Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

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António Mora A metafísica é uma arte porque... António Mora: Introdução à [...] A metafísica é uma arte porque tem as características da obra de arte: a subjectividade (isto é, o ser a expressão de um temperamento), a incerteza da base em que assenta, e a, directa, inutilidade prática. O pensamento deve partir daquilo que encontre irredutível. Ora, o irredutível será aquilo que ele seja incapaz de pensar, de analisar. Incapaz de analisar mesmo falsamente, incapaz de por um lado ou por outro, com mãos, alavanca ou tenaz, levantá-lo ou movê-lo. Parece que esse irredutível devia ser o próprio pensamento. Mas não é, porque o pensamento analisa- se. Tão pouco deve ser o conteúdo desse pensamento, porque o que contém, ele sempre poderá elaborar, analisar, porque pode, pelo menos, compará-lo com outras coisas também nele contidas. E assim certa ideia, pelo menos relativa, ele formará dessa coisa. Onde está então o irredutível? Procuremos por uma análise progressivamente destruidora, chegar a ele. O facto imediato do nosso pensamento, o próprio pensamento, é, ao darmos fé dele, uma coisa que se nos apresenta como tendo um conteúdo, como um facto que uma análise radical, indo ao fundo e à essência, parte em dois elementos. (Já isso o pensa não-irredutível). Esses dois elementos quais são? Superficialmente pensando vimos que a eles se pode chamar: o pensamento e o conteúdo do pensamento. Com a característica imperfeição das análises superficiais, induziu-nos esta, de início, num erro, pelo menos aparente ou temporário. Se por pensamento entendemos o conjunto de ideias, sensações, (...) que em nós existem, o pensamento fica sendo simplesmente o seu próprio conteúdo e é impossível encontrar uma coisa a que propriamente se chama pensamento. Impossível ? Se a nossa análise abarcou aqui, que belo sistema arquitectado se não pode erguer sobre esta base! Mas a continuação do pensamento leva a mais escuros caminhos. Ponhamos de parte a visão errada para não perdermos o fio da nossa análise. Caracteriza todo o elemento pertencente àquilo, a que propriamente chamámos o conteúdo do pensamento, uma coisa — o ser nosso. Isto é, os meus «pensamentos»: são meus, não de outros. Assim eles me aparecem. Que sentido comporta esse fenómeno? E é ele o elemento irredutível que procurávamos? [...] O que entendo eu com dizer que o pensamento é meu? O primeiro ponto do problema está, evidentemente, em saber porque digo eu que o meu pensamento é meu? Como sei eu que ele é meu? Porque tenho o que se chama «consciência» do meu pensamento ? Então todos aqueles fenómenos chamados «inconscientes» que descubro em mim? Posso sobre o caso fabricar várias hipóteses que explicam: (1) Que tenho realmente consciência de todos esses elementos mas que essa consciência é a tal ponto pequena com respeito a alguns desses fenómenos que, derivando a minha atenção para os fenómenos que mais vividamente ocupam a consciência, os mínimos, a ela são praticamente imperceptíveis. (2) Que a individualidade transcende a consciência e, suponha-se, tem duas formas, uma consciente, outra inconsciente, isto, por uma razão qualquer a investigar; essa razão seria qualquer coisa como, que fôssemos compostos de espírito e matéria, ou fôssemos unos nessa dupla forma, sendo porém conscientes no que parte da alma e inconscientes no que parte da matéria, até que chegamos à alma em plena matéria. Neste género deveria ser a hipótese fundamental que pretendesse ser explicativa. Para poder afirmar que, além da Consciência e da Matéria há, pelo menos um outro facto — a relação entre eles, porque se entende que a matéria é dada à Cons[ciênci]a e a Con[sciênci]a é c[onsciênci]a da Matéria — tínhamos que pensar (1) que é legítima a aplicação da ideia de relação à Consciência e à Matéria no que, empregar-se pode, em relação uma com a outra; (2) que conhecemos suficientemente a C[onsciênci]a e a Matéria para podermos afirmar deles mais alguma coisa do que que existem; (3) que

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António Mora

A metafísica é uma arte porque...António Mora:

Introdução à [...]

A metafísica é uma arte porque tem as características da obra de arte: a subjectividade (isto é, o ser a expressão de um temperamento), a incerteza da base em que assenta, e a, directa, inutilidade prática.

O pensamento deve partir daquilo que encontre irredutível. Ora, o irredutível será aquilo que ele seja incapaz de pensar, de analisar. Incapaz de analisar mesmo falsamente, incapaz de por um lado ou por outro, com mãos, alavanca ou tenaz, levantá-lo ou movê-lo.

Parece que esse irredutível devia ser o próprio pensamento. Mas não é, porque o pensamento analisa-se. Tão pouco deve ser o conteúdo desse pensamento, porque o que contém, ele sempre poderá elaborar, analisar, porque pode, pelo menos, compará-lo com outras coisas também nele contidas. E assim certa ideia, pelo menos relativa, ele formará dessa coisa.

Onde está então o irredutível? Procuremos por uma análise progressivamente destruidora, chegar a ele.

O facto imediato do nosso pensamento, o próprio pensamento, é, ao darmos fé dele, uma coisa que se nos apresenta como tendo um conteúdo, como um facto que uma análise radical, indo ao fundo e à essência, parte em dois elementos. (Já isso o pensa não-irredutível). Esses dois elementos quais são? Superficialmente pensando vimos que a eles se pode chamar: o pensamento e o conteúdo do pensamento. Com a característica imperfeição das análises superficiais, induziu-nos esta, de início, num erro, pelo menos aparente ou temporário.

Se por pensamento entendemos o conjunto de ideias, sensações, (...) que em nós existem, o pensamento fica sendo simplesmente o seu próprio conteúdo e é impossível encontrar uma coisa a que propriamente se chama pensamento. Impossível ?

Se a nossa análise abarcou aqui, que belo sistema arquitectado se não pode erguer sobre esta base! Mas a continuação do pensamento leva a mais escuros caminhos. Ponhamos de parte a visão errada para não perdermos o fio da nossa análise.

Caracteriza todo o elemento pertencente àquilo, a que propriamente chamámos o conteúdo do pensamento, uma coisa — o ser nosso. Isto é, os meus «pensamentos»: são meus, não de outros. Assim eles me aparecem.

Que sentido comporta esse fenómeno? E é ele o elemento irredutível que procurávamos? [...] O que entendo eu com dizer que o pensamento é meu?

O primeiro ponto do problema está, evidentemente, em saber porque digo eu que o meu pensamento é meu? Como sei eu que ele é meu? Porque tenho o que se chama «consciência» do meu pensamento ? Então todos aqueles fenómenos chamados «inconscientes» que descubro em mim?

Posso sobre o caso fabricar várias hipóteses que explicam:

(1) Que tenho realmente consciência de todos esses elementos mas que essa consciência é a tal ponto pequena com respeito a alguns desses fenómenos que, derivando a minha atenção para os fenómenos que mais vividamente ocupam a consciência, os mínimos, a ela são praticamente imperceptíveis.

(2) Que a individualidade transcende a consciência e, suponha-se, tem duas formas, uma consciente, outra inconsciente, isto, por uma razão qualquer a investigar; essa razão seria qualquer coisa como, que fôssemos compostos de espírito e matéria, ou fôssemos unos nessa dupla forma, sendo porém conscientes no que parte da alma e inconscientes no que parte da matéria, até que chegamos à alma em plena matéria. Neste género deveria ser a hipótese fundamental que pretendesse ser explicativa.

Para poder afirmar que, além da Consciência e da Matéria há, pelo menos um outro facto — a relação entre eles, porque se entende que a matéria é dada à Cons[ciênci]a e a Con[sciênci]a é c[onsciênci]a da Matéria — tínhamos que pensar (1) que é legítima a aplicação da ideia de relação à Consciência e à Matéria no que, empregar-se pode, em relação uma com a outra; (2) que conhecemos suficientemente a C[onsciênci]a e a Matéria para podermos afirmar deles mais alguma coisa do que que existem; (3) que

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— ao contrário do que é evidente — provaremos a vida de relação não nasce da matéria puramente, das relações entre as coisas, sendo, por isso mesmo, inaplicável fora da matéria. As ideias são «acção» da Matéria sobre a C[onsciênci]a.

s.d.

Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968.

- 173.

António MoraA metafísica, na sua essência,

A metafísica, na sua essência, isto é, no que de ao mesmo tempo mais lato e mais simples comporta o seu conceito, assenta em uma distinção, possível só a conscientes desenvolvidos, entre o conhecimento e a vida , ou, com precisão mais verbal, entre conhecer e viver. Só uma longa experiência humana, acumulada e transmitida, pôde criar um tipo de homem primeiro inactivo, por quaisquer circunstâncias que atenuassem o estado de guerra inevitavelmente primitivo (primordial) entre os humanos, e depois, por apuramento especializado desses inactivos, o tipo já propriamente especulativo.

1914?

Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993).

- 164.

António Mora

A. Mora — Parte II

A moral, opondo-se à ciência, que é a teoria do que é — é a teoria do que deve ser. O próprio facto, porém, de existir uma teoria do que deve ser, conduz, já de si, a uma conclusão. Como surgiria a teoria de alguma coisa que deve ser? Pela insatisfação com o que é. Mas, a insatisfação com o que é, implica uma inadaptação ao meio; e, uma inadaptação ao meio implica uma morbidez.

(?) Conclui-se, portanto, que o senso moral é essencialmente mórbido, porque é mórbido na sua origem.

O mesmo, porém, acontece com a filosofia, que é a teoria do que é. Para quê uma teoria do que é, se o que é existe, sem teorias? É que o que é não é inteiramente compreendido por nós; e, portanto, para nós, não é inteiramente. Por isso nos aplicamos a querer inteiramente compreendê-lo.

Pelo que provei na primeira parte deste livro, pode já calcular-se qual o valor desta especulação. Procurar compreender o mundo é, já o vimos, uma frase desprovida de sentido; e já vimos também, complexamente, porque o é. Ilegítima, portanto, como procura da «verdade», qual é o papel da actividade filosófica; e que relação tem com ela a actividade propriamente científica?

Demonstrabilidade de como a evolução se faz (a envolve) por uma espécie de degenerescência do estádio anterior, de uma decadência. O orgânico é uma doença do inorgânico, porque implica um devir das suas leis; o social é um desvio do orgânico, do zoológico; porque — ut supra — a essência da actividade social consiste, causadamente em uma inadaptação ao meio. A subsistência, porém, implica uma nova adaptação; portanto o que há é qualquer violenta (especial) desadaptação que envolve a necessidade de um esforço adaptativo tão violento que gera um novo método adaptativo. [...]

1914?

Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993).

- 222.

Page 3: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

António Mora

A. Mora — princípio da parte II.

A. Mora — princípio da parte II.

Assim como a especulação filosófica (teórica) parte forçosamente dos dados elementares do conhecimento, que são o sujeito e o objecto, e a consequente relação entre eles; assim a especulação prática parte dos dados elementares da vida, que são o organismo e o meio e as consequentes relacaões entre eles. A especulação teórica abrange as partes todas da experiência; a especulação prática abrange apenas aqueles factos da experiência (...)

(Como é que «Verdade», a Realidade, em um caso, corresponde a vida, em outro?)

A religião é uma metafísica vital, a ciência da utilidade.

s.d.

Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993).

- 162.

António Mora

Alberto Caeiro é um primitivo contemporâneo.

Alberto Caeiro é um primitivo contemporâneo. É quem sabe dizer-nos quem é a Natureza e como é que ela se sente.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

- 404.

António Mora

Alemanha [a]

Alemanha

O amor da pátria e o escrúpulo da verdade são, de ordinário, amigos que bastas vezes se desavêm. Digo que são amigos, porque são — ambas as coisas — sentimentos de feição altruísta. Digo que bastas vezes se desavêm, porque o que mais custa é querer encarar a verdade em assuntos onde a verdade pode ferir.

Precedo este opúsculo de considerações, como estas, porque vou nele defender uma tese que não só vai contra a opinião da maioria dos meus compatriotas — o que seria de importância mínima —, mas — e é isto que deveras importa — contra os próprios interesses da minha pátria. Como, porém, eu creio que a verdade se deve dizer sempre, escrevo sem hesitação este opúsculo. Ainda se eu julgasse, com estulta incompetência de compreensão, que ele poderia ter qualquer efeito sobre as decisões dos meus compatriotas, talvez o não publicasse. Mas a triste situação, entre nós, dos homens que pensam, de fazer obra inteiramente desaproveitada, fazendo arte sem querer, faz com que me não demore um momento em considerar os inconvenientes de escrever este opúsculo.

Além d'isso, cumpre que se observe que podemos perfeitamente combater um homem ou uma nação, cuja razão em nos ser inimigo reconhecemos. Por isso eu não peço, nem sugiro sequer, que Portugal seja

Page 4: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

neutral nesta guerra. De modo algum encaro o problema sobre o ponto de vista português, que é insignificante, deveras, na acção vasta d'esta guerra. Procuro neste opúsculo justificar a Alemanha, dar-lhe razão nesta guerra; procuro fazê-lo porque estou convencido de que ela tem razão.

O meu procedimento é o d'um pensador, não o d'um patriota. Nenhum homem de pensamento pode proceder como patriota em Portugal contemporâneo. O destino da nossa terra está nas mãos de homens de mentalidade de escravos que se encontram dominadores, de cristãos disfarçados de espíritos-libertos, de gente que, do mando, nem sequer tem a clareza de alma para mandar. Nenhum homem superior pode colaborar na obra nacional. O único escrúpulo do português, hoje, deve ser fazer obra para a civilização em geral, tentando a única coisa possível — levantar a sua Pátria no conceito da Europa pelo alevantado dos pensamentos, pelo novo e justo dos conceitos que põe em escrito. Esta obra, por isso, é destinada, não aos portugueses em geral, que a não saberiam compreender, dizendo-a apenas, quiçá, de um espírito vendido à Alemanha; ela destina-se a esclarecer, no espírito de quantos se achem interessados por compreender os problemas que esta guerra levantou, qual seja a significação profunda das forças aparentemente cegas que se degladiam agora na vasta arena do nosso continente.

Ela não visa a outro fim.

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

- 151.

António Mora

Alemanha [b]

Al[emanha]

A cultura alemã é tão cosmopolita como a francesa. Só que a c[ultura] f[rancesa] é centrífuga, e centrípeta a alemã. O alemão elabora e utiliza para si elementos de todas as culturas. O francês não utiliza esses elementos de outras culturas...

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

- 152.

António Mora

Aqueles que, como o sr. Boutroux, abrem uma oposição entre a cultura alemã…

Aqueles que, como o sr. Boutroux, abrem uma oposição entre a cultura alemã e a cultura greco-romana, laboram em erro. Não vêem o que seja a cultura greco-romana realmente, sob a aparência falsa que lhe deu o humanismo moderno, vendo-a através das suas próprias, desvirtuadoras tendências. O característico principal da cultura clássica era a noção concreta da realidade, a subordinação do espírito individual à fenomenologia geral da Natureza. Ora a cultura alemã tem, precisamente, por tema a subordinação do indivíduo à realidade. Idêntica resulta, portanto, nos seus fundamentos, à cultura greco-romana.

O humanismo serviu-se da cultura greco-romana (da grega, primacialmente) como factor individualizante, não indo buscar a essa cultura seu principal e íntimo sentido, senão sua utilidade imediata para combater o que lhe parecia útil que se combatesse, o que era, no lance, o espírito da Igreja.

Page 5: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

Não considero a cultura alemã, an sich, como o ideal da cultura que é precisa hoje. Acho-a viciada na sua origem por elementos claramente cristãos, quais os que lhe ficaram da infiltração kantista, centralizadora, no modo cristão, da realidade do mundo na alma humana.

Considero-a, porém, como um passo dado para essa cultura, pois que ela representa uma reacção nítida contra a atitude cristã.

Na frase-mestra de Treitschke, Freiheit durch Einheit, «a liberdade pela unidade», está entendida a útil evolução da nossa civilização outra vez para o eterno ideal grego. Primeiro assegurar a Unidade, para, através de ela, se poder elaborar seguramente a Liberdade. Esta fórmula do historiador tudesco aplica-se, eu bem sei, propriamente a fins germânicos. Mas de ela guardo a intuição, e deito fora a aplicação próxima e intencionada.

Unificar a civilização europeia contra o ideal cristão, para depois, quebrando-a, ela se quebrar tendo já no fundo a disciplina pagã.

Eu não admiro, em si, a cultura alemã, senão muito secundariamente. Mas admiro nela o passo preciso dado para a repaganização do mundo moderno; na derrota d'ela eu vejo, lastimando-me, falhada outra vez a recondução da cultura europeia para o ideal clássico, na sua realidade fundamental, que o cristismo fez que abandonássemos.

Não considero a cultura alemã útil como um fim, mas sim como um meio — meio para se poder chegar, embora dolorosamente e castigadamente, outra vez à cultura clássica. Não pensam assim os alemães, é certo. Nem o poderiam pensar. Não cabe no poder de previsão d'um povo o conhecer os destinos últimos da sua ideação para a transformação do grupo civilizacional a que pertence; só através d'uma ideia nacional essa obra se pode realizar. É a última ilusão, antes que a realidade chegue.

Era preciso unificar a Europa moderna para que ela pudesse querer cindir-se nas suas pequenas forças — reconstruindo assim a cidade-estado dos antigos —, e para que pudesse fazê-lo sem desorganizar profundamente as almas individuais.

Só através do domínio alemão da Europa eu podia sentir esperança no futuro da Europa. A derrota da Alemanha não é o fim da Europa, por certo; não o é proximamente, pelo menos. Mas é a falência da última tentativa, inconsciente talvez, para reconduzir a nossa civilização àquele ponto clássico d'onde ela não devia ter saído, e d'onde o cristianismo, como uma feiticeira, a desviou.

A Alemanha teve a segura intuição da sua missão espantosa. Errou-lhe o sentido último, como não podia deixar de o errar. Nenhum povo pode agir desinteressadamente, sabendo que o fim da sua acção será beneficiar a civilização geral, com desproveito de si-próprio, no que potência e império. Mas, sem chegar a este apuro, pode um povo ter nítida a noção de que tem de fazer tal coisa, que no fim nisso redundará; essa intuição teve a Alemanha contemporânea. Concebeu essa missão como uma missão imperialista nacional, estreitamente. Era fatal que assim fosse. A Grécia antiga, consciente como nenhum povo e proeminentemente culta, nunca teve com a esperada clareza a noção de que o seu papel civilizacional era de pura cultura, de pura libertação dos espíritos e não de domínio material. Caiu no imperialismo, finalmente, como toda a fraca humanidade tem de cair.

Por isto tudo eu, que sou um individualista, prezo a cultura alemã, e desejaria a sua vitória nas armas, ainda que fosse contra a minha própria pátria; pois que não vejo outro caminho aberto ao individualismo disciplinado, como o dos gregos, do que o do domínio da Europa por um povo forte, esmagador, que criasse, ao mesmo tempo que uma reacção contra o seu domínio (por onde se afirmariam vitalidades nacionais, e se conjugariam, formando uma Europa unida) uma reacção disciplinada e fecunda (que outra resultaria frouxa e sem resultado), e, também, uma reacção contra aquelas forças fracas do passado que conduziram ao n[osso] individualismo de hoje, débil, frágil, cristão.

Se me perguntardes que simpatia filosófica sinto pela cultura alemã, responder-vos-ei, que pouca. O meu ideal é pagão e clássico. Por isso me são obnóxias as culturas contemporâneas, tanto a germânica, como as outras. Nenhuma d'elas corresponde, senão em pequeníssimas e inutilizadas partes à cultura clássica que sigo. Mas, de todas as culturas contemporâneas, eu vejo que a alemã é aquela que abre caminho à passagem possível da cultura clássica. Raia n'ela a noção concreta da realidade substituindo a noção abstracta e idealista d'ela. É pouco, mas basta-me, para indicar que por ali é que é o caminho. O resto é anti-clássico, mas abre, como disse, o caminho à passagem do classicismo.

s.d.

Page 6: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

- 150.

António Mora

As ficções da memória seguem as características do mundo externo,

A. Mora:

As ficções da memória seguem as características do mundo externo, de que são a reprodução mais ou menos exacta. Caracteriza o mundo externo a exterioridade espacial e temporal, a pluralidade do conteúdo, e a sujeição a uma lei. [...] Caracteriza o mundo da imaginação a exterioridade não-espacial e apenas conscientemente temporal, o indefinismo unificado no conteúdo, e a ausência de lei aparente. Caracteriza o mundo da abstracção a não-exterioridade de seus conceitos, a pluralidade abstracta do seu conteúdo, e a sujeição a uma lei racional porque imanente (raciocínio) nos conceitos em que impera.

1916?

Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968.

- 209.

António Mora

As ideias abstractas são apenas elementos...

A. Mora:

As ideias abstractas são apenas elementos de que uma individualidade com um sistema nervoso superior carece para poder viver. Erigir essas ideias em coisas (como faz Platão) é transformar um elemento pragmático em uma entidade concreta.

À categoria das ideias abstractas pertencem as noções matemáticas e a ciência matemática portanto. (Platão caiu no erro em que cairia um matemático que, após servir-se de um x e de umy para a solução de um problema prático, erigisse esses sinais úteis mas irreais em coisas , só porque tinham representado sem erro o seu papel pragmático de lhe servirem para um fim determinado). A matemática é então «falsa»? Não é nem falsa nem verdadeira. É simplesmente útil. Porque é útil é verdadeira em relação àquilo para que serve. A matemática é a ciência das coisas consideradas apenas numericamente. As coisas podem, com efeito, ser consideradas numericamente, porque há um (incerto) número delas. Mas as coisas são mais do que isso. A matemática é «verdadeira» porque as coisas são «verdadeiras», e elas incidem sobre um aspecto — o numérico das coisas. Do mesmo modo são «verdadeiras» as outras ciências todas, desde a física até, naturalmente à astrologia. ( 1 )

( 1 ) A numerologia ou aritmética em todos os tempos querida dos místicos, por ser todo o aspecto de uma ciência e toda a abstracção de uma metafísica.

A ideia de ciência — a estudar isso.

1912?

Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993).

- 94.

António Mora

Page 7: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

ATHENA - cadernos de cultura superior.

(tipo “Mercure”)

Nº 1:

1. Manifesto a favor da Alemanha, e do seu procedimento na guerra presente…….. - António Mora.

2. O Guardador de Rebanhos - poemas de Alberto Caeiro.

3. Introdução ao estudo do problema nacional - Fernando Pessoa.

4. Ésquilo - Prometeu Preso - vertido no grego por Ricardo Reis.

5. Notas e comentários.

_______________________________

Nº 2:

1. A Guerra - estudo sociológico - Fernando Pessoa.

2. Odes - livros I e II - Ricardo Reis.

3.…………(some new collaborator)

4.…………(some translation)

5. Notas e comentários.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

- 238.

António Mora

ATHENA - Cadernos de Reconstrução Pagã.

ATHENA - Cadernos de Reconstrução Pagã.

Cada caderno de 64 a 128 páginas. Preço: 300 reis (?)

Director: António Mora. Publicação irregular.

_______________________________

Primeiro Caderno:

Prefácio - António Mora.

Guardador de Rebanhos - Poemas - Alberto Caeiro.

Odes - Liv. I e II. - Ricardo Reis.

O Regresso dos Deuses - Estudo - António Mora.

_______________________________

Segundo Caderno:

Introdução ao Estudo da Metafísica - António Mora.

_______________________________

Terceiro Caderno:

O Pastor Amoroso - Poemas - Alberto Caeiro.

Odes - Liv.III. - Ricardo Reis.

Milton superior a Shakespeare - António Mora.

_______________________________

Page 8: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

Quarto Caderno:

Ensaio sobre a Disciplina - António Mora.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

- 236.

António Mora

Athena. - Como esta publicação se destina à estampa de obras definitivas,

Athena.

Como esta publicação se destina à estampa de obras definitivas, quer sejam estudos de especialidade, completamente feitos, quer alinhamentos de séries de poemas, formando um conjunto definido, ou digamos, dramas ou novelas completos, à sua saída forçosamente se não pode, por enquanto, determinar um período certo. Seria, por certo, não só útil, senão que, também, conveniente, que uma regularidade qualquer se pudesse estabelecer para esta revista; mas por enquanto tal não é possível. Do auxílio acentuado do público ledor provirá, esperemo-lo, esse resultado.

Neste número estampámos já trabalhos, dos quais se pode garantir que, no seu género, além de completos, são originais. Assim, qualquer dos estudos sociológicos, o do dr. António Mora, em defesa da Alemanha - sem dúvida o mais completo estudo sobre este ponto difícil da sociologia; ou o do sr. Fernando Pessoa, versando os aspectos capitais do nosso problema nacional. Importante é, também, porque chame nossa atenção verdadeiramente para uma acurada interpretação da arte grega, a tradução que do «Prometeu» de Ésquilo, aqui insere a competência firme do sr. Ricardo Reis, assim-como, mais do que tudo, a revelação poética que consiste na publicação dos poemas novíssimos do sr. Alberto Caeiro.

Como esta publicação - em condições assim tão completas de originalidade e competência - apraz-nos crer, não tanto com ousadia como com confiança - nenhuma outra em Portugal se tem feito. A mesma «Revista de Portugal», que Eça de Queirós dirigiu, não versou, digamo-lo com franca convicção, tão profundamente e originalmente os vários pontos de arte e de pensamento que é de uso estas revistas tratarem.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

- 239.

António Mora

Benvindos sejam eles, que em sua seiva viva, rejuvenescem…

Benditos sejam eles, que em sua seiva viva, rejuvenescem o corpo gasto da nossa duvidosa literatura. Eles trouxeram para o sórdido festim da consciência nacional o aprazimento florido dos seus manjares novos. Foram recebidos como truões que se quisessem intrometer no séquito de um enterro, e enterro deveras parece esta fúnebre marcha de títeres tristes que é o deslizar diário da nossa vida nacional.

Ninguém os pôde apreciar. Crítica, não a há. Cultura, não (…)

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

- 231.

António Mora

Page 9: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

DISSERTAÇÃO SOBRE O ARTIFICIALISMO

1. O Conceito de Artificial. — Definir o conteúdo do termo civilização é empresa intelectual tão difícil como outra qualquer, e às dificuldades naturais de todo o definir acrescentam-se, aqui, as que promanam de se procurar esclarecer um ponto da mais complexa das ciências, a sociologia.

O exame das opiniões sobre o assunto elucida pouco salvo no que parece resultar da síntese d'elas. Somando as várias opiniões do que seja civilização, verifica-se, não certo fundo comum, mas certa divergência explicável.

É preciso não confundir os meios com que se obtém a civilização com a própria civilização que se obtém. Os meios com que se obtém a civilização são três: (1) o domínio da natureza pelo homem; (2) o domínio dos animais pelo homem; (3) o domínio do homem pelo homem. Como, porém, o domínio da natureza pelo homem é feito pela utilização e o conhecimento das leis porque essa natureza se rege (non nisi parendo vincitur); como o domínio dos animais pelo homem igualmente se baseia no conhecimento prático — e portanto, no fundo, científico, posto que empírico — da utilidade de esses animais; como o domínio do homem pelo homem não vale senão quando se estude a melhor forma de aproveitar a humanidade — resulta que, no fundo, o meio de produzir a civilização é o domínio das leis naturais, a utilização d'elas, pelo homem.

O domínio das leis naturais implica o conhecimento d'essas leis. O domínio da natureza inorgânica, dos animais, e dos homens, implica o conhecimento da natureza inorgânica, dos animais e dos homens. Implica (...)

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

- 153.

António Mora

Dos erros que consistem em atribuir à Consciência…

Dos erros que consistem em atribuir à Consciência as qualidades da Realidade, o principal e mais grave é aquele que, sobretudo desde Kant, corre na filosofia como o seu insofismável princípio basilar - o de que a Realidade existe, senão apenas, por certo que primariamente, através da Consciência. Mesmo na forma simples que é dada a esta afirmação por Condillac - de que, façamos o que fizermos, por alto que subamos ou baixo que desçamos, nunca saímos de nós-próprios e das n[ossas] sensações-, mesmo nesta forma, repito, este princípio representa um erro. O género de erro, já o disse: consiste em atribuir à Consciência (e até à consciência individual) os atributos próprios da Realidade.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

- 227.

António Mora

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA METAFÍSICA

Quando tomamos o espírito por uma coisa real, ipso facto o consideramos matéria, isto é, lhe damos um lugar que pertence àmatéria.

A nossa noção de realidade é da matéria, do Exterior, que nos vem.

De que ordem é, porém, a ideia que temos do nosso espírito? Não temos nós a noção de que ele é real, de que existe? Temos. Nem podemos dizer que essa noção nos é dada como sendo realidade do nosso corpo. É-nos então dado como real o nosso espírito? (Talvez que só o nosso, e não o dos outros.?)

Page 10: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

Reparemos em que o Exterior, para nós, é dado pelo nosso espírito. Mas o nosso espírito, ao mesmo tempo, não nos é dado senão pelo Exterior. Se assim não fosse teríamos na Infância — isto é, antes de ter uma longa experiência do Exterior — tão nítida consciência de nós como na idade viril.

E do nosso grau de consciência do exterior nasce o nosso grau de c[onsciênci]a do interior. Shakespeare é, a par de um psicólogo superior, um genial [?] pré-consciente.

Qual a solução portanto? Que o nosso espírito é que cresce,da infância para a adultidade, e o mundo exterior (o problema invertido) cresce com ele e por ele? É uma hipótese.

Note-se, porém, o curioso facto de a criança se referir a si própria na 3ª pessoa quando já clara consciência tem do Exterior. Isso o que significa?

A nítida consciência do Interior não partirá de quando começa a ser científica (por assim dizer) a consciência do Exterior?

Mas o Exterior só podia ser dado como Exterior se alguma coisa o desse como tal. Sem o Interior não podia haver noção do Exterior. Mas o Interior é por isso dável como Real? Ou comoReal de outra maneira, pelo menos?

Na criança há consciência. No instinto há consciência. Mas são — claramente se vê — formas impessoais da consciência.Quando, na sua última «realidade», a Consciência, na síntese da Matéria e Realidade, é inindividual.

A matéria é constituída por objectos, coisas... A C[onsciênci]a não o é. Só o conjunto (por assim dizer) da C[onsciênci]a é «real»; na matéria o conjunto não é real, não há conjunto; há partes, objectos apenas.

A ideia de que há um Universo, um conjunto da matéria, é uma aplicação à Matéria do característico da Consciência.

A Metafísica é um erro, e sempre o será; porquanto, sendo a metafísica a teia de relações entre Sujeito e Objecto, ou melhor, entre O[bjecto] e Realidade, o «facto» é que entre a Consciência e a R[ealidade] não há relação.

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

- 251.

António MoraINTRODUÇÃO AO ESTUDO DA METAFÍSICA - Prefácio

Prefácio:

É próprio de todas as épocas — sobretudo se se sabem cultas — julgar que tocaram um limite. Volvem os olhos ao passado e parece-lhes que tudo já foi dito; trazem os olhos ao presente, e parece-lhes que já tudo se estudou. O que falta fazer parece-lhes que é ou a tarefa quotidiana da ciência, nada revelando que dê novas ao espírito, ou o trabalho paciente da erudição, somando parcelas conhecidas ou inúteis de se conhecer. N'essas épocas, em verdade, parece ter-se tocado o extremo do conforto, da ciência possível, da erudição aproveitável. E mais um modo que se descubra de facilitar a vida, mais um detalhe que se acrescente ao que sabemos da superfície dos seres, mais um manuscrito que se encontre nos recantos de um repositório inexplorado — por certo que nenhuma d'estas coisas trará novas visões, inverterá o especial sentido da realidade e da vida que se atingiu.

Triste é a alegria d'estas épocas, e falsa a sua segurança. A sua alegria é triste, como não tarda que soe nos cantos dos seus poetas, porque nenhuma concessão mais grata à alma nos fez a misericórdia dos deuses (do Destino) do que a de mudar e de variar. E a sua segurança é falsa, porque nunca se chega a um limite, nunca se esgota a novidade, e há sempre novos caminhos por onde abra a marcha renovada quem nasceu com o dom de os encontrar.

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Aos gregos, que parecera haverem dito tudo, escapou pensarem como Kant. Veio este — não importa se errou ou acertou — e um livro seu mudou a face às coisas. Com ele vieram poetas e prosistas que deslocaram o sentido da Vida e da Realidade. E, ou acertassem ou não, ou se aproveite ou não o que fizeram, certo é que trouxeram a uma civilização que parecia nada ter que mudar no seu espírito perante as coisas, um novo ponto de vista, uma nova maneira de visão, a que o ser talvez errónea, ou o ser quiçá doentia, não arranca ser inteiramente nova e inesperada de todo.

Assim nada descansa, e acontece sempre o que não se espera. Surgem novos pensamentos. Novos cantos sobem aos céus. E é privilégio de certas épocas, em geral cansadas e adoecidas, ver aproar à sua consciência naus carregadas de especiarias ignotas ainda.

Este erro usual acontece mais do que a nenhuma época àquela que as nossas vidas atravessam. Mais do que nenhuma outra ela é, deveras, educada na ciência e na erudição. Porque chegou a certo grau de decadência, e lhe rareiam poetas, filósofos e chefes, parece-lhe que já tudo foi cantado, que já tudo foi pensado, que já tudo foi levado a um fim. Não concebe o que de novo lhe viria trazer um novo Poeta. Não lhe cabe na imaginação qual possa ser — em que sentido — a obra importante de um novo Filósofo. E como esgotou as teorias em política, e as perturbações na vida social, tão-pouco concebe que um Guia apareça que dê a tudo um novo sentido e um inédito caminho.

Como ao mesmo tempo que são cultas e eruditas, essas épocas são decadentes, e como, por decadentes, lhes não sobram poetas nem pensadores, este facto, que se soma ao sentido da vida que a sua larga erudição ensina, mais lhes parece indicar que nada de novo e de grande se poderá produzir na arte e no pensamento, visto que, de feito, sob seus olhos, ali, nada de novo estão produzindo os poetas e os pensadores.

Falo mal, dizendo de uma época «ela pensa», «ela vê». Quem vê e pensa estas coisas, que, abstraindo, atribuo à época, são os seus espíritos superiores e educados. Na ralé intelectual é de uso dar-se o fenómeno oposto. Aí todo o boticário do pensamento lhes parece um Platão ou um Aristóteles, e os improvisadores de fados têm a sua hora de Dantes...

O resto dos que vivem n'essas épocas não interessa ao nosso assunto. Um povo ou indiferente ou agitado, sem coerência nem disciplina, sem norte nem afinco, escravo dos seus imperadores ou dos seus tribunos, sem saber o que quer ou o que faz, estorvando tudo e tudo (...) pulula, vermes que se agitam na sombra.

Mais do que em outra disciplina, na filosofia se nota, nas épocas cujo quadro venho traçando, essa impressão de que acabou a novidade e de que nada de novo pode haver. E a razão não está longe da nossa busca. Nos outros elementos da vida social muitas coisas se chocam e muita gente entra. Na filosofia poucos são os que se interessam e portanto é fácil ver qual a sua orientação geral em tal período, conhecer os seus cultores mais importantes, traficar com os seus professores de mais saber. E como se trata de uma ciência que não é de observação ou de pesquisa, onde novidades podem conceber-se como surgindo de chofre — se bem que se não concebam de grande vulto —, aqui, porque se trata de uma ciência que é só do pensamento e que cada qual, de certo modo, pode praticar a sós consigo, é fácil de se supor que, meditando bem, se podem classificar todos os sistemas possíveis e delinear todos os caminhos por onde se pode seguir. O que feito, e feito com escrúpulo, nada parece poder aparecer em matéria filosófica que represente uma surpresa ou uma novidade.

A nossa época, mais do que nenhuma outra, possui esses característicos. Mais do que nenhuma outra acumulou cultura e erudição, e mais do que nenhuma outra viu bem o passado e lhe sondou as riquezas.

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

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António Mora

INTR[ODUÇÃO] AO ESTUDO DA METAF[ÍSIC]A

Princípios basilares

1. Há só duas realidades: a Consciência e a Matéria.

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2. A Consciência é para nós incognoscível; só podemos saber que ela é consciência. Mas não é só isto. Não pode ser conhecida, não há que haver conhecimento dela. Aquilo a que se chama «conhecimento» é uma coisa que só se pode ter do mundo exterior. Conhecer uma coisa é apreendê-la sob quantos aspectos ela comporta sob os nossos sentidos. Não pode portanto haverconhecimento da Consciência; porque, mesmo que conhecimento signifique propriamente consciência, não há consciência da consciência, por muito que pareça que a há. A consciência é.

3. O mundo-exterior é real como nos é dado. As diferenças que há entre a minha visão do mundo e a dos outros é uma diferença de sistemas nervosos. Os sistemas nervosos são partes dessa realidade exterior. (...) A ciência estuda — não as leis fundamentais do mundo-exterior, ou Realidade, porque não há leis fundamentais do mundo-exterior: ela é a sua própria lei — mas as normas segundo as quais os fenómenos se manifestam, isto, não com o fim de saber, mas com o fim de utilizar para nosso conforto e proveito os «conhecimentos» adquiridos.

4. Toda a filosofia labora num p[rimeir]o erro que consiste fundamentalmente em atribuir à Matéria qualidades que nos vêm de analisar ou «ter consciência» do nosso espírito, e num segundo erro maior que consiste em atribuir ao (nosso) espírito, à Consciência em geral, qualidades que provêm de termos cada um um psiquismo; o que afinal depende de termos, cada um, um corpo. A filosofia é um antropomorfismo em todos os sistemas; atribuímos à Natureza as qualidades que nós temos — ter um todo,como nós; etc. E a espontânea atitude poética de atribuir sentimentos aos rios, às pedras, etc., provém precisamente do mesmo antropomorfismo fundamental do nosso espírito.

5. Quanto mais a evolução se complica mais complexo e nítido vai sendo o nosso senso da Realidade. Ela é cada vez mais real, mais material. Se a «espiritualidade» importa um apagamento do senso das coisas, nada há tão espiritual como uma amiba, e um pargo ou uma pescada têm vantagens espirituais sobre o homem. O espiritualismo, o idealismo são estados regressivos da mentalidade humana; como que saudades de épocas pré-humanas do cérebro em que o Exterior era menos complexo. A tendência espiritualista ou idealista é uma incapacidade de arcar de frente com a complexidade da Natureza.Querer simplificar a Natureza é querer ter dela um sentido de peixe ou de invertebrado mesmo.

6. Querer encontrar às coisas um íntimo sentido, uma «explicação» qualquer é, no fundo, querer simplificá-las, quererpô-las num nível em que caiam sob um sentido só — o que aconteceu em épocas idas a bichos nossos antepassados pouco abundantes de sentidos.

7. A função própria da inteligência é servir a vida. O emprego da inteligência, em filosofar, só pode ter, pois, legitimamente, um qualquer sentido utilitário. (Querer descobrir a verdade pode ter um fim utilitário no conceito religioso de querer saber qual deve ser a nossa conduta, para obter o paraíso, por ex.). A Ciência deve servir a vida. A arte tem por fim repousar o espírito. É o sono das civilizações. A filosofia entra na categoria da arte. — A filosofia foi primeiro uma «ciência»: tinha por fim descobrir a verdade para o fim utilitário de nos governarmos na vida; porque, se se julga que há uma vida futura, com castigos e recompensas, não é por certo pouco importante saber-se o que se deve fazer para evitar uns e merecer outros. Hoje a filosofia deve passar a ser uma arte — a arte de construir sistemas do Universo, sem outro fim que o de entreter e distrair, publicando belos sistemas.

8. Todos os sistemas filosóficos devem ser estudados como obras de arte. (Nenhuma arte é feita com o fim de entreter, mas é para isso que ela serve. O artista toma o seu papel mais a sério (...)

9. A Vida não tem sentido nenhum.

10. A Beleza não existe. É um modo de repouso do espírito. O espírito, à medida que aumenta a sua actividade, busca novos modos de repouso. A arte é o mais elevado deles.

11. A maioria das manifestações, a que é uso chamar superiores, do nosso espírito, são realmente regressos doentios a estados de consciência anteriores à humanidade. Já se mostrou que o sono dos faquires é uma regressão ao sono hibernal de certos animais. — O domínio do corpo, que os ditos «iniciados» índios e outros pregam, mais não é do que um desvio da inibição. Ex.: O normal seria dominar o corpo pelo corpo — como na grande criação científica do sistema ginástico de Lings.

12. Todas as manifestações do espírito humano passam por três períodos — no primeiro, elas, rudimentares então, são um modo de procurar repouso e variedade; no segundo, são um modo de procurar repouso ainda, mas buscando-o não já pelo sossego dos sentidos, senão que pelo sossego dos sentimentos; no terceiro período, procura-se ainda obter repouso, mas então o processo é procurar sossegar a inteligência. O espírito humano evolui do simples para o complexo, e é preciso notar que o clássico é que é o complexo e o romântico é que é o simples. — Na arte, exemplificando: o primitivo, que

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vive só de sentidos, ou predominantemente dos sentidos, busca com a sua arte rudimentar, repousar da vida entretendo os sentidos com cores vivas, ruídos violentos, movimentos excitantes; o homem que avançou mais um passo, e é já civilizado, procura, porque criou sentimentos definidos, sossegar esses sentimentos, entretê-los, e entretê-los é dar expressão ao seu conteúdo; o homem chegado ao limite do seu desenvolvimento criou já um estado definido de inteligência, e esse procura sossegar a sua inteligência não já dando expressão a sentimentos ou satisfazendo as rudimentares exigências dos sentidos, mas (...) No terceiro período atingiu-se a plena abstracção, isto é, o poder pleno de medir uma coisa intelectualmente (...).

Com os gregos nasceu a ciência propriamente dita, o espírito científico, a mentalidade superior. Antes disso bastava, ao fazer filosofia, criar um sistema que não se contradissesse a si próprio; depois passou a ser preciso criar um sistema que não contradissesse os factos. Os factos nasceram na Grécia.

Só na Grécia é que a filosofia começou pròpriamente a separar-se da religião; a não buscar, portanto, satisfazer os nossos sentimentos, mas a noção das coisas.

1915?

Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993).

- 7.

António MoraMas o problema essencial da democracia moderna…

Mas o problema essencial da democracia moderna está na maneira como se hão-de conciliar o princípio democrático, que, seja porque razões seja, se tornou necessário às sociedades modernas (e talvez, se virmos bem, a todas as sociedades) e aquele princípio aristocrático que evidentemente constitui a base de tudo quanto seja orientação e governo.

O que há de mais interessante na dificuldade de resolver este problema é que as soluções têm constantemente sido procuradas fora da esfera onde elas devem estar; há outro detalhe mais interessante ainda, que é que a solução, que se procura, já fora encontrada. E, a não ser essa a solução a aplicar, não há outra possível que não seja no mesmo género.

Essa solução é a religião cristã; aí se encontram, unidos, de seu início, os sentimentos aristocrático e democrático (popular). O livre-pensamento moderno, com o seu feitio dogmático e categórico, herdado que foi do pior dogmatismo religioso, nunca podia encontrar esta solução, porque, não sendo realmente livre-pensamento não a podia procurar. O livre-pensador parte do princípio que tem de encontrar a solução para esse (como para qualquer outro) problema fora da religião: assim a sua liberdade começa por um dogmatismo. O livre-pensador exclui um elemento social (a religião) ao procurar resolver problemas sociais; nunca pergunta a si-próprio se a solução não estará acaso nesse fenómeno religioso, que arbitrariamente excluiu. A sua orientação nem sequer é decentemente sociológica. porque procura sempre soluções sociais desprezado um elemento social, não quero já dizer importante (ainda que sem receio o pudesse afirmar) mas pelo menos existente, e que durante séculos foi predominante.

Não há diferença na atitude sociológica de um Bossuet da atitude sociológica de qualquer livre-pensador moderno. Para um a religião domina tudo, e tudo quanto existe é subordinado a um critério religioso; para o outro a religião não importa nada, e nada do que existe depende de uma possível verdade religiosa. Qualquer dos critérios pode ser metafisicamente certo; o que se não pode negar é que qualquer deles é - e ambos da mesma maneira - sociologicamente falso. Herbert Spencer, se virmos bem, é de um dogmatismo que só não deliciaria Bossuet porque é ao contrário do dogmatismo de Bossuet.

Quando nós encaramos o problema religioso pelo critério sociológico, nós devemos contar (para sermos imparciais realmente) com a possibilidade, que os nossos maiores admitiam como realidade, de que o fenómeno religioso fosse especial e dominasse tudo. Porque afasta o sociólogo, sem mais pensar, esse critério do seu modo de estudar os fenómenos sociais?

Pensa ele, bem o sabemos, que a ciência não pode admitir uma supremacia religiosa; admittir isso seria, para ele, violar a atitude da ciência. Não repara ele, porém, que, assim agindo, não fez senão substituir a ciência à religião. Ele, subordinando tudo a um critério científico, o que faz senão subordinar tudo à

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ciência? E em que difere esse fenómeno da subordinação de tudo à religião, que caracterizava a attitude dos nossos maiores, senão em que num caso se trata de ciência, e no outro caso se trata de religião?

Há na ciência qualquer princípio, qualquer fórmula determinante, que torne essencial essa subordinação? A ciência parte do princípio que tudo são factos, a religião como qualquer outro; por isso, diz ela, sem parti-pris contra a fé, mas também sem parti-pris contra ela, estuda os factos do mundo imparcialmente. Sucede, porém, que a religião é uma coisa perante a qual se não pode ser imparcial; ou se é contra ela ou a favor dela. A religião diz que é o fenómeno supremo da terra; se a ciência a colocar ao lado dos outros factos, por grande que seja o respeito com que o fizer, já vai contra ela. A religião parte do princípio que o mundo é uma soma de fenómenos, mas que acima desses fenómenos, como fenómeno diferente deles, está a religião; se a ciência, ainda que brandamente, não aceita esta subordinação de tudo à religião, já não aceita a religião; direi mais, já a ataca, por que lhe nega precisamente o que ela tem de essencial, que é o ditar-se suprema sobre todos os factos e de uma categoria diferente deles.

É facil dizer-se, e é o que lembra, que nestas condições nenhuma ciência é possível. Porque, sendo as condições essas, a ciência teria, para poder prosseguir, que começar por criticar a atitude religiosa, por discutir preliminarmente a posição da religião no mundo. Para poder trabalhar naquelas condições em que hoje de chofre trabalha, devia a ciência começar por afirmar o seu direito a fazê-lo. Isto é, a ciência deve começar por uma discussão metafísica.

Mas, do momento que entramos no campo da especulação, passamos já, pelo próprio facto, do campo científico. Do ponto de vista metafísico, religião e ciência são duas atitudes metafísicas, a qualquer das quais não pertence, à priori, nenhuma superioridade sobre a outra. Qualquer delas quer envolver a outra, neste combate pela alma humana. A religião quer subordinar a ciência a si. A ciência quer colocar a religião no terreno dos factos. À priori, sem mais nada, a nenhuma assiste, para o que quer, mais direito do que à outra.

Das duas atitudes, que, vistos assim bem os factos, ficam metafisicamente com um valor igual, qual é a que presumivelmente deva dominar o espírito? Se assentámos que são duas atitudes metafísicas, não iremos empregar argumentos metafísicos sobre o assunto; porque não é esse o ponto que queremos versar, e, versado, indefinida seria a discussão.

Queremos apenas examinar qual seja preferível, sob o ponto de vista social, que tomemos para nosso guia. E, assim, se algum método empregamos, é um método antes científico do que outra coisa, porque buscamos apenas ver qual das duas atitudes - a científica ou a religiosa - mais nos serve como atitude social. Se são duas atitudes metafísicas, vimos, nenhuma preferência lógica pode determinar-nos seguramente por uma ou por outra. Empreguemos, pois, o único critério que nos resta, que é o da utilidade social. Terá esse uma resposta para as nossas dúvidas?

Um dos pontos capitais do problema deve resultar do exame comparado das actividades científica e religiosa num sentido especial. Explico melhor. Ambas essas actividades correspondem a necessidades humanas. Será, pois, segundo o critério social que vamos seguindo, superior aquela que mais liberdade deixar à outra para satisfazer os seus interesses.

A ciência, como se viu, integra a religião na categoria dos factos sociais; não por uma intolerância especial, mas é que a atitude científica não pode ser outra. Para isso, como vimos, ela tem inevitavelmente que atacar o princípio central da religião, que é o de que ela é superior às outras manifestações sociais, e injulgável por elas, por qualquer delas.

A religião deixa livre à ciência todo o campo dos fenómenos, proibindo-lhe apenas (e se o não fizesse, não seria a religião) duas ordens de coisas: que a integra, a ela religião, no domínio dos factos sociais como fenómeno; e que entre no seu domínio metafísico, discutindo os seus princípios. O segundo caso é fácil à ciência; por sua natureza ela não discute problemas metafísicos, por isso não vai criticar a religião nesse campo. O primeiro é mais difícil. Como se há-de constituir a sociologia, se se lhe levanta um obstáculo desta ordem? Quantos argumentos se façam sobre o assunto são especiosos; o facto é que neste ponto a religião limita a actividade científica. Bem sei que se pode sofismar o problema, dizendo que a religião se divide em factos sociais e factos metafísicos (por assim falar) e que são estes últimos que a ciência não pode investigar (o que aliás já se sabia). Mas uma religião é uma metafísica materializada, e não pode ser separado o seu conteúdo metafísico do seu conteúdo social, sem o que não seria uma religião, mas apenas um sistema de filosofia.

Resulta, pois, da nossa investigação, que tanto a ciência, admitida como princípio supremo, limita a religião, como esta, assim admitida, limita aquela. Mas a ciência, admitida como princípio supremo, limita toda a religião; e a religião limita apenas uma pequena parte da ciência, que é a ciência

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sociológica (e, ainda assim, não é seguro que limite toda essa ciência). A esta conclusão chegamos, pois: o critério religioso é mais liberal que o critério científico, visto que, ao passo que o critério científico procura tiranizar integralmente a religião, a religião não oprime senão uma diminuta parte da ciência.

(Permaneceu o conflito? É certo. Mas só um indivíduo muito ignorante pode julgar que há soluções definitivas na vida, que todo o problema tem uma solução.)

Outro ponto de vista há a empregar no estudo deste problema. Qual dos dois fenómenos tem mais importância a dentro da sociedade e da sua vida?

Historicamente, o problema não tem discussão possível. A religião data das origens da humanidade; ela sempre acompanhou a humanidade. A ciência, que, num grau pequeno e relativo, também sempre houve, pouco avultou na vida humana, pouco significou, antes da nossa época, na vida das sociedades.

Mas se o problema historicamente se resolve assim, de que outra maneira é que se pode conceber que ele se resolva em absoluto? Não avancemos, porém; não sentenciemos, desde logo, que ela é essencial à humanidade, por isso que sempre o foi. Não admitamos tanto; a solução do problema pode fazer-se sem essa concessão ao lado religioso do argumento.

A ciência é, de sua natureza, um fenómeno exclusivamente intelectual. Da atitude científica exclui-se toda a emoção. Os resultados da ciência não trazem consigo, salvo num restrito sentido estético, elementos emotivos. Ora, se há coisa constatada, é que a vida humana é predominantemente emotiva. Mas isso é a vida humana em geral. Acima dessa vida emotiva, paira - arte, ciência, filosofia - a vida intelectual dos homens; neste caso vida restrita a um escol a dentro das sociedades. A ciência, sendo apenas intelectual e mesmo no parcamente emotiva que é, reflexamente emotiva ainda assim, não satisfaz senão as necessidades intelectuais dos homens. Produz assim um resultado duplamente funesto, supondo que se adopte como critério social. Duplamente funesto: não chega às massas do povo, e, a dentro do escol, não satisfaz em cada homem senão parte da sua natureza, a parte intelectual.

Tal não acontece ao fenómeno religioso. Uma religião é ao mesmo tempo emocional e intelectual, por isso que, ao mesmo tempo que é uma dogmática e uma mitologia, é uma metafísica. Uma religião tem, de um lado, a missa, as festas, os cerimoniais seus; do outro os seus filósofos e os seus místicos. Por isso a religião dirige-se, ao mesmo tempo que à massa dos homens, ao escol entre eles. Ao mesmo tempo que satisfaz a emoção do sábio, dá-lhe repasto à sua inteligência. Como fenómeno humano, social, a religião é, pois, mais completa do que a ciência, mais equilibrada do que a ciência; mais humana do que a ciência.

A esta constatação outra se liga. Como conjuntos, as sociedades vivem da emoção; como indivíduos, vivem da inteligência, a capacidade de cada indivíduo para viver isolado dependendo, excluídas circunstâncias de excepção, do seu poder de pensar - seja esse pensamento o pensamento abstrato ou frio do cientista, o pensamento construtivo do poeta e do filósofo, ou o pensamento puramente emotivo do místico. Um fenómeno do género da ciência, dominando uma sociedade, desintegra-a, por isso que, não tendo carácter emocional, não pode ligar os homens, que só pela emoção se ligam. E há mais. Age sobre as massas, não eliminando-lhes a emoção, porque essa persiste sempre (porque se trata de homens e não de títeres ou abstracções), mas de uma de três maneiras, todas elas anti-sociais: diminuindo essa emoção (o que importa diminuir nas sociedades o poder de coesão de que a sua vitalidade evidentemente depende); deixando de pé só aquelas emoções em que não pode tocar (e essas são as emoções de ordem egoísta, como a estética), e estas, por existirem fracamente nas massas, tomam formas erróneas e absurdas, por isso que são de sua natureza aristocráticas, de onde resulta um abaixamento do nível não só emocional, mas também intelectual do povo, uma atribuição delle a si-próprio de atitudes mentais que não pode ter, e que em períodos sãos não procura ter, senão no seu nível, que é o religioso; e, finalmente, deixando numa liberdade maior aqueles instintos e emoções que, por fundamentais, nada pode abalar, se bem que os possa restringir e disciplinar. E daqui resulta que desaparece o freio «absurdo» da religião sobre os costumes e os instintos, e estes se desenfreiam, pois que, por «absurdo» que esse freio possa ser, o facto é que é o único que existe, porque é o único que age sobre as emoções.

A toda esta argumentação - que com facilidade poderia ser desdobrada em raciocínios multiplicadamente eficazes - poder-se-ia não responder, mas opor uma objecção relativa. É esta: o que acontece, então, ao amor à verdade, puro e desinteressado, do homem de ciência? o que é feito da liberdade do artista, de seguir irrestrito a sua inspiração? o que resulta para o filósofo, que queira construir o seu sistema livre do peso externo, e até interno, da fé popular e geral?

A esta objecção há duas respostas. A primeira é a dos factos. Nada há nas religiões que as tenha inibido de produzir grandes artistas, grandes homens de ciência, grandes filósofos. Dante não será um grande

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poeta? O livro de Cervantes será de um pigmeu, porque seja de uma época católica? Shakespeare resulta tacanho, porque seja católica a atitude do seu espírito, como qualquer pode ver, que queira dar-se a vê-lo? Que época produziu maiores filósofos - a nossa época, de plena liberdade de pensamento, ou aquelas em que pesava sobre os espíritos, quando não exteriormente, interiormente, o peso da religião? Com todo o respeito possível para com Comte e Spenser, eles serão, acaso, espíritos que se comparem com os antigos filósofos - Spinoza, Leibnitz. Além disso, a crítica da atmosfera religiosa produz maiores espíritos que aquela que se exerce no vácuo. Kant assim surgiu.

A desastrada argumentação que citaria para o caso as circunstâncias que oprimiram Galileu e Servet, esqueceria sem dúvida que estava confundindo o predomínio religioso com a falta de civilização. São dois factos que importa não confundir. Se nós víssemos que nesses tempos as penalidades criminais eram de uma suavidade enorme, que eram de uma leniência acentuada as sentenças dos juízes, e que ao mesmo tempo esses herejes aparecessem queimados, enforcados, mortos, seria então o caso de atribuir à religião uma culpa que ela efectivamente teria. Mas a religião defendia-se, como é natural, e defendia-se com as armas do tempo; com as mesmas armas com que se defendia qualquer estado. Hoje a um livro herético responde, pela brandura dos costumes do tempo, uma proibição dum bispo de que os seus diocesanos leiam; ao tempo, que era de crueldade em tudo, correspondiam os processos do tempo. Débil crítério têm, em matéria social, aqueles que não vêem estes factos.

A outra resposta é psicológica. Ela não faz, de resto, senão confirmar o que os factos ensinam. Nem podia deixar de assim ser. Quando se afirma que a fé prejudicará as investigações do cientista, as elocubrações do filósofo e a inspiração do poeta, fazem-se duas suposições arbitrárias: uma, que esse poeta necessariamente quererá escrever fora do âmbito dessa fé, esse filósofo explicar o universo em contradição com os princípios dessa fé, esse cientista investigar precisamente aquelas coisas que a religião proíbe, e que, vimo-lo bem, muito poucas são; outra, que esse poeta, esse filósofo, esse homem de ciência, não ousarão quebrar com esse peso religioso. Uma doutrina qualquer é grande não só pelo que produz directamente, como também pelo que produz indirectamente; tanto pelo que produz nos espíritos que domina, como nos espíritos que revolta contra si. Arguir-se-ia, talvez, que nenhuma religião pode desejar que contra ela se ergam. É certo, mas não se deve esquecer que este argumento é sociológico não religioso, que estamos estudando, não os resultados duma religião dominando todos os espíritos, o que é impossível, mas uma religião existindo normalmente, como qualquer religião do mundo.

A hipótese de que uma religião forçosamente será dogmática e fanática, sofre do erro de se supor que toda a religião só pode existir num período de ignorância e de fanatismo. Porque o fanatismo é anterior (socialmente falando) à religião; a religião não dá a uma sociedade um fanatismo que lá não esteja, como não há processo que arranque figos duma laranjeira.

Mas não será assim? Não haverá incompatibilidade entre cultura e religião? É um aspecto do problema que é preciso não abandonar sem exame.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

- 235.

António Mora

O classicismo francês ou outro congénere falhou…

O classicismo francês ou outro congénere falhou e caiu na mesquinhez e na inutilidade porque uma sociedade viciada pelo morbo cristão era, do íntimo, incompetente para fazer obra lúcida e progressiva. Ficou na imitação dos clássicos, porque não mais podia fazer uma nação de crentes no cristianismo.

Obra pagã é não só imitar os clássicos, senão que também continuar-lhes a obra. Imitar está dentro do âmbito da acção de qualquer inteligência. Não é qualquer, porém, que se compenetra do espírito duma civilização e segue o seu caminho individual partindo de ali.

O período da civilização cristã pôde admitir dentro de si o progresso porque tinha dois elementos a facilitá-lo. O primeiro era o elemento pagão: assim, todo o movimento de renascença que se deu a dentro do cristianismo, partiu de urna atenção novamente dada à civilização pagã. É excusado que se

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cite o caso do Renascimento, e o caso menos forte do Romantismo, o qual, ainda-assim, procedeu sobre uma renascença clássica alterada, isto-é, sobre um estudo mais aprofundado da antiguidade clássica do que os chamados «clássicos» modernos tinham feito. Por isso Goethe está cheio de paganismo, como influência; e os autores maiores da Grécia e de Roma andam de sobra na boca de Victor Hugo e de Shelley, os coregos dos dois romantismos nacionais que se seguiram ao da Alemanha. Com o romantismo alemão, propriamente dito, o dos Schlegel, de Tieck e de Novalis, entra com a literatura germânica uma decadência, referindo-nos, por comparação, à precedente literatura de Schiller e de Goethe, se bem que o primeiro pecasse (houvesse pecado) na sua utilização do que admirava no paganismo.

O outro elemento que tem sido colaborador do progresso na nossa civilização é a Ciência. Como o elemento pagão, este é também inimigo do cristianismo. Nascida entre perseguições, criada entre inimizades, a ciência tem crescido entre conflitos com as forças cristãs, e através de desvios íntimos por via de influências da religião cristina, e de reacções exageradas por pensar de mais no inimigo constante.

O que hoje temos que possa representar progresso, se nos referirmos ao período grego da civilização, mais não é do que produto de utilização extra-cristã desse próprio período, ou de que resultado do trabalho propriamente científico. E o próprio trabalho científico, tão bem, outra coisa não vem a ser do que uma continuação do espírito grego, que trouxe para a humanidade o espírito científico propriamente dito, a substituição do critério objectivo ao subjectivo na interpretação dos fenómenos.

Pouca gente compreende e realiza como a história da humanidade anterior à da Grécia é falha e nula no que se refere às atitudes científicas e lúcidas que hoje nos parecem as mais simples. Por muito que muitos digam amar a Grécia, poucos sabem quanto deveras lhe devemos.

A estética moderna, que é cristã, assenta sobre o desprezo fundamental do mundo-exterior. É feita sobre um elemento curioso a falta de atenção e de concentração, a carência de equilíbrio, e a tibieza da vontade.

Parece a princípio inacreditável que alguma arte assente em elementos destes. Se formos porém a reparar na arte que o cristianismo produziu, e que é toda a arte moderna, salvo episódios, meros episódios, em obras no seu conjunto pecadoras contra a estética, veremos que assim é.

Para tornar de fácil compreensão a n[ossa] tese, partamos dum fenómeno estético de fácil constatação: a elegância feminina. A elegância feminina moderna - cristã, diríamos, se a frase pudesse seguir caminho sem prévio aviso - consta, como todos vemos, da Diversidade, que cada mulher procura imprimir ao seu vestuário e porte, em relação ao porte e vestuário alheios (das outras), no Requinte, isto é, no estudo atento dos detalhes que contribuem para essa Diversidade; e, porfim, no Exagero, necessária consequência de se tomar a Diversidade por principal fundamento da elegância. Que isto se possa negar, não creio, senão que uma atenção apenas no nível das palavras perceba mal o sentido ao que se deixou escrito. Por isso tentaremos fazer compreender a n[ossa] tese por outro método.

Suponha-se que a cada mulher se dava por único traje um lençol, um pano simples, de dimensões possíveis para cobrir o corpo, e que lhe fosse proibido dar a esse pano formas várias, apenas sendo lícito usá-lo tal como era dado. Tendo todas as mulheres que se restringir a isto, e sendo desejo de cada uma distinguir-se em beleza das outras, tinha só um meio de o fazer: tal donaire dar ao seu porte, tal elegância imprimir às dobras do seu manto simples, ao uso do manto, ao seu aspecto, que se distinguisse das outras por isso. Cada mulher era assim forçada a um grande esforço estético para obter a sua elegância, a uma atenção extraordinária à utilização dos menores detalhes do seu vestuário, a uma procura necessária da harmonia dos detalhes, porque, tendo o seu traje, por ser simples, essencialmente unidade, não é senão harmonizando essa unidade que qualquer efeito estético se produziria.

Se a absoluta Diversidade é permitida, a elegância torna-se fácil: basta ter uma inventiva curiosa que saiba encontrar a diversidade; há a encontrar a diversidade em absoluto, o que é fácil, e no outro caso ter-se-ia de encontrar a diversidade dentro de um limite (harmónico) o que é muito difficil.

Assim encontramos a distinção fundamental entre o critério estético pagão e o critério estético cristista. O pagão tinha da beleza esta ideia, de que ela é primeiro harmonia (isto é, perfeição) e depois diversidade; o cristão tem da beleza outra ideia, a oposta,- de que ela é primeiro diversidade, e depois harmonia. Para o pagão a beleza é a Diversidade na Harmonia; para o cristão ela é a Harmonia na Diversidade. Parecendo, pelo som, quase a mesma, estas frases são, por contra, opostas. Para o pagão a Harmonia é o essencial; para o cristão o essencial é a Diversidade. Frutos estas teorias, a primeira de uma atenção dada ao mundo-exterior, de uma cultura da vontade e da concentração; a segunda de uma

Page 18: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

atenção desviada ou para o âmago do espírito, ou falha, e uma vontade incapaz de se aplicar com cuidado e escrúpulo.

Aquele cujo critério da arte parta da Diversidade por força que há-de buscar na arte mais a Diversidade do que outra coisa. Aquele cujo critério parta da Harmonia, mais do que outra coisa buscará a Harmonia na obra de arte. Cairá o primeiro no erro de acumular elementos diversos só por serem diversos, de quantificar e juntar. Cairá o segundo no erro de simplificar para obter a unidade e a harmonia, de recear abranger um campo muito vasto ou esmiuçar muito o assunto, para que lhe não falhe a Harmonia do Todo, para que se lhe não tornem insuficientes vontade e atenção para reduzir a unidade os elementos de que se compõe a Obra.

Qual destes erros é o mais grave? O primeiro por certo. O erro do pagão é o erro do artista simples, o erro da Criança, digamos. O erro em que cai o cristão é o erro do doente, o erro do Louco, classifiquemos assim. E quem tem razão na sua teoria é o pagão. Porque a essência da arte é a harmonia e não a diversidade; senão (…)

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

- 230.

António Mora

O final desta nota será sobre assuntos de redacção e administração.

O final desta nota será sobre assuntos de redacção e administração. Não sabemos ainda a regularidade com que nos será possível fazer aparecer estes cadernos. Por isso lhes não marcámos, na face, um período de publicação. Como sem pensar se compreende, essa irregularidade é efeito não só de contrariedades materiais que é de crer que surjam, senão também de nenhum dos colaboradores julgar da dignidade do seu pensamento apressar-se para dar à leitura seus escritos em (determinada) data. Mais esta, do que a outra, consideração, nos leva a não dar um tom periódico a esta publicação. Nas vésperas, por assim dizer, da saída dos números teremos cura em que não falte aviso, para que não escape aos que, porventura, se disponham a acompanhar-nos, com agrado ou simples curiosidade, no nosso caminho para o Olimpo.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

- 237.

António MoraO homem criou a obra de arte

O homem criou a obra de arte. Depois reparou que a obra de arte é uma coisa exterior. Depois observou que as coisas exteriores tinham certos característicos, a que era forçoso que obedecessem. A sua perfeição, isto é, a perfeição da sua estrutura e do seu funcionamento dependia do grau em que possuíam esses característicos. Como a obra de arte é uma coisa exterior, urgia aperfeiçoar essa obra de arte, dar-lhe a perfeição das coisas exteriores. Fazer trabalho de perfeito operário. De aí a arte grega.

O grego reparava essencialmente na forma. É característico do visual e do atento notar as formas das coisas. A nascença da fisiognomonia e correlacionadas formas de ciência, na Grécia, aponta isto. É na forma que repara primeiro o homem atento ao mundo exterior. O C[ristianis]mo trouxe um adoecimento de sentimentos e de sentidos que levou a esmiuçar as formas e achar o sentimento das cores e das tonalidades. Mas perdeu-se por aí, caiu no erro regressivo de buscar na arte uma expressão de emoções, de sensações, de aspirações. A arte é isto, porém, apenas n'um seu estádio inferior; depois, chegada à Grécia, desde a Grécia, a arte passa a ser um fenómeno de trabalho, de esforço, de querer realizar a perfeição.

Page 19: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

Qual o efeito das investigações da ciência moderna sobre a arte? Mostrar que ela pode ser infinitamente complexa (como a constituição atómica de um corpo, por exemplo), sendo ao mesmo tempo simples? Talvez. Mas a arte tem um limite. Há coisas da vida que são da vida apenas e que a arte não deve procurar imitar. Ao número d'estas pertence a complexidade atómica tomada por exemplo. A arte é do exterior, imita o exterior e não o interior das coisas. A arte, mesmo, é expressão, e não tem senão exterior, portanto; de aí o não lhe servir para nada saber que as coisas são, por dentro, infinitamente complexas. Basta-lhe reparar nas harmonias dos corpos, na linha geral das correlações entre os elementos componentes de um Todo e esse Todo. De modo que não é na noção da arte, em geral, que temos que avançar sobre os gregos; nem tem a ciência com que nos ajude n'este ponto. Será então nula a influência do progresso científico sobre a arte? Sobre a substância e sentido da arte, por certo que de todo nula. Não há para onde evoluir n'este ponto, porque desde a Grécia que a arte nasceu e ficou com a forma com que nasceu, ainda que tivesse sofrido a doença do cristianismo.

(É a constituição exterior das coisas que interessa à arte; porque a arte, sendo expressão e portanto essencialmente exterioridade, não tem senão constituição exterior. Desde que na Grécia se reparou para isto, não há que evoluir n'este sentido. Não se descobriu uma forma de arte, mas sim a arte, em absoluto. Não houvera arte antes, propriamente, mas o embrião da arte. Na Grécia a Arte nasceu. Desde que nasceu ficou tal. Pode crescer mas não deixar de ser tal qual é).

O progresso da ciência o que nos fornece é novas fontes de criação e de inspiração.

Na obra de Alberto Caeiro há mais uma filosofia do que uma arte. Reaparece n'ele a primitiva grega forma de filosofar pela poesia.

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

- 154.

António Mora

Os chamados «clássicos» franceses escreveram mal…

Os chamados «clássicos» franceses escreveram mal porque se serviram da mitologia pagã quando a não sentiam. Os românticos franceses escreveram melhor porque estavam dentro da emoção cristã, que lhes era verdadeira, posto que fosse imperfeita na sua natureza de emoção artística.

Milton foi o maior dos poetas modernos porque se serviu da mitologia cristã, em que acreditava, mas alterando-a a seu modo, como um grego à sua.

A arte romântica é que é suprema nos modernos porque tal arte é a que corresponde ao feitio da alma cristã. Querer que um poeta cristão escreva uma obra do género da de um grego é querer que um poeta cristão seja um poeta pagão. O género «clássico» é o dos pagãos. É superior ao género cristão, que é o romantismo? É, mas isso é porque o paganismo marca um grau de civilização mais avançado que o cristianismo, que parte do sentimento semita.

Só quando de vez nos despirmos do cristianismo poderemos apresentar poetas que saibam construir poemas. O c[ristianis]mo ter-nos-á talvez intensificado a vida interior; na verdade indisciplinou-a. Foi talvez preciso para alargar a alma. Agora é preciso que passe, para a tornarmos a disciplinar.

Precisamos criar o Paganismo Maior, liberto dos deuses todos.

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

- 149.

António Mora

Page 20: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

Para o índio a obra de arte não é ainda uma coisa,

Para o índio a obra de arte não é ainda uma coisa, uma coisa que ele veja existir independentemente da emoção que a produziu. O grego tem já isso. Nasceu nele o senso artístico, ou crítico propriamente, de ver a obra de arte como coisa, no espaço, fora da relação com a emoção que, a produziu.

O grego reparou nisto — que uma obra de arte é uma realidade exterior, uma realidade exterior, porém, que pertence a determinada categoria — à das coisas exteriores produzidas, fabricadas, pelo Homem. Daqui fatalmente um conceito do artista como sendo um operário.

1915?

Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.

- 132.

António Mora<< Programa do periódico de Caeiro, R. Reis, etc >>

«Programa do periódico de Caeiro, R. Reis, etc.»

Melhor do que enfastiar no início, por uma exposição argumentada, ao comunicar ao nosso público, seja ele qual tenha de ser, e de quantos possa vir a ser, será, em breves palavras, classificativamente, enfeixar em formulas dogmáticas qual seja o resumo (súmula) da nossa atitude. No desdobrar das publicações aqui a inserir virão, cada uma em sua necessária altura, as provas das asserções que este programa postula, e o estabelecimento definido das bases em que esses mesmos postulados assentam. Por ora, para fins de gravar na mente dos possíveis curiosos deste periódico, limitamos a nossa apresentação a essa sucinta (...) das bases sobre que assenta a nossa attitude.

As cláusulas seguintes encerram-a completamente:

1. A civilização moderna, assente sobre bases de psiquismo cristão, é desde seu início uma decadência; em lugar de se continuar a obra da Grécia, enxertou-se sobre o espírito grego decadente o espírito romano decadente e o espírito semita decadente. A nossa civilização é o produto de três decadências somadas. O que tem de bom provém da neutralização que esses três géneros de decadência por vezes, e em certos pontos, realizam um sobre os outros. Todo o caminho andado, o que verdadeiramente tem constituído progresso, tem sido contrário ao próprio íntimo espírito da nossa civilização.

2. Importa, portanto, acima de tudo, procurar reatar a tradição perdida da obra grega, afastando o elemento romano e o elemento semita, que representam atrasos e degenerescências em referência ao psiquismo grego, formas inferiores de civilização que supuraram ao contacto com a Grécia e a continuaram depois...

3. Para isso importa, antes de mais nada, atacar de frente o espírito filosófico que data, na sua forma mais doente, de Kant, e que pretende centralizar no homem e na consciência individual a realidade do Universo; importa, isto é, reconstruir o materialismo grego (não no sentido de o aceitar tal qual ele era - isso não constituiria progresso) mas de o fazer evoluir.

4. Importa, depois, fazer guerra directa a quantas formas literárias pertencem ao misticismo cristão, varrendo de diante do caminho das nossas ideias os obstáculos que lhe ergue a convicção da importância da chamada Vida Interior. Reintegrar o homem na Natureza sem o tirar da humanidade.

5. Desfazer o erro enorme que existe em toda a gente moderna de que o ideal grego é sensual ou propriamente animal. O ideal grego é essencialmente de calma e de domínio de si-próprio; só tomou aspecto de sensualidade e de fúria da beleza através dos cérebros grosseiros dos romanos e, depois, coado pela mentalidade confusa dos semitas de várias espécies. O ideal grego é de castidade dentro da normalidade; de equilíbrio dentro da realização dos desejos e dos instintos. No seu grau mais nítido, é representado pelo ideal estóico, essencialmente intelectual, essencialmente triste. O grego era essencialmente triste, como todos os grandes equilibrados, em quem é elemento psíquico basilar a consciência da impermanência, da fatalidade e da futilidade das coisas, sem que haja do indivíduo para si-próprio licença para sonhar além-mundos ou paraísos que nenhum facto natural justifica ou aponta. Platão é a decadência do ideal grego.

Page 21: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

6. Combater, dentro dos débeis limites que a inteligência pode ter na sua acção, as ideias imperialistas, colectivistas, humanitárias, (...). As pequenas nações são as únicas que têm direito a existir, porque o único agregado humano civilizado é a Cidade, e o único agregado humano natural é a região. - O indivíduo é a única realidade natural, é através dele e para proveito dele que a sociedade existe; por isso deve ser combatido tudo quanto (...)

7. Qualquer que seja a atitude própria a tomar num período de civilização verdadeira, no período actual a atitude tem de ser adaptada a ele; tem de ser uma atitude de calmo afastamento, de reconstrução por cada individualidade de si-própria de acordo consigo e com as grandes realidades fundamentais do Universo. -Não fazer propaganda ostensiva nenhuma; expor ideias sem querer convencer, deixando que quem quiser a si se convença; não se preocupar com os problemas modernos de espécie nenhuma, nem nacionais, nem económicos, nem estéticos mesmo ou intelectuais. Por enquanto, todo o nosso esforço deve ser criar para nós a nossa atitude, procurar reencontrar a Grécia dentro de nós, formar uma concepção do Universo e das Coisas que seja a necessária e procurada continuação da concepção grega. Se esta atitude tiver de alastrar, ela alastrará por si, sem que tenhamos que chamar a atenção gritando. Todo o entusiasmo é um desequilíbrio. É de mau gosto ser enérgico e intenso. Tudo pertence ao Destino, deus dos deuses.

8. Presentemente, temos que ser estóicos, como foram os últimos representantes do paganismo no meio da febre e da lama do império romano, do lodo do cristianismo nascente, das invasões espirituais semíticas; o nosso caminho é ao contrário do deles. Eles vieram do paganismo natural para o estoicismo, porque o paganismo em face à civilização do império decadente (às civilizações decadentes) tem de ser o estoicismo. Nós iremos buscar o estoicismo para reatar o fio e ver se conseguimos subir outra vez, mas a nosso modo, às fontes e às origens do espírito pagão. Os estóicos ficaram sem sequentes; seremos nós os sequentes deles.

9. Tudo isto não teria sentido se fosse uma atitude decidida intelectualmente, isto é, concebida como uma filosofia de acção. Os autores que se reúnem para formar este periódico são todos temperamentalmente assim, não intelectualmente. O facto de aparecer num país pequeno mais do que um temperamento deste genero é, já de si, indicador de qualquer coisa. Não é pagão quem quer, mas quem pagão nasce. Não compreende o paganismo quem quer, mas sim apenas quem o sente nas veias. Há muito quem ame o paganismo, mas é um paganismo à romana, que não é senão a degenerescência e a doença do outro, porque, propriamente, nem à romana sói ser, mas antes à romana da decadência, ou à moderna, concebendo Grécia através de Roma, e essa Roma através da Judeia que está no nosso sangue. Somos uma mistura de decadências.

10. O facto de que em Portugal aparecem estes temperamentos parece indicar que tem o nosso país que tomar sobre si a vanguarda - talvez inútil - do movimento neopagão. Uma escola dizendo-se neoclássica apareceu em França, mas está tão longe como os outros de sentir a sobriedade do ideal grego; e aliás, é monárquica, imperialista e católica, o que nenhum grego por temperamento pagão pode ser. É uma tentativa de sentir a Grécia, mas é sempre através de Roma, e Roma decadente, que a Grécia é sentida.

11. Nada nos daria maior prazer do que receber qualquer sinal de acordo connosco da parte de quaisquer portugueses que julguem da hora a nossa obra. Mas não convidamos ninguém a procurar-nos. A nossa obra exige que cada um se isole, para ver se se encontra. Todos os esforços são poucos, dada a confusão que nos cerca em tudo, para nos encontrarmos equilibradamente, e não irmos despenhados, como cristãos doentes, pelos nossos sonhos abaixo, nem cairmos na acção, porque isso é próprio de quem não tem nada que fazer. Não falamos com pessoa nenhuma, nem nos dispomos a fazer propaganda da nossa atitude, excepto a inevitável que o nosso periódico faça. Aceitamos de bom grado toda a controvérsia, mas não publicaremos aqui artigos de adversários. A nossa obra é nossa. Responderemos contudo sempre, porque sabemos onde estamos e para onde é o nosso caminho.

12. A calma, a paz e o domínio de si-próprio são o nosso objectivo e o que propomos a cada qual que queira estar connosco; o afastamento da sensualidade, da religiosidade interior, dos instintos humanitários, do sonho e da (...). só numa reconstituição do paganismo dos helenos se pode encontrar o bálsamo para a febre das nossas almas. Procuremos ver as coisas claramente, não pondo ideais nossos adiante dos olhos, graves e tristes como convém a homens conscientes da fatalidade das coisas e da nossa transitória pequenez dentro deste grande e sereno Universo.

II

Para que nada fique por explicar, e como as origens são tudo, pode interessar a alguns leitores saber como nasceu este movimento, que assim tão inesperadamente lhe aparece.

Page 22: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

Há quatro anos encontravam-se em Lisboa os três colaboradores desta revista e um outro indivíduo ainda, poeta, hoje desviado infelizmente para atitudes febris místicas, e ébrias de desequilíbrio; não importa, porém - esses quatro encontravam-se em Lisboa há quatro anos. Em todos nós havia uma ânsia - febril ainda - de encontrar aquilo que em nós comummente havia, que não divisávamos o que fosse, mas que era palpavelmente inimigo de tudo quanto nos cercava, desde a arte até à vida. Talvez o convívio despertasse finalmente no maior de todos quatro, enfim, o sentido da nova orientação a dar ao conceito do Universo. Um ano depois Alberto Caeiro leu-nos a série de poemas que vêm publicados adiante, e que formam o grande primeiro passo para o nosso fim. Essa obra que singelamente segue é um marco miliário -ver-se-á depois - do pensamento humano. Pasma-se de que hoje, entre esta gente que nos cerca, fosse possível ir assim reatar o fio da tradição grega perdida. Alberto Caeiro é o maior de todos os poetas contemporâneos, dizemos só isto, porque seria talvez excessivo, posto que verdadeiro, dizer mais. O Guardador de Rebanhos foi para todos nós qualquer coisa como para um geógrafo sonhador da Renascença deveria ser a descoberta da América, se ele pudesse bem medir o que de ali resultaria. Nós medimos bem, e logo, o que era a obra que Ele nos lera. Ele conseguira livrar-se de tudo quanto constitui a alma que o cristianismo nos fez, regressou a um cristianismo primitivo, mais pagão do que outra coisa, e, assim, encontrou outra vez a Natureza, há dois mil anos perdida da inteligência dos homens. Com o Guardador de Rebanhos, o espírito humano fez a coisa mais importante que há dois mil anos tem feito, regressou ao seu Lar, de um golpe eliminou todas as camadas de degenerescência que Roma e a Judeia nos puseram. Há ainda filamentos de sentimentalidade cristã nessa obra; mas o essencial era descobrir o sentimento naturalista, e isso ficou feito, de uma vez para sempre. O naturalismo apareceu sob uma forma renovada e original. Doravante todas as dificuldades eram secundárias. O corpo do nosso intuito tinha já alma.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

- 347.

António Mora

Quantos géneros de ficções há?

Quantos géneros de ficções há?

1. Ficções que formam a religião ou a metafísica.

2. Ficções que formam a moral e os costumes.

3. Ficções que formam a estética.

Servem as primeiras de guiar-nos nas nossas relações universais; as segundas nas nossas relações sociais; as últimas nas nossas relações com nós-próprios.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

- 88.

António Mora

Resta saber se a ciência e a filosofia não são condicionadas pela inteligência,

Resta saber se a ciência e a filosofia não são condicionadas pela inteligência, e, portanto, se este sistema filosófico, como qualquer outro, não é essencialmente apenas um critério individual sobre o sistema do Universo. Se a Inteligência é serva da Vida, fenómeno de fins adaptacionais, os produtos da Inteligência serão erigíveis em Verdade? Eis um dos pontos importantes, especialmente dentro d'este sistema, que cumpre destrinçar cuidadamente.

Page 23: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

- 252.

António Mora

Se a existência de sujeito e objecto e a relação entre eles...

A. Mora:

Se a existência de sujeito e objecto e a relação entre eles são os dados essenciais da experiência, a filosofia sendo, essencialmente, a análise destes dados, é, essencialmente, apenas a ciência do conhecimento .

1. Sofologia geral — teoria do conhecimento em geral — teoria da teoria.

2. Sofologia especial: teoria do conhecimento parcial; teoria do conhecimento científico; metodologia da ciência.

3. Sofologia prática — teoria do conhecimento social.

s.d.

Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968.

- 178.

António MoraTEORIA DO DUALISMO

A «realidade» — num sentido mais lato do que se permite — divide-se em duas categorias: a Consciência e a Realidade. Uma é o com que se «percebe» o mundo exterior; outra é esse próprio mundo exterior.

A filosofia pecou de duas maneiras: (1) tomando a ideia de individualidade por sinónima com a ideia de Consciência — de onde os erros metafísicos da imortalidade da alma , da existência da alma individual ; (...) (2) tomando a ideia de individualidade por sinónima com a ideia de Realidade — de onde erros como aideia de Natureza (conjunto exterior).

Toda a filosofia é um antropomorfismo. O erro fundamental é admitir como real a alma do indivíduo, o erigir a consciência do indivíduo em consciência absoluta e a Realidade em individualidade. lndividuar a Realidade — eis o primeiro grande erro. Individuar a Consciência — eis o segundo grande erro.

*

As teorias filosóficas enfermam dos erros seguintes:

(1) O erro antropocêntrico ou antropomórfico, que consiste em atribuir, quer à Realidade, quer à Consciência, qualidades que pertencem simplesmente à Individualidade.

(2) O erro de atribuir à Consciência qualidades atribuíveis só à Realidade: o erro realista.

(3) O erro de atribuir à Realidade qualidades que pertencem, ou se podendo conceber como pertencendo, apenas à Consciência; o erro animista.

*

Page 24: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

A arte é essencialmente Erro.

*

A ideia de Deus é um antropomorfismo da Consciência. É atribuir individualidade à Consciência.

A ideia de Natureza é um antropomorfismo da Realidade. É atribuir individualidade à Realidade.

O facto é que só se pode atribuir individualidade a uma coisa — à individualidade.

*

Pascal, quando disse que colhemos apenas «quelque apparence du milieu des choses» foi generoso para com a nossa ignorância. Nem desse sonho de sapiente nos podemos, homens, orgulhar.

*

Todo o nosso trabalho mental orienta-se sobre 3 ideias que sem cessar confunde e mistura:

(1) a ideia da Consciência.

(2) » » » Realidade.

(3) » » » Individualidade.

(1) O erro egomórfico.

(2) O erro de atribuir à C[onsciênci]a qualidades que pertencem apenas à realidade: — a mera afirmação, em aparência de todo incontrovertível, de que a C[onsciênci]a existe. Não temos direito racional a afirmá-lo. O que podemos afirmar sem erro é que a Consciência é a Consciência; mais nada.

*

«Toda a filosofia dos místicos cai por este alçapão».

*

Os 6 erros da filosofia metafísica:

1. Atribuir à C[onsciênci]a as «qualidades» da R[ealidade].

2. Atribuir à C[onsciência] as «qualidades» da I[ndividualidade].

3. Atribuir à R[ealidade] as «qualidades» da C[onsciência].

4. Atribuir à [Realidade] as «qualidades» da I[ndividualidade].

5. Atribuir à I[ndividualidade] as «qualidades» da C[onsciência].

6. Atribuir à I[ndividualidade] as «qualidades» da [Realidade].

*

A essência da filosofia platónica consiste em cindir a «Realidade» em duas partes: as coisas sensíveis, isto é, as que caem sob a percepção dos sentidos, e que constituem a Matéria, aquilo que é composto de partes, e que é mutável, perecível e concreto; e as coisas inteligíveis, isto é, as que caem sob a percepção da Inteligência, e que são as ideias e as noções, aquilo que se não compõe de partes, que é imutável, imperecível, e abstracto. É sobre estes alicerces que Platão e os platonistas erguem a diversidade semelhante dos seus sistemas idealistas. Escusamos de os seguir nos seus vários caminhos, que partem em leque deste ponto de origem. Basta que, em um traço, verifiquemos o erro fundamental do sistema-fonte . Ele consiste (esse erro) em atribuir às ideias abstractas as qualidades que a Experiência nota nas coisas concretas, em ligar à Consciência os atributos da Realidade. Mas não é bem à Consciência que a atribuição é feita. É a elementos da Consciência com carácter já de entidades, ou entes, exteriores. O processo aqui é mais complexo se bem que ceda sem consistência a uma análise que o aperte.

A Individualidade — toda a Individualidade — contém 3 elementos: (1) a individualidade propriamente dita; (2) a (re)presentação individual da Realidade — isto é, a Realidade passada através do sistema nervoso individual; (3) a abstracção — isto é, o trabalho que a individualidade faz sobre esses elementos presentativos, quer dizer, a Realidade passada através do sistema nervoso superior .

1916?

Page 25: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993).

- 32.

António MoraUma ficção é um erro relativo. Um erro é uma ficção absoluta.

Uma ficção é um erro relativo. Um erro é uma ficção absoluta.

Relativamente ao sistema a que pertence, a ficção é uma verdade; o erro, aí, é a desarmonia de ficções.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

- 89.

António Mora

Uma sensação, ou um sentimento, é um movimento exclusivamente no tempoA. Mora :

Uma sensação, ou um sentimento, é um movimento exclusivamente no tempo e não, como os movimentos na matéria menos subtil, no tempo e no espaço .

Uma sensação é um movimento porque é uma coisa que existe no tempo; nada pode existir no tempo sem se alterar, e alterar-se é mover-se.

Uma sensação, dir-se-á, não pode existir sem consciência, e um objecto material pode. Mas pode como? Pode existir sem a minha consciência dele, sim; mas sem a consciência dele não pode. Nem mesmo, porventura, pode existir sem uma consciência atómica de si .

De um lado a consciência, do outro os Números . Como é que uma sensação pode ser matéria? Temos ao menos que admitir uma consciência por fora, e outra por dentro, dos objectos. A consciência varia conforme os objectos, mas como é que varia de ver uma árvore a sentir uma dor?

Na sensação de uma dor, distingamos entre a consciência abstracta, a dor, e o lugar onde se sente.

A consciência que vê uma árvore e a que sente uma dor é a mesma; mas nem ver é o mesmo que sentir, nem uma dor se parece com uma árvore.

1º A dor não é sentida na e só pela consciência, mas no indivíduo. A vista não é vista na consciência, é no indivíduo que é.

Na dor, desde que omito a consciência, omito a dor; mas a consciência não é a dor, mas só a consciência; a dor não é portanto, nem exterior à consciência, porque se esta não houver não há a dor nem igual à consciência, porque consciência não quer dizer dor. O que é, então, a dor? No caso de eu ver uma árvore, se omitir a consciência, não omito a árvore, omito a visão.

A consciência de uma dor é como a consciência de ver uma árvore. Para além da visão concebo a árvore; para além da dor não concebo nada. Mas não concebo porque, aqui tomo conceber por = ver, a existir no espaço . Aí está o erro. A consciência da dor é a consciência de uma pura matéria, que existe no tempo, mas só no tempo .

Será a visão apenas a consciência da relação entre um corpo do tempo ( ver ) e um corpo do espaço (árvore )? A árvore existe só no espaço ; a visão (visão da árvore, aqui) é que existe no tempo, mas só no tempo.

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Poderá haver consciência da árvore sem consciência da visão? Poderá ver-se a árvore sem se ver? Poderá haver consciência, ver-se a árvore só no espaço, e não, também, no tempo?

Dir-se-á a árvore não existe só no espaço; existe no tempo também. Mas é a árvore que existe no tempo também, ou é só a visão que existe no tempo ; e a visão e árvore (a visão da árvore) no tempo e espaço ?

Se, porém, (como já foi pensado) tempo e espaço não existe, o que é isso?

Tempo, como espaço, têm de comum a pluralidade, que, no tempo, é duração (tempo + tempo + tempo + ¥ tempo) e no espaço é a extensão (espaço + espaço + espaço + ¥ espaço). Tempo e espaço, são, portanto números; mas ou são números de espécie diferente, ou simplesmente números, tomando-os todos diferentes.

(Tempo = Consciência da pluralidade)?

(Espaço = Existência da pluralidade)?

(Cor, forma, etc. = Semelhança entre números).

O tempo é a relação entre o espaço e a consciência. Antes : Extensão é a relação entre os números e a consciência, sendo na extensão denominada tempo do lado da consciência e espaço do lado dos números.

Como, porém, entre a consciência e o número não pode haver relação, segue-se que não há extensão, isto é, que não há tempo nem espaço.

Relação com a Lei (Fado).

A consciência não existe: é consciente. Os números não são conscientes: existem. As almas individuais são uma ilusão do Tempo; a alma colectiva é uma transferência da ideia falsa de alma individual para a ideia falsa de infinito.

O tempo e o espaço, considerados como tais abstractamente são ideias de infinito: portanto não existem.

A Realidade aparece à consciência como número, mas os números são talvez ilusões. E não são os números abstracções , finais do interlúdio ?

A consciência individual é uma função da Realidade.

De um lado a Realidade existindo; do outro, a consciência sendo consciente, sem existir. Entre estes dois termos sem semelhança aparece(m) a Relação, que nem existe, nem é consciente. Assim começou aquilo a que chamamos o Mundo.

Como imagem o sentiram os pagãos, pondo acima de tudo o indefinível Destino.

Antes do Destino, a Realidade na Realidade e a Consciência cônscia. Antes de Saturno a Realidade tornou-se número, e a Consciência (...).

Nascido Saturno, os números tornaram-se Espaço e a consciência Tempo.

*

Impossíveis de ser pensados como Um , porque não têm a mesma semelhança; como Dois (pois 2 é um número e nem a consciência é número, nem a realidade é número). A consciência e a Realidade são impensáveis, e do ponto de vista do pensamento, impossíveis.

1916?

Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968.

- 190.

António Mora

Page 27: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

<< Orpheu >>

De mais a mais, o que o crítico deve distinguir, com curioso cuidado, é o confuso do complexo. Nem deve cair nesse erro crasso, que é vulgar naqueles que procuram seguir os clássicos, sem lhes terem compreendido assaz o espírito da Obra, que consiste em crer que o estilo simples é o melhor de todos, o que é certo, mas não reparando em que não há só um estilo simples porém vários; que a simplicidade não é uma, mas de diversas espécies.

Há, por certo, um modo simples de dizer as coisas; se essas coisas, porém, forem, de sua natureza, complexas, não hão-de ser ditas de tal maneira que uma simplicidade de expressão as torne simples, pois que, se são complexas, fazê-las parecer simples é exprimi-las mal. O espírito de um Dante ou o de um Shakespeare, porque têm herdado séculos de acumulações cristãs, têm outra complexidade que não o espírito de um Homero, ou mesmo de um Virgílio. O que o crítico sagaz exige de um Dante ou de um Shakespeare não é que escrevam na simplicidade de um Homero ou de um Virgílio, mas sim que escrevam exprimindo com a clareza que couber àquelas coisas que pensam.

A simplicidade, além de ser diversa consoante os indivíduos, comporta, fora isto, diversos aspectos absolutos. Uma coisa pode ser expressa simplesmente, pela razão que de sua natureza é simples; pode ser expressa simplesmente porque seja traduzida directamente como é sentida, sem que se procure ajustá-la a qualquer ideal de estética estranho à coisa sentida; e pode ser expressa simplesmente por ser sujeitada a um tal critério estético, a um critério estético que imponha a preocupação da simplicidade.

Sucede que, se algum pecado pesa sobre os literatos

de Orpheu, ele é o de se exprimirem com demasiada simplicidade. Relatam uma coisa tal qual a sentem, sem procurar ajustá-la à compreensão dos outros, nem subordiná-la a qualquer critério estético. Quando o senhor Sá-Carneiro diz que «sente as cores noutras direcções» peca, se peca, por uma excessiva simplicidade. Não lhe ocorreria dizer que sente as cores em outras direcções se efectivamente — talvez por qualquer desarranjo de sentidos, o que concedo possa ser — efectivamente assim não sentisse as cores, por uma transmutação sensional esquisita. E que as não sinta assim, mas apenas imagine que as sinta, tem o direito do artista de imaginar o que não é, que outro não o é o direito que tem Shakespeare de criar um Hamlet que não existe, nem outro é o direito fundamental dos artistas.

Fernando Pessoa: Começo neste momento, etc.

Aqui, sem embargo, a frase é de uma simplicidade calva. O sentimento expresso é que é complexo.

Quando o senhor Alfredo Pedro Guisado diz «Deus, longo cais em mim», eu compreendo-o perfeitamente, nem creio que o não compreenderá a criatura que se tiver dado ao trabalho de estudar as literaturas antigas e as modernas, versando, com mão diurna e nocturna, as páginas diferentes de quantos poetas têm ornado com a sua dolorosa glória as paredes nuas de este triste mundo. «Deus, longo cais em mim» é uma sensação directa, de origem imaginativa, sem dúvida.

O que é preciso é compenetrarmo-nos de que, na leitura de todos os livros, devemos seguir o autor e não querer que ele nos siga. A maior parte da gente não sabe ler, e chama [ler] a adaptar a si o que o autorescreve, quando, para o homem culto, compreender o que se lê é, ao contrário, adaptar-se ao que o autor escreveu. Pouca gente sabe ler, os eruditos, propriamente tais, menos que ninguém. Como no primeiro folheto demonstrei, os eruditos não têm cultura.

Devo a minha compreensão dos literatos de Orpheu a uma leitura aturada sobretudo dos gregos, que habilitam quem os saiba ler a não ter pasmo de coisa nenhuma. Da Grécia Antiga vê-se o mundo inteiro, o passado como o futuro, a tal altura emerge, dos menores cumes das outras civilizações, o seu alto píncaro de glória criadora.

1915?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.

- 114.

António Mora

Page 28: Antonio Mora, Heteronimo de Pessoa

A rima é uma doença do ritmo.— A rima é uma doença do ritmo.

— A substituição do ritmo tónico ao quantitativo é um sinal de degenerescência na pronúncia. A língua perde toda a firmeza, a nítida distinção entre breves e longas cessa. Só não cessa o acento tónico, porque então cessaria tudo. Nem haveria palavras. Modernamente, porém, até o ritmo por tónicas pareceu pesado jugo. Apareceu o verso livre.

(As regras apertadas, longe de serem um sinal de força, são um sinal de fraqueza).

s.d.

Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença,

1994.

- 276.

Alexander Search

Por isso, muito bem disse CaeiroPor isso, muito bem disse Caeiro

A Natureza é partes sem um todo.

O Universo, como conjunto, síntese e não soma das coisas, é uma ideia abstracta. Por isso não há Universo. Não é por não sabermos se não há; é por sabermos, por isso que ele é uma ideia abstracta, que não há.

O exemplo melhor das ideias abstractas e do para que servem são os números, a matemática. Nada mais útil, mas, em si, nada mais falso. Só um louco julga que o número 5, por exemplo, é uma coisa: mas o n.0 5 é útil, como os outros números, porque é um meio de compreender a realidade, não em si mesma, mas tem utilidade, em relação apenas a nós e à nossa imperfeição.

Se os nossos sentidos fossem perfeitos, não precisávamos de inteligência, as ideias abstractas de nada nos serviriam.

A imperfeição dos nossos sentidos faz com que não concordemos nunca em absoluto sobre um objecto ou um facto do exterior. Nas ideias abstractas concordamos em absoluto. Dois homens não vêem uma mesa da mesma maneira; mas ambos entendem a palavra «mesa» da mesma maneira. Só querendovisualizar uma mesa é que divergirão; isso, porém, não é a ideia abstracta da mesa.s.d.

Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença,

1994.

- 206.

N. do A.: «Alberto Caeiro (entrevista)»