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ANÁLISE A Operação Cesárea no Brasil. Incidência, Tendências, Causas, Conseqüências e Propostas de Ação Aníbal Faúndes * José Guilherme Cecatti ** *Professor Titular de Obstetrí- cia, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Esta- dual de Campinas. ** Professor Assistente do De- partamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médi- cas da Universidade Estadual de Campinas. Os autores fazem uma análise sobre a situação da operação cesárea no Brasil, que atingiu, na última década, níveis de incidência extremamente elevados, superiores aos de qualquer outro país. A partir dos dados disponíveis a nível nacional sobre a incidência de cesáreas ao longo dos anos, tenta-se caracterizar esta tendência e estabelecer suas diferenças sócio-econômicas e regionais, que mostram uma incidência mais alta para os indivíduos e regiões mais favorecidos economicamente. Consideram-se, também, os fatores que influenciam esta alta incidência, incluindo os fatores sócio-culturais, de organização da atenção obstétrica e fatores institucionais e legais. Enfatiza-se a esterilização cirúrgica que, sendo proibida no país, é realizada disfarçadamente através de uma indicação inadequada de cesárea. São analisadas, ainda, as conseqüências sobre a morbidade e mortalidade materna e perinatal, seus efeitos sobre a fecundidade da população e dos gastos extras para os cofres públicos decorrentes desta situação. Finalmente, propõem-se uma série de intervenções e mudanças que seriam necessárias a diversos níveis para reverter esta indesejável tendência de aumento da incidência de operações cesáreas. TAXAS, TENDÊNCIAS E DIFERENÇAS SÓCIO- -ECONÔMICAS E REGIONAIS O aumento na incidência de cesárea é um fenôme- no comum a quase todos os países do mundo. Contudo, não sabemos de nenhum outro país onde a curva de aumento seja tão acentuada, nem as taxas tenham al- cançado níveis tão altos, como no Brasil. poucos dados estatísticos que permitam um seguimento adequado da tendência do índice de cesá- reas. Os melhores são os fornecidos pelo Inamps, que paga cerca de 75% de todos os partos ocorridos no

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ANÁLISE

A Operação Cesárea no Brasil. Incidência,Tendências, Causas, Conseqüências ePropostas de Ação

Aníbal Faúndes *José Guilherme Cecatti **

*Professor Titular de Obstetrí-cia, da Faculdade de CiênciasMédicas da Universidade Esta-dual de Campinas.

** Professor Assistente do De-partamento de Tocoginecologiada Faculdade de Ciências Médi-cas da Universidade Estadual deCampinas.

Os autores fazem uma análise sobre a situação daoperação cesárea no Brasil, que atingiu, na últimadécada, níveis de incidência extremamente elevados,superiores aos de qualquer outro país. A partir dosdados disponíveis a nível nacional sobre a incidênciade cesáreas ao longo dos anos, tenta-se caracterizaresta tendência e estabelecer suas diferençassócio-econômicas e regionais, que mostram umaincidência mais alta para os indivíduos e regiões maisfavorecidos economicamente. Consideram-se, também,os fatores que influenciam esta alta incidência,incluindo os fatores sócio-culturais, de organizaçãoda atenção obstétrica e fatores institucionais e legais.Enfatiza-se a esterilização cirúrgica que, sendoproibida no país, é realizada disfarçadamente atravésde uma indicação inadequada de cesárea. Sãoanalisadas, ainda, as conseqüências sobre amorbidade e mortalidade materna e perinatal, seusefeitos sobre a fecundidade da população e dos gastosextras para os cofres públicos decorrentes destasituação. Finalmente, propõem-se uma série deintervenções e mudanças que seriam necessárias adiversos níveis para reverter esta indesejável tendênciade aumento da incidência de operações cesáreas.

TAXAS, TENDÊNCIAS E DIFERENÇAS SÓCIO--ECONÔMICAS E REGIONAIS

O aumento na incidência de cesárea é um fenôme-no comum a quase todos os países do mundo. Contudo,não sabemos de nenhum outro país onde a curva deaumento seja tão acentuada, nem as taxas tenham al-cançado níveis tão altos, como no Brasil.

Há poucos dados estatísticos que permitam umseguimento adequado da tendência do índice de cesá-reas. Os melhores são os fornecidos pelo Inamps, quepaga cerca de 75% de todos os partos ocorridos no

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país. Os dados do Inamps publicados referem-se aoperíodo de 1970 a 1980 (Granado Neiva, 1982), eindicam um aumento do índice de cesáreas de 14,6%em 1970 para 31% em 1980 (Tabela I).

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios(PNAD), realizada em 1981 pelo Instituto Brasileirode Geografia e Estatística (IBGE), obteve uma taxade cesáreas para o Brasil de 30,9%, um valor pratica-mente igual ao do Inamps em 1980, sendo que o IBGEentrevistou uma amostra representativa da populaçãogeral (IBGE, 1982). Esta pesquisa também revelouque, em todas as regiões do Brasil, a incidência decesáreas era tanto maior quanto maior o poder aquisi-tivo da mulher grávida, com base no salário familiarmensal (Tabela II).

Este achado confirma o resultado de diversos es-tudos menores que apontam que, já há muito tempo,a incidência é maior entre as pacientes privadas emenor entre as que recebem atendimento gratuito eque não têm seguro (Mello, 1969 — Tabela III). Aseqüência mais comum de uma incidência mais baixapara uma mais alta é: indigência, seguro do Inamps,seguro particular e pagamento direto (Janowitz, 1982;Janowitz, 1985 e Rocha e cols., 1986).

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Também podem ser observadas grandes variações,quando analisamos as taxas de cesáreas por estado,O estudo do IBGE de 1981 mostra uma grande dife-rença entre São Paulo, o mais rico, com 43,8%, eos estados mais pobres como o Ceará (17,7%) e Per-nambuco (17,9% —Tabela IV). A mesma tabela mostraque, enquanto os dois estados mais ricos (São Paulo

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ANALISE

e Rio de Janeiro) tinham taxas de cesárea mais altaspara a população em geral do que para o Inamps,ocorria o oposto nos estados mais pobres como Cearáe Pernambuco. Uma explicação possível é que, enquan-to em São Paulo e Rio de Janeiro a população não-co-berta pelo Inamps consistia, principalmente, de pacien-tes particulares das classes sociais mais ricas, nos esta-dos do Nordeste, com altos níveis de desemprego,aquelas pessoas sem seguro do Inamps pertenciam àsclasses mais pobres da população. Assim, os ricosem São Paulo e Rio empurraram para cima as taxasde cesárea da população em geral e, no Ceará e Per-nambuco, os indigentes trouxeram essas taxas parabaixo, em comparação com as taxas do Inamps.

Outro achado que requer maior explicação é que,enquanto nos estados menos desenvolvidos os índicesmais elevados são para a capital, ocorre o oposto emSão Paulo. A PNAD de 1981 permite-nos comparar,por exemplo, o estado de Pernambuco com o de SãoPaulo, incluindo na análise apenas os partos hospita-lares. Recife, capital de Pernambuco, teve uma taxade cesáreas de 28,6%, comparada com apenas 11,7%no resto do estado, enquanto que a região metropo-litana de São Paulo teve uma taxa menor (41,4%)comparada com o restante do estado (46,7% — Tab.V).

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Este último achado foi confirmado, para o anode 1987, pela Avaliação do Programa de AssistênciaIntegral à Saúde da Mulher (PAISM) do Estado deSão Paulo (Hardy e cols., 1988). Este estudo, comentrevistas domiciliares feitas com mais de 2.000 mu-lheres de baixa renda na região metropolitana de SãoPaulo e mais de 1.700 no interior do estado, constatouuma taxa de 43,9% na capital e uma taxa mais elevada,de 52,5%, no interior.

Uma possível explicação para isto é que as facili-dades necessárias para a realização de uma cesáreasão encontradas com mais facilidade em Recife doque no interior de Pernambuco, enquanto que o interiorde São Paulo é tão rico em recursos quanto a capitale, provavelmente, conta com obstetras menos treina-dos e com menor controle social da prática médica.

FATORES QUE INFLUENCIAM A ALTAINCIDÊNCIA DE CESÁREAS

A atual incidência excessivamente alta de cesá-reas no Brasil não pode ser explicada apenas comoum esforço para melhorar os resultados perinatais. Naverdade, como já foi demonstrado, as taxas são meno-res entre os pobres, possuidores dos índices mais altosde patologias obstétricas, distócias e outras complica-ções da gravidez e do parto.

Na ausência de dados confiáveis, fica mais difícildefinir as razões do aumento da incidência para oBrasil do que para os Estados Unidos e países daEuropa. Várias hipóteses, baseadas principalmente emevidências indiretas, podem ser levantadas para expli-car a preferência pela cesárea que existe atualmente,tanto entre as mulheres como entre os médicos quefazem os seus partos. Sem dúvida, ambos são influen-ciados por vários fatores sócio-culturais, institucionaise legais que serão discutidos a seguir.

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Fatores sócio-culturais

Desconhecemos qualquer estudo brasileiro publi-cado que vise avaliar a influência dos fatores sócio-cul-turais sobre a incidência de cesáreas. A discussão quese segue baseia-se na opinião coletiva de um gruporestrito de obstetras e outros especialistas brasileirosque se reuniram para rever o problema do aumentoda incidência de cesáreas no pais, incluindo os possí-veis fatores determinantes (Unicamp, 1982).

As razões por que as mulheres preferem a cesáreaao parto vaginal seriam de dois tipos. Um é o medoda dor durante o trabalho de parto e o parto. A idéiaé que uma cesárea eletiva, decidida com antecedênciapara dia e hora marcados, permitirá à mulher um partosem qualquer dor, desde que receba também fortesanalgésicos depois da cirurgia.

O outro e o conceito de que a cesárea permiteà mulher manter intactas a anatomia e fisiologia davagina e do períneo, enquanto que o parto vaginalproduz perda acentuada da função do coito normal.Esta interpretação um tanto mecânica da fisiologiada relação sexual tem sido encorajada até por famosose distinguidos professores de obstetrícia, que transmi-tem estas idéias aos seus alunos, a ponto de ter setornado um conceito prevalente entre médicos e pa-cientes.

Também, o inconveniente estético da cicatriz ab-dominal após uma cesárea tem sido evitado pelo usoquase universal da incisão de Pfannestiel, que deixaa cicatriz coberta pelo limite superior dos pelos pú-bicos.

Outro fator cultural importante é o conceito popu-lar de que o parto vaginal é mais arriscado para ofeto do que uma cesárea. Assim, um mau resultadoneonatal é muitas vezes atribuído ao fato do médiconão se ter decidido por uma cesárea, ao invés de umparto vaginal. Se uma morte neonatal ocorre após umacesárea, será considerado que ocorreu "apesar" da "sá-bia" decisão de se realizar uma cesárea, mas nuncaassociada ao tipo de parto. Por outro lado, se umrecém-nascido morre depois de um parto com fórcipe,a morte será sempre atribuída ao uso de fórcipe enão às circunstâncias que levaram a esta indicaçãode extração fetal. Esta crença popular torna-se umfator importante na decisão do obstetra quanto ao tipode parto.

Organização da atenção obstétrica: conveniência esegurança do médico

A preferência dos médicos pela cesariana podeter várias origens. Contudo, atualmente, o que domina

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é a conveniência de uma intervenção programada, quenão tomará mais que uma hora de seu tempo, ao contrá-rio do parto vaginal que pode ocorrer a qualquer horado dia ou da noite, fins de semana ou feriados, eque ocupará um período maior e imprevisível de seutempo.

Também a incerteza quanto à possibilidade dehipóxia ou trauma fetal durante o trabalho de partoe parto nas mãos de profissionais que não têm umbom treinamento obstétrico, como é o caso da maioriados partos no Brasil, pode ter uma influência impor-tante na decisão de intervir.

A coincidência desses conceitos com o treina-mento obstétrico incompleto e a conseqüente falta desegurança do médico em sua habilidade, explicam porque em muitos hospitais somente os trabalhos de partomais fáceis e mais rápidos permitem-se evoluir paraum parto vaginal, e por que uma distócia mínima,seja ela real ou imaginária, resulta automaticamentena decisão de se realizar uma cesárea.

A maneira como se pratica a assistência obstétricano Brasil também contribui para esta situação. O cui-dado pré-natal, em geral, não prepara a mulher grávidapsicologicamente para o parto. O medo e insegurançaque toda mulher grávida sente são mais estimuladosdo que prevenidos no pré-natal que ela recebe e nocontexto social em que ela passa a sua gravidez. Por-tanto, o medo da dor no parto é exacerbado com asprimeiras contrações uterinas, requerendo um apoiopsicológico para a mãe. Isto praticamente inexiste hojeno Brasil, uma vez que no atual sistema de saúdea figura da parteira quase desapareceu.

A falta de parteiras também contribui para a perdado conceito e da prática do trabalho em equipe nocuidado obstétrico. Com a exceção de alguns poucosserviços públicos e hospitais universitários que mantêmuma equipe de residentes, internos e pessoal clínico,a maior parte da assistência obstétrica está individuali-zada. Um médico cuida de várias grávidas, e cadamulher só aceitará aquele médico na atenção ao seuparto. Obviamente, cada médico tem a sua rotina pro-fissional e particular. Ele tem seu consultório, visitasao hospital, participação em conferências e congressose sua vida familiar. Todas estas rotinas serão abaladaspor uma mulher em trabalho de parto, que precisado médico ao seu lado para controlar a freqüênciacardíaca fetal e os outros parâmetros que indicam odecurso normal do parto. Para poder fornecer o cuidadonecessário a nível individual, o médico terá de abando-nar todas as outras atividades durante seis, doze oumais horas seguidas. Talvez uma vez por semana, du-rante certo tempo, ele tenha disposição de fazê-lo,mas quando isso começa a atrapalhar a sua vida, a

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tentação de encurtar o processo com uma cesárea égrande demais. Como a atenção é pessoal, ninguémpode criar objeção ou discutir a indicação da interven-ção. O hospital lucra com esta decisão e a famíliae poupada da tensão e da espera pelo resultado doparto.

Se a clientela de um médico cresce demais, entãouma cesárea com dia e hora marcados fica ainda maisconveniente, especialmente se dois ou mais casos po-dem ser "resolvidos" juntos. Às mulheres é oferecidaa conveniência de não experimentar sequer uma contra-ção dolorosa, de decidir a data do parto e todos osdetalhes práticos que podem ser providenciados, quan-do se sabe com antecedência o dia exato em que acriança irá nascer.

Entendemos que praticamente não possuímos da-dos objetivos que comprovem estas afirmativas. Nãoexiste no Brasil qualquer estudo que determine a in-fluência do fator do médico sobre a incidência de cesá-reas. Contudo, existe uma recente publicação que mos-tra os resultados de um estudo feito nos Estados Uni-dos, onde foi constatado que o médico tem uma in-fluência impartate na taxa de cesarianas, perdendoapenas para a nuliparidade (Goyert e cols., 1989).

Fatores institucionais e legais: esterilização cirúr-gica

Visto que cerca de três quartos de todos os partossão financiados pelo Inamps, sua política de pagamentotem grande influência sobre a atual situação. O fatodo Inamps pagar diretamente aos médicos que atendemos partos é um fator que contribui para estimular aspráticas descritas acima. Outro fator é que ele nãopaga pela analgesia peridural, meio mais difundidoe eficaz de alívio da dor no Brasil, se o parto forvaginal. Paga somente se esta anestesia for utilizadapara a realização de uma cesárea. Ou seja, se umamulher dá prioridade a evitar a dor e pretende queseu parto seja pago pelo Inamps, ela não tem outraescolha senão uma cesárea. O maior risco para a mãee o feto é ignorado ou contestado.

Até 1980 o Inamps pagava mais aos médicos poruma cesárea do que por um parto normal. Após verifi-car que a taxa de cesáreas havia dobrado em apenasdez anos, o Inamps mudou a sua política de pagamento,e todos os tipos de parto passaram a ser pagos demaneira igual. Após esta iniciativa, todos os segurosmédicos privados também passaram a adotar a mesmapolítica. Entretanto, não há nenhuma indicação de queesta mudança na política de pagamento do parto tenhaprovocado qualquer mudança na tendência de constan-te aumento na incidência de cesárea. Acontece que

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em condições de pagamento idêntico para todos osprocedimentos, a cesárea continua compensando maispara o médico, considerando o ganho por hora. En-quanto uma cesárea não dura mais que uma hora, umparto normal poderá demorar de seis a doze vezesmais tempo.

Também não houve um efeito econômico, porquea cesariana continua sendo mais cara para o Inampse para os seguros de saúde, visto que inclui o paga-mento de assistentes e anestesistas, além de custosadicionais do hospital.

Outro fator importante é o uso da cesárea paraa realização de laqueadura tubária. A esterilização ci-rúrgica não está formalmente proibida no Brasil, istoé, não há nenhuma lei que a indique como crime.Contudo, existe uma ambigüidade sobre a questão quepermitiu uma recente interpretação pelo Conselho Fe-deral de Medicina, dizendo que sua realização, à exce-ção de circunstâncias excepcionais, ofende o CódigoPenal, uma vez que uma de suas cláusulas proscrevequalquer ato que cause "perda de órgão ou função",e que a laqueadura resulta em perda da função reprodu-tiva. Porém, outros juristas observam que os médicos,na atenção a seus pacientes e com o consentimentodos mesmos, realizam rotineiramente intervenções queresultam em perda de órgãos e funções, e que istoé considerado como um exercício legítimo da profissão.Uma esterilização cirúrgica, com o consentimento damulher e a seu pedido geralmente contribui para oseu bem-estar biológico, psicológico e social e, assim,também estaria justificada.

No entanto, esta ambigüidade é suficiente paraque o Ministério da Saúde e o Inamps excluam a esteri-lização cirúrgica das alternativas aceitas para a regula-ção da fertilidade. Assim, o Ministério da Saúde nãopossui normas que possam ser aplicadas à prática dalaqueadura tubária, e o Inamps não paga por esta cirur-gia. Visto que o Inamps paga cerca de 75% de todosos serviços médicos, as pacientes e os médicos burlam-no ao disfarçar a esterilização cirúrgica como qualqueroutra cirurgia, desde um nódulo de mama até um cistode ovário, mas geralmente como uma cesárea "nor-mal".

A PNAD realizada pelo IBGE em 1986 inquiriusobre a regulação da fertilidade (IBGE, 1986). Osdados coletados demonstraram que, em todo o país,três quartos de todas as laqueaduras tubárias foramrealizadas por ocasião do último parto, variando de61,25% em Sergipe até 85,9% no estado do Amazonas.O estado de São Paulo estava em segundo lugar, com83% (Berquó, 1988 - Tabela VI). O IBGE não pergun-tou se estes partos foram vaginais ou cesárea, maso estudo de avaliação do PAISM, mencionado anterior-

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mente, constatou que em 1987, no estado de São Pau-lo, 72% de todas as esterilizações cirúrgicas entreas mulheres de baixa renda foram realizadas duranteuma cesariana (Hardy e cols., 1988). Como outrasformas de esterilização pós-parto somente são realiza-das em alguns poucps hospitais universitários, a por-centagem encontrada pela pesquisa do IBGE deve estarbem próxima de ser o total de laqueadoras realizadasdurante uma cesariana.

AS CONSEQÜÊNCIAS DA ALTA INCIDÊNCIA DECESÁREAS

Os riscos da cesárea para o recém-nascido sãode dois tipos. Um é o risco de interromper prematura-

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mente a gravidez por erro de cálculo da idade gestacio-nal, especialmente no caso de cesáreas com data marca-da. Outro é o de angústia respiratória para os recém--nascidos de parto cesárea, em comparação com osde parto vaginal, mesmo que ambos estejam a termo.

Os dados disponíveis sugerem que o risco de pre-maturidade não é apenas uma hipótese, mas um riscoreal para a cesariana eletiva sem indicação médica.O estudo do PAISM realizado em 1988, em São Paulo,encontrou uma incidência 60% maior de prematuridadeentre os bebês nascidos por cesárea com esterilizaçãocirúrgica, em comparação com os nascidos por cesáreasem este procedimento, aceitando-se o fato de quea esterilização teria sido, em geral, a razão para umainterrupção eletiva da gravidez (Tabela VII). Emboraesta seja uma evidência indireta, é reforçada por dadosde hospitais com altas taxas de cesáreas, a maioriadelas eletiva, nos quais a taxa de prematuridade alcan-ça 25% ou mais.

A maior mortalidade e morbidade materna entremulheres submetidas à cesárea é um achado comumem todos os estudos (Tabela VIII). Os dados brasileiroslimitam-se às estatísticas de alguns hospitais, todosdemonstrando um maior risco de morte para a cesáreado que para o parto vaginal (Faúndes e cols., 1985).

Uma das diferenças mais claras em morbidadeestá relacionada às infecções puerperais, que são muitomais freqüentes após cesárea do que parto vaginal.Esta é, também, uma das causas de mortalidade mater-na. Outra causa importante de morte durante a cesáreaestá relacionada à anestesia. Os acidentes e complica-ções anestésicas e a aspiração de vômito são outrosfatores que contribuem para um risco mais elevadode morte materna durante uma cesárea. Assim, umaintervenção criada para proteger a vida da mãe e dacriança, quando indicada e realizada adequadamente,

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torna-se um perigo para um ou ambos, quando utilizadasomente por conveniência do médico e da mãe, oucomo resultado das incongruências do sistema de saú-de.

No entanto, há outras conseqüências da cesáreaque são menos evidentes, e afetam a saúde da mãee do bebê. Uma cesariana implica uma recuperaçãomais difícil para a mãe, levando a um período maiorde separação entre ela e o filho, uma demora no primei-ro contato entre eles e no início da amamentação.Se acrescentarmos a isto um aumento no uso de analgé-sicos e o maior desconforto ao se lidar com o bebê,é fácil compreender porque a taxa e a duração daamamentação são afetadas pela cirurgia abdominal. Sa-bendo da importância do aleitamento materno paraum país como o Brasil, este é um argumento fortecontra a cesariana desnecessária (Barros e cols., 1986).

Nessa situação de condescendência com uma altataxa de cesárea, de preferência das mulheres por essetipo de parto e de conveniência para os médicos, eleva-se ainda mais o índice para as mulheres que têm seuprimeiro filho do que para as que já tiveram um partovaginal. Este último grupo de mulheres terá um traba-lho de parto mais rápido e mais fácil, o que representamenor inconveniência para os obstetras e uma menorchance de se intervir com uma cesárea.

Quando uma mulher fica com uma cicatriz uterinadepois do primeiro bebê, seu futuro obstétrico já estácomprometido. Primeiramente, para a maioria dos mé-dicos, estabelece-se a necessidade absoluta de repetiro procedimento no próximo parto, sem esperar pela

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evolução normal do mesmo. A comprovação de queas provas de trabalho de parto resultam em parto vagi-nal para mais da metade das segundas gravidezes, semmaiores riscos para os bebês e as mães, parece nãoimpressionar os médicos brasileiros, como não impres-siona os americanos. Estatísticas da Califórnia indicamque em 98% dos nascimentos com uma cesárea anteriorrepete-se este procedimento (Petitti e cols., 1982).Mesmo com falta de dados precisos, não há dúvidaque o mesmo ocorre no Brasil. Há raras exceções dealguns hospitais, em ambos os países, que mostramum alto índice de parto vaginal após uma prova detrabalho de parto (Faúndes e cols., 1988).

A cicatriz uterina pode ter menos influência sobrea evolução do parto do que inicialmente se pensava,porém aumenta o risco de algumas sérias complicaçõescomo placenta prévia, outras patologias hemorrágicas,morbidade neonatal e infecções puerperais (Faúndes,1983 e Díaz Moraguez e cols., 1981 - Tabela IX).

Um efeito final da alta prevalência de cesáreasé a limitação da fecundidade entre a população envolvi-da. Como explicado anteriormente, em situações debaixa incidência de cesáreas, a taxa é semelhante oumenor para o primeiro parto, mas com o aumento daincidência, sobe a taxa de cesáreas entre as nulíparas(Petitti e cols., 1979 — Tabela X). Em circunstânciasde taxas excepcionalmente altas, como no Brasil, esobretudo quando somente os casos rápidos e fáceisevoluem para parto vaginal, a incidência entre as nulí-

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paras deve ser ainda mais alta. Quando a prática gerale "depois de uma cesárea, sempre cesárea", e a esterili-zação cirúrgica praticada sistematicamente após a ter-ceira cesárea, todas essas mulheres terão no máximotrês nascidos vivos (Faúndes, 1986). Três pode serp número ideal de, filhos para muitos casais, mas éimprovável que todos estejam satisfeitos com essa si-tuação, particularmente considerando que a cicatrizuterina aumenta o risco de morbidade neonatal e, con-seqüentemente, os óbitos infantis. Deve-se recordarque isso não é o resultado de uma decisão planejada,mas uma conseqüência involuntária da maneira comoo primeiro parto foi tratado.

CONSEQÜÊNCIAS ECONÔMICAS DOS ALTOSÍNDICES DE CESÁREAS

Para o médico, a decisão de realizar uma cesáreaeletiva, ao invés de um parto vaginal, pode parecernão ter nenhuma conseqüência econômica. Contudo,a soma de muitas decisões semelhantes tomadas diaria-mente pode afetar seriamente o custo da assistênciaà saúde materno-infantil de diversas maneiras.

O custo mais fácil de se identificar é aquele resul-tante da cirurgia comparado ao do parto vaginal assisti-do, somado a uma estadia mais prolongada e ao maioruso de medicamentos e outros materiais de consumo.No Hospital da Unicamp, a estimativa da diferençade custo entre os dois tipos de parto foi de cercade 50% maior para a cesárea (US$48.00 para o partonormal e US$96.00 para a cesárea).

Outro mecanismo que aumenta o custo da assis-tência à saúde é o derivado da prematuridade iatrogê-

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nica. Um bebê prematuro requer uma assistência neo-natal intensiva por algum tempo, um cuidado semi-in-tensivo anda mais longo, e aumentará a demanda dosserviços de saúde, pelo menos durante a primeira infân-cia. Conseguimos estimar o custo médio da assistênciaao recém-nascido prematuro apenas durante o cuidadointensivo, pois as variações no custo posterior sãomuito grandes e difíceis de calcular. Esse custo, emnosso hospital, foi de US$1.050, baseado no custodiário de US$150 e em uma permanência média desete dias.

Para calcular o custo excedente de cesáreas desne-cessárias, estimamos a taxa que seria justificada porrazões médicas em 15% e, então, calculamos o custode cada aumento de 1% acima dessa taxa. Estiman-do-se que há 4 milhões de nascimentos por ano noBrasil, 1% representa 40 mil cesáreas. O custo exce-dente da assistência à mãe hospitalizada para essas40 mil cesáreas seria de US$1.920.000 (US$48 x40.000).

Para estimar o custo da prematuridade iatrogê-nica, usamos a diferença de 5,2% entre cesáreas presu-mivelmente justificadas e injustificadas, encontrada naavaliação do PAISM, no estado de São Paulo (TabelaVII). Dentro desse conceito, cada aumento de 1%na taxa, ou cada 40 mil cesáreas adicionais, resultaráem 2.080 recém-nascidos iatrogenicamente prematu-ros, a um custo de US$2.184.000 (US$1.050 x2.080).

Considerando somente o custo aumentado da as-sistência às mães e da assistência intensiva aos prema-turos, cada aumento de 1% nas cesáreas custará US$4.104.000. Se fosse mantida a taxa de 31% de 1980,o excedente de cesáreas desnecessárias seria de 16%(31% menos 15% das justificadas) e o seu custo paraa nação poderia ser estimado em US$65.664.000. Sea taxa tivesse aumentado para 40%, conforme proje-ções a partir dos dados do Inamps, o excedente decesáreas desnecessárias seria 25% (40% menos 15%das justificadas), ou seja, 1 milhão de intervenções.Se este fosse o caso, em 1989, o custo total da iatroge-nia médica desnecessária seria de US$102.600.000.Cerca de 80% deste dinheiro vêm de fundos públicos,como os governos federal, estaduais e municipais.

Este desperdício de recursos já escassos e conde-nável, dada as deficiências em assistência pré-natalbásica, os baixos índices de diagnósticos preventivosatravés do esfregaço de Papanicolaou e as deficiênciasem várias outras necessidades básicas de saúde.

Essas estimativas, porém, devem ser consideradasapenas como uma aproximação. Existem fatores quepodem alterar os números finais de maneira oposta.O custo atual do cuidado intensivo a prematuros foi

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superestimado porque, no momento, os hospitais brasi-leiros não possuem recursos para prover tal assistênciaa 100% dos recém-nascidos antes do termo. Por outrolado, como não inclui todos os outros custos paraos serviços de saúde resultantes do aumento da deman-da para a assistência desses recém-nascidos, o custoé obviamente subestimado. Também não inclui o custoda taxa e duração reduzidas do aleitamento materno,com todos os conhecidos efeitos sobre a morbidadeinfantil e a demanda pelos serviços.

AÇÕES E MUDANÇAS NECESSÁRIAS PARAREVERTER A TENDÊNCIA DE AUMENTO DATAXA DE CESÁREAS

A análise pregressa das principais causas do au-mento nos índices de cesárea no Brasil pode ser usadapara orientar a formulação de políticas para reverteressa tendência. A seguir, tentaremos manter a mesmaordem, combinando os problemas com as possíveissoluções.

Intervenções sócio-culturaisBasicamente, o que se observa é que a cesárea

é uma moda no Brasil. Como mudar essa moda paraoutra que valorize o parto natural, é uma questãoque requer a ajuda de especialistas em comunicação.Podemos dizer que a mensagem deveria incluir algunspontos fundamentais.

Primeiramente, a mensagem deveria deixar claroque uma cesárea não significa, necessariamente, a au-sência de dor e que o parto vaginal pode ocorrer compouca ou nenhuma dor. A alegria do parto vaginaldeveria ser exaltada, assim como o valor emocionale físico do contato imediato entre mãe e recém-nas-cido, o qual não é possível com uma cesárea. Deve-setomar cuidado para não culpar as mulheres que nãoconseguirem ter um parto normal, mas o esforço ea intenção para isso devem ser louvados.

Outra mensagem importante é que o prazer sexualindepende do tipo de parto. Especialistas e educadoresem sexologia devem enfatizar esse aspecto em suasconferências, cursos, artigos de jornais e revistas, as-sim como também durante sua participação em con-gressos de ginecologia e obstetrícia.

O terceiro aspecto, a maior segurança para a mãee para o recém-nascido num parto normal, e os perigospara ambos numa cesárea escolhida somente por conve-niência e com data marcada, é mais difícil de ser trata-do.

Os obstetras mais conhecidos e de maior prestígiosão, também, os que têm a clientela mais numerosae mais rica. Conseqüentemente, a sua prática exige

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a aceitação da cesárea eletiva com data marcada, afim de poder atender à demanda. Esses obstetras sãoainda os oradores em congressos e cursos e escrevemem publicações médicas e leigas. Por esses papéis so-ciais que assumem, têm de acreditar que o que fazemé o correto, e estão sinceramente convencidos disso.O processo de mudança dessa convicção não será fácil.A demonstração dos resultados de estudos estrangeirosnão é suficiente, mas a coleta cuidadosa de dadosbrasileiros sobre as várias conseqüências da cesáreaserá um requisito fundamental, se quisermos superareste quadro atual.

Mudanças na organização da assistência obstétrica

Essa é uma das questões mais difíceis, e aindanão visualizamos uma saída para o caos atual se aassistência obstétrica continuar a ser vista de maneiratotalmente individualizada. A natureza do processode estar grávida e dar à luz é muito emocional e pes-soal, e a confiança na pessoa que cuida desse processotem um imenso valor psicológico. Contudo, não hánada contra a transferência dessa confiança de umindivíduo para uma equipe.

A equipe pode ser formada por apenas duas outrês pessoas ou pode ser um grupo maior. Na práticaprivada e do seguro social, a equipe pode ser ummédico e uma enfermeira obstétrica ou parteira, ouum obstetra mais experiente com alguns assistentese parteiras. Psicólogos, fisioterapeutas, educadores emsaúde e outros profissionais também podem participardo grupo de trabalho durante o preparo pré-natal parao parto e a maternidade.

A conveniência para o obstetra e para a mãe deuma equipe para a assistência à gravidez e ao partonão é fácil de se transmitir. Os médicos têm medode perder as pacientes e as mães de perder o atendi-mento personalizado. Convencer ambos de que têmmais a ganhar do que a perder não é tarefa fácil noBrasil.

Um pré-requisito muito importante é o resgateda função da parteira (obstetriz) como uma estreitacolaboradora do obstetra, assim como é a enfermeirapara o cirurgião ou para o médico de UTI. A parteirajá não constitui mais uma profissão no Brasil e oprocesso desse resgate não será fácil. O processo deve-ria ser bem planejado a nível central e em algunsestados - chave. Deveria ser iniciado o mais cedo possí-vel, pois levará alguns anos até começar a mostrarresultados.

A escassez de profissionais de saúde, que nãomédicos, é muito grande, e será fácil justificar estainiciativa para aumentar o número desses profissionais.

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Contudo, a oposição será grande, e a situação deveráser cuidadosamente avaliada para se estabelecer estra-tégias adequadas para vencer essa resistência, tantopor parte de enfermeiras como de obstetras.

Finalmente, há a questão do treinamento adequa-do dos médicos para a assistência ao parto normal.Novamente é um problema difícil, que envolve o ensi-no da medicina a nível da graduação e residência médi-ca. Muitos são os problemas que interferem no treina-mento obstétrico adequado e que deverão ser supe-rados.

Já foram discutidas anteriormente a conveniênciada cesárea para os médicos e a falta de atrativo pelaalternativa do parto vaginal. Há pouca motivação parase aprender como acompanhar o trabalho de parto epara entender as grandes variações da normalidade.Muitas das ações sugeridas acima deveriam ajudar nasolução desse problema.

Um segundo aspecto é que obstetrícia aprende-seatravés da prática, e o treinamento atual depara-secom dois obstáculos à prática da assistência ao partonormal. Há cada vez menos partos vaginais para oaprendizado e os obstetras com maior experiência estãomais raramente disponíveis para ensinar. A partir dessadescrição, não é difícil imaginar a gigantesca tarefaenvolvida na melhora do treinamento. Novamente, po-rém, é uma tarefa que requer planejamento básico,uma boa estratégia para implementação e uma fortepolítica de execução.

Ações institucionais e legais

Essa é a área mais estimulante, pois oferece me-lhores possibilidades de provocar alterações nos índi-ces de cesárea. O fato de que mais de três quartosdos partos são pagos pelos cofres públicos cria condi-ções que permitem que a taxa de cesárea seja influen-ciada por uma interação de estímulos e de algumasformas aceitáveis de coerção.

As instituições de saúde pagas pelo Inamps sãocredenciadas por preencherem alguns requisitos míni-mos de qualidade. O Inamps tem o direito de fazerauditorias nas atividades desses hospitais. Apesar des-tas auditorias serem normalmente apenas financeiras,também poderiam incluir aspectos técnicos. A taxade cesárea de cada hospital poderia ser usada comoum indicador de qualidade de assistência obstétrica,e assim poderia ser estabelecido um limite nesta taxacomo condição para a manutenção do credenciamentodesses serviços.

Como os índices de cesárea variam enormementepor regiões, o limite inicial poderia variar dessa manei-ra, utilizando-se, por exemplo, a média regional atual.

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Qualquer índice acima deste limite poderia exigir umaexplicação detalhada do diretor clínico do hospital.Qualquer hospital com dois meses sucessivos de índi-ces acima do limite seria objeto de uma auditoria dealto nível técnico para examinar, caso a caso, as indica-ções das cesáreas e ps resultados materno-fetais. Comoresultado dessa auditoria, seriam feitas recomendaçõesao diretor clínico de medidas para evitar cesarianasdesnecessárias. Se depois disso, a taxa de cesárea da-quele hospital continuasse acima do limite, restariampelo menos duas alternativas. Uma seria a suspensãodo credenciamento para a assistência obstétrica do hos-pital e a outra seria o pagamento dos partos somenteaté o limite estabelecido, não sendo aceitas cobrançaspara cesáreas além desse índice.

Tais medidas merecem considerações de aspectoprático e legal, incluindo a seleção cuidadosa dos gru-pos de alto nível técnico responsável pelas auditorias.Esses grupos deveriam incluir um representante doConselho Regional de Medicina (CRM), ou o presi-dente da Comissão de Ética do hospital (que representao CRM).

Outra decisão política importante que o Inampsdeveria adotar é a autorização do pagamento da analge-sia peridural para o parto em mulheres nulíparas. Issomudará não somente a motivação das mulheres queatualmente escolhem uma cesárea para evitar a dor,mas também significará um lucro financeiro para oInamps. Atualmente o Inamps paga não somente oobstetra e o anestesista que participam da intervenção,mas também pelo menos um assistente e outros custosadicionais, enquanto que para o parto normal de umanulípara pagaria somente os dois primeiros médicos.Além disso, enquanto uma mulher com uma primeiracesárea terá uma segunda na próxima gravidez, as mu-lheres cujo primeiro parto foi normal terão maior chan-ce de parto normal no futuro.

Uma decisão mais difícil, porém necessária, refe-re-se à esterilização cirúrgica e à anticoncepção pós--parto. Esse item requer dois níveis diferentes de análi-se e decisão política. Primeiramente, há o problemade falta de opções anticoncepcionais reais para a mu-lher segurada pelo Inamps. Os hospitais que oferecemanticoncepção pós-parto (outra que não cesárea/este-rilização) são a absoluta exceção no Brasil de hoje,assim como também as unidades básicas de saúde queoferecem serviços anticoncepcionais. Não há dúvidade que a demanda por cesáreas como forma de seobter uma laqueadura tubária será muito reduzida seas mulheres tiverem fácil e real acesso às alternativasefetivas e aceitáveis de anticoncepção. Apesar doInamps oferecer teoricamente tais serviços, a imple-mentação explícita dessa política é quase inexistente.

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Um exame das razões para esse fracasso e a adoçãode medidas corretivas necessárias contribuirão para aredução da demanda pela cesárea/laqueadura.

O outro nível de discussão refere-se à visão distor-cida das mulheres e médicos que acreditam ser necessá-ria uma cesárea para justificar uma laqueadura tubária.Muitas mulheres pobres que ja têm o número desejadode filhos engravidam novamente para ter acesso a umaesterilização cirúrgica realizada juntamente com a ce-sárea, ilustrando as perversões absurdas e perigosasque o sistema de atenção à saúde no Brasil criou.A política de mudança mais simples que poderá solu-cionar esse problema é o pagamento das esterilizaçõescirúrgicas, da mesma maneira como para quaisqueroutros serviços médicos. Para que isso seja possível,o Inamps deveria obter de seu departamento jurídicouma declaração de que não há impedimento legal paraa laqueadura tubária (e vasectomia), dentro de certoslimites e cumprindo um mínimo de exigências. Exis-tem, porém, implicações políticas que envolvem umatal decisão, que têm sido vistas como obstáculos paraas mudanças propostas. E sabido, porém, que o mo-mento político hoje é bastante favorável a essa mudan-ça, desde que as estratégias apropriadas sejam adota-das, como será discutido mais tarde.

Mudanças em práticas obstétricas

Apesar de haver alguma justaposição dos assuntosdiscutidos acima, ações também podem ser tomadaspara mudar algumas práticas obstétricas quase rotinei-ras no Brasil, em relação à indicação de cesárea.

Além das cesáreas a pedido das pacientes, existemquatro indicações obstétricas freqüentes: sofrimentofetal, desproporção céfalo-pélvica, apresentação pélvi-ca e história prévia de cesárea.

Em relação ao sofrimento fetal, a monitorizaçãoeletrônica ainda não é amplamente utilizada no Brasil,para que tenha um impacto significativo na indicaçãoda cesárea, como parece ser o caso nos EUA e outrospaíses desenvolvidos (Prentice e Lind, 1987). A ausên-cia de dados nacionais concretos impede qualquer reco-mendação a esse respeito.

A desproporção céfalo-pélvica é a indicação maisfreqüente em muitos hospitais. E utilizada sempre queo trabalho de parto não progride de acordo com asexpectativas do obstetra, sem levar em conta outrasdisfunções que possam ser a causa da demora. Nãoraramente, também pode ser o resultado de um desco-nhecimento da grande variabilidade na evolução dotrabalho de parto. As principais ações que podem aju-dar a reduzir essa indicação são o uso do partograma

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e a adoção de uma atitude mais ativa na correçãodas disfunções, quando a evolução do parto é demoradaou arrastada. O uso correto de analgesia, ocitocinae rotura artificial das membranas, na ocasião oportunae na paciente certa, reduzirão significativamente a ne-cessidade de intervenções cirúrgicas. Essa recomen-dação está intimamente relacionada com o treinamen-to, discutido anteriormente.

O uso mais liberal de cesarianas em casos deapresentação pélvica tem sido responsável por umagrande parcela de aumento na taxa de cesáreas nosEUA. Os melhores resultados perinatais parecem justi-ficar essa conduta em muitos casos, mas não em todos,como é atualmente o caso no Brasil. Uma seleçãomais cuidadosa das pacientes, permitindo a evoluçãovaginal do parto naquelas que não apresentem altorisco para esta via, evitará um certo numero de inter-venções. Essa é, talvez, a recomendação mais difícil,pois exige um diagnóstico preciso da variedade daapresentação pélvica, do tamanho da pelve maternae do feto, e do grau de flexão da cabeça fetal. Tambémexige a presença de um obstetra com alguma expe-riência no atendimento de partos pélvicos, que nãoé facilmente encontrado na assistência obstétrica atual.

Além disso, desde que a apresentação pélvicaocorre apenas em aproximadamente 2% de todos oscasos, uma mudança na incidência de cesáreas nessegrupo em particular não será significativa, dadas asproporções epidêmicas do problema no Brasil hoje.

Uma indicação mais freqüente e em rápida ascen-são é a de história de cesariana prévia. O sucessode um parto vaginal e a ausência de um maior riscocom o acompanhamento do trabalho de parto nestescasos têm sido repetidamente registrados na literaturaobstétrica brasileira e internacional, independentemen-te da causa que determinou a cesárea anterior (TabelaXI).

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Dado que a história de uma cesárea prévia deter-mina atualmente sua repetição em quase todos os casosno Brasil, a introdução de uma rotina de acompanha-mento do trabalho de parto para essas mulheres podereduzir pela metade o índice de cesáreas por esta indi-cação. Isso requer a definição de critérios objetivosna triagem e acompanhamento adequado do processodo trabalho de parto (Faúndes e cols., 1988). Nova-mente o uso do partograma pode se mostrar útil, assimcomo a melhoria do treinamento daqueles que se ocu-pam da assistência a essas pacientes.

Finalmente, mudanças na assistência pré-natal po-dem, também, ter um impacto na taxa de cesáreas,preparando a mãe para o trabalho e o parto, tantofísica como psicologicamente. Esse aspecto está inti-mamente relacionado ao resgate da profissão da partei-ra, ao treinamento dos médicos e outros profissionaisde saúde e à substituição da assistência individualpor uma de equipe.

Estratégias para a implementação de ações e demudanças de políticas

A implementação de ações e de mudanças de polí-ticas aqui propostas requerem um forte apoio social,que pode ser obtido através de informação adequadaao público, com a colaboração da imprensa (escrita,rádio e TV). Também requerem uma avaliação contínuae restrita para a introdução das correções necessárias.

A estratégia para o desenvolvimento e implanta-ção de políticas e ações deveria ser cuidadosamenteelaborada, de forma a contar com o máximo de aliadose o mínimo de oponentes possível, evitando erros quepossam transformar um aliado em potencial em oposi-tor. Há o precedente da iniciativa da Comissão daPerinatologia do Ministério da Saúde. Ela decidiu ini-ciar uma campanha nacional contra as altas taxas decesáreas, porem a maneira como a decisão foi tomadae apresentada ao público causou o embaraço e irritaçãodesnecessários da Federação Brasileira das Sociedadesde Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). Com a oposi-ção da Febrasgo, a campanha perdeu seu impacto eteve muito pouca influência sobre a prática das cirur-gias cesarianas.

Grupos como a Febrasgo, o Conselho Federal deMedicina e os CRM dos estados, a Associação MédicaBrasileira e outros similares deveriam ser informadose sua colaboração formalmente solicitada. Outros con-tribuidores muito importantes seriam todos os gruposde mulheres, que se estão tornando cada vez maisfortes, maiores e melhor organizados.

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Porém, a condição fundamental para se ter suces-so na reversão da atual tendência da taxa de cesáreasé uma liderança política forte e bem informada, comuma visão clara do problema e suas soluções e, sobretu-do, com vontade de realizar as mudanças necessárias.

The authors analyse the current cesarean sectionsituation in Brazil. In the last decade it has reachedextremely high levels of incidence, higher than anyother country. Social-economic and regionaldifferences are established through the availablenational data on the cesarean section incidence. Thereis a higher incidence on wealthier regions and women.The factors influencing this high incidence,including socio-cultural, obstetric careorganization, legal and institutional ones are alsoconsidered. Special attention is given to the problemof female surgical sterilization which is forbidden inthe country and is performed through inadequateindication of a cesarean section. Consequences formaternal and perinatal morbidity and mortality, theeffects on population fertility and extra public expensesare considered. Interventions and attitude changes areproposed at several levels to reverse this increasingtendency of cesarean section incidence in the country.

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