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Nome e imagem: Aby Warburg e Ludwig Traube. Andrea Cavalletti Foi olhando para a Transfiguração de Rafael que Nietzsche compreendeu o processo originário da arte apolínea. Nela se oferecia à mais serena contemplação a vida natural que envolve, no pathos dionisíaco, “não apenas o simbolismo da boca, do rosto, da palavra, mas também a total mímica da dança” 1 . Ao mesmo tempo, foi observando as figuras da Transfiguração que Nietzsche compreendeu como, para nós, Apolo não pode “viver sem Dionísio” 2 . Como é notório, Hegel já havia respondido à reprimenda com frequência feita ao quadro de Rafael, a qual afirmava ser ele dividido em duas ações de todo privadas de conexões: no alto, sobre a colina, a Transfiguração e, abaixo, a cena com o possuído pelo demônio. Essa crítica, explica-nos a célebre passagem da Estética, é possível apenas se nos limitarmos a olhar a obra desde o exterior (äußerlich). De um ponto de vista espiritual, pelo contrário, não falta à composição de Rafael uma mais forte conexão (Geistig aber fehlt es an dem höchsten Zusammenhange nicht). Aliás, a situação representada atinge a mais clara determinação formal. Por um lado, a acentuada separação entre o Cristo e os discípulos define perfeitamente a transfiguração sensível que é, portanto, um distanciamento (Entfernung) do solo e dos homens. Por outro, os discípulos aparecem como aqueles que não são capazes de curar o jovem possesso sem a ajuda do Cristo. E o fato de que, no centro do quadro, o gesto de um discípulo, no eixo vertical da composição, indique explicitamente o Cristo em ascensão, realiza, segundo Hegel, a situação pictórica, acenando à “verdadeira destinação do filho de Deus, aquela de estar ao mesmo tempo também na terra” 3 . O quadro de Rafael é assim, para Hegel, o exemplo da rigorosa coerência entre conteúdo e representação; mas é também o documento em que se afirma a diferença essencial entre dois modos de observar e de compreender a arte. Essa 1 Optamos por traduzir as versões apresentadas pelo autor. Entretanto, trazemos em nota de rodapé, quando possível, as traduções brasileiras. Neste caso Cf.: NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Tradução, notas e posfácio: Jaime Guinsburg. p. 32. “não apenas o simbolismo dos lábios, dos semblantes, das palavras, mas o conjunto inteiro, todos os gestos bailantes dos membros em movimentos rítmicos.” 2 Na edição brasileira, p. 38.: “E vede! Apolo não podia viver sem Dionísio!” 3 Na edição brasileira Cf.: HEGEL, G.W.F.

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Nome e imagem: Aby Warburg e Ludwig Traube.

Andrea Cavalletti

Foi olhando para a Transfiguração de Rafael que Nietzsche compreendeu o

processo originário da arte apolínea. Nela se oferecia à mais serena contemplação a

vida natural que envolve, no pathos dionisíaco, “não apenas o simbolismo da boca, do

rosto, da palavra, mas também a total mímica da dança”1. Ao mesmo tempo, foi

observando as figuras da Transfiguração que Nietzsche compreendeu como, para nós,

Apolo não pode “viver sem Dionísio”2.

Como é notório, Hegel já havia respondido à reprimenda com frequência feita

ao quadro de Rafael, a qual afirmava ser ele dividido em duas ações de todo privadas

de conexões: no alto, sobre a colina, a Transfiguração e, abaixo, a cena com o

possuído pelo demônio. Essa crítica, explica-nos a célebre passagem da Estética, é

possível apenas se nos limitarmos a olhar a obra desde o exterior (äußerlich). De um

ponto de vista espiritual, pelo contrário, não falta à composição de Rafael uma mais

forte conexão (Geistig aber fehlt es an dem höchsten Zusammenhange nicht). Aliás, a

situação representada atinge a mais clara determinação formal. Por um lado, a

acentuada separação entre o Cristo e os discípulos define perfeitamente a

transfiguração sensível que é, portanto, um distanciamento (Entfernung) do solo e dos

homens. Por outro, os discípulos aparecem como aqueles que não são capazes de

curar o jovem possesso sem a ajuda do Cristo. E o fato de que, no centro do quadro, o

gesto de um discípulo, no eixo vertical da composição, indique explicitamente o

Cristo em ascensão, realiza, segundo Hegel, a situação pictórica, acenando à

“verdadeira destinação do filho de Deus, aquela de estar ao mesmo tempo também na

terra”3.

O quadro de Rafael é assim, para Hegel, o exemplo da rigorosa coerência

entre conteúdo e representação; mas é também o documento em que se afirma a

diferença essencial entre dois modos de observar e de compreender a arte. Essa

                                                                                                               1 Optamos por traduzir as versões apresentadas pelo autor. Entretanto, trazemos em nota de rodapé, quando possível, as traduções brasileiras. Neste caso Cf.: NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Tradução, notas e posfácio: Jaime Guinsburg. p. 32. “não apenas o simbolismo dos lábios, dos semblantes, das palavras, mas o conjunto inteiro, todos os gestos bailantes dos membros em movimentos rítmicos.” 2 Na edição brasileira, p. 38.: “E vede! Apolo não podia viver sem Dionísio!” 3 Na edição brasileira Cf.: HEGEL, G.W.F.

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rigorosa coerência da individuação não se manifesta, com efeito, “se olharmos as

coisas desde o exterior”4. Ela transparece apenas na consideração espiritual do fato

artístico.

Muito distante de Hegel, por sua vez, Nietzsche conseguiu olhar para o

famoso quadro não desde o exterior. E soube dar-lhe uma interpretação diferente, por

certo não de um ponto de vista espiritual em sentido hegeliano, mas “simbólico”: seja

das ações representadas seja da sua própria e íntima coerência. Refiro-me, como é

óbvio, ao parágrafo quarto de O Nascimento da tragédia, no qual Nietzsche especifica

a sua concepção da arte “ingênua” como pleno triunfo da ilusão apolínea e, ligando ao

mesmo tempo arte e sonho, encara a sua “suposição metafísica”5: ou seja, “que aquilo

que verdadeiramente é, o um originário, enquanto sofre de modo extremo e é pleno de

contradições, também necessita, para redimir-se de maneira contínua, da visão

extasiante e da alegre ilusão: ilusão que nós, completamente dominados por ela e dela

consistentes, somos constrangidos a sentir como a realidade empírica”6. A eterna dor

originária precisa do espelhamento apolíneo, e este se afirma de maneira plena

quando se mascara com a realidade, dissimulando por trás de uma outra ilusão –

sonho ou arte – o seu verdadeiro caráter.

Se a assim chamada realidade é a verdadeira ilusão, o sonho é apenas uma

ilusão da ilusão. E sonho do sonho é a arte, ilusão da ilusão é a beleza artística, e

Rafael, “um daqueles imortais ingênuos, representou para nós, em uma pintura

simbólica, a despotenciação da ilusão na ilusão, o processo originário do artista

ingênuo e, ao mesmo tempo, da cultura apolínea”7.

Observemos mais uma vez, portanto, do ponto de vista de Nietzsche, a grande

tela da Pinacoteca Vaticana: a metade inferior da pintura “com o rapaz possesso, os

seus carregadores desesperados, os desamparados e angustiados discípulos”, mostra,

nos gestos carregados de pathos, “o espelhar-se (Wiederspiegelung) da eterna dor                                                                                                                4 Cf. a edição brasileira 5 Cf. a edição brasileira: NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia... p. 36: “Com efeito, quanto mais percebo na natureza aqueles onipotentes impulsos artísticos e neles um poderoso anelo pela aparência [Schein], pela redenção através da aparência, tanto mais me sinto impelido à suposição metafísica...”. 6 Cf. a edição brasileira, p. 36: “… de que o verdadeiramente-existente [Wahrhaft-Seiende] e Uno-primordial, enquanto o eterno-padecente e pleno de contradição necessita, para a sua constante redenção, também da visão extasiante, da aparência prazerosa – aparência esta que nós, inteiramente envolvidos nela e dela consistentes, somos obrigados a sentir como o verdadeiramente não existente [Nichtseiende].” 7  Cf. a edição brasileira, p. 37: “RAFAEL, ele próprio um desses imortais ‘ingênuos’, representou-nos em sua pintura simbólica essa despotenciação da aparência na aparência, que é o processo primordial do artista ingênuo e simultaneamente da cultura apolínea.”  

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originária”. É a partir disso, em que a “ilusão” artística se dá como exato “reflexo do

eterno contraditório, do pai das coisas”, que “se eleva agora, como um vapor de

ambrosia, um novo mundo ilusório, similar a uma visão, do qual nada veem os

dominados pela primeira ilusão, um luminoso pairar de puríssima delícia e em uma

intuição privada de dor radiante por olhos distantes”8.

Assim, junto a essas luzes mais altas, devia aparecer para Nietzsche uma

imagem não mais carregada de dor ou serena, mas intuitiva e cristalina: “Aqui temos

diante dos nossos olhos, por um altíssimo simbolismo artístico, o mundo de beleza

apolínea e o seu substrato, e compreendemos, por intuição, a sua recíproca

necessidade”9. É dessa maneira que nas locuções espaciais “aqui” e “diante dos

nossos olhos” se especifica o ponto de vista não exterior no sentido nietzschiano: é o

ponto de vista simbólico em que o quadro ilustra o próprio operar artístico e a própria

cultura apolínea. É o ponto de vista não exterior a partir do qual se atinge a extrema

transparência e toda obra, além de qualquer conteúdo individual, torna-se

compreensível, como a própria cultura apolínea.

Essa “recíproca necessidade (gegenseitige Notwendigkeit)” do substrato de

pathos e da ilusão apolínea é bem mais do que a fortíssima conexão dos motivos que

Hegel reconhecia no quadro. É justamente na recíproca necessidade que se funda,

com efeito, a “lei de eterna justiça (Gesetz ewiger Gerechtigkeit)” enunciada no

parágrafo 25 de O Nascimento da tragédia: isto é, a lei segundo a qual “do

fundamento de toda existência, do substrato dionisíaco do mundo, apenas pode

penetrar na consciência do indivíduo exatamente aquilo que pode ser de novo

superado pela força de transfiguração apolínea, de tal modo que esses dois instintos

artísticos são obrigados a desenvolver as suas forças em rigorosas proporções

recíprocas.”10

                                                                                                               8 N.T.: O autor, em todo o parágrafo, reconstrói um trecho de O Nascimento da tragédia. Como optei por deixar a referência à edição brasileira em notas, neste caso, apresento todo o trecho. Cf. a edição brasileira, p. 37: “na metade inferior, com o rapazinho possesso, os seus carregadores desesperados, os discípulos desamparados, aterrorizados, ele nos mostra a reverberação da eterna dor primordial, o único fundamento do mundo: a ‘aparência’[Schein] é aqui reflexo [Widerschein] do eterno contraditório, pai de todas as coisas. Dessa aparência eleva-se agora, qual aroma de ambrosia, um novo mundo como que visional de aparências, do qual nada vêem os que ficaram enleados na primeira aparência – um luminoso pairar no mais puro deleite e um indorido contemplar radiante de olhos bem abertos.” 9 Cf. a edição brasileira, p. 37. “Aqui temos, diante de nossos olhares, no mais elevado simbolismo da arte, aquele mundo apolíneo da beleza e seu substrato, a terrível sabedoria do Sileno, e percebemos, pela intuição [Intuition], sua recíproca necessidade.” 10 Cf. a edição brasileira, p. 141: “daquele fundamento de toda existência, do substrato dionisíaco do mundo, só é dado penetrar na consciência do indivíduo humano exatamente aquele tanto que pode ser

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Essa lei histórica que governa a consciência humana e liga toda geração à

seguinte, essa lei que anuncia a Genealogia como contraste e renascimento das forças,

é passível de ser intuída na composição de Rafael. Em tal pintura a própria concepção

nietzschiana podia espelhar-se, aparecia como prefigurada pelo grande artista, e

estava por fim transparente a si mesma. A potência artística originária – a eterna dor

originária ou o substrato dionisíaco – e a sua transfiguração apolínea, que “mantém

vivo o mundo animado pela individuação”11, apareciam juntas, como o substrato das

forças impetuosas (o único fundamento do mundo) e as ilusões da bela aparência. O

valor simbólico era aqui, acima de tudo, superação de todo conteúdo (seja profano,

mítico ou religioso) e de toda adequação ao conteúdo. Isso pois contida entre as duas

partes do quadro está toda a história da consciência, a história como contraste dos dois

princípios adversários. E àquele quadro, “ilusão da ilusão”, símbolo e espelho da

própria aparência artística, podem talvez se adaptar as palavras com que Nietzsche

definia o mito: era uma “imagem concentrada do mundo”, ou uma “abreviação da

aparência”12.

Em relação à lei de eterna justiça, foi ao máximo fiel o espírito genuinamente

nietzschiano de Aby Warburg. “Desde os dias de Nietzsche – lê-se na introdução ao

Atlas Mnemosyne – não são mais necessárias poses revolucionárias para se reconhecer

a essência da antiguidade no símbolo de um busto bifronte Apolo-Dionísio”13. E

também não são necessárias poses revolucionárias para reconhecer a voz de Nietzsche

em toda expressão programática de Warburg. Por certo é verdade que nos seus

escritos algumas passagens fundamentais podem ser encontradas, variando pouco

com os anos, e as próprias palavras de Nietzsche entram, por assim dizer, em

movimento já a partir do ensaio sobre Botticelli até a introdução ao Atlas.

“O ethos apolíneo” – ele escreveu em 1914 – “brota junto com o pathos

dionisíaco, quase como um dúplice ramo de um mesmo tronco enraizado nas                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              de novo subjugado pela força transfiguradora apolínea, de tal modo que esses dois impulsos artísticos são obrigados a desdobrar suas forças em rigorosa proporção recíproca” 11 Cf. a edição brasileira, p. 141: “Aqui o dionisíaco, medido com o apolíneo, se mostra como a potência artística eterna e originária que chama à existência em geral o mundo todo da aparência: no centro do qual se faz necessária uma nova ilusão transfiguradora para manter firme em vida o ânimo da individuação.” 12 Cf. a edição brasileira, p. 132: “Nisso, com efeito, poderá medir até onde está em geral capacitado a compreender o mito, a imagem concentrada do mundo, a qual, como abreviatura da aparência, não pode dispensar o milagre.” 13 N.T.: Dos textos que não têm edições brasileiras, como nesse caso, traduzo diretamente a versão dada pelo autor.  

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misteriosas profundidades da terra mãe grega”. E, quinze anos depois, é possível

lembrar, sempre na introdução ao Mnemosyne, especificou que para situar e

compreender o gênio artístico no lugar que lhe compete – isto é, entre Dionísio e

Apolo – é preciso emancipar-se do “uso quotidiano e superficial dessa teoria da

oposição”.

Ser justo, observar a estreita proporção recíproca dos dois instintos artísticos,

significa, nos termos de Warburg, “olhar de modo imparcial a dúplice riqueza

estilística dos antigos”. A tal imparcialidade ele se inclinou por toda a vida: “procurei

atingir isso – escreveu em 1927 – ao longo dos anos, com essa maneira erudita e um

pouco complicada”. Não ser superficial e dar justiça à obra significava, para ele,

observá-la desde um ponto de vista historicamente não exterior: “poderei talvez dizer

(...) que no caminho da pesquisa me guiavam as palavras do meu venerado mestre

Justi: A erudição não deveria ser nada além do que a redescoberta do ponto de vista

por meio do qual a obra tinha sido feita no passado”.

A aplicação superficial e esquemática da teoria nietzschiana impede, segundo

Warburg, de atingir esse ponto de vista. Sobre quem recai essa acusação de

superficialidade? Qual é o alvo de Warburg? De fato, é possível notar, nas primeiras

páginas da introdução ao Atlas Mnemosyne, alguns acenos polêmicos. Um ataque

explícito é dirigido aos “estetas hedonistas” que “ganham o consenso barato do

público amante da arte explicando a alternação de formas com a amenidade

decorativa da linha maior”. Aí o tom de Warburg é sarcástico, e o objetivo,

claramente reconhecível, é Bernard Berenson: não apenas pela clara referência à

“amenidade” e à “linha decorativa”, mas também porque Warburg – que, como se

sabe, amava os jogos de palavras – substitui a noção berensoniana “tactile vaules”

(Taktil-Werte, na edição alemã) por “valores expressivos (Ausdruckswerte)”. Mas

quando a acusação é de nietzscheanismo superficial, o acusado por certo não é

Berenson. Ao contrário, diria que, de maneira velada – mas talvez não tão velada

assim –, Warburg se refere a um outro autor que naqueles anos soubera conseguir um

considerável consenso. Estou pensando em Ludwig Klages. Ou melhor: em Klages e

em certa divulgação da teoria de Klages; em Klages que retoma a seu modo

Nietzsche, e naqueles que, ao retomar as teorias de Klages, com frequência as tornam

triviais por usar de maneira superficial a teoria da oposição entre Dionísio e Apolo.

Trata-se certamente de uma hipótese, mas mesmo assim gostaria de insistir sobre esse

ponto porque creio que o confronto com Klages, de quem Warburg era um atento

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leitor, seja imprescindível para compreender a relação Warburg-Nietzsche e, portanto,

os lugares teóricos fundamentais do pensamento de Warburg.

Tentarei, assim, provar essa hipótese de duas maneiras. Warburg diz de modo

literal: o uso quotidiano superficial dessa teoria da oposição (Gegensätzlichkeitleher).

A propósito, gostaria de recordar algumas passagens do texto teórico porventura mais

importante na ampla produção de Klages, qual seja, o livro, de 1922, Eros

cosmogônico (Von kosmogonischen Eros). Aí ele especifica o seu débito em relação a

Nietzsche e, ao mesmo tempo, as distâncias que o separam de Nietzsche. E em uma

nota teórica importante, refere-se a O Nascimento da tragédia nestes termo: “Faltas

descuidadas dessa obra (...) devem ser percebidas na aceitação dos termos técnicos de

Schopenhauer e na inclusão de problemas musicais.” Assim, Klages por um lado cita

a Tentativa de autocrítica, em que o próprio Nietzsche afirmava ter “corrompido o

problema grego” com a referência a Wagner, e, por outro, deplorando de modo geral

“a inclusão de problemas musicais”, reduz o tema essencial do livro a um pequeno e

secundário incidente teórico. Entretanto, essa desvalorização da música tem para

Klages um sentido preciso, uma vez que de fato comporta a sua separação do

dionisíaco e prepara o movimento crítico sucessivo: “é, ao contrário, um problema

essencial – continua a nota – a aceitação do apolinismo, dos contornos nada precisos,

que impediu o seu descobridor de notar que o seu significado (...) coincide com o

‘socratismo’ a ele muito familiar”. Desse modo, quando o tema central da música é

reduzido a um pequeno erro, quando o dionisíaco não é mais musical, o apolíneo pode

ser reduzido ao socratismo. E o mérito de Nietzsche é delimitado nestes termos: “com

o seu renovamento grandioso da consciência da metafísica do dionisíaco”, ele trouxe

à luz “a oposição (Gegensätzlichkeit) do estado originário da alma ao mundo diurno

dos Olímpicos”. Dionísio e Apolo, portanto, não se desenvolvem mais em “rigorosa

proporção”: a Lei de eterna justiça decai, deixando espaço à teoria propriamente

klagesiana da oposição. Como fundamento desta última está uma espécie de estágio

dionisíaco estranho à música e a qualquer ligação com o apolíneo, que Klages chama

Eros: “sem dúvida – ele explica – seria possível definir o estado erótico também um

estado dionisíaco, mesmo se é verdade que não seria possível com igual direito

chamar erótico o estado dionisíaco. Certamente ambos concordam tanto na disposição

extática quanto no transbordar que (...) quebra a barreira da individuação e mergulha

novamente a vida do indivíduo na vida dos elementos”. A oposição fundamental vige,

como é notório para Klages, entre espírito (Geist) e alma (Seele), entre individuação e

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êxtase erótico, entre mundo das coisas e da possessão e mundo do eros e das imagens,

entre o mundo morto do intelecto, da consciência e do domínio e a verdadeira vida

que é, na esfera do Eros, a vida das imagens. O Eros de Klages é um estado dionisíaco

sem música, o estado dionisíaco liberado do apolíneo, livre de toda lei, no qual apenas

existem as imagens eternas.

Parece-me plausível que quando fala de “Gegensätzlichkeitlehre”, de doutrina

da oposição e do seu uso quotidiano e superficial, Warburg se refira a Klages, ao

Nietzsche reinterpretado, usado, divulgado por Klages, e à consequente vulgarização

desse uso. Mas paremos agora na expressão que pode soar quase ofensiva: “uso

quotidiano superficial”. Gostaria de lembrar que Warburg enviou a Klages uma carta

no início de novembro de 1912: “Logo me aproximarei – então escrevia – da sua

Charakterologie, pois tenho interesse científico para o livro ainda não escrito

Psicologia histórica da expressão humana. (...) Aqui me parece uma cautelosa

possibilidade de deixar emergir o seu modo de pensar no justo lugar; todavia, não

oferecerei para isso a minha mão, a fim de que a sua esfera ideal seja consumida

como uma refeição para a plebe”. Podemos reconhecer no projeto de uma “Psicologia

histórica da expressão humana” um antecedente do Mnemosyne, e na dura expressão

“refeição para a plebe” podemos reconhecer um antecedente da expressão, de 1927,

“uso quotidiano e superficial”.

Warburg parece seguramente interessado nos motivos principais da filosofia

de Klages: na teoria da expressão e naquela, a esta correlata ao extremo, da alma e da

vida das imagens. E, todavia, pretende colocar essa teoria no justo lugar, sensível (já

em 1912) aos riscos que ela comporta.

Diria que Warburg vê com vivo interesse uma parte da teoria de Klages, mas

vê também que essa teoria tem um vício interno que a dispõe a um uso superficial e

perigoso. Tal vício interno é o abandono do elemento apolíneo. Ou melhor, com as

palavras de 1927, o abandono da “unidade orgânica da sophrosyne e do êxtase na sua

função polar de cunhar os valores limites da vontade de expressão do homem”.

Klages tinha afirmado a vida das imagens, mas tinha desse modo energicamente

negado a unidade orgânica de Dionísio e Apolo.

Warburg não abandona essa unidade que, pelo contrário, para ele é essencial.

Deixa isso claro naquela que podemos definir a original versão warburguiana da Lei

de eterna justiça. Refiro-me à passagem do Notizbuch que, por sua vez, ficou famoso

por meio de Gombrich: “os dinamógrafos da arte antiga – aí se lê – são deixados

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como legado em um estado de tensão máxima não polarizada, em relação à carga

energética ativa ou passiva, ao artista que pode reagir, imitar ou recordar. É apenas o

contato com uma nova época que produz a polarização. Esta pode levar a uma radical

reversão (inversão) do significado que eles tinham na antiguidade clássica”.

Para Warburg, assim como para Klages, as imagens vivem. Mas se o conceito

warburguiano de Nachleben pode ser definido “vida das imagens”, não se poderia

com igual direito chamar de Nachleben o Leben de Klages. A vida, e a imagem, de

Klages é eterna e está em oposição irreconciliável com o mundo do espírito e da

história. A imagem de Warburg é viva e histórica ao mesmo tempo.

O que significa então “colocar no justo lugar” a teoria de Klages? Significa,

diria, recolocá-la “entre Dionísio e Apolo”, forçá-la, contra Klages, ao centro da lei

nietzschiana de eterna justiça. A vida das imagens se desenvolverá assim entre os dois

polos, e a oposição se tornará vital. O que comporta, com efeito, essa correção

teórica? Ela investe os mesmos termos da lei de Nietzsche. A imagem de Warburg

jamais é “originária”, como o fundo dionisíaco de Nietzsche e a imagem de Klages: é

sempre mnésica ou pré-formada. É – segundo um uso do termo por Konrad Fiedler –

uma “fórmula”; é sempre o legado de uma atividade formativa precedente e sempre

pronta a polarizar-se novamente. Originária não é portanto a imagem, mas a oposição,

a tensão polar. Desse modo, toda fórmula pode migrar no espaço e no tempo,

atravessando todo o campo entre Dionísio e Apolo até obter uma carga de sinal

completamente oposto. Um motivo de forte tensão dionisíaca pode, por exemplo,

aparecer apolíneo se revive em uma época muito mais próxima ao polo de Dionísio

do que daquela precedente. E, assim, mesmo o triunfo da dimensão apolínea, o triunfo

da ilusão pela mão do artista ingênuo, pode sofrer uma inversão dionisíaca. Como se

lê no ensaio, de 1914, sobre o Estilo ideal ao modo antigo [anticheggiante]: “o

Quatrocentos primitivo, que nós contemplamos com tanto gosto pela sua ‘ingênua’

placidez, precipita-se no extremo estilo barroco da mímica”.

As duas forças opostas são sim, como para Nietzsche, “constrangidas a

desenvolver-se em uma rígida proporção”, mas também o seu equilíbrio corresponde

a um estado de tensão máxima, a qual ainda deve ser sempre polarizada. A arte, a

ilusão da ilusão, é sempre apreendida no campo de tensão: os dois polos não se

encontram numa obra; ao contrário: qualquer obra sempre é apreendida entre os dois

polos. Originária não é, portanto, a imagem, originária não é a dor dionisíaca, mas a

oposição, ou melhor, o espaço intermediário (Zwischenraum) entre Dionísio e Apolo.

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E a lei de justiça não pode resplandecer, para Warburg, em um único quadro,

ainda que “simbólico”, não em uma única imagem exemplar do equilíbrio, mas

apenas no Zwischenraum em que cada imagem deve, com justiça, colocar-se, ou seja,

na composição de um “inventário das pré-formações documentáveis”. Esse inventário

é a verdadeira abreviação do fazer artístico. E somente assim podia ser atingida a

imparcialidade que Warburg sempre procurou: compondo o Atlas ou dando

novamente vida ao mito de Mnemosyne.

Em 1962, na conferência que se tornará depois a introdução aos escritos de

Warburg, Gertrud Bing lembrou do filólogo e paleólogo Ludwig Traube, tão

admirado por Franz Boll e chamado por Warburg de “o Grande Mestre da nossa

Ordem”. Trinta anos antes, um amigo italiano de Warburg, o filólogo clássico Giorgio

Pasquali, tinha feito a sua homenagem a Traube em um dos seus mais belos ensaios,

Paleografia como ciência do espírito (ensaio este que depois iria recolher, em

conjunto com outro intitulado Recordação de Aby Warburg, na antologia de 1952,

Páginas extravagantes14 velhas e novas).

Gertrud Bing explica bem como diante da pompa dos heróis clássicos,

vestidos ao modo borgonhês nas estampas do Quatrocentos florentino, Warburg

soubera reconhecer, com a “definição paradoxal de antiguidade à francesa”, não

apenas uma influência estranha ou uma figuração ingênua, mas um “fortíssimo

obstáculo na estrada que conduzia às fontes mais puras da arte clássica”. Assim, a

maneira curiosa como a moda contemporânea dos vestidos longos e dos pesados véus

hennins, que ornamentavam as cabeças femininas, vigia no Planeta de Vênus, de

Baccio Baldini, é testemunha do estilo como fenômeno essencialmente polar, que

conhece não simples evoluções, mas contrarreações e magnetismos inversos. Por sua

vez, Traube “havia mostrado a validade desse princípio na paleografia, (...)

utilizando-se dos erros dos copistas como indícios dos períodos e dos países pelos

quais haviam passado os textos clássicos antes de chegar até nós”.

Há um ensaio particular, que Warburg por certo devia conhecer bem, e ao qual

também Gertrud Bing podia talvez fazer referências, em que Traube expõe – e, caso

para ele singular, analisando uma série de imagens – um exemplar muito semelhante

da antiguidade ímpar que havia inspirado a feliz expressão warburguiana.                                                                                                                14 N.T.: Pagine stravaganti: Expressão que em italiano remete às obras menores ou que tratam de assuntos diversos àqueles que costumeiramente trata um autor.

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Naqueles anos diversos estudiosos haviam se ocupado do assim chamado

Codex romanus (vaticano latino 3867), que atraía pelo excêntrico contraste entre o

texto de Virgílio, versado na antiga escritura romana capital, e as miniaturas ásperas e

medievalizantes que o ilustravam. Uma diferença tão evidente e misteriosa entre o

elemento gráfico e o figurativo devia a seu modo refletir-se sobre as ainda rígidas

divisões disciplinares, distanciando como nunca antes as posições dos historiadores da

arte e aquelas dos paleógrafos: se para estes últimos, que analisavam a escritura, o

manuscrito remontava ao século II, os primeiros não hesitavam em avançar a datação

até o século XIII. Essa incerteza embaraçosa pedia com tal urgência uma solução que

Franz Wickhoff, o mestre indiscutível da Escola de Viena, levantou a hipótese de uma

editio in usum puerorum. No fim do século XIX, o antigo códice assumia então a

aparência de um moderno abecedário, escrito com caracteres grandes para facilitar a

compreensão das letras individuais e ilustrado de maneira decerto pueril para os olhos

adultos, mas muito mais atraente, pretendia-se, para os antigos escolares.

Em 1900, Traube intervém na disputa com a publicação do genial ensaio Das

Alter des “Codex romanus” [A idade do “Codex romanus”]. Em primeiro lugar, ele

resolveu, com um método totalmente original, o problema da datação, demonstrando

que as abreviações por contração dos nomes divinos contidos no manuscrito

__ ____ __ ___ (ds para Deus e do para Deo)

começaram a aparecer nos textos profanos não antes do século IV. Tendo obtido

assim um termo post quem, Traube podia estudar a vida, ou melhor, as migrações do

códice virgiliano, descobrindo que provavelmente fora redigido na Itália por um

monge da escola de Cassiodoro para então chegar à posse de Enrico de Auxerre e ser

ilustrado – poderemos agora também dizer – à francesa.

É, no entanto, na obra-prima Nomina sacra (publicação póstuma, de 1907)

que Traube desenvolve plenamente a teoria das abreviações, que apenas se insinua no

ensaio sobre o Codex romanus. Nela o autor mostra como a maneira de contrair uma

palavra, acompanhando-a com a linha supra-assinalada, não era um simples

dispositivo taquigráfico elaborado pelos amanuenses para economizar tempo, mas

tinha, ao contrário, uma razão de todo diversa em face à outra técnica de abreviação,

aquela obtida por truncamento ou omissão das letras finais. O método da contração

era, na realidade, um método original da escritura religiosa que, junto aos códigos

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latinos do primeiro cristianismo por meio dos compêndios gregos, esperou por muito

tempo antes de ser empregado nos documentos seculares, nos quais emparelhou e em

seguida substituiu a prática já firmada do truncamento. Traube documentou em

abundância essa passagem, que por certo não foi inesperada: limitadas nos

manuscritos do século IV apenas aos nomes Deus, Iesus, Christus e Spiritus, as

contrações passaram a incluir também, a partir do século V, Dominus e Sanctus, com

uma progressiva extensão aos termos diaconus, episcopus, presbiter, reverentissimus,

até que com nostri, nostro, nostrum, o sistema podia assim fazer o seu ingresso

definitivo na esfera profana.

Uma vez dissipada toda possível confusão com o truncamento, a origem da

contração podia ser reconhecida como fenômeno de ordem teológico-linguístico

apenas na sua intrínseca necessidade. Apoiando-se em uma passagem de Cristiano de

Stavelot a propósito da versão grega da Escritura, Traube elaborou então a sua tese

principal, qual seja: a contração é um particular legado hebraico, isto é, uma

sobrevivência, nas línguas para as quais havia sido traduzido o Pentateuco, da

proibição de escrever ou pronunciar o Nome divino. A partir da interdição talmúdica

é que seriam derivadas as siglas contraídas dos mais antigos códigos da tradução dos

Setenta que, em seguida, foram transmitidas à língua e ao mundo latino com as

primeiras traduções da Bíblia.

Tentemos agora definir a descoberta de Traube no plano da filosofia da

linguagem. Franz Rosenzweig certa vez disse que a questão decisiva para a tradução

do texto bíblico reside “na possibilidade de coligar a apreensão do Nome à Revelação

do próprio Nome”. Desse modo, a própria traduzibilidade é remetida às abreviações

do Nome divino contidas nos códigos da tradução dos Setenta. Em outras palavras,

nas abreviações se dá a possibilidade de traduzir o Tetragrama à língua grega, ou seja,

a possibilidade de traduzir todo o Pentateuco. As abreviações são tradutores puros,

pura traduzibilidade, são portas de comunicação que se abrem nas paredes entre o

grego e o hebraico e naquelas entre o latim e o grego. De fato, isso também se dá nos

manuscritos latinos examinados por Traube: no âmbito religioso, os nomes Deus e

Dominus, por exemplo, como Sanctus, são versões exatas somente em virtude dos

respectivos tradutores, das puras traduzibilidades:

____ __ ______ ____ ____ ______ DES ou DS, DOMS ou DMS, SCS ou SANCS (todas com o traço supra-assinalado).

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Tal interpretação parece, a seu modo, convalidada em um caso, à primeira

vista singular, reportado por Traube em Nomina sacra:

_____ DEUS.

Escrita em letras maiúsculas com o traço supra-assinalado, essa palavra é uma

abreviação, mesmo se escrita por inteiro. Desmentindo toda economia taquigráfica,

ela define a abreviação justamente no sentido indicado por Traube. O traço não se dá

aqui na ausência de contração, mas, ao contrário, como seu grau último, aquele em

que desaparece qualquer truncamento, qualquer omissão, e a abreviação reveste de

fato cada uma das letras. É – diria – a máxima brevidade ou o estágio absolutamente

contraído da palavra DEUS.

Mas aqui também se anuncia um estado último da língua: assim como DEUS,

toda palavra pode aparecer agora inteira e, ao mesmo tempo, abreviada. Além do

significado, toda palavra poderá agora aparecer aos nossos olhos como uma

abreviação. Entre as suas letras se abre um espaço intermediário do qual antes não nos

dávamos conta.

O inventário das pré-formações documentáveis de que fala Wargurg é uma

abreviação histórica. Cada painel do Atlas Mnemosyne é uma imagem-abreviação.

Cada painel do Atlas Mnemosyne compendia o completo arco da sobrevivência de

uma imagem, enquanto o seu fundo preto retém as figuras como o traço supra-

assinalado liga entre si as letras da palavra contraída. O fundo preto do painel, visível

entre as imagens, indica que no espaço entre uma imagem e outra vivem de modo

virtual outras imagens. Mas não apenas isso: o Atlas muda o estatuto de cada imagem,

que agora se torna pura abreviação.

No painel 46, o Nascimento de São João Batista, de Domenico Ghirlandaio,

sobre o qual Warburg já havia tratado no ensaio sobre o Estilo ideal ao modo antigo

[anticheggiante], é reproduzido por inteiro. Na visita solene a Santa Isabel puérpera,

irrompe desde o lado direito da composição, nos panos de uma serviçal, a ninfa

warburguiana, rápida portadora de vitória (“ainda que os seus pés ornados com

sandálias devam firmar-se sobre a terra – escrevia Warburg em 1914 –, a veste,

similar a uma vela inflada pelo vento (...), confere-lhe um substituto dos aparatos

olímpicos”). Um pouco ao lado, na borda branca dessa fotografia, Warburg colou uma

muito menor, na qual aparece uma outra pintura, uma cópia exclusiva da serviçal

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sozinha. Graças a essa segunda reprodução, que repetindo a figura a expõe como

fórmula, a ninfa não corre mais em direção ao grupo das damas no centro do afresco.

Agora, por assim dizer, a imagem emerge e se destaca para colocar-se, no painel do

Atlas, no seu “justo lugar”. O seu movimento não é mais apenas aquele representado

no quadro, mas o que a faz mover-se, no intervalo histórico, entre as polaridades da

sophrosyne e do êxtase, de Apolo e de Dionísio. Ao mesmo tempo, entretanto, a

ninfa-serviçal não deixa de pertencer à primeira cena.

Aquilo que cinde a imagem de si mesma apenas para fazê-la referir a si

mesma é o intervalo entre as polaridades da sua vida. Cada painel do Atlas reassume

esse intervalo, e cada figuração deve, destacando-se de si mesma para entrar no Atlas,

repercorrer a própria sobrevivência antes de retornar novamente a si. Mas tudo isso

quer dizer que o intervalo, o Zwischenraum entre as duas polaridades, já está contido

em cada imagem em um estado absolutamente contraído. Toda imagem é, como a

palavra DEUS, e como toda palavra, uma pura abreviação.

Tradução: Vinícius Nicastro Honesko