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  • Etnografia dissonante dos tribunais do jri

    Ana Lcia Pastore Schritzmeyer

    Como quase todas as outras instituies permanentes a religio, a arte, a cincia, o estado, a famlia ,

    o direito est envolvido em um processo deaprender a sobreviver sem as certezas que o geraram.

    GEERTZ, 1998, p. 328

    Fio condutor

    No se passam muitos meses sem que um caso de homicdio doloso, jalardeado pela mdia poca de sua ocorrncia, volte a ensejar debates emjornais, revistas, emissoras de rdio e TV, pois o ru ou r finalmente che-gou a julgamento pelo jri popular. Nessas ocasies, reeditam-se e alargam-se discusses recorrentes entre magistrados, promotores, advogados, dele-gados de polcia, professores e estudantes de direito. Elas se referem, grossomodo, pertinncia, em um regime democrtico, de jurados leigos julgaremos crimes mais duramente apenados no Brasil: os dolosos contra a vida homicdio, aborto, infanticdio e induo ao suicdio1. Aqueles que se en-volvem nesses debates geralmente esto polarizados entre favorveis e con-trrios permanncia do jri no sistema de justia criminal brasileiro, le-vantando argumentos variados, resumidos no quadro a seguir

    1.Apesar de os quatrotipos penais serem dacompetncia do Tribu-nal do Jri, raramentechegam a julgamentocasos distintos dos dehomicdios dolosostentados ou consuma-dos. Ver Cdigo PenalBrasileiro, arts. 121 a124, e Cdigo de Pro-cesso Penal Brasileiro,arts. 439 a 497.

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    FAVORVEIS CONTRRIOS

    a) um tribunal de conotao a) Em muitos pases democrticos no

    democrtica. h mais jri (Frana, Alemanha, Bgica,Itlia, Grcia etc.) e, mesmo nos Estados

    Unidos, em vrias situaes, cabe ao ru

    decidir se vai ou no a jri.

    b) Jurados esto mais em contato com b) Juzes togados tambm so cidados eos contextos em julgamento do que ju- participam da sociedade, alm de terem

    zes togados. estudado para melhor compreend-la; ju-

    rados so suscetveis a injunes.

    c) Se o jurado pode ser suscetvel a in- c) Juzes togados passam por longo pero-fluncias externas, o juiz togado pode do de preparo profissional para julgar com

    seguir ideologias e convices prprias. imparcialidade.

    d) Consideraes no tcnicas, mas mo- d) Nos debates do jri prevalecem argu-

    rais, ticas, psicolgicas e econmicas mentos emocionais e falsos que iludemorientam os jurados em suas decises, os jurados e os fazem perder de vista a

    dosando eventuais injustias da aplica- imparcialidade necessria a um bom jul-

    o pura e fria da lei. gamento.

    e) Legisladores, assim como jurados, po- e) Jurados geralmente no tm bom sen-

    dem ser leigos, pois o que importa o so jurdico, podendo desprezar provas

    bom senso. importantes por motivos emocionais.

    f ) O jri contribui para a administrao f ) A complexidade dos crimes que vo ada justia e garante o princpio da publi- jri exige rigor tcnico na exposio e

    cidade dos atos ao exigir dos profissionais apreciao de provas.

    um linguajar acessvel a leigos.

    g) O jri tem um carter educacional so- g) Os julgamentos pelo jri, por serembre a populao, pois as sesses so como mais morosos que os demais, aumentam

    [...] laboratrios onde se experimenta o a sensao social de impunidade e a de

    direito concreto e o prprio sentimento que o Poder Judicirio no funciona.da justia [...]2.

    h) Pesquisas apontam que o jri no h) Pesquisas apontam que o jri comete

    comete mais erros do que tribunais no mais erros do que tribunais no popula-populares. res.

    i) O jri atende, de modo eficaz, a vrios i) Solues extralegais de muitos vere-

    princpios processuais, como acusao, dictos desprestigiam a Justia.

    audincia, contraditrio, oralidade etc.

    j) Presume-se que as decises do jri j) A maioria dos jurados no expressacoincidam com a opinio popular e por a opinio popular, mas interesses da clas-

    ela possam ser melhor assimiladas. se mdia da qual provm.

    2.Extrado de Almei-da (1977, p. 19).

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    Ana Lcia Pastore Schritzmeyer

    Retomo este quadro, elaborado poca de meu doutorado (cf.Schritzmeyer, 2002, p. 61), para precisar que o recorte deste artigo noaprofundar tais questes tcnico-poltico-jurdicas, nem abordar aquelasmais recentemente veiculadas pela mdia. Tampouco pretendo sugerir al-guma resoluo para a celeuma de se o jri deve ou no permanecer noordenamento jurdico brasileiro, pois, por meio dessas frentes, o materialsocial em anlise consistiria em discursos produzidos sobre o jri, e o que meinteressa analisar discursos produzidos no jri.

    A partir da etnografia que realizei, entre 1997 e 2001, nos cinco Tribu-nais do Jri da cidade de So Paulo, e de reflexes que desenvolvo desdeento, pretendo questionar se tribunais, em geral, e os do jri, em particu-lar, se esgotam como arenas de luta nas quais o binmio dominao-sujei-o se realiza de forma privilegiada. Intento sustentar que, embora nessesespaos observemos rituais de carter ldico e agonstico que reiteram cer-tas hierarquias tradicionalmente estabelecidas, eles tambm permitem, emalguma medida, a construo de novas subjetividades e a redefinio deexperincias sociais.

    Trata-se de assumir a tese de que possvel perceber as sesses de julga-mento pelo jri como mais do que uma manipulao de imagens que re-presentantes de camadas mdias e elites jurados, operadores do direito,juzes fazem de assassinatos envolvendo indivduos pobres. Considero que,conforme as mortes so relatadas durante as sesses de julgamento, todosos participantes, ainda que de diferentes modos e com intensidades diver-sas, expem-se a uma experincia coletiva que, como tal, guarda certo po-tencial transformador.

    Para desenvolver esse argumento, parto da metodologia, proposta porGeertz, segundo a qual uma antropologia jurdica ou do direito no devecaracterizar-se pelo esforo de [...] corrigir raciocnios jurdicos atravsde descobertas antropolgicas, e sim [por] um ir e vir hermenutico entreos dois campos, [...] a fim de formular as questes morais, polticas e in-telectuais que so importantes para ambos (Geertz, 1998, p. 253).

    Nessa chave, sesses de jri sero tomadas como [...] obras imaginati-vas construdas a partir de materiais sociais (Geertz, 1978, pp. 316-317)ou estruturas simblicas coletivamente organizadas que dizem alguma coisasobre algo (Idem, pp. 316-321).

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    Obras imaginativas

    Pensar os julgamentos como textos literrios que utilizam emoes parafins cognitivos implica uma anlise semntica baseada no pressuposto deque se pode ler uma sesso de jri, [...] um ritual ou uma cidade, da mes-ma maneira como se pode ler um conto popular ou um texto filosfico. Omtodo de exegese pode variar, mas, em cada caso, a leitura feita em buscado significado (Darnton, 1986, p. XVI).

    Um aspecto a aprofundar nesse tipo de anlise o carter pedaggicodos julgamentos, pois assisti-los ou deles participar ativamente expor-se auma espcie de educao sentimental (Geertz, 1978, p. 317), uma vezque, nos plenrios do jri, o ethos que se apresenta como dominante so-letrado em um texto coletivo (Idem), permitindo aos presentes tomar al-guma conscincia de si e dos outros nesse conjunto.

    Nas sesses de jri, os principais soletradores so os advogados dos ruse representantes do Ministrio Pblico (promotores de justia), pois condu-zem as sustentaes orais como se fossem um tipo de aula expositiva. Quan-do essas se encerram, jurados so chamados a aplicar o que apre(e)nderam,tendo de, necessariamente, optar por uma das verses narradas e, assim, pro-duzir uma deciso a respeito de como acusados e vtimas agiram e, principal-mente, deveriam agir em dado contexto emocional. Isso implica dizer que oprincipal desafio apresentado aos jurados o de avaliar o quanto certas emo-es, em certas circunstncias, legitimam ou no o desfecho morte. Esse omaterial social que constitui o cerne do discurso produzido no jri.

    Em muitas sesses, cada um dos espectadores, especialmente os jurados, medida que ouvem e observam o desenrolar do julgamento, reconhecemou no seus prprios valores articulados no discurso de um ou vrios ato-res juiz, promotor, defensor, ru, testemunhas , de modo que o resulta-do do julgamento, nesse sentido, o desfecho de um processo especular,geralmente sinuoso e indireto. Como em uma sala de espelhos, na qualquem se coloca diante deles se v multiplicado ou mesmo transfigurado,estranhando-se ou reconhecendo-se, em sesses de jri as argies absor-vem, multiplicam, desfiguram e reconfiguram valores dos participantes.

    Alm disso, o que mais me parece digno de nota que, quanto mais oscasos em julgamento envolviam gente da periferia ou de camadas popu-lares, mais alguns jurados de classe mdia declararam, em entrevistas,sentir-se seguros para julgar. Eles justificaram tal segurana com base emuma imparcialidade ou distanciamento crtico, mas ocorreu-me pensar se

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    Ana Lcia Pastore Schritzmeyer

    justamente projees e identificaes profundas proximidades afetivas no se do de modo tanto mais eficaz quando mais o outro parece estranho,extico, um avesso.

    A prpria histria da antropologia, em certa medida, ensina-nos o quantoresultou de complexas projees o fato de os primeiros antroplogos iden-tificarem nos selvagens o passado do homem europeu, branco e civiliza-do. Julgar o aparentemente distante e at ficcional parece facilitar o que,em alguma medida, talvez se bloqueie diante do prximo e real.

    Perguntei, certa vez, a um jurado3:

    EU: Em algum momento, o senhor se identificou com a r ou com seu marido,

    quer dizer, colocou-se no lugar deles?

    JURADO: No, eles so muito diferentes de mim. Vivem noutra realidade, o que,

    alis, me d melhores condies de julgar. Mas acho que consegui imaginar o que

    a vtima sentiu.

    EU: O senhor acha que a realidade da vtima mais parecida com a sua do que a

    do ru?

    JURADO: No! No. Eu no diria isso, quer dizer... O que eu acho que, pelo visto,

    a vtima, como a maioria dos genros, tem sempre muitos defeitos aos olhos dos

    sogros, ainda mais das sogras. Afinal, no toa que falam tanto mal delas. Uma

    sogra, quando o casamento da filha vai mal, sempre acha que a culpa do genro.

    Que ele que um mau carter. Essa histria no muda, sabe? Quer dizer, no que

    minha sogra queira me matar e que todas as sogras queiram matar seus genros, mas

    essa sogra que ns julgamos hoje representa muitas que andam por a: ar humilde,

    inofensivo, mas, por baixo, so verdadeiras feras, capazes de mandar matar os gen-

    ros pagando os assassinos com uma TV (grifos meus).

    Julgar a sogra que mandou matar o genro, na distante periferia paulista-na do Jardim rion, e mesmo julgar as sogras, em geral, talvez seja maisfcil do que julgar a prpria sogra, tanto que esse jurado se exclui da regra deter uma sogra que o persegue. Mas muito provvel que ao julgar a sogra-rion, sem se dar conta, ele se identifique com o genro-rion.

    As impresses de jurados a respeito da vida, assim como as de todos ns,so colhidas assistematicamente, a partir das mais diversas situaes coti-dianas, e a maior parte do tempo elas permanecem frouxas e desorganiza-das. Situaes como a de um julgamento pelo jri coordenam e permitemfocalizar parte dessas impresses, revelando-as, a ns mesmos, por meio desentimentos e reaes despertados.

    3.Entrevista concedidaaps o julgamento ocor-rido em 19/7/2001, noPlenrio 8 do 1 Tribu-nal do Jri da Cidade deSo Paulo.

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    O jri, portanto, pe em foco experincias da vida cotidiana, o que sig-nifica dizer que, ao mesmo tempo em que elas se destacam de espaos profa-nos, como ocorre em jogos ou rituais, religam-se a eles ao serem interpreta-das como acontecimentos paradigmticos. Nos (des)compassos dessemovimento entre profano e sagrado, entre o que acontece e o que se gostariaque acontecesse, tais experincias, mais do que reveladoras, criam, elabo-ram e constroem sensibilidades: Quartetos, naturezas-mortas e brigas degalos no so meros reflexos de uma sensibilidade preexistente e representa-da analogicamente: eles so agentes positivos na criao e manuteno de talsensibilidade (Geertz, 1978, pp. 318-319).

    Seguindo essa linha de raciocnio, parece correto afirmar que as sessesde jri permitem a seus participantes ler e reler quanto e quando legtimoqualquer ser humano matar outro, e no apenas os casos em que seres huma-nos econmica, poltica e socialmente fragilizados se envolvem em homic-dios. Embora esse seja o perfil majoritrio de rus e vtimas, quem assiste aum julgamento normalmente se v compelido a adequar a dimenso de suaprpria subjetividade s mortes violentas narradas nos plenrios, e tal ade-quao se faz ali, em ato, pois na dinmica das sesses que se opera um tipoespecfico e coletivo de criao e formatao de sensibilidades.

    Cabe ainda registrar que nessas aulas de educao sentimental, embo-ra predomine, por parte dos professores, o uso de uma linguagem aparen-temente mais audiovisual que cinestsica, ou seja, de um sistema de signosque mais parece comunicar por meio do olhar e da audio do que deoutras expresses corporais, os corpos falam, o tempo todo, por meio deolhares que se procuram e se evitam, de sutis movimentos de lbios, so-brancelhas que se arqueiam e se franzem, mos que se esfregam, dedos quetamborilam, ombros que se curvam e se erguem, cabeas que balanam. Hmais sutilezas do que um observador, mesmo treinado, capaz de registrar,pois a fora do poder do jri audvel, visvel e palpvel atravs de suateatralidade (Schritzmeyer, 2007, p. 18)4. Justamente por isso sua lingua-gem faz trnsitos importantes entre fatos e leis (cf. Geertz, 1998) ou entreditos e feitos (cf. Peirano, 2002).

    Linguagens poticas

    Segundo Steven Lubet, a linguagem potica a mais adequada constru-o de narrativas eficientes em tribunais, especialmente quando os aconteci-mentos aos quais se referem envolvem crimes (cf. Lubet, 2001). Partindo

    4.No captulo 4 de mi-nha tese de doutorado Jri-teatro , desen-volvo, especificamente,um debate sobre o car-ter teatral do jri.

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    Ana Lcia Pastore Schritzmeyer

    desse pressuposto, etngrafos de sesses de jri no s observam linguagenspoticas, mas tambm, em alguma medida, fazem uso dela ao transcreveremobservaes para seus cadernos de campo e desses para relatrios de pesqui-sa. Declarou Lubet, em entrevista telefnica a um jornalista: Nossa obriga-o recriar o passado por meio de palavras. Mas o problema de nossa pro-fisso que o passado algo irreproduzvel. Como se recupera um crimeque ocorreu h um ou dois anos? impossvel lembrar de todos os detalhes.Por isso, fazemos uma espcie de poesia (apud Borges, 2001, p. 10).

    Essa recriao do passado, do ausente, dos detalhes que escapam lembrana ou do que a memria seleciona e o presente reconstri , emlarga medida, o que tambm se faz na sistematizao de dados etnogrficos.Certa vez, aps um longo julgamento que durou aproximadamente dezhoras, fiquei muito insatisfeita com meus registros, dada minha incapaci-dade de anotar tudo e, ao mesmo tempo, depois, de recuperar tudo.Passados alguns dias, reli O inquisidor como antroplogo, de Carlo Ginz-burg, e percebi que minhas tentativas de registrar as sesses de jri, comespantosa riqueza etnogrfica, aproximavam-me dos escrives de Friuli, naItlia dos sculos XVI-XVII: As palavras, os gestos, o corar sbito do rosto,at os silncios tudo era registrado com meticulosa preciso pelos escrivesdo Santo Ofcio (Ginzburg, 1989, p. 209).

    Em que medida, assim como os inquisidores, no estava eu extorquin-do das sesses os esteretipos que me interessavam? Mas o prprio Ginz-burg me acalmou: A essncia daquilo a que chamamos uma atitude antro-polgica [...] reside numa disposio dialgica (Idem, p. 207), em criar eregistrar situaes em que vozes dissonantes e contraditrias no necessa-riamente se encaixam em modelos e teorias.

    Assim, conclui que, enquanto advogados e promotores constroem nar-rativas nos tribunais a fim de transformar informaes desconexas de tes-temunhas, rus, laudos etc. em uma histria bem contada, permitindoque jurados cheguem a um veredicto, antroplogos no precisam construirnarrativas para necessariamente levar leitores a veredictos tericos.

    Afirma Lubet que um bom advogado, ao contar a histria de seu cliente,deve tomar o cuidado de s editar trechos que no comprovem o crime (cf. Bor-ges, 2001, p. 11). Penso que, embora a edio tambm seja inevitvel em umaetnografia, justamente seu fim deve ser o de no omitir aquilo que questiona oprprio antroplogo e que, nessa medida, cria tanto teses como antteses.

    Enquanto promotor e defensor, em plenrio, normalmente arranjam amultiplicidade e a complexidade dos sentidos relacionados ao acontecimen-

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    to criminalizado de modo conveniente s suas teses, antroplogos no preci-sam reduzir a complexidade de seus objetos de anlise a modelos explicativosque condigam com um nico formato antropolgico de classificar o mun-do. claro que, se etnografias, em alguma medida, no levarem em contaalguns formatos consensualmente adotados na rea, o trabalho talvez nemseja aceito como antropolgico. O desafio , diante de julgamentos judiciaisque fornecem denso material analtico, no reduzir conflitos humanos a me-ras confirmaes de conceitos, perdendo de vista idiossincrasias das mlti-plas motivaes que, nem sempre, se encaixam bem em modelos5.

    Lubet, ainda tratando da produo de verdades nos tribunais, admi-te: Toda observao influenciada por aspectos psicolgicos. Duas pes-soas podem dizer a verdade, mas descrever situaes diferentes. [...] h umespao enorme para interpretaes e reconstrues distintas dos fatos. aque est a habilidade do advogado (Idem). Sua opinio a de que taisverdades, produzidas tanto por promotores como por advogados de de-fesa, quando cinco passos de um roteiro bsico e ideal so seguidos ris-ca, alcanam alto potencial de convencimento e produzem grandes julga-mentos. Especialmente o ltimo dos cinco passos explicar as razespara os atos do crime; dissecar todos os fatos conhecidos; dispor de teste-munhas com credibilidade; basear a histria em detalhes precisos; tornara narrativa plausvel (cf. Lubet, 2001) parece-me importante, pois aplausibilidade das narrativas, ou a verossimilhana do que dito, o quemais est em jogo no jri.

    Enfim, talvez a principal diferena entre discursos elaborados tanto porantroplogos como por promotores e advogados de jri seja a de que, apesarde todos editarem informaes, os primeiros podem produzir boas argi-es antropolgicas, mesmo quando nelas apresentam rudos e mais levan-tam dvidas do que indicam veredictos.

    Confirmando essa complexidade envolvida no ato de etnografar disso-nncias, destaco o fato de que, apesar de o jri exibir, enquanto formadramtica, uma estrutura atomstica cada julgamento quase um mundoem si mesmo , o que, a princpio, facilitaria o acompanhamento de suadinmica, mal as sesses terminam seus participantes no as retm comclareza objetiva, mas com lembranas difusas, pois, como qualquer formaexpressiva, o jri s tem vida plena em seu prprio presente, aquele que elemesmo cria (cf. Geertz, 1978, pp. 312-313).

    O modo, inclusive, como a noo de temporalidade elaborada nassesses de jri reproduz a compreenso de que o desenrolar da vida um

    5.Na tese de doutora-do, analiso a dinmicado jri luz dos concei-tos de jogo (cap. 1 e 2),ritual (cap. 3) e drama(cap. 4), explorandosuas potencialidades elimitaes para esse fim.

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    Ana Lcia Pastore Schritzmeyer

    fluxo contnuo, um movimento unidirecional, com origem no passado edesenvolvimento inexorvel do presente em direo ao futuro. Os aconte-cimentos narrados no jri parecem ganhar sentido ao serem organizadosem horas, dias, cronologias, biografias, e a prpria enumerao das peasprocessuais, nos autos, segue essa lgica que comprime multiplicidades emuma nica seqncia cujo desfecho uma sentena decisria. Desse pontode vista, julgamentos pelo jri exemplificam uma percepo linear do pas-sar do tempo e da vida. Apesar disso, h momentos das sesses em queafloram modos no dominantes de organizar o tempo, expondo as fissurasque qualquer sistema de pensamento carrega. Isso pode ser verificado espe-cialmente quando o juiz interroga o ru e dele exige uma seqncia derespostas que normalmente no est elaborada em sua memria com aque-la linearidade. Dados exatos sobre dia, hora, local e pessoas presentes a umacontecimento ocorrido (ou no) h vrios anos rearranjam-se ou mesmose perdem na memria de quem, muitas vezes, passou a viver o tempo davida prisional.

    Nos plenrios tambm ocorrem requalificaes de comportamentos.Alguns, socialmente censurados, ainda que apreciados e bastante pratica-dos, como as fofocas, ganham o rtulo judicial de provas (geralmentetestemunhais), as quais, por meio de depoimentos, expem a vida privadados envolvidos, levantando, confirmando ou refutando suspeitas que sobreeles recaem. Nesse sentido, os julgamentos expressam certo gosto, generali-zado e velado, por julgar a vida alheia e, conseqentemente, resolver nosoutros no ru absolvido ou condenado; na testemunha fidedigna oudesconfivel; na vtima sofredora ou merecedora do que recebeu dile-mas amorosos, familiares, de vizinhana, de trabalho, jamais resolvidos ple-namente por ningum (e em ningum).

    Como forma expressiva, portanto, o jri tambm arruma, desarruma erearruma contextos semnticos, fornecendo um comentrio metassocial dequestes vitais envolvidas em mortes. Jri e antropologia talvez mostrem,de diferentes modos, a ordem potica que perpassa a vida social e o quanto preciso interpret-la para produzir um conhecimento dessas estrias so-bre ns que contamos a ns mesmos (cf. Idem, pp. 315-316).

    Topografias

    Vale recordar, ainda explorando a idia de prtica etnogrfica como lei-tura interpretativa de materiais sociais, que ao descreverem espaos urba-

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    nos, como o palcio de Versalhes, o plano piloto de Braslia, recantos deRoma, a praa Zcalo na Cidade do Mxico ou a praa Vermelha, emMoscou, diferentes antroplogos os apontam como teatros em que o poderse mostra e se afirma: A topografia simblica de uma cidade uma topo-grafia social e poltica [...]. Certos lugares exprimem o poder e impem seuar sagrado melhor do que qualquer explicao. [...] O espetculo visual suficiente, no sendo necessrias palavras (Balandier, 1982, pp. 10-12)6.

    Assim tambm, de certa forma, so os fruns em que esto instalados osplenrios do jri, como o novo Frum Criminal Ministro Mrio Guima-res, da cidade de So Paulo, inaugurado em 1999 e para o qual foi transfe-rido o 1 Tribunal do Jri, ainda hoje o maior da Amrica Latina7.

    De inspirao nitidamente Niemeyer, um prdio de propores gi-gantescas, de concreto e vidro, com linhas retas modelando seus limites elinhas curvas formando grandes arcadas atravs das quais h entradas, sa-das e janelas. Circundado por uma grande rea asfaltada, utilizada paraestacionamento de veculos e que se reclina como uma praia ao redor deuma ilha, tem-se, de sua entrada principal, uma viso de praticamente 360graus das cercanias. Ao longe, num dos horizontes, erguem-se prdios altosde vrios bairros e, do lado oposto, delineiam-se montanhas. O acesso aolocal se d por um conjunto de largas avenidas, prximas a uma das maisimportantes vias de acesso cidade: a Marginal do rio Tiet.

    No interior do prdio, inicialmente planejado para ser um hospital, cor-redores largos tambm so denominados avenidas, e outros mais estreitosrecebem o nome de ruas, todos identificados por nmeros e letras. Numgrande hall central, erguem-se rampas sobre um jardim em desnvel, cober-to por diferentes tipos de heras e plantas que recebem luz natural filtradaatravs de um grande teto envidraado. Todo o conjunto climatizado,pois as janelas, de vidro escuro, so fixas e mantidas fechadas.

    Certa vez, perguntei a uma jurada, que atuara no prdio do antigo 1

    Tribunal, o que ela achava do novo8:

    ELA: Nossa! Nem se compara! Aqui a gente tem a sensao de entrar no futuro,

    enquanto l tudo parecia velho e decadente.

    EU: A senhora acha que alguma coisa mudou nos julgamentos em funo disso?

    ELA: Ah!... A eu no sei, porque as pessoas so as mesmas. Mas acho que aqui todo

    mundo se sente mais importante, desde o momento que chega. como se houves-

    se algum poder no ar, entende?

    EU: A senhora poderia explicar melhor?

    6.Especificamente so-bre Braslia, ver Holston(1993).

    7.So designados anual-mente mais de 11 miljurados, inquiridas emtorno de 8 mil testemu-nhas e realizados maisde mil julgamentos (cf.http://geocities.com/tribjuri/SintHist.htm).

    8.Entrevista concedidaem 2/8/2001.

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    Ana Lcia Pastore Schritzmeyer

    ELA: Ah!... Aqui a gente se sente pequeno nesses corredores e parece que o mundo

    l fora parou. A gente no ouve barulhos, nem sabe se est chovendo ou fazendo

    sol. Essa histria de terem posto ar-condicionado e vidros escuros, em tudo, tam-

    bm faz a gente se sentir meio estranho, meio isolado.

    EU: E dentro do plenrio? A senhora sentiu alguma diferena?

    ELA: Por ser tudo novo, moderno, limpinho, parece que todo mundo toma mais

    cuidado. Como em nibus novo, sabe? Quando est tudo brilhando, ningum

    suja.

    EU: E que tipo de cuidado a senhora percebe que todo mundo est tomando den-

    tro dos plenrios?

    ELA: Acho que mesmo no frum velho, quando as pessoas entravam no plenrio, j

    havia um certo acanhamento: falavam mais baixo, no sentavam de qualquer jeito,

    no riam. Aqui, continua acontecendo isso, mas porque os plenrios so claros,

    limpos. Parece que tudo est preparado pra cada um agir direito, com respeito,

    entende?

    Na fala dessa entrevistada, h associaes entre caractersticas arquitet-nicas do novo frum e emoes que elas inspiram. A magnitude dos espaose o fato de eles serem novos e limpos so percebidos como elementos quecontribuem para que os ocupantes sintam-se, ao mesmo tempo, respeitadose respeitosos. A forma como os espaos esto estruturados ganha significa-dos medida que neles so projetadas lembranas, valores e expectativas.

    Excetuando-se esse novo frum, os outros quatro Tribunais do Jri pau-listanos, at o trmino de meu trabalho de campo, em 2001, estavam insta-lados em prdios que tinham em comum a falta de imponncia e de soleni-dade. Os edifcios, tanto por fora como por dentro, no lembravam ostradicionais e pomposos tribunais que, geralmente, por serem recorrentesem filmes norte-americanos de jri, preenchem o imaginrio das pessoas.Eram construes que passavam despercebidas na paisagem urbana e, peloque pude observar, seus corredores e salas administrativas no causavam nosusurios a sensao de estarem em um espao especial. Certa sensao desacralidade s se impunha no interior dos prprios plenrios, durante os jul-gamentos, devido fora do ritual, de suas regras, hierarquias, interditos e,principalmente, em funo do poder que sempre est em jogo durante osjulgamentos.

    De um modo geral, esses prdios impessoais tinham aspecto de despoja-das reparties pblicas. Em suas entradas, costumava haver um ou maispoliciais que, dependendo do jeito de quem chegava, solicitavam a iden-

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    tificao. Eu mesma, s para testar seu olhar clnico, entrei vrias vezescom jeito de advogada ou de estagiria roupas contidas e elegantes, arcompenetrado e preocupado, passo apressado, carregando maleta e proces-sos , e s fui barrada uma nica vez, ocasio em que saquei a minhacarteira da OAB Ordem dos Advogados do Brasil e imediatamenteouvi: Desculpe, doutora, pode entrar!. Todavia, quando eu l chegavacom jeito de estudante roupas mais despojadas, informais, olhar curio-so, pastinha plstica na mo , ficava em uma posio intermediria entrequem pode ou no ser interceptado. No caso de homens, geralmente bastao uso de terno e gravata para seguirem em frente. O fato que, qualquerpessoa mais simplesmente vestida, geralmente era barrada ou tomava a ini-ciativa de se barrar, informando quem era, porque est ali e/ou pedindoorientaes.

    No interior dos corredores, tambm continuava visvel, mediante umalinguagem essencialmente corporal, a diferena entre quem estava l por-que era profissional do jri ou funcionrio do tribunal, e quem era ru oumembro de sua famlia. Rus presos e algemados chegavam de camburo,por entradas privativas, e eram levados diretamente a ambientes isolados saletas ou mesmo celas , onde permaneciam vigiados por policiais milita-res, aguardando o incio do julgamento, de modo que o mais comum era sv-los nos plenrios.

    A maioria dos espaos fsicos do antigo 1 Tribunal do Jri, especial-mente seus corredores, lembrava um pouco as clssicas instituies totais,tanto que, no por mera coincidncia, o prdio fora concebido para abrigaruma fbrica. Por si mesmo, ele comunicava a existncia de algum tipo decontrole, de vigilncia e de um poder que atingia os corpos, neles se mate-rializava e por meio deles se exercia (cf. Foucault, 1984).

    Quanto localizao geogrfica dos prdios, cabe ressaltar que se en-contravam em bairros relativamente centrais da cidade, mais prximos damaioria das residncias de operadores do direito e de jurados do que dasperiferias de onde provinha a quase totalidade de rus e vtimas.

    Alguns rus soltos, seus parentes e testemunhas, e mesmo funcionriosmenos qualificados com quem conversei, declararam que o deslocamentopara os fruns representava horas e dinheiro gastos em vrias condues:Moro do lado de uma delegacia, mas levo mais de uma hora pra chegaraqui. Mas tem muito mais delegacia do que tribunal, no mesmo? Poli-cial, bem ou mal, a gente v a toda hora. Juiz, tem gente que s v quandovai pro banco dos rus ou tem que testemunhar9. Enfim, morar longe dos

    9.Entrevista concedidapor uma funcionriado 3 Tribunal do Jri,em 18/3/1999.

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    Ana Lcia Pastore Schritzmeyer

    tribunais, mais do que um distanciamento geogrfico, implica um distan-ciamento da Justia e do Estado, embora eles no deixem de se manifes-tar por seus braos policiais.

    O 3 Tribunal do Jri, ainda hoje localizado nos ltimos andares de umprdio do bairro de Santo Amaro, parecido com um conjunto de escrit-rios, permite que de suas janelas se avistem, entre muito verde, grandesmanses de bairros nobres da regio. Uma tarde, enquanto eu aguardavao incio de uma sesso e observava essa paisagem, uma simptica funcion-ria, que j me vira por l algumas vezes, aproximou-se e comentou: Olhandoningum imagina que os crimes que chegam aqui vm das mais de setecen-tas favelas que esto para alm desse verde bonito.... E eu aproveitei paracomentar: Mas os jurados vm do verde bonito..., ao que ela, sorrindo,acrescentou: Os juzes e todos os doutores tambm! Eu que no venhonem de l nem de c10. Metforas definidoras de uma acidentada topogra-fia socioeconmica.

    Em outra ocasio, essa mesma funcionria j me perguntara, durante ointervalo de uma sesso, se eu era assistente de algum juiz, pois me virafazendo muitas anotaes e, de vez em quando, consultando um cdigo.Ao saber que eu era somente advogada e pesquisadora, ela comentou: que, s vezes, juzes novos que passam no concurso e ingressam na magis-tratura vm assistir s sesses, e a gente, no sabendo, pode dar algum fora.Infelizmente, no houve tempo de eu lhe perguntar a que tipo de fora ela sereferia, mas imagino que fosse algo relativo a formas de tratamento e defe-rncias que, assim como o vesturio e a postura, marcam, como patentes,quem quem em espaos aparentemente annimos. Como j bem regis-trou Mauss:

    O corpo o primeiro e mais natural instrumento do homem. Ou, mais exatamen-

    te, [...] o primeiro e o mais natural objeto tcnico, e ao mesmo tempo meio tcnico

    [...]. Essa adaptao constante [do corpo] [...] efetuada numa srie de atos mon-

    tados, e montados no indivduo no simplesmente por ele prprio, mas por toda a

    sua educao, por toda a sociedade da qual faz parte, conforme o lugar que nela

    ocupa (Mauss, 2003, pp. 407-408).

    Foi nesse tribunal que comecei a atentar mais para a maneira como aspessoas se percebiam e se identificavam nos plenrios, especialmente antesdo incio das sesses, quando alguns dos potenciais jurados, sentados naplatia, abordavam-se e entabulavam conversas. Graas a esses momentos

    10.Conversa ocorridaem 5/3/1999.

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    de aproximaes informais, tive e criei oportunidades, nesse e em outrostribunais, de conversar com jurados que, invariavelmente, uma vez esclare-cidos de que eu no estava na mesma posio que eles, enquadravam-me nacategoria estudante e tratavam-me com certo ar professoral.

    Para alguns juzes, promotores e advogados, que reiteradas vezes viram-me muito atenta, anotando tudo em um caderninho, eu era algum emfase de preparao para prestar algum concurso ou advogar no jri. Ao sabe-rem que eu desenvolvia uma tese de antropologia e tambm era advogada,passavam a me considerar quase uma igual, o que me fazia refletir sobre oquanto classificar , de fato, condio sine qua non para estabelecer relaes,pois permite a todos algum posicionamento, seja para criar proximidadesou distncias.

    Aproveitei, quase sempre, esse exerccio de topografia social, tanto comjurados como com operadores do direito e manipuladores tcnicos, paraapresentar-me ora como advogada e pesquisadora, ora como advogada eantroploga, ora apenas como antroploga e pesquisadora. Os efeitos,como era de se esperar, variavam. A nomenclatura advogada e pesquisado-ra causava melhor impacto do que advogada e antroploga e muito me-lhor ainda do que antroploga e pesquisadora. Ser antroploga, sem d-vida, algo desconhecido de boa parte dos operadores e demais participantesdo jri para no dizer dos participantes do mundo , de forma que umaclassificao que geralmente no classifica e, por isso mesmo, causa estra-nhamento e distncia.

    Nesse tribunal, tambm por vrias vezes, ao sair do elevador e encami-nhar-me para um dos plenrios, funcionrios perguntaram-me se eu erajurada, ocasies em que no pude deixar de pensar em como seria ter ado-tado o caminho metodolgico de tornar-me uma11. Mas, mal iniciadas assesses, reconfortava-me a posio de antroploga-pesquisadora-advogada,minha autoclassificao, exatamente nessa exata ordem.

    Retomando o fio condutor, talvez para perd-lo

    Tentei apresentar e desenvolver a proposta de que o conjunto das ex-presses mais correntes nas sesses de jri, apesar de todo o aparato tcni-co-jurdico envolvido, baseia-se em um vocabulrio de sentimento (cf. Geertz,1978, p. 317), o que no implica dizer que, como situao social que peem relao ao menos dois sistemas de classificao o das leis e regrasprocessuais e o das interpretaes dessas leis, regras e acontecimentos da

    11.Essa opo foi ado-tada por Sestini (1979).

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    vida social , o jri seja a mera expresso do choque entre a rigidez decdigos legais e a flexibilidade das interpretaes feitas por operadores dodireito e leigos.

    Entendo que, nos plenrios, cdigos, interpretaes e atuaes se com-pem fazendo sentido como um novo conjunto formado em uma dimen-so especfica de trocas e interaes. Os julgamentos, assim, constituem eso constitudos por essa dimenso produtora de significados. Os fatos-dramas da vida social, na situao criada nos jris, esto to longe de seuscontextos de origem quanto de um encaixe perfeito a pressupostos legais.Eles se tornaram algo de outra natureza, cujo sentido s se alcana focandoo domnio ritualizado, ldico e potico em que se expressam, no qual tem-po e espao, j vividos, passam a ser imaginados e interpretados. Quantomaior a heterogeneidade dos significados envolvidos nesse domnio, pensoque mais rico ele se torna para cada um dos envolvidos e, especialmente,para observadores da vida social.

    Durante as horas das sesses so narrados acontecimentos que se repor-tam a dias, noites, meses, anos. Embora no se percorram favelas, becos,casas, praas e ruas, nem se escutem tiros e gritos ou se vejam sangue ecadveres cobertos com folhas de jornal, tudo est ali, transmutado emnarrativas. Mesmo as pginas dos processos as fotos que os ilustram, osdepoimentos registrados em assentadas, os laudos periciais e as peas pro-duzidas por juzes, promotores e advogados que j so, em si, narrativas,tornam a ser narradas no contexto do julgamento, suscitando a produode novos e mltiplos sentidos.

    Essas constataes poderiam ser tomadas simplesmente como argumentosde reforo para aqueles que, contrrios permanncia do Tribunal do Jrino Brasil, apontam os jurados como pessoas sem bom senso jurdico,pois, por motivos emocionais e por serem leigos, desprezam provas tecni-camente importantes.

    O que desejo lanar nesse debate justamente um argumento que refor-a a idia de que h vrios subtextos contidos no texto do jri, de modo queviv-lo e l-lo com ateno etnogrfica implica perceber que tanto o voca-bulrio de sentimento como os olhares topogrficos e o jargo tcnico jurdicoso alguns desses subtextos. O conjunto, longe de constituir um todo har-mnico, representa uma experincia coletiva dissonante, com rudos e fissurase, por isso mesmo, potencialmente mais criativa do que se formasse umconjunto harmnico e homogneo. A exposio de cada ator a uma situa-o comum e complexa de aprendizado sentimental e o desafio de nela

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    sistematizarem experincias, tornando-as inteligveis, parece-me tanto re-produzir desigualdades como possibilitar question-las.

    H, no jri, assim como em outros rituais, uma espcie de idioma geralque possibilita o entendimento de alguns dos mltiplos significados envol-vidos e de uma certa dimenso social do pensamento (Darnton, 1986, p.XVII). Mas justamente porque os vocbulos tm mltiplos alcances, quan-do textos se reportam a contextos, e vice-versa, uns no se encaixam perfei-tamente nos outros e a cada um dada a chance de (se) reinventar.

    Como produtor desse material social, os Tribunais de Jri certamenteno so a nica nem a melhor das chaves para a compreenso da maneirapela qual o direito reflete, como conjunto de princpios abstratos, processosde significao, at porque, como diria Geertz, o direito saber local e noum princpio abstrato [...] ele constri a vida social em vez de refleti-la(1998, p. 329). O jri, todavia, destaca-se, diante de outros espaos judiciaisdos quais leigos no participam como julgadores, enquanto obra imaginati-va mais fortemente polifnica, fruto de complexa co-autoria. A presena deleigos nos conselhos de sentena exige dos operadores tcnicos argiesmais ricas em uma espcie de matriz que combina jargo tcnico-jurdico,imagens de uma sociologia selvagem12 e um vocabulrio de sentimento. Por-tanto, penso o jri como um espao social privilegiado de produo de sig-nificaes coletivas ao possibilitar que diferentes pessoas organizem e ex-pressem estratgias simblicas por meio das quais lidam com a vida.

    Como os agentes do jri no so filsofos, em sentido estrito, pois tantooperadores do direito, manipuladores tcnicos, como jurados, rus, teste-munhas etc. no pensam a respeito das coisas, mas pensam com as coisas (cf.Darnton, 1986, p. XIV), a cerimnia do jri lhes oferece coisas especiaiscom as quais pensar: traies amorosas, tenses entre parentes e vizinhos,pobreza, favelas, subempregos, trficos de drogas e de armas, alm dos dis-cursos dirigidos a jurados sobre pertencerem classe mdia e serem cha-mados a julgar em nome da sociedade.

    Sem dvida, h uma luta, nos julgamentos, pelo monoplio do estabele-cimento de formas legtimas de pensar. Mas no uma luta que, a meu ver,produza com clareza vencedores e vencidos. Sei que esse ponto polmico,pois resultados de vrias pesquisas apontam uma distribuio desigual desentenas condenatrias, fazendo especialmente de homens negros, jovens,migrantes, subempregados e pobres alvos privilegiados das sanes puniti-vas (cf. Adorno, 1994, p. 149). Mas, por que, segundo o que pude observar,dificilmente algum sai de uma sesso de jri tal como nela entrou? Penso

    12.Alguns chamam depsicanlise selvagems tentativas de inter-pretaes psicanalticaspor parte de leigos emesmo de profissionaisfora do contexto psi-canaltico e, portanto,sem respeito a certospreceitos tericos, me-todolgicos e ticosque orientam a prti-ca da psicanlise. En-tendo que algo seme-lhante ocorre com asociologia quando uti-lizada por leigos e mes-mo por profissionais deoutras reas, em con-textos no acadmicos,para legitimar opiniessem a devida refern-cia a e talvez, sem aconscincia de limi-tes tericos e metodo-lgicos de certos con-ceitos e modelos (cf.Schritzmeyer, 2002, p.113).

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    Ana Lcia Pastore Schritzmeyer

    que no porque ali somente se reforam esteretipos que confirmam ostatus quo, tampouco porque, no jri, temos um palco que revoluciona hie-rarquias, tradies e preconceitos. H algo, no jri, produzido no contatotenso, intenso e corporal entre diferentes e diferenas que estremece crenasgeneralizantes, universalistas e apaziguadoras. Algo mais forte do que as sen-tenas condenatrias e absolutrias. Algo da ordem do questionamento deformas de convvio e da indagao de se outras so possveis. Algo que seguecom cada um, aps o juiz declarar encerrada a sesso.

    Talvez eu ainda esteja to impregnada por minhas observaes partici-pantes a ponto de interpretar o jri para alm de seus limites semnticos.Mas ainda bem que no preciso concluir este texto com um veredicto arespeito desses limites, pois a nica certeza que tenho, at o momento, ade que, apesar de tambm ter me formado em direito, eu teria muita difi-culdade em exercer a advocacia, a magistratura, a promotoria pblica ouser jurada nos Tribunais do Jri.

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    Resumo

    Etnografia dissonante dos tribunais do jri

    A partir de etnografia realizada, entre 1997 e 2001, nos cinco Tribunais do Jri da

    cidade de So Paulo, questiono se tribunais, em geral, e os do jri, em particular, se

    esgotam como arenas de luta nas quais o binmio dominao-sujeio se realiza de

    forma privilegiada. Sustento que, embora observemos, nesses espaos, rituais que rei-

    teram hierarquias tradicionalmente estabelecidas, eles tambm permitem a construo

    de novas subjetividades e a redefinio de experincias sociais. Os fatos-dramas

    reconstitudos nos jris esto longe de seus contextos originais tanto quanto da possi-

    bilidade de se explicarem legalmente. Eles so de outra natureza, cujo sentido s se

    alcana no domnio ritualizado, ldico e potico de sua prpria expresso.

    Palavras-chave: Tribunais do Jri; Etnografia; Obras coletivo-imaginativas.

    Abstract

    Jury Courts: dissonant ethnography

    Ethnographical research carried out between 1997 and 2001 of the five Jury Courts in

    the city of So Paulo leads me to ask whether courts in general, and the Jury Court in

    particular, can be explained merely as arenas of conflict and privileged sites for the

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    Ana Lcia Pastore Schritzmeyer

    Texto recebido e apro-vado em 20/9/2007.

    Ana Lcia PastoreSchritzmeyer profes-sora do Departamen-to de Antropologia daFaculdade de Filosofia,Letras e Cincias Hu-manas da USP. E-mail:[email protected].

    interplay of domination and subjection. Although in such places we can observe ritu-

    als that reinforce traditionally established hierarchies, they also allow for the construc-

    tion of new subjectivities and the redefinition of social experiences. The facts/dramas

    reconstructed in the courts are as far removed from their original contexts as they are

    from the possibility of being explained from a legal perspective alone. They are of a

    different nature and their meaning can only be understood from within the ritual,

    playful and poetic domains of their own expression.

    Keywords: Jury Courts; Ethnography; Imaginative/Collective Works.