãodo auditório, o orador precisará de avaliar previamente aforça dos argumentos a utilizar, tanto do ponto de vista doraciocínio em que se estruturam como do seu impactoemocional. E isto porque a argumentação do orador não sedirige apenas à inteligência dos seus ouvintes, ou seja, aquelanão é exclusivamente recebida por uma mente puramenteracional. O orador fala para pessoas, não fala para máquinas.Fala para pessoas que pensam e sentem e que, segundo osmais recentes dados científicos disponíveis, analisam osargumentos e tomam as suas decisões com base não só noraciocínio puro mas também na emoção e na afectividade.O que implica, a nosso ver, que se encare a adesão de umauditório como um acto complexo que o mero valor lógicoou quase lógico de um argumento não permite esclarecer oujustificar. Sendo certo, como sustenta Perelman, que a adesãodo auditório representa a comunhão das mentes, importa porém,esclarecer previamente de que mentes falamos.

Ora, como diz António Damásio, não parece sensato“excluir as emoções e os sentimentos de qualquer concepçãogeral da mente, muito embora seja exactamente o que váriosestudos científicos e respeitáveis fazem quando separam asemoções e os sentimentos dos tratamentos dos sistemascognitivos”84. E referindo-se a tais estudos, o mesmo autor

_______________________________83 - Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 8284 - Damásio, A., O Erro de Descartes, Mem Martins: Publicações Europa-

América, (15ª. ed.), 1995, p. 172

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afirma ainda: “as emoções e os sentimentos são consideradosentidades diáfanas, incapazes de partilhar o palco com oconteúdo palpável dos pensamentos, que, não obstante,qualificam (...). Não partilho estas opiniões. Em primeiro lugar,é evidente que a emoção se desenrola sob o controlo tantoda estrutura subcortical como da estrutura neocortical. Emsegundo, e talvez mais importante, os sentimentos são tãocognitivos como qualquer outra imagem perceptual e tãodependentes do córtex cerebral como qualquer outra imagem”85.

Interessa aqui reter sobretudo esta ideia de que “ossentimentos são tão cognitivos como qualquer outra imagemperceptual”, por ser fácil adivinhar o seu alcance no âmbitode um estudo sobre a persuasão. É certo que já o filósofoda corrente fenomenológica, Robert Solomon, tinha defen-dido no seu livro The Passions.The Myth and Nature ofHuman Emotions (1976), que as emoções desempenham umpapel fundamental nos nossos juízos ou decisões: “diz-seque as emoções distorcem a nossa realidade; eu defendoque elas são responsáveis por ela. As emoções, dizem,dividem-nos e desencaminham-nos dos nossos interesses; eudefendo que as emoções criam os nossos interesses e osnossos propósitos. As emoções, e consequentemente aspaixões em geral, são as nossas razões na vida. Aquilo aque se chama ‘razão’ são as paixões esclarecidas, ‘ilumi-nadas’ pela reflexão e apoiadas pela deliberação perspicazque as emoções na sua urgência normalmente excluem”86.

Esta intuição sobre a racionalidade das emoções foi aliáspartilhada por diversos outros autores, cujas obras, entre asquais se destaca The Rationality of Emotion do filósofo luso--canadiano Ronald De Sousa (1991), vieram pôr em causaa clássica dicotomia entre razão e emoção. Mas é com_______________________________85 - Damásio, A., O Erro de Descartes, Mem Martins: Publicações Europa-

América, (15ª. ed.), 1995, p. 17286 - Cit. in Goleman, D., Inteligência Emocional, Lisboa: Círculo dos

Leitores, 1996, p. 11

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Damásio que a impossibilidade de separar a racionalidadedas emoções surge devidamente caucionada pela metodologiacientífica. Em O Erro de Descartes ele dá-nos conta doimportante trabalho de investigação que há duas décadas vemdesenvolvendo no domínio da Neurociência, o que faz cominvulgar clareza expositiva se atendermos ao rigor e àprofundidade do seu pensamento. Um bom exemplo disso,é a descrição que nos dá do momento a partir do qual seconvenceu que a perspectiva tradicional de encarar aracionalidade não poderia estar correcta. Essa perspectivaimplicava, como se sabe, o reconhecimento de uma radicalseparação entre a razão e a emoção, no pressuposto de quea cada uma corresponderiam sistemas neurológicos autóno-mos. Daí que, ao nível do pensamento, a emoção fosse tidacomo fonte perturbadora de todo o raciocínio. Sempre quese pretendesse tomar uma decisão sensata, haveria, por isso,que fazê-lo de cabeça fria. Foi exactamente este modo deolhar a relação entre a razão e a emoção que António Damásioveio pôr em causa depois de ter observado que um dos seusdoentes não conseguia resolver ou decidir adequadamentesobre pequenos e triviais problemas de carácter prático, apesarda doença neurológica que, de um dia para o outro, o vitimara,não ter afectado a sua capacidade racional:

Tinha agora (....) diante de mim, o ser mais inteligentemais frio e menos emotivo que se poderia imaginar, e, apesardisso, o seu raciocínio prático encontrava-se tão diminuídoque produzia, nas andanças da vida quotidiana, erros su-cessivos numa contínua violação do que o leitor e euconsideraríamos ser socialmente adequado e pessoalmentevantajoso (....). Os instrumentos habitualmente considera-dos necessários e suficientes para um comportamentoracional encontravam-se intactos. Ele possuía o conheci-mento, a atenção e a memória indispensáveis para tal; asua linguagem era impecável; conseguia executar cálculos;conseguia lidar com a lógica de um problema abstracto.

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Apenas um outro defeito se aliava à sua deficiência dedecisão: uma pronunciada alteração da capacidade de sentiremoções. Razão embotada e sentimentos deficientes sur-giam a par, como consequências de uma lesão cerebralespecífica, e esta correlação foi para mim bastante sugestivade que a emoção era uma componente integral da maqui-naria da razão. Duas décadas de trabalho clínico e expe-rimental com muitos doentes neurológicos permitiram-merepetir inúmeras vezes esta observação e transformar umapista numa hipótese testável87.No que mais directamente pode interessar ao estudo da

persuasão discursiva, notemos aqui como as perturbaçõesobservadas no comportamento deste indivíduo se confinamà racionalidade prática e correspondente tomada de decisão,uma e outra, nucleares no processo retórico. A primeira,porque, desde Perelman, constitui-se como fundamento elegitimação do acto de argumentar e persuadir. A segunda,porque está na base do que este mesmo autor considera sero critério de eficácia da retórica: a adesão (ou decisão deaderir). Daí que, uma nova concepção da mente, que impliqueum diferente modo de olhar a relação entre razão e emoção,seja susceptível de vir a alterar também o nosso modo habitualde pensar a persuasão.

Damásio não pretende, porém, negar o entendimentotradicional, aliás confirmado por investigações recentes, deque as emoções e os sentimentos podem, em certas circuns-tâncias, perturbar o processo normal de raciocínio. Pelocontrário, vale-se desse conhecimento adquirido para subli-nhar que precisamente por se aceitar a influência prejudicialdas emoções sobre o raciocínio é que é “ainda mais sur-preendente e inédito que a ausência de emoções não sejamenos incapacitadora nem menos susceptível de compro-meter a racionalidade que nos torna distintamente humanos

_______________________________87 - Damásio, A., O Erro de Descartes, Mem Martins: Publicações Europa-

América, (15ª. ed.), 1995, p. 13

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e nos permite decidir em conformidade com um sentido defuturo pessoal, convenção social e princípio moral”88. Defacto, à primeira vista, parece elementarmente lógico quese as emoções perturbam o raciocínio, a perturbação desteúltimo cesse ou deva cessar quando destituído dessa influ-ência emotiva. Mas foi justamente esta falsa evidência queveio a ser denunciada pela sistemática investigação deDamásio, em doentes neurológicos portadores de lesõescerebrais específicas que lhes diminuiram a capacidade desentir emoções, sem afectar contudo os instrumentos habi-tualmente considerados necessários e suficientes para umcomportamento racional. Apesar de estarem agora emcondições de raciocinar com a maior frieza, tais indivíduosnão conseguiam porém tomar as decisões mais adequadas,quer segundo os padrões socialmente convencionados, querna óptica dos seus interesses pessoais, como o faziamnormalmente antes de terem sofrido as ditas lesões.

Confirmados os factos que prefiguravam uma ruptura como modelo clássico de articular a racionalidade com a emoção,faltava porém indagar sobre a sua razão de ser, constituirum quadro explicativo, formular hipóteses, mesmo se estas,na ausência de avanços científicos e interdisciplinares sobretão particular objecto de estudo, tiverem que se limitar,temporariamente, ao domínio do senso comum e da intuição.É esse quadro explicativo que Damásio vai traçando eenriquecendo, passo a passo, ao longo desta sua obra dereferência obrigatória para quem quiser ficar a par dosfundamentos neurobiológicos da mente. Como afirmou oPrémio Nobel David Hubel, da Universidade de Harvard,“Eis, finalmente, uma tentativa, de um dos mais famososneurologistas mundiais, de sintetizar o que é conhecido acercado funcionamento do cérebro humano. O Erro de Descartes

_______________________________88 - Damásio, A., O Erro de Descartes, Mem Martins: Publicações Europa-

América, (15ª. ed.), 1995, p. 14

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merece tornar-se um clássico”89. Puras razões de economiade texto levam-nos, contudo, a destacar apenas uma entreas inúmeras propostas teóricas de Damásio, recaindo aescolha sobre aquela que - por se aplicar às operações deraciocinar e decidir - se nos afigura de maior valia paraa compreensão dos mecanismos e condicionamentos psico--biológicos da persuasão: a hipótese do marcador-somático.

Damásio começa por recordar que a mente não está vaziano começo do processo de raciocínio. Pelo contrário, en-contra-se repleta daquilo a que chama um repertório variadode imagens90, produzidas pela situação concreta que enfren-ta. Sucede que essas imagens entram e saem da consciêncianuma apresentação demasiado rica para ser rápida oucompletamente abarcada. É esse o tipo de dilema com quenos vemos confrontados quotidianamente e para o resolver,dispomos, pelo menos, de duas possibilidades distintas: aprimeira, baseia-se na perspectiva tradicional da razão nobre,que concebe a tomada de decisão “racional”; a segunda, nahipótese do marcador-somático.

Segundo a perspectiva racionalista (ou da razão nobre),para decidirmos bem, bastará que deixemos a lógica formalconduzir-nos à melhor solução para o problema. O que épreciso é deixar as emoções de fora, para que o processoracional não seja adulterado pela paixão. Os diferentescenários serão assim considerados um a um, a fim de seremsubmetidos a uma análise do tipo custos/benefícios de cadaum deles, para, mediante uma estimativa da utilidade sub-jectiva deduzirmos logicamente o que é bom e o que é mau.Nessa análise são portanto consideradas as consequênciasde cada opção em diferentes pontos do futuro e calculadas_______________________________89 - Inscrição na contracapa do livro Damásio, A., O Erro de Descartes,

Mem Martins: Publicações Europa-América, (15ª. ed.), 199590 - Segundo Damásio, o conhecimento factual que é necessário para

o raciocínio e para a tomada de decisões chega à mente sob a formade imagens.

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as perdas e os ganhos que daí decorreriam. Simplesmente,como a maior parte dos problemas tem muito mais que duasalternativas de solução a sua análise torna-se cada vez maisdifícil à medida que se vai avançando nas deduções91.

É por isso que Damásio vem afirmar que, se só dispu-séssemos desta estratégia, a racionalidade nela presente nãoiria funcionar. E, dirigindo-se directamente ao leitor, explicaporquê: “na melhor das hipóteses, a sua decisão levará umtempo enorme, muito superior ao aceitável se quiser fazermais alguma coisa nesse dia. Na pior, pode nem chegar auma decisão porque se perderá nos meandros do seu cálculo.Porquê? Porque não vai ser fácil reter na memória as muitaslistas de perdas e ganhos que necessita de consultar paraas suas comparações (...). A atenção e a memória de trabalhopossuem uma capacidade limitada. Se a sua mente dispuserapenas do cálculo puramente racional, vai acabar por es-colher mal e depois lamentar o erro, ou simplesmente desistirde escolher, em desespero de causa (...). E no entanto, apesarde todos estes problemas, os nossos cérebros são capazesde decidir bem, em segundos ou minutos, consoante a fracçãode tempo considerada adequada à meta que pretendemosatingir e, se o conseguem com tanto ou tão regular êxito,terão de efectuar essa prodigiosa tarefa com mais do quea razão pura. Precisam de qualquer coisa bem diferente”92.

É aqui que surge a hipótese do marcador-somático, queDamásio concebe como um caso especial do uso de sen-timentos que foram criados a partir de emoções secundárias.À medida que estas emoções e sentimentos se manifestam,vão sendo ligados por via da aprendizagem a certos tiposde resultados futuros, conexionados, por sua vez, a deter-minados cenários. De tal forma que, quando um marcador-

_______________________________91 - Cfr. Damásio, A., O Erro de Descartes, Mem Martins: Publicações

Europa-América, (15ª. ed.), 1995, p. 18392 - Damásio, A., O Erro de Descartes, Mem Martins: Publicações Europa-

América, (15ª. ed.), 1995, pp. 184 ss

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-somático é justaposto a um determinado resultado futuro,a combinação funciona ou como uma campaínha de alarme,no caso do marcador ser negativo, ou como um incentivo,quando o marcador é positivo. É esta a essência da hipótesedo marcador-somático. No momento em que nos surgemos diversos cenários, desdobrados na nossa mente, de mododemasiado rápido para que os pormenores possam ser bemdefinidos (e antes que tenha lugar tanto a análise lógica decustos/benefícios como o raciocínio tendente à solução), sesurge um mau resultado associado a uma dada opção deresposta, por mais fugaz que seja, sente-se uma sensaçãovisceral desagradável. Daí que Damásio explique nestestermos a designação que deu à sua hipótese: “Como asensação é corporal, atribuí ao fenómeno o termo técnicode estado somático e porque o estado ‘marca’ uma imagem,chamo-lhe marcador”93.

É porém chegado o momento de nos interrogarmos sobreo papel que o marcador-somático de Damásio pode desem-penhar na compreensão interdisciplinar da persuasão, saben-do-se, como se sabe, que esta última se afirma como fenómenohumano complexo, insusceptível de ser apreendido sem umolhar pelos diferentes planos em que se manifesta: lógico,argumentativo, neurobiológico, psicológico e social. É o queprocuraremos estabelecer, ao situar agora o marcador-somáticoe a sua função, na dinâmica inerente a todo o processo dedecidir.

Vamos imaginar uma situação persuasiva, por excelência:a venda de um seguro. De um lado, o agente de seguros,procurando realizar mais um negócio. Do outro, um can-didato a cliente, avaliando as possíveis vantagens de subs-crever um seguro de vida. A comunicação está a correr bempara ambos: o agente-vendedor sente que conseguiu prendera atenção e o interesse do seu interlocutor, enquanto que

_______________________________93 - Damásio, A., O Erro de Descartes, Mem Martins: Publicações Europa-

América, (15ª. ed.), 1995, p. 185

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este se mostra visivelmente satisfeito pelo modo como estáa ser esclarecido sobre a utilidade do respectivo seguro. Atéque a certa altura, o vendedor, pretendendo dar uma ideiao mais exacta possível de como o seguro de vida funcionae, ao mesmo tempo, “acelerar” a persuasão do cliente, socorre--se de uma ilustração claramente retórica: “imagine que osenhor vai morrer amanhã. Nesse caso, a seguradora pagariaimediatamente o respectivo capital seguro”. E confiante nesteefeito de presença, conclui a sua argumentação, ficandosomente a aguardar a tomada de decisão do interlocutor, naexpectativa de que, tendo este dado o seu acordo a cadauma das premissas da sua argumentação, irá agora, final-mente, subscrever o respectivo seguro de vida. Surpreen-dentemente, porém, o cliente desinteressa-se do seguro e,pedindo apressadas desculpas, some da sua vista. Em suma,uma venda fracassada, um acto persuasivo ineficaz.

Algo correu mal nesta situação argumentativa. O que teráfalhado? Há fortes razões para pensar que foi o tipo deilustração, ou seja, a particular situação ficcionada pelo agente,que não surtiu o desejado efeito. De facto, qualquer pro-fissional mais experiente na venda de seguros teria evitadoproferir a expressão imagine que o senhor vai morrer amanhãsubstituindo-a por uma outra que servisse idêntico fim masque não apresentasse o mesmo risco de surgir com uma cargaemocional negativa aos olhos do cliente e que poderia ser,por exemplo, imagine que tinha morrido ontem. Notemosque embora as duas frases em causa cumpram a mesma funçãono contexto argumentativo (situar a morte da pessoa segura,como acontecimento que faz funcionar as garantias daapólice), criam porém, automaticamente, dois cenários ra-dicalmente distintos na mente do candidato a segurado, querno tempo em que se situam (passado ou futuro), quer napossibilidade da sua concretização. Ou seja, a expressãoimagine que vai morrer amanhã é, à partida, muito menos“simpática” para o cliente, porque o leva a representarmentalmente um acontecimento fatídico (a morte) como algo

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que lhe pode muito bem vir a acontecer já no próprio diaseguinte. Daí que origine uma sensação tanto mais desa-gradável quanto mais impressionável ou supersticiosa for apessoa em causa. Pelo contrário, a mesma pessoa, ao escutara frase imagine que tinha morrido ontem, quase respira dealívio, pois sabendo-se viva, tem a imediata noção de queé totalmente impossível vir a ser vítima dessa fatalidade (amorte) nos exactos termos em que é chamada a representá--la, ou seja, como um acontecimento do passado. É, de resto,para evitar cargas emocionais negativas deste mesmo tipoque as seguradoras continuam a chamar seguro de vida aum seguro que, afinal, só funciona em caso de morte, talcomo insistem em designar como seguro de saúde uma apóliceque só cobre a doença.

Voltemos, porém, à surpreendente decisão do cliente denão efectuar o seguro que lhe foi proposto. Em que medidaessa sua reacção pode ser explicada pela hipótese domarcador-somático? Vejamos: o cliente tinha que decidir,pelo menos, entre duas opções, fazer ou não fazer o res-pectivo seguro e, do ponto de vista lógico-racional, nadaobstava a que a sua resposta fosse positiva. Mas ao proferiraquela “fatídica” frase, o agente de seguros terá feito convergira atenção do cliente para o cenário da sua própria morte,despoletando-lhe emoções e sentimentos mais ou menospenosos. E como diz Damásio, um “mau resultado” quandoassociado a uma dada resposta, por mais fugaz que seja,faz aparecer uma sensação visceral desagradável. A partirdesse momento, a escolha de fazer ou não fazer o seguropassa para segundo plano, pois o cliente tem agora um novoquadro opcional pela frente que já não diz respeito à bondadeda argumentação do agente, nem sequer à subscrição dopróprio seguro. Houve, por assim dizer, uma antecipaçãoe um deslocamento do núcleo problemático, que passou aser o de ter de escolher entre decidir ou não decidir (fossequal fosse o sentido dessa decisão, o de fazer ou não fazero seguro). E, obviamente, é a opção decidir que surge

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associada às já citadas emoções secundárias, constituindo--se o marcador-somático como um “avisador automático”do mal-estar que essa opção representa ou provocaria, poisdecidir, neste caso, significaria ter de enfrentar o fantasmada própria morte. Antecipando-se à análise racional das duasopções iniciais (decidir ou não decidir) em função dos custos/benefícios quer de uma quer de outra opção, o marcador--somático funciona assim como uma espécie de filtro, queno caso em apreço, apenas deixa à consideração racionaluma hipótese: não decidir. E foi o que o cliente fez.

Podemos então vislumbrar a importância de que se revestea teorização de Damásio para o conhecimento dos meca-nismos do raciocínio e da tomada de decisão presentes naretórica e na persuasão em geral. Com efeito, a somatizaçãodo discurso, a inseparabilidade entre razão e emoção, o papeldo marcador-somático na prévia selecção (ou filtragem) dasopções de resposta e, de uma maneira geral, “a simbioseentre os chamados processos cognitivos e os processosgeralmente designados por emocionais”94, parece influenciare condicionar de tal modo a tomada de decisão, que seriaabsurdo prescindir da sua consideração no âmbito de qual-quer estudo retórico.

2.2. - Persuasão e retórica

No quadro da persuasão, onde se situa a retórica, podeafirmar-se - ainda mais acentuadamente do que em qualqueroutro tipo de discurso - que a finalidade do raciocínio éa decisão, uma decisão que fundamentalmente consiste emescolher uma das duas opções sempre em aberto: aderir ounão aderir. Referimo-nos aqui não apenas ao acordo finaldo auditório quanto à validade das teses que lhe forampropostas, mas também à adesão a cada uma das premissas

_______________________________94 - Damásio, A., O Erro de Descartes, Mem Martins: Publicações Europa-

América, (15ª. Ed.), 1995, p. 187

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e dos argumentos avançados pelo orador nas diferentes fasesdo seu discurso. É este o entendimento que se mostra maisde acordo com a interrogatividade em contínuo defendidapor Meyer e que implica que, para decidir e raciocinar emcada uma dessas diferentes fases, o auditório (ou decisor)deva ter conhecimento prévio:

a) da situação ou problema que requer uma decisãob) das diferentes opções de respostac) das consequências de cada uma dessas opções

São estas as três condições em que a retórica e a persuasãopodem aspirar à adesão crítica do auditório. Do lado do orador,correspondem ao imperativo ético de não escamotear averdadeira natureza do problema que carece de soluçãoconsensual, dar a conhecer ao auditório as diferentes respostaspossíveis em vez de ocultar as que lhe pareçam “inconve-nientes” e, por último, enunciar as previsíveis consequênciasde cada uma dessas opções. Do lado do auditório, prefiguramas três exigências básicas da respectiva tomada de decisão,de tal modo que, uma vez não satisfeitas, legitimam, porsi só, o silêncio ou recusa de aderir. E se a adesão (ou nãoadesão) é a consequência natural do raciocinar e decidir,então, dir-se-á, há-de ser também nessas duas instâncias dopensamento que a persuasão se submeterá à mais dura provada sua eficácia.

Tratando-se porém de agir sobre uma opinião mais oumenos estruturada e estável, o persuasor terá que, antes demais, vencer a inércia do interlocutor, captar a sua atençãoe interesse pela discussão, sob pena da própria interacçãoficar comprometida. Ao raciocínio e à decisão é preciso entãojuntar agora também a atenção, não só como factor per-suasivo, mas também como condição prévia e necessária daprópria argumentação. Mais adiante iremos ver, aliás, comodeterminadas técnicas de focalizar a atenção podem ser usadaspara introduzir na persuasão uma sugestibilidade exagerada

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que leva à redução da capacidade crítica do decisor. Antesporém, precisamos caracterizar, ainda que sumariamente, apersuasão e os diferentes modos em que se exerce oumanifesta.

Retomando uma ideia que expressamos logo no iníciodeste estudo, diremos que não é fácil definir a persuasão,de tal modo ela parece esquivar-se a qualquer tentativa dea autonomizar de domínos tão intercomunicantes como sãoos da retórica, argumentação e sedução. Várias são as razõesque parecem concorrer para tal dificuldade. Em primeiro lugar,o carácter semi-oculto da sua manifestação, que, obviamen-te, constitui uma excepção à regra da transparência no actode comunicar. Com efeito, não raras vezes, a eficácia dapersuasão reside mais no não dito do que naquilo que érealmente expresso e isto porque a persuasão, tal como asurpresa, não se anuncia, faz-se. Iniciar uma argumentaçãopersuasiva com a frase “vou persuadir-te...” seria compro-meter a sua própria possibilidade, tal como se, pretendendofazer uma surpresa a alguém, começássemos por preveni--lo com um “vou surpreender-te...”. Num e noutro caso,haveria por assim dizer, uma notória incompatibilidade entreo dito e o feito, na medida em que o próprio dizer já inviabilizao fazer. Em segundo lugar, temos que essa falta de visi-bilidade do elemento persuasivo parece conferir à persuasãouma aparência de natureza indecifrável, quando nãotranscendental, susceptível de levar a concepções tão bizar-ras como a que podemos surpreender na EnciclopédiaKoogan-Larousse (1979), onde o adjectivo “persuasivo” aindaaparece definido como aquele “que tem o poder, o dom depersuadir”. Será um exagero descortinar nestes termos, podere dom, uma certa remissão para o domínio sobrenatural ou,no mínimo, para uma persuasão só ao alcance dos eleitos?Finalmente, a constatação de que uma grande parte dos autores[Bellenger (1996); Breton (1998); Roselló (1998), etc.] quese referem à persuasão, fazem-no em obediência a uma ideiaprévia e marcadamente negativa, associando-a a toda a espécie

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de malefícios, que vão, desde a ameaça ao livre arbítrio dapessoa humana, até à prossecução de interesses inconfessáveis,ao mascarar da verdade, ao deliberado engano.

Entendemos porém que não se pode definir a persuasãoa partir dos seus usos e muito menos, quando se consideremexclusivamente os maus usos. Porque a par de manifestosabusos ocorridos, por vezes, nas áreas do jornalismo, dasvendas, da publicidade, da propaganda política (mas tambémnas relações do quotidiano, inclusive, familiares...), sãoinúmeras as situações em que o discurso persuasivo continuaa mostrar-se o instrumento mais eficaz e nalguns casos, até,o único humanamente admissível. Estamos a pensar notrabalho do psicólogo, no médico que recupera a esperançade um doente descrente quanto à sua cura, nas campanhascontra o álcool e contra a droga, na prevenção rodoviária,mas também no professor que incentiva nos seus alunos ogosto pela leitura e pelo saber em geral, na mãe que consolae ajuda a sua filha a ultrapassar um desgosto de amor, enfim,no amigo que nos faz ver quando erramos. Quem se atre-veria a censurar alguma destas actividades ou procedimen-tos? E contudo, em cada um dessas situações, o que estáem causa é um querer agir sobre o outro, levá-lo a modificaro seu comportamento, a sua atitude ou ideia, perante proble-mas ou questões cuja resolução implica uma mudança naactual forma de os pensar. Ora persuadir (do lat. persuadere)é isso mesmo, convencer, levar alguém a crer, a aceitar oudecidir (fazer algo), sem que daí decorra, necessariamente,uma intenção de o iludir ou prejudicar, tão pouco a dedesvalorizar a sua aptidão cognitiva e accional. Pelo con-trário, o acto de persuadir pressupõe um destinatário quecompreenda e saiba avaliar os respectivos argumentos, o queimplica reconhecer o seu valor como pessoa, como centrodas suas próprias decisões. Não subscreveríamos, por isso,a afirmação de Pedro Miguel Frade de que “o discursopersuasivo parte sempre, em primeira mão, de umadesqualificação mais ou menos assumida das capacidades

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e dos propósitos do outro” (os sublinhados em itálico sãonossos)95. Porque na “interacção a dois” (a que este mesmoautor se refere), a persuasão não tem que significar adesqualificação do persuadido mas sim um confronto deopiniões, onde os argumentos ou razões invocadas tantopodem merecer acolhimento como serem liminarmenterefutados. Como em tantas outras situações comunicacionais,a manipulação sempre pode instalar-se nos discursos per-suasivos. Condenar, porém, a persuasão em abstracto, seriaum juízo a priori muito semelhante ao de admitir uma ilicitudesem ilícito.

As já referidas dificuldades de autonomização conceptual,não têm impedido, porém, que cada autor procure fixar otipo de relação que a persuasão mantém com as restantesformas de influência. Em Perelman, por exemplo, a persu-asão como que surge de tal maneira “colada” à retórica quecom ela se confunde. O que essencialmente persuade é aargumentação, pois são as razões nela invocadas que levamà adesão do auditório. Disso nos dá conta, nomeadamenteno seu Tratado da argumentação onde, a par de uma iden-tificação expressa da retórica à argumentação, surge tambémuma identificação presumida ou virtual desta última àpersuasão. Tal identificação parece, no entanto, colocar oacento nos elementos intelectuais do discurso persuasivo àcusta de uma aparente desqualificação do papel que a emoçãoe a afectividade desempenham, de facto, tanto na formaçãoe desenvolvimento dos raciocínios, como nas tomadas dedecisão. Não que Perelman ignore ou menospreze as condi-ções psicológicas que concorrem para a eficácia da argu-mentação, pois ele próprio reconhece que o resultado a quetendem as argumentações “é um estado de consciênciaparticular, uma certa intensidade de adesão”96, mas sim porque

_______________________________95 - Frade, P., Comunicação, in Carrilho, M. (Org.), Dicionário do Pen-

samento Contemporâneo, Lisboa: Publicações D. Quixote,1991, p. 5296 - Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 59

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o que realmente pretende apreender é “o aspecto lógico, nosentido muito amplo do termo, dos meios empregados, atítulo de prova, para obter esse estado de consciência”97. Eé também, certamente, por estas mesmas razões, que se limitaa abordar a distinção entre persuasão e convencimento, aliás,em termos que já mereceram as nossas reservas.

Uma outra forma de situar a persuasão é a assumida porMurilo César Soares98, para quem persuasão e sedução sãoapenas dois modos da retórica. A persuasão, derivando daargumentação, e a sedução, proveniente da dramatização. Tem,sem dúvida, o mérito de reconhecer a presença de determi-nações estéticas e emotivas no discurso retórico, mas, aopressupor que a persuasão deriva unicamente da argumentação(aqui, obviamente, subentendida como argumentação racional)permanece, ainda assim, refém de uma artificial separação entrerazão e emoção que colide com a impossibilidade prática dese demarcarem fronteiras entre o que é persuasivo e o queé sedutor. E sem um critério de demarcação é a própria distinçãoque fica em causa. Mas a ideia de ver a persuasão e a seduçãocomo modos da retórica, merece acolhimento como modelohermenêutico de chegar a um entendimento menos divisionistada retórica, enquanto prática discursiva orientada para a produçãode determinados efeitos. Já Meyer admite, sem qualquer re-lutância, que a sedução tem também o seu lugar na argumen-tação, ao dizer que “a relação retórica consagra uma distânciasocial, psicológica, intelectual, que é constringente e de cir-cunstância, que é estrutural porque, entre outras coisas, semanifesta por argumentos ou por sedução”99.

_______________________________97 - Perelman, C., Retóricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 5998 - Soares, M., Retórica e Política, in Revista Comunicação & Política,

Rio de Janeiro: Centro de Estudos Superiores Latino-Americanos,1996, vol. III, nº. 2, nova série, Maio-Agosto. Murilo Soares éProfessor de Sociologia da Comunicação, na Fac. de Arq., Artese Comunicação da UNESP, São Paulo, Brasil.

99 - Meyer, M., Questões de retórica: linguagem, razão e sedução, Lisboa:Edições 70, Ldª., 1998, p. 26

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Curiosamente, há também quem deixe a sedução fora querda retórica quer da persuasão. É o que faz Bellenger, noseu livro La Persuasion100, onde depois de proceder à distinçãoentre persuasão dissimulada e persuasão manifesta - ligandoa primeira ao estratagema do ardil, da sugestão ou domi-nação e a segunda, tanto ao que chama de persuasão “sadia”como à retórica - remete a sedução para o campo da incitaçãomeramente espontânea, com base no carisma, no encanto,no prestígio e na fascinação, fora, portanto, da práticaintencional calculada, que é própria da persuasão em geral.Recorrendo a um processo de subdivisões sucessivas,Bellenger como que procede, além disso, a uma depuraçãode todas as “impurezas” da persuasão, as quais, segundoo seu ponto de vista, são mais próprias do estratagema e,imagine-se, da retórica: a arte do desvio, a inteligênciaardilosa, a sugestão, a dominação e o mito do chefe, nocaso do estratagema, e os sofismas, as figuras do discursoe o condicionamento psico-linguístico, no que à retórica dizrespeito. Não surpreende, assim, que no seu afãdiscriminatório, acabe por classificar como racional a per-suasão “sadia” e como emocional, a retórica. Deve dizer--se, no entanto, que a sua concepção de retórica não resistiriaao mínimo confronto com os desenvolvimentos teóricos maisrecentes, especialmente a partir de Perelman, de que estenosso estudo procura dar conta. Daí que a sua classificaçãodas diferentes formas de influência redunde numa sucessãode equívocos, que vão desde o rigoroso enclausurar dasugestão no estratagema até à suposta purificação daracionalidade persuasiva, uma vez desligada de toda a“irracionalidade” da retórica.

Mas se chamamos aqui estes distintos modos de situaro lugar da persuasão face à retórica, foi unicamente parailustrar a dificuldade, aparentemente incontornável, de se

_______________________________100 - Bellenger, L., La Persuasion, Paris: Presses Universitaires de France,

1996, p. 8

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distinguir uma da outra. Aliás, ocorre mesmo perguntar se,ainda que tal fosse possível, daí resultaria algum benefíciosignificativo para a compreensão do processo argumentativo.Esta interrogação parece ganhar ainda mais sentido quandovemos Breton fazer apenas a distinção entre a argumentação(enquanto meio poderoso de fazer partilhar por outrem umaopinião) e a violência persuasiva, o recurso à sedução e àdemonstração científica101. Aliás, considera que mesmo estadistinção é passível de algumas reservas, nomeadamente noque respeita à sedução, pois ela é muito menos simples doque parece. E explica porquê: “Uma das principais caracte-rísticas das acções humanas é, com efeito, para além da suacomplexidade, o facto de elas parecerem mobilizar sempre,de modo indivisível, toda a riqueza dos possíveis. Assim,raramente se encontram situações puras de sedução, nemsituações puras de demonstração ou argumentação. Toda ahistória da retórica, a antiga ‘arte de convencer’, é atraves-sada pelo lugar que deve ocupar o ‘agradar’ ou o ‘comover’relativamente ao estrito raciocínio argumentativo. Da mesmaforma, a publicidade moderna, objecto complexo como elaé, deve a sua temível eficácia ao facto de jogar simulta-neamente em todos os registos de convencer. Todos esseselementos estão muitas vezes inextricavelmente ligados. Seria,portanto, preferível descrever essas situações, segundo oscasos, como predominantemente de sedução ou predominan-temente de argumentação”102.

Poderia Breton ter ido ainda mais longe, no sentido deincluir a sedução no contexto da própria argumentação?Inclinamo-nos para uma resposta afirmativa. Com efeito,sendo a sedução ou o encantamento um fenómeno intrin-secamente humano, não se vê como poderia a argumentação

_______________________________101 - Breton, P., A argumentação na comunicação, Lisboa: Publicações

D. Quixote, 1998, p. 13102 - Ibidem

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prescindir desse registo de convencer. Poderemos, aliás,formular uma segunda questão: será possível influenciar ouconvencer alguém apenas pelo recurso à mais fria razão?

Ensina Perelman, ao distinguir entre demonstração eargumentação, que esta última só tem lugar quando não épossível “estabelecer uma relação entre a verdade das pre-missas e a da conclusão”103 e, consequentemente, não dis-pomos de uma linguagem formal de natureza lógico-mate-mática que nos permitisse demonstrar o carácter necessáriode uma dada solução. De resto, mesmo que, por mera hipótese,pudéssemos recorrer a um mecanismo de inferência pura-mente formal, ainda assim, do nosso interlocutor não sepoderia nunca dizer que fora persuadido, pois os factos, asnoções e as regras de raciocínio ou de cálculo constituintesda própria demonstração, tornariam automaticamente evidenteo caminho a seguir, na direcção da única decisão certapossível. Estaríamos, portanto, perante uma situação em quea palavra e o conceito para que esta sempre remete seriamsuficientes por si só para se imporem a uma outra menteracional. Sabemos, porém, que na argumentação a palavraou, dito de outro modo, as premissas, as razões invocadase as provas fornecidas pelo orador não têm a força nemo rigor do cálculo matemático, pelo que nunca poderiamconduzir à evidência, à necessidade ou à verdade única. Logo,diferentemente do que se passa na demonstração, a palavrada argumentação é uma palavra fraca e insegura que, àpartida, legitima todas as dúvidas. Há então boas razões paradaqui se inferir que se essa fraca palavra argumentativa(logos) ainda assim triunfa, é porque na específica situaçãode comunicação em que tem lugar, conta com um quid deafirmação que lhe é adicionado no momento em que seencontra com um ethos e com um pathos que se mostramfavoráveis à sua aceitação.

_______________________________103 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 21

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Deste entendimento da persuasão pode, por isso, dizer--se que corresponde a um descentramento dos elementospuramente intelectuais em favor de uma concepção deracionalidade não só mais abrangente como também maishumana, na justa medida em que radica na inquestionávelunidade do pensar e do sentir. E se a razão é indissociávelda sensibilidade, então, afastar da argumentação, o bem-estar,o agrado, a sugestão e a sedução ou encantamento, só poderiaredundar num exercício de purismo tão artificial como ode passar a beber água destilada às refeições. Corresponderia,além disso, a uma excessiva idealização dos factos retóricosou argumentativos, susceptível de nos conduzir para umaargumentação que nunca existiu, que não existe e que, tudoleva a crer, nunca existirá.

Em coerência com a linha de raciocínio que seguimosaté aqui, é então chegado o momento de propor um novoentendimento da persuasão discursiva, com base no alarga-mento do conceito de argumentação. E a hipótese queformulamos é a seguinte: a argumentação (ou retórica) -enquanto processo discursivo de influência - deita mão detodos os recursos persuasivos disponíveis, e o raciocíniológico ou quase lógico, a sugestão e até a sedução, não sãosenão diferentes e interligados modos dela se manifestar.

Testar esta hipótese e ao mesmo tempo indagar sobreo que pode levar alguém a modificar a sua opinião inicial,são os dois principais objectivos da incursão que a partirde agora faremos aos domínios da persuasão e da própriahipnose.

2.3. - Critérios, tipologias e mecanismos da persuasão

Se o principal traço distintivo da comunicação persuasivaé o de visar a produção deliberada de certos efeitos pre-viamente definidos, a primeira coisa de que precisamos paraavaliar a sua eficácia é de um critério que nos permitadeterminar se tais efeitos ocorreram ou não. Para Perelman,

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esse critério, é, como já vimos, a adesão do auditório. Seeste aderiu às teses que lhe foram apresentadas, a persuasãofuncionou. Se as rejeitou ou se se manteve em silêncio, éporque a argumentação falhou o seu principal objectivo queé o de persuadir. Parece-nos, contudo, que esta maneira deolhar a persuasão é demasiado linear, algo simplista e porisso mesmo, insuficiente para nos dar conta da verdadeiranatureza, extensão ou intensidade dos efeitos persuasivos,já que deixa por esclarecer o que é ou em que consiste oacto de aderir. Será um assentimento total ou parcial? Sea concordância do auditório incidir apenas sobre uma parteda tese poder-se-á afirmar que não houve persuasão? E quantoao conteúdo da proposta, os efeitos persuasivos terão sidoos mesmos quer quando respeitem à proposta inicial do oradorquer quando obtidos apenas por uma versão final enriquecida(logo, alterada...) pelas sugestões do auditório? Finalmente,imaginemos um caso extremo em que não se verifique arespectiva adesão. Ainda assim, fará sentido afirmar quenenhuma persuasão teve lugar? O mínimo que se pode dizeré que este conjunto de questões parece pôr em crise aoperacionalidade do conceito de adesão para determinar aeficácia do discurso persuasivo. Mas, por outro lado, ao dizê--lo, corremos provavelmente o risco de estar também a traçarum quadro demasiado negro para a adesão perelmaniana.É que tudo depende do particular entendimento que tivermosdo acto retórico ou persuasivo. Para os que o pensam emtermos de competição entre dois adversários (orador eauditório), na disputa de um troféu a que só o vencedortem direito, naturalmente que a rejeição de uma propostaou solução inicial e até mesmo uma adesão meramente parcial,sempre hão-de ter o sabor de uma derrota. É o caso de quemprocura a todo o custo dominar um auditório para imporos seus pontos de vista como se estes fossem irrebatíveis,iluminados ou, numa palavra, intocáveis. Para estes, certa-mente que só a adesão total funciona como critério depersuasão. Mas para quem veja a situação argumentativa como

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um encontro de subjectividades, mútua e solidariamenteempenhadas em avaliar ou construir a melhor solução possívelpara um problema ou questão em aberto, sem abdicar dorespeito pela liberdade de pensamento e expressão do outroe tendo sempre em conta a interrogatividade subjacente nassuas próprias respostas, qualquer que seja o resultado desseesforço conjunto, adesão total, rejeição ou adesão parcialàs teses iniciais, será sempre um avanço positivo, o avançopossível na descoberta da melhor solução consensual. Paraestes últimos, a adesão é sempre sinónimo de persuasãoporque esta não é mais entendida como domínio de umaparte sobre a outra, mas sim como expressão da capacidadede acolher os melhores argumentos, independentemente destesúltimos serem provenientes do orador ou do auditório. Éo abandono da rigidez dicotómica orador-auditório, no quadroda qual, erradamente, se tende para cometer a função depersuadir ao orador e reservar para o auditório apenas aliberdade de se deixar persuadir ou não, em favor de umconcepção retórica ou persuasiva onde o regime de livrealternância da palavra faz de todos os interlocutores poten-ciais persuasores e persuadidos. O objectivo da argumen-tação é agora chegar à solução que se revele mais adequada,quer esta coincida com a proposta inicialmente apresentada,quer se fique a dever aos posteriores desenvolvimentostrazidos pela respectiva discussão. A adesão pode assimmanter-se como critério de eficácia de uma dada argumen-tação, na medida em que determina se (todos) os efeitospretendidos foram atingidos ou não, mas já não apresentaa mesma fiabilidade como indicador de persuasão. Bastapensar nas inúmeras situações em que o orador persuadeo auditório apenas parcialmente ou num grau de intensidadeque se revela insuficiente para levar a adesão. Um bomexemplo talvez seja o caso do vendedor que no final daentrevista com o cliente, verifica que a sua argumentaçãonão produziu neste último o efeito esperado: levá-lo à decisãoda compra. Isso não significa porém que nenhum efeito

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persuasivo tenha tido lugar. No decorrer da entrevista, ambosos interlocutores, vendedor e cliente, terão certamente tro-cado ideias e pontos de vista, que, enriquecendo o seuconhecimento mútuo, tendem a deixar marcas persuasivasmais ou menos estáveis. E são essas marcas persuasivas queuma vez recuperadas pelo vendedor na próxima visita aomesmo cliente, podem vir a ser decisivas, dessa vez, parase fechar negócio.

Esta aparente incapacidade da adesão se constituir comocritério revelador de toda a acção persuasiva, abre caminhopara uma primeira tipologia da persuasão, em função dosefeitos produzidos: persuasão total e persuasão parcial,conforme o assentimento do auditório recaia sobre toda aproposta inicial ou apenas sobre uma parte da mesma;persuasão imediata e persuasão mediata, segundo os efeitosse manifestem logo na altura da argumentação ou somenteem data posterior; persuasão objectiva e persuasão subjec-tiva, consoante se repercuta num comportamento público eobservável ou se limite a meras (mas, por vezes, relevantes)modificações interiores aos sujeitos, predominantementepsicológicas. À luz desta classificação, poderemos então dizerque a adesão perelmaniana surge como um importanteindicador da persuasão total, imediata e objectiva, mas jáo mesmo não acontece no tocante à persuasão parcial, mediatae subjectiva, onde se mostra praticamente inoperante oumesmo inaplicável. Daí que a tarefa de persuadir nunca possaser dissociada da maior ou menor habilidade para antevera reacção do outro, nem da perspicácia com que se avaliao efeito produzido. “O processo argumentativo é semprerealizado no concreto, nesta ou naquela situação, peranteeste ou aquele auditório, sendo impossível, a priori, definiras estratégias que vão ser efectivamente eficazes, ou saberantecipadamente que argumentos usar, como utilizá-los, comodispô-los, qual o momento certo para o fazer e que resul-tados se irão obter. A argumentação remete para o contextoe só este pode fornecer, caso a caso, as pistas que guiarão

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no desenrolar do processo argumentativo”104. Por outraspalavras, nenhuma estratégia de persuasão pode escapar auma certa margem de imprevisibilidade e de risco. Não pode,pois, o orador guiar-se apenas pelos dois polos extremosda adesão ou da não adesão. Tem que procurar descortinarna reacção do auditório, se a não adesão significa nenhumapersuasão ou persuasão parcial e, no caso desta última, estimarainda o respectivo grau ou intensidade. Se os efeitos dapersuasão não se concretizam imediatamente, avaliar dapossibilidade e interesse duma eventual manifestação diferida.Se a persuasão não é observável ou visível - maxime nocaso de total silêncio do interlocutor - inferir dos elementosnão verbais todos os indícios que possam legitimar umaconclusão, ainda que hipotética. É neste ponto que a dis-tinção da persuasão acima referida, com base na extensão,no tempo e na visibilidade com que se manifesta, pode revelar--se especialmente útil para o orientar, em cada fase doprocesso argumentativo, sobre a direcção a seguir e, prin-cipalmente, sobre a necessidade ou não necessidade de aduzirmais argumentos.

Uma segunda tipologia da persuasão que apresenta tam-bém grande interesse, tanto do ponto de vista da sua in-vestigação como ao nível da própria estratégia argumentativa,é a que pode ser traçada com base nos diferentes auditóriospossíveis. O pressuposto aqui é o de que a particular relaçãointerlocutiva, aliada ao maior ou menor número de integran-tes do auditório, é um factor decisivo na escolha das maisadequadas técnicas ou modos de persuadir. Poderemos entãofalar de persuasão pessoal ou auto-persuasão, quando al-guém avalia os argumentos por si próprio elaborados (de-liberação íntima); persuasão interpessoal ou face a face, aque se dirige apenas a uma outra pessoa (pai-filho, ven-dedor-cliente, etc.) e persuasão colectiva (quando são

_______________________________104 - Grácio, R., Consequências da retórica, Coimbra: Pé de Página

Editores, 1998, p. 78

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múltiplos os destinatários da mensagem persuasiva). É nestaúltima que poderemos integrar a persuasão de grupo, apersuasão de massas e, no limite, a persuasão universal,que corresponderia à noção perelmaniana de auditóriouniversal. É certo que há nestes tipos de persuasão muitoselementos comuns, quer no plano comunicacional, quer noestrito nível da persuasão. Em primeiro lugar, todos eles sãodirigidos a pessoas, onde a atenção, a percepção, a memóriae a acção, jogam um papel fundamental quanto à possibi-lidade deste ou daquele estímulo nelas produzir a respostapretendida. Em segundo lugar, em qualquer deles sempreestá presente também, em maior ou menor grau, a influênciada cultura, das expectativas sociais e da própria linguagem.Mas é inegável que cada um destes tipos de persuasão temlugar em contextos muito distintos, que obrigam ao uso demeios e técnicas de persuasão específicas. Por exemplo, usarmicrofone para falar a um único cliente seria tão disparatadocomo falar sem ele para um auditório de várias centenasde pessoas. O mesmo se diga das confidências pessoais quenum contacto face a face são não só possíveis como podemrevelar-se até muito persuasivas, enquanto que numa palestrajá será muito maior o risco de serem encaradas pela as-sistência como liberalidades excessivas e despropositadas doorador. Ainda no âmbito desta tipologia, fundada nos di-ferentes auditórios possíveis, urge fazer, porém, uma segun-da distinção de eminente interesse prático. Trata-se agorade distinguir a persuasão já não com base na particular relaçãointerlocutiva para que somos remetidos em função do maiorou menor número de participantes, mas sim a partir dapresença ou visibilidade do respectivo auditório. Deparare-mos assim com uma assinalável diferença entre a persuasão-interpessoal e persuasão de grupo, por um lado, e a per-suasão de massas, por outro. É que nas duas primeiras, onúmero dos destinatários e até muitas das suas caracterís-ticas pessoais são previamente observáveis (tanto no casodo cliente isolado, como nos participantes que enchem a

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sala de uma conferência), enquanto que na persuasão demassas, reina a maior anonimidade humana e social: opersuasor não vê o persuadido, pode apenas imaginá-lo. Edaqui decorre, inevitavelmente, um maior grau de comple-xidade e incerteza no respectivo processo de persuasão, acomeçar pelas acrescidas dificuldades em conhecer e selec-cionar as próprias premissas. Mas porque a eficácia doprocesso argumentativo não passa exclusivamente peloreconhecimento das especificidades relacionais que caracte-rizam os diferentes tipos de auditório, seria necessário, antesde mais, ter uma ideia precisa do que é, afinal, a persuasão,e dos mecanismos que asseguram a sua performatividade. Sóque colocar a questão nestes termos leva a uma interrogaçãoque permanece até hoje sem resposta unívoca e satisfatória:o que faz com que alguém mude a sua opinião inicial?

É a esta pergunta que inúmeros pesquisadores têmprocurado responder, quer através de um persistente esforçoreflexivo, quer pelo recurso à experiência e à experimen-tação. Os resultados concretos de cerca de cinco décadasde estudo e investigação, levados a cabo especialmente naárea da psicologia social, estão, porém, longe de colher aaprovação geral. Fala-se mesmo de uma quase total au-sência de progresso teórico na compreensão do fenómenoda persuasão e dela nos dão conta, entre outros, MarvinKarlins e Herbert I. Abelson, citados por M. L. De Fleur:“apesar do extenso número de páginas escritas e dos inú-meros estudos empreendidos acerca da persuasão, muitosestudantes de comunicação vêem como algo impossível osacudir de um certo sentimento de desassossego quandopensam que dispomos de um conhecimento muito poucofiável e de escassa relevância social sobre a dita persuasão.Os lamentos relativos à nossa ignorância colectiva acercada persuasão são já um tópico....”105. É bem possível que

_______________________________105 - Cit. in De Fleur, M. e Ball-Rokeach, Teorías de la comunicación

de masas, Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, S. A., 1993, p. 352

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esta visão tão céptica sobre os estudos do processo persu-asivo se fique a dever, em grande parte, ao facto de nãoter sido possível, até hoje, elaborar uma teoria unificada dapersuasão. Como salientam Pio Bitti e Bruna Zani, emboraa literatura neste campo seja muito vasta, quer no que respeitaao aprofundamento dos aspectos mais teóricos com base emdiversos paradigmas explicativos, quer no tocante à recolhade dados empíricos acerca dos muitos parâmetros envolvidosno processo, “o resultado é um acervo muito heterogéneode elementos que dificulta a tarefa de reconhecimento deuma direcção expositiva no labirinto das teorias e dos dadosexistentes”106. Acresce que, segundo estes mesmos autores,para além das dificuldades criadas pela diversidade dosparadigmas em que se inscrevem, as numerosas pesquisasefectuadas têm sido “pouco entusiasmantes e, mesmo,marcados por contradições e superficialidades”107. Aindaassim, parece manifestamente abusivo daí deduzir uma totalausência de progresso teórico, porque se não dispomos aindade uma teoria que nos dê conta da multiplicidade de atitudesque estão por trás da adesão persuasiva, a verdade é que,como bem mostram Petty e Cacioppo, na sua obra Attitudesand Persuasion: Classic and Contemporary Approches, “cadauma dessas aproximações teóricas contribuiram numa im-portante medida para o entendimento do processo de per-suasão”108. E de facto, apesar de, em alguns casos, osresultados da investigação experimental não terem ido muitoalém dos já obtidos por mera inferência empírica, foi nãosó possível identificar os principais factores envolvidos napersuasão como também, através do recurso a outras ori-entações teóricas, compreender melhor a complexidade e

_______________________________106 - Bitti, P. e Zani, B., A comunicação como processo social, Lisboa:

Editorial Estampa, (2ª. ed.), 1997, p. 238107 - Ibidem108 - Petty, R. e Cacioppo, J., Attitudes and Persuasion: Classic and

Contemporary Approaches, Oxford: Westview Press, 1996, p. XV

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articulação da atitude considerada, bem como o tipo dereorganização cognitiva produzida pela respectiva modifi-cação. Antes, porém, importa perceber porque razão apsicologia social tem encarado a comunicação persuasivado ponto de vista da sua estrita ligação com a modificaçãodas atitudes. Petty e Cacioppo justificam essa ligação deuma maneira muito clara. Não basta dizer que a persuasãorepresenta uma tentativa de modificar o pensamento dealguém. É preciso ver também o que é que, especificamente,a tentativa de persuadir visa influenciar. E neste ponto,distinguem-se habitualmente três alvos possíveis: atitude,crença e comportamento. A atitude define um sentimentogeral e estruturado, positivo ou negativo, acerca de deter-minada pessoa, objecto ou questão. Neste sentido, a expres-são a pena de morte é horrível será um bom exemplo deatitude porque exprime um sentimento geral e negativo sobrealgo, que, no caso, é a pena de morte. A crença, já se referebasicamente à informação que se tem sobre outra pessoa,objecto ou questão e poderia ser representada por umaafirmação do género de a pena de morte é ilegal no meupaís. Quanto ao termo comportamento, ele representa umacategoria de acção em aberto e pode ser ilustrada pelaexpressão participei numa campanha contra a pena de morte.Destaquemos aqui como particularmente relevante para oestudo da persuasão o facto da atitude, segundo Petty eCacioppo, aparecer ligada a um sentimento geral enquantoa crença se circunscreve, basicamente, ao domínio da in-formação. É que, à luz de tal distinção, forçoso será re-conhecer que mesmo quando o interlocutor não põe em causao carácter lógico e bem fundado da nossa argumentação,isso não significa, por si só, que venha a aderir efectiva-mente à proposta ou ideia que lhe apresentamos. Para alémda mera concordância intelectual, é preciso igualmentesuscitar-lhe o agrado, um sentimento favorável que lhe permitaremover sem dor ou com a menor dor possível a atitudeque até aí vinha adoptando e que, a manter-se, inviabilizaria

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o sucesso do acto persuasivo. Esse é o “segredo” do persuasorque não se contenta com a modificação de uma crença eprossegue na sua argumentação até conseguir igualmente amudança da própria atitude.

Mas se as atitudes emergiram como principal foco dospesquisadores de persuasão, foi, em grande parte, por sepresumir que influenciam (quando não ditam mesmo) aorientação do comportamento, tornando assim este últimomais ou menos previsível. Como os citados autores subli-nham, constatou-se a existência de uma forte interligaçãoentre crenças, atitudes e comportamentos, já que os prin-cípios envolvidos pela modificação de atitudes são os mesmosque presidem à modificação de uma crença ou comporta-mento. Não surpreende, por isso, que as atitudes possamser vistas como sumário condensado de uma larga variedadede crenças e, nessa medida, constituam uma parte muitoimportante da interacção social. Mas os investigadores dapersuasão têm pelo menos mais duas boas razões para centrara sua atenção nas atitudes. Em primeiro lugar, porque elaspermitem aos outros uma estimativa ou previsão do tipo decomportamentos que estamos predispostos a assumir e fazem--no de um modo muito mais apurado do que tudo ou quasetudo o que lhes pudessemos dizer. Assim, por exemplo, sedizemos a alguém que os filmes americanos dão mais realceao entretenimento do que à mensagem essa pessoa conti-nuará sem saber se deve ou não convidar-nos a ir ao cinema.Mas se, ao invés, lhe dissermos os filmes hoje em dia sãotão maus e repugnantes que me dão vómitos, aí já toda adúvida e incerteza será removida da sua mente e segura-mente que só por brincadeira ou provocação ousaria fazer--nos um tal convite. Ou seja, a atitude pessoal neutra (nempositiva nem negativa) nunca é tão afirmativa como a atitudepolarizada ou extrema.

Uma segunda razão porque os investigadores da persu-asão se orientam particularmente para as atitudes, prende--se com o facto destas últimas expressarem importantes

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aspectos da personalidade individual. Segundo Katz, citadopor Petty e Cacioppo109, são quatro os tipos de funções queas atitudes asseguram a uma pessoa: função ego-defensiva- atitudes que ajudam as pessoas a proteger-se das verdadesdesagradáveis para si próprias ou para aqueles que lhe sãopróximos; função expressão de valor – quando manter umadeterminada atitude permite à pessoa expressar um valorimportante; função conhecimento – atitudes que levam apessoa a entender melhor o que se passa à sua volta;finalmente, função utilitária – atitudes que ajudam a pessoaa ganhar recompensas ou evitar punições. Exemplos deatitudes ligadas a cada uma destas funções, seriam, res-pectivamente, os homens que por desprezarem os homos-sexuais reforçam os seus próprios sentimentos de mascu-linidade (função ego-defensiva), a pessoa que prefere oaquecimento através de painéis solares por o seu usodemonstrar uma preocupação pela conservação da energia(função expressão de valor), a constatação de que o nãose gostar de uma pessoa favorece ou predispõe para melhorconhecer os seus actos mais reprováveis (função conheci-mento) e, por último, o empregado que adopta as atitudesdo patrão antes de lhe ir pedir um aumento de salário (funçãoutilitária).

Até que ponto esta classificação das diferentes funçõespsicológicas asseguradas pelas atitudes pode revelar-seimportante para a escolha e implementação da melhorestratégia persuasiva? Poderemos dizer que há nela, semdúvida, um certo artificialismo, pois na prática, nunca épossível isolar tão nitidamente cada uma das funções quea integram, seja pela falta de um rigoroso critério delimitadorou porque uma só atitude pode muito bem assegurar, si-multaneamente, dois ou mais tipos de funções. Mas esseé, muito provavelmente, o preço a pagar pela maior

_______________________________109 - in Petty, R. e Cacioppo, J., Attitudes and Persuasion: Classic and

Contemporary Approaches, Oxford: Westview Press, 1996, p. 8

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operacionalidade analítica que esta classificação parece virconferir ao estudo da persuasão. Além do mais, a simplestomada de consciência de tal limitação sempre permitirá aosujeito persuasor uma reelaboração correctiva no momentoem que tem de inferir as verdadeiras razões porque o seuinterlocutor se mostra mais inclinado a aceitar ou a rejeitaros seus argumentos. Tomemos como exemplo o caso dafunção conhecimento: o facto de alguém a quem queremosinfluenciar se mostrar relutante em aceitar a nossa opiniãosobre um qualquer acto praticado por uma terceira pessoa,pode ficar a dever-se muito mais à atitude geral negativaque o nosso interlocutor já possui sobre essa pessoa do quepropriamente a um juízo particular sobre o isolado acto emcausa, mesmo quando o seu comentário ou crítica se refiraexclusivamente a este último. Nesse caso, continuar a fazerincidir a nossa argumentação exclusivamente sobre a dife-rença que aparentemente nos separa (ao nível da apreciaçãode tal acto) pode tornar-se no equivalente a “falar para asparedes” pois é a atitude que permanece oculta por detrásdas palavras proferidas pelo nosso interlocutor a verdadeiraresponsável pela sua dificuldade em se deixar persuadir, enão o motivo circunstancial que ele, eventualmente, nosverbalize. A atitude aparece assim estreitamentre relacionadacom a motivação e, como vimos na definição que nos édada por Petty e Cacioppo, tanto pode ser positiva comonegativa. Logo, da mesma forma que uma atitude positivasobre determinada pessoa, objecto ou questão predispõe parao conhecimento de actos, características ou aspectos directaou indirectamente ligados a cada um desses seus três alvos,também uma eventual atitude negativa levará, regra geral,à situação inversa. Em síntese, se vemos melhor e maisfacilmente aquilo que queremos ver, também conhecemospior e com mais dificuldade aquilo que não queremosconhecer.

A compreensão dos mecanismos da persuasão passa, porisso, pelo reconhecimento da importância que a modificação

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das atitudes assume na mudança do comportamento. Essatem sido, pelo menos, a ideia base que tem presidido àgeneralidade das pesquisas experimentais sobre a persuasão.Mas como dar conta de um tão heterogéneo conjunto deinvestigações em que sobressaem diferentes e por vezescontraditórias opções em termos de perspectivas teóricas,planos e variáveis do acto persuasivo? Dentro da linha deraciocínio que temos vindo a desenvolver e reconhecendoa centralidade do triângulo argumentativo, de que nos falaBreton110, no processo de persuasão discursiva, recorreremosao critério de análise já seguido por Bitti e Zani que é ode considerar o contributo das diferentes pesquisas em funçãodos três parâmetros presentes em todos os modelos decomunicação na modificação de atitudes: a fonte, a men-sagem e o receptor.

Assim, do ponto de vista da fonte, os investigadores têmprocurado determinar quais são os principais factores ligadosà figura do persuasor que concorrem para a modificaçãode atitude do auditório, que o mesmo é dizer, para o sucessoda respectiva argumentação. Em lugar de grande destaquesurge desde logo, a credibilidade, que, na linha de CarlHovland e seus seguidores, é geralmente associada à períciaou competência na matéria em questão, mas também à posiçãode prestígio social do persuasor e a outras característicaspessoais, nomeadamente de cariz ético, reconhecidas pelosrespectivos interlocutores. A experiência-tipo consiste emapresentar aos sujeitos experimentais determinadas declara-ções sobre um certo tema, quer insertas em artigos de jornaisou revistas, quer em gravações de discursos e atribuí-las apessoas com alto ou baixo grau de credibilidade. O exemplode que nos falam Bitti e Zani, é o de um caso de uma palestrasobre a desvalorização da moeda cuja autoria, ora era

_______________________________110 - Breton, P., A argumentação na comunicação, Lisboa: Publicações

D. Quixote, 1998, p. 24

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associada a um prestigiado e imparcial professor de eco-nomia ora a um empresário que iria ficar muito prejudicadonos seus negócios com tal desvalorização. O que se verificoufoi que o auditório era nitidamente mais influenciado noprimeiro caso do que no segundo, ou seja, confirmou-se que“uma comunicação é julgada de um modo mais favorávelquando apresentada por um sujeito de maior credibilidadeque quando apresentada por outro de credibilidade menor”111.Bitti e Zani assinalam porém três reservas a esta conclusão,que afastam a possibilidade da sua aceitação incondicional.Em primeiro lugar, dizem, há modificações quando um peritoproduz comunicações de carácter instrumental mas nãoquando ele fala de valores. Em segundo lugar, situaçõesexistem em que, mesmo nas questões de foro técnico, é maisinfluente um líder de opinião local do que um perito defora. Finalmente, apesar de ser de esperar que um auditóriose deixe influenciar mais facilmente por uma fonte tida porimparcial, há contudo provas empíricas que indicam ocontrário.

A atractividade é um outro factor de influência namodificação das atitudes. Como dizem Petty e Cacciopo,dois comunicadores podem ambos ser reconhecidos espe-cialistas numa dada questão, mas o facto de um ser maissimpático, mais apreciado ou fisicamente mais atractivo queo outro, confere-lhes diferentes graus de persuadibilidade.Foi isso mesmo que Chaiken (1979) procurou comprovarquando pediu a um grupo de estudantes - previamenteseleccionado em função das suas características físicas e daaptidão para comunicar - que efectuassem uma comunicaçãopersuasiva aos seus colegas. A tarefa consistia em obter destesa resposta a um questionário de opinião e a assinatura deuma petição. No final, Chaiken constatou que os estudantesfisicamente mais atractivos foram mais persuasivos do que

_______________________________111 - Bitti, P. e Zani, B., A comunicação como processo social, Lisboa:

Editorial Estampa, (2ª. ed.), 1997, p. 247

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os comunicadores fisicamente menos atractivos. Subsiste,porém, a dificuldade de estabelecer quais as característicasdo persuasor que podem ser tomadas como índices deatractividade, quer no plano da sua aparência física quer noda simpatia pessoal. Em que medida a atracção entre aspessoas deriva do respectivo aspecto físico? O que é umapessoa atraente? É dificil, se não impossível, encontrar asrespostas certas, além do mais, porque não se pode ignorarque tanto a atracção que tem por base o aspecto físico comoa que se fica a dever à irradiação de uma particular simpatiamanifestam-se sempre numa concreta dimensão relacional,através da adequação ou ajustamento das respectivassubjectividades, o que, só por si, afastaria toda e qualquertentativa de apressada generalização. No mesmo sentidocrítico vão Bitti e Zani quando, depois de acolherem a ideiade que a atracção entre as pessoas e, portanto, entre a fontee o receptor, conduz a semelhanças de atitude, vêm, porém,dizer que, apesar da evidência de tal fenómeno, a verdadeé que ainda “não se conseguiu definir com exactidão qualo tipo de semelhança que deve existir (no plano ideológico,ou social, ou mesmo simplesmente superficial) para influ-enciar as atitudes de um sujeito”112.

A persuadibilidade da fonte, porém, não se joga apenasao nível das características estritamente pessoais do persuasor,antes vai depender também das estratégias a que este re-corra. Uma dessas estratégias - de resto, muito estudadaexperimentalmente - é a da administração de recompensasou punições. E, porque aqui nos ocupamos tão somente dapersuasão discursiva, ficar-nos-emos pela investigação quemais directamente lhe diz respeito, ou seja, a que se su-bordina ao condicionamento verbal das atitudes. SegundoPetty e Cacioppo, um grande interesse teórico por este tipode condicionamento operatório surgiu a partir do momento

_______________________________112 - Bitti, P. e Zani, B., A comunicação como processo social, Lisboa:

Editorial Estampa, (2ª. ed.), 1997, p. 248

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em que Greenspoon (1955) levou a efeito uma experiênciana qual usou recompensas verbais para mudar aquilo queas pessoas deveriam dizer. Ele foi assim capaz de aumentara frequência com que a pessoa usava um substantivo pluralpronunciando simplesmente um “mm-hmmm” cada vez queo sujeito usava um. Hildum e Brown113 formularam entãoa hipótese da assunção de atitudes poder ser condicionadada mesma maneira, e resolveram testá-la junto dos estudan-tes de Harvard aos quais foi perguntado, telefonicamente,que atitudes tinham perante o sistema educacional de Harvard.O inquérito processou-se da seguinte forma: a metade dosestudantes inquiridos, o experimentador dizia “good” ou “mm-hmmm” cada vez que um estudante elogiava o respectivosistema; à outra metade dos estudantes o experimentadordizia “good” ou “mm-hmmm” cada vez que um estudantecriticava o dito sistema educacional. Os dois investigadoresconcluiram assim que os estudantes que tinham sido recom-pensados por dizerem bem do sistema fizeram mais comen-tários positivos acerca do mesmo que os estudantes que tinhamsido recompensados por dizerem mal.

A explicação deste resultado assenta na teoria dos doisfactores do condicionamento verbal formulada por Insko eCialdini114 à luz da qual a recompensa verbal faz duas coisas:primeiro, fornece ao sujeito informação sobre a atitude doentrevistador e, segundo, diz-lhe quais as respostas que oentrevistador aprova ou aprecia e, consequentemente, quan-do o aprova ou aprecia a ele próprio. É a relação criadapor este segundo processo que proporciona ao sujeito ummaior incentivo para emitir a resposta recompensável e coma qual obtém consequências positivas (a implícita aprovaçãopor uma outra pessoa). Como se pode ver, está aqui bem

_______________________________113 - Cit. in Petty, R. e Cacioppo, J., Attitudes and Persuasion: Classic

and Contemporary Approaches, Oxford: Westview Press, 1996, p. 47114 - Ibidem, p. 49

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presente a ideia-base subjacente ao condicionamentoskinneriano e que é a de que as pessoas tendem a agir paramaximizar as consequências positivas (recompensas) eminimizar as consequências negativas (punições) do seucomportamento.

Mas os factores mais influentes na modificação dasatitudes têm sido estudados igualmente ao nível da men-sagem a transmitir, com particular ênfase nas caracaterísticas(racionais ou emotivas) dos conteúdos, na configuraçãoestilística e nos aspectos directamente ligados à estruturae ordem da comunicação. No que respeita à emotividade,por exemplo, a crença generalizada de que os discursosemotivos são mais eficazes do que os discursos lógicos ouracionais para modificar as atitudes, fez com que as men-sagens ansiógenas, que “assustam” ou “angustiam” o indi-víduo mediante explicitação das consequências desagradá-veis (no caso de não se seguir os conselhos do sujeitocomunicante), passassem a ser associadas a uma maiorprobabilidade de modificar a atitude. Com efeito, um paique pretende motivar o seu filho para prosseguir os estudospode ter mais êxito se lhe chamar a atenção para a duravida que o esperaria se não concluisse o curso, tal comoum vendedor de seguros experimentado não hesitará em fazersentir ao cliente os potenciais riscos (ex: o perigo de umincêndio lhe devastar a habitação) a que ele se sujeitaria,se não contratasse o seguro que lhe é proposto. Em ambosos casos, a acção persuasiva centra-se mais no anúncio edramatização das desvantagens que se seguiriam à eventualrecusa da proposta do que na particular valia ou acerto damesma. Algumas experiências vieram mostrar, contudo, quenem sempre sucede assim e que, em última análise, tudodepende do grau de ansiedade produzido: “as mensagensfortemente ansiógenas tendem para a ineficácia, pois fazemsurgir suspeitas sobre as verdadeiras intenções da fonte, detal modo que os sujeitos recorram a mecanismos de defesa,como a negação, para ignorar ou pelo menos atenuar a

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ameaça, ao passo que uma mensagem fracamente ansiógenaproduz um maior grau de modificação”115.

A questão dos estilos poderem aumentar (ou reduzir) apersuasividade de um discurso foi igualmente submetida aocontrolo de uma série de experiências cujos resultadosparecem fazer luz sobre o que pode ser uma mensagemargumentativa eficaz. Referimo-nos ao facto de ter sidopossível relacionar certas figuras de estilo e modos deexpressão verbal com os particulares efeitos retóricos oupersuasivos que a sua utilização discursiva tende a provocarem qualquer auditório. Verificou-se, por exemplo, que asfrases curtas, perguntas retóricas, a paráfrase e a repetição,produzem força e impacto directo no receptor. A ironia, ohumorismo e até certo tipo de propositados exageros, atraema atenção das pessoas e conferem à comunicação maisvivacidade. A metáfora, por sua vez, contribui para uma maiorintensidade do discurso, especialmente quando a concluir esteúltimo, por produzir “efeitos diferentes dos da expressão literalcorrespondente – e mais eficazes que eles –, influenciandoos juízos sobre a credibilidade da fonte e especificamentesobre a sua competência, a sua fidedignidade e a suaobjectividade”116. Verificou-se ainda uma clara superiori-dade persuasiva da linguagem concreta sobre a linguagemabstracta, na medida em que a primeira, ao permitir umarelação directa e observável (ainda que imaginariamente)facilita a actividade de elaboração e compreensão damensagem.

No que mais directamente diz respeito à estrutura e ordemda comunicação, foram também estudados alguns dos prin-cipais problemas que se colocam a todo o orador: comoordenar os diferentes elementos (ou partes) da mensagem?

_______________________________115 - Janis e Feshbach [1953] cit. in Bitti, P. e Zani, B., A comunicação

como processo social, Lisboa: Editorial Estampa, (2ª. ed.), 1997,p. 249

116 - Bowers e Osborn [1966], cit. in ibidem

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Que papel poderá desempenhar a apresentação conjunta deargumentos favoráveis e argumentos contrários, no contextopersuasivo? Deve o orador retirar e anunciar explicitamenteas conclusões ou, pelo contrário, deixar essa tarefa aoauditório? Não foi possível ainda encontrar uma solução geral(e suficientemente testada) para cada um destes problemas.Comprovou-se, por exemplo, que a parte da mensagem queé transmitida em primeiro lugar tem, por vezes, maior efeito(primacy effect) que as seguintes, mas a verdade é que nemsempre isso acontece. Já no que se refere à eficácia dacomunicação foi possível verificar que os elementos “devemser ordenados de maneira que sejam apresentados primei-ramente os que tendem a suscitar no auditório uma neces-sidade e depois os que tendem a fornecer informação sobreo modo de satisfazer essa necessidade”117. Quanto à apre-sentação conjunta de argumentos favoráveis e argumentoscontrários à tese do orador, trata-se de um método que pareceapresentar a dupla vantagem de reforçar, por um lado, aimparcialidade e a competência de quem fala e, por outro,de “tornar o receptor mais imune em relação a ulteriorestentativas de influenciá-lo”118. Mas ainda assim, advertemSecord e Backan (1964), “os elementos favoráveis devemser apresentados de tal maneira que determinem a aceitaçãodo falante e da sua mensagem antes que o receptor sejaexposto a comunicações em contrário”119. Estas indicações,porém, não chegam a pôr em crise o método de apresentarapenas argumentos favoráveis que mantém a sua utilidadee eficácia num grande número de situações argumentativas.Hovland (1949) aliás, há muito estabelecera a necessidadede se recorrer a ambas as formas de argumentar, em funçãodas particulares características do respectivo auditório, depois

_______________________________117 - Bitti, P. e Zani, B., A comunicação como processo social, Lisboa:

Editorial Estampa, (2ª. ed.), 1997, p. 250118 - Ibidem, p. 251119 - Ibidem, p. 250

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de ter chegado experimentalmente a uma conclusão deverasinteressante: que a comunicação através de argumentoscontrários é mais efectiva para as pessoas que estão melhorinformadas sobre a questão em apreço e que inicialmentese opõem à respectiva proposta, mas o mesmo já não sucedecom aqueles que pouco sabem da questão e que inicialmenteestão de acordo com o que lhes é sugerido, perante os quaisa comunicação exclusivamente à base de argumentos favo-ráveis se revela mais eficaz120.

Um outro problema que se apresenta ao orador é o de,no final da sua argumentação, descobrir qual a melhor formade tornar a conclusão verdadeiramente persuasiva: apresentá-la explicitamente ao auditório, ou, pelo contrário, deixar queeste a descubra pelos seus próprios meios? Temos aqui umconfronto entre o método directivo e o método não-directivo,que Jaspars (1978) resolve a favor do primeiro, ao sustentarque os estudos sobre a modificação de atitudes mostram queé mais eficaz a apresentação directa das conclusões aoreceptor121. As múltiplas variáveis que afectam o processopersuasivo alertam-nos, porém, também neste aspecto, paraos perigos de uma visão demasiado simples ou redutora.Urge por isso ter sempre presente as condições concretasda persuasão, nomeadamente, as características particularesdo auditório, pois como verificaram Hovland e os seuscolegas, o que se passa, mais exactamente, é que se, emgeral, o anunciar da conclusão pode incrementar a proba-bilidade do interlocutor compreender e reter os argumentos,já no caso especial dos receptores que são capazes de, poreles próprios, chegarem à conclusão, a probabilidade dereterem a mensagem e operarem a modificação da sua atitudeserá bem mais elevada. McGuire (1969) resume e explica_______________________________120 - Cf. Petty, E. e Cacioppo, J., Attitudes and Persuasion: Classic and

Contemporary Approaches, Oxford: Westview Press, 1996, p. 74121 - Cit. in Bitti, P. e Zani, B., A comunicação como processo social,

Lisboa: Editorial Estampa, (2ª. ed.), 1997, p. 251

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deste modo a posição actual sobre o problema: “pode serque se uma pessoa tira a conclusão por ela própria seja maispersuadida do que o seria se fosse o falante a fazê-lo porela; o problema é que nas situações de comunicação maisusuais o sujeito é insuficientemente inteligente ou não estásuficientemente motivado para tirar a conclusão por elepróprio e por isso, não capta o núcleo da mensagem, a menosque a fonte tire a moral da mesma por ele. Na comunicação,parece que não é suficiente conduzir o cavalo à água; alguémtem que puxar-lhe a cabeça para baixo e fazê-lo beber”122.

Impõe-se, finalmente, um olhar sobre a persuasão, tam-bém do ponto de vista de quem recebe a mensagem.Entendemos, aliás, que praticamente tudo o que atrás ficoudito a propósito da fonte e da mensagem aplica-se igual-mente à recepção, seu natural escopo, pois tanto as carac-terísticas persuasivas da fonte como as da mensagem sóproduzem efeitos graças à persuadibilidade dos respectivosdestinatários. É habitual distinguir-se as múltiplas investi-gações realizadas neste campo em função das diferentesestratégias em que se inscrevem. Segundo a estratégia dapersonalidade, a probabilidade de ficar mais exposto àinfluência de uma comunicação persuasiva está directamen-te relacionada com determinados traços de personalidade.Logo, remete-nos para o estudo de variáveis tais comointeligência, sexo e, sobretudo, auto-estima. Ao nível dainteligência McGuire (1968) propôs um modelo de perso-nalidade e persuadibilidade que veio clarificar muitas daspesquisas anteriormente realizadas. Segundo ele, a modifi-cação da atitude é determinada em duas fases: numa pri-meira, pela recepção dos argumentos da mensagem, inclu-indo o processo de atenção, compreensão e retenção; numasegunda, pela anuência à própria modificação. Sucede quemuitas vezes ocorrem efeitos opostos nessas duas fases. Por

_______________________________122 - Cit. in Petty, E. e Cacioppo, J., Attitudes and Persuasion: Classic

and Contemporary Approaches, Oxford: Westview Press, 1996, p. 76

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exemplo, os membros mais inteligentes de uma audiênciapodem compreender e recordar uma comunicação melhordo que os restantes membros, menos inteligentes. Logo, poder--se-ia supor que a modificação de atitude seria tanto maiorquanto mais inteligentes fossem as pessoas que constituissema audiência. Só que a inteligência pode igualmente tornaros receptores menos predispostos à influência por serem maisconfiantes nas suas próprias capacidades e, consequentemen-te, mais refractários a abandonarem a sua atitude inicial,o que atenua a modificação da atitude. Logo, mau gradoa clarificação que o modelo de McGuire veio conferir à com-preensão do papel da inteligência no processo persuasivo,o entendimento das relações entre os traços de personalidadee a persuadibilidade permanecia num certo impasse. Con-tudo, retomando o estudo dos efeitos relativos a cada umadas duas fases acima referidas, Eagly e Warren (1976), viriama constatar que a inteligência surge associada à melhorcompreensão e a uma (ligeira) maior anuência para com amensagem complexa e, em contrapartida, a igual compre-ensão e menor modificação de atitude na mensagem simples.Conclui-se, assim, que o nível de complexidade da men-sagem é determinante para se definir o papel que o factorinteligência pode desempenhar no processo de modificaçãode atitudes.

A variável sexo foi igualmente estudada, apontando osprimeiros trabalhos para uma maior susceptibilidade dasmulheres à persuasão. Uma das justificações era a de que,tendo as mulheres maior aptidão verbal do que os homens,seriam também capazes de compreender melhor os argumen-tos da mensagem e, consequentemente, ficariam mais re-ceptivas à modificação das atitudes. Eagly (1974), porém,veio pôr tudo isto em causa já que dos estudos que visavamdescobrir as diferenças de compreensão entre homens emulheres não resultaram quaisquer provas que apoiassemuma tal posição. Na prática, porém, as diferenças entrehomens e mulheres, ao nível da persuadibilidade existem,

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sem dúvida. A questão é a de determinar a que se ficama dever. Ora, para Petty e Cacioppo123, as duas explicações(sobre tais diferenças) que se mostram actualmente maiscredíveis, são as seguintes:

Primeiro, as diferenças em função do sexo podem serdevidas aos papéis sociais para que as mulheres e os homenssão educados: as mulheres socializadas para a cooperaçãoe manutenção da harmonia social, o que as tornaria maisacessíveis ao acordo, enquanto os homens, socializados paraserem assertivos e independentes, tenderão, naturalmente, aoferecer mais resistência à influência.

Segundo, as diferenças relativas ao sexo podem ocorrerporque a mensagem persuasiva em muitos estudos de in-fluência versa sobre temas em que os homens estão muitomais interessados e mais conhecedores do que as mulheres(tópicos masculinos versus tópicos femininos). E, neste caso,as diferenças de persuadibilidade em função do sexo, podemmuito bem ser uma consequência de ser mais fácil persuadiralguém que não tem muito interesse ou conhecimento sobreo assunto que está em discussão.

Se a primeira destas duas explicações nos parece terentretanto perdido grande parte do seu sentido, face ao cadavez maior esbatimento das diferenças sexuais na socializa-ção actual, já no que se refere à segunda, será inquestionávela sua pertinência, por radicar num factor extremamenteimportante e decisivo em qualquer processo de persuasão:o grau de relevância pessoal que o assunto em questão possater para a pessoa a persuadir. Em todo o caso, trata-se deum factor que está presente em todos os actos persuasivos,independentemente dos seus destinatários poderem ser homensou mulheres. Logo, apesar deste indicador centrado na maiorou menor relevância do tema se revestir de muito interessepara a compreensão e até para a operacionalização do processo

_______________________________123 - Petty, E. e Cacioppo, J., Attitudes and Persuasion: Classic and

Contemporary Approaches, Oxford: Westview Press, 1996, p. 83

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persuasivo, a questão essencial das eventuais diferenças depersuadibilidade em função do sexo, permanece, contudo,em aberto.

O modelo de personalidade e persuadibilidade de McGuirepermitiu também associar positivamente a auto-estima coma recepção da mensagem, e negativamente com a anuênciaà modificação que a mesma sugere ou propõe. As pessoascom baixa auto-estima seriam por isso menos propensas aprestar atenção e a apreender os conteúdos da mensagem,mas, por outro lado, mais susceptíveis à comunicaçãopersuasiva. Nisbett e Gordon 124 definiram mesmo uma relaçãoentre a auto-estima e a modificação de atitudes com basena maior ou menor dificuldade de compreensão da men-sagem, nos seguintes moldes: quando a mensagem é sim-ples, as pessoas com moderada auto-estima mostram a maiormodificação de atitude, mas quando a mensagem é complexaa maior modificação de atitude pertence às pessoas com altaauto-estima. Trata-se porém, uma vez mais, de uma indi-cação a seguir com alguma prudência, tanto mais quesurgiram, entretanto, alguns estudos obedecendo a diferentesorientações teóricas, que vieram pôr em causa qualquerdistinção dos efeitos persuasivos em função dacompreensibilidade da mensagem.

Estudar a persuasão (e, desde logo, a persuadibilidade)em função da sua relação com a personalidade, tem avantagem de sublinhar a necessidade de se centrar a atençãono receptor, quando o que está em causa é tentar percebero que leva à modificação das atitudes. Mas a compreensãoglobal dos mecanismos que asseguram tal modificação, requera consideração de diferentes perspectivas de análise. Daí orecurso a outras estratégias de abordagem, como a estratégiada motivação e a das respostas cognitivas. Relativamente

_______________________________124 - in Petty, E. e Cacioppo, J., Attitudes and Persuasion: Classic and

Contemporary Approaches, Oxford: Westview Press, 1996, p. 82

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à primeira, o maior relevo vai para a famosa Teoria dadissonância cognitiva, de Festinger (1957), que procura darconta do processo de modificação das atitudes, numa pers-pectiva internalista que vai muito para além das determi-nações da personalidade. Festinger descreve a dissonânciacomo sendo essencialmente um estado de motivação quefornece energia e direcção ao comportamento. Não hesitapor isso em fazer a analogia com o que se passa com afome: “just as hunger is motivating, cognitive dissonanceis motivating”125. Isto é, a dissonância cognitiva faz apareceruma actividade orientada para a redução ou eliminação dessadissonância e o sucesso na sua redução ou anulação é arecompensa, no mesmo sentido em que o é, igualmente, ocomer quando se está com fome. Dito de outro modo, sedetectamos alguma incoerência nas nossas atitudes, oucrenças, ou comportamentos, experimentamos um certo estadode desassossego (dissonância cognitiva) que se converte numimpulso dirigido para a reposição do nosso equilíbrio psi-cológico. Logo, para reduzirmos ou anularmos essadissonância cognitiva temos que fazer algo. E Festinger sugeretrês modos possíveis de se reagir à dissonância: primeiro,a pessoa muda um dos elementos para tornar os dois ele-mentos mais consonantes. Por exemplo, o fumador que tomaconsciência de que o fumo prejudica gravemente a saúdepode parar de fumar e assim, mudando o elementocomportamental, elimina a dissonância entre as cogniçõesde conhecimento eu fumo para gozar a vida e fumar podecausar-me a doença e uma vida miserável. Sabe-se, con-tudo, como em muitos casos as pessoas experimentam sériasdificuldades em alterar este elemento do comportamento.Segundo, a pessoa pode reduzir a mesma dissonância, pelaadição de cognições consonantes. É o caso do fumador, quea despeito da evidência de que o fumo provoca graves

_______________________________125 - in Petty, E. e Cacioppo, J., Attitudes and Persuasion: Classic and

Contemporary Approaches, Oxford: Westview Press, 1996, p. 138

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doenças, resolve fazer uma pesquisa de informação que ponhaem causa a validade científica dessa conclusão. Por último,a pessoa pode reduzir a dissonância cognitiva relativizandoa importância de tais cognições, como o faz o fumador quese convence a si mesmo de que o prazer que o cigarro lhedá é muito superior ao risco que constitui para a sua saúde.Estes são os três modos que, segundo Festinger, levam àredução da dissonância. Resta dizer que, em princípio, seráseleccionado aquele que menos resistência oferecer à res-pectiva modificação de atitude.

Quanto à estratégia das respostas cognitivas ela centra--se ainda no receptor e nos processos cognitivos que fazema mediação das suas reacções às comunicações persuasivas.Está agora em foco o papel do pensamento no processo depersuasão e na modificação da atitude. O pressuposto-basedesta estratégia é o de que os pensamentos que as pessoaselaboram por si mesmas podem ser tão ou mais efectivosna produção de uma mudança de atitude do que as própriasmensagens que lhes chegam do exterior. O processo é descritodeste modo por Petty e Cacciopo: “quando uma pessoaantecipa ou recebe uma comunicação persuasiva, tentarelacionar a informação contida na mensagem (ou na es-perada mensagem) com o conhecimento pré-existente queela tem acerca do assunto em causa. Ao fazer isto, estaráa considerar uma substancial quantidade de informação quenão se encontra na comunicação em si mesma. Estas adi-cionais respostas cognitivas auto-elaboradas (pensamentos)podem concordar com as propostas feitas pela mensagem,discordar ou serem inteiramente irrelevantes para a comu-nicação”126. Por exemplo, quando o Primeiro-Ministro anun-cia que vai aumentar os impostos para resolver a situaçãofinanceira da Segurança Social e garantir o pagamento de

_______________________________126 - Petty, E. e Cacioppo, J., Attitudes and Persuasion: Classic and

Contemporary Approaches, Oxford: Westview Press, 1996, p. 225

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reformas mais dignas, as pessoas podem pensar para elaspróprias: “Mas que excelente ideia! Até que enfim que vamoster uma boa reforma!” ou “Que estúpido! Já pagamosimpostos a mais!”. O que a teoria das respostas cognitivassustenta, é que este tipo de cognições eleitas pela pessoano momento em que recebe a mensagem, determinarão aintensidade e a direcção da modificação de atitude produ-zida. Logo, na medida em que a comunicação evoquerespostas cognitivas de apoio (pró-argumentos ou pensamen-tos favoráveis), a pessoa tenderá a concordar e a aderir aoconteúdo da mensagem. Se tais respostas cognitivas foremantagónicas (contra-argumentos ou pensamentos desfavorá-veis), a tendência será para discordar da mensagem.

Acabamos de nos referir a algumas das principais ori-entações teóricas que estão por trás das sucessivas inves-tigações sobre o fenómeno persuasivo. Cada uma com osseus méritos próprios, mas também, por vezes, com eviden-tes limitações, tanto ao nível dos resultados obtidos comono que concerne às respectivas metodologias de pesquisa.O que é curioso, no entanto, é que, apesar de muitas dessasdiferentes aproximações à persuasão competirem entre si nainterpretação dos resultados de uma particular experiência,nenhuma delas foi até hoje completamente abandonada,verificando-se antes, isso sim, uma cada vez maior tendênciapara restringir os seus domínios de aplicação. Não podemos,por isso, terminar esta incursão ao estudo experimental damodificação de atitudes, sem fazer uma breve referência ao“quadro geral de entendimento” elaborado por Petty eCacioppo, através do qual estes dois autores procuram fazeruma síntese da maioria dos conceitos presentes nas inúmerasinvestigações já realizadas.

Petty e Cacioppo defendem que embora tais investiga-ções difiram nos nomes, postulados e particulares efeitosque procuram explicar, podem ser pensadas comocorrespondendo a duas vias únicas para modificar a atitude.Uma primeira, a que chamam via central que enfatiza a

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informação que a pessoa tem sobre a atitude, objecto ouquestão em causa. Teremos aqui um processo de persuasãoacentuadamente racional, em que o receptor atenta nosargumentos da mensagem para os compreender e avaliar.Alguns argumentos conduzi-lo-ão para pensamentos favo-ráveis enquanto outros lhe suscitarão contra-argumentos. Umasegunda via para a modificação da atitude, pelos mesmosautores designada como via periférica, consistirá no recursoa outros factores de persuasão tais como administração derecompensas ou punições e as inferências que a pessoa retirasobre os motivos pelos quais o falante argumenta em favorde determinada posição. Esta segunda via para a persuasãojá não passa predominantemente pelo pensamento e refle-xão: se a mensagem é associada a uma sensação agradávelou a uma fonte atractiva ou credível, ela é aceite; se amensagem coloca o sujeito numa posição demasiado dis-crepante, é rejeitada. Ou seja, o receptor toma consciênciada sua própria resposta comportamental ou fisiológica e daíinfere qual a atitude que tem que assumir. À primeira vista,parece que a diferença entre estas duas vias de persuasão,poderia ser assim definida: a primeira é racional ou lógicae a segunda não é. Mas Petty e Cacioppo advertem quetanto os pensamentos favoráveis como os contra-argumentosque a pessoa elabora em resposta à mensagem não neces-sitam de ser estritamente lógicos ou racionais. Basta quefaçam sentido para a pessoa que os elabora127.

Essa diferença, dizem os autores, tem mais a ver como alcance da mudança de atitude que se fique a dever aopensamento activo sobre a informação relevante fornecidapela mensagem quanto à atitude, questão ou objecto con-siderados. Assim, na via central, o pensamento sobre ainformação relevante para a questão em apreço, é o que

_______________________________127 - Afirmação que parece compatível com o conceito damasiano de uma

racionalidade integradora da emoção e dos afectos.

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mais directamente determina a direcção e intensidade damudança de atitude produzida. E é nesta via que recai todaa persuasão que resulta do pensamento acerca da questãoou dos próprios argumentos em causa. Já na via periférica,a mudança de atitude fica a dever-se aos factores e motivosinerentes à persuasão que se mostram suficientes para levara uma mudança da atitude inicial, sem que seja necessárioqualquer pensamento activo sobre os atributos da questãoou assunto em apreço. Tais factores e motivos são de naturezadiversa mas podem consistir, por exemplo, no associar aposição que se defende a outras coisas sobre as quais oreceptor já tem um sentimento favorável (tais como oalimento, o dinheiro ou o prestígio), em atribuir a autoriade uma afirmação ou declaração a uma fonte especializada,atractiva ou detentora de poder, ou no expôr a causa somentedepois de ter apresentado uma série de outras causas menoresa que o receptor não dê grande importância, para que emcomparação possa parecer menos má ou melhor.

Qual destas duas vias é de mais fácil implementação?Quando deveremos optar por uma ou por outra? Petty eCacioppo concluem que a via central é a mais difícil formade modificar as atitudes, dado, sobretudo, a dificuldade dese construir mensagens altamente persuasivas. É que se osargumentos inventados não forem irresistíveis, as pessoaspoderão contra-argumentar. Por outro lado, se foremirresistíveis mas demasiado complexos para serem inteira-mente compreendidos, os destinatários deixar-se-ão guiar maispela sua atitude inicial do que pelos próprios argumentos.A esta dificuldade, aliás, junta-se igualmente o facto dainformação apresentada ter que provocar no sujeito respostascognitivas favoráveis à aceitação do que lhe é proposto, bemcomo a necessidade do receptor estar não só habilitado comotambém motivado para compreender o conteúdo da comu-nicação. É, aliás, no campo da motivação que se situa oprincipal problema a resolver, sempre que o esforço per-suasivo incida, exclusiva ou basicamente, sobre a força dos

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respectivos argumentos: como motivar alguém a prestaratenção e a pensar sobre o que temos para lhe dizer? Tudoisto faz com que em certos casos, a via central, que apostana atenção e compreensão da mensagem, tenha que serpreterida em favor de uma persuasão via periférica, que nãoexige um nível tão acentuado de pensamento activo nemincide sobre informação relevante para a compreensão daquestão em aberto. Segundo o quadro geral de entendimentoproposto por Petty e Cacioppo para a compreensão damodificação de atitudes, saber então quando se deve optarpor uma ou outra destas duas vias de persuasão é uma questãoque só pode ser resolvida em concreto, conhecidos que sejama força dos argumentos e a capacidade de elaboração doauditório: se é alta a probabilidade de elaboração por partedo receptor e se os argumentos são persuasivamente fortes,a via central pode ser a melhor estratégia a seguir; se, pelocontrário, é baixa a probabilidade de elaboração e os ar-gumentos são fracos, nesse caso, a melhor estratégia seráo recurso à via periférica.

Por muito sedutora que seja esta proposta de Petty eCacioppo, não parece possível isentá-la de alguns reparos,nomeadamente, quando confrontada com o conceito depersuasão crítica que vimos sustentando, ao qual, em nossaopinião, não se ajusta. É o caso, por exemplo, da excessivageneralização empreendida pelos respectivos autores, que,na ânsia de uma grande síntese, viram-se forçados a deixarde lado muitas das particularidades de cada uma das di-ferentes investigações, teorias e situações persuasivas quelhes serviram de referência. Foram assim conduzidos, emnome de um único e algo arbitrário princípio unificador –o princípio do pensamento activo – à separação entre apersuasão que enfatiza a informação de que o receptor dispõesobre a questão em aberto (via central) e a persuasão quese orienta e rege por factores e motivos que parecem nãopossuir qualquer relevância informativa ao nível da apre-ciação da causa (via periférica), tais como sublinhar a

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credibilidade do comunicador ou as consequências da nãoadopção da solução proposta, a administração de recompen-sas e punições, a atractibilidade da mensagem ou da suaapresentação e um muito vasto leque de técnicas ou pro-cedimentos persuasivos mais virados directamente para adecisão ou acção do receptor do que para a sua compreensãoda respectiva mensagem. O resultado foi o agrupar em cadaum dos lados (via central e via periférica), distintas inves-tigações cuja autonomia e diversidade tendem a passardespercebidas quando classificadas apenas em função dainformação relevante sobre a questão em apreço.

Por outro lado, independentemente dessa falta dehomogeneidade teórica no interior de cada uma das referidasvias de persuasão, o critério subjacente à classificaçãodicotómica de Petty e Cacioppo levanta alguns problemasde difícil solução, a nível interpretativo. Que devemosentender por informação relevante para a compreensão damensagem? A informação pré-existente no receptor sobreo assunto em causa ou a que lhe é fornecida pela própriamensagem? E a sua relevância deverá ser apreciada em termosobjectivos e universais, ou pelo contrário, avaliar-se-á se-gundo as necessidades próprias de cada auditório?

Finalmente, uma questão relacionada com os limites ético--filosóficos da persuasão. Referimo-nos exactamente àpretensa autonomia da via periférica nos moldes em queos autores a deixam entender, nomeadamente, na afirmaçãocom que terminam o seu livro: “se os únicos argumentosdisponíveis são fracos ou se a probabilidade de elaboraçãoé baixa, então a via periférica será a estratégia maisindicada”128. É que, de acordo com a orientação que temosvindo a desenvolver, o que parece mais indicado quandoos argumentos são fracos é, simplesmente, não argumentar.Se nós próprios reconhecemos a fraqueza dos argumentos,

_______________________________128 - Petty, E. e Cacioppo, J., Attitudes and Persuasion: Classic and

Contemporary Approaches, Oxford: Westview Press, 1996, p. 268

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que legitimidade teríamos para tentar influenciar o nossointerlocutor? É certo que, em alguns casos, para persuadiralguém sem qualquer infracção ética, não precisamos sequerde acreditar nas razões que lhe expomos, de reconhecê-lascomo suficientemente fortes para nos convencerem, bastan-do que tenhamos a convicção íntima de que são boas paraessa pessoa ou por ela vistas como tais. De facto, contra-riamente ao pensamento comum, nem sempre é rigorosa-mente necessário que o vendedor acredite no seu próprioproduto. Basta-lhe a convicção de que há pessoas (clientes)para quem esses produtos são, na verdade, a melhor solução,dado o seu particular quadro de crenças e valores. Isto querdizer apenas que a avaliação da força dos argumentos nãopode deixar de ter em conta o perfil dos destinatários dapersuasão. Outra coisa é admitir que a persuasão se podeficar pela dita via periférica, ou seja, prescindir da infor-mação necessária para a apreciação do mérito da questão.Fazê-lo, seria incorrer na manipulação mais grosseira doauditório, um pouco à semelhança do ilusionista que chamaa atenção sobre a mão vazia só para esconder o que temna outra, que mantém fechada. A persuasão discursiva queestá no centro da nova retórica reparte-se pelo ethos, pelologos e pelo pathos mas não prescinde de uma dimensão críticafundada na ética da discutibilidade. Impõe-se, por isso, re-conhecer o primado da via central em todo o acto persuasivo,embora sem menosprezar o importante papel que a viaperiférica pode desempenhar para a ele se aceder. Deste modo,poderemos encarar estas duas vias como complementares emvez de alternativas, pois a inserção humana e relacional detodo o processo de persuasão fatalmente leva a que, em maiorou menor grau, ambas estejam sempre presentes.

2.4. - O modelo hipnótico da persuasão

Parecerá surpreendente ou até despropositado chamar ahipnose a um estudo sobre a retórica - enquanto técnica de

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persuasão discursiva - principalmente quando se pretende pri-vilegiar a sua dimensão crítica. É que o simples enunciar dapalavra hipnose pode remeter-nos, tão somente, para um cenáriode submissão, de interrupção dos processos lógicos e enfra-quecimento da vontade de um sujeito (hipnotizado) que sucumbeà manipulação mais ou menos autoritária de outro (hipnotizador).A hipnose estaria pois nos antípodas da nova retórica, peloque a pertinência da sua convocação resumir-se-ia, quando muito,a uma utilidade meramente comparativa. E ainda assim, apenaspara ilustrar o que a retórica não é, nem deve ser.

A hipótese que aqui queremos formular vai, porém, numoutro sentido. Funda-se na convicção de que, sob o pontode vista da relação com o outro, logo, ao nívelcomunicacional, entre retórica e hipnose as diferenças serãomais de grau ou intensidade do que de natureza. Estaafirmação carece, no entanto, de um prévio esclarecimentosobre a particular acepção de hipnose129 que aqui acolhemos.Por um lado, porque até ao momento, “não existem teoriasexaustivas que expliquem a hipnose.Todas as teorias sãoparciais. Cada uma fornece uma explicação a um certonível”130 e, por outro, porque mesmo no domínioterminológico, subsistem distinções cuja relevância varia deautor para autor131. Subjacente a esta falta de unidade teóricasobre a hipnose, está uma questão que permanece por resolver:a de saber se o estado hipnótico “contém algo de específicoou unicamente os elementos introduzidos pelohipnotizador”132. Para uns133, a hipnose não é mais do que_______________________________129 - Referir-nos-emos aqui, sobretudo, à hipnose psicoterapêutica, por

corresponder, incontestavelmente, ao campo de aplicação mais testadopela investigação científica.

130 - Chertok, L. L’hypnose, Paris: Éditions Payot, 1989, p. 35131 - Situação muito análoga ao que se passa com a investigação expe-

rimental da persuasão.132 - Chertok, L. L’hypnose, Paris: Éditions Payot, 1989, p. 33133 - Bernheim e seus seguidores.

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sugestão. Para outros, é de admitir “a existência específicade um estado hipnótico assente sobre uma base quase or-gânica”,134 chegando Chertok a defini-lo como um “quartoestado do organismo, actualmente não objectivável (ao in-verso de três outros: a vigília, o sono, o sonho): uma espéciede potencialidade natural, de dispositivo inato....”135. Seja,porém, qual for o desfecho desta polémica, notemos queela se centra muito mais sobre a causa primeira da hipnosedo que nas condições e factores que lhe dão origem, paraalém de igualmente não questionar a positividade dos seusefeitos. Estes últimos viriam mesmo a ser devidamentecertificados, em 1959, quando a Comissão da British MedicalAssociation estabeleceu a seguinte definição:

[A hipnose é] ...um estado passageiro de atenção mo-dificada no sujeito, estado que pode ser produzido por umaoutra pessoa e no qual diversos fenómenos podem aparecerespontaneamente ou em resposta a estímulos verbais ououtros. Estes fenómenos compreendem uma modificação daconsciência e da memória, uma susceptibilidade acrescidaà sugestão e o aparecimento no sujeito de respostas e ideiasque não lhe são familiares no seu estado de espírito ha-bitual136.Se atentarmos bem nesta insuspeita definição, não po-

deremos deixar de descortinar uma assinalável semelhançaentre a descrição nela contida e o que em grande parte sepassa no processo de persuasão inerente a toda a situaçãoretórica. É que, como diz Mambourg, “toda a interacção entreduas pessoas conduz a uma modificação do estado deconsciência e a respostas diversas e imprevisíveis como oriso, o choro, a cólera, a empatia, os envolvimentos públicosou secretos, o sofrimento, o prazer, etc.”137. Tal modificação,

_______________________________134 - Chertok, L. L’hypnose, Paris: Éditions Payot, 1989, p. 33135 - Ibidem, p. 260136 - Cit. in ibidem, p. 32137 - Mambourg, P.-H., Du rôle de l’hypnose dans la formation des

thérapeutes, in Michaux, D. (Org.), Hypnose, Langage etCommunication, Paris: Editions Imago, 1998, p. 209

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no entanto, varia de intensidade conforme o contexto, o tipode relação e os efeitos visados em cada situação interaccional.O que equivale a dizer que “certos tipos de relaçõesinterpessoais provocam um estado de consciência modifi-cada mais profundo do que outros. É o caso de situaçõesonde a relação é notoriamente complementar: relações pais/filhos, patrão/empregado, juiz/arguido, comandante/soldadoe, entre outras, a relação médico/paciente”138. A relação orador/auditório não pode pois deixar de ser igualmente compre-endida à luz da modificação do estado de consciência quenela e por ela se opera, ainda que sem a profundidade quecaracteriza a relação hipnotizador/hipnotizado. Neste senti-do, o acolhimento da definição avançada pela Comissão daBritish Medical Association, constitui, por si só, um primeiroenquadramento da nossa hipótese na similitude estrutural efigurativa em que pensamos a retórica e a hipnose. Mas aafirmação de que as diferenças entre uma e outra serão maisde grau ou intensidade do que de natureza, ganhará em rigore possibilidade de aplicação prática, se a fizermos incidirfundamentalmente sobre a fase do processo hipnótico emque o sujeito permanece no estado de vigília. Ou seja, aquelemaior ou menor lapso de tempo que decorre entre o inícioda chamada indução hipnótica e o “mergulhar” no estadode hipnose. Porque é aí que se joga o sucesso ou o fracassoda sessão hipnótica, que a eficácia das técnicas usadas pelohipnotizador será submetida à prova de fogo, que a forçapersuasiva dos seus “argumentos” ditará ou não a “adesão”do paciente. É verdadeiramente nessa fase que a hipnosese mostra passível de confronto com a situação persuasivaem que tem lugar a retórica. Pela simples razão de que paraque se possa falar de persuasão será sempre necessário quese verifique uma condição: que a pessoa a quem queremospersuadir não esteja já (por sua própria iniciativa) na dis-posição de pensar o que pretendemos que pense ou de agir

_______________________________138 - Mambourg, P.-H., Du rôle de l’hypnose dans la formation des

thérapeutes, in Michaux, D. (Org.), Hypnose, Langage etCommunication, Paris: Editions Imago, 1998, p. 209

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como intentamos que aja. Não persuadimos a caminhar quemjá se encontra a fazê-lo ou com predisposição para o fazer.E, por conseguinte, também não podemos falar de persuasãoa partir do momento em que o sujeito está hipnotizado, poisaí, o natural enfraquecimento das suas defesas psíquicas efísicas leva a uma anormal redução da capacidade críticaque mantém habitualmente no estado de vigília. Nesse estádioda hipnose, o sujeito já está predisposto para aceitar asugestão, para a pôr em prática sem a submeter ao crivodo seu raciocínio, pelo menos nos moldes em que o fariaantes da respectiva indução hipnótica. É certo que algumassituações retóricas, nomeadamente, as mais emotivas e, emespecial, quando lideradas por oradores virtuosos, podem,por vezes, dar origem a estados de passividade ou mimetismodo auditório (ainda que não intencionalmente provocados).A verdade, porém, é que o grau ou intensidade da reduçãode capacidade crítica que daí deriva, é incomensuravelmenteinferior ao que se observa em qualquer estádio de hipnosemédia ou profunda139. Daí que restrinjamos o campo deaplicação da nossa hipótese à fase da indução hipnótica, ondeo sujeito, partindo do estado de vigília (tal como na retórica),isto é, de uma situação em que mantém o seu livre raci-ocínio, passa por um estádio intermédio de sugestibilidadeaumentada e, finalmente, “cai” em hipnose. O facto de ométodo de sugestão verbal ocupar um lugar de grande relevoentre as diversas técnicas de indução hipnótica, só vemconfirmar que, na retórica como na hipnose, é visível a_______________________________139 - Para a classificação dos diferentes estados intermediários entre a

plena vigília e o transe profundo, a generalidade dos autores [Chertock,1989; Liguori, 1979; Eysenck,1956; Rhodes, 1950, etc.] recorre àconhecida Escala de Davis e Husband que estabelece quatro grausde hipnose por ordem crescente: estado hipnoidal, transe ligeiro,transe médio e transe profundo. Segundo esta mesma escala, o transemédio e o transe profundo são os únicos estádios da hipnose emque já se registam alterações de personalidade no paciente.

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centralidade de um processo de comunicação cujos meca-nismos e efeitos podem ser compreendidos à luz de umagrelha analítica comum: a tríade aristotélica ethos-logos-pathos. Para tanto, basta que substituamos o orador pelohipnotizador, a argumentação retórica pela indução hipnótica(verbal) e o auditório pelo paciente. Ao triângulo da argu-mentação suceder-se-á assim o triângulo da hipnose.

A adesão como critério de eficácia, a adaptação aoauditório (ou paciente), o uso da linguagem, a forma de dizer,o encadeamento de ideias ou argumentos intimamentesolidários entre si, a ordem da sua apresentação, o efeitode presença e as figuras de estilo, são apenas alguns dosinúmeros critérios e recursos preponderantes tanto no dis-curso e na acção do orador como do hipnotizador. Mas ésem dúvida ao nível do ethos que a afinidade entre ambosmelhor pode ser estabelecida, porque tal como sucede naretórica, o poder de influência do hipnotizador não derivanunca exclusivamente das técnicas que usa. A condiçãoprimeira da sua força persuasiva advém-lhe do seu carácter,ou, melhor dizendo, do carácter que revela, do modo comose torna digno de confiança e das qualidades que o pacientenele possa reconhecer. E se a credibilidade do orador retóricojoga um papel decisivo no processo de persuasão - na medidaem que, por si só, desperta ou justifica a atenção do auditórioe nele faz emergir um sentimento de confiança moral e técnicanos seus argumentos - por maioria de razão, terá que estarpresente na indução hipnótica. É que, diferentemente do quese passa na retórica, onde o sujeito é persuadido, basica-mente, a imprimir uma diferente direcção ao seu raciocínioe à sua decisão, na hipnose, a adesão do paciente incidesobre o progressivo abandono ou redução da sua própriacapacidade de raciocinar e de decidir autonomamente. Logose vê, então, como embora orientadas para um objectivogeral comum – a modificação de atitudes e comportamentos– retórica e hipnose correspondem, no entanto, a processosde influência de diferente grau ou intensidade, ao nível da

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acção sobre o outro. Processos que nem sempre é fácildistinguir por ser praticamente impossível eleger um critérioobjectivo e inequívoco para estabelecer com segurança se,em dado momento, o sujeito se encontra ou não sob in-fluência hipnótica. Ora é justamente este ponto que preten-demos realçar - a inexistência de uma rigorosa fronteira entreos dois fenómenos. De um lado, a retórica, em que opredomínio da discutibilidade crítica é inseparável do registode sensibilidade em que se inscrevem os estados emocionaisdo auditório. Do outro, a indução hipnótica, cuja focalizaçãosensorial e subjectiva reduz, mas não chega nunca a anular,a capacidade de raciocínio do paciente (nem mesmo no maisprofundo estádio hipnótico), pois, de outra forma, ele ficariasem poder compreender e agir em conformidade com assugestões do hipnotizador. Confirma-o D.-L. Araoz, citadopor Yves Halfon, quando destaca que “o hipnoterapeuta põeo acento sobre a imagem e não a razão; sobre a sensaçãoe não a lógica; sobre o afecto e não a compreensão, se bemque a razão, a lógica e a compreensão não sejam totalmentenegligenciados na hipnose”140.

A mesma indeterminação ou ambiguidade pode ser de-tectada ao nível da linguagem e demais recursos persuasivos,pois a estreita vizinhança das técnicas discursivas presentestanto na retórica como na hipnose, leva a que, em cada uma,seja frequente a utilização de procedimentos mais conotadoscom a outra. É o caso, por exemplo, da metáfora. Tradici-onalmente associada à retórica, ela surge também como recursohipnoterapêutico tão valioso que Bertoni, psiquiatra e inves-tigador associado ao Grupo de investigadores sobre comu-nicações, da Universidade de Nancy, não hesita em dizer:“nada melhor do que a metáfora permite esclarecer-nos sobre

_______________________________140 - Halfon, Y., Le langage figuratif en hypnose, in Michaux, D. (Org.),

Hypnose, Langage et Communication, Paris: Editions Imago, 1998,p. 68

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as crenças, os desejos, as intenções que presidem às relaçõesque o paciente mantém com o mundo...”141. A utilização dametáfora na hipnose vai, contudo, muito para além destasua função hermenêutica. O facto de a indução hipnóticase apoiar num específico uso da linguagem que, seguindoa terminologia de Austin, poderemos descrever como umasérie de actos perlocucionais, faz com que o dizer dohipnotizador se assuma, ao mesmo tempo, como um fazer,um actuar sobre a radical interioridade do paciente, que omesmo é dizer, sobre a esfera mais básica e essencial dasua vivência. Além disso, o discurso do hipnotizador, os seuscomandos, as suas sugestões, apelam para o novo, para umamudança cujos efeitos são por ele antecipadamente anun-ciados, mas que o paciente verdadeiramente só reconhecerádepois de os experienciar. E é esta remissão para o domíniodo vivo e do novo que a expressão literal se mostra incapazde efectuar. Ora, como se sabe, a metáfora acrescenta sempreum mais de sentido do que o faria a correspondente ex-pressão literal, já que, como refere Innerarity, ela “mostrao indizível enquanto indizível na sua radical singularidade”142.

Um segundo exemplo tem a ver com as técnicas defocalização da atenção inerentes à hipnose que, embora sema mesma intensidade, se revelam também muito úteis, quandonão, imprescindíveis, na recepção dos argumentos proferidospelo orador. Com efeito, o que a indução hipnótica põe emmarcha não é outra coisa senão uma redução do campo deconsciência do paciente, que, partindo de uma situação inicialde vigília em que a sua atenção se encontra dispersa portudo o que ocorre à sua volta, é levado a concentrar-se cadavez mais em si mesmo e na relação que mantém com o_______________________________141 - Bertoni, N., La métaphore en hypnothérapie des maladies

psychosomatiques, in Michaux, D. (Org.), Hypnose, Langage etCommunication, Paris: Editions Imago, 1998, p. 156

142 - Innerarity, D., A Filosofia como uma das Belas Artes, Lisboa: EditorialTeorema, Lda., 1996, p. 78

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hipnotizador. E são dois os principais efeitos que daquidecorrem: “por um lado, a imobilidade do corpo que ficaindiferente a todos os estímulos exteriores para além da vozdo terapeuta, por outro, uma vivacidade da atenção do sujeitoa tudo o que se passa nele e por ele, ligada à possibilidadede uma proliferação imaginária”143. Dá-se assim umafocalização da atenção que, sendo particularmente intensano caso da hipnose, nem por isso deixa de estar igualmentepresente, como diz Cudicio, “em outros tipos de interacçõesque têm por fim influenciar ou convencer. O orador quese dirige aos seus auditores, olha-os, interpela-os, serve-sedos seus motivos de preocupação para melhor destacarquaisquer pontos de vista que, em seguida, lhe servirão debase para modificar, segundo a sua conveniência, as posi-ções e os sinais daqueles que o escutam”144. Descobrir oque mais preocupa o auditório, aquilo a que atribui maissignificado, interesse ou valor, insere-se numa estratégia quevisa prender a sua atenção, despertando-lhe o desejo de escutaro que o orador tem para lhe dizer. O que constitui umacondição prévia da argumentação a que nenhum orador sepode furtar, pois como diz Perelman, “é preciso que umdiscurso seja escutado”145 para que possa ter lugar o contactode espíritos entre orador e auditório, próprio de toda a relaçãoretórica. Logo, enquanto condição necessária tanto à retóricacomo à indução hipnótica, a focalização da atenção dosinterlocutores oferece-se como ponto de partida ideal paraa compreensão da proximidade processual entre uma e outra.E senão vejamos: em que consiste e como se realiza essa_______________________________143 - Bertoni, N., La métaphore en hypnothérapie des maladies

psychosomatiques, in Michaux, D. (Org.), Hypnose, Langage etCommunication, Paris: Editions Imago, 1998, p. 151

144 - Cudicio, P., Des manipulations mentales, in Michaux, D. (Org.),Hypnose, Langage et Communication, Paris: Editions Imago, 1998,p. 191

145 - Perelman, C., O império retórico, Porto: Edições ASA, 1993, p. 29

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focalização da atenção? Todos sabemos como numa situaçãoou estado normal a nossa atenção permanece mais ou menosdistribuída por um sem número de factos ou estímulos. Aimagem e o som do televisor, o tocar do telefone, o amigoque nos bate à porta, a temperatura que faz na sala, o solque nos entra pela janela, o conforto do sofá sobre o qualrepousamos, o fumo de um cigarro entre os dedos, o jornalque folheamos algo displicentemente, são apenas algumasdas percepções quase simultâneas que a nossa memóriaimediata se encarrega de manter perfeitamente disponíveis,ao alcance da nossa consciência. Trata-se, porém, de umaatenção minimalista, superficial e algo difusa, que, ao nãoincidir especialmente sobre nada, tudo nos permite ter à mão.Mas imaginemos agora que, a certa altura, somos surpre-endidos, no decurso da nossa despreocupada leitura do jornal,por uma notícia que, por este ou aquele motivo, conside-ramos muito preocupante, ou então, excepcionalmente fa-vorável a um qualquer interesse que nos diz directamenterespeito. A nossa curiosidade agudiza-se, a leitura pode tornar--se anormalmente apressada, mas, acima de tudo, por nadadeste mundo quereremos perder o menor detalhe de umainformação tão importante. Precisamos pois de prestar a maioratenção ao que é dito na respectiva notícia. Simplesmente,como diz Damásio, “a atenção e a memória de trabalhopossuem uma capacidade limitada”146, o que faz com queesse acréscimo de atenção que passamos a colocar na leiturado jornal, tenha como consequência directa uma correspon-dente diminuição da atenção sobre aquela pluralidade de factos_______________________________146 - Damásio, A., O Erro de Descartes, Mem Martins: Publicações Europa-

América, (15ª. ed.), 1995, p. 184. Note-se que Damásio define a“atenção” como capacidade de concentração num determinadoconteúdo mental em detrimento de outros, e “memória de trabalho”como consistindo na capacidade de reter informação durante umperíodo de muitos segundos e de a manipular mentalmente (p. 61,op. cit.).

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e acontecimentos sobre os quais mantínhamos até aí umapreciável controlo e vigilância. Isto, no que respeita aosestímulos que nos são exteriores. Mas, com a redução do campode consciência, é de admitir que um processo análogo ocorratambém dentro de nós, ao nível dos conteúdos mentais a quepassamos a ter acesso, pois, ainda no dizer de Damásio, “asimagens que reconstituímos por evocação ocorrem lado a ladocom as imagens formadas segundo a estimulação vinda doexterior”147. E, como sustenta este mesmo autor, as imagenssão provavelmente o principal conteúdo dos nossos pensamen-tos, independentemente da modalidade em que são geradase de serem sobre uma coisa ou sobre um processo que envolvecoisas, palavras ou outros símbolos. Logo, retomando oexemplo da notícia do jornal, o embrenharmo-nos profunda-mente na sua leitura dá-se à custa de uma focalização danossa atenção sobre o respectivo texto que, embora necessáriaà melhor compreensão possível, pode, a partir de determinadonível de intensidade, levar-nos à perda daquelas referências con-cretas ou idealizadas que normalmente nos asseguram arelativização do raciocínio e da própria avaliação. Ora o esfumardessas referências só pode levar a uma tendência para aabsolutização dos nossos juízos, na medida em que, desapa-recendo os padrões comparativos, o que é pensado surge-noscomo valendo por si mesmo, ou seja, não é verdadeiro nemfalso, não é certo ou incerto, não é preciso nem impreciso.É, simplesmente. E como tal é assumido. Nenhuma compa-ração, nenhuma resistência: eis o limiar da própria hipnose148.

_______________________________147 - Damásio, A., O Erro de Descartes, Mem Martins: Publicações Europa-

América, (15ª. ed.), 1995, p. 124148 - Apesar deste exemplo se relacionar mais directamente com a chamada

auto-hipnose, o processo de focalização da atenção que nele sedescreve é em tudo idêntico ao da hipnose induzida por uma terceirapessoa. Acresce que, para Chertock, a auto-hipnose é, em geral, maisdifícil de obter que a hetero-hipnose, para além de ser tida comoincapaz de produzir um transe profundo (p. 196, op. cit.).

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A focalização da atenção que acabamos de descrever éa que, em maior ou menor grau, podemos encontrar tantona indução hipnótica como na retórica, com a diferença deque nestas tal focalização é intencionalmente provocada ejá não espontânea, como no exemplo dado. Mas se a suainserção na indução hipnótica não levanta qualquer proble-ma, pois é justamente para o enfraquecimento dos processoslógicos do paciente que ela se orienta e dirige, o mesmojá não se poderá dizer quanto à retórica, onde a inevitabilidadeda sua presença tem que ser articulada com a manutençãoda capacidade crítica do auditório. O mesmo é dizer que,se na hipnose o aprofundamento da atenção do paciente parecenão encontrar qualquer restrição ou reserva, por se confundircom o próprio efeito por ela visado, já na retórica, o nívelde concentração da atenção do auditório não deve nuncaultrapassar aquele limite que faça perigar a respectivaautonomia de raciocínio e liberdade de decisão. Somos assimremetidos para a necessidade dos destinatários da argumen-tação se manterem atentos ao orador e à sua mensagem,mas conservando sempre a descentração necessária a umaavaliação comparativa e crítica. Determinar, porém, a in-tensidade máxima de atenção que ainda lhes assegure essasduas condições, é algo que só pode fazer-se em concreto,casuisticamente, pois, na retórica, os efeitos da focalizaçãoda atenção parecem funcionar de modo análogo aos dosmedicamentos: até certa dosagem são muito úteis e neces-sários, mas quando tomados em excesso, só podem fazermal.

Finalmente, observemos que os riscos de uma excessivafocalização da atenção do auditório são indissociáveis dograu de sedução do orador e da tonalidade mais ou menossugestiva do seu discurso. Negá-lo, seria o mesmo que verno sujeito da persuasão – retórica ou hipnótica – um serexclusivamente lógico ou então, à boa maneira cartesiana,uma simples união de duas substâncias distintas, o corpo

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e o espírito, que nos permitiria separar, ao nível das dife-rentes manifestações humanas, as que respeitam ao corpoe as que derivam do espírito. Mas como bem salientaRoustang, “há uma outra maneira de pensar o ser humano,quer dizer, não mais como união da alma e do corpo oudo espírito e do corpo, mas como unidade vivente onde oespírito é já corpo e onde o corpo é sempre espírito”149.Tal unidade não pode, contudo, ser compreendida senão numplano holístico. É por isso que Roustang afirma (a propósitodo que dá origem à indução hipnótica): “posso dizer que,segundo as circunstâncias, a potência modificadora é o vossocoração ou a pele que recobre o vosso corpo ou o vossoventre ou os vossos pés que vos sustentam ou tal pensa-mento ou tal emoção, porque é a relação ao todo que dáa cada um a sua força”150.

É neste regime de totalidade em que inteligência, espírito,liberdade, movimento, sensibilidade, afecto e emoção per-manecem como registos inseparáveis no ser humano quepoderemos olhar, quer a indução hipnótica quer a persuasãopelo discurso, como passagem de um desses registos a outro.De resto, no caso especial da retórica, sabemos como estanunca é nem a expressão de uma verdade pura, nem sequero domínio do certo ou incerto, do correcto ou do incorrecto,mas sim do plausível e consensual. Que sentido teria, então,valorizar as premissas de uma argumentação à luz deste últimocritério (consenso) se ao mesmo tempo se desvalorizassemos usos e efeitos da sugestão ou sedução, mesmo quandodo agrado geral do auditório? “A racionalidade mergulha

_______________________________149 - Roustang, F., L’hypnose est communication, in Michaux, D. (Org.),

Hypnose, Langage et Communication, Paris: Editions Imago, 1998,p. 27

150 - Ibidem, p. 31

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as suas raízes naquilo a que os fenomenólogos chamam omundo da vida”151. Não há propriamente uma ruptura entreo intelecto e a emoção. Seguindo de perto a feliz expressãode Innerarity, nem a paixão e o prazer estão fora da razão,nem o exercício da inteligência é uma disciplina insupor-tável152. Parece-nos, pois, que a desejável dimensão críticada retórica em nenhum caso deve degenerar numadiscutibilidade estritamente intelectualizada, sob pena de secair numa logicização do homem em muito idêntica à meracategorização das coisas. E, no entanto, em nosso entender,seria a isso que nos conduziria a retirada da emoção, dasugestão e da sedução do interior de todo e qualquer processoargumentativo.

A distinção entre retórica e indução hipnótica não se centra,por isso, numa diferença de natureza do respectivo processode comunicação que, em muitos casos, é igualmente verbal,persuasivo, metafórico, analógico, repetitivo e redutor docampo de consciência do ouvinte. Notemos, aliás, que aprópria argumentatividade retórica está sempre mais ou menospresente na indução hipnótica quer quando o hipnoterapeutajustifica e debate com o paciente (ainda no estado de vigília)as razões ou motivos porque este deve submeter-se à hipnose(fase da argumentação propriamente dita), quer quando oseu discurso persuasivo não obtém a resposta pretendida aonível da respectiva somatização ou ainda, quando se expõeà recusa do paciente em aceitar algum dos seus comandos(no limite, quando estes violem o seu código moral). Emqualquer destas situações, o hipnoterapeuta pode ser con-frontado com os contra-argumentos do paciente, com a suaresistência à modificação de atitude e comportamento vi-sados pela indução. O mesmo se diga quanto ao predomíniodo carácter monológico na comunicação hipnótica, pois se,

_______________________________151 - Innerarity, D., A Filosofia como uma das Belas Artes, Lisboa: Editorial

Teorema, Lda., 1996, p. 15152 - Ibidem, p. 24

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por um lado, o paciente mergulha num estado de cada vezmaior passividade, por outro, mantém e desenvolve umaespécie de comunicação interna153 que ditará a sua reacçãoúltima às instruções hipnóticas, ainda que no domínio nãoverbal. Algo de semelhante se passa na retórica, como, porexemplo, no caso de um discurso epidíctico ou numa palestrapública: o auditório escuta muito mais do que fala mas semque deixe alguma vez de reagir (comunicar), quer mental-mente, quer também exteriormente, ao nível da postura física,do gesto ou da expressão facial.

Evidentemente que, apesar dos inúmeros pontos que têmem comum, não há qualquer dificuldade especial em saberse estamos perante uma situação retórica ou uma situaçãohipnótica. Para tanto, basta atender ao contexto espacial emque decorrem, ao contrato de comunicação subjacente e,principalmente, aos objectivos e efeitos que prosseguem. Aentrevista da venda não se confunde com uma consultahipnoterapêutica, nem a palestra ou conferência pública têma teatralidade de um espectáculo de hipnose colectiva. Oque mais exactamente pretendemos realçar é que, em certassituações, pode ser difícil distinguir entre comunicaçãoretórica e comunicação hipnótica, se para o efeito tomarmosapenas como base as estratégias e as técnicas discursivasque nelas têm lugar. Somos assim confrontados com aextraordinária força perlocutória da palavra e o correspon-dente imperativo retórico de vigiar a sua intensidade, paraque a sempre possível redução da capacidade crítica dosseus destinatários, não ponha em causa o sentido do próprioacto de argumentar.

_______________________________153 - Jean Adrian sustenta que a hipnose permite uma comunicação interna,

entre o consciente e o inconsciente (Adrian, J. L’hypnose, outil decommunication interne, in Michaux, D. (Org.), Hypnose, Langageet Communication, Paris: Editions Imago, 1998, p. 128). Pela nossaparte, contudo, utilizamos aqui a mesma expressão mais no sentidoperelmaniano de uma comunicação do sujeito consigo próprio assenteno diálogo interior que, regra geral, antecede a deliberação íntima.

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O estudo comparativo da retórica e da hipnose parecepois amplamente justificado, sempre que se trate deaprofundar o conhecimento sobre o verdadeiro alcance dasdiferentes técnicas da persuasão discursiva. É que, se nãoem acto, ao menos em potência, a hipnose está sempre maisou menos presente no contexto relacional ou intersubjectivoem que o homem se encontra e reconhece. Não é assimde estranhar que Moscovici faça da sugestão hipnótica o“modelo principal das acções e reacções sociais”154 e EdgarMorin, em correspondência pessoal trocada com Chertock(em 13.08.1982), tenha afirmado que vê na hipnose “umdos nós górdios para todo o conhecimento, não somente doespírito humano, mas possivelmente, para compreender algode vital”155. Por outro lado, desde sempre que a retórica é,como se sabe, técnica de argumentar mas também arte depersuadir. E isso pressupõe, não só lucidez crítica, engenhoe imaginação, como também apurado sentido estético,sensibilidade e emoção. A investigação de Damásio veioatestar o que até aí não passava de uma mera conjecturateórica: inteligência e emoção são indissociáveis na nossaracionalidade. E a relação de interdependência entre umae outra é de tal ordem que, isoladamente, nenhuma delascumpre sequer a específica função que ao nível do sensocomum sempre lhe foi atribuída. Recordemos que emboraa inteligência seja habitualmente relacionada com a capa-cidade de análise e de cálculo lógico - ao mesmo tempoque a emoção, neste tipo de operações, surge como fontede perturbação do respectivo raciocínio - a verdade é queo paciente de Damásio não conseguia resolversatisfatoriamente pequenos problemas do dia-a-dia, apesarde manter intactas todas as suas faculdades intelectuais. Umaretórica orientada exlusivamente para o intelecto seria,portanto, um equívoco. Mas se a sensibilidade e a emoção

_______________________________154 - Moscovici, S., L’Âge des foules, Paris: Fayard, 1981, p. 124155 - Cf. Chertok, L. L’hypnose, Paris: Éditions Payot, 1989, p. 235

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nela podem jogar um papel determinante, então, já não restamquaisquer dúvidas sobre as vantagens do recurso ao conhe-cimento hipnótico. Porque é através da indução hipnóticaque melhor se pode avaliar a real extensão e profundidadedos efeitos perlocutórios ou somáticos da palavra, enquantomediador comum aos dois fenómenos. E nessa medida, oorador poderá ficar com uma noção mais aproximada querdo tipo quer da intensidade dos efeitos que se podem seguirse usar esta ou aquela expressão, este ou aquele procedi-mento. Alguns desses efeitos serão perfeitamente adequadosaos objectivos de uma argumentação crítica. Outros, eviden-temente que não. Terá, por isso, que decidir sobre quais osrecursos retóricos por que deve optar. Essa sua decisão exige,como é natural, uma avaliação prévia dos respectivos efei-tos, pelo menos, a dois níveis: ao nível da eficácia da própriaretórica, onde a utilização de procedimentos hipnóticos podepotenciar a persuasividade do seu discurso mas também aonível da intenção ética subjacente à sua argumentação, ondeo conhecimento hipnótico lhe permitirá vislumbrar maisrapidamente e com maior clareza os inconvenientes destaou daquela opção argumentativa.

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CONCLUSÃO

A comunicação persuasiva não é uma segunda comuni-cação, muito menos, uma comunicação de segunda. Estudara persuasão é, essencialmente, estudar a comunicação doponto de vista dos seus efeitos persuasivos. E nem a persuasãose mostra incompatível com a dimensão ético-filosófica dacomunicação, nem o imperativo da discutibilidade críticacondena, a priori, o recurso ao elemento persuasivo. Acomunicação afirma-se pela eficácia com que cumpre os seusobjectivos. Sem eficácia, não passa de um simulacro. Sempersuasão, não se cumpre. Estas são, pelo menos, algumasdas primeiras conclusões que julgamos poder extrair de umestudo onde tivemos como principal preocupação compre-ender os diferentes modos pelos quais a persuasão discursivase manifesta no processo comunicacional. Persuasão que,estando no centro da argumentação, da arte de bem raci-ocinar, não prescinde igualmente da figuratividade e do estilo.A retórica é, portanto, o seu lugar de privilégio, pelo quenão surpreenderá que a tenhamos colocado no centro da nossareflexão. Dos alvores de uma oratória marcadamente empíricaà retórica dos sofistas tão severamente condenada por Platão,da solução de compromisso em que, à época, terá consistidoa codificação aristotélica até à sua posterior degradaçãosecular, trilhamos os caminhos históricos - nem sempre muitoclaros - de uma retórica, que como vimos, só viria a reassumira sua anterior dignidade argumentativa com Chaim Perelman.Expurgada do estigma que consistira na sua restrição à praçapública mais ou menos ignorante, vê o seu campo de acçãoalargar-se agora a todo o discurso persuasivo, seja qual foro auditório a que o orador se dirija, incluindo, o do seuforo íntimo. Para trás ficam também os exageros de forma,a proliferação adornística que a reduzia a mera técnica deexpressão de um pensamento inquestionado. O que, aliadoà formulação de uma nova racionalidade legitimadora do

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mundo das opiniões postas à prova e da livre discutibilidadecomo, respectivamente, fonte e método de conhecimento,veio a constituir aquilo que, em nossa opinião, foram astrês mais significativas inovações introduzidas pelo pai danova retórica, no âmbito da sua Teoria da argumentação.O mesmo não se pode dizer quanto à sua tentativa dedistinguir entre persuasão e convencimento com base numauditório universal puramente ficcionado pelo orador. Dir--se-á que, aí, na ânsia de conferir a maior objectividadepossível ao processo de argumentação, Perelman acaba porfazer regressar à retórica a evidência racional cuja recusatinha figurado como núcleo duro da sua impiedosa críticaà razão cartesiana. Tal não invalida, porém, que, conformena devida altura sublinhamos, se reconheça a atitude éticaque subjaz a esta intenção de verdade no pensamento retóricoperelmaniano. Mas a intenção do orador não pode deixarde nos remeter para além da própria techné retórica, ou seja,quer para o seu enquadramenteo filosófico quer para ascondições concretas do seu exercício. Foi isso que nos levoua iniciar a III PARTE deste trabalho com uma análise à questãodos “usos da retórica”. O reconhecimento de que as estru-turas taxionómicas e definicionais de Perelman correspondem,sobretudo, a uma visão acentuadamente lógica da argumen-tação, que de modo algum permite captar tanto a sua di-nâmica interaccional como as marcas afectivo-emocionaisque nela deixam os respectivos intervenientes, motivou-nospara um aprofundamento da relação retórica também a partirdos próprios sujeitos que são a sua razão de ser, que lheconferem vida e lhe dão cor. Fomos assim conduzidos aum novo cenário retórico onde os actores, ao invés de selimitarem a debitar os seus papéis com o único propósitode obter a aprovação geral do auditório, tomam antesconsciência do carácter problemático do seu discurso eestimulam o público presente a participar na própria repre-sentação, que assim se constitui como enriquecedora ins-tância de questionamento. Com efeito, tal como propõe Meyer,

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a procura do consenso para que se orienta a retórica podeser vista como um processo de questionação, plural econtraditório, que visa essencialmente a negociação dadistância entre os sujeitos. Uma distância que tem a sua raizna problematicidade inerente à condição humana, às suaspaixões, à sua razão, ao seu discurso e que dita a presençade uma interrogatividade em contínuo nas diferentes fasesdo processo de argumentação. É nesta racionalidadeinterrogativa que Meyer se apoia, não apenas para carac-terizar o logos próprio da argumentação, como também paradistinguir os diferentes usos da retórica, conforme o oradorvise uma aprovação lúcida e crítica ou pretenda manipularo auditório para obter, a todo o custo, o vencimento dassuas teses. Assim, o discurso será tanto mais manipulador,quanto mais ele suprimir ou esconder a interrogatividadedas suas propostas, com o evidente propósito de se furtarà sua crítica e discussão. Pela nossa parte, aludimos, aliás,a outros critérios ou procedimentos que favorecem a detecçãodos usos abusivos da retórica, embora deixando bem vincadaa nossa convicção de que o melhor antídoto ainda será aatenção, a prudência e a capacidade crítica que os respec-tivos destinatários souberem e puderem exercer em cadasituação concreta. Mas porque consideramos que são asacusações de que a retórica não passa de um instrumentode engano e manipulação que mais têm contribuído parao generalizado descrédito em que a mesma ainda se encon-tra, entendemos que a questão justificava uma atenção muitoespecial neste nosso trabalho. E a principal ideia que for-mamos foi a de que a retórica, mais do que uma práticadiscursiva especialmente favorável para induzir o outro aoengano, constitui, isso sim, um espaço de discutibilidade eafirmação das subjectividades em presença que, por si só,garante ao auditor a possibilidade de dizer não e,inclusivamente, de justificar a sua recusa. Para tanto, bastaque a competência argumentativa não seja um exclusivo doorador e se estenda igualmente ao auditório a quem se dirige,

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pois também só nessa condição se poderá verdadeiramentefalar de uma situação retórica, no sentido perelmaniano. Sema competência argumentativa é a própria ética dadiscutibilidade que perde todo o sentido. Sem a discutibilidadenão há sequer argumentação, nem tão pouco seria precisa.Neste caso, o destinatário da mensagem, pura e simples-mente, passa de receptor a mero receptáculo. Foi nesteentendimento que procedemos a uma análise da manipulação“retórica” não focalizada unicamente sobre o orador, comoé corrente acontecer, mas, mais exactamente, sobre o parmanipulador-manipulado, no pressuposto de que este últimoé sempre co-responsável pelo engano de que possa ser alvo.Numa palavra, à eventual mentira do orador não tem que,necessariamente, seguir-se o engano do auditor. O manipu-lado não pode ser visto como autómato ou presa fácil deum qualquer orador menos escrupuloso, sob pena dissoofender a sua própria dignidade de ser humano. É o exer-cício da sua autonomia e liberdade de formação pessoal queo constitui como responsável pelos seus actos. E o actoretórico corresponde apenas a uma entre tantas outras si-tuações do seu percurso existencial, em que igualmente échamado a compreender o que se passa à sua volta, a avaliare a tomar decisões. Mas seria talvez muito ingénuo fundaros abusos retóricos exclusivamente na ignorância de quemescuta, traduzida esta última por um desconhecimentotemático que abriria as portas ao abuso de confiança do orador.Quisemos, por isso, analisar também os efeitos da sugestão,da sedução e, de um modo geral, de todos os meios per-suasivos que, dir-se-ia, apelam mais à emoção do que à razão.Verificar até que ponto a capacidade crítica e a competênciaargumentativa dos destinatários da retórica podem, na esferada decisão, vir a ser relegadas para um segundo plano, poruma palavra especialmente dirigida à sua sensibilidade. Eprocuramos ir tão longe quanto possível, face aoscondicionalismos espácio-temporais deste estudo. ComDamásio, que, como vimos, procede à recuperação da emoção

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para a esfera cognitiva, percebemos como seria insustentávelpermanecer agarrados à clássica dicotomia razão-emoção,visualizando esta última apenas como fonte perturbadora doraciocínio. Como mostrou este insigne cientista português,a emoção é tão indissociável do acto de raciocinar que, quandodele ausente, fica comprometida a racionalidade da própriadecisão, a sua adequação ao real. Ora a persuasão visajustamente levar o outro a tomar uma decisão. Logo, nãose podendo já falar de modo distintivo da persuasão, ou seja,de persuasão racional, por um lado e de persuasão emotiva,por outro, a sugestão e a sedução surgem como modosparticulares de persuadir tão legítimos como quaisquer outrosnuma retórica de pessoas concretas, olhadas pela totalidadeda sua identidade intelectual, psicológica e social. Daí que,em homenagem a um pensamento vivo, não redutor, tenha-mos ousado formular a proposta de um conceito de argu-mentação mais abrangente, que inclua o recurso a todos osmeios persuasivos que se mostrem adequados à natureza dacausa ou questão sobre a qual importa decidir. A persuasão,a sugestão e o próprio agrado ou sedução, são incindíveisdo acto de convencer. “Essa ideia agrada-me...”, “gosto dessasolução...”, “inclino-me mais para esta hipótese...” são apenastrês exemplos das numerosas expressões que podemos escutarregularmente a pessoas cuja competência intelectual não nosmerece qualquer reserva. E no entanto, traduzem, sem sombrade dúvida, uma certa incapacidade de fundar racionalmentecertas decisões, que nem por isso perdem valor ou deixamde ser seguidas por quem as profere. O que leva alguéma aderir a uma ideia, a uma proposta ou a determinada acção,parece assim ficar a dever-se a uma rede ou complexo internode factores interactivos, que quando artificialmente isoladospouco ou nada explicam sobre o processo de decisão.Compreende-se, pois, que, como já demos conta na partede desenvolvimento, as inúmeras investigações experimen-tais sobre a persuasão já realizadas no âmbito da psicologiasocial - onde é pacífica a ideia de que a modificação de

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atitudes está na base da modificação do comportamento -não tenham até à data ido muito além de uma sumáriacaracterização dos mecanismos de persuasão. Ainda assim,vimos como a discriminação dos factores e motivos queparecem estar na base da modificação das atitudes seja aonível da fonte, da mensagem ou do receptor, bem como asdiversas teorias a que deram lugar, são já elementos fun-damentais para uma aproximação compreensiva ao actopersuasivo. Uma coisa é certa: a adesão de um auditórionão pode ser explicada exclusivamente pela conexão lógicaou quase lógica dos argumentos apresentados pelo orador.Terá sido essa intuição que levou Aristóteles a dedicar aoestudo das paixões os capítulos II a XI do Livro II da suaRetórica, prenunciando assim, aquilo que hoje em dia sepode entender como necessidade de uma abordageminterdisciplinar do discurso persuasivo. Foi também nessaperspectiva que decidimos fazer, por último, uma incursãoà comunicação hipnótica, tendo em vista a sua aparentehomologia processual com a comunicação retórica. Adop-tando uma metodologia comparativa, pudemos então consta-tar a presença de inúmeros elementos comuns à retórica eà hipnose, não só no plano conceptual e descritivo – “aten-ção modificada”, “modificação de consciência”, etc. – comonos atributos, critérios e meios de actuação mobilizados –credibilidade do orador, adesão do destinatário, linguagemfigurativa, efeito de presença, entre outros. Mas foram prin-cipalmente as similitudes funcionais que detectamos no usoda metáfora e da chamada focalização da atenção que noslevaram a concluir que entre a retórica e a indução hipnóticahá sobretudo uma diferença de grau ou intensidade, no sentidode que os mesmos instrumentos de persuasão são nelasutilizados de acordo com o diferente nível dos efeitossensoriais pretendidos. E se a hipnose não estabelece,praticamente, qualquer limite à sua intensidade, já na re-tórica, é necessário encontrar um ponto de equilíbrio, queassegure a predisposição ao agrado sem pôr em causa o livre

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raciocínio dos sujeitos. Tarefa particularmente delicada quandose esteja em presença de pessoas com elevado índice desusceptibilidade hipnótica. Porque é somente na recepçãoque a mensagem conhece o seu destino, a palavra que nunspõe em marcha a formação de um juízo sereno, pode sera mesma que noutros provoque o riso ou faça chorar. Daretórica se dirá, por isso, que não fracciona os sujeitos, antescompromete-os em toda a sua grandeza e fragilidade, peloque, retirar-lhe a sua dimensão psicológica e vivencial seriadesinseri-la do próprio terreno em que se manifesta e dacondição humana que a determina. É neste contexto que,como esperamos ter mostrado, o estudo da indução hipnóticapor sugestão verbal constitui, tanto para o orador como parao investigador retórico, porventura, a melhor forma deapreender, com outra amplitude e rigor, os níveis de per-suasão, de sugestão ou encantamento de cada práticadiscursiva, bem como a especificidade dos efeitos a que elapode conduzir. Porque a retórica crítica depende da intençãoética dos seus agentes, da sinceridade com que apresentamo que julgam ser as melhores razões, da problematicidadeque reconhecem ao seu próprio discurso, da abertura àdiscutibilidade mas também, do seu conhecimento sobre anatureza e intensidade dos efeitos extra-lógicos que cadaargumento ou recurso persuasivo pode provocar nos respec-tivos destinatários. Teremos assim, não só uma retórica dossujeitos mas também para os sujeitos. Sujeitos que por elaprocuram afirmar ou superar as suas diferenças em direcçãoa um consenso que lhes permita ultrapassar os obstáculospróprios de uma caminhada feita de vida em comum. Peloconfronto de opiniões, pela discussão e escolha dos valoresque possam merecer o acordo do outro ou da respectivacomunidade, a retórica promove o entendimento entre oshomens, engendra e modela novas formas de sociabilidade.É esse seu regime de liberdade que, afastando o recursoquer à violência quer ao poder ditatorial, lhe pode conferirum lugar proeminente no exercício da própria cidadania. Mas

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para isso, seria necessário que a retórica deixasse de serum exclusivo de alguns, dos homens de marketing, dasvendas, da publicidade, da política ou dos media e passassea integrar a competência argumentativa dos seus própriosdestinatários. Numa cultura democrática as diferentes opçõesde cada qual pressupõem uma igualdade de acesso à com-preensão dos saberes, nomeadamente, dos que respeitem aoacto comunicativo. E, deste ponto de vista, o conhecimentoretórico não pode nem deve constituir-se como excepção.A chamada “face negra” da retórica não se inscreve nelaprópria mas sim num elemento que lhe é exterior: a igno-rância ou má-fé de quem dela se serve ou com ela seconfronta. Seria por isso desejável que o actual recrudes-cimento do interesse teórico pela retórica pudesse servir deplataforma para a sua divulgação e estudo teórico-práticomais generalizado, a começar, no interior do próprio sistemade ensino oficial. Pode acontecer que esta sugestão, comode resto todo o texto do estudo que acabamos de apresentar,não passem de retórica. Mas sabemos agora que a nada maispoderíamos aspirar.

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títulos publicados:

1 - Semiótica: A Lógica da ComunicaçãoAntónio Fidalgo

2 - Jornalismo e Espaço PúblicoJoão Carlos Correia

3 - A Letra: Comunicação e ExpressãoJorge Bacelar

4 - Estratégias de Comunicação MunicipalEduardo Camilo

5 - A Informação como UtopiaJ. Paulo Serra

6 - Escrita teleguiadaGuiões para audiovisuaisFrederico Lopes

7 - Manual de JornalismoAnabela Gradim

Page 218: AMÉRICO DE SOUSA -   · PDF file2.3.1. Indução e dedução.....26 2.3.2. Persuasão pelo carácter ... Da persuasão retórica à persuasão hipnótica .....129 2.1

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