Anais Cielli2014

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MEMÓRIA E HISTÓRIA PARA ALÉM DA FRONTEIRA ENTRE A ITÁLIA E A ANTIGA IUGOSLÁVIA Gabriela Kvacek Betella (UNESP) Muitas manifestações literárias (romances, contos, memórias, cartas, diários) trataram e continuam abordando a Segunda Guerra Mundial e seus desdobramentos nos anos seguintes ao final do conflito. Sabemos que o biênio 1943-1945 carrega episódios diferenciados e marcantes que, pela singularidade ou aberração, não deixaram de aparecer em muitas representações artísticas. Na Itália, a Resistência ocupou lugar importante na literatura e no cinema, em parte devido às marcas deixadas no povo italiano, mas principalmente porque a Resistência italiana atuou numa situação diferente daquela dos outros países da Europa. A luta pela libertação do país toma corpo após o armistício assinado com as forças aliadas, em setembro de 1943. Enquanto isso, os anglo-americanos invadiam a península e seriam tropas de libertação. Os alemães se tornavam tropas de ocupação por todo o país. Mussolini, libertado da prisão pelos alemães, instaurava a República Social Italiana (RSI), ou República de Salò, materializando o alcance sanguinário do fascismo. Com o caos instaurado, devido ao atraso da Itália em declarar guerra contra a Alemanha (exigência dos Aliados), o exército italiano, sem comando, se dispersou em deserções e adesões aos grupos de guerrilha contra os alemães e seus aliados fascistas. Os grupos de partigiani libertaram muitas regiões da Itália, especialmente no norte, combatendo o inimigo estrangeiro ou os compatriotas fascistas. Portanto, na Itália não houve propriamente um inimigo invasor antes da chegada dos Aliados, e isso configura a ausência de um fato elementar, o ódio pelo estrangeiro a partir do impacto inesperado de tropas militares inimigas. È possível dizer que a Resistência italiana não se consuma como ato de resistir ou de não ceder, na defesa de um patrimônio. Na Itália, a resistência foi essencialmente um ataque contra o nazifascismo, não contra o estrangeiro. À parte daquilo que o cinema italiano conseguiu representar ou documentar levando para as telas a temática da guerra ou do pós-guerra, com o propósito de mostrar a luta pela libertação do país, a literatura revelou obras muito significativas e diversas, como o romance de forma renovadora Uomini e no (1945), de Elio Vittorini, o primeiro romance de Italo Calvino, Il sentiero dei nidi di ragno (1947), as suas narrativas curtas recolhidas em Ultimo viene il corvo (1949) e o representante de uma saga editorial, Il partigiano Johnny (1968), de Beppe Fenoglio. As obras autobiográficas ou de inspiração memorialista são bastante conhecidas, como L’Agnese va a morire (1949), de Renata Viganò.

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Anais do II CIELLI

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MEMÓRIA E HISTÓRIA PARA ALÉM DA FRONTEIRA ENTRE A ITÁLIA E

A ANTIGA IUGOSLÁVIA

Gabriela Kvacek Betella (UNESP)

Muitas manifestações literárias (romances, contos, memórias, cartas, diários)

trataram e continuam abordando a Segunda Guerra Mundial e seus desdobramentos nos

anos seguintes ao final do conflito. Sabemos que o biênio 1943-1945 carrega episódios

diferenciados e marcantes que, pela singularidade ou aberração, não deixaram de

aparecer em muitas representações artísticas. Na Itália, a Resistência ocupou lugar

importante na literatura e no cinema, em parte devido às marcas deixadas no povo

italiano, mas principalmente porque a Resistência italiana atuou numa situação diferente

daquela dos outros países da Europa. A luta pela libertação do país toma corpo após o

armistício assinado com as forças aliadas, em setembro de 1943. Enquanto isso, os

anglo-americanos invadiam a península e seriam tropas de libertação. Os alemães se

tornavam tropas de ocupação por todo o país. Mussolini, libertado da prisão pelos

alemães, instaurava a República Social Italiana (RSI), ou República de Salò,

materializando o alcance sanguinário do fascismo.

Com o caos instaurado, devido ao atraso da Itália em declarar guerra contra a

Alemanha (exigência dos Aliados), o exército italiano, sem comando, se dispersou em

deserções e adesões aos grupos de guerrilha contra os alemães e seus aliados fascistas.

Os grupos de partigiani libertaram muitas regiões da Itália, especialmente no norte,

combatendo o inimigo estrangeiro ou os compatriotas fascistas. Portanto, na Itália não

houve propriamente um inimigo invasor antes da chegada dos Aliados, e isso configura

a ausência de um fato elementar, o ódio pelo estrangeiro a partir do impacto inesperado

de tropas militares inimigas. È possível dizer que a Resistência italiana não se consuma

como ato de resistir ou de não ceder, na defesa de um patrimônio. Na Itália, a resistência

foi essencialmente um ataque contra o nazifascismo, não contra o estrangeiro.

À parte daquilo que o cinema italiano conseguiu representar ou documentar

levando para as telas a temática da guerra ou do pós-guerra, com o propósito de mostrar

a luta pela libertação do país, a literatura revelou obras muito significativas e diversas,

como o romance de forma renovadora Uomini e no (1945), de Elio Vittorini, o primeiro

romance de Italo Calvino, Il sentiero dei nidi di ragno (1947), as suas narrativas curtas

recolhidas em Ultimo viene il corvo (1949) e o representante de uma saga editorial, Il

partigiano Johnny (1968), de Beppe Fenoglio. As obras autobiográficas ou de

inspiração memorialista são bastante conhecidas, como L’Agnese va a morire (1949), de

Renata Viganò.

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A partir dos anos de 1950 algumas iniciativas recolhem testemunhos de

combatentes, revelando não somente o profundo sentimento de resistência dos que

lutaram, como certos detalhes da ocupação nazifascista e da organização das forças de

Resistência italiana. Obras como Lettere di condannati a morte della Resistenza italiana

(1952), o diário de Ada Gobetti, Diario partigiano (1956), e as edições mais recentes

das memórias de Carla Capponi, Con cuore di donna (2000) e dos depoimentos

recolhidos em iniciativas como Io sono l’ultimo (2012), entre inúmeros outros, ampliam

o conjunto de representantes das memórias do período, manifestando um tipo de

literatura bastante ligada à cultura oral, se consideramos o caráter de testemunho e, em

alguns casos, a urgência do relato. De qualquer modo, o efeito estético do fragmento e

os conteúdos incompletos são os reflexos verbalizados da experiência de trauma e, além

disso, são formas literárias que estabelecem ligações mais imediatas com o seu

contexto, mesmo que o destaque recaia sobre a dificuldade de narrar certos fatos

(SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 382). Ao lado disso, observa-se, conforme considera

Giorgio Agamben (2008) uma necessidade extrema de testemunhar, capaz de levar o

narrador à vontade de sobreviver para contar.

A relação entre os discursos e os efeitos dos períodos traumáticos que revivem

também configura um aspecto singular para o estudo dessas narrativas, possibilitando

novas formas de entendimento do resultado estético. A chamada literatura de

testemunho passa a ser nossa referência e, como uma espécie de paradigma da memória

traumática da Segunda Guerra mundial não podemos deixar de mencionar o romance e

o autor Se questo è un uomo (1947), de Primo Levi. Sobrevivente de Auschwitz,

convicto “de que nenhuma experiência humana é vazia de conteúdo, de que todas

merecem ser analisadas; de que se podem extrair valores fundamentais (ainda que nem

sempre positivos) desse mundo particular” (LEVI, 1988, p. 88), o autor nos oferece

material para as discussões sobre o testemunho de guerras, sobre experiências de

segregação, vivências da tortura, da violência e exclusão social.

Não é novidade afirmar que o registro de Levi compartilha com testemunhos de

combatentes da Resistência italiana algumas propriedades de objetos de investigação de

grande proveito para os estudos literários e historiográficos, cuja integração vem sendo

especialmente rediscutida nos últimos anos. O testemunho pode ter importância tanto

pelo valor estético (quando se observam os elementos da narrativa convocados e

manipulados pelo discurso) quanto pela relevância do debate (acerca dos direitos

desrespeitados, da imposição de supremacias, de ideologias, de interesses materiais) em

que se insere. O relato também se torna instrumento de resistência, porque impõe a

forma aparentemente despretensiosa como adequada (selando um compromisso

estético) para registro de um contexto de conflito, pautado pelo autoritarismo, abuso ou

violência (cumprindo um compromisso ético) contra o próprio narrador e contra o outro.

Isso nos faz recordar a perspectiva de Paul Ricoeur, segundo a qual o dever de

justiça pode recrutar o trabalho de memória e o trabalho de luto, ou seja, “o dever de

memória é o dever de fazer justiça, pela lembrança, a um outro que não o si”

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(RICOEUR, 2007, p. 101). Lembrar é se dispor a fazer justiça ao infortúnio do outro,

pois a memória dos que contribuíram para transformar a sociedade deve ser exposta.

Uma discussão teórica sobre o modo de abordar as manifestações que vão da

literatura de testemunho à ficção com traços autobiográficos pode se alongar muito em

uma pesquisa, risco que corremos nesta fase. Por ora, ficamos com a constatação de que

hoje em dia está muito em moda afirmar que as memórias possibilitam o

questionamento do discurso universalizador da história e, consequentemente, divulga-se

a ideia de que podem existir várias histórias plausíveis, legítimas, funcionando como

memória, reivindicando o absoluto, eliminando as rupturas, e não as continuidades.

Desse modo, fica cada vez mais complicado visualizar os limites da dicotomia entre

memória e história nos “lugares” da história.

Michael Pollak (1990) apontou o desafio dos trabalhos no sentido de

questionarem a força da memória coletiva sobre o indivíduo com base no caráter capaz

de sufocar as memórias “inferiores”. O sociólogo austríaco que passou pelo Brasil em

1987 argumenta que o esquecimento não significa necessariamente desapego ao grupo.

O esquecimento pode ser uma forma de expressar o dizível e o indizível em cada época.

Ao defender a ligação entre memória e identidade social, sobretudo em situações limite,

Pollak deu destaque ao âmbito das histórias de vida, que passaram a configurar a área de

pesquisa conhecida como história oral. Segundo o ex-aluno de Pierre Bourdieu, algumas

designações remetem mais diretamente a fatos de memória (ou seja, a percepções da

realidade) do que a fatos históricos não trabalhados por memórias e nesses casos,

portanto, as noções de memória prevalecem sobre a factualidade positivista (POLLAK,

1992, p. 2).

Em uma das disciplinas que ministrei no curso de Letras, em 2012, inseri um

tópico tratando da Segunda Guerra na Itália através de documentários, com objetivo de

aproximar os alunos da história do país do qual estudavam a língua e a literatura. Para

explicar a atuação dos partigiani e do movimento da Resistência, selecionei algumas

cartas-depoimentos de ex-combatentes recolhidos na edição recente, organizada por

Stefano Faure, Andrea Liparoto e Giacomo Papi, Io sono l’ultimo (2012). Meu critério

de seleção foi casual, porém não imaginava que estaria promovendo um recorte preciso.

Eu havia percebido alguns sobrenomes familiares entre os ex-partigiani depoentes,

provavelmente de origem iugoslava. E a minha seleção de meia dúzia de textos trazia

histórias de homens e mulheres que lutaram na região de Trieste, com origens italianas e

iugoslavas. Os testemunhos me levaram a muitos outros relatos e a uma vasta pesquisa

histórica. O objeto do plano de pesquisa que se desenvolveu não se restringe às

memórias do final da Segunda Guerra e, embora valorize os acontecimentos no nordeste

da Itália, sobretudo na fronteira com a atual Eslovênia, passou a incluir os romances de

Carlo Sgorlon (1930-2009) e Fulvio Tomizza (1935-1999). A análise deverá contemplar

aspectos de literatura de fronteira e de testemunho, a saber, as imagens percebidas além

dos limites da Itália norte-oriental, ponto de encontro com as culturas eslavas, sobretudo

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com relação aos acontecimentos históricos e políticos entre a década de 1940 e o final

do século XX. Os autores repercorrem fatos que determinaram uma complicada

convivência entre nacionalidades, etnias, religiões e ideologias políticas, especialmente

quando agravada pelo fascismo, no período 1943-1945. Nas décadas seguintes, como se

sabe, o território balcânico fermentou diferenças que culminaram na guerra dos anos de

1990 e a divisão da Iugoslávia, e tanto os autores quanto alguns cineastas não se

esquivaram da representação dos eventos e de seus antecedentes históricos e

antropológicos. Pretendemos incluir na pesquisa a análise de algumas produções

audiovisuais.

Assim como Trieste pode ser o parâmetro espacial do período, pois foi

atravessada pelas maiores atrocidades dos últimos anos da guerra, há depoimentos que

registram vidas intensamente modificadas por esse tempo. Como coletânea de

testemunhos, Io sono l’ultimo tem origem curiosa. Após o depoimento de uma ex-

partigiana ser publicado num grande jornal italiano em 2010, a redação recebeu muitas

cartas, muitas de outros partigiani, contando suas histórias de cerca de sessenta anos. As

revelações que motivaram os organizadores do volume estavam ligadas a dois fatos

essenciais: o primeiro, relacionado à urgência: a guerra partigiana do biênio 1943-1945

possui histórias trágicas e maravilhosas, na iminência de desaparecerem. Um dos ex-

partigiani utiliza a afirmação “Eu sou o último” quando dá palestras nas escolas,

estabelecendo uma relação de identidade com o testemunho do judeu polonês Chil

Rajchman, na edição italiana, Io sono l’ultimo ebreo: Treblinka, 1942-43 (Eu sou o

último judeu, na edição brasileira), escrito em iídiche, e publicado em alemão e francês

em 2009. Em segundo lugar, os motivos de dar a público os depoimentos relacionam-se

à recuperação do frescor e da coragem que o tempo pode ter esfumado: a Resistência

havia sido um movimento conduzido por jovens, pessoas que naqueles anos de 1940

tinham mais ou menos vinte anos. Ouvir ou ler essas histórias, portanto, é adotar o olhar

desses jovens recém-saídos da adolescência, muitos dos quais provavelmente se

apaixonando pela primeira vez em plena guerra (FAURE, LIPAROTO e PAPI, 2012,

vi).

Entre os depoimentos, chama a atenção o de Milka Cok (nome de guerra

“Ljuba”), nascida em Trieste em 1928, estudante e mensageira na atividade partigiana

em sua cidade. Seu testemunho se destaca como fonte em outras obras, pois já era

mencionado por Claudia Cernigoi (1997). O texto da ex-partigiana Ljuba se abre com o

relato do gatilho da memória dos tempos da guerra. Ela conta que teve uma hemorragia

cerebral poucos anos antes, e as consequências a levaram a pensar que estivesse vivendo

os tempos da prisão. “Novamente me salvei: tudo é passado, mas a lembrança

permanece.” (FAURE, LIPAROTO e PAPI, 2012, 171, tradução nossa) Assim dá início

ao relato da época em que contava 17 anos de idade, e o episódio escolhido foi a busca

efetuada pelos guardas da banda Collotti, que despertou certa manhã toda a sua família,

cujos nomes estavam registrados com os oficiais.

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Ljuba e os seus foram levados de casa, interrogados, torturados. A moça foi

levada para reconhecer partigiani mortos e, ameaçada, resistiu: “Dentro de mim havia

um único pensamento: ‘Caros companheiros, se não os traí enquanto vivos, tanto menos

o farei agora que estão mortos. Morrerei com vocês.’” (FAURE, LIPAROTO e PAPI,

2012, p. 172, tradução nossa). Após assistir aos saques ou recolhimento dos bens

confiscados, no caso, alimentos e animais, Ljuba segue com cerca de 40 conterrâneos

para a sede central do Ispettorato Speciale di Pubblica Sicurezza, conhecido ali através

de seus representantes na chamada banda Collotti. Era 1945 e o comandante Gaetano

Collotti, já respondendo à República de Salò, praticava ele próprio as sessões de tortura,

como descreve Ljuba. Depois de uma série de violências, enquanto sua mãe a ouvia na

cela vizinha à sala de tortura, o escrivão teve de pegar na mão da moça para ajudá-la a

assinar a declaração. Um dos fragmentos mais tocantes é este: “Depois da tortura, me

jogaram no cômodo ao lado, no meio de um amontoado de trapos ensanguentados.

Sangrava por todas as partes. Depois, Paolino, um jovem soldado calabrês, me

acompanhou à cela. Ajudou a me lavar e a me pentear.” (FAURE, LIPAROTO e PAPI,

2012, p. 173, tradução nossa)

Ljuba foi presa no Coroneo, prisão em que estavam muitos eslovenos. Não

bastasse tanto, ainda corria o boato de que todos poderiam ser levados a Risiera di San

Sabba ou para a Alemanha, ou mesmo eliminados. “Os detentos eram levados às

escondidas durante a noite. A cada noite se ouvia levarem as pessoas. As mulheres

rezavam para são Floriano por medo de terminarem nos fornos da Risiera.” (FAURE,

LIPAROTO e PAPI, 2012, p. 174, tradução nossa) “Os carnífices” tinham pressa em se

livrar dos prisioneiros. Ljuba segue a pé para o outro lado da cidade, onde seguirá de

caminhão para a Alemanha. No entanto, não partem, voltam ao Coroneo e ficam

sabendo que a Alemanha estava vencida. Eram os últimos dias de abril, e os triestinos

rebelados libertam os prisioneiros. Em maio chegam os partigiani e Ljuba termina seu

relato.

Diante de certos testemunhos de sobreviventes de violência sofrida pela

repressão de regimes autoritários, o relato de Ljuba não chega a ser exatamente

impressionante, porém estabelece uma ordenação muito bem pensada para o texto,

como se a memória organizada buscasse o efeito crescente no leitor. Em nosso presente,

é inevitável não associarmos alguns fatos e imagens aos episódios de violência relatados

por sobreviventes de outros regimes autoritários. E, sem exageros, em muito graças ao

efeito estético, pensamos no torturador italiano nazifascista que fez escola cerca de vinte

anos depois na América Latina.

Sutilmente, o depoimento de Ljuba revela aspectos pouco tocados diretamente

nos testemunhos recolhidos no volume: o comando nazifascista, por exemplo, já perdia

o controle absoluto e não agia incisivamente com os prisioneiros, algumas vezes

deixados à própria sorte. Esta observação de entrelinhas marca uma lacuna significativa

no testemunho de Ljuba, que não segue uma linha temporal nem encadeia os fatos com

proporção de causa e efeito. Por outro lado, o requinte da tortura é marcante no texto,

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assim como era regra nas sedes do Ispettorato, chamadas de Villa Triste. A mãe que

ouve a tortura da filha é um detalhe marcante, coincidentemente relatada pela mãe de

uma prisioneira na Villa Triste de Firenze, em depoimento no documentário La donna

nella Resistenza (Liliana Cavani, 1965). Esse tipo de tortura psicológica e seus

requintes aberrantes parece ter sido um dos mais populares nos regimes totalitários.

Cabe dizer, finalmente, que depoimentos da coletânea Io sono l’ultimo

recolocam o debate sobre as atrocidades fascistas na região de Trieste. Com as forças do

Marechal Tito às portas naqueles últimos anos da Segunda Guerra, o anticomunismo

patriótico chegou a ofuscar o antifascismo e a Resistência. Os depoimentos poderiam

ser classificados no bloco dos resultados da história oral testemunhal. São declarações

solicitadas pelos organizadores, algumas obtidas através de entrevista. O volume possui,

no entanto, o sugestivo subtítulo “Lettere di partigiani italiani” (Cartas de partigiani

italianos). De acordo com o propósito do livro – recolher o maior número possível de

depoimentos e documentar da melhor maneira as experiências dos indivíduos nascidos e

atuantes nos mais diversos lugares – ele também não deixa de ser um conjunto de cartas

endereçadas aos jovens, a quem são confiados o testemunho e a herança da Resistência.

Em contraponto às cartas dos partigiani condenados à morte, recolhidas nos anos de

1950, cujo impacto ainda respirava a tensão do final do conflito mundial, é possível

examinar alguns dos mais recentes testemunhos diretos de alguns protagonistas da

guerra de libertação na Itália. Ganhamos, além da elaboração do discurso no presente,

também o benefício da organização do relato na maioria dos textos de modo a pressentir

o efeito da memória sobre a linguagem.

Uma das marcas é o desejo de redenção a prevalecer sobre a constatação da

liberdade, no plano coletivo imediato aos acontecimentos, e sobre a consciência da

superação individual. Muitos depoentes, como Ljuba, assumem a palavra dos que

morreram ou dos que sofreram nas mesmas condições, como se manifestassem o desejo

de dar voz ao testemunho de outros. Ao atravessar sua velhice e sentir a cognição

ameaçada pelo problema de saúde, Ljuba tenta preservar o sentido do sofrimento e a

memória dele. Com isso, conserva o sentido de “testemunha” em sua completude, isto é,

mantém o correspondente de testemunha em grego, denominado martis (em português,

mártir), cuja raiz é a mesma de “recordar”. Giorgio Agamben (2008) considera que os

fatos passados em campos de concentração nazistas pouco têm a ver com martírio,

podendo significar a exposição do corpo e da alma sofridos para recordar uma

convicção. Testemunhar sobre o acontecimento traumático da guerra, da tortura, do

sofrimento, quase sempre, é sofrer um martírio, que não se realiza sem a memória,

muitas vezes descontínua, com lacunas, dissociações discursivas, relato interrompido e

retomado – “o testemunho vale essencialmente por aquilo que nele falta” (AGAMBEN,

2008, p. 43). O texto escrito se esforça na reconstrução dessas interrupções, no

preenchimento das lacunas, porém o discurso permanece desarticulado como uma

linguagem da qual foi retirada alguma coisa, por vezes se mantendo “uma linguagem

mutilada e obscura” (AGAMBEN, 2008, p. 46).

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Sabemos que a memória oral é mais espontânea que a memória escrita. Quando

o estímulo (como a entrevista) provoca a expressão, no caso da primeira, pode-se

observar a liberdade e a menor ocupação com a forma do discurso. A memória escrita

implica certas preocupações, pois reorganiza a lógica expressiva. Há sérias

considerações, por exemplo, quando se transcrevem depoimentos, para que a identidade

do depoente seja preservada, assim como o sentido da sua fala, especialmente em certas

marcas, como sotaque, emprego da sintaxe, repetições, ênfases. Quando os testemunhos

são escritos, a forma pode e deve ser observada por meio da análise do discurso ou da

(nova) expressão literária latente.

Se pensamos nas narrativas de Io sono l’ultimo como depoimentos, temos um

problema se queremos vê-las como literatura, analisá-las segundo os parâmetros

convencionais da Teoria Literária. O valor estético dos testemunhos não se pontua

exclusivamente pelas categorias aristotélicas relativas à mimese. Lembrando o que

argumenta Márcio Seligmann-Silva (2003), os testemunhos apresentam uma voz

traumatizada, um tom de lamento e de denúncia que se fazem presentes e dispostos a

narrar uma experiência vivida, malgrado todas as dificuldades de expressão.

Se a Resistência italiana mereceu muitas representações através dos romances,

dos poemas, das canções, das memórias e do cinema (a partir do neorrealismo), o

território que escolhemos concentra uma mitologia ainda mais vasta (embora ainda

pouco explorada), devido à quantidade de episódios ligados ao fenômeno de

mobilização civil e aos contrastes presentes na constituição de seus habitantes. Não

seria justo deixar de confessar que nossas origens também justificam o interesse

despertado pelo período e pelo território modificado ao longo daqueles anos e em

seguida. Existem algumas questões de identidade a mais, em nosso caso.

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