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ANÁLISE LITERÁRIA, UMA AVENTURA PELOS LABIRINTOS DO TEXTO
Dra. Maria do Socorro Pereira de Almeida (UFRPE/UAST)
Dra. Ayanne Larissa Almeida de Souza (UEPB)
RESUMO
O artigo faz algumas considerações sobre o texto literário no intuito de contribuir
para a desconstrução de alguns mitos que o cercam, a exemplo da concepção de que
esse tipo de texto traz dificuldade de entendimento e, por isso, afasta o leitor. Dessa
forma, iniciamos com um breve compendio sobre literatura, aludindo algumas
obras em suas épocas e, em seguida, elencamos alguns pontos que podem ser
investigados. Assim, buscamos provocar o olhar para obras, mostrando aspectos
que podem ser explorados e como textos, tanto em prosa quanto em verso, podem
ser interpretados. Buscamos embasamento teórico-crítico em estudiosos como
Eagleton (2019), Bakhtin (2002), Candido (2004), Compagnon (2006), Ricoeur
(1988), Pound (2006), entre outros. Ao final do estudo, foi possível observar que o
texto literário não é mais fácil ou mais difícil que qualquer outro, é artisticamente
produzido e deve ser visto como tal, haja vista que existem inúmeros aspectos a
serem perscrutados em uma obra literária. Vimos, ainda, que o prazer de ler
literatura artística está na magia da descoberta do que as letras podem esconder ou,
simplesmente, camuflar.
Palavras-chave: Texto literário. Interpretação. Análise. Prazer. Descoberta.
LITERARY ANALYSIS: AN ADVENTURE THROUGH THE
LABYRINTHS OF TEXT
ABSTRACT
This paper aims to discuss the literary text in order to contribute to the
deconstruction of certain myths that surround it, for instance, the idea that this kind
of text is difficult to understand and, because of this, keeps the reader away. Thus,
the discussion begins with a brief compendium about literature, mentioning some
works and their time and, afterwards, it lists certain topics that can be investigated.
The objective is to provoke the readers’ look upon the stories, showing aspects that
can be exploited and highlighting how texts, both prose and verse, can be
interpreted. This research is theoretically and critically based on authors such as
Eagleton (2019), Bakhtin (2002), Candido (2004), Compagnon (2006), Ricoeur
(1988), Pound (2006), among others. By the end of the study, it was clear that the
literary text is not easier or harder than any other, it is produced artistically and must
be seen as such, once that there are several aspects to be discovered in a literary
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work. It was also seen that the pleasure of reading artistic literature is in the magic
of discovering what the words may hide or, simply, conceal.
Keywords: Literary text. Interpretation. Analysis. Pleasure. Discovery.
1 INTRODUÇÃO
A literatura está presente na vida humana desde sempre, nas primeiras estórias contadas em
aventuras de caças, nas primeiras invenções declamadas em versos expressos oralmente,
conforme o olhar poético para o entorno. Câmara Cascudo dizia que a literatura oral foi o nosso
primeiro leite, a primeira expressão literária. Por outro lado, as inquietações que sempre
provocaram, de alguma forma, as expressões dos sentimentos, impressões e pontos de vista na
arte, seja de forma mais direta ou mais sutil, foram e são, ainda, motivo de discussões e reflexões
sobre esse fenômeno da expressividade humana, ao longo do tempo.
As pessoas com mais sensibilidade e habilidade de dizer algo de forma atrativa à atenção alheia
e de fazer os demais verem o mundo, as coisas e as situações de modo mais ampliado, a ponto
de produzir sobre tais aspectos, juízo de valores; foram deixando suas marcas à medida que
passavam às outras gerações, possibilidades de olhar para o mundo e conseguir dizer o que
viam de forma especial. Esses aspectos, porém, eram vistos, comentados e analisados por outros
que tinham seus olhares voltados para as produções, porque sempre chamou atenção o fato de
como tudo acontece no mundo literário, quais os artifícios usados para dizer o simples de forma
sublime e, até certo ponto, encantatória.
É indiscutível que, enquanto a literatura mexe e causa curiosidade por meio de suas intrínsecas
peripécias, também causa um certo preconceito em relação à análise. O mito de que analisar o
texto literário é uma tarefa difícil, árdua, ainda perdura e um dos fatores para esse errôneo
pensamento, é o afastamento entre o leitor e texto literário, tanto na escola quanto na vida social.
Na antiguidade, a literatura era oferecida em praça pública, depois foi guardada a sete chaves
apenas para alguns privilégios, depois considerada como belas artes, ou seja, arte para quem
podia usufruir do ócio para leitura.
Dessa forma, a literatura foi saindo da vida das pessoas, especialmente as de vida mais simples
que continuam ouvindo e contando histórias, causos e declamando poesia bem como cantando
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toadas além de outros gêneros. O texto literário foi levado à escola de forma obrigatória e, até
certo ponto, catequizante, mais um aspecto que colocou amarras na análise textual da literatura.
Esse tipo de estudo passou a ter, por muito tempo, uma verdade analítica e quem não a
alcançasse, não seria um leitor eficiente. Assim, nasce o mito da leitura de difícil interpretação
e também o jargão de leitura inútil, ou seja, foi tirado da literatura a sua verdadeira ‘missão’:
de dar a possibilidade de ver o mundo por vários ângulos, além de tirar de muitos, o direito a
esse direito, como já enfatiza Candido (2004).
Diante de tantos e complexos aspectos a respeito da literatura e da visão analítica do texto
literário, esse trabalho busca observar alguns pontos possíveis de serem reparados no texto
artístico que, ao contrário do que muitos pensam, podem trazer prazer na leitura, levar o leitor
aos caminhos da magia literária, a caminhar pelos labirintos traçados pelas palavras numa
constante descoberta. Entre os estudos que embasaram a proposta, podemos citar Eagleton
(2001 e 2019); Compagnon (2006); Candido (2006); Costa Lima (2012); Lews (2019) e Pereira
(2019).
2 BREVE COMPÊNDIO
Os artefatos tecnológicos são meios que contribuem para o aumento de acesso a textos de todas
as áreas do conhecimento. Além do livro impresso, temos várias outras fontes para obter obras
literárias para leitura. Nota-se, no entanto, que mesmo com mais meios para efetivação de
leituras em geral e de obras literárias, ainda se alimenta a ideia de que o texto literário é difícil
de ser analisado. Os próprios estudantes de Letras têm certo receio de ler a obra e não conseguir
fazer os comentários, as análises, observar pontos interessantes. Mitos como: o texto literário é
algo inútil, é difícil de ler, livros grossos são cansativos e trabalhosos, textos antigos não
precisam ser lidos, entre outros, infelizmente ainda fazem parte da vida social e estudantil.
Diante de tais perspectivas, é importante observar que a linguagem do texto literário carrega
significados diferentes do que se vê na linguagem corriqueira. Eagleton (2001) fala de desvio
da linguagem, uma linguagem peculiar. Esses aspectos dão uma condição mais sistemática,
como explica Compagnon (2006) uma “forma de expressão” que se diferencia da linguagem
comum.
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Muitas definições e conceitos foram criados ao longo do tempo para o fenômeno literário, desde
a mimesis de Aristóteles (imitação da realidade) até a forma de linguagem para expressão
estética, entre outras. A literatura, em sua origem, não tinha relação com a produção escrita de
obras poéticas, narrativas ou teatrais, só depois houve essa conexão, porque todos os aspectos
citados anteriormente levam a observar não só o que é feito, mas também como se faz. Assim,
nascem os estudos que hoje envolvem a Literatura, entre eles a Teoria literária, Crítica literária,
Teoria crítica e a conexão entre arte e criatividade.
Independentemente de ser expressa em prosa ou em verso, a literatura toca cada leitor de forma
diferente, mas, reconhecidamente, é algo que contribui para o crescimento humano em todas as
dimensões de sua existência. Por isso, os estudos da área, além de considerar retóricas
anteriores, acrescentam algo em relação as transformações de estilos e estéticas, ao longo do
tempo, nos fazem reparar nessas mudanças e nos dizeres em literatura.
Esse aspecto é comentado por Compagnon quando diz que: [...] “na crítica, os paradigmas não
morrem nunca, juntam-se uns aos outros, coexistem mais ou menos pacificamente e jogam
indefinidamente com as mesma noções _ noções que pertencem à linguagem popular” [...]
(2006, p. 17). Embora percebamos que Compagnon se refere a uma certa mesmice da crítica
literária, há de se considerar que os estudos com aspectos variados e diferentes, sobre obras,
buscam alcançar esses novos tecidos textuais, mas ressalta-se que as categorias tradicionais são
devida e consagradamente consideradas nas análises críticas.
Dessa forma, há sempre algo novo a se dizer, um exemplo disso é a perspectiva Ecocrítica que
vê a relação entre literatura e meio ambiente, ou seja, a relação do humano com a natureza
externa no texto literário. Como observa Garrard (2006), é relação entre humano e não-humano.
Assim, fatores como fauna, flora, espaço-ambiente e os quatro elementos (fogo, terra, ar, água),
passam são vistos como categorias de análise, abordagem que surge a partir da década de 1970,
nos EUA, especialmente pelos integrantes da Association for the Study of Literature and
Environment - ASLE.
Quando se estuda sobre literatura, nota-se, por exemplo, que na narrativa literária, além do que
se conta, é importante saber como tudo está expresso, as peculiaridades do enredo; como a obra
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está estruturada; quais os aspectos que chamam atenção e porquê; que fatores são importantes
nas relações dos personagens e nos seus comportamentos, entre outras questões.
Dois gêneros narrativos de maior expressividade em todo o mundo são o conto e o romance. A
palavra romance vem do termo romanço que designava histórias contadas tanto em prosa
quanto em verso. Herdeiro das epopeias, o romance designado como conhecemos hoje ganha
espaço junto com o Romantismo, em meados do século XVIII. No entanto, essa forma narrativa,
foi revelada ainda no século XVI pelo francês Francois Rabelais, que escreveu obras como
Gargantua e Pantagruel, uma pentalogia que conta a história de dois gigantes (pai e filho). Na
época foi uma obra condenada pela Igreja e não podia ser diferente uma vez que satiriza a
ganância e as mazelas morais da sociedade e da própria Igreja. Entende-se que Rabelais não só
principiou, mas também influenciou muitas obras ao longo dos séculos, um bom exemplo disso
é Macunaíma, uma das obras mais lidas do Modernismo brasileiro, foi escrita por Mário de
Andrade, um dos escritores que pensaram e executaram a Semana de Arte Moderna de 1922.
Como assegura Bakhtin (2002), Rabelais inaugura uma linha que estudioso denominou de
carnavalização na literatura.
No início do século VXII, na Espanha, Miguel de Cervantes escreve Don Quixote, considerado
pela crítica como a primeira obra do gênero. Cervantes traz a temática ligada aos cavaleiros
medievais, com um tom de ironia e sarcasmo paródico e, assim como Rabelais, traz novos
aspectos para a criação narrativa, uma espécie de desconstrução da hegemonia social e
idealização da obra literária. Mesmo, como assegura alguns estudiosos, sem a influência direta
de Rabelais, Cervantes tece no fio deixado pelo francês o conduto de descortinar a hipocrisia e
expor a sociedade antiética e indecente. Nesse aspecto, esses ícones, Rabelais e Cervantes,
podem ser considerados os precursores do romance moderno nos seus países de origem. Eles
têm em comum a capacidade de lidar com a sátira, a ironia e a ridicularizacão de costumes e
preceitos sociais.
Lembramos, no que concerne ao teatro, no início do século XVI, o português Gil Vicente traz
o contexto satírico e inaugura uma forma de teatro em que prevalece a crítica social e a
condenação de vícios e desvios morais. O Mérito do teatrólogo deve-se, também, a sua
qualidade poética. Ele foi o mais importante autor de teatro da literatura portuguesa, sendo um
elo entre a Idade Média e o Renascimento e traz influência até os dias atuais. Gil Vicente fez
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de suas peças uma arma de combate, acusação e moralidade. A expressão satírica vicentina
atinge todas as classes e toca as feridas sociais. Suas qualidades proporcionaram a criação da
escola vicentina durante o sec. XVI, da qual fizeram parte: Camões, Afonso Álvares, Baltazar
Dias e outros.
A literatura, de um modo geral e, especialmente o romance, vai sofrendo transformações ao
longo do tempo, sempre superando um moderno por um “novo-moderno”, até porque o sentido
do que é moderno corresponde a qualquer momento de um tempo descrito, já que a cada tempo
presente existe uma contemporaneidade, afirmando a concepção de que tradição e modernidade
são duas palavras usadas em qualquer tempo. Esse aspecto lembra uma das frases célebres de
Ezra Pound: “Literatura é novidade que permanece novidade”.
Nesse contexto, novos aspectos criativos, estéticos, estilísticos vão surgindo e alimentando os
textos literários em verso e prosa, principalmente a partir do século XX, que traz mudanças
mais significativas na estrutura, na focalização narrativa e no enredo que perde a linearidade e
as personagens assumem responsabilidades, pontos de vista e outros aspectos. As características
visuais, os recursos linguísticos, gráficos, psicológicos, entre outros, se intensificam com uma
constante variedade de estilos. Categorias como tempo e espaço assumem uma importância e
status cada vez maior. As obras, em prosa ou em verso, vão se recriando, não existe uma forma,
mas a livre inspiração e estilo, trata-se, como bem lembra Hutcheon (1991), “de uma arte
libertina”.
Dessa forma, “escritores encontram novas formas de expressão, introduzindo alterações
surpreendentes, não hesitando em subverter modos de expressão consagrados em modalidades
romanescas” (PEREIRA, 2019, p. 15). Embora Pereira se refira ao romance, ressalta-se que a
poesia também sofre mudanças ao longo do tempo. Nesse contexto, são esses, além de outros
aspectos, que podem ser vistos, analisados, discutidos, ao se ler uma obra literária.
Obras do passado e do presente trazem peripécias estéticas que provocam o olhar e podem ser
analisadas sem o estigma da dificuldade do texto literário. Atualmente, o acervo literário é
infinito e isso, até certo ponto, aumenta a responsabilidade do leitor em virtude da quantidade
e variedade de estilos. Nesse sentido, a perspicácia do leitor ativo, inquisidor, produtor e,
principalmente, possuidor de “liberdade” analítica, é muito importante.
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Diante de todos esses aspectos, pretendemos, no tópico seguinte, observar alguns aspectos aqui
aludidos, citando algumas obras, na tentativa de contribuir com a desconstrução do mito de
leitura difícil e tediosa e mostrar que a leitura literária pode ser agradável e prazerosa e que a
análise é a descoberta e, portanto, motivo de satisfação não de rejeição do texto literário.
3 REPARANDO O TEXTO – A ANÁLISE CRÍTICA PODE SER DIVERTIDA OU É
INIMIGA DO PRAZER?
Aviõezinhos decolando ao léu...
Levaram meu jogo de bila
E meus sonhos de papel
(MENDONÇA, 2008, p. 59)
Em certo momento do livro ABC da Literatura (2006), Pound observa que o método para se
estudar poesia e literatura é o exame cuidadoso e direto na matéria. O autor diz que a análise
não é só uma visão, uma impressão, mas a tentativa de ver além do que as próprias letras
mostram, ir a fundo no texto, observá-lo de forma mais técnica e ao mesmo tempo descortina-
lo, dialogar com ele. Esses aspectos fazem com que o imaginário social e estudantil, de uma
maneira geral, vejam o texto literário como algo inacessível, de difícil compreensão. Partindo
dessas questões, pretendemos mostrar que podemos podemos desbravar o texto, adentrar os
labirintos das palavras com satisfação e prazer.
O poema acima é um Haicai escrito pelo poeta Paraibano Saulo Mendonça, um mestre dessa
forma literária. Vamos observar um pouco o poema, aparentemente pequeno, ‘examiná-lo’ e
ver o que podemos descobrir a respeito. Trata-se de um haicai, tem três versos que, no caso em
questão, estão postos em ordem decrescente, 10, 8 e 7 sílabas. Nota-se dois verbos, um gerúndio
no primeiro verso (decolando) que revela uma ação no presente e um pretérito perfeito no
segundo verso (levaram), que remete ao passado. Observa-se que houve passagem de tempo e
isso provocou um sentimento de perda no eu poético que expressa o presente representado pelos
aviõezinhos decolando, numa alusão ao moderno, à tecnologia, mas afirma esse presente como
sem rumo: “ao léu...” Ao retomar o passado, o eu lírico deixa a ideia de um brinquedo
controlado pela criança, um jogo de bolinhas de vidro acessível a qualquer um. Do mesmo
modo, as crianças faziam seus aviõezinhos de papel e os atiravam em uma determinada direção,
sonhavam, idealizavam.
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Com a modernidade e a evolução tecnológica, os brinquedos ganham vida própria, saem do
controle da criança que não o conhece, apenas assiste a um artefato que não sabe como foi
produzido, já chega pronto. Da mesma forma, a criança cresce e vê que o mundo acessível em
que ela era agente de seus sonhos, desmorona. Nesse sentido, o mundo novo deixa o indivíduo,
também, sem rumo (ao léu), numa crise de sentido. Os versos em ordem decrescente remetem
a ideia dessa involução humana, como se o humano tivesse perdendo o espaço e a liberdade de
escolha. O jogo de bila, aludido pelo eu poético, era jogado na rua, o que remete à liberdade e
aos sonhos que agora parecem tão frágeis, por isso a colocação “sonhos de papel”, o papel leve
que voa com o vento e pode se diluir na água.
Chamamos atenção para a palavra “léu” (sem destino) acompanhada de reticências (algo
incompleto, indeterminado) que, no presente, entra em contradição com o passado vivido pelo
eu lírico, ou seja, contraria todo equilíbrio anterior. Aviõezinhos, no plural, ainda podem
expressar a fratura do rumo, do destino e a fragmentação da identidade como bem explica Hall
(2005) sobre a identidade cultural do homem atual em relação ao passado. As estruturas
socioculturais modernas são mais frágeis e instáveis e culmina na fragmentação do sujeito.
O poema traz as brincadeiras infantis como uma espécie de comparação, uma vez que estão
submetidas às mudanças. O eu poético remete à modernidade, mas também, à desordem em
virtude da velocidade do processo de transformações socioculturais. Por outro lado, percebe-se
que ele também alude à simplicidade, à originalidade das brincadeiras representadas pelo jogo
de bila e à liberdade de criação, trocadas por estruturas tecnológicas complexas, simulacros que
iludem pela imagem. Assim, é como se os sonhos fossem levados pela velocidade futurística
representada pelos aviões.
O que mostramos nesse início do tópico, é que tudo está no texto, ele é o condutor do olhar
crítico. Como diz Pound (2006), é só examinar a matéria, ou seja, olhar com calma e vê que
tudo é passível de análise. Veja-se que é uma descoberta, vamos olhando e desvendando,
entrando por portas que o texto mostra por meio de uma palavra, um termo usado em uma
determina posição no texto, um número, entre outros pontos. Como diria Drumonnd, são os
segredos das palavras, as portas que elas nos mostram, mas é necessário ter nossa própria chave
para poder abri-las. Todo esse processo é o fenômeno da interpretação, pois segundo Ricoeur
(1988, p. 15), “é na interpretação que a pluralidade de sentidos é tornada manifesta”.
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Vimos alguns aspectos no poema, mas um outro olhar pode ver outros aspectos que foram
deixados, assim como pode observar de outro modo o que foi visto. Isso quer dizer que não
existe uma receita, uma verdade, nem um limite para fechar o texto literário, mas olhares que
descobrem as possibilidades que o texto dá. Nesse sentido, é interessante o que diz Eagleton
com relação a prática da crítica literária:
Aprender a ser crítico literário consiste, entre outras coisas, a aprender como empregar certas
técnicas. Como em muitas delas – praticar um mergulho ou tocar um trombone, por exemplo -, é
mais fácil pegar na prática do que na teoria. Essas técnicas exigem uma atenção à linguagem maior
do que normalmente se dedica a uma receita ou a um rol de lavanderia. [...] (EAGLETON, 2019, p.
16-17)
Eagleton quer dizer o que diz o velho ditado “a prática leva à perfeição”, ou seja, ninguém é
um crítico literário sem praticar a leitura, não se pode analisar um texto sem observá-lo de modo
mais atencioso, é preciso atenção em como os termos, as colocações estão postas, em que
momento e em quais situações, entre outros aspectos. Se você é um leitor atento, é um passo
para ser um bom analista, mas se pega em um texto apenas para trabalho da escola ou faculdade,
fica difícil porque não existe afinidade, familiaridade com as ‘letras’. Assim, qualquer um pode
interpretar, analisar um texto, desde que seja um leitor, porque a análise precisa de técnicas e
essas são adquiridas com a prática aliada ao conhecimento teórico.
Nesse contexto, o trabalho do pensamento é primordial, pois é o processo de fazer inferências,
de questionar o texto, de analisar termos, colocações, estrutura, figuras, imagens entre outros
elementos, ou seja, de interpretar, uma vez que a interpretação, como observa Ricoeur, “é um
trabalho de pensamento que consiste em decifrar o sentido escondido no sentido aparente”
(1988, p. 14). Ao colocar um haicai, propositadamente, por ser um poema completo com apenas
três versos, demos uma espécie de “aperitivo” na tentativa de cumprir o propósito de
desconstruir o mito da dificuldade do texto literário. Nesse contexto, Ezra Pound diz que:
O professor só pode ministrar os seus ensinamentos àqueles que mais querem aprender, mas ele
sempre pode despertar os seus alunos com um “aperitivo”, ele pode pelo menos oferecer-lhes uma
lista das coisas que vale a pena aprender em literatura ou em determinado capítulo dela. (POUND,
2006, p. 38)
Ao falar de análise e crítica literária, alguns questionamentos podem vir à tona. No romance,
por exemplo, os personagens são parte primordial. Assim, numa análise podemos observar que
técnicas são utilizadas para a construção dos personagens em geral e alguns mais
especificamente. São seres do mundo ficcional e tudo que vamos saber sobre eles é o que está
no texto de forma direta ou indireta.
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Na literatura, especialmente a moderna, há uma liberdade de expressão e criatividade. A
estrutura narrativa pode ser coerente e sequencial, mas pode, também, contrariar esse processo
com a desconstrução da linearidade, esse fenômeno é um dos mais comuns nas narrativas desde
a segunda década do século XX, exemplos desses aspectos são obras como Memórias
sentimentais de João Miramar, de Mário de Andrade; A Festa, de Ivan Ângelo; Grande Sertão:
veredas, de Guimarães Rosa; Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende; Triângulo da Águas,
de Caio Fernando Abreu, entre outras.
Assim, questões como: os símbolos que acompanham as obras, as imagens apresentadas ou
sugeridas, a estrutura narrativa são sempre sequenciais? Como esses aspectos reforçam,
provocam ou redizem os sentimentos do leitor em relação aos personagens e como sugerem a
visão inquisidora do leitor? O próprio texto conduz a essas respostas.
Há narrações que não têm um narrador determinado para guiar o leitor, mas podem ter
personagens que se dizem para que o analista tire suas conclusões, esse é um artifício
característico, principalmente, no romance moderno. Há obras em que o narrador não dar conta
de fazer o leitor assimilar a complexidade de alguns personagens e criam-se artifícios para que
o próprio leitor possa julgar o que lê. Assim, há histórias narradas a partir do ponto de vista de
cada personagem para que o leitor faça juízo de valores. É como se, numa situação vivida, ele
ouvisse cada um dos envolvidos para poder julgar o todo. Esses aspectos podem ser vistos no
romance O Manual dos inquisidores, de Antônio Lobo Antunes. Nesse caso, aumenta a
responsabilidade do leitor que se vê ‘só’ a desbravar esse mundo encantado, mas, ao mesmo
tempo, de empolgante descoberta, pois há a liberdade de avaliar situações, comportamentos,
entre outros aspectos que o olhar inquisidor pode observar.
Em obras modernas, a sequência narrativa bem como as perspectivas de tempo e espaço, muitas
vezes, não obedecem uma ordem cronológica, esses elementos ficam a critério do estilo de
quem cria. Dessa forma, a literatura não se compromete com a realidade, ela é autônoma, possui
seu próprio mundo e nele tudo é possível. Almeida (2007, p. 214) assevera que: “[...]Dizer
literariamente é dizer especialmente, é acalentar o peito, aguçar a mente, adentrar a fantasia e
chegar intimamente e prazerosamente até o outro [...]. Consoante essas ideias, Bauman observa:
A natureza da literatura é em si ambivalente, metafórica e metonímica. Ela é capaz de expressar
solidez e fluidez, assim como homogeneidade e pluralidade, a natureza suave e mesmo ‘pungente,
áspera e friável’ de nossa existência. Não só nós carecemos das palavras para dizer quem somos e o
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que queremos, mas também somos alimentados a colheradas, fartados e saturados de palavras que
são tão vazias e sem vida quanto cintilantemente atraentes e sedutoras – as palavras ubíquas que são
repetidas pelas sereias da celebridade, usadas por novos dispositivos hi-tech extraordinários e os
últimos produtos irresistíveis imprescindíveis, os quais nos autorizam a tomar nosso lugar na
sociedade, conforme esperado. (BAUMAN, 2019
Muitas vezes, a dificuldade de apreensão pode ser o elemento motriz para o desejo de conhecer,
pois tudo numa obra é passível de crítica: o gênero, a sintaxe, o ritmo, a estrutura, a pontuação,
as ambiguidades, alegorias, figuras de linguagem, tempo, espaço, entre outros elementos. Esses
são apenas alguns pontos que podem ser observados, reparados, analisados. Há obras que
trazem sons, outras trazem um silencio que grita, como é o caso de Vidas Secas, a falta de
palavras de Fabiano e de toda família é angustiante, ao tempo que é ensurdecedor, porque é um
silencio que nos fala mais do que as palavras. Na verdade, a família é emudecida pelo descaso,
pela fome, pela seca, mas percebemos através do discurso indireto livre, predominante na obra,
os conflitos, receios, anseios, desejos dos personagens. Como coloca Lourival Holanda (1992),
Vidas secas é uma obra escrita “Sob o signo do silêncio”.
Na perspectiva analítica de um texto, especialmente no que condiz a literatura, o leitor muitas
vezes coloca seus preceitos sobre questões humanas, sociais, psicológicas, culturais,
perspectivas espaciais, meio ambiente em geral. Esses aspectos contribuem para a percepção
interpretativa dos mesmos elementos nas narrativas e a relação dos personagens com eles.
Assim, o leitor percebe e julga a condição de herói, anti-herói, vilão entre outros. No entanto,
o leitor nunca pode deixar de lado a ideia de obra de arte (ficção) e confundir a narrativa com a
vida real, pois se assim o fizer pode ter uma percepção errônea a respeito da obra, uma vez que
algumas já sofreram esse tipo de confusão.
Ilustrando o que foi dito, O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, quando do seu
lançamento, provocou o exílio do autor de Portugal. Saramago é um mestre da ironia, tem uma
afinidade muito grande com a intertextualidade histórica e usa genialmente a alegoria. Uma das
características marcantes na obra saramaguiana é a construção da oralidade ligada a um discurso
torrencial que, pela ausência de pontuação, “carrega” o leitor dentro de uma maratona
linguística. O próprio autor admite esse poder de oralidade e a especificidade de seu discurso
quando diz:
[...] provêm de um princípio básico segundo o qual todo o dito se destina a ser ouvido. Quero com
isso significar que é como narrador oral que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim
escritas tanto para serem lidas como para serem ouvidas. Ora, o narrador oral não usa pontuação,
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fala como se estivesse a compor música e usa os mesmos elementos que o músico: sons e pausas,
altos e baixos, uns, breves ou longas, entre outras coisas. (SARAMAGO, 1997, p. 223).
Saramago constrói a narrativa de modo que o leitor tenha um olhar de cumplicidade com o
olhar narrativo. A citada obra mexe com o imaginário sociocultural alicerçado durante milhares
de anos, faz refletir a respeito de comportamentos sociais que segregam, excluem e de
preconceitos passados ao longo do tempo, como vemos no fragmento abaixo:
[...] não podemos afirmar que Maria Madalena tivesse sido, de facto, loura, apenas nos estamos
enconformando com a corrente de opinião maioritária que insiste em ver nas louras, tanto as de
natureza como as de tinta, os mais eficazes instrumentos de pecado e perdição. Tendo sido Maria
Madalena, como é geralmente sabido, tão pecadora mulher, perdida como as que mais o foram, teria
também de ser loura para não desmentir as convicções, em bem e em mal, adquiridas, de metade do
gênero humano. (SARAMAGO, 2003, p. 9).
A ironia com que o autor se refere à concepção da loira na sociedade em geral é gritante. O
autor poderia usar outros exemplos para isso, mas a figura de Maria Madalena é, sem dúvida,
uma maneira de transgredir, de ir direto e rapidamente ao leitor e extrair dele a reflexão sobre
os conceitos ou pré-conceitos de uma sociedade hipócrita e de falsa moral. A intencionalidade
narrativa se revela através do uso das palavras e de como coloca a figura de Madalena, é a
maneira de dizer que faz a diferença e açambarca o leitor para o texto de forma extasiante.
É interessante lembrar que a obra de Saramago é uma ficção, uma história criada e que ele usa
nomes e situações conhecidas pelo imaginário sociocultural para chamar atenção sobre aspectos
que, se fossem colocados de outra forma, talvez não causasse o mesmo impacto. Ao ler essa
obra, precisamos observar que trata-se de uma narrativa criada esteticamente a partir da
inspiração referencial como qualquer outra, precisa do olhar inquisidor, interpretativo e crítico
do leitor, que deve pensar os personagens como personagens desta narrativa e não da história
cristã. Assim, as premissas estéticas, a linguagem, a sintaxe, o ritmo, as alegorias, os artifícios
de falas e comportamentos dos personagens devem ser vistos como parte de uma obra de arte e
analisados como tais. É atributo do interpretante literário, saber como são empregadas algumas
técnicas e por isso é imprescindível atenção à linguagem, estrutura entre outros aspectos, seja
a obra em prosa ou em verso.
Como já foi dito, muitos fatores e elementos podem ser de extrema importância em uma obra,
inclusive os números. Quando observamos a forma com a qual está estruturada A divina
comédia, de Dante Alighieri, por exemplo, podemos observar alguns pontos curiosos, um deles
é a repetição e apologia ao número 3. A obra está dividida em três (3) partes ou fases pelas
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quais Dante tem que passar: Inferno, Purgatório e Paraiso. Cada uma dessas partes divide-se
em cantos, sendo o Inferno com 34, em virtude da introdução, o purgatório com 33 e o paraíso
também com 33. A obra tem o total de 100 cantos, mas ao retirar a introdução ficam 99 cantos,
ou seja, números que tanto juntos quanto individualmente são múltiplos de 3.
É interessante lembrar, também, que toda obra é escrita em tercetos (estrofes de três versos) e
que em cada uma das citadas fases, o personagem atravessa nove círculos com o total de 27.
Logo ao início da narrativa, o personagem precisa sair da selva e é impedido por três (3)
animais. Poderíamos até colocar algumas possibilidades de representação do número três na
obra dantesca, mas deixamos a provocação para as descobertas dos curiosos. Outras questões
giram em torno da obra, entre elas podemos indagar: porque Virgílio é o guia de Dante e porque
o poeta não o conduz pelo paraíso? Ainda podemos observar que trata-se de uma narrativa
verticalizada, ou seja, o personagem desce os nove círculos do inferno para só então subir para
o purgatório e ao paraíso, então a forma da obra é outro item provocativo.
Ressaltamos que trata-se de uma obra de travessia em que o protagonista parece estar em busca
de Deus. Dante atravessa os nove círculos de cada uma das citadas partes e vai encontrando
figuras como políticos, religiosos do alto clero, pessoas da alta nobreza, fidalgos, entre outros,
aos quais ele vai atribuindo o valor do “pecado” conforme o lugar onde se encontram. É
interessante observar que Dante consegue sair do inferno e chega ao paraíso onde seu guia (o
poeta Virgílio) o entrega a Beatrice1, musa de Dante, quem, supostamente, ele teria conhecido
aos nove anos2. Veja-se que é como se o personagem tivesse evoluído, ou seja, alcançado o
merecimento de chagar ao céu. Chamamos atenção, ainda, para o fato de Dante encontrar uma
prostituta, Raab, no paraíso. Veja-se que, enquanto no inferno estão figuras que cogitar-se-ia
salvos, no paraíso está aquela que para humanidade seria a pecadora. Deixamos aí mais uma
performance dantesca em semelhança uma vez que Jesus também salvou Madalena, a quem a
sociedade já havia condenado.
Ainda dentro do contexto da importância dos números nas obras literárias, chamamos atenção
para o poema Mensagem, de Fernando Pessoa. A obra está dividida em três partes: Brasão, Mar
português e o encoberto. Mensagem é um poema narrativo que retrata muito do autor através
1 Beatrice que vem de Beatrix cujo sufixo trix significa benfeitora, doadora de bem, beatitude. 2 Novamente o 3 em evidencia. Beatrice morre em 1290 e Dante sofre muito, mesmo tendo casado com outra
pessoa, seu amor por Beatrice nunca teria enfraquecido.
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da simbologia uma vez que Pessoa era estudioso de quase todas as ciências ocultas como
Numerologia, Astrologia, Rosacrucismo, Maçonaria, Espiritismo, Teologia, Teosofia e outras.
Esse aparato de conhecimentos deu ao poeta, a condição de uma obra diferenciada e única. A
1ª parte (Brasão) está dividida em cinco seções, são elas Campos com dois poemas; Castelos
com oito poemas; Quinas com cinco poemas; Coroa com um e Timbre com três. Na segunda
parte, Mar Português, não há seções apenas doze poemas e na terceira parte, O Encoberto, tem
três seções: Símbolos com cinco poemas; Os Avisos com três e os Tempos com cinco. Então o
número 3 e o 5 são postos repetidamente na obra pessoana.
O Brasão (1ª parte) representa as conquistas, o reino, o momento de lutas e de buscas. O Mar
Português (2ª parte) representa o apogeu, o repouso antes da queda e o Encoberto (3ª parte), a
incerteza, a esperança do 5º império, a vinda do salvador na figura mitológica de D. Sebastião.
Nesse sentido, Almeida (2006, p. 60) afirma que:
Durante a leitura de Mensagem esbarramos em reis, rainhas, navegadores e personalidades em geral
o que, de certa forma, dificulta o entendimento se o leitor não conhecer o contexto histórico de
Portugal. Pessoa não narra a História, ele se refere as pessoas ou fatos de modo subjetivo e simbólico,
deixando a critério do leitor o complemento da “escrita”.
O título “Mensagem” tem a mesma quantidade de letras de Portugal, oito letras, ressaltando que
Portugal foi o primeiro nome dado ao poema e depois substituído e percebe-se uma mensagem
subliminar na obra. É interessante observar o resumo das partes da obra feito por Almeida:
Três são as partes do livro, três são os componentes básicos do escudo, o numeral três representa a
Santíssima Trindade; três também são as partes do átomo (negativo, positivo e neutro)
representando também o homem. Em cinco está dividida a terceira parte. Cinco também são os
fluidos da alma (fogo, sangue, hormônio, nervoso e o astral), todos os poemas de Os Tempos
remetem aos sentimentos da alma. As Quinas da 1ª parte representam as cinco chagas de Cristo, elas
constam no brasão português. Na primeira parte têm os Campos, representados por dois poemas:
‘Castelos’ que são o campo exterior e representam a terra e o reino; e as Quinas que representam o
campo interior, o núcleo do brasão, a essência do povo português e a formação da religiosidade.
A segunda parte está armada sob o número 12, que podem representar os meses do ano, os signos
do zodíaco, os apóstolos de Cristo e as esferas celestes, além de ser o número da sabedoria nas
ciências ocultas. A primeira e a terceira partes estão divididas em seções o que mostra as
conturbações dos momentos. Na primeira, as lutas pelas conquistas e na terceira, os conflitos
políticos, a incerteza, a dúvida e a esperança. Já na segunda – Mar português - vê-se a representação
do apogeu, a calmaria por isso não há divisões, são doze poemas corridos.
Os doze poemas da segunda parte correspondem aos heróis e desbravadores dos mares. Os Castelos
da primeira parte possuem 7 poemas que, na verdade, são oito, mas foi enumerado de 7º I e 7º II
representam a origem, os difusores e defensores do reino. Sete é o número dos estados da matéria e
as etapas do caminho alquímico, mas o numeral oito tem importância fundamental, porque é um
número fechado que representa unidade e conduz à volta à etapa primordial, formando um
movimento circular, representando o ciclo vital. A coroa, composta de um poema, representa a
unidade, um rei, mas no poema, a coroa está representada por um homem do povo, um soldado,
Nuno Álvares, porque para Pessoa, um rei se faz não de poder ou de sangue, mas de hombridade,
humanismo, dignidade e riqueza de espírito. No Timbre estão contidos os reis perfeitos que deram
honra e glória a nação, nas Quinas os estadistas, visão diplomática. As seções de O Encoberto
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representam, respectivamente, a esperança do 5º império, o salvador; os profetas que pregavam a
vinda de D. Sebastião e o sentimento do povo Português depois da queda. (ALMEIDA, 2006, p. 60-
63)
Muito falta dizer sobre a obra de Pessoa, mas esse breve texto não nos permite delongar, fica,
então, mais uma vez, a provocação para que o leitor curioso e admirador de Fernando Pessoa
busque sentidos para obra e também a relação, extremamente forte, que a obra de Pessoa tem
com a de Camões. São muitos os pontos em comum entre as duas obras, porém cada uma com
a sua linguagem própria tanto do momento quanto do estilo.
Dentre as inúmeras obras que podemos citar e perceber simbologias em relação aos números,
assinalamos, também, Triângulo das águas, de Caio Fernando Abreu. Percebemos que o título
já chama atenção por se tratar de uma forma geométrica acompanhada do elemento água,
também muito importante e presente em toda narrativa e remete aos signos de Peixes, Escorpião
e Câncer, que são signos das águas além de simbolizar também o fluir das coisas, a inconstância
da vida e do momento entre outros aspectos. A obra está dividida em três partes, três novelas
denominadas pelo próprio escritor como ‘noturnos’, são eles: Dodecaedro, O marinheiro e
Pela Noite.
Dentre tantos, um dado curioso é o fato de os quatro elementos, terra, fogo, ar e água estarem
presentes nos contos tanto em sua forma natural quanto representados por meio dos espaços
físicos, de atitudes e posicionamento das personagens. Outro aspecto importante é que o número
12 chama atenção desde o início, no primeiro conto, uma vez que o dodecaedro é constituído
por 12 pentágonos, 30 arestas, 20 vértices e 12 faces pentagonais. Há uma voz que intervém na
narrativa, é como um olho que vê a todos, é chamada de décima terceira voz e abre cada
fragmento. São doze fragmentos nesse canto e são doze personagens (pentágonos) apresentados
através de artifícios que indicam a personalidade de cada um, ou seja, as faces deles (12 faces
do dodecaedro):
Nós éramos doze, aquelas pessoas não me interessavam. Eu não as amaria, elas nunca me amariam,
a não ser estonteantemente, por levezas, distrações. Eram outras. Era carnaval, pleno carnaval. Eu
precisava voltar, elas queriam nascer, eu não as conhecia. Sabia apenas que estavam cercadas, que
eram doze, que havia um rio, um mato, um piano tocando sem parar dentro da casa branca. No início
da noite, no fim do verão. (ABREU, 2012, p. 19)
Raul, um dos personagens, distribui numa bandeja 12 xícaras coloridas. Cada cor de xícara
corresponde a um dos integrantes da casa. Raul vai atribuindo a cor de acordo com a
personalidade dos personagens e para si ele separa a cor branca, fato que revela a carga de
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misticismo do personagem que se protege, por exemplo, com um galho de arruda atrás da orelha
e na hora de colocar as xícaras ele comenta: “Como um pequeno zodíaco, doze xícaras em volta
do bule. Pensei em repetir palavras mágicas para concentrar energia em cada uma delas, mas
nenhuma me ocorreu. Não consegui” (ABREU, 2012, p. 21 e 22).
O último fragmento desse conto é introduzido da seguinte forma: “Do grande esforço através
dos doze meses, doze signos, doze faces, só guardo essa certeza. Que tonta travessia” [...].
Percebemos que os números têm uma perspectiva tanto da passagem do tempo quanto da
expressão dos personagens e que esses fragmentos podem remeter a própria condição do
homem pós-moderno em crise de sentido, a procura de si mesmo entre outras possibilidades.
O segundo conto “Marinheiro”, assim como a obra, está dividido em três partes. Diferente da
polifonia do primeiro conto, esse é narrado em primeira pessoa, por um homem isolado em sua
própria casa e deixa vir à tona seus conflitos em lembranças que o atormentam, é um mergulho
em si mesmo. O marinheiro que aparece e se vai, remete ao mar que rebate esse eu que fala às
profundezas de si mesmo para emergir depois e olhar o mundo com mais propriedade, liberdade
e cor:
Faz hoje sete dias que se foi. Acabei de contar os sete traços de tinta preta que fui
fazendo, um por um, cada noite depois de sua partida, exatamente naquela vidraça que
eu tinha pensado em começar a pintar quando chegou, no meio da chuva. Completei
o sétimo há pouco. São seis traços irregulares, quase ideogramas chineses, e um bem
definido – um risco reto, seco, sem hesitações nem adornos, o último. Atrás dos sete
traços posso ver a rua deserta e, do outro lado, a casa onde sem parar entram, saem
pessoas. Pela porta aberta, quando terminei o sétimo risco imaginei ver uma noiva
subindo as escadas, com outras moças se aglomerando embaixo, como se ela fosse
jogar o buquê. Nestes sete dias, a chuva foi parando aos poucos. Ficou apenas o cinza.
Há muitas nuvens no céu, sobre os edifícios. São essas nuvens que estão agora muito
coloridas, azuis profundos invadindo o roxo para transformar-se em laranja, em
dourado na altura do que deve ser o horizonte. Os raios suspensos sobre a cidade. Se
descesse ao andar inferior poderia talvez ver como antes esses raios soltos de luz
varando os roxos, os amarelos pintados nos vidros da porta de entrada para misturar
as cores sobre os objetos. Poucas vezes desci, depois que se foi. (ABEU, 2012, P. 93)
O número sete, mencionado repetidas vezes, é o período em que o personagem vive uma espécie
expurgação e parece renascer e ver a si mesmo. Através das coisas e cores que ele começa a ver
novamente, percebe-se que é como se ele reagisse a dor. Vemos então um personagem que se
tranca, se isola em um mundo sombrio de uma alma em agonia. Depois percebe-se o conflito,
a luta pela reação e a perspectiva de um renascimento, de um visão mais nítida e mais
condescendente consigo mesmo. As indagações e questionamentos causados pelo marinheiro
desencadeiam uma tomada de decisão e reposicionamento da personagem enquanto sujeito. Ele
ateia fogo na casa e isso representa rompimento com o passado ao tempo que leva ao renascer.
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O último conto, “Pela noite”, conta a história do encontro entre Persio e Santiago, duas almas
solitárias e desencontradas no mundo. É o maior dos contos e traz uma perspectiva do duplo
através dos dois personagens que ora parecem diferentes e ora se completam. É interessante
porque, ao contrário dos contos anteriores, neste, os personagens saem pela noite, debaixo de
chuva, visitam bares em uma mistura de lembranças e diálogos, questionamentos e pontos de
vista, alusões a inúmeros artistas, e em que o fluxo da consciência se revela de várias formas.
É interessante observar que o livro foi lançado em 1983, final do período militar no Brasil e no
momento em que explodia o vírus da AIDS e o preconceito, ainda maior, com os homossexuais.
Trata-se de uma obra rica em simbologias e metáforas que garantem a beleza e leveza das
relações sexuais e que garantiu ao autor ganhar o prémio Jabuti. Enfatizamos na obra de Abreu
apenas ao contexto em que são usados os números, mas são narrativas que trazem artifícios
linguísticos, formais, estruturais e simbólicos que vale a pena um olhar mais atento para
descobrir a obra.
São cantos aparentemente independentes, mas formam um todo, considerando a fragmentação
do sujeito na 1ª narrativa e a fusão na última. No segundo conto há um conflito tanto pela vida
anterior do personagem e de seu isolamento quanto pela chagada do outro (Marinheiro) que se
vai tão misteriosamente quanto chegou e permite ao que fica, se ver de forma mais consciente
e emergir das profundezas de si mesmo. O terceiro canto é marcado pela dualidade do sujeito,
há a firmação de dois eus que se completam. Não há uma unificação, mas a compreensão, o
entendimento e valorização das duas partes que tentam se harmonizar. Assim, em meio a crítica
social, alusão ao momento vivido e valorização das diferenças, vemos uma obra com uma
estética genialmente produzida.
Ainda considerando a temática, ao ler Grande sertão: veredas quase passa despercebido o fator
número, mas uma leitura mais atenta nos leva a perceber aspectos como, Riobaldo assume três
nomes na obra (Riobaldo, Tatarana e Urutu Branco), três mulheres fazem parte da vida do
personagem: Diadorim, Otacília e Nhorinhá. Três são as principais travessias da obra,
representadas de várias formas, podemos citar, por exemplo, o fato de ser um menino pobre até
a morte da mãe, passa a filho de pai rico, fato que o revolta e o leva a fugir de casa. A partir de
então ele passa a ser professor no grupo de Zé Bebelo e depois passa a jagunço no bando de
Joca Ramiro, levado por Diadorim. Riobaldo passa por três chefes que têm grande
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representação em sua vida, são eles: Zé Bebelo, Medeiro Vaz e Joca Ramiro. Três são as fases
de sua vida: infância, jagunço e narrador.
Almeida (2014, p. 259) observa que “no momento da travessia do São Francisco, uma tríade é
composta para o ritual de batismo do narrador e a união dele com o menino”. Vemos que a
obra tem simbologias a partir alguns elementos, no caso do 3, Almeida ainda completa que:
[...] “O número três não é um número inteiro, daí porque a incompletude do narrador. É também o
número do triângulo, que tem três faces iguais. É como se na história de Riobaldo, pudéssemos
observar a fusão dos diferentes que se completam e que convivem dentro do homem, assim como
formam o todo no mundo” (ALMEIDA, 2014, p. 260).
Além do que foi visto, podemos observar, também, que a narrativa rosiana vem regada a nomes
compostos, ou seja, todos os nomes de lugares e pessoas na obra são compostos, com exceção
dos nomes Reinaldo, Riobaldo e Diadorim, porém, nesses nomes podem ser vistos uma
composição de sentidos. No primeiro encontra-se rei-naldo e não é à toa, pois esse era um dos
nomes usados por Diadorim que, como filho de Joca Ramiro, poderia vir a ser o rei do sertão,
mas para isso teria que ter nascido do sexo masculino.
O outro nome Dia-dor-im, se observarmos mais atentamente, cada partícula tem um sentido,
sendo a primeira (dia) uma possibilidade de clareza, alegria e prazer. A segunda (dor), ao
contrário da primeira, remonta todo contexto de dualidade da narrativa e mostra a dor sofrida e
causada pela personagem e isso se edifica na última partícula (im) a qual nos permite algumas
possibilidades: se considerarmos a oralidade podemos entender como a preposição in do inglês
em equivalência a “dentro” e considerar que a contradição (dia-dor) está fundida em uma só
alma, dentro de uma pessoa. Do mesmo modo, se considerarmos a escrita “im” podemos
remeter à perspectiva também do inglês na contração I’m de “eu sou”, argumento que também
mostra a fusão dos contrários existente em toda obra e da qual Diadorim é a representação
maior. Se tratando de Grande sertão: veredas, os aspectos mostrados acima são, como diria
Pound (2006), só um aperitivo para o que se pode buscar, pois é uma obra de infinitas
possibilidades.
Terry Eagleton (2019) observa que as obras literárias, geralmente, se iniciam com frases
semelhantes, como uma espécie de toque para preparação. Pensando nisto, observamos que
Guimaraes Rosa colocou em Grande sertão: veredas um início intrigante e diferente “Nonada,
tiros que o senhor ouviu foram de brigas de homem não” (ROSA, 2006, p. 7). Considerando a
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negação da primeira palavra e resto da frase, a conversa do narrador com o suposto interlocutor
não parece o início, mas a confirmação de uma conversa em curso quando o homem que houve
Riobaldo parece estranhar o barulho que houve e o narrador trata de tranquiliza-lo. É
interessante observar que, em nenhum momento na narrativa, o interlocutor se posiciona, é um
personagem sem voz e só sabemos dele porque o narrador deixa transparecer que existe alguém
que escuta a história por ele contada. Portanto, não é a fala do personagem que nos faz ver que
ele estranhou o barulho, mas a resposta de Riobaldo que revela o estranhamento do homem.
Veja-se, então, que a análise de um texto literário se faz através de descobertas pelo leitor e o
aspecto do prazer vem desse fator, de deixar o leitor como desbravador de sentidos nas
‘florestas’ de palavras. O analista é o que encontra o caminho no emaranhado das letras, no
tumulto de termos e colocações, caminhando junto com o texto e interpretando, indo e voltando
com as ideias até achar um sentido, uma luz que guiará os olhos atentos e, de repente, é como
se abrisse uma larga passagem e a magia acontece.
Isso posto, é possível dizer que o entendimento, as análises, a crítica de um texto literário não
se faz só a partir do que está literalmente ou visivelmente escrito, mas também nas pistas, nos
vazios, nas indagações cabíveis ao texto. A frase de Riobaldo nos leva a algumas percepções
sobre a cena. O narrador esclarece que duas pessoas fazem parte do contexto, que um deles
(interlocutor) parece não conhecer os aspectos culturais da região e que são explicados pelo
narrador, fato que leva a crer que a pessoa não faz parte daquele grupo cultural ou daquele lugar.
Isto faz com que o leitor entre na narrativa já de posse de uma informação que será muito
importante em toda trama.
É importante observar que uma obra tem sempre algo que remete a outra e este fato pode ser
algo consciente por parte do autor ou não, talvez a própria essência, “missão”, visão e princípios
do fazer literário levem a esse fenômeno. Entretanto, é importante observar que sendo uma
intertextualidade consciente ou não, uma obra é sempre ela mesma e não outra, que na esteira
de um texto tudo é novo e dito diferentemente, porque a maneira de entender o mundo e de
expressá-lo é própria de cada um. Sendo assim, o tom, as escolhas das palavras e das figuras de
linguagem, as repetições, os ambientes, entre outros elementos devem ser alvo de investigação
ou de um olhar mais atento por parte do interpretante.
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Nessa perspectiva, ao observar a narrativa de “Mulher no espelho”, de Helena Parente Cunha,
encontramos frases muito curtas em toda narrativa, o leitor ‘tropeça’ na pontuação. A narrativa
possui 41 capítulos dispostos em 173 páginas, isso comprova a fragmentação da narrativa, tendo
em vista possuir capítulos com apenas três linhas. Tudo isso tem significados, é uma narrativa
de alguém que busca, nas paredes da memória, lembranças não agradáveis, é uma história em
que a própria personagem vai se descobrindo, se dizendo, hesitando, pelo fato de lembrar e
dizer ao mesmo tempo, por isso tantas paradas, uma narrativa curta, densa e instantânea. Um
derramamento de história de vida que vem pelo fluxo da consciência da protagonista, como ela
mesma afirma:
Vou começar minha estória. Agora, na superposição de meus rostos, em convergência de datas.
Aqui, no cruzamento do meu corpo, com o espaço de minhas imagens. Tenho o que dizer, pois vou
dizer-me a mim mesma, como qualquer pessoa que se põe diante da memória ou dos espelhos. Não,
não vou escrever minhas memórias, nem meu retrato, nem minha biografia. Sou uma personagem
de ficção. Só existo na minha imaginação e na imaginação de quem me lê. E, naturalmente,
para a mulher que me escreve. Em casa ou na rua, não me sabem. Por acaso, alguém sabe alguém,
carne e grito sobre a capa do rosto, ordenado e composto em carapaça? Quando falo, as pessoas
pensam que pensam que falam comigo. Isto porque se confundem com as imagens exteriores,
sempre iguais ou semelhantes e, de alguma forma, fixas, se levarmos em conta o correr de um dia,
ou até mesmo de um ano. O lado de fora, o lado da pele, muda com a mudança das células,
crescimento, corrosão, apodrecer. Visivelmente. O que muda por dentro da pele, ninguém vê, do
choro ao riso. Vertigem. Salto e vôo. Mergulho no imperceptível. Quando sorrio, eu não sorrio. Nem
choro no cair das lágrimas, pelos sulcos do meu rosto. A verdade é que, do lado de fora, nada tenho
a ver comigo mesma. (CUNHA, 2000, p.17-18)
Trata-se de uma narrativa interior que vai sendo expressa ao longo da obra, a personagem rasga
as malhas do tempo para tentar unir os fragmentos de si mesma, numa tentativa de
autoafirmação. No caso em questão, o espelho é o objeto que simboliza a dualidade da mulher
que se vê no passado e compara com o que é no presente. Assim, o passado agora é re-
significado pela personagem que se dá o direito de ‘ser’, no presente, e não só de parecer como
fazia no passado. É uma narrativa empolgante, que leva o leitor pelos caminhos traçados por
essa mulher sem querer parar.
Há muitas observações a serem feitas em análises literárias e cabe ao leitor, procurar um
caminho, algo que mexa com ele dentro de uma obra, alguma coisa que inquieta e que chama
atenção. Há uma curiosidade, por exemplo em uma obra de Maria Valéria Rezende: “Quarenta
dias” (2018), uma história narrada por Alice, personagem protagonista que conta suas andanças
ao mesmo tempo em que revela a segregação étnico-racial e social na cidade de Porto Alegre –
RS que, na verdade, é uma representação do Brasil. Alice mostra uma situação conflituosa que
envolve a relação dela com a filha e, com isso, mostra as imposições feitas às mulheres na
sociedade, bem como as construções sociais do passado que resistem.
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A protagonista usa um diário para escrever sua história, um caderno cuja capa tem a foto da
Barbie e ela fala com a Barbie, a questiona e desabafa, mostrando as diferenças de vida,
comportamentos, pensamentos e situação financeira entre a Barbie e uma mulher trabalhadora
como ela. Também faz alusão e comparação entre a Barbie e a Alice da história de Lewis
Carroll, mostrando o comodismo da Barbie ao contrário da busca de Alice. É possível observar,
na obra, como as relações contemporâneas ainda cultivam ligações colonialistas e que as
imposições feitas ao outro, sobretudo à mulher, foram apenas remodeladas.
A obra conta a história de uma mulher que passa por um processo de ‘ressignificação’ durante
quarenta dias enquanto vaga por ruas e becos de Porto Alegre – RS, em companhia de
moradores de ruas. Alice é mulher que trabalhou e criou a filha sozinha como professora de
francês, no entanto a narrativa mostra o silencio de Alice diante das vontades da filha e a
insatisfação da protagonista vem através do fluxo de consciência nos momentos de escrita. Esse
silêncio de Alicve pode ser a representação da situação de outras mulheres em sociedade.
Alice morava em João Pessoa – PB e teve que deixar sua vida, suas coisas para auxiliar a filha
na criação do neto que ainda nem nascera, mas que deveria ser concebido. No entanto, Norinha
estava começando uma vida profissional e fazendo doutorado. Alice quer ajudar a filha, mas
não quer deixar seu lugar, sua vida, sua liberdade e aí vem o conflito:
Foi pelas cicatrizes que ela me pegou e não largou mais, chantageando: por minha culpa ela tinha
crescido praticamente sozinha, eu me ausentava, só pensando em trabalhar pra esquecer a tragédia
da minha juventude, ela não tinha culpa de nada, fui eu que nem tive coragem de recomeçar a vida,
de lhe dar um novo pai, que ela, a bem-dizer, nunca teve nenhum, não lhe dei irmãos, eu nem
imaginava como doía ver Umberto, eufórico, assando churrasco com sua enorme família gaúcha, o
bando de irmãos que tinha, os sobrinhos, os pais, um casal feliz e realizado, recebendo a todos de
braços abertos, inclusive a ela, mas não era a mesma coisa, não eram do mesmo sangue, ela se sentia
sempre uma estranha no meio deles, e agora eu ainda queria que ela enfrentasse sozinha o desafio
de ter filhos?, e os filhos dela ia crescer numa família alheia sem traços da família da mãe, longe e
ignorantes das raízes dela?, engraçado, Barbie, antes disso eu nunca tinha notado sinal de apego dela
às suas raízes sertanejas. (REZENDE, 2014, p.27).
A narradora é muito crítica a certos hábitos, sobretudo, os herdados de outras culturas, insinua
que Norinha talvez não queira ser mãe de fato, apenas atender a uma imposição, que também
faz parte das regras das fases marcadas para as mulheres, casar e ter filhos. Alice imagina que
não pode deixar a filha sozinha no meio de pessoas para quais ela sempre vai ser uma estranha.
Alice já tinha sentido na pele o que é ser nordestina no Sul do país, até porque tinha sido
rejeitada por uma faxineira pelo fato de ser “brasileirinha”, essa era a forma como eram tratadas
as pessoas nordestinas ou negras naquele lugar, o porteiro do prédio a tinha alertado para isso.
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Mesmo com as transformações sociais, o pensamento em relação às mulheres depois dos
quarenta anos, especialmente se estiver sozinha (sem marido) é de quem está à disposição da
família, principalmente dos filhos e que qualquer outra pessoa pode escolher o melhor lugar e
a melhor maneira de viver para essas mulheres, é isso que acontece com Alice: “[...] tantas
moças-velhas que eu conhecia, na minha terra, com a mesma biografia, destinadas a acabar
morando de favor em casa de algum sobrinho” (REZENDE,2014, p.145). Só que esse favor, na
verdade é pago com muito trabalho e principalmente com a criação dos filhos das pessoas da
casa. Assim, essas mulheres nunca passam de agregadas da família e babá dos filhos e netos até
o fim da vida.
Maria Valéria Rezende é paulista de nascimento e mora em João Pessoa – PB desde 1976, e
resolvemos observar esse fato porque em “Quarenta Dias”, nas andanças da protagonista tem
um aspecto que chama atenção, o fato de ela não tomar café sem leite, mesmo nas barracas ou
nas ruas ela procura o café sempre com o leite. Alguns pontos podem estar ligados a esse fato,
Alice percebe a segregação racial, cultural sofrida pelos nordestinos e negros na cidade de Porto
Alegre, essa teima em colocar o leite no café pode ser uma maneira de mostrar, justamente, o
que as pessoas fazem com os negros, tentando amorena-los, ou seja, as pessoas têm receio de
magoar o negro dizendo que é negro por isso usam eufemismos e o moreno é um deles. Por
outro lado a insistência do leite no café é como se as pessoas escondessem os negros na
periferia, como ela via, para embranquecer a cidade, ou seja, uma forma de branquear de
maquiar a realidade, mas que no fim o misticismo representado pelo café com leite era um fato.
Por outro lado, chamamos atenção para o fato de que em São Paulo se tem o costume de tomar
a média, ou seja, o café com leite, então a bebida preferida da protagonista também é uma forma
de a autora manifestar culturalmente a sua raiz.
A obra mostra que chamar brasileirinha quer dizer não ofender o nordestino ao dizer que ele é
inferior, o diminutivo do termo reduz também a qualidade do que representa. Assim, fica um
preconceito velado e um termo usado para mascarar e demonstrar uma delicadeza que não
existe, porque a palavra usada para isso diz exatamente o contrário. Devido a brevidade do
texto, não é possível fazer mais observações como é de nossa vontade, mas reforçamos que
tudo num texto literário pode ter um sentido de acordo com a interpretação dada e por isso,
deixamos aqui algumas provocações.
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Alguns aspectos são colocados como meio de provocar o leitor, para fomentar indagações a
respeito de fatos e situações, condições históricas, culturais e sociais. Esses aspectos podem ser
vistos a partir vários pontos na obra, inclusive dos personagens como é o caso de Macabeia,
personagem principal do romance Hora da Estrela, de Clarice Lispector, uma personagem
inquietante, angustiante, que mexe com o psicológico e com o sentimento do leitor. A posição
e comportamento do narrador nessa obra é algo que causa indagações e provoca reações. Assim,
analisar uma obra é dar a ela um sentido, questioná-la, interpretá-la, provocar novas leituras e
diferentes olhares.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, podemos dizer que o texto literário não é um texto mais ou menos difícil de
ser interpretado, ele deve ser visto como um obra de arte e, portanto, deve ser inquirido,
perscrutado em suas técnicas, estilos, estéticas, épocas, contexto sociocultural e histórico e unir
tudo isso à criatividade, talento e astucias do(a) autor(a).
Tentamos desconstruir alguns mitos que cercam o texto literário e provocam o afastamento de
estudantes e do público em geral por acreditarem que um texto extenso é mais difícil do que
um mais curto, a poesia é mais difícil do que a prosa, os textos de hoje ou de ontem são mais
fáceis ou mais difíceis entre outros aspectos. Buscamos mostrar, através de comentários sobre
algumas obras, que tudo no texto literário pode ser analisado e que o texto poético ou prosaico
necessita de um eu inquisidor, de um leitor ativo que adentre suas lacunas, descubra seus
labirintos, crie caminhos, re-atualize seus sentidos.
É possível inferir que o texto literário, embora não nasça do vazio, possui sua própria verdade
e linguagem e que o leitor pode sentir prazer em ler obras literárias em prosa ou em verso, pode
desfrutar do prazer da viagem, da caminhada, da descoberta. Ainda podemos dizer que a
linguagem literária critica a si mesma, como critica também a própria literatura porque é o
diálogo de um eu consigo mesmo e com o mundo, é um olhar essencialmente universal da
condição humana em inúmeras dimensões.
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