AnticristoNietzsche

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Friedrich Nietzsche O Anticristo Ensaio de uma Crítica do Cristianismo - 1 -

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  • 1. Friedrich Nietzsche O Anticristo Ensaio de uma Crtica do Cristianismo - 1 -

2. Para ter acesso a outros ttulos libertos das banais convenes do mercado, acesse: https://sabotagem.revolt.org Esta obra no possui direitos autorais pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, alm de ser liberada a sua distribuio, preservando seu contedo e o nome do autor. - 2 - Autor: Friedrich Wilhelm Nietzsche Ttulo: O Anticristo Ttulo Original: Der Antichrist Traduo: Andr Dspore Cancian Data da Digitalizao: 2003 Data Publicao Original: 1888 3. Prefcio Este livro pertence aos homens mais raros. Talvez nenhum deles sequer esteja vivo. possvel que se encontrem entre aqueles que compreendem o meu Zaratustra: como eu poderia misturarme queles aos quais se presta ouvidos atualmente? Somente os dias vindouros me pertencem. Alguns homens nascem pstumos. As condies sob as quais sou compreendido, sob as quais sou necessariamente compreendido conheoas muito bem. Para suportar minha seriedade, minha paixo, necessrio possuir uma integridade intelectual levada aos limites extremos. Estar acostumado a viver no cimo das montanhas e ver a imundcie poltica e o nacionalismo abaixo de si. Ter se tornado indiferente; nunca perguntar se a verdade ser til ou prejudicial... Possuir uma inclinao nascida da fora para questes que ningum possui coragem de enfrentar; ousadia para o proibido; predestinao para o labirinto. Uma experincia de sete solides. Ouvidos novos para msica nova. Olhos novos para o mais distante. Uma conscincia nova para verdadesque at agora permaneceram mudas. E um desejo de economia em grande estilo acumular sua fora, seu entusiasmo... Autoreverncia, amorprprio, absoluta liberdade para consigo... Muito bem! Apenas esses so meus leitores, meus verdadeiros leitores, meus leitores predestinados: que importncia tem o resto? O resto somente a humanidade. preciso tornarse superior humanidade em poder, em grandeza de alma em desprezo... Friedrich Nietzsche - 3 - 4. I Olhemosnos face a face. Somos hiperbreos1 sabemos muito bem quo remota nossa morada. Nem por terra nem por mar encontrars o caminho aos hiperbreos: mesmo Pndaro, em seus dias, sabia tanto sobre ns. Alm do Norte, alm do gelo, alm da morte nossa vida, nossa felicidade... Ns descobrimos essa felicidade; ns conhecemos o caminho; retiramos essa sabedoria dos milhares de anos no labirinto. Quem mais a descobriu? O homem moderno? Eu no conheo nem a sada nem a entrada; sou tudo aquilo que no sabe nem sair nem entrar assim suspira o homem moderno... Esse o tipo de modernidade que nos adoeceu a paz indolente, o compromisso covarde, toda a virtuosa sujidade do moderno Sim e No. Essa tolerncia e largeur2 de corao que tudo perdoa porque tudo compreende um siroco3 para ns. Antes viver no meio do gelo que entre virtudes modernas e outros ventos do sul!... Fomos bastante corajosos; no poupamos a ns mesmos nem os outros; mas levamos um longo tempo para descobrir aonde direcionar nossa coragem. Tornamonos tristes; nos chamaram de fatalistas. Nosso destino ele era a plenitude, a tenso, o acumular de foras. Tnhamos sede de relmpagos e grandes feitos; mantivemonos o mais longe possvel da felicidade dos fracos, da resignao... Nosso ar era tempestuoso; nossa prpria natureza tornouse sombria pois ainda no havamos encontrado o caminho. A frmula de nossa felicidade: um Sim, um No, uma linha reta, uma meta... 1 Os Gregos acreditavam que no extremo Norte da Terra vivia um povo que gozava de felicidade eterna, os hiperbreos, que nunca guerreavam, adoeciam ou envelheciam. Sem a ajuda dos Deuses, seu territrio era inalcanvel. (N. do T.) 2 Grandeza. 3 Vento asfixiante, quente e empoeirado originrio de desertos. (N. do T.) - 4 - 5. II - O que bom? Tudo que aumenta, no homem, a sensao de poder, a vontade de poder, o prprio poder. - O que mau? Tudo que se origina da fraqueza. - O que felicidade? A sensao de que o poder aumenta de que uma resistncia foi superada. - No o contentamento, mas mais poder; no a paz a qualquer custo, mas a guerra; no a virtude, mas a eficincia (virtude no sentido da Renascena, virtu4 (1), virtude desvinculada de moralismos). -Os fracos e os malogrados devem perecer: primeiro princpio de nossa caridade. E realmente devese ajudlos nisso. -O que mais nocivo que qualquer vcio? A compaixo posta em prtica em nome dos malogrados e dos fracos o cristianismo... III O problema que aqui apresento no consiste em rediscutir o lugar humanidade na escala dos seres viventes ( o homem um fim ): mas que tipo de homem deve ser criado, que tipo deve ser pretendido como sendo o mais valioso, o mais digno de viver, a garantia mais segura do futuro. Este tipo mais valioso j existiu bastantes vezes no passado: mas sempre como um afortunado acidente, como uma exceo, nunca como algo deliberadamente desejado. Com muita freqncia esse foi precisamente o tipo mais temido; at ao presente foi considerado praticamente o terror dos terrores; e devido a esse terror, o tipo contrrio foi desejado, 4 Vir, em latim, significa varo, homem. Ou seja, virtu, neste sentido da Renascena, designa qualidades viris como fora, bravura, vigor, coragem, e no humildade, compaixo, etc. (N. do T.). - 5 - 6. cultivado e atingido: o animal domstico, o animal de rebanho, a doentia besta humana: o cristo... IV Pelo que aqui se entende como progresso, a humanidade certamente no representa uma evoluo em direo a algo melhor, mais forte ou mais elevado. Este progresso apenas uma idia moderna, ou seja, uma idia falsa. O Europeu de hoje, em sua essncia, possui muito menos valor que o Europeu da Renascena; o processo da evoluo no significa necessariamente elevao, melhora, fortalecimento. bem verdade que ela tem sucesso em casos isolados e individuais em vrias partes da Terra e sob as mais variadas culturas, e nesses casos certamente se manifesta um tipo superior; um tipo que, comparado ao resto da humanidade, parece uma espcie de superhomem. Tais golpes de sorte sempre foram possveis e, talvez, sempre sero. At mesmo raas inteiras, tribos e naes podem ocasionalmente representar tais ditosos acidentes. V No devemos enfeitar nem embelezar o cristianismo: ele travou uma guerra de morte contra este tipo de homem superior, anatematizou todos os instintos mais profundos desse tipo, destilou seus conceitos de mal e de maldade personificada a partir desses instintos o homem forte como um rprobo, como degredado entre os homens. O cristianismo tomou o partido de tudo o que fraco, baixo e fracassado; forjou seu ideal a partir da oposio a todos os instintos de preservao da vida saudvel; corrompeu at mesmo as faculdades daquelas naturezas intelectualmente mais vigorosas, ensinando que os valores intelectuais elevados so apenas pecados, descaminhos, tentaes. O exemplo mais - 6 - 7. lamentvel: o corrompimento de Pascal, o qual acreditava que seu intelecto havia sido destrudo pelo pecado original, quando na verdade tinha sido destrudo pelo cristianismo! VI Um doloroso e trgico espetculo surge diante de mim: retirei a cortina da corrupo do homem. Essa palavra, em minha boca, isenta de pelo menos uma suspeita: a de que envolve uma acusao moral contra a humanidade. A entendo e desejo enfatizar novamente livre de qualquer valor moral: e isso to verdade que a corrupo de que falo mais aparente para mim precisamente onde esteve, at agora, a maior parte da aspirao virtude e divindade. Como se presume, entendo essa corrupo no sentido de decadncia: meu argumento que todos os valores nos quais a humanidade apia seus anseios mais sublimes so valores de decadncia. Denomino corrompido um animal, uma espcie, um indivduo, quando perde seus instintos, quando escolhe, quando prefere o que lhe nocivo. Uma histria dos sentimentos elevados, dos ideais da humanidade e possvel que tenha de escrevla praticamente explicaria por que o homem to degenerado. A prpria vida apresentase a mim como um instinto para o crescimento, para a sobrevivncia, para a acumulao de foras, para o poder: sempre que falta a vontade de poder ocorre o desastre. Afirmo que todos os valores mais elevados da humanidade carecem dessa vontade que os valores de decadncia, de niilismo, agora prevalecem sob os mais sagrados nomes. VII Chama-se cristianismo a religio da compaixo. A compaixo est em oposio a todas as paixes tnicas que aumentam a intensidade do sentimento vital: tem ao depressora. O homem perde poder quando se compadece. Atravs da perda de fora - 7 - 8. causada pela compaixo o sofrimento acaba por multiplicar-se. O sofrimento torna-se contagioso atravs da compaixo; sob certas circunstancias pode levar a um total sacrifcio da vida e da energia vital uma perda totalmente desproporcional magnitude da causa ( o caso da morte de Nazareno). Essa uma primeira perspectiva; h, entretanto, outra mais importante. Medindo os efeitos da compaixo atravs da intensidade das reaes que produz, sua periculosidade vida mostra-se sob uma luz muito mais clara. A compaixo contraria inteiramente lei da evoluo, que a lei da seleo natural. Preserva tudo que est maduro para perecer; luta em prol dos desterrados e condenados da vida; e mantendo vivos malogrados de todos os tipos, d prpria vida um aspecto sombrio e dbio. A humanidade ousou denominar a compaixo uma virtude ( em todo sistema de moral superior ela aparece como uma fraqueza ); indo mais adiante, chamaram-na a virtude, a origem e fundamento de todas as outras virtudes mas sempre mantenhamos em mente que esse era o ponto de vista de uma filosofia niilista, em cujo escudo h a inscrio negao da vida. Schopenhauer estava certo nisto: atravs a compaixo a vida negada, e tornada digna de negao a compaixo uma tcnica de niilismo. Permita-me repeti-lo: esse instinto depressor e contagioso ope-se a todos os instintos que se empenham na preservao e aperfeioamento da vida: no papel de defensor dos miserveis, um agente primrio na promoo da decadncia compaixo persuade extino... claro, ningum diz extino: dizem o outro mundo, Deus, a verdadeira vida, Nirvana, salvao, bem- aventurana... Essa inocente retrica do reino da idiossincrasia moral-religiosa mostra-se muito menos inocente quando se percebe a tendncia que oculta sob palavras sublimes: a tendncia destruio da vida. Schopenhauer era hostil vida: esse foi o porqu de a compaixo, para ele, ser uma virtude... Aristteles, como todos sabem, via na compaixo um estado mental mrbido e perigoso, cujo remdio era um purgativo ocasional: considerava a tragdia como sendo esse purgativo. O instinto vital deveria nos incitar a buscar meios de alfinetar quaisquer acmulos patolgicos e perigosos de compaixo, como os presentes no caso de Schopenhauer (e tambm, lamentavelmente, em toda a nossa dcadence literria, de St. Petersburgo a Paris, de Tolstoi a Wagner), para que ele estoure e se dissipe... Nada mais insalubre, em toda nossa insalubre modernidade, que a compaixo crist. Sermos os mdicos aqui, sermos impiedosos aqui, manejarmos a faca aqui tudo - 8 - 9. isso o nosso servio, o nosso tipo de humanidade, isso que nos torna filsofos, ns, hiperbreos! VIII necessrio dizer quem consideramos nossos adversrios: os telogos e tudo que tem sangue teolgico correndo em suas veias essa toda a nossa filosofia... necessrio ter visto essa ameaa de perto, melhor ainda, preciso t-la vivido e quase sucumbido por ela, para compreender que isso no qualquer brincadeira ( o alegado livre-pensamento de nossos naturalistas e fisiologistas me parece uma brincadeira no possuem a paixo nessas coisas; no sofreram ). Este envenenamento vai muito mais longe do que a maioria imagina: encontro o arrogante hbito de telogo entre todos aqueles que se consideram idealistas, entre todos que, em virtude uma origem superior, reivindicam o direito de se colocarem acima da realidade, e olh-la com suspeita... O idealista, assim como o eclesistico, carrega todos os grandes conceitos em sua mo ( e no apenas em sua mo!); os lana com um benevolente desprezo contra o entendimento, os sentidos, a honra, o bem viver, a cincia; v tais coisas abaixo de si, como foras perniciosas e sedutoras, sobre as quais o esprito plana como a coisa pura em si como se a humildade, a castidade, a pobreza, em uma palavra, a santidade, no tivessem causado muito mais dano vida que quaisquer outros horrores e vcios... O puro esprito a pura mentira... Enquanto o padre, esse negador, caluniador e envenenador da vida por profisso for aceito como uma variedade de homem superior, no poder haver resposta pergunta: Que a verdade?5 A 5 Aluso passagem bblica (Novo Testamento, Evangelho segundo Joo 18:38) na qual Pilatos pergunta a Jesus: Que a verdade?. (N. do T.) - 9 - 10. verdade j foi posta de cabea para baixo quando o advogado do nada foi confundido com o representante da verdade. IX contra este instinto teolgico que guerreio: encontro vestgios dele por toda parte. Todo aquele que possui sangue teolgico em suas veias cnico e desonrado em todas as coisas. Ao pathos6 que se desenvolve dessa condio denomina-se f: em outras palavras, fechar os olhos ante si mesmo de uma vez por todas para evitar o sofrimento causado pela viso de uma falsidade incurvel. As pessoas constroem um conceito de moral, de virtude, de santidade a partir dessa falsa perspectiva das coisas; fundamentam a boa conscincia sobre uma viso falseada; aps terem-na tornado sacrossanta com os nomes Deus, salvao e eternidade no aceitam mais que qualquer outro tipo de viso possa ter valor. Descubro este instinto teolgico em todas direes: a mais disseminada e mais subterrnea forma de falsidade que se pode encontrar na Terra. Tudo que um telogo considera verdadeiro necessariamente falso: aqui temos praticamente um critrio da verdade. Seu profundo instinto de autopreservao no lhe permite honrar ou sequer mencionar a verdade. Onde quer que a influncia dos telogos seja sentida, h uma transmutao de valores, os conceitos de verdadeiro e falso so forados a inverter suas posies: tudo que mais prejudicial vida nomeado verdadeiro, tudo que a exalta, a intensifica, a afirma, a justifica e a torna triunfante nomeado falso... Quando telogos, atravs conscincia dos prncipes (ou dos povos ), estendem suas mos ao poder, no h 6 O termo phatos vem do grego, significando sentimento, emoo paixo. Ope-se a logos, pensamento racional lgico. (N. do T.) - 10 - 11. qualquer dvida quanto a este aspecto fundamental: que o anseio pelo fim, a vontade niilista, aspira ao poder... X Entre os alemes sou imediatamente compreendido quando digo que o sangue teolgico a runa da filosofia. O pastor protestante o av da filosofia alem; o protestantismo em si o peccatum originale7 . Definio do protestantismo: paralisia hemiplgica8 do cristianismo e da razo... Precisa-se apenas pronunciar as palavras Escola de Tbingen9 para compreender o que , no fundo, a filosofia alem uma forma muito astuta de teologia... Os suevos so os melhores mentirosos da Alemanha; mentem com inocncia... Qual o porqu de toda alegria que se estendeu pelo universo erudito da Alemanha que formado em trs quartos por filhos de pastores e professores com o aparecimento de Kant? Por que ainda ecoa na convico alem que com Kant houve uma mudana para melhor? O instinto teolgico dos estudiosos alemes os fez enxergar nitidamente o que tinha se tornado possvel novamente... Abria-se um caminho que conduzia de volta ao velho ideal; os conceitos de mundo verdadeiro e de moral como essncia do mundo (os dois erros mais viciosos que j existiram!) estavam, uma vez mais, graas a um ceticismo sutil e astucioso, se no demonstrveis, pelo menos irrefutveis... A razo, o direito da razo, no vai to longe... A realidade foi relegada a uma aparncia; um mundo absolutamente falso o da essncia foi transformado na realidade... O sucesso 7 Pecado original. 8 Hemiplegia designa paralisia de um dos lados do corpo. 9 A Escola de Tbingen (fundada em 1477) possui uma famosa faculdade de teologia, na qual estudaram Hegel e Johannes Kepler. (N. do T.) - 11 - 12. de Kant foi um sucesso meramente teolgico; assim como Lutero ou Leibniz, ele no foi seno um empecilho j pouco estvel integridade alem. XI Agora uma palavra contra Kant como moralista. A virtude deve ser nossa inveno; deve surgir de nossa necessidade pessoal e em nossa defesa. Em qualquer outro caso fonte de perigo. Tudo que no pertence vida representa uma ameaa a ela; uma virtude nascida simplesmente do respeito ao conceito de virtude, como Kant a desejava, perniciosa. A virtude, o dever, o bem em si, a bondade fundamentada na impessoalidade ou na noo de validez universal so todas quimeras, e nelas apenas encontra-se a expresso da decadncia, o ltimo colapso vital, o esprito chins de Konigsberg10 . Exatamente o contrrio exigido pelas mais profundas leis da autopreservao e do crescimento: que cada homem crie sua prpria virtude, seu prprio imperativo categrico11 . Uma nao se reduz a runas quando confunde seu dever com o conceito universal de dever. Nada conduz a um desastre mais cabal e pungente que todo dever impessoal, todo sacrifcio ao Moloch12 da abstrao. E imaginar que ningum pensou no imperativo categrico de Kant 10 Cidade da Prssia onde Kant nasceu e passou toda a sua vida. Por isso, tambm conhecido como filsofo de Kenizberg. 11 Conceito kantiano. Considera-se imperativo uma proposio que tenha a forma de comando, de imposio e, em particular, de um comando ou ordem que o esprito d a si prprio, Kant distinguia duas espcies de imperativos: o hipottico (ou condicional), quando a ordem ou determinao est subordinada como meio para atingir um determinado fim (ex.: s justo, se queres ser respeitado); e o categrico (ou no-condicional), se a ordem incondicional (ex. s justo). Para Kant s existia um imperativo categrico fundamental (e a esse que Nietzsche se refere) cuja frmula : Age de tal maneira que o motivo que te levou a agir possa ser convertido em lei universal. 12 Divindade adorada pelos amonitas e moabitas, qual sacrificavam crianas em troca de boas colheitas e vitria nas guerras. (N. do T.) - 12 - 13. como algo perigoso vida!... Somente o instinto teolgico tomou-o sob sua proteo! Uma ao suscitada pelo instinto vital prova estar correta pela quantidade de prazer que gera: e ainda assim esse niilista, com suas vsceras de dogmatismo cristo, considerava o prazer como uma objeo... O que destri um homem mais rapidamente que trabalhar, pensar e sentir sem uma necessidade interna, sem um profundo desejo pessoal, sem prazer como um mero autmato do dever? Essa tanto uma receita para a dcadence13 quanto para a idiotice... Kant tornou-se um idiota. E ele era contemporneo de Goethe! Este calamitoso fiandeiro de teias de aranha foi reputado o filsofo alemo par excellence14 e continua a s-lo!... Abstenho-me de dizer o que penso dos alemes... Kant no viu na Revoluo Francesa a transformao do estado da forma inorgnica para a orgnica? No perguntou a si mesmo se havia algum evento que no poderia ser explicado exceto atravs de uma disposio moral no homem, para que, fundamentada nisso, a tendncia da humanidade ao bem pudesse ser explicada de uma vez por todas? Resposta de Kant: Isso a revoluo. O instinto que engana sobre toda e qualquer coisa, o instinto como revolta contra a natureza, a decadncia alem em forma de filosofia isso Kant! XII Ponho parte uns poucos cticos, os tipos decentes na histria da filosofia: o resto no possui a menor noo de integridade intelectual. Comportam-se como donzelas, todos esses grandes entusiastas e prodgios consideram os belos sentimentos como argumentos, o peito estufado como o sopro de uma inspirao divina, a convico como um critrio da verdade. Ao final, com alem inocncia, Kant tentou dar um carter cientfico a essa forma de corrupo, essa falta de conscincia intelectual, chamando-a de razo prtica. Deliberadamente inventou uma variedade de razes para usar ocasionalmente quando fosse desejvel no se preocupar a razo isto , quando a moral, quando o sublime comando tu deves fosse ouvido. Lembrando do fato que, entre todos os povos, o filsofo no representa nada mais que o desenvolvimento dos velhos sacerdotes, 13 Decadncia. 14 Por excelncia. - 13 - 14. essa herana sacerdotal, essa fraude contra si mesmo deixa de ser algo surpreendente. Quando um homem sente que possui uma misso divina, digamos, melhorar, salvar ou libertar a humanidade quando um homem sente uma fasca divina em seu corao e acredita ser o porta-voz de imperativos supranaturais quando tal misso o inflama, simplesmente natural que ele coloque-se acima dos nveis de julgamento meramente racionais. Sente a si prprio como santificado por essa misso, sente que faz parte de uma ordem superior!... O que padres tm a ver com filosofia! Esto muito acima dela! E at agora os padres reinaram! Determinaram o significado dos conceitos de verdadeiro e falso! XIII No subestimemos este fato: que ns mesmos, ns, espritos livres, j somos a transmutao de todos os valores, uma manifesta declarao de guerra e uma vitria contra todos os velhos conceitos de verdadeiro e falso. As intuies mais valiosas so as mais tardiamente adquiridas; as mais valiosas de todas so aquelas que determinam os mtodos. Todos os mtodos, todos os princpios do esprito cientfico de hoje foram alvo, por milhares de anos, do mais profundo desprezo; caso um homem se interessasse por eles era excludo da sociedade das pessoas decentes passava por inimigo de Deus, por zombador da verdade, por possesso. Enquanto homem da cincia, pertencia Chandala15 ... Tivemos contra ns toda a pattica estupidez da humanidade toda a noo que tinham do que a verdade deveria ser, de qual deveria ser a funo da verdade todo o seu tu deves era arremessado contra ns... Nossos objetivos, nossos mtodos, nossa calma, cautela, desconfiana para eles tudo isso parecia algo absolutamente indecoroso e desprezvel. Olhando para trs, algum at poderia perguntar-se, com alguma razo, se no foi, na verdade, um senso esttico que manteve os homens cegos por tanto tempo: o 15 Chandala a casta mais baixa no sistema hindu. (N. do T.) - 14 - 15. que exigiam da verdade era uma eficincia pitoresca, e daquele em busca do conhecimento uma forte impresso sobre seus sentidos. Foi nossa modstia que por tanto tempo lhes desceu a contragosto... Quo bem o adivinharam, esses paves da divindade! XIV Ns desaprendemos algo. Nos tornamos mais modestos em todos os sentidos. No derivamos mais o homem do esprito, do desejo de Deus; rebaixamos o homem a um mero animal. O consideramos o mais forte entre eles porque o mais astuto; um dos resultados disso sua intelectualidade. Em contrapartida, ns nos precavemos contra este conceito: de que o homem o grande objetivo da evoluo orgnica. Em verdade, pode ser qualquer coisa, menos a coroa da criao: ao lado dele esto muitos outros animais, todos em similares estgios de desenvolvimento... E mesmo quando dizemos isso, estamos exagerando, pois o homem, relativamente falando, o mais corrompido e doentio de todos os animais, o mais perigosamente desviado de seus instintos apesar disso tudo, com certeza, continua a ser o mais interessante! No que concerne aos animais inferiores, foi Descartes quem primeiro teve a admirvel ousadia de descrev-los como uma machina16 ; toda a nossa fisiologia um esforo para provar a veracidade dessa doutrina. Entretanto, ilgico colocar o homem parte, como fez Descartes: todo o conhecimento que temos sobre o homem aponta precisamente ao que o consideramos: uma mquina. Antigamente, concedamos ao homem, como herana de algum tipo de ser superior, o que se denominava livre-arbtrio; agora lhe retiramos at essa vontade, pois o termo no descreve qualquer coisa que possamos compreender. A velha palavra vontade agora designa apenas um tipo de resultado, uma reao individual, que se segue inevitavelmente de uma srie de estmulos parcialmente discordantes e parcialmente harmoniosos a vontade no mais age ou movimenta... Antigamente pensava-se que a conscincia humana, seu esprito, era uma evidncia de sua origem superior, de sua divindade. Aconselharam-no que, para que se tornasse perfeito, assim como a tartaruga, recolhesse seus sentidos em si 16 Mquina. - 15 - 16. mesmo e no tivesse mais contato com coisas terrenas, para escapar de seu envoltrio mortal assim apenas restaria sua parte importante, o puro esprito. Aqui tambm pensamos melhor sobre o assunto: para ns a conscincia, ou o esprito, aparece como um sintoma de uma relativa imperfeio do organismo, como uma experincia, um tatear, um equvoco, como uma aflio que consome fora nervosa desnecessariamente ns negamos que qualquer coisa feita conscientemente possa ser feita com perfeio. O puro esprito uma pura estupidez: retire o sistema nervoso e os sentidos, o chamado envoltrio mortal, e o resto um erro de clculo isso tudo!... XV No cristianismo, nem a moral nem a religio tm qualquer ponto de contado com a realidade. So oferecidas causas puramente imaginrias (Deus, alma, eu, esprito, livre arbtrio ou mesmo o no-livre) e efeitos puramente imaginrios (pecado,salvao, graa, punio, remisso dos pecados). Um intercurso entre seres imaginrios (Deus, espritos, almas); uma histria natural imaginria (antropocntrica; uma negao total do conceito de causas naturais); uma psicologia imaginria (mal-entendidos sobre si, interpretaes equivocadas de sentimentos gerais agradveis ou desagradveis, por exemplo, os estados do nervus sympathicus com a ajuda da linguagem simblica da idiossincrasia moral-religiosa arrependimento, peso na conscincia, tentao do demnio, a presena de Deus); uma teleologia imaginria (o reino de Deus, o juzo final, a vida eterna). Esse mundo puramente fictcio, com muita desvantagem, se distingue do mundo dos sonhos; o ltimo ao menos reflete a realidade, enquanto aquele falsifica, desvaloriza e nega a realidade. Aps o conceito de natureza ter sido usado como oposto ao conceito de Deus, a palavra natural forosamente tomou o significado de abominvel todo esse mundo fictcio tem sua origem no dio contra o natural ( a realidade! ), evidncia de um profundo mal-estar com a efetividade... Isso explica tudo. Quem tem motivos para fugir da realidade? Quem sofre com ela. Mas sofrer com a realidade significa uma existncia malograda... A - 16 - 17. preponderncia do sofrimento sobre o prazer a causa dessa moral e religio fictcias: mas tal preponderncia, no entanto, tambm fornece a frmula para a dcadence... XVI Uma crtica da concepo crist de Deus conduz inevitavelmente mesma concluso. Uma nao que ainda acredita em si mesma possui seu prprio Deus. Nele so honradas as condies que a possibilitam sobreviver, suas virtudes projeta o prazer que possui em si mesma, seu sentimento de poder, em um ser ao qual pode agradecer por isso. Quem rico lhe prodigaliza sua riqueza; uma nao orgulhosa precisa de um Deus ao qual pode oferecer sacrifcios... A religio, dentro desses limites, uma forma de gratido. O homem grato por existir: para isso precisa de um Deus. Tal Deus precisa ser tanto capaz de beneficiar quanto de prejudicar; deve ser capaz de representar um amigo ou um inimigo admirado tanto pelo bem quanto pelo mal que causa. Castrar esse Deus, contra toda a natureza, transformando-o em um Deus somente bondade, seria contrrio inclinao humana. A humanidade necessita igualmente de um Deus mau e de um Deus bom; no deve agradecer por sua prpria existncia mera tolerncia e filantropia... Qual seria o valor de um Deus que desconhecesse o dio, a vingana, a inveja, o desprezo, a astcia, a violncia? Que talvez nem sequer tenha experimentado os arrebatadores ardeurs17 da vitria e da destruio? Ningum entenderia tal Deus: por que algum o desejaria? Sem dvida, quando uma nao est em declnio, quando sente que a crena em seu prprio futuro, sua esperana de liberdade esto se esvaindo, quando comea a enxergar a submisso como primeira necessidade e como medida de autopreservao, ento precisa tambm modificar seu Deus. Ele ento se torna hipcrita, tmido e recatado; aconselha a paz na alma, a ausncia de dio, a indulgncia, o amor aos amigos e aos inimigos. Torna-se um moralizador por excelncia; infiltra-se em toda virtude privada; transforma-se no Deus de todos os homens; torna-se um cidado privado, um cosmopolita... Noutros 17 Ardores. - 17 - 18. tempos representava um povo, a fora de um povo, tudo que em suas almas havia de agressivo e sequioso de poder; agora simplesmente o bom Deus... Na verdade no h outra alternativa para os Deuses: ou so a vontade de poder no caso de serem os Deuses de uma nao ou a inaptido para o poder e neste caso precisam ser bons. XVII Onde quer que, por qualquer forma, a vontade de poder comece enfraquecer, haver sempre um declnio fisiolgico concomitante, uma dcadence. A divindade dessa dcadence, despida de suas virtudes e paixes masculinas, convertida forosamente em um Deus dos fisiologicamente degradados, dos fracos. Obviamente, eles no se denominam os fracos; denominam-se os bons... Nenhuma explicao necessria para se entender em quais momentos da Histria a fico dualista de um Deus bom e um Deus mau se tornou possvel pela primeira vez. O mesmo instinto que leva os inferiores a reduzir seu prprio Deus bondade em si tambm os leva a eliminar todas as qualidades do Deus daqueles que lhes so superiores; vingam-se demonizando o Deus de seus dominadores. O bom Deus, assim como o Diabo ambos so frutos da dcadence. Como podemos ser to tolerantes com o simplismo dos telogos cristos, aceitando sua doutrina de que a evoluo do conceito de Deus a partir do Deus de Israel, o Deus de um povo, ao Deus cristo, a essncia de toda a bondade, significa um progresso? Mas at Renan18 o fez. Como se Renan tivesse o direito ao simplismo! O contrrio, na realidade, o que se faz ver. Quando tudo que necessrio vida ascendente; quando tudo que forte, corajoso, imperioso e orgulhoso foi amputado do conceito de Deus; quando se degenerou progressivamente at tornar-se uma bengala para os cansados, uma tbua de salvao aos que se afogam; quando vira o Deus dos pobres, o Deus dos pecadores, o Deus dos incapazes par excellence, e o atributo de salvador ou redentor continua como o atributo mais essencial da divindade qual a significncia de 18 O fillogo e historiador Ernest Renan (1823-1892), que dera a um dos volumes de sua obra-mestra, Les Origines du Christianisme, precisamente o ttulo LAtnchrist. O volume continha uma histria das heresias. (Rubens Rodrigues Torres Filho) - 18 - 19. tal metamorfose? O que implica tal reduo do divino? Sem dvida, com isso o reino de Deus cresceu. Antigamente, tinha somente seu povo, seus escolhidos. Mas desde ento saiu perambulando, assim como seu prprio povo, a territrios estrangeiros; desistiu de acomodar-se; e finalmente passou a sentir-se em casa em qualquer lugar, esse grande cosmopolita at agora possui a grande maioria ao seu lado, e metade da Terra. Mas esse Deus da grande maioria, esse democrata entre os Deuses, no se tornou um Deus pago orgulhoso: pelo contrrio, continua um judeu, continua um Deus das esquinas, um Deus de todos os recantos e gretas, de todos lugares insalubres do mundo!... Seu reino na Terra, agora, assim como sempre, um reino do submundo, um reino subterrneo, um reino- gueto... Ele mesmo to plido, to fraco, to dcadent... At o mais plido entre os plidos capaz de domin-lo os senhores metafsicos, os albinos do intelecto. Esses teceram teias ao seu redor por tanto tempo que finalmente o hipnotizaram, o transformaram em aranha, em mais um metafsico. E ento retornou mais uma vez ao seu velho servio de tecer o mundo a partir de sua natureza interior sub specie Spinozae19 ; aps isso se transformou em algo cada vez mais tnue e plido tornou-se o ideal, o puro esprito, o absoluto, a coisa em si... O colapso de um Deus: ele converte-se na coisa em si. XVIII A concepo crist de Deus Deus o como protetor dos doentes, o Deus que tece teias de aranha, o Deus na forma de esprito uma das concepes mais corruptas que jamais apareceram no mundo: provavelmente representa o nvel mais nfero da declinante evoluo do tipo divino. Um Deus que se degenerou em uma contradio da vida. Em vez de ser sua prpria glria e eterna afirmao! Nele declara-se guerra vida, natureza, vontade de viver! Deus transforma-se na frmula para todas calnias contra o aqui e 19 Frase de sentido duplo: segundo a ptica de Espinoza e sob a forma de aranha. Trata-se de um jogo de palavras baseado no prprio de Espinoza spinne significa aranha em alemo. - 19 - 20. agora e para cada mentira sobre alm! Nele o nada divinizado e a vontade do nada se faz sagrada!... XIX O fato de as raas fortes do Norte da Europa no terem repudiado esse Deus cristo no d qualquer crdito aos seus dotes religiosos para no mencionar seus gostos. Deveriam ter sido capazes de sobrepujar tal moribundo e decrpito produto da dcadence. Uma maldio paira sobre eles porque no o repeliram; absorveram em seus instintos a enfermidade, a senilidade e a contradio e a partir de ento no criaram mais nenhum Deus. Dois mil anos se passaram e nem um nico Deus novo! Em vez disso, ainda existe como que por algum direito intrnseco como se fosse um ultimatum20 e maximum21 da fora criadora de divindades, do creator spiritus22 da humanidade , esse deplorvel Deus do montono-tesmo cristo! Essa imagem hbrida da decadncia, destilada do nada, da contradio e da imaginao estril, na qual todos os instintos da dcadence, todas as covardias e cansaos da alma encontram sua sano! XX Em minha condenao do cristianismo certamente espero no injustiar uma religio anloga que possui um nmero ainda maior de seguidores: aludo ao budismo. 20 ltima palavra. 21 Mximo. 22 Esprito criador. - 20 - 21. Ambas devem ser consideradas religies niilistas so religies da dcadence mas distinguem-se de um modo bastante notvel. Pelo simples fato de poder compar-las, o crtico do Cristianismo est em dbito com os estudiosos da ndia. O budismo cem vezes mais realista que o cristianismo parte de sua herana de vida ser capaz de encarar problemas de modo objetivo e impassvel; o produto de longos sculos de especulao filosfica. O conceito Deus j havia se estabelecido antes dele surgir. O budismo a nica religio genuinamente positiva que pode ser encontrada na Histria, e isso se aplica at mesmo sua epistemologia (que um fenomenalismo estrito) ele no fala sobre a luta contra o pecado, mas, rendendo-se realidade, diz a luta contra o sofrimento. Diferenciando-se nitidamente do cristianismo, coloca a autodecepo que existe nos conceitos morais por detrs de si; isso significa, em minha linguagem, alm do bem e do mal. Os dois fatos fisiolgicos nos quais se apia e aos quais direciona a maior parte de sua ateno so: primeiro, uma excessiva sensibilidade sensao que se manifesta atravs de uma refinada suscetibilidade ao sofrimento; segundo, uma extraordinria espiritualidade, uma preocupao muito prolongada com os conceitos e com os procedimentos lgicos, sob a influncia da qual o instinto de personalidade submete-se noo de impessoalidade ( ambos esses estados sero familiares a alguns de meus leitores, os objetivistas, por experincia prpria, assim como so para mim). Esses estados fisiolgicos produzem uma depresso, e Buda tentou combat-la atravs de medidas higinicas. Prescreveu a vida ao ar livre, a vida nmade; moderao na alimentao e uma cuidadosa seleo dos alimentos; prudncia em relao ao uso de intoxicantes; igual cautela em relao a quaisquer paixes que induzem comportamentos biliosos e aquecimento do sangue; finalmente, no se preocupar nem consigo nem com os outros. Encoraja idias que produzam serenidade ou alegria e encontra meios de combater as idias de outros tipos. Entende o bem, o estado de bondade, como algo que promove a sade. A orao no est inclusa, e nem o asceticismo. No h um imperativo categrico ou qualquer disciplina, mesmo dentro dos monastrios ( dos quais sempre permitido sair ). Todas essas coisas seriam simplesmente meios para aumentar aquela excessiva sensibilidade supramencionada. Pelo mesmo motivo no advoga qualquer conflito contra os incrdulos; seus ensinamentos no antagonizam nada seno a vingana, a averso, o ressentimento ( inimizade nunca pe - 21 - 22. fim inimizade: o refro que move o budismo...) E nisso tudo estava correto, pois so precisamente essas paixes que, na perspectiva de seu principal objetivo regimental, so insalubres. A fadiga mental que apresenta, j claramente evidenciada pelo excesso de objetividade (isto , a perda do interesse em si mesmo, a perda do equilbrio e do egosmo), combatida por vigorosos esforos a fim de levar os interesses espirituais de volta ao ego. Nos ensinamentos de Buda o egosmo um dever. A nica coisa necessria, a questo como posso me libertar do sofrimento, o que rege e determina toda a dieta espiritual ( talvez algum lembrar-se- daquele ateniense que tambm declarou guerra ao cientificismo puro, a saber, Scrates, que tambm elevou o egosmo condio de princpio moral). XXI As necessidades do budismo so um clima extremamente ameno, muita gentileza e liberalidade nos costumes, e nenhum militarismo; ademais, que seu incio provenha das classes mais altas e educadas. Alegria, serenidade e ausncia de desejo so os objetivos principais, e eles so alcanados. O budismo no uma religio na qual a perfeio meramente objeto de aspirao: a perfeio algo normal. No cristianismo os instintos dos subjugados e dos oprimidos vm em primeiro lugar: apenas os mais rebaixados buscam a salvao atravs dele. Nele o passatempo prevalecente, a cura favorita para o enfado, a discusso sobre pecados, a autocrtica, a inquisio da conscincia; nele a emoo produzida pelo poder (chamada de Deus) insuflada (pela reza); nele o bem mais elevado considerado algo inatingvel, uma ddiva, uma graa. Tambm falta transparncia: o encobrimento e os lugares obscurecidos so cristos. Nele o corpo desprezado e a higiene acusada de lascvia; a Igreja distancia-se at da limpeza ( a primeira providncia crist aps a expulso dos mouros foi fechar os banhos pblicos, dos quais havia 270 apenas em Crdoba). Tambm crist uma certa crueldade para consigo e para com os outros; o dio aos incrdulos; o desejo de perseguir. Idias sombrias e - 22 - 23. inquietantes ocupam o primeiro plano; os estados mentais mais estimados, portando os nomes mais respeitveis, so epileptiformes; a dieta determinada com o fim de engendrar sintomas mrbidos e supra-estimulao nervosa. Tambm crist toda a inimizade mortal aos senhores da terra, aos aristocratas juntamente com uma rivalidade secreta contra eles ( resignam-se do corpo querem apenas a alma...). cristo todo o dio contra o intelecto, o orgulho, a coragem, a liberdade, a libertinagem intelectual; o dio aos sentidos, alegria dos sentidos, alegria em geral, cristo... XXII Quando o cristianismo abandonou sua terra natal, aqueles das classes mais baixas, o submundo da Antigidade, e comeou a buscar poder entre os povos brbaros, no tinha mais de se relacionar com homens exauridos, mas homens ainda intimamente selvagens e capazes de sacrifcios em suma, homens fortes, mas atrofiados. Aqui, distintamente do caso dos budistas, a causa do descontentamento consigo, do sofrimento por si, no meramente uma sensibilidade extremada e uma suscetibilidade dor, mas, ao contrrio, uma excessiva nsia por infligir sofrimento aos outros, uma tendncia a obter uma satisfao subjetiva em feitos e idias hostis. O cristianismo tinha de adotar conceitos e valoraes brbaras para obter domnio sobre os brbaros: assim como, por exemplo, o sacrifcio do primognito, a ingesto de sangue como um sacramento, o desprezo pelo intelecto e pela cultura; a tortura sob todas as suas formas, corporal e espiritual; toda a pompa do culto. O budismo uma religio para pessoas em um estgio mais adiantado de desenvolvimento, para raas que se tornaram gentis, amenas e demasiado espiritualizadas ( a Europa ainda no est madura para ele ): um convite de retorno paz e felicidade, a um cuidadoso racionamento do esprito, a um certo enrijecimento do corpo. O - 23 - 24. cristianismo visa dominar animais de rapina; sua estratgia consiste em torn-los doentes enfraquecer a receita crist para domesticar, para civilizar. O budismo uma religio para o final, para os derradeiros estgios de cansao da civilizao. O cristianismo surge antes da civilizao mal ter comeado sob certas circunstncias cria as prprias fundaes desta. XXIII O Budismo, eu repito, uma centena de vezes mais austero, mais honesto, mais objetivo. No precisa mais justificar suas aflies, sua suscetibilidade ao sofrimento, interpretando essas coisas em termos de pecado simplesmente diz o que simplesmente pensa: eu sofro. Para o brbaro, entretanto, o sofrimento em si pouco compreensvel: o que necessita , em primeiro lugar, uma explicao sobre o porqu de seu sofrimento (o seu instinto leva-o a negar completamente seu sofrimento, ou a suport-lo em silncio). Aqui a palavra Diabo era uma bno: o homem devia possuir um inimigo onipotente e terrvel no havia motivos para envergonhar-se por sofrer nas mos de tal inimigo. No seu ntimo o cristianismo possui vrias sutilezas que pertencem ao Oriente. Em primeiro lugar, sabe que de pouca relevncia se uma coisa verdadeira ou no, desde que se acredite que verdadeira. Verdade e f: aqui temos dois mundos de idias inteiramente distintas, praticamente dois mundos diametralmente opostos os seus caminhos distam milhas um do outro. Entender esse fato a fundo isso quase o suficiente, no Oriente, para fazer de algum um sbio. Os brmanes sabiam disso, Plato sabia disso, todo estudante de esoterismo sabe disso. Quando, por exemplo, um homem sente qualquer prazer atravs da idia de que foi redimido do pecado, no necessrio que seja realmente pecador, mas que simplesmente sinta-se pecador. Mas quando a f exaltada acima de tudo, disso segue-se necessariamente o descrdito razo, ao conhecimento e investigao meticulosa: o caminho que leva verdade torna-se proibido. A esperana, em suas formas mais vigorosas, um estimulante muito mais poderoso vida que qualquer espcie de felicidade efetiva. Para o homem resistir ao sofrimento deve possuir uma - 24 - 25. esperana to elevada que nenhum conflito com a realidade possa destru-la de fato, to elevada que nenhuma conquista possa satisfaz-la: uma esperana que alcana alm deste mundo, precisamente por causa do poder que a esperana tem de fazer os sofredores persistirem, os gregos a consideravam o mal entre os males, como o mais maligno de todos males; permaneceu no fundo da fonte de todo o mal23 . Para que o amor seja possvel, Deus deve tornar-se uma pessoa; para que os instintos mais baixos tenham seu espao, Deus precisa ser jovem. Para satisfazer o ardor das mulheres, um santo formoso deve aparecer na cena; para satisfazer o dos homens, deve haver uma virgem. Tais coisas so necessrias se o cristianismo quiser assumir controle sobre um solo no qual o culto de Afrodite ou de Adnis j tenha estabelecido a noo de como uma adorao deve ser. Insistir na castidade aumenta grandemente a veemncia e a subjetividade do instinto religioso torna o culto mais fervoroso, mais entusistico, mais espirituoso. O amor o estado no qual o homem v as coisas quase totalmente como no so. A fora da iluso alcana seu pice aqui, assim como a capacidade para a suavizao e para a transfigurao. Quando um homem est apaixonado sua tolerncia atinge ao mximo; tolera-se qualquer coisa. O problema consistia em inventar uma religio na qual se pudesse amar: atravs disso o pior que a vida tem a oferecer superado tais coisas sequer sero notadas. Tudo isso se alcana com as trs virtudes crists: f, esperana e caridade: as denomino as trs habilidades crists. O budismo encontra-se em um estgio de desenvolvimento demasiado avanado, demasiado positivista para ter esse tipo de astcia. XXIV 23 Ou seja, na caixa de Pandora. (H. L. Mencken) - 25 - 26. Aqui apenas toco superficialmente o problema da origem do cristianismo. A primeira coisa necessria para resolver o problema a seguinte: que o cristianismo deve ser compreendido apenas a partir da anlise do solo em que se originou no uma reao contra os instintos judaicos; sua conseqncia inevitvel; simplesmente mais um passo dentro da intimidante lgica dos judeus. Nas palavras do Salvador: a salvao vem dos judeus24 . A segunda coisa a ser lembrada esta: que o tipo psicolgico do Galileu25 ainda reconhecvel, mas que apenas em sua forma mais degenerada (mutilado e sobrecarregado com caractersticas estrangeiras) pde servir da maneira em que foi utilizado: como tipo para Salvador da humanidade. Os judeus so o povo mais notvel da Histria, pois quando foram confrontados com o dilema do ser ou no ser, escolheram, atravs de uma deliberao excepcionalmente lcida, o ser a qualquer preo: esse preo envolvia uma radical falsificao de toda a natureza, de toda a naturalidade, de toda a realidade, de todo o mudo interior e tambm o exterior. Colocaram-se contra todas aquelas condies sob as quais, at agora, os povos foram capazes de viver, ou at mesmo tiveram o direito de viver; a partir deles se desenvolveu uma idia que se encontrava em direta oposio s condies naturais sucessivamente distorceram a religio, a civilizao, a moral, a histria e a psicologia at as transformar em uma contradio de sua significao natural. Ns encontramos o mesmo fenmeno mais adiante, em uma forma incalculavelmente exagerada, mas apenas como uma cpia: a Igreja crist, comparada ao povo eleito, exibe absoluta ausncia de qualquer pretenso originalidade. Precisamente por esse motivo os judeus so o povo mais funesto de toda a histria universal: sua influncia causou tal falsificao na racionalidade da humanidade que hoje um cristo pode sentir-se anti-semita sem se dar conta de que ele prprio no seno a ltima conseqncia do judasmo. Em minha Genealogia da Moral apresentei a primeira explicao psicolgica dos conceitos subjacentes a estas coisas antitticas: uma moral nobre e uma moral do ressentimento, a segunda sendo um mero produto da negao da primeira. O sistema moral 24 Joo 4:22. 25 A palavra possui forte conotao histrica, pois assim era mais freqentemente designado Cristo no sc IV, na poca das grandes lutas entre pagos ou helenos, liderados pelo imperador Juliano, e os cristos alcunhados depreciativamente Galileus, fanticos do Galileu. - 26 - 27. judaico-cristo pertence segunda diviso, e em todos os sentidos. Para ser capaz de dizer No a tudo que representa uma evoluo ascendente da vida isto , ao bem-estar, ao poder, beleza, auto-afirmao os instintos do ressentimento, aqui completamente transformados em gnio, tiveram de inventar outro mundo no qual a afirmao da vida representasse as maiores malignidades e abominaes imaginveis. Psicologicamente, os judeus so pessoas dotadas da mais forte vitalidade, tanto que, quando se viram frente a condies onde a vida era impossvel, escolheram voluntariamente, e com um profundo talento para a autopreservao, tomar o lado de todos os instintos que produzem a decadncia no por estarem dominados por eles, mas como que adivinhando neles o poder atravs do qual o mundo poderia ser desafiado. Os judeus so exatamente o oposto dos decadentes: simplesmente foram forados se mostrar com esse disfarce, e com um grau de habilidade prximo ao non plus ultra26 do gnio histrinico conseguiram se colocar frente de todos of movimentos decadentes ( por exemplo, o cristianismo de Paulo ), e assim fazerem-se algo mais forte que qualquer partido de afirmao da vida. Para o tipo de homens que aspiram ao poder no judasmo e no cristianismo em outras palavras, a classe sacerdotal a decadncia no seno um meio. Homens desse tipo tm um interesse vital em tornar a humanidade enferma, em confundir os valores de bom e mau, verdadeiro e falso de uma maneira que no apenas perigosa vida, mas que tambm a falsifica. XXV A histria de Israel inestimvel como uma tpica histria de uma tentativa de deturpar todos os valores naturais: exponho trs fatos corroboram isso. Originalmente, e acima de tudo no tempo da monarquia, Israel manteve uma atitude justa em relao s coisas, ou seja, uma atitude natural. O seu Iav27 era a expresso da conscincia de seu prprio poder, de sua alegria consigo mesmo, da esperana que tinha em si: atravs dele os judeus buscavam a vitria e a salvao, atravs dele esperavam que a natureza lhes desse tudo que fosse necessrio para sua existncia acima de tudo, chuva. Iav o Deus de 26 No mais alm, isto , algo inexcedvel, que no se ultrapassa. 27 Uma das designaes do Deus de Israel utilizadas nos Livros Sagrados. - 27 - 28. Israel e, conseqentemente, o Deus da justia: essa a lgica de toda raa que possui poder em suas mos e que o utiliza com a conscincia tranqila. Na cerimnia religiosa dos judeus ambos aspectos dessa auto-afirmao ficam manifestos. A nao grata pelo grande destino que a possibilitou obter domnio; grata pela benfica regularidade na mudana das estaes e por toda a fortuna que favorece seus rebanhos e colheitas. Essa viso das coisas permaneceu ideal por um longo perodo, mesmo aps ter sido despojada de validade tragicamente: dentro, a anarquia, fora, os assrios. Mas o povo ainda conservou, como uma projeo de sua mais alta aspirao, a viso de um rei que era ao mesmo tempo um galante guerreiro e um decoroso juiz foi conservada, sobretudo por aquele profeta tpico (ou seja, crtico e satrico do momento), Isaas. Mas toda a esperana foi v. O velho Deus no podia mais fazer o que fizera noutros tempos. Deveria ter sido abandonado. Mas o que ocorreu de fato? Simplesmente isto: sua concepo foi mudada sua concepo foi desnaturalizada; esse foi o preo que tiveram de pagar para mant-lo. Iav, o Deus da justia no est mais de acordo com Israel, no representa mais o egosmo da nao; agora apenas um Deus condicionado... A noo pblica desse Deus agora se torna meramente uma arma nas mos de agitadores clericais, que interpretam toda felicidade como recompensa e toda desgraa como punio em termos de obedincia ou desobedincia a Deus, em termos de pecado: a mais fraudulenta das interpretaes imaginveis, atravs da qual a ordem moral do mundo estabelecida e os conceitos fundamentais, causa e efeito, so colocados de ponta cabea. Uma vez que o conceito de causa natural varrido do mundo por doutrinas de recompensa e punio, algum tipo de causalidade inatural torna-se necessria: seguem-se disso todas as outras variedades de negao da natureza. Um Deus que ordena no lugar de um Deus que ajuda, que d conselhos, que no fundo meramente um nome para cada feliz inspirao de coragem e autoconfiana... A moral j no mais um reflexo das condies que promovem vida s e o crescimento de um povo; no mais um instinto vital primrio; em vez disso se tornou algo abstrato e oposto vida uma perverso dos fundamentos da fantasia, um olhar maligno contra todas as coisas. Que a moral judaica? Que a moral crist? A sorte despida de sua inocncia; a infelicidade contaminada com a idia de pecado; o bem-estar considerado - 28 - 29. como um perigo, como uma tentao; um desarranjo fisiolgico causado pelo veneno do remorso... XXVI O conceito de Deus falsificado; o conceito de moral falsificado; mas mesmo aqui os feitos dos padres judaicos no cessaram. Toda a histria de Israel no lhes tinha qualquer valor: ento a dispensaram! Tais padres realizaram essa prodigiosa falsificao da qual grande parte da Bblia uma evidncia documentria; com um grau de desprezo sem paralelos, e em face de toda a tradio e toda a realidade histrica, traduziram o passado de seu povo em termos religiosos, ou seja, converteram-no em um mecanismo imbecil de salvao, atravs do qual todas ofensas contra Iav eram punidas e toda devoo recompensada. Ns consideraramos esse ato de falsificao histrica algo muito mais vergonhoso se a familiaridade com a interpretao eclesistica da histria por milhares anos no tivesse embotado nossas inclinaes retido in hitoricis28 . E os filsofos apiam a Igreja: a mentira sobre a ordem moral do mundo permeia toda a filosofia, mesmo a mais recente. O que significa uma ordem moral do mundo? Significa que existe uma coisa chamada vontade de Deus, a qual determina o que o homem deve ou no fazer; que a dignidade de um povo ou de um indivduo deve ser medida pelo seu grau de obedincia ou desobedincia vontade de Deus; que os destinos de um povo ou de um indivduo so controlados por essa vontade de Deus, que recompensa ou pune de acordo com a obedincia ou desobedincia manifestadas. Em lugar dessa deplorvel mentira, a realidade teria isto a dizer: o padre, essa espcie parasitria que existe s custas da toda vida s, usa o nome de Deus em vo: chama o estado da sociedade humana no qual ele prprio determina o valor de todas as coisas de o reino de Deus; chama os meios atravs dos quais esse estado alcanado de vontade de Deus; com um cinismo glacial, avalia todos povos, todas pocas e todos indivduos atravs de seu grau de subservincia ou oposio do poder da ordem sacerdotal. Observemo-lo em servio: pelas mos do sacerdcio judaico a grande poca de Israel transfigurou-se em uma poca de declnio; a Dispora, com sua 28 Nas questes histricas. - 29 - 30. longa srie de infortnios, foi transformada em uma punio pela grande poca na qual os padres ainda no significavam nada. Transformaram, de acordo com suas necessidades, os heris poderosos e absolutamente livres da histria de Israel ou em fanticos miserveis e hipcritas, ou em homens totalmente mpios. Reduziram todos grandes acontecimentos estpida frmula: obedientes ou desobedientes a Deus. E foram mais adiante: a vontade de Deus (em outras palavras, as condies necessrias para a preservao do poder dos padres) tinha de ser determinada e para tal fim necessitavam de uma revelao. Dizendo de modo mais claro, uma enorme fraude literria teve de ser perpetrada, sagradas escrituras tiveram de ser forjadas e ento, com grandiosa pompa hiertica e dias penitncia e muita lamentao pelos longos dias de pecado agora terminados, foram devidamente publicadas. A vontade de Deus, ao que parece, h muito j havia sido estabelecida; o problema foi que a humanidade negligenciou as sagradas escrituras... Mas a vontade de Deus j havia sido revelada a Moiss... O que ocorreu? Simplesmente isto: os padres tinham formulado, de uma vez por todas e com a mais estrita meticulosidade, que tributos deveriam ser-lhe pagos, desde o maior at o menor ( no se esquecendo dos mais apetitosos cortes de carne, pois o padre um grande consumidor de bifes); em suma, ele disse o que desejava ter, qual era a vontade de Deus... Desse tempo em diante as coisas se organizam de tal modo que o padre tornou-se indispensvel em todos os lugares; em todos os importantes eventos naturais da vida, no nascimento, no casamento, na enfermidade, na morte, para no falar no sacrifcio (ou seja, na ceia), o sacro-parasita se apresenta para os desnaturalizar na sua linguagem, para os santificar... Pois necessrio salientar isto: que todo hbito natural, toda instituio natural (o Estado, a administrao da Justia, o casamento, os cuidados prestados aos doentes e pobres), tudo que exigido pelo instinto vital, em suma, tudo que tem valor em si mesmo reduzido a algo absolutamente imprestvel e at transformado no oposto ao que valoroso pelo o parasitismo dos padres (ou, se algum preferir, pela ordem moral do mundo). O fato precisa de uma sano um poder para criar valores faz-se necessrio, e tal poder s pode valorar atravs da negao da natureza... O padre deprecia e profana a natureza: esse o preo para que possa existir. A desobedincia a Deus, ou seja, a desobedincia ao padre, lei, agora porta o nome de pecado; os meios prescritos para a reconciliao com Deus - 30 - 31. so, claro, precisamente os que induzem mais eficientemente um indivduo a sujeitar-se ao padre; apenas ele salva. Considerados psicologicamente, os pecados so indispensveis em toda sociedade organizada sobre fundamentos eclesisticos; so os nicos instrumentos confiveis de poder; o padre vive do pecado; tem necessidade de que existam pecadores... Axioma Supremo: Deus perdoa a todo aquele que faz penitncia ou, em outras palavras, a todo aquele que se submete ao padre. XXVII O cristianismo se desenvolveu a partir de um solo to corrupto que nele todo o natural, todo valor natural, toda realidade se opunha aos instintos mais profundos da classe dominante surgiu como uma espcie de guerra de morte contra a realidade, e como tal nunca foi superada. O povo eleito que para todas as coisas adotou valores sacerdotais e nomes sacerdotais, e que, com aterrorizante lgica, rejeitou tudo que era terrestre como profano, mundano, pecaminoso esse povo colocou seus instintos em uma frmula final que era conseqente at o ponto da auto-aniquilao: como cristianismo, de fato negou mesmo a ltima forma da realidade, o povo sagrado, o povo eleito, a prpria realidade judaica. O fenmeno tem importncia de primeira ordem: o pequeno movimento insurrecional que levou o nome de Jesus de Nazar simplesmente o instinto judaico redivivus29 em outras palavras, o instinto sacerdotal que no consegue mais suportar sua prpria realidade; a descoberta de um estado existencial ainda mais abstrato, de uma viso da vida ainda mais irreal que a necessria para uma organizao eclesistica. O cristianismo de fato nega a igreja... No sou capaz de determinar qual foi o alvo da insurreio da qual Jesus foi considerado seja isso verdade ou no o promotor, caso no seja a Igreja judaica a palavra igreja sendo usada aqui exatamente no mesmo sentido que possui hoje. Era uma insurreio contra os bons e os justos, contra os Santos de Israel, contra toda a hierarquia da sociedade no contra a corrupo, mas contra as castas, o privilgio, a 29 Que retornou vida; ressuscitado. - 31 - 32. ordem, o formalismo. Era uma descrena no homem superior, um No arremessado contra tudo que padres e telogos defendiam. Mas a hierarquia que foi posta em causa por esse movimento, ainda que por apenas um instante, era uma jangada que, acima de tudo, era necessria segurana do povo judaico em meio s guas representava sua ltima possibilidade de sobrevivncia; era o ltimo residuum30 de sua existncia poltica independente; um ataque contra isso era um ataque contra o mais profundo instinto nacional, contra a mais tenaz vontade de viver de um povo que jamais existiu sobre a Terra. Esse santo anarquista incitou o povo de baixeza abissal, os rprobos e pecadores, os chandala do judasmo a emergirem em revolta contra a ordem estabelecida das coisas e com uma linguagem que, se os Evangelhos merecem crdito, hoje o conduziria Sibria , esse homem certamente era um criminoso poltico, ao menos tanto quanto era possvel o ser em uma comunidade to absurdamente apoltica. Foi isso que o levou cruz: a prova consiste na inscrio colocada sobre ela. Morreu pelos seus pecados no h qualquer razo para se acreditar, no importa quanto isso seja afirmado, que tenha morrido pelo pecado dos outros. XXVIII Se ele prprio era consciente dessa contradio ou se, de fato, essa era a nica da qual tinha conhecimento essa uma questo totalmente distinta. Aqui, pela primeira vez, toco o problema da psicologia do Salvador. Para comear, confesso que muitos poucos livros, para mim, so mais difceis de ler que os Evangelhos. Minhas dificuldades so bastante diferentes daquelas que possibilitaram curiosidade letrada da mente alem perpetrar um de seus triunfos mais inesquecveis. Faz um longo tempo desde que eu, como qualquer outro jovem erudito, desfrutava da incomparvel obra de Strauss31 com toda a sapiente laboriosidade de um meticuloso fillogo. Naquele tempo possua vinte anos: agora sou srio demais para esse tipo de coisa. Que me importam as contradies da tradio? 30 Resduo. 31 David Friedrich Strauss (1808-74), autor de Das Leben Jesu (1835-6), uma obra muito famosa em sua poca. Nietzsche se refere a ela. - 32 - 33. Como algum pode chamar lendas de santos de tradio? As histrias de santos so a mais dbia variedade de literatura existente; examin-las luz do mtodo cientfico na ausncia total de documentos corroborativos a mim parece condenar toda a investigao desde suas origens isso seria simplesmente uma divagao erudita... XXIX O que me importa o tipo psicolgico do Salvador. Esse tipo talvez seja descrito nos evangelhos, apesar de que em uma forma mutilada e saturada de caracteres estrangeiros isto , a despeito dos Evangelhos; assim como a figura de Francisco de Assis se apresenta em suas lendas a despeito de suas lendas. A questo no a veracidade das evidncias sobre seus feitos, seus ditos ou sobre como foi sua morte; a questo se seu tipo ainda pode ser compreendido, se foi conservado. Todas as tentativas de que tenho conhecimento de se ler a histria da alma nos Evangelhos revelam para mim apenas uma lamentvel leviandade psicolgica. O Senhor Renan, esse arrivista in psychologicis32 , contribuiu s duas noes mais inadequadas concernentes explicao do tipo de Jesus: a noo de gnio e a de heri (heros). Mas se existe alguma coisa essencialmente antievanglica, certamente a noo de heri. O que os Evangelhos tornam instintivo precisamente o oposto de todo o esforo herico, de todo o gosto pelo conflito: a incapacidade de resistncia converte-se aqui em algo moral: (no resistas ao mal a mais profunda sentena dos Evangelhos, talvez a verdadeira chave para eles) a saber, na bem-aventurana da paz, da bondade, na incapacidade para a inimizade. Qual o significado da boa-nova? Que verdadeira vida, a vida eterna foi encontrada no foi meramente prometida, est aqui, est em voc; a vida que se encontra no amor livre de todos os retraimentos e excluses, livre de todas as distncias. Todos so filhos Deus, Jesus no reivindica nada apenas para si; como filhos de Deus, todos os homens so iguais... Imagine fazer de Jesus um heri! E que tremenda incompreenso escorre da palavra gnio! Toda nossa concepo do espiritual, toda concepo de nossa civilizao no possui qualquer sentido no mundo em 32 Em assuntos psicolgicos. - 33 - 34. que Jesus viveu. Falando com o rigor de um fisiologista, uma palavra bastante diferente deveria ser usada aqui... Todos sabemos que h uma sensibilidade mrbida dos nervos tteis que faz com que os sofredores evitem todo o tocar, se retraiam ante a necessidade de agarrar um objeto slido. Infere-se disso que, em ltima instncia, tal habitatus33 fisiolgico transforma-se em um dio instintivo contra toda a realidade, em uma fuga ao intangvel, ao incompreensvel; uma repugnncia por toda frmula, por todas noes de tempo e espao, por todo o estabelecido costumes, instituies, Igreja ; a sensao de estar em casa em um mundo sem contado com a realidade, um mundo exclusivamente interior, um mundo verdadeiro, um mundo eterno... O reino de Deus est dentro de vs... XXX O dio instintivo contra a realidade: a conseqncia de uma extremada suscetibilidade dor e irritao to intensa que meramente ser tocado torna-se insuportvel, pois cada sensao manifesta-se muito profundamente. A excluso instintiva de toda averso, toda hostilidade, todas as fronteiras e distncias no sentimento: a conseqncia de uma extremada suscetibilidade dor e irritao to grande que sente toda a resistncia, toda a compulso resistncia como uma angstia insuportvel (em outros termos, como nocivo, como proibido pelo instinto de autopreservao), e considera a bem-aventurana (alegria) como algo possvel apenas aps no ser mais necessrio oferecer resistncia a nada nem a ningum, nem mesmo ao mal e ao perigoso amor como nica, como a ltima possibilidade de vida... Essas so as duas realidades fisiolgicas a partir das quais e por causa das quais a doutrina da salvao se desenvolveu. Denomino-as um sublime hedonismo superdesenvolvido assentado sobre um solo completamente insalubre. O que fica mais prximo delas, apesar de misturado com uma grande dose de vitalidade grega e fora nervosa, o epicurismo, a teoria da salvao do paganismo. Epicuro era um tpico 33 Comportamento. - 34 - 35. decadente: fui o primeiro a reconhec-lo. O medo da dor, mesmo da dor infinitamente pequena o resultado disso no pode ser qualquer coisa exceto uma religio do amor... XXXI Antecipadamente dei minha resposta ao problema. Seu pr-requisito a assuno de que o tipo do Salvador chegou at ns com sua forma altamente distorcida. Tal distoro muito provvel: h muitos motivos para que esse tipo no deva ser transmitido em sua forma pura, completa e livre de acrscimos. O ambiente no qual esta estranha figura se movia deve ter deixado vestgios nela, e ainda mais deve ter sido feito pela histria, pelo destino das primeiras comunidades crists; a ltima, de fato, deve ter embelezado o tipo retrospectivamente com caracteres que apenas podem ser compreendidos enquanto finalidades de guerra e propaganda. Aquele mundo estranho e doentio ao qual os Evangelhos nos conduzem um mundo aparentemente vindo de uma novela russa, no qual a escria da sociedade, as molstias nervosas e a idiotice pueril se renem deve, de qualquer modo, ter tornado o tipo grosseiro: os primeiros discpulos, em particular, devem ter sido forados a traduzir, com sua crueza prpria, um ser totalmente formado por smbolos e coisas ininteligveis para poderem compreender alguma coisa na viso deles o tipo apenas existiu aps ter sido reformado em moldes mais familiares... O profeta, o messias, o futuro juiz, o professor de moral, o milagreiro, Joo Batista todas simplesmente chances de desfigur-lo... Finalmente, no subestimemos o proprium34 de todas as grandes veneraes, especialmente as sectrias: tendem a apagar dos objetos venerados todas as caractersticas originais e idiossincrasias, no raro dolorosamente estranhas nem mesmo os v. Deve-se lamentar muito que nenhum Dostoievski tenha vivido nas vizinhanas do mais interessante dos dcadents ou seja, algum que teria 34 Propriedade, qualidade. - 35 - 36. sentido o comovente encanto de tal mistura do sublime, do mrbido e do infantil. Em ltima anlise, o tipo, enquanto tipo da decadncia, talvez possa realmente ter sido peculiarmente complexo e contraditrio: no se deve excluir essa possibilidade. Contudo, as probabilidades parecem estar em seu desfavor, pois neste caso a tradio teria sido particularmente precisa e objetiva, enquanto temos razes para admitir o contrrio. Entretanto, existe uma contradio entre o pacfico pregador das montanhas, dos lagos e dos campos, que parece como um novo Buda em um solo muito pouco indiano, e o fantico agressivo, o inimigo mortal dos telogos e dos eclesisticos, que glorificado pela malcia de Renan como l grand maitre em ironie35 . Pessoalmente no tenho qualquer dvida de que a maior parte desse veneno (e no menos de esprit36 ) haja penetrado no tipo do Mestre apenas como um resultado da agitada natureza da propaganda crist: todos conhecemos a inescrupulosidade dos sectrios quando decidem fazer de seu lder uma apologia para si mesmos. Quando os primeiros cristos precisaram de um telogo hbil, contencioso, pugnaz e maliciosamente sutil para enfrentar outros telogos, criaram um Deus para satisfazer tal necessidade, exatamente como tambm, sem hesitao, colocaram em sua boca certas idias que eram necessrias a eles, mas totalmente divergentes dos Evangelhos a volta de Cristo, o juzo final, todos os tipos de expectativas e promessas temporais. XXXII Repito que me oponho a todos os esforos para introduzir o fanatismo na figura do Salvador: a prpria palavra imperieux37 , usada por Renan, sozinha suficiente para anular o tipo. A boa-nova nos diz simplesmente que no existem mais contradies; o reino de Deus pertence s crianas; a f anunciada aqui no mais conquistada por lutas est ao alcance das mos, existiu desde o princpio, um tipo de infantilidade que se refugiou no espiritual. Tal puberdade retardada e incompleta dos organismos familiar aos fisiologistas como sintoma da degenerao. A f desse tipo no furiosa, no denuncia, no se defende: no empunha espada no entende como poderia um dia colocar homem contra homem. 35 O grande mestre em ironia. 36 Esprito, ironia. 37 Imperioso. - 36 - 37. No se manifesta atravs de milagres, recompensas, promessas ou escrituras: , do principio ao fim, seu prprio milagre, sua prpria recompensa, sua prpria promessa, seu prprio reino de Deus. Essa f no se formula simplesmente vive, e assim guarda-se contra frmulas. Com certeza, a casualidade do ambiente, da formao educacional d proeminncia aos conceitos de certa espcie: no cristianismo primitivo encontramos apenas noes de carter judaico-semtico ( a de comer e beber em comunho pertence a esta categoria uma idia que, como tudo que judaico, foi severamente fustigada pela Igreja). Cuidemo-nos para no ver nisso tudo mais que uma linguagem simblica, uma semntica38 , uma oportunidade para falar em parbolas. A teoria de que nenhuma palavra deve ser tomada ao p da letra era um pressuposto para que este anti-realista pudesse discursar. Colocado entre hindus teria usado os conceitos de Shanhya39 , e entre chineses os de Lao- Ts40 e em ambos os casos isso no faria qualquer diferena a ele. Tomando uma pequena liberdade no uso das palavras, algum poderia de fato chamar Jesus de esprito livre41 no lhe importa o que est estabelecido: a palavra mata42 , tudo aquilo que estabelecido mata. A noo de vida como uma experincia, como apenas ele a concebe, a seu ver encontra-se em oposio a todo tipo de palavra, frmula, lei, crena e dogma. Fala apenas de coisas interiores: vida, ou verdade, ou luz, so suas palavras para o mundo interior a seu ver todo o resto, toda a realidade, toda natureza, mesmo a linguagem, tem valor apenas como um sinal, uma alegoria. Aqui de suprema importncia no se deixar conduzir ao erro pelas tentaes existentes nos preconceitos cristos, ou melhor, eclesisticos: este simbolismo par excellence encontra-se alheio a toda religio, todas noes de adorao, toda histria, toda cincia natural, toda experincia mundana, todo conhecimento, toda poltica, toda psicologia, todos livros, toda arte sua sabedoria precisamente a ignorncia pura43 em relao a todas essas coisas. Nunca ouviu falar de cultura; no a combate nem mesmo a nega... O mesmo pode ser dito do Estado, de toda a 38 A palavra semitica est no texto, mas provvel que semntica seja a palavra que Nietzsche tinha em mente. (H. L. Mencken) 39 Um dos seis grandes sistemas da filosofia hindu. (H. L. Mencken). 40 Considerado o fundador do taosmo. (H. L. Mencken) 41 O nome que Nietzsche d aos que aceitam sua filosofia. (H. L. Mencken) 42 Isto , a rigorosa palavra da lei o objetivo mais importante nas primeiras pregaes de Jesus. (H. L. Mencken) 43 Referncia ignorncia pura (reine Thorheit) do Parsifal de Richard Wagner. (H. L. Mencken) - 37 - 38. ordem social burguesa, do trabalho, da guerra no tem motivos para negar o mundo, nem sequer tem conhecimento do conceito eclesistico de mundo... Precisamente a negao lhe era impossvel. De modo idntico carece de capacidade argumentativa, no acredita que um artigo de f, que uma verdade possa ser estabelecida atravs de provas ( suas provas so iluminaes interiores, sensaes subjetivas de felicidade e auto- afirmao, simples provas de fora ). Tal doutrina no pode contradizer: no sabe que outras doutrinas existem ou podem existir, inteiramente incapaz de imaginar um juzo oposto... E se, porventura, o encontra, lamenta por tal cegueira com uma sincera compaixo pois somente ela v a luz no entanto no far quaisquer objees... XXXIII Em toda a psicologia dos Evangelhos os conceitos de culpa e punio esto ausentes, e o mesmo vale para o de recompensa. O pecado, que significa tudo aquilo que distancia o homem de Deus, abolido essa precisamente a boa-nova. A felicidade eterna no est meramente prometida, nem vinculada a condies: concebida como a nica realidade todo o restante no so mais que sinais teis para falar dela. Os resultados de tal ponto de vista projetam-se em um novo estilo de vida, um estilo de vida especialmente evanglico. No a f que o distingue do cristo; a distino se estabelece atravs da maneira de agir; ele age diferentemente. No oferece resistncia, nem em palavras, nem em seu corao, queles que lhe so opositores. No v diferena entre estrangeiros e conterrneos, judeus e pagos (prximo, claro, significa correligionrio, judeu). No se irrita com ningum, no despreza ningum. No apela s cortes de justia nem se submete s suas decises (no prestar juramento44 ). Nunca, quaisquer sejam as circunstncias, se divorcia de sua esposa, mesmo que possua provas de sua infidelidade. No fundo, tudo isso um princpio; tudo surge de um instinto. A vida do salvador foi simplesmente professar essa prtica e tambm em sua morte... No precisava mais de qualquer formula ou ritual em suas relaes com Deus nem sequer da orao. 44 Mateus 5:34. - 38 - 39. Rejeitou toda a doutrina judaica do arrependimento e recompensa; sabia que apenas atravs da vivncia, de um estilo de vida algum poderia se sentir divino, bem- aventurado, evanglico, filho de Deus. No o arrependimento, no so a orao e o perdo o caminho para Deus: apenas o modo de viver evanglico conduz a Deus isso justamente o prprio o Deus! O que os Evangelhos aboliram foi o judasmo presente nas idias de pecado, remisso dos pecados, salvao atravs da f toda a dogmtica eclesistica dos judeus foi negada pela boa-nova. O profundo instinto que leva o cristo a viver de modo que se sinta no cu e imortal, apesar das muitas razes para sentir que no est no cu: essa a nica realidade psicolgica na salvao. Uma nova vida, no uma nova f. XXXIV Se compreendo alguma coisa sobre esse grande simbolista, isto: que considerava apenas realidades subjetivas como reais, como verdades que viu todo o resto, todo o natural, temporal, espacial e histrico apenas como smbolos, como material para parbolas. O conceito de Filho de Deus no designa uma pessoa concreta na histria, um indivduo isolado e definido, mas um fato eterno, um smbolo psicolgico desvinculado da noo de tempo. O mesmo vlido, no sentido mais elevado, para o Deus desse tpico simbolista, para o reino de Deus e para a filiao divina. Nada poderia ser mais acristo que as cruas noes eclesisticas de um Deus como pessoa, de um reino de Deus vindouro, de um reino dos cus no alm e de um filho de Deus como segunda pessoa da Trindade. Isso tudo perdoem-me a expresso como soco no olho (e que olho!) do Evangelho: um desrespeito aos smbolos elevado a um cinismo histrico-mundial... Todavia suficientemente bvio o significado dos smbolos Pai e Filho no para todos, claro : a palavra Filho expressa a entrada em um sentimento de transformao de todas as coisas (beatitude); Pai expressa esse prprio sentimento a sensao da eternidade e perfeio. Envergonho-me de lembrar o que a Igreja fez com esse simbolismo: ela no colocou uma histria de Anfitrio45 no limiar da f crist? E um 45 Mitologia grega. Anfitrio era o filho de Alceu. Alcmena era sua esposa. Durante sua ausncia ela foi visitada por Zeus e Heracles. - 39 - 40. dogma da imaculada conceio ainda por cima?... Com isso conseguiu apenas macular a concepo... O reino dos cus um estado de esprito no algo que vir alm do mundo ou aps a morte. Toda a idia de morte natural est ausente nos Evangelhos: a morte no uma ponte, no uma passagem; est ausente porque pertence a um mundo bastante diferente, um mundo apenas aparente, apenas til enquanto smbolo. A hora da morte no uma idia crist horas, tempo, a vida fsica e suas crises so inexistentes para o mestre da boa-nova... O reino de Deus no uma coisa pela qual os homens aguardam: no teve um ontem nem ter um amanh, no vir em um milnio uma experincia do corao, est em toda parte e no est em parte alguma... XXXV O portador da boa-nova morreu assim como viveu e ensinou no para salvar a humanidade, mas para demonstrar-lhe como viver. Seu legado ao homem foi um estilo de vida: sua atitude ante os juzes, ante os oficiais, ante seus acusadores sua atitude perante a cruz. No resiste; no defende seus direitos; no faz qualquer esforo para evitar a maior das penalidades ainda mais, a convida... E roga, sofre e ama com aqueles, por aqueles que o maltratam. No se defender, no se encolerizar, no culpar... Mas igualmente no resistir ao mal am-lo... XXXVI Ns, espritos livres ns somos os primeiros a possuir os pr-requisitos para entender o que, por dezenove sculos, permaneceu incompreendido temos aquele instinto e paixo pela integridade que declara uma guerra muito mais ferrenha contra a sagrada mentira que contra todas as outras mentiras... A humanidade estava indizivelmente distante de nossa benevolente e cautelosa neutralidade, de nossa disciplina de esprito que - 40 - 41. sozinha torna possvel solucionar coisas to estranhas e sutis: o que os homens sempre buscaram, com descarado egosmo, foi sua prpria vantagem; criaram a Igreja a partir da negao dos Evangelhos... Todos que procurassem por sinais de uma divindade irnica que maneja os cordis por detrs do grande drama da existncia no encontrariam pequena evidncia neste estupendo ponto de interrogao chamado cristianismo. A humanidade ajoelha-se exatamente perante a anttese do que era a origem, o significado e a lei dos Evangelhos santificaram no conceito de Igreja justamente o que o portador da boa-nova considerava abaixo si, atrs de si seria vo procurar por um melhor exemplo de ironia histrico-mundial. XXXVII Nossa poca orgulha-se de seu senso histrico: como, ento, se permitiu acreditar que a grosseira fbula do fazedor de milagres e Salvador constitui as origens do cristianismo e que tudo nele de espiritual e simblico surgiu apenas posteriormente? Muito pelo contrrio, toda a histria do cristianismo da morte na cruz em diante a histria de uma incompreenso progressivamente grosseira de um simbolismo original. Com toda a difuso do cristianismo entre massas mais vastas e incultas, at mesmo incapazes de compreender os princpios dos quais nasceu, surgiu a necessidade de torn-lo mais vulgar e brbaro absorveu os ensinamentos e rituais de todos cultos subterrneos do imperium Romanum e as absurdidades engendradas por todo tipo de raciocnio doentio. Era o destino do cristianismo que sua f se tornasse to doentia, baixa e vulgar quanto as necessidades doentias, baixas e vulgares que tinha de administrar. O barbarismo mrbido finalmente ascende ao poder com a Igreja a Igreja, esta encarnao da hostilidade mortal contra toda a honestidade, toda grandeza de alma, toda disciplina do esprito, toda humanidade espontnea e bondosa. Valores cristos valores nobres: apenas ns, espritos livres, restabelecemos a maior das antteses em matria de valores!... - 41 - 42. XXXVIII No posso, neste momento, evitar um suspiro. H dias em que sou visitado por um sentimento mais negro que a mais negra melancolia o desprezo pelos homens. Que no haja qualquer dvida sobre o que desprezo, sobre quem desprezo: o homem de hoje, do qual desgraadamente sou contemporneo. O homem de hoje seu hlito podre me asfixia!... Em relao ao passado, como todos estudiosos, tenho muita tolerncia, ou seja, um generoso autocontrole: com uma melanclica precauo atravesso milnios inteiros de mundo-manicmio, chamem isso de cristianismo, f crist ou Igreja crist, como desejaram tomo o cuidado de no responsabilizar a humanidade por sua demncia. Mas um sentimento irrefrevel irrompe no momento em que entro nos tempos modernos, nos nossos tempos. Nossa poca mais esclarecida... O que era antigamente apenas doentio agora se tornou indecente uma indecncia ser cristo hoje em dia. E aqui comea minha repugnncia. Olho minha volta: no resta sequer uma palavra do que outrora se chamava verdade; j no suportamos mais que um padre pronuncie tal palavra. Mesmo um homem com as mais modestas pretenses integridade precisa saber que um telogo, um padre, um papa de hoje no apenas se engana quando fala, mas na verdade mente j no se isenta de sua culpa atravs da inocncia ou da ignorncia. O padre sabe, como todos sabem, que no h qualquer Deus, nem pecado, nem salvador que o livre arbtrio e a ordem moral do mundo so mentiras : a reflexo sria, a profunda auto- superao espiritual impedem que quaisquer homens finjam no saber disso... Todas idias da Igreja agora esto reconhecidas pelo que so as piores falsificaes existentes, inventadas para depreciar a natureza e todos os valores naturais; o padre visto como realmente como a mais perigosa forma de parasita, como a peonhenta aranha da criao... Ns sabemos, nossa conscincia agora sabe exatamente qual era o verdadeiro valor de todas essas sinistras invenes do padre e da Igreja e para que fins serviram, com sua desvalorizao da humanidade ao nvel da autopoluio, cujo aspecto inspira nusea os conceitos de outro mundo, de juzo final, de imortalidade da alma, da prpria - 42 - 43. alma: no passam de instrumentos de tortura, sistemas de crueldade atravs dos quais o padre torna-se mestre e mantm-se mestre... Todos sabem disso, mas, mesmo assim, nada mudou. Para onde foi nosso ltimo resqucio decncia, de auto-respeito se nossos homens de Estado, no geral uma classe de homens no convencionais e profundamente anticristos em seus atos, agora se denominam cristos e vo mesa de comunho?... Um prncipe frente de seus regimentos, magnificente enquanto expresso do egosmo e arrogncia de seu povo e mesmo assim declarando, sem qualquer vergonha, que um cristo46 !... Quem, ento, o cristianismo nega? O que ele chama o mundo? Ser soldado, ser juiz, ser patriota; defender-se a si mesmo; zelar pela sua honra; desejar sua prpria vantagem; ser orgulhoso... Toda prtica trivial, todo instinto, toda valorao convertida em ato agora anticrist: que monstro de falsidade o homem moderno precisa ser para se denominar um cristo sem envergonhar-se! XXXIX Farei uma pequena regresso para explicar a autntica histria do cristianismo. A prpria palavra cristianismo um mal-entendido no fundo s existiu um cristo, e ele morreu na cruz. O Evangelho morreu na cruz. O que, desse momento em diante, chamou- se de Evangelho era exatamente o oposto do que ele viveu: ms novas, um Dysangelium47 . um erro elevado estupidez ver na f, e particularmente na f na salvao atravs de Cristo, o sinal distintivo do cristo: apenas a prtica crist, a vida vivida por aquele que morreu na cruz, crist... Hoje tal vida ainda possvel, e para certos homens at necessria: o cristianismo primitivo, genuno, continuar sendo possvel em quaisquer pocas... No f, mas atos; acima de tudo, um evitar atos, um modo diferente de ser... Os estados de conscincia, uma f qualquer, por exemplo, a aceitao de alguma coisa como verdade como todo psiclogo sabe, o valor dessas coisas perfeitamente indiferente e de quinta ordem se comparado ao dos instintos: estritamente falando, todo o 46 Nietzsche refere-se ao Kaiser Guilherme II, que subira ao trono da Alemanha em 15 de abril de 1888, cinco meses antes da redao de O Anticristo. 47 Um dos muitos neologismos de Nietzsche. Ele compe este vocbulo angelium (cuja origem vem do grego e que significa nova, notcia) fazendo oposio com os prefixos dys (mau, infeliz notcia m) e eu (bom, feliz boa nova, boa notcia). - 43 - 44. conceito de causalidade intelectual falso. Reduzir o ato ser cristo, o estado de cristianismo, a uma aceitao da verdade, a um mero fenmeno de conscincia, equivale a formular uma negao do cristianismo. De fato, no existem cristos. O cristo aquele que por dois mil anos passou-se por cristo simplesmente uma auto-iluso psicolgica. Examinado de perto, parece que, apesar de toda sua f, foi apenas governado por seus instintos e que instintos! Em todas as pocas por exemplo, no caso de Lutero f nunca foi mais que uma capa, um pretexto, uma cortina por detrs da qual os instintos faziam seu jogo uma engenhosa cegueira dominao de certos instintos... Eu j denominei a f uma habilidade especialmente crist sempre se fala de f mas se age de acordo com os instintos... No mundo de idias do cristo no h qualquer coisa que sequer toque a realidade: ao contrrio, reconhece-se um dio instintivo contra a realidade como fora motivadora, como nico poder de motivao no fundo do cristianismo. Que se segue disso? Que mesmo aqui, in psychologicis, h um erro radical, isto , determinante da essncia, ou seja, da substncia. Retire-se uma idia e coloque-se uma realidade genuna em seu lugar e todo o cristianismo reduz-se a um nada! Visto calmamente, este fenmeno dos mais estranhos, uma religio no apenas dependente de erros, mas inventiva e engenhosa apenas em criar erros nocivos, venenosos vida e ao corao constitui um verdadeiro espetculo para os Deuses para aquelas divindades que tambm so filsofas, as quais encontrei, por exemplo, nos clebres dilogos de Naxos. No momento em que a repugnncia as deixar ( e tambm a ns!) ficaro agradecidas pelo espetculo proporcionado pelos cristos: talvez por causa desta curiosa exibio somente o miservel e minsculo planeta chamado Terra merea olhar divino, uma demonstrao de interesse divino... Portanto, no subestimemos os cristos: o cristo, falso at a inocncia, est muito acima do macaco uma teoria das origens bastante conhecida48 , quando aplicada aos cristos, torna-se simplesmente uma delicadeza... XL 48 Referncia teoria de Charles Darwin sobre as origens do homem. - 44 - 45. O destino do Evangelho foi decidido no momento de sua morte foi pendurado na cruz... Somente a morte, essa inesperada e vergonhosa morte; somente a cruz, a qual geralmente era reservada apenas canalha somente este assombroso paradoxo colocou os discpulos face a face com o verdadeiro enigma: Quem era este? O que era este? O sentimento de desalento, de profunda afronta e injria; a suspeita de que tal morte poderia constituir uma refutao de sua causa; a terrvel questo Por que aconteceu assim? esse estado mental facilmente compreensvel. Aqui tudo precisa ser considerado como necessrio; tudo precisa ter um significado, uma razo, uma elevadssima razo; o amor de um discpulo exclui todo o acaso. Apenas ento da fenda da dvida bocejou: Quem o matou? Quem era seu inimigo natural? essa pergunta reluziu como um relmpago. Resposta: o judasmo dominante, a classe dirigente. A partir desse momento revoltaram-se contra a ordem estabelecida, comearam a compreender Jesus como um insurrecto contra a ordem estabelecida. At ento este elemento militante, negador estava ausente em sua imagem; ainda mais, isso representava seu prprio oposto. Decerto a pequena comunidade no havia compreendido o que era precisamente o mais importante: o exemplo oferecido pela sua morte, a liberdade, a superioridade sobre todo o ressentimento uma plena indicao de quo pouco foi compreendido! Tudo que Jesus poderia desejar atravs de sua morte, em si mesma, era oferecer publicamente a maior prova possvel, um exemplo de seus ensinamentos. Mas os discpulos estavam muito longe de perdoar sua morte apesar de que faz-lo seria consoante ao evangelho no mais alto grau; e tambm no estavam preparados para se oferecerem, com doce e suave tranqilidade de corao, a uma morte similar... Muito pelo contrrio, foi precisamente o menos evanglico dos sentimentos, a vingana, que os possuiu. Parecia-lhes impossvel que a causa devesse perecer com sua morte: recompensa e julgamento tornaram-se necessrios ( e o que poderia ser menos evanglico que recompensa, punio e julgamento!). Uma vez mais a crena popular na vinda de um messias apareceu em primeiro plano; a ateno foi direcionada a um momento histrico: o reino de Deus vir para julgar seus inimigos... Mas nisso tudo h um mal-entendido gigantesco: conceber o reino de Deus como ato final, como uma simples promessa! O Evangelho havia sido, de fato, a prpria encarnao, o cumprimento, a realizao desse reino de Deus. Foi apenas ento que todo o desprezo e acridez contra - 45 - 46. fariseus e telogos comearam a aparecer no tipo do Mestre, que com isso foi transformado, ele prprio, em fariseu e telogo! Por outro lado, a selvagem venerao dessas almas completamente desequilibradas no podia mais suportar a doutrina do Evangelho, ensinada por Jesus, sobre os direitos iguais entre todos os homens filiao divina: sua vingana consistiu em elevar Jesus de modo extravagante, destarte separando-o deles: exatamente como, em tempos anteriores, os judeus, para vingarem-se de seus inimigos, se separaram de seu Deus e o elevaram s alturas. Este Deus nico e este filho nico de Deus: ambos foram produtos do ressentimento... XLI E a partir desse momento surgiu um problema absurdo: Como pde Deus permiti-lo? Para o qual a perturbada lgica da pequena comunidade formulou uma resposta assustadoramente absurda: Deus deu seu filho em sacrifcio para a remisso dos pecados. De uma s vez acabaram com o Evangelho! O sacrifcio pelos pecados, e em sua forma mais obnxia e brbara: o sacrifcio do inocente pelo pecado dos culpados! Que paganismo apavorante! O prprio Jesus havia suprimido o conceito de culpa, negava a existncia de um abismo entre Deus e o homem; ele viveu essa unidade entre Deus e o homem, que era precisamente a sua boa-nova... E no como um privilgio! Desde ento o tipo do Salvador foi sendo corrompido, pouco a pouco, pela doutrina do julgamento e da segunda vinda, a doutrina da morte como sacrifcio, a doutrina da ressurreio, atravs da qual toda a noo de bem-aventurana, a inteira e nica realidade dos Evangelhos escamoteada em favor de um estado existencial ps-morte!... Paulo, com aquela insolncia rabnica que permeia todos seus atos, deu um carter lgico a essa concepo indecente deste modo: Se Cristo no ressuscitou de entre os mortos, ento v toda a nossa f E de sbito converteu-se o Evangelho na mais desprezvel e irrealizvel das promessas, a petulante doutrina da imortalidade do indivduo... E Paulo a pregava como uma recompensa!... XLII - 46 - 47. Agora se comea a ver justamente o que terminava com a morte na cruz: um esforo novo e totalmente original para fundar um movimento de pacifismo budstico, e assim estabelecer a felicidade na Terra real, no meramente prometida. Pois esta como j demonstrei a diferena ess