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Nesse artigo tenho como objetivo apresentar algumas reflexões sobre o repertório do compositor Elomar, pois acredito que a linguagem musical constitui um gênero discursivo dentre tantos outros que se pode considerar nas diversas atividades da esfera humana.

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  • ANPUH XXV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA Fortaleza, 2009.

    Sinhores donos da casa o cantad pede licena... Um olhar sobre o repertrio de Elomar Figueira Mello (1970 Tempo Presente)1

    Ada Dias Pinto Vitenti

    Nesse artigo tenho como objetivo apresentar algumas reflexes sobre o repertrio do

    compositor Elomar, pois acredito que a linguagem musical constitui um gnero discursivo

    dentre tantos outros que se pode considerar nas diversas atividades da esfera humana. Trata-se

    de elencar msicas entendidas como discursos veiculados de um lugar de fala assim como

    ocorre, por exemplo, com a literatura, o discurso miditico, o acadmico, o institucional e o

    iconogrfico. As diversas esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, esto todas relacionadas com o uso da lngua. Por esta razo fica claro que o carter e as formas de seu uso so to multiformes quanto as esferas da atividade humana, o que no contradiz a unidade nacional de uma lngua. O uso da lngua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e nicos que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana.2

    Assim o repertrio de Elomar constitui-se um valioso aporte para a investigao

    proposta. Segundo o historiador Jos Geraldo Vinci de Moraes3 a msica a forma artstica

    que organiza os sons e rudos que fazem parte da nossa cotidianidade, desse modo a msica

    insere-se na nossa vida diria porque a escuta de seus mais variados ritmos e gneros no

    exige necessariamente uma ateno centrada do receptor. O autor entende a cano popular

    (verso e msica) como a forma musical que se apresenta de maneira mais constante no nosso

    dia-a-dia e por isso tem um amplo alcance na sociedade tornando-se, portanto um acervo

    importante para a pesquisa em histria4.

    No entanto, segundo Moraes, as pesquisas em histria que tm a cano popular como

    fonte ainda so muito raras e enfrentam os mesmos problemas que a grande parte das

    pesquisas em histria: a disperso das fontes, a desorganizao dos arquivos, a falta de

    especialistas e estudos especficos, escassez de apoio institucional etc. Alm do menosprezo

    das universidades e agncias financiadoras em relao s pesquisas em torno da msica

    popular urbana moderna que apresenta-se como um dos principais entraves ao estudo. Assim

    1 Ada Vitenti (mestranda do PPGHIS da Universidade de Braslia). Braslia, maio de 2009. 2 M. M. Baktn (1979). Esttica de la creacin verbal. Mxico: Siglo Veintiuno, 1982, p. 248. Apud Beth Brait.

    O Discurso sob o olhar de Baktin in Maria do Rosrio Gregolin e Roberto Baronas (orgs.). So Carlos, S.P.: Claraluz, 2001, p. 32.

    3 Jos Geraldo Vinci de Moraes. Histria e msica: cano popular e conhecimento histrico em Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 20, n 39, p.203 221, 2000.

    4 Idem, ibdem, p. 03

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    os estudos e pesquisas sobre os diversos gneros da msica popular urbana continuaram

    restritos ao universo da crtica, realizados tradicionalmente por jornalistas, diletantes e

    amadores, portanto, distantes das universidades e das investigaes acadmicas5.

    Desse modo, a iniciativa de trabalhar com o repertrio de um compositor foi

    provocada pelo entendimento de que a msica pode ser uma excelente fonte para a anlise

    historiogrfica. A inteno propor que a mesma seja deslocada de seu lugar convencional de

    instrumento auxiliar da pesquisa, para ocupar o de objeto principal da anlise. O repertrio

    musical tematiza as representaes que o compositor faz do real que o cerca, transformando-

    se assim em um outro suporte do representacional.6

    O autor Robert Darnton acredita que a partir da investigao da cultura7 possvel

    perceber como se do os arranjos no campo das relaes sociais, pois a cultura forja vises de

    mundo. As pessoas pertencentes a uma sociedade, mesmo levando em considerao

    diferenas sociais e econmicas partilham em menor ou maior grau os mesmos significados;

    em outras palavras, as nuances pessoais que determinados atores do as suas produes, no

    apagam as marcas dos esquemas compartilhados socialmente, o que garante a produo de

    sentidos socialmente plausveis.

    Portanto, acredito que atravs de uma variedade de documentos possvel mostrar

    como numa determinada poca e local as pessoas pensavam, sentiam e atribuam valor ao

    mundo que as cercava.8 Logo, partindo do pressuposto que assim como um texto filosfico ou

    uma comemorao podem ser lidos e servir de fonte para a investigao de uma determinada

    cultura, acredito que letras de msica tambm possam servir para o mesmo fim.

    Neste sentido tambm so pertinentes as reflexes do historiador Roger Chartier9

    sobre histria e seus nexos com as representaes sociais. O autor entende que o objetivo do

    historiador deve ser o de tentar identificar como uma realidade social construda num

    determinado momento, no podendo ser dissociada das representaes que a permeiam, pois

    como numa via de mo dupla a coletividade imprime sentidos realidade assim como a

    prpria realidade criada a partir desses sentidos, da no se poder separar os discursos dos

    locais onde so proferidos.

    5 Idem, ibdem. 6 Maria T. Negro de Mello. Qu qui tu tem, canrio? Cultura e Representao no repertrio de Xangai in

    Clria B. Costa e Maria Salete K. Machado (org.). Op. cit., p. 155. 7 Lembrando aqui que tal conceito utilizado para definio de cultura restrito a algumas linhas de pesquisa

    dentro da Antropologia. 8 Robert Darnton. Introduo in O Grande Massacre de Gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 13 a 18. 9 Roger Chartier. Histria Cultural. Entre prticas e representaes. RJ/Lisboa: Difel/Bertrand, Brasil, 1990.

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    Desse modo orientei esta pesquisa tambm pela via da Anlise do Discurso na

    inteno de pensar sobre a intertextualidade entre esses discursos com outros que lhe so

    paralelos e que em alguma medida forjaram uma idia estereotipada de Nordeste. Para tal, me

    inspirei principalmente na leitura de alguns trabalhos de Eni P. Orlandi sobre as conexes da

    Anlise do Discurso com a investigao historiogrfica.

    Como questo de mtodo a possibilidade de deslocar o estatuto dos textos que historicamente foram categorizados como documentos aqui tomados como discurso: lugar de significao, de confronto de sentidos, de estabelecimento de identidades, de argumentao etc. Como uma das finalidades, sair do j nomeado, do interpretado e procurar entender esses textos como discursos que produziram e produzem efeitos de sentidos a serem compreendidos nas condies em que apareceram e nas de hoje. 10

    A escolha do repertrio de Elomar como fonte de pesquisa se deu pelo fato de suas

    composies no se enquadrarem de modo total a um modelo j padronizado do que se espera

    que venha a ser a msica nordestina, pois sua obra rene tanto parceladas, desafios, ou seja,

    os gneros tpicos da cantoria, assim como tambm, antfonas (cantos de louvor a Deus),

    galopes estradeiros (sinfonias compactas)11 e peras (que o msico define como uma pera

    sertnica, gnero que mais se aproxima, segundo o compositor, a um Auto da Idade Mdia)12

    podendo ser vista esta ltima como uma maneira de desterritorializao da msica europia.

    Essa fuga, mesmo que no absoluta, de um esteretipo musical suscitou a possibilidade de se

    questionar modelos fixados h tempos e que forjaram uma idia sobre a msica produzida no

    Nordeste, a qual deve ser localizada historicamente e no entendida como natural.

    Sinhores dono da casa/o cantad pede licena/pr pux a viola rasa/aqui na vossa presena/venho das banda do Norte/cum pirmisso da sentena/cumpri mia sina forte/j por muitos cunhicida/buscano a inluso da vida/ou os cutelo da morte/e das duas a prifirida/a qui mim mand a sorte .13

    Estas estrofes foram retiradas da msica Desafio Abertura do Auto da Catingueira,

    na qual o msico se apresenta como um tpico cantador nordestino. Ainda que no se possa, e

    nem se queira, inferir o grau de identificao que o msico estabelece com a imagem do

    cantador de desafios, parceladas, etc, a importncia dessas frases e da maioria criadas por

    10 Eni P. Orlandi. Terra a vista!: discurso do confronto: velho e novo mundo. So Paulo: Cortez, Campinas,

    1990, p. 18. 11 Biografia in Stio: PORTEIRA Oficial de Elomar http://planeta.terra.com.br/compras/elomar/biografia.html -

    04/12/2003. 12 www.facom.ufba.br/elomar/entrev2.html 13 Versos da cano Desafio Abertura do Auto da Catingueira, de autoria de Elomar, interpretada por Elomar

    e Xangai. Est registrada no disco Cantoria 1, Salvador (BA), Kuarup Discos, 1984.

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    Elomar reside na preocupao do compositor em marcar, bem marcadas, tais imagens. Os

    trechos que se seguem descrevem a trajetria do msico baseados numa pequena biografia

    presente no seu stio oficial.14

    Elomar nasceu em Vitria da Conquista em 21 de setembro de 1937 mas passou toda a

    sua infncia em So Joaquim, cidade menor, com carter mais rural. Seus primeiros contatos

    musicais foram com a msica eclesistica do hinrio cristo, do culto batista evanglico,

    religio de sua me, que o influenciou bastante. Por outro lado, recebeu tambm grande

    influncia catlica, especialmente por parte de sua av paterna. Entretanto, ainda criana

    tambm conheceu e passou a apreciar a msica dos cantadores, violeiros da regio, os

    menestris errantes, especificamente Z Krau, Z Guel e Z Serrad cujos temas e estrutura

    de seus repertrios se afastavam dos da msica eclesistica. Esses menestris utilizavam

    instrumentos pouco valorizados na poca como a viola, o violo e a sanfona. Compunham

    parcelas e tiranas, sendo o tema de suas composies freqentemente as narrativas picas. Foi

    ainda menino que Elomar aprendeu os primeiros acordes de violo, elegendo-o desde esse

    tempo como o seu instrumento.

    Em 1954, Elomar mudou-se para Salvador para cursar o cientfico. Um pequeno

    intervalo em 1956, quando voltou sua cidade natal para servir o exrcito, foi decisivo para o

    futuro msico. Este perodo foi importante em sua formao musical, pois ao voltar Vitria

    da Conquista, longe de obrigaes com os estudos, pde estabelecer um contato maior com a

    msica nacional urbana, a seresta, o samba e o tango. Concluiu o curso cientfico em 1957.

    Desde os dezessete anos j apreciava bastante as novelas de cavalaria, as quais

    dedicava horas de leitura; foi com essa mesma idade que comeou suas composies literrias

    e musicais. Em 1959, na cidade de Salvador, ingressou no curso de Arquitetura da

    Universidade Federal da Bahia, concluindo-o em 1964. Nessa poca tambm freqentou

    durante um curto espao de tempo a Escola de Msica dessa mesma Universidade.

    Assim que se formou, Elomar voltou para o serto, com o plano de se firmar na

    profisso e atingir certa estabilidade econmica, para ento poder dedicar-se totalmente

    msica. Por conseguinte sua produo musical s comeou a realmente se expandir nas

    dcadas de 60 e 70, quando passou a compor mais, deixando o trabalho como arquiteto um

    pouco de lado. Contudo, s colocou sua profisso de arquiteto realmente em segundo plano na

    14 Biografia in Stio: PORTEIRA Oficial de Elomar http://planeta.terra.com.br/compras/elomar/biografia.html -

    04/12/2003.

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    dcada de 80, quando se firmou como compositor, decidido a levar o seu cancioneiro de palco

    em palco pelo resto do pas.15

    Embora o compositor defina-se principalmente como cantador, a pretenso no a de

    tipific-lo como o homem do serto, mas sim perscrutar suas canes a fim de entender o que

    lhe importante, o que ele valoriza, quais os seus desejos. O repertrio de Elomar pode ser

    visto como uma das formas de materializao das sensibilidades compartilhadas

    coletivamente, ou como Sandra Jatahy Pesavento argumenta que,

    As sensibilidades seriam, pois, as formas pelas quais indivduos e grupos se do a perceber, comparecendo como um reduto de traduo da realidade por meio das emoes e dos sentidos.16

    Desse modo entendo que o compositor consegue recriar com maestria o trovador

    (ibrico?) medieval, mesclando s suas trovas as percepes de seu prprio mundo, falando da

    seca, da pobreza, como tambm das belezas de sua terra, de seus anseios, de sua experincia

    vivida, que traz em seu bojo a memria da msica eclesistica do hinrio cristo, as tiranas e

    parceladas17 apreciadas ainda quando menino, alm das diversas outras influncias musicais que

    recebeu ao longo de sua vida. No entanto o msico sempre teve como eixo norteador de suas

    composies a temtica sertaneza18, cuja relevncia ser discutida em um prximo captulo.

    Uma vez que esta pesquisa parte do esforo de focar o compositor em solo histrico,

    farei um recorte espacial/temporal, sem, contudo forar uma diviso demasiadamente

    cronolgica, afinal como o prprio ttulo do trabalho revela, esta uma investigao situada

    entre a dcada de 1970 e o tempo presente, portanto seria ingenuidade pensar que tal recorte

    (ou qualquer recorte) possa ser totalmente definido a priori e muito menos definitivo, como se

    as idias tivessem seus lugares previamente marcados. Partindo de tal localizao pretenderei

    situar o compositor dentro de seu tempo e espao, refletindo sobre algumas formas que ele

    encontrou para falar de seu presente e de suas experincias, na tentativa de conceb-lo como

    um sujeito imerso em seu tempo, em sua historicidade.

    Devido principalmente variedade de tipos de composies de Elomar, a anlise de

    seu repertrio possibilita certa desconstruo de uma idia sobre a msica produzida no

    Nordeste, como estando presa aos esteretipos da cantoria e suas variaes. No que Elomar

    no componha cantorias, ao contrrio, estas so as modulaes mais presentes em sua obra,

    15 Biografia in Stio: PORTEIRA Oficial de Elomar http://planeta.terra.com.br/compras/elomar/biografia.html -

    04/12/2003. 16 Sandra Jatahy Pesavento. Histria & Histria Cultural. Belo Horizonte: Autntica, 2003, p. 57. 17 Gneros de cantoria 18 Elomar utiliza em muitas de suas composies o dialeto sertanezo, modo como ele designa o falar de sua terra.

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    mas o fato aqui mencionado de que o msico no se limitou a elas, pois comps (e compe)

    tambm peras, sinfonias... O ponto que quero ressaltar aqui a crtica aos referenciais

    largamente utilizados para conotar o Nordeste e o nordestino. Essas categorias estereotipadas,

    forjadas por uma rede de enunciados inscritos nos discursos, promovem por sua vez modos de

    se ver e dizer uma dada realidade. (...) suponho que em toda sociedade a produo do discurso ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de procedimentos que tm por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e temvel materialidade.19

    Quando se pensa em serto nordestino, pensa-se num espao circunscrito no territrio

    brasileiro, cuja maioria das imagens evocadas para signific-lo so frutos de esteretipos

    construdos pelo discurso oficial. Esse discurso alijou as noes de progresso, civilizao e

    modernidade do espao concebido como o Nordeste, fato que o relegou a um lugar de

    imobilidade no quadro institudo como a Histria do Brasil. Dessa maneira que grande parte

    dos discursos que tratam desse universo esto carregados de modelos pr-construdos,

    tirando-lhe sua historicidade, suas especificidades e sua dinmica cultural.

    Portanto, na tentativa de atingir a historicidade da msica de Elomar e das prticas

    discursivas que construram uma idia de Nordeste, me basearei, entre outros, no livro A

    Inveno do Nordeste e outras artes20 de Durval Muniz de Albuquerque Jnior. O autor

    prope uma reflexo sobre os discursos forjadores da noo de Nordeste e de nordestino,

    noo esta que habita no s o imaginrio social do Pas como reafirmada e reatualizada

    incessantemente pela mdia. O autor entende que assim como a prpria noo de regio

    histrica, a de nordeste e de nordestino tambm o so, aparecendo no Brasil justamente

    quando o discurso nacionalista torna-se mais evidente. A idia de um espao geogrfico como

    formador e determinador das caractersticas de seus habitantes emerge como noo

    engendradora dessa identidade. Deste modo a regio historicizada de maneira que se possa

    localizar as origens da sua identidade, conferindo-lhe continuidade e homogeneidade. Nesse

    aspecto o autor argumenta que: O procedimento que preside a Histria Regional, o de definir uma regio, um espao geogrfico ou um espao de produo, como um a priori, que anacronicamente remetido para antes da sua prpria constituio, sendo transformado numa transcendncia, naturalizado, no leva em conta o fato de que uma poca ou um espao no preexistem aos enunciados que os exprimem, nem s visibilidades que os preenchem.21

    19 Michel Foucalt. A Ordem do Discurso. Edies Loyola, So Paulo, 1996, p. 8/9. 20 Durval Muniz de Albuquerque Jr. A Inveno do Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Ed. Massangana; So

    Paulo: Cortez, 1999. 21 Idem, ibdem, p. 29.

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    Outro ponto importante ressaltado pelo autor o de que a criao de uma regio se d

    tanto no plano poltico quanto no cultural, por isso acredita que a anlise de imagens

    confeccionadas tanto pelo discurso intelectual assim como pelo artstico importante, pois

    muitas vezes essas imagens fundamentam ou reafirmam as noes de Nordeste como espao

    que no acompanha a histria do Pas, que ficou margem da modernidade e da civilizao,

    preso aos caprichos da natureza.

    Essa terra que minha um dia h de ser tua

    Oh Zefinha, o luar chegou meu bem/vamos pela estrada que seu pai passou/quando era criancinha igual voc tambm/Oh Zefinha, essa a terra de ningum/Guarda na lembrana/ela a esperana/dos filhos da terra que a terra no tem/nela o seu pai nasceu e se criou/e se Deus quiser um dia h de morrer tambm.

    Em Zefinha22, msica do seu primeiro LP ... das barrancas do rio Gavio (1969), o

    msico narra a conversa de um pai com uma filha, na qual o progenitor desperta seu rebento

    para a grandeza de sua terra, suas maravilhas e faz o alerta que a despeito das agruras da

    regio aquela a terra de Zefinha e o seu dever preserv-la para a posteridade. Penso que a

    relao de Elomar com sua terra, o serto, ultrapassa as fronteiras do pragmatismo, pois h

    uma pulsante ligao identitria entre o msico e seu mundo. Oh Zefinha, houve o seu pai meu bem/ama essa terra que Nosso Sinh/um dia batizou a terra de ningum/Oh Zefinha, veja quantos ranchos tem/nessa terra os home planta, colhe e come/louvando Jesus na terra de ningum/nela o seu pai nasceu e se criou/e se deus quiser um dia h de morrer tambm/Oh Zefinha, veja esse vale alm/seco de tristeza se enche de beleza/com todas criatura quando a chuva vem/Oh Zefinha, quando seu pai for pro alm/olha essa gente, cuida as criancinha/e toma conta dessa terra de ningum.

    Na cano referida o compositor deixa clara a contraposio descrita acima, pois ele

    fala para Zefinha tomar conta da terra de ningum afinal ela a esperana dos filhos da terra

    que a terra no tem. Pode-se ler nessas frases a angstia do autor em perceber que embora

    haja um grande xodo, o serto fica como a esperana daqueles que, por uma infinidade de

    motivos tenham que eventualmente deix-lo, pois a terra de ningum repleta de ranchos, nos

    quais os homens plantam, colhem e comem. Se no serto de Elomar h o que se plantar,

    colher e comer pode-se pensar na existncia de uma miscelnea de elementos que o autor

    utiliza ao retratar essa sua terra to querida.

    22 Zefinha faz parte do LP Das Barrancas do Rio Gavio, gravado pelo Estdio: J.S. Gravaes Bahia, (1972).

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    Dessa maneira percebo que o compositor utiliza elementos do seu imaginrio, cujos

    sentidos so coletivamente partilhados, para cantar a sua realidade. Penso que a construo

    dessa realidade est baseada na crena de um passado comum que pode ser revitalizado a

    partir de uma mesma memria. Uma das maiores preocupaes do compositor repousa na

    perda da terra, do serto, local de seus antepassados, no qual est enraizada sua identidade. As

    representaes de serto de seu repertrio so evocaes reformuladas de referenciais j

    demasiadamente utilizados para descrever a regio, reposicionados de forma que ele veja e

    deixe visveis as suas impresses de mundo.

    Durval Muniz de Albuquerque elege o que denomina romance de trinta como um

    dos movimentos formadores de uma determinada idia de Nordeste. Segundo o autor tal

    movimento popularizou e instituiu a regio como espao do passado, que tm como

    caracterstica principal ser o reservatrio do verdadeiro homem brasileiro, que ainda no foi

    maculado pelos tempos modernos, pela urbanizao.

    O final da dcada de vinte e, principalmente, a dcada de trinta marcam a transformao da literatura regionalista em literatura nacional. A emergncia da anlise sociolgica do homem brasileiro, como uma necessidade urgente, colocada pela formao discursiva nacional-popular d ao romance nordestino o estatuto de uma literatura preocupada com a nao e com seu povo, mestio, pobre, inculto e primitivo em suas manifestaes sociais. A literatura passa a ser vista como destinada a oferecer sentido s vrias realidades do pas; a desvendar a essncia do Brasil real.23

    Talvez o compositor tenha buscado inspirao nessas imagens formuladas, entre

    outros, pelo romance de trinta, reinventado-as e integrando-as sua prpria perspectiva.

    Apropriou-se igualmente do discurso de denncia das misrias do serto, ecoando as falas

    inspiradas na ideologia marxista cuja preocupao era dar ao Nordeste o estatuto de lugar da

    revoluo, pois se ele era o retrato do verdadeiro Brasil e tambm o lugar de maior misria e

    injustia social deveria ser nele o ponto de ebulio e transformao da sociedade.

    A imagem e o texto do Nordeste passam a ser elaborados a partir de uma estratgia que visava denunciar a misria de suas camadas populares, as injustias sociais a que estavam submetidas e, ao mesmo tempo, resgatar as prticas e discursos de revolta popular ocorridos neste espao. Estes territrios populares da revolta so tomados como prenncio da transformao revolucionria inexorvel. As terrveis imagens do presente servem de ponto de partida para a construo de uma miragem futura, de uma espacialidade imaginria que estaria no amanh, de um espao de utopia.24

    23 Durval Muniz Albuquerque Jr. Op. Cit., p. 107. 24 Idem, ibdem, p. 184.

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    Nesse sentido o futuro tambm surge como espao no qual Elomar busca o alvio e a

    esperana de melhora de seu presente, pois atravs da transmisso da memria de sua

    coletividade para seus descendentes procura diminuir a distncia entre passado e presente, no

    sentido de preservar uma identidade coletiva. Mas o futuro para o msico no local de

    transformao tal qual alguns marxistas formularam. Para o compositor o futuro, assim como

    o presente so espaos que representam e preservam seu passado, sua identidade. A

    mensagem que o pai transmite a Zefinha a de que seria preciso reter o passado para que as

    ameaas que a cidade, a modernidade, a urbanizao representam pudessem ser atenuadas,

    isto , interromper o presente de forma que futuro a ser construdo fosse continuidade daquele

    passado. Catroga trabalha a questo do efeito ritual da memria traduzido em uma

    mensagem25,

    (...) e esta, ao unificar recordaes pessoais, ou memrias coletivas, constri e conserva uma unidade que domestica a fugacidade do tempo num presente que dura. (...) Os ritos param o tempo, a fim de se fazer reviver, simbolicamente, o que j passou.26

    Por estar, ou pelo menos se sentir irredutivelmente ligado sua terra, ao serto baiano,

    a maioria do repertrio do msico, mesmo quando no diretamente, passa pela questo.

    Elomar sempre se volta temtica sertaneza, com todos os seus apndices como a seca, a

    pobreza, a aridez e a migrao. Em contraposio exalta a beleza da regio, o valor das

    pessoas do local, denunciando as ameaas que o serto e seu povo vm sofrendo.

    Assim em Zefinha podemos perceber os modos encontrados por Elomar para falar de

    sua vivncia cotidiana, de sua viso de passado e de suas esperanas futuras. Contudo, o

    passado reivindicado por Elomar para retratar seu presente pode ser localizado em um tempo

    ainda mais distante. Desse modo pretendo levar a reflexo questo das reminiscncias de

    smbolos do imaginrio medieval europeu em algumas letras de Elomar. Os questionamentos

    aqui giram em torno de como tais representaes foram reatualizadas, reformuladas,

    tornando-se parte de um contexto diferente do medievo europeu e principalmente de que

    maneira Elomar utilizou esses elementos para falar de seu tempo, de seus problemas, de seus

    sonhos.

    25 Em Zefinha o ritual da memria percebido pelo fato do pai escolher um momento adequado no qual instruir

    a filha sobre seus deveres para com a coletividade. A preservao identitria o dever futuro de Zefinha, transmitir o mesmo passado para seus descendentes.

    26 Fernando Catroga. Memria e Histria in Sandra Jatahy Pesavento (org). Fronteiras do Milnio. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001, p. 50.

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    (...)Si eu tivesse di viv obrigado/um dia inantes dsse dia eu morro/Deus feis os homi e os bicho tudo frro/j vi iscrito no Livro Sagrado/qui a vida nessa terra u'a passage/i cada um leva um fardo pesado/ um insinamento qui derna a mudernage/eu trago bem dentro do corao guardado/Tive muita d di num t nada/pensano qui sse mundo tudo t/mais s dispois di pen pelas istrada/beleza na pobreza qui vim v/vim v na procisso u Lvado-seja/i o malassombro das casa abandonada/cro di cego nas porta das igreja/i o rmo da solido das istrada.

    Na msica O Violro27 de 1968, gravada em seu primeiro LP, ... das Barrancas do Rio

    Gavio, o compositor narra a vida do que ele concebe como sendo o tpico cantador, o

    violeiro nordestino, mesclando a essa narrativa vrios elementos inspirados tanto nas suas

    leituras dos romances de cavalaria medieval quanto na memria de signos cujos sentidos o

    autor se apropria, ressignificando-os. A rememorizao de um passado to saudoso, o do

    coro de cego nas portas das igreja..., pode vir ao encontro da tentativa de reafirmao de

    uma identidade que se acha ameaada. V cant no canturi primero/as coisa l da minha mudernage/qui mi fizero errante e violro/eu falo sro i num vadiage/i pra voc qui agora est mi ovino/juro int pelo Santo Minino/Vige Maria qui ve o qui eu digo/si f mintira mi manda um castigo/Apois pro cantad i violero/s h treis coisa nesse mundo vo/am, furria, viola, nunca dinhro/viola, furria, am, dinhro no (...).

    Talvez seja importante aqui ressaltar o uso por parte do compositor do dialeto

    sertanez. Tal uso pode ser visto como uma maneira de marcar um diferencial identificador de

    sua coletividade. A linguagem pode ser, tambm, um forte elemento criador de identidade.

    Elomar ao fazer uso do dialeto sertanez torna seu repertrio acessvel queles que dele

    compartilham. O compositor utiliza-se de seu dialeto no s no sentido de popularizao, mas

    principalmente construindo uma especificidade que, sendo ou no sua inteno, marca esta

    singularidade, cujo referencial est no passado. Nesse sentido que se pode ler um

    entrecruzamento de Elomar com o romance regionalista da dcada de 30 e seu apego

    nostlgico ao passado.

    (...) a busca de transformar a linguagem em ponto de partida para o relanamento de uma realidade que escapava, que se tornava estranha, abolindo a distncia entre coisa e significado, restabelecendo os antigos significados vistos como naturais e essenciais.28

    Cantad di trovas i martelo/di gabinete, ligra i moiro/ai cantad j curri o mundo

    intero/j int cantei nas portas di um castelo/dum rei qui si chamava di Juo/pode acridit

    meu companhro/dispois di t cantado u dia intro/o rei mi disse fica, eu disse no (...). Por

    27 O Violro faz parte do LP Das Barrancas do Rio Gavio, gravado pelo Estdio: J.S. Gravaes Bahia,

    (1972). 28 Durval Muniz Albuquerque. Op. Cit., p, 114.

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    essa mesma via tambm talvez se possa entender a recorrente presena de elementos

    atribudos literatura e msica medievais. Martelo, gabinete e moiro so gneros da cantoria

    nordestina, j a trova, alm de ser um gnero de cantoria, tambm um elemento claramente

    medieval, difundido a partir dos sculos XI a XIII na Europa29. Os versos j int cantei nas

    portas di um castelo dum rei qui si chamava di Juo apresentam duas referncias explcitas

    Idade Mdia: a primeira, o castelo, tipo de fortificao que centro de domnio social e

    econmico30, e a segunda, a referncia feita a um rei Joo, talvez Joo I fundador da dinastia

    de Aviz31 ou apenas uma simples aluso longa linhagem de reis portugueses chamados

    Joo. A referncia ao trovador medieval est presente implicitamente no resto da msica,

    especialmente quando Elomar descreve o ideal do cantador/violeiro, que levar sua arte a

    lugares distantes sem se prender a nenhum deles. Neste sentido pode-se ler uma reatualizao

    do ideal dos trovadores medievais, cuja inteno era igualmente apresentar sua msica por

    vrios reinos.

    Nestes versos Elomar caracteriza bem a dor, os problemas enfrentados pela sua

    coletividade. A seca e a misria so elementos muito presentes no imaginrio nordestino,

    ainda que tambm componham uma gama de esteretipos impostos regio. Contudo, ao

    falarmos de esteretipos, no se pretende dizer que no exista a seca ou a misria. Tais noes

    constroem e fazem parte do imaginrio, assim como imprimem sentidos realidade, ou

    melhor, forjam a realidade. O problema parece estar na naturalizao dos conceitos, que

    acabam por aprisionar os sujeitos aos lugares a eles destinados no discurso hegemnico,

    sendo vistos a partir da como um bloco monoltico, esttico, sem histria. Elomar, num

    movimento de auto-representao, ao ver a beleza do modo de vida do sertanejo, para alm de

    reafirmar o esteretipo, o subverte no porque se submeta s imposies do mundo, mas

    porque aprendeu a apreciar um modo diferente de se conceber a vida.

    L na casa dos Carneiros/Onde os violeiros vo cantar louvando voc/Em cantigas de

    amigo/Cantando comigo somente porque voc /Minha amiga, mulher/Lua nova do cu que

    j no me quer (...).Cantiga de Amigo32, composio de 1972, tambm faz parte do disco ...

    das Barrancas do Rio Gavio. Nas cantigas de amigo tradicionais, quem fala a mulher e no

    o homem. O trovador compe a cantiga, mas o ponto de vista feminino, mostrando o outro

    lado do relacionamento amoroso, o sofrimento da mulher espera do namorado (chamado

    29 Henry R. Loyn (org.). Dicionrio da Idade Mdia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 348. 30 Idem, ibdem, p. 78. 31 Idem, ibdem, p. 307/308. 32 Cantiga de Amigo faz parte do LP Das Barrancas do Rio Gavio, gravado pelo Estdio: J.S. Gravaes

    Bahia, (1972).

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    "amigo"), a dor do amor no correspondido, as saudades, os cimes, as confisses da mulher a

    suas amigas33, etc. L na casa dos Carneiros/Sete candeeiros iluminam a sala de amor/Sete violas em clamores, sete cantadores/So sete tiranas de amor para a amiga/Em flor/Que partiu e at hoje no voltou/Dezessete minha conta/Vem amiga e conta/Uma coisa linda pra mim/Pois na casa dos Carneiros/Violas e violeiros/S vivem clamando assim/Madre amiga ruim/Me mentiu jurando amor que no tem fim.

    Os elementos da natureza esto sempre presentes, alm de pessoas do ambiente

    familiar, evidenciando o carter popular da cantiga de amigo34. Em Cantiga de Amigo,

    Elomar apresenta os mesmos elementos que o tipo de composio tradicional. Assim como

    nas demais cantigas de amigo no a descrio pormenorizada do corpo da amiga, objeto da

    ateno tanto de Elomar quanto dos poetas medievais. As aluses ao corpo so sempre mais

    sutis, evitando referncias explcitas.

    Dezessete minha conta/Vem amiga e conta uma coisa linda pra mim/Conta os fios

    dos teus cabelos/Sonhos e anelos/Conta-me se o amor no tem fim/Madre amiga ruim/Me

    mentiu jurando amor que no tem fim (...). O cabelo solto da mulher tem no mundo medieval

    um forte valor ertico, que normalmente se liga a uma ao35. O fato de a mulher estar com os

    cabelos soltos tambm sugere na poesia medieval a virgindade, que se atrela idia da moa

    ser donzela. Alm disso, observo que o fato do cantador na msica pedir a revelao dos

    desejos e sonhos da moa pode proporcionar-lhe possibilidades mais reais ao amor. O

    professor de literatura R. Howard Bloch enxerga as expresses da idia do amor corts

    durante a Alta Idade Mdia como um dos momentos da inveno do amor no Ocidente.

    Segundo a perspectiva do autor na lrica do amor corts a moa jamais poderia retribuir o

    amor a ela dedicado, pois para ser amada precisaria ser pura.

    A perfeio da mulher objeto do amor exclui ou impede que ela deseje. Para ser amada, de acordo com a lgica da relao corts, a mulher precisa ser indiferente, inatingvel, imaculada em resumo, uma virgem.36

    Percebe-se ento que a imagem feminina construda por Elomar nessa cano

    assemelha-se construda pela lrica corts. No entanto h uma inverso dos papis

    masculinos e femininos. Na presente cano o amor visto sob uma perspectiva masculina,

    33 Antnio Jos Saraiva e Oscar Lopes. Histria da lngua portuguesa. Cia. Brasileira de Publicaes, Rio de

    Janeiro, 1969, p. 45-49. 34 Idem, ibdem, p. 45-49. 35 Gerd Heinz-Mohr. Op. Cit., p. 63. 36 R. Howard Bloch. Misoginia Medieval e a inveno do amor romntico ocidental. Rio de Janeiro: Ed. 34,

    1995, p.183.

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    assim como a dor do abandono, pois quem parte no caso a figura feminina. A Casa dos

    Carneiros o nome da fazenda de Elomar, na qual a cano se passa, lugar este que o homem

    abandonado compartilha com os amigos violeiros seus sentimentos. Assim, ao colocar

    aspectos de seu mundo, Elomar particulariza e reatualiza a forma da cantiga de amigo. Infrentei fosso muralha e os ferros dos portais/s pela graa da gentil senhora/filtrando a vida pelos gros de ampulhetas mortais/dalm de Trs-Os-Montes venho/por campo de justas honrando este amor/me expondo sanha sanguinria de crtes cruis/infrentei viles no Algouo e senhores em Biscaia/fidalgos corpos de armas brunhidas/no temo escorpies cruis carrascos vosso pai/enfreado porta do castelo/tenho meu murzelo ligeiro e alazo/que em lidas sangrentas bateu mil mouros infiis (...).

    Em O Rapto da Joana do Tarugo37, Elomar conta a saga de um cavaleiro que sai em

    busca de sua amada donzela, disposto a enfrentar os mais diversos desafios. Estruturada como

    uma cano de amor corts, estilo medieval que teve seu pice no sculo XII38, constam da

    composio elementos clssicos do imaginrio medieval ibrico. H fosso, muralha e portas

    de castelo. Trs os Montes uma regio portuguesa, assim como o Algouo, sendo Biscaia

    uma regio na Espanha. Nessas regies o cavaleiro Elomar participou de combates com

    outros cavaleiros em justas e chegou a enfrentar os mouros na Guerra de Reconquista cujo

    longo processo se estende do sculo XI ao final da Idade Mdia39.

    A figura do cavaleiro durante parte da Baixa Idade Mdia foi usada como exemplo de

    dignidade, honra, justia e de virtudes em geral. Inicialmente se caracterizaram por homens

    livres dispostos a serem fiis ao rei e lutarem em seu nome, que posteriormente passaram a

    constituir uma casta aristocrata na sociedade. As justas eram competies nas quais somente

    os cavaleiros estavam aptos a participar, demonstravam suas habilidades no manejo das armas

    e no combate. Tambm havia ocasies nas quais as justas se caracterizavam pela disputa do

    amor das donzelas e/ou pela afirmao da honra destes cavaleiros40.

    Oh Senhora dos Sarsais /minh'alma s teme ao Rei dos reis /deixa a alcva vem-me janela/Oh Senhora dos Sarsais /s por vosso amor e nada mais /desa da trre Nala donzela/venho d'um reino distante, errante e menestrel /inda esta noite e eu tenho esta donzela /minha espada empenho a uma de mais pura das vestais/aviai pois a viagem longa/e j vim preparado para vos levar/j tarda e quase o minguante est a morrer nos cus (...).

    37 O Rapto da Joana do Tarugo est no LP Na Quadrada das guas Perdidas, gravado nos estdios do

    Seminrio Livre de Msica da Universidade Federal da Bahia, em dezembro de 1978. 38 Antnio Jos Saraiva e Oscar Lopes. Op. cit., p. 41-68. 39 Henry R. Loyn. Op. Cit., p. 137 140. 40 Idem, ibdem, p. 81 83.

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    A sarsa, um tipo de espinheiro, uma vegetao muito comum em torno dos castelos

    em Portugal41. Pode tambm ser associada cruz de Cristo, onde os espinhos lembram a

    coroa, simbolizando um sacrifcio42. Logo, a senhora dos Sarsais pode ser vista como uma

    retomada temtica do amor corts e a intangibilidade da mulher. A donzela reafirmada

    pela figura das vestais, virgens responsveis pelo culto deusa Vesta na mitologia romana43.

    Percebo tambm nesta composio a forte presena da religiosidade do msico, nas suas

    muitas citaes ao Rei dos reis.

    Porque Elomar comps vrias canes utilizando freqentemente a simbologia

    medieval no o que este trabalho pretende descobrir. O que interessa aqui o modo de

    utilizao destas e de outras representaes pelo compositor, pois atravs desta dinmica

    social representacional que o mundo atua nos sujeitos e os sujeitos atuam no mundo,

    reatualizando mitos, forjando realidades histricas. Lanando mo de elementos pertencentes

    ao seu universo, Elomar tece uma rede vasta de significaes, cujos sentidos muitas vezes

    parecem opacos para quem est mais distante. Sua msica est impregnada de suas leituras,

    de seus estudos, mas principalmente carregam suas impresses cotidianas, impresses essas

    que no podem ser colocadas fora da histria.

    Finalmente gostaria de retomar alguns argumentos j colocados. Primeiramente, a

    questo da intertextualidade entre enunciados sobre o Nordeste possibilitou-me pensar sobre

    as muitas maneiras pelas quais o compositor incorporou esteretipos sobre o serto ao mesmo

    tempo em que deu aos mesmos novos sentidos e possibilidades. O serto apropriado por

    Elomar o espao primordial, no qual afloram seus sentimentos, seu modo de ver o mundo,

    espao este sentido como inexoravelmente ligado aos ditames da natureza, entretanto seu

    lugar amado, do qual no pretende nunca sair. Plantar em solo histrico o repertrio do compositor proporcionar ao receptor

    dimenses mais profundas da construo das representaes que ele faz de seu mundo. As

    especificidades trazidas pelo compositor nas suas msicas das impresses do real que o cerca

    podem possibilitar a descristalizao de certas imagens, libertando-as de esteretipos a partir

    do momento que passam a ser encaradas em perspectiva histrica.

    O repertrio de Elomar, como procurei evidenciar, situam-se no entrecruzamento de

    temporalidades. Seu serto o espao de trovadores, cavaleiros, donzelas e castelos medievais

    e est igualmente permeado de smbolos j saturadamente atribudos ao Nordeste. No entanto, 41 Gerd Heinz-Mohr. Op. Cit., p. 320. 42 Idem, ibdem, p. 320. 43 Pierre Grimal. Dicionrio da Mitologia Grega e Romana. Traduo de Victor Japouille. 4 edio, Rio de

    Janeiro, Bertand, Brasil, 2000, pp. 466/467.

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    no podemos permanecer na superficialidade da constatao destes smbolos. Como pude

    observar, por vezes o prprio significado subvertido, dando ao mesmo signo novos sentidos,

    estando o compositor no trnsito entre imaginrio e contra-imaginrio. Ao compor tambm

    sinfonias, peras, gneros da msica erudita, desterritorializa tais gneros, pois os compe

    utilizando temticas prprias de seu universo, acreditando que no necessrio ser europeu

    para fazer msica erudita e mais que isto, mostrando circularidades e hibridaes entre o

    popular e o erudito no seu fazer artstico. Assim, a msica situa-se no entrecruzamento entre

    diversos estilos, os quais maneja de forma magnfica, sendo seu repertrio um deleite para os

    ouvidos.

    Cabe esclarecer que este artigo , na verdade, o projeto piloto de uma futura pesquisa

    em torno do repertrio de Elomar Figueira Mello, cujo trabalho venho desenvolvendo desde o

    projeto preliminar na disciplina Metodologia da Histria, orientada pela professora Eleonora

    Zicari Costa de Brito. Pretendo igualmente continuar a desenvolver a pesquisa no mestrado,

    pois acredito que o universo elomariano riqussimo e que este estudo estimulou-me a

    prossegu-lo. Contudo, ainda que possua a inteno de aprofundar esta investigao, pelo fato

    de trabalhar na perspectiva da Anlise do Discurso, o carter da investigao ser sempre

    exploratrio, qualitativo. Assim, no pretendo sequer futuramente abarcar todo o repertrio

    elomariano, mas sim analis-lo a partir de um corpus ampliado constitudo pelo repertrio

    de Elomar, falas acadmicas e oficiais sobre a regio e um espao para a fala do receptor

    (fontes orais). No obstante, num espao pequeno, esse artigo surgiu como mais uma

    oportunidade para lanar um olhar sobre o maravilhoso universo elomariano. Por outro lado

    foi tambm a chance para enfatizar as articulaes entre a arte e a histria, afinal o

    historiador pode e deve ser um artista do mesmo modo que existem artistas impregnados de

    um senso histrico.44

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    Clria B. Costa e Maria Salete K. Machado (org.). Op. cit., 170.

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