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“As pessoas acima do lucro”

PPOOLLÍÍTTIICCAASS DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO,, DDEESSEENNVVOOLLVVIIMMEENNTTOO EE NNOOVVOOSS

MMOOVVIIMMEENNTTOOSS SSOOCCIIAAIISS

Maria Alexandra de Sá Dias da Costa

Tese de Doutoramento em Ciências da Educação

apresentada à Faculdade de Psicologia e de

Ciências da Educação da Universidade do Porto realizada sob a orientação do Professor Doutor

António M. Magalhães

Volume I

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Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico (convertido pelo programa Lince). Nas citações de obras portuguesas editadas antes da entrada em vigor do Acordo Ortográfico mantém-se a grafia original.

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RREESSUUMMOO

Este trabalho tem como finalidade contribuir para a complexificação da

discussão em torno das relações entre educação e desenvolvimento.

Nesse sentido configurou-se como objeto de estudo as relações discursivas

estabelecidas entre educação e desenvolvimento por atores políticos que a

assumem como central: os novos movimentos sociais. A centralidade destes

discursos justifica-se pela hipótese de trabalho de que, num contexto de

globalização política e económica e de reescalonamento do Estado, aqueles

discursos se apresentam como contra-hegemónicos na construção de modos de

pensar e agir sobre a realidade social. Para a sua compreensão são

contrastados com os discursos de outros atores políticos que representam um

modelo de globalização hegemónica.

Assumindo como método a Análise Crítica do Discurso, nomedamente a

abordagem dialética-relacional desenvolvida por Norman Fairclough, pretende-

se com este trabalho identificar, no campo específico das relações discursivas

entre educação e desenvolvimento, como se caracteriza a ordem de discurso

contra-hegemónica, nomeadamente i) o que influencia e/ou determina a

produção do discurso ii) como é produzido e organizado o discurso; iii) o que

significa educação na equação educação para o desenvolvimento; iv) o que

significa desenvolvimento na equação educação para o desenvolvimento.

Conclui-se com a discussão das possibilidades de mudança social que a

ordem de discurso caracterizada poderá proporcionar.

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AABBSSTTRRAACCTT

This work aims to contribute to the complexity of the discussion around

the relationship between education and development.

In this sense, it was configured as object of study the discursive relations

between education and development established by political actors that take

those as central: new social movements. The centrality of those discourses is

justified by the hypothesis that in a context of political and economic

globalization and rescaling of state, those speeches are presented as building

counter-hegemonic ways of thinking and acting on social reality. For their

better understanding they’re contrasted with the speeches of other political

actors that represent a hegemonic model of globalization.

Assuming Critical Discourse Analysis – namely the dialectical-relational

approach developed by Norman Fairclough – as method the intention of this

work is to identify, in the particular field of discursive relations between

education and development, how is characterized the counter-hegemonic order

of discourse. In order to do that, it is analyzed i) what influences and / or

determines the production of discourse ii) how it is produced and organized the

discourse, iii) what education means in the equation education for development,

iv), what means development in equation education for development.

One concludes with a discussion on the possibilities of social change that

the characterized order of discourse can provide.

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RREESSUUMMÉÉEE

Ce travail vise à contribuer à la complexité de la discussion autour de la

relation entre éducation et développement.

En ce sens il était configuré comme objet d'étude les relations discursives

entre l'éducation et le développement établis par les acteurs politiques qui la

prennent comme un élément central: les nouveaux mouvements sociaux.

La centralité de ces discours est justifiée par l'hypothèse que dans un

contexte de globalisation politique et économique et de rééchelonnement de

l'État, ces discours se présente comme une construction contre-hégémonique

des façons de penser et d'agir sur la réalité sociale. Pour leur compréhension ils

sont mis en contraste avec les discours des autres acteurs politiques qui

représentent un modèle hégémonique de globalisation.

En tenant comme méthode l'analyse critique du discours, en savoir

l’approche dialectique-relationnelle développée par Norman Fairclough, l'objectif

de ce travail était d'identifier, dans le domaine particulier des relations

discursives entre éducation et développement, comme se caractérise l'ordre de

contre-hégémonique du discours, en savoir : i) ce qui influence et / ou

détermine la production du discours ii) comme se produit et organise le

discours, iii) ce que éducation signifie dans l'équation éducation pour le

développement, iv), ce qui signifie développement dans l'équation éducation pour

le développement.

On conclut avec une discussion sur les possibilités de changement social

que peut être fourni par l'ordre du discours caractérisée.

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A Stephen R. Stoer Professor, Orientador, Colega e Amigo. Inspiração diária e exemplo de vida. Este trabalho é indelevelmente marcado pela sua presença.

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AAGGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS

Quem faz um doutoramento diz que este é um trabalho que implica

grandes momentos de solidão e, portanto, a capacidade de gerir essa mesma

solidão – ou aprender a lidar com a incapacidade de o fazer… É verdade. Mas

é igualmente verdade que esses momentos solitários são interrompidos por

momentos solidários. Foi assim comigo porque tenho a felicidade de estar

rodeada de gente que me quer bem e a quem quero, aqui, agradecer

publicamente. Para além do papel e importância concreta que cada um teve

neste processo, une-os uma qualidade que me é cara: o de serem solidários.

Começo por agradecer ao meu orientador. O Prof. António Magalhães

herdou-me, literalmente, enquanto orientanda. Num voto de generosa

confiança acedeu a orientar-me apesar de, nessa altura, a sua experiência de

trabalho comigo ser pouca e de não me conhecer nesse papel. Se quero

publicamente agradecer-lhe as discussões teóricas e metodológicas tidas, as

leituras atentas e críticas realizadas e as sugestões feitas – ou seja, o papel

fundamental de um bom orientador –, quero sobretudo realçar a paciência, a

preocupação e a amizade demonstradas neste longo processo. Tenho

consciência de como foi difícil lidar com alguém tão „inorientável‟ como eu e

com características de trabalho tão diferentes das suas. Muito obrigada pela

paciência, conselhos, ajuda e alento. Muito obrigada pela confiança. O que

houver de qualidade nesta tese deve-se também a si. Os erros são,

obviamente, da minha inteira e exclusiva responsabilidade.

Ao Prof. José Alberto Correia. Homem de pensamento brilhante, de

reflexão epistemológica, teórica e analítica notáveis e que, ainda assim, não

fica preso num qualquer Olimpo dourado, mantendo, como poucos, a

capacidade (a humanidade…) de se manter próximo, de ver no “outro” a

pessoa que existe para além dos papéis institucionais. A si estarei

eternamente grata. Pela solidariedade e confiança institucional mas também

pessoal. Pela amizade. Pelo alento. Pela força. Pela generosidade. Muito, muito

obrigada.

Aos meus amigos da Faculdade de Psicologia e de Ciências da

Educação. Amigos, sim. Porque eles são a prova de que a carreira académica,

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cada vez mais alicerçada na competitividade, pode ser também um espaço de

solidariedades e de cumplicidades:

- à Teresa Medina, mulher de convicções fortes e de uma coerência

inigualável, que apesar da sua enorme carga de trabalho se disponibilizou, de

mote próprio, a assegurar algum do meu serviço docente em dois anos letivos.

Obrigada, querida Teresa, pela tua vontade de ajudar, pela tua irredutibilidade

em fazê-lo e pelo sorriso com que perguntavas “já está?”;

- ao João Caramelo, amigo de tantas horas e contextos. Obrigada João,

por generosamente me aliviares a carga horária (e sobretudo a dispersão de

trabalho), por perderes tempo comigo, pelo cuidado constante e telefonemas a

perguntar “precisas de alguma coisa?” e pelas leituras feitas;

- à Manuela Terrasêca, amiga convicta, exigente e presente, e que

tentou agir contra os meus momentos de prostração. Obrigada, Manela, pelos

telefonemas e mensagens mas também pelo constante “o que é que eu posso

fazer?” e pelos momentos de presença possível;

- à Helena Barbieri, amiga serena e calma, sempre atenta não obstante

as suas próprias prioridades. Obrigada, Léninha, pela tua preocupação não

revelada (sim, eu sei…) e disponibilidade para partilhar tempos de trabalho;

- à Manuela Ferreira, companheira de tantas conversas, sempre pronta

a ler e rever o texto escrito, e que num momento difícil me deu um alento

importante. Obrigada, Manelita, pelo “Ainda tenho no desktop o que me

enviaste. Deixaste-me água na boca.”: nem imaginas a força que isso me deu;

- ao Rui Alves, parceiro de gabinete e cúmplice. Obrigada, Rui, por

ouvires os meus desabafos, por desdramatizares as minhas ansiedades, por te

rires dos meus receios, pelos conselhos, pelas partilhas e por nunca te

esqueceres de perguntar, como quem afirma, “então, isso vai?”;

- ao Paulo Nogueira, pela partilha de angústias e desânimos mas

também pelo ânimo, pelo “não desligues!” e pelo exemplo de tenacidade;

- à Carlinda Leite pelo genuíno e afetuoso apoio manifestado diversas

vezes e por diversas formas; à Isabel Menezes, pelas constantes manifestações

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de vontade de ajudar; à Natércia Pacheco, mais afastada fisicamente mas

presente no apoio; à Preciosa Fernandes pelo interesse demonstrado.

A todos os meus amigos fora do contexto da FPCE, que compreenderam

as minhas ausências mas reclamaram a minha presença. Muito obrigada por

todos os “como vai o trabalho?”, “então, já acabaste a tese?”, “quando é que

acabas isso?”, “Fazes falta aqui, na vida real!”. Um agradecimento especial à

Sónia Dantas, disponível “à distância de um assobio” e à Carmo Mascarenhas,

amiga de todas horas e revisora atenta da bibliografia.

Aos estudantes da licenciatura em Ciências da Educação da FPCE/UP,

com quem trabalhei nas disciplinas de Análise de Políticas Sociais e

Educativas; Socioantropologia do Desenvolvimento; Educação, Cooperação e

Desenvolvimento. Obrigada pelas discussões proporcionadas e pelas questões

levantadas que me permitiram também aprender. Um “obrigada” especial aos

estudantes que frequentaram Socioantropologia do Desenvolvimento no ano

letivo 2009/2010: vocês fizeram da minha „estreia‟ nessa disciplina uma

aventura estimulante pela qualidade dos vossos contributos e reflexões.

A todas estas pessoas, para além do agradecimento, devo um pedido

público de desculpas pelo tempo que esta minha tarefa demorou e pelos

constrangimentos e preocupações que essa demora lhes causou.

Quero ainda destacar cinco pessoas que estão e estarão, para sempre,

no meu coração:

Stephen R. Stoer, por ter sempre acreditado em mim.

A minha querida amiga Filipa César, o anjo da guarda que no pior dos

momentos me agarrou, levantou e nunca mais me largou.

O meu querido irmão que, sendo o mais novo, fez tão bem de irmão

mais velho. O meu pai e a minha mãe que olharam por mim como só os pais

sabem fazer. A vocês os três agradeço tudo. E agradeço, sobretudo, o serem e

o estarem. Sempre.

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AABBRREEVVIIAATTUURRAASS

ACD – Análise Crítica do Discurso

AD – Análise de Discurso

BM – Banco Mundial

CE – Comissão Europeia

CJ – Comércio Justo

CONCORD – Confederação Europeia das ONG de Ajuda Humanitária e de

Desenvolvimento

EFTA – European Fair Trade Association

FINE – rede informal que agrega as seguintes organizações de Comércio

Justo: IFAT, EFTA, NEWS! e FLO

FLO – Federation of Labelling Organisations

IFAT – International Fair Trade

IPAD – Instituto Português de Ajuda ao Desenvolvimento

NEWS! – Network of European World Shops

NMS – Novos Movimentos Sociais

OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONG – Organização Não-Governamental

ONGD – Organização Não-Governamental para o Desenvolvimento

ONU – Organização das Nações Unidas

UE – União Europeia

WFTO – World Fair Trade Organization

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

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ÍÍNNDDIICCEE GGEERRAALL

ÍÍNNDDIICCEE DDEE FFIIGGUURRAASS 1177

ÍÍNNDDIICCEE DDEE QQUUAADDRROOSS 1177

II IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO 1199

1. Todas as investigações têm uma história pessoal 21

2. Construção da investigação: objeto de estudo, problemática e método 31

2.1. Objeto de estudo 32

2.2. Problemática de investigação 36

2.3. ‘Opções’ metodológicas 53

3. Roteiro do trabalho 61

IIII DDAA MMEETTOODDOOLLOOGGIIAA 6655

1. A Análise de Discurso: fundamentos epistemológicos e teórico-

metodológicos 71

1.1. Premissas filosóficas da análise do discurso ou o pólo

epistemológico 71

1.2 Modelos teóricos de conceptualização do discurso ou o pólo

teórico 73

1.3. Linhas e orientações metodológicas ou o pólo morfológico 76

1.4 Técnicas de análise específica ou o pólo técnico 85

2. ‘Design’ metodológico 97

2.1. Focar um aspeto semiótico de uma prática contra-hegemónica 99

2.2. Identificar modos de resistência e/ou contestação 100

2.3. Evidenciar características contra-hegemónicas do discurso

analisado 107

IIIIII DDAA AANNÁÁLLIISSEE 110099

1. Da Prática Social 113

1.1. Do discurso hegemónico 127

1.1.1 Matriz social do discurso: politicidade do discurso 127

1.1.2. Efeitos ideológicos do discurso: políticos e económicos 143

1.2. Do discurso contra-hegemónico 163

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1.2.1. Matriz social do discurso: politicidade do discurso 163

1.2.2. Efeitos ideológicos do discurso: políticos e económicos 175

2. Dos Textos 185

2.1. Do discurso hegemónico 189

2.1.1. Prática discursiva 189

2.1.2. Vocabulário 198

2.2. Do discurso contra-hegemónico 208

2.2.1. Prática discursiva 208

2.2.2. Vocabulário 214

IIVV DDOO DDIISSCCUURRSSOO CCOONNTTRRAA--HHEEGGEEMMÓÓNNIICCOO,, OOUU RREEFFLLEEXXÕÕEESS CCOONNCCLLUUSSIIVVAASS 222255

BBIIBBLLIIOOGGRRAAFFIIAA 233

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

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ÍÍNNDDIICCEE DDEE FFIIGGUURRAASS

Figura 1: Modelo quadripolar a partir de Bruyne, Herman e Schoutheete

(1974) 68

Figura 2: Relação entre a análise de discurso e o modelo quadripolar de

Bruyne, Herman e Schoutheete (1974) neste trabalho 69

Figura 3: A abordagem dialética-relacional da ACD enquanto espaço

metodológico no modelo quadripolar de Bruyne, Herman e Schoutheete

(1974) 69

Figura 4: O papel do discurso na constituição do mundo (adaptado de

Phillips e Jørgensen, 2002: 20) 73

Figura 5: O papel do discurso na constituição do mundo, na perspetiva de

Laclau e Mouffe e da Análise Crítica do Discurso (adaptado de Phillips e

Jørgensen, 2002: 20) 80

Figura 6: Discurso como texto, interação e contexto, segundo Norman

Fairclough (1989). 86

Figura 7: Conceção tridimensional do discurso de Norman Fairclough

(1992). 88

ÍÍNNDDIICCEE DDEE QQUUAADDRROOSS

Quadro 1: Categorias analíticas no modelo tridimensional de Fairclough

(1992) 89

Quadro 2: Modelo da abordagem dialética-relacional (a partir de

Fairclough, 2009) 96

Quadro 3: Modelo de Análise Crítica do Discurso neste trabalho (a partir

da abordagem dialética-relacional desenvolvido por Fairclough, 2009) 99

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Quadro 4: Documentos em análise segundo ordens de discurso

previamente identificadas 102

Quadro 5: Codificação dos documentos em análise 104

Quadro 6: Dispositivo de análise da prática social 106

Quadro 7: Dispositivo de análise dos textos 106

Quadro 8: Operacionalização do modelo de Análise Crítica do Discurso

neste trabalho (a partir da abordagem dialética-relacional desenvolvido por

Fairclough, 2009) 108

Quadro 9. Discurso hegemónico em análise no cruzamento do ciclo das

políticas com o processo de elaboração política 142

Quadro 10. Caracterização ideológica do discurso hegemónico em análise 162

Quadro 11: Matriz social do discurso contra-hegemónico em análise 175

Quadro 12. Caracterização ideológica do discurso contra-hegemónico em

análise 183

Quadro 13. Caracterização do vocabulário no discurso hegemónico em

análise 208

Quadro 14. Caracterização do vocabulário no discurso hegemónico em

análise 223

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II IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO

“[É] legítimo associar numa mesma análise a questão

da utilidade das ciências sociais, a do envolvimento do

investigador, a das suas orientações teóricas e,

prolongamento quase natural, a das suas decisões

metodológicas.”

Michael Wieviorka, Nove Lições de Sociologia

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1. Todas as investigações têm uma história pessoal1

O trabalho que aqui apresento para obtenção do grau de Doutoramento em

Ciências da Educação é, inevitavelmente, indissociável dos meus percursos,

pessoal e profissional, que, ao entrecruzarem-se, vão delineando o caminho

seguido e a seguir. Esta indissociabilidade é, aliás, muitas vezes uma marca

deste tipo de trabalhos, podendo-se mesmo afirmar que, em ciências da

educação, a implicação é interior ao próprio trabalho de investigação na medida

em que, tal como afirma Barbier (1985)2, existe um

“(…) engajamento pessoal e coletivo do pesquisador em e por sua práxis

científica, em função de sua história familiar e libidinal, de suas posições

passadas e atual nas relações de produção e de classe, e de seu projeto

sócio-político em ato, de tal modo que o investimento que resulte

inevitavelmente de tudo isso seja parte integrante e dinâmica de toda

atividade de conhecimento. (Barbier, 1985: 120).

Devido ao meu percurso profissional na Faculdade de Psicologia e de

Ciências da Educação da Universidade do Porto, mas também ao meu percurso

académico e pessoal em termos de intervenção cívica, os meus interesses de

trabalho foram-se desenvolvendo em torno da compreensão da gestão política da

mudança social, tendo por referência os processos de globalização e

1 Por norma, os trabalhos académicos são escritos na primeira pessoa do plural, usando-se, assim, um “nós” que pode querer indiciar a pertença a uma comunidade mais vasta (a comunidade académica a que o investigador se reporta e onde se inclui) e/ou que pode ser interpretado como um “plural de modéstia”, na medida em que o/a autor/a reconhece à sua comunidade científica um contributo na produção do seu trabalho. Não é esta a minha opção na escrita deste trabalho. Não obstante reconhecer o contributo de diversos autores – como será visível ao longo do texto –, opto pela primeira pessoa do singular, um “eu” que me implica em cada palavra e ideia aqui expressa, que me responsabiliza perante todo/as que me leem e que me afirma enquanto autora deste trabalho. Recuso também o “nós” majestático, de porta-voz de algo ou alguém que não pediu para ser representado, porque defendo a minha responsabilidade individual por tudo o que aqui é afirmado. 2 As datas das obras citadas ao longo do texto referem-se, sempre, à edição consultada e não, necessariamente, à edição original.

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reescalonamento do Estado e diferentes tipos de atores políticos3,

problematizados entre estrutura e ação social. Este interesse forma-se, como

dizia, no quadro das minhas experiências pessoais e profissionais e é também

muito influenciado pelos trabalhos de Stephen Stoer e António Magalhães (2005),

nomeadamente, na ideia por eles desenvolvida de que, atualmente, a justiça

social – que derivaria da justiça económica, segundo a matriz moderna – não

emerge separada da justiça económica, sendo que esta é muitas vezes

reconfigurada pela primeira, e que a cidadania, ao invés de ser atribuída, é,

conscientemente, cada vez mais reclamada.

Também o meu envolvimento numa Organização Não Governamental para o

Desenvolvimento (ONGD) como voluntária, associada e dirigente, permitiu-me ir

conhecendo o modo como estas organizações trabalham e ter contacto com uma

realidade cada vez mais presente na sociedade. Ao mesmo tempo, constatei que

no mundo associativo e das ONGD‟s existe um conjunto de expressões que se

constitui numa terminologia própria, partilhada por membros de diversas

organizações e que, do meu ponto de vista, permite codificar formas específicas

de ação, conferindo, a quem partilha esse código, a pertença a um dado grupo.

São exemplo disso expressões como capacitação, monitorização ou educação para

o desenvolvimento que são usadas pelas ONG‟s para descrever práticas,

configurar modos de ação, sem no entanto serem explicitadas de modo claro

quanto ao(s) seu(s) significado(s).

3 Em particular, a análise dos processos de gestão política da mudança social tem sido abordada por mim a partir da discussão das funções e papéis de atores políticos diversos no “ciclo das políticas” (Bowe, Ball e Gold), na elaboração e implementação das políticas sociais e educativas e dos sentidos sócio-políticos e educativos destas. Neste sentido, em trabalhos de natureza diversa, venho problematizando a intervenção de atores políticos transnacionais (como a ONU), supranacionais (como a União Europeia), nacionais (como o Governo) e de outros atores situados a diferentes escalas do espaço nacional e com diversos estatutos no processo político (tais como o as estruturas descentralizadas do Governo nacional – por exemplo, as Comissões de Coordenação do Desenvolvimento Regional – as autarquias locais ou associações com intervenção no campo do desenvolvimento local (Cf. Costa, 2001; Costa, Jordão e Terrasêca, 2004; Terrasêca e Costa, 2005).

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É com base nestas constatações e interesse geral que este trabalho se

inscreve no tema da educação para o desenvolvimento4, expressão que tem vindo

a ser cada vez mais utilizada, no âmbito de ações de cooperação internacional de

luta contra a pobreza, por organismos da sociedade civil (ONG‟s nacionais e

internacionais) e por instâncias de influência e de decisão política (por exemplo, a

União Europeia e o Instituto de Apoio Português ao Desenvolvimento tutelado

pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros Português)5, sem que haja, no entanto,

uma reflexão científica e crítica sistemática no panorama da produção académica

nacional sobre o que está subjacente ao conceito e às práticas de educação para

o desenvolvimento.

Clarificado o tema e o interesse pessoal relativo a ele, importa agora refletir

sobre a relevância científica e social, ou seja, qual o interesse, em termos de

produção de conhecimento em ciências da educação, em interrogar a educação

para o desenvolvimento e que utilidade social poderá ter um trabalho sobre este

assunto. A abordagem a estas questões impõe uma clarificação sobre o papel das

ciências sociais, onde as ciências da educação se incluem, e também sobre a

identidade destas últimas.

4 Ao longo do texto irei destacar, em itálico, a expressão „educação para o desenvolvimento‟, dado ser um termo central a ser interrogado. 5 Ao nível de organismos da sociedade civil, e a uma escala europeia, o reconhecimento da importância da educação para o desenvolvimento no âmbito das estratégias de cooperação internacional no campo do desenvolvimento, pode evidenciar-se pela recente criação de um European Multi-Stakeholder Steering Group On Development Education, responsável pela elaboração de relatórios que procuram dar conta dos “processos e esforços realizados, ao nível europeu, pelas partes interessadas na educação global/para o desenvolvimento, no sentido de discutir e dar forma a perspetivas comuns, conceitos, standards, e políticas coordenadas na sua área de ação” (Krause, 2010: 3). À escala nacional assistiu-se, também recentemente, à definição de uma “Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento” que Guimarães e Santos (2011) reconhecem resultar do reconhecimento da importância da educação para o desenvolvimento para a compreensão das causas e consequências da pobreza e para melhorar o impacto dos esforços de desenvolvimento e incrementar o debate nos países desenvolvidos em torno destas questões. Mas, mais particularmente resulta quer da longa tradição neste domínio das ONGD portuguesas, quer do reconhecimento governamental desta forma de cooperação que resultou na promoção de linhas próprias do seu financiamento e na sua assumpção explícita como prioridade sectorial dentro da “Visão Estratégica para a Cooperação Portuguesa” (em documento datado de 2005), bem como na assinatura de declarações internacionais de compromisso com a promoção da educação para o desenvolvimento.

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Numa obra publicada em 2008 (em português em 2010), Michel Wieviorka

coloca uma questão que se poderia julgar ultrapassada (até porque ela tinha já

sido aflorada pelo autor no Relatório “Para abrir as Ciências Sociais”, em 1994):

“Para que servem as ciências sociais?” (Wieviorka, 2010: 69). Apesar do

desenvolvimento e consolidação das ciências sociais e humanas ao longo de

décadas este parece ser um tema ainda relevante, sobretudo, no que toca às

questões relacionadas com a pertinência e com a fiabilidade das ciências sociais:

os seus produtos, o papel do/a investigador/a e os métodos. Se a questão se

coloca às ciências sociais e humanas, genericamente consideradas, ela é ainda

mais premente quando se trabalha em ciências da educação, dada a “relativa

instabilidade do seu estatuto epistemológico” (Correia, 2001: 20).

Correia (1998; 2001) argumenta que essa instabilidade deriva,

essencialmente, de características internas ao campo educativo, nomeadamente,

a impossibilidade de “se proceder a uma estabilização das distinções entre factos

e opiniões, entre sujeitos e objectos, entre o indivíduo e a sociedade, entre o

educativo e o não-educativo”. (Correia, 2001: 20), o que não significa, no entanto,

que essas distinções não existam, mas sim que a investigação em ciências da

educação necessita de ter como referência essa instabilidade que complexifica o

processo de investigação e que restitui singularidade às práticas de investigação

(Correia, 1998). Rui Canário (2003), após uma análise das fronteiras que

separam a ciência de outras formas de conhecimento, e as ciências da natureza

das ciências sociais, sustenta que a especificidade das ciências da educação (não

só destas mas de todas as „ciências de…‟), face a outras ciências sociais, reside

no derrubar de fronteiras disciplinares clássicas, tentando assim superar

compartimentações territoriais sem, no entanto, eliminar a diversidade possível

de olhares. Pelo contrário, “(…) o conhecimento fecundo de uma realidade social

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una6 apela a uma diversidade de abordagens, ou seja, de pontos de vista, na qual

as ciências da educação participam.” (Canário, 2003: 17). Neste sentido, as

ciências da educação podem ser vistas, na perspetiva de Rui Canário, como um

contributo para “reconceptualizar a abordagem do social multiplicando a

possibilidade de olhares multireferenciais” (2003: 20).

De facto, as especificidades das ciências da educação, ao romperem com as

fronteiras disciplinares, concorrem para uma conceção de investigação que, de

alguma forma, se inscreve naquilo que Santos (1996) considera ser a nova

divisão científica da ciência. Segundo este autor, “[a] fragmentação pós-moderna

não é disciplinar e sim temática. Os temas são galerias por onde os

conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros” (Santos, 1996: 47). Este

exercício de “bricolage reflexiva” (Correia, 1998: 130) – e que se enquadra na

multirreferencialidade constitutiva da identidade das ciências da educação

(Canário, 1996) – permite que a ciência se constitua como “tradutora, ou seja,

incentiv[e] os conceitos e as teorias desenvolvidos localmente a emigrarem para

outros lugares cognitivos, de modo a poderem ser utilizados fora do seu contexto

de origem” (Santos, 1996: 48).

Ora, esta é, de alguma forma, uma das intenções deste trabalho e uma das

suas potenciais relevâncias científicas: ao centrar-se no tema das relações entre

educação e desenvolvimento, necessariamente serão convocados contributos

teóricos de áreas disciplinares diversas como a sociologia e a economia num

olhar inevitavelmente multirreferencial que se ancora no que Berger (1992:29)

caracteriza como investigação em educação7: “menos dependente das disciplinas

já constituídas e [que] define o seu objceto a partir do conjunto de práticas que

dizem respeito ao acto educativo, sejam elas práticas familiares, práticas de

6 O destaque é do autor. 7 O destaque é do autor.

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ensino ou práticas institucionais”. Deste modo, o que está aqui em causa não é o

que diz a sociologia ou a economia sobre a educação, o desenvolvimento ou a

educação para o desenvolvimento, mas sim como é que esta última se constrói e

de que modo diferentes olhares teóricos podem contribuir para abordar esse

discurso e prática educativa, ou seja, construí-la enquanto objeto teórico de

análise.

Do ponto de vista da relevância social, importa, antes de mais, considerar a

estreita ligação entre esta e a pertinência científica, que caracteriza toda a

atividade de investigação. Nas ciências sociais esta ligação caracteriza-se pela

reflexividade da vida social moderna (Giddens, 1996), na medida em que

“as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de

informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim

constitutivamente o seu carácter [e dado que] todas as formas de vida social

são parcialmente constituídas pelo conhecimento que os actores têm delas”

(Giddens, 1996: 27).

Deste modo, a relevância social das ciências da educação, e das ciências sociais

em geral, ao permitirem à sociedade pensar-se a si própria tendo em conta a

informação adquirida sobre elas (Canário, 2003), encontra-se, sobretudo, na

promoção de processos de reflexividade social, ou seja, “as ciências da educação

retiram a sua pertinência do modo como se inscrevem e se relacionam com um

meio ambiente social em que estão inseridas. Neste sentido, todo o trabalho de

investigação representa uma resposta, directa ou indirecta, a uma “procura”

social.” (Canário, 2003: 23).

Esta “procura social”, a que se refere Rui Canário, relaciona-se com factos

sociais que se tornam notados e que se constituem enquanto ponto de partida

geral para interrogar o mundo social. Neste trabalho, esse ponto de partida

surgiu com a constatação de uma realidade social protagonizada por diversos

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atores. As ONG‟s que trabalham na área da cooperação para o desenvolvimento

incluem a educação para o desenvolvimento como uma das suas áreas de ação. A

CONCORD – Confederação Europeia das ONG de Ajuda Humanitária e de

Desenvolvimento8 define como um dos seus tópicos e matéria de trabalho a

educação para o desenvolvimento através das ONG‟s que representa e também

através de um projeto próprio.

O Banco Mundial, que se apresenta como “[t]rabalhando para um mundo

livre de pobreza”9, define-se como “uma parceria única para reduzir a pobreza e

apoiar o desenvolvimento”10. É de salientar que, de entre as 10 áreas mais

apoiadas em 2007, a educação esteve em 4º lugar e o BM assume que “[a]o

investir nas pessoas, a educação é um poderoso motor de desenvolvimento e

um dos mais fortes instrumentos para reduzir a pobreza e promover a saúde, a

igualdade de género, a paz e a estabilidade.”11. A educação é, portanto, uma das

suas áreas de ação em matéria de cooperação internacional e combate à pobreza,

através da constituição de grupos de trabalho sectoriais sobre a educação e da

produção de relatórios sobre a situação da educação em países em vias de

desenvolvimento, bem como medidas de apoio ao aumento dos níveis de

educação nestes países.

O Conselho de Ministros da União Europeia, em novembro de 2001,

aprovou uma resolução sobre educação para o desenvolvimento onde considera

“que, dada a interdependência global da nossa sociedade, a sensibilização

através da educação para o desenvolvimento e a informação contribuem para

8 Confederação que congrega 19 redes internacionais de ONG‟s e 21 associações pertencentes a Estados Membro da UE e a países candidatos, representando, assim mais de 1600 ONG‟s europeias). 9 In, http://www.worldbank.org/ , [06/06/2011]. 10 In, http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/EXTABOUTUS/0,,contentMDK:20103838~menuPK:1696997~pagePK:51123644~piPK:329829~theSitePK:29708,00.html , [06/06/2011]. 11 In, http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/TOPICS/EXTEDUCATION/0,,contentMDK:20040939~menuPK:282393~pagePK:148956~piPK:216618~theSitePK:282386,00.html , [06/06/2011].

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reforçar o sentimento de solidariedade internacional e para criar um clima

propício à emergência de uma sociedade intercultural na Europa; que essa

mesma sensibilização contribui também para alterar o modo de vida,

privilegiando um modelo de desenvolvimento sustentável para todos e, por

último, para aumentar o apoio dos cidadãos à realização de esforços

suplementares de financiamento público à cooperação para o

desenvolvimento”

e declara que o Conselho

“Deseja promover um maior apoio à educação para o desenvolvimento, bem

como à política de comunicação a ela ligada, por parte da Comissão e dos

Estados-Membros graças ao estabelecimento de relações mais estreitas entre

diferentes sectores que podem ajudar a promoção da educação para o

desenvolvimento em domínios como, nomeadamente, as ONG, as escolas, as

universidades, a formação de adultos, a formação de formadores, os meios

de comunicação audiovisuais, a imprensa, o mundo associativo e os

movimentos de juventude” (in, Resolução do Conselho de Ministros da UE,

disponível on-line).

De igual modo, em 2005, a União Europeia acordou um Consenso Europeu

sobre o Desenvolvimento comprometendo-se a uma “atenção particular à

educação para o desenvolvimento e promoção do aumento de consciencialização

entre os cidadãos europeus”12

, considerando o seu papel e estatuto de um dos

maiores financiadores dos projetos neste domínio. Como sugere Rilli Lappalainen

(2011:8), por um lado, este compromisso contribuiu paulatinamente para o

desenvolvimento em maior número de estratégias nacionais neste domínio e para

o que identifica como uma maior “atenção” dos Estados-membros, Parlamento

Europeu, Comissão Europeia e da sociedade civil para questões genericamente

inscritas nas preocupações da educação para o desenvolvimento, tais como

“aprendizagem global, cidadania ativa global, educação para o desenvolvimento

12 Parte I, secção 4.3, parágrafo 18 do Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento. In, http://ec.europa.eu/development/icenter/repository/european_consensus_2005_en.pdf

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sustentável”. Por outro lado, contribuiu igualmente para a emergência no seio da

União Europeia de processos de consulta e de investigação em torno da

“Experience and Actions of the Main European Actors active in the field of

Development Education and Awareness Raising”, plasmado no Relatório

publicado em 2010 intitulado “DEAR in Europe - Recommendations for future

interventions by the European Commission”13, e que se espera que possam

conduzir à adoção de uma “estratégia explícita de educação para o

desenvolvimento” que se reconhece ainda não existir, desta forma, no seio da

União Europeia (Lappalainen, 2011).

Não é de somenos importância recordar ainda que as Nações Unidas

definiram como uma das prioridades da sua intervenção para o decénio 2005-

2014 a educação para o desenvolvimento sustentável tendo em vista “integrar os

valores inerentes ao desenvolvimento durável em todos aspetos da educação, a

fim de suscitar uma mudança de comportamentos propícios ao favorecimento da

existência de uma sociedade mais viável e justa para todos”14.

Também em Portugal, a educação para o desenvolvimento é uma área

apoiada no âmbito da cooperação internacional – reconhecida desde 2005 em

documentos que fixam a visão estratégica para a cooperação portuguesa – sendo

que em 2005 e 2006 o IPAD – Instituto de Apoio Português ao Desenvolvimento

abriu uma linha de cofinanciamento específica para projetos de Educação para o

Desenvolvimento desenvolvidos por ONGD‟s, tendo começado a discutir, em

2008, a Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento. Em 2010, e na

sequência de um processo participativo que envolveu instituições públicas e

organizações da sociedade civil, foi publicado em Diário da República, com

assinatura dos Ministros dos Negócios Estrangeiros e da Educação, o documento

13 In, https://webgate.ec.europa.eu/fpfis/mwikis/aidco/images/d/d4/Final_Report_DEAR_Study.pdf . 14 In, http://www.unesco.org/new/fr/education/events/prizes-and-celebrations/un-decades/ .

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estratégico da Cooperação Portuguesa em matéria de Educação para o

Desenvolvimento que fixa como principal finalidade a promoção de uma

cidadania global através do acesso universal à educação para o desenvolvimento

numa perspetiva de longo prazo. Esta orientação estratégica foi ainda

complementada com um plano de ação que estabelece as prioridades e atividades

a implementar anualmente tendo como horizonte 2015, invetivando-se as

organizações que se reconheçam neste domínio a integrarem e situarem as suas

próprias atividades face àqueles documentos.

Temos, então, atores com papéis e funções distintos no âmbito do “ciclo das

políticas” (Bowe, Ball e Gold, 1992) que enfatizam as relações entre educação e

desenvolvimento e referem a centralidade e importância da educação para o

desenvolvimento. Assim, e dado que as relações entre educação e

desenvolvimento são assumidas, de forma explícita, pelos Estados e

Organizações Transnacionais15, considerando a educação como fator

imprescindível de desenvolvimento dos países, nomeadamente na luta contra a

pobreza16, a questão que se coloca é se a educação para o desenvolvimento se

15 Na bibliografia consultada não é uniforme o modo de identificação destes contextos e organizações. Para alguns autores a designação “supranacional” refere-se ao contexto de influência direta do Estado-nação enquanto que, para outros, a mesma designação é usada para se referirem às agências internacionais que influenciam os conjuntos e/ou blocos organizados de Estados-nação. Ao longo deste trabalho irei adotar a designação: transnacional para me referirs à(s) agência(s) internacionais (como a ONU e o Banco Mundial) cuja existência está para além dos Estados-nação considerados em bloco ou individualmente e regional quando me referir aos blocos político-económicos que agregam Estados-nação (p. ex. a União Europeia, a Ásia-Pacífico ou a NAFTA.). 16 Para além das organizações e documentos já referidos, e que evidenciam essa relação ao nível discursivo, também a OCDE enfatiza a relação entre educação e desenvolvimento. No entanto, esta organização não é aqui considerada por duas ordens de razão: em primeiro lugar, o nome da organização explicita o tipo de cooperação e desenvolvimento que promove: económico; em segundo lugar, os membros da OCDE – e portanto, a sua área de influência – são, maioritariamente, países ocidentais, pese embora a abertura que tem vindo a ser feita a novos membros (sobretudo em 2007 e 2010) e à extensão de contactos a 70 países não-membros. (cf. http://www.oecd.org/pages/0,3417,en_36734052_36761800_1_1_1_1_1,00.html ). Assim, a primeira ordem de razão retira pertinência à inclusão dos discursos da OCDE neste trabalho dado ser „anunciado‟ o tipo de relação entre educação e desenvolvimento que a organização privilegia, e portanto, pouco interessante do ponto de vista analítico face aos objetivos do trabalho. A segunda ordem de razão retira centralidade aos discursos desta organização dado o contexto geo-político a ser aqui considerado.

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apresenta, e de que modo, como um tipo distinto de relação entre educação e

desenvolvimento.

Obviamente que a constatação de um fenómeno social não pode ser

confundido com um objeto de pesquisa. Esta constatação é, apenas, o primeiro

passo, aquele que irá permitir a construção do objeto, uma vez que “os discursos

científicos sobre educação não podem ser encarados como discursos produzidos

sobre objectos pré-construídos, mas são antes discursos que produzem o objecto

sobre o qual procuram discorrer, contribuindo, nomeadamente, para a sua

produção científica” (Correia, 2001: 20). Assim, apresento, de seguida, o objeto,

problemática e opções metodológicas.

2. Construção da investigação: objeto de estudo, problemática e

método

Definindo a investigação como uma atividade “normal” cuja prática deve

ser racional, Bourdieu (2001) sistematiza os passos que considera serem

fundamentais num processo de pesquisa. Segundo este autor, a construção do

objeto, um processo moroso mas também a operação mais importante do

processo de pesquisa, não é um momento a priori do trabalho, mas algo que vai

sendo construído ao longo de todo o processo. A ela estão intimamente ligados

todos os outros passos que fazem parte do modus operandi científico,

nomeadamente as opções metodológicas. Bourdieu (2001) chama a atenção para

a incongruência da tradicional dicotomia entre teoria e metodologia (teoria e

prática científica), na medida em que “as opções técnicas mais «empíricas» são

inseparáveis das opções mais «teóricas» da construção do objecto.” (Bourdieu,

2001: 24), ou seja, a pertinência da opção por uma metodologia de trabalho

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empírico está diretamente relacionada, porque tem de ser congruente, com o

objeto construído. Poder-se-á, assim, antever a importância de que se reveste a

construção do objeto, já que se relaciona, isto é, interfere com as opções de

pesquisa que se assumem. Torna-se, pois, importante ressaltar que, neste

momento, apenas por uma questão de ordenação e inteligibilidade para quem lê,

estes três itens – construção da problemática, do objeto de estudo e da

metodologia de investigação – se encontram separados mas, como espero que

seja claro, com uma evidente inter-relação.

2.1. Objeto de estudo

A construção de um objeto de estudo pressupõe algumas precauções,

nomeadamente, o estabelecer da diferença entre o ato de reconhecer uma

situação, dado ou problema – o que nos coloca numa perspetiva de senso comum

– e o ato de conhecer a realidade – o que supõe o acionamento de processos de

rutura epistemológica característicos dos modos de produção de conhecimento

reconhecidos como científicos numa dada comunidade. Trata-se, no fundo, de

fazer a distinção entre o social e o sociológico: do ponto de vista sociológico não é

possível pensar em termos de realidades – o que nos faria inscrever num registo

do social – mas sim em termos de relações. Não há, portanto, uma

correspondência direta entre o „mundo‟ dos factos reais e o „mundo‟ dos objetos

teóricos e conceptuais. Estes são autónomos dos primeiros, apesar de criados a

partir da perceção construída daqueles.

Bourdieu (2001) também chama a atenção para o facto de, usualmente, os

objetos de investigação sociológica serem “realidades que se tornaram notadas”

por levantarem problemas sociais. O que permitirá a passagem dessas realidades

sociais a factos sociológicos é a abordagem relacional, ou seja, “pensar

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relacionalmente” os objetos de pesquisa. Esta “atitude investigativa” que nos

impede de pensar o mundo social de forma realista, remete-nos para uma das

noções centrais da obra de Bourdieu: a noção de campo que, segundo o autor, é

“uma estenografia conceptual de um modo de construção do objecto que vai

comandar – ou orientar – todas as opções práticas de pesquisa. Ela funciona

como um sinal que lembra o que há a fazer, a saber, verificar que o objecto

em questão não está isolado de um conjunto de relações de que retira o

essencial das suas propriedades” (Bourdieu, 2001: 27).

Assim, para abordar a questão das relações entre educação e

desenvolvimento, nomeadamente, na equação estabelecida na expressão (e

práticas de) educação para o desenvolvimento, configurou-se como objeto de

estudo as relações discursivas estabelecidas entre educação e desenvolvimento

pelos atores políticos que a assumem como central: os novos movimentos sociais.

Torna-se agora necessário definir de que modo os discursos dos novos

movimentos sociais sobre educação para o desenvolvimento serão considerados.

Dada a profusão de movimentos existentes, com áreas específicas de atuação,

seria impossível considerá-los todos. Assim, elegeu-se um movimento em

concreto – o Comércio Justo – como analisador das relações entre educação e

desenvolvimento e das conceções de educação para o desenvolvimento

protagonizadas por movimentos sociais.

Esta escolha é feita, sobretudo, pelas características que o próprio

movimento tem. Se se atentar:

a) numa definição de educação para o desenvolvimento aprovada num

Fórum de Educação para o Desenvolvimento17

“A ED é um processo de aprendizagem activa, fundado nos valores de

17 A Educação para o Desenvolvimento não tem uma definição única. Considero aqui uma definição aprovada pela CONCORD – Confederação Europeia das ONG de Ajuda Humanitária e de Desenvolvimento.

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solidariedade, igualdade, inclusão e cooperação. Permite que as pessoas

passem de um estado de sensibilização das prioridades de desenvolvimento

internacional e de desenvolvimento humano sustentável para a compreensão

das causas e efeitos das questões globais apelando a um envolvimento

pessoal e acção informada.

A ED promove a plena participação dos cidadãos de todo o mundo na

erradicação da pobreza e na luta contra a exclusão. Procura exercer

influência sobre as políticas nacionais e internacionais de modo a torná-las

mais justas e sustentáveis do ponto de vista económico, social, ambiental ou

em assuntos de direitos humanos.” (definição aprovada pelo Fórum ED no

seu encontro anual de 2004 e aprovada pela CONCORD na Assembleia Geral

de novembro de 2004, disponível on-line)

e

b) na definição do Comércio Justo:

“uma parceria comercial baseada no diálogo, transparência e respeito e que

procura uma maior equidade no comércio internacional. Contribui para o

desenvolvimento sustentável oferecendo melhores condições de comércio

tendo em conta os direitos dos produtores e trabalhadores marginalizados,

especialmente no Sul do mundo” (definição da FINE18, disponível on-line)

entendo que este movimento contém em si características que permitem que o

seu discurso se constitua como analisador.

Isto significa que o Comércio Justo – ao assumir-se como uma alternativa ao

comércio internacional promovendo a justiça social e económica, o

desenvolvimento sustentável e o respeito pelas pessoas e pelo meio ambiente

através do comércio, da sensibilização dos consumidores e de ações de educação

e informação e tendo como pano de fundo as relações Norte/Sul –, na sua

definição e génese, acumula um conjunto de propriedades que permitem que o

18 A FINE é uma rede informal que agrega as organizações de Comércio Justo: IFAT – International Federation for Alternative Trade; EFTA – European Fair Trade Association; NEWS! – Network of European World Shops; FLO – Federation of Labelling Organisations. Recentemente o IFAT mudou de designação para WFTO – World Fair Trade Organisation.

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seu discurso desempenhe um papel operatório na pesquisa, na medida em que

permitirá, num trabalho de complexificação, decompor, relacionar, tipificar e

amplificar. A potencialidade do discurso deste movimento como analisador é

precisamente a de, devido às suas características, permitir a problematização de

noções como educação, desenvolvimento, relações Norte-Sul, agência,

reflexividade e consumo ao mesmo tempo que permite estudar as relações que se

estabelecem entre elas e tipificar a qualidade e constância dessas mesmas

relações. É a partir destas dimensões que será possível, então, analisar as

conceções de educação para o desenvolvimento, discursivamente construídas, de

um modo que possibilite a sua amplificação no quadro dos novos movimentos

sociais.

A intenção é, portanto, que a análise do discurso do Comércio Justo, como

novo movimento social, em torno das relações entre educação e desenvolvimento

permita simultaneamente caracterizar e discutir o(s) conceito(s) e práticas

discursivas de educação para o desenvolvimento, tendo em conta as

especificidades dos papéis dos novos movimentos sociais e, adicionalmente,

contribuir para ampliar a discussão em torno das relações entre educação e

desenvolvimento.19 E o que faz do discurso deste movimento um analisador

interessante face a outros é o que, na minha perspetiva, se pode constituir como

a “dupla dimensão” educativa do Comércio Justo:

ser considerado, no âmbito da política de desenvolvimento da União

Europeia, um método “eficaz” de educação para o desenvolvimento (Cf.

Resolução do Conselho de Ministros da UE, de novembro de 2001);

assumir uma vertente comercial, enquanto alternativa de

desenvolvimento, mas também uma vertente educativa e política, no

19 Mais à frente, e porque faz parte da construção da problemática de investigação, explicitarei de que modo, neste trabalho, são considerados os novos movimentos sociais, através da sua caracterização.

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sentido de formar consumidores conscientes e críticos e tentando

introduzir mudanças nas políticas nacionais e internacionais.

A análise do Comércio Justo enquanto discurso e prática discursiva de

educação para o desenvolvimento, no quadro dos novos movimentos sociais,

permitirá então perceber de que se fala efetivamente quando se fala de educação

para o desenvolvimento.

2.2. Problemática de investigação

Como já referi, a identificação de um problema, grupo ou questão social

não é condição única para „ter‟ um objeto de investigação, sendo necessário

enquadrar a questão identificada num campo que permita apreender o objeto

enquanto espaço de relações, ou seja, “proceder à sua interrogação sistemática a

partir de um corpo articulado de teorias e de conceitos – uma problemática”

(Canário, 1996: 127).

Esta é uma atitude inerente à construção do objeto e que, no caso deste

estudo, significa dar conta das transformações políticas e sociais que marcam o

nosso tempo e que contribuem para a emergência de novos atores sociais e

políticos, novas políticas e novas centralidades no que à educação diz respeito. É

neste sentido que assumo, neste trabalho, o abandono dos quatro “ismos”

metodológicos que Susan Robertson e Roger Dale (2007) referem ser necessário

ultrapassar na pesquisa em educação em contexto de globalização política e

económica. Como argumento inicial, os autores referem que um dos efeitos chave

da globalização no campo da educação é a clara e evidente mudança de rumo no

que diz respeito à escala, ou seja, de um sistema educativo predominantemente

nacional para uma distribuição multiescala, mais fragmentada, envolvendo

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novos atores, novos modos de conceber a produção e distribuição de

conhecimento e novos desafios no que respeita a assegurar a mobilidade social

(Robertson e Dale, 2007). Apoiando-se nas ideias defendidas, entre outros, por

Beck e por Cox de que as mudanças ocorridas nas estruturas sociais e na

relação entre estas e o seu conhecimento, não pode ser feito através de

ferramentas ou instrumentos conceptuais que já não se adequam a esse

propósito20, os autores argumentam ser necessário ter em conta os desafios

conceptuais e metodológicos colocados às ciências sociais pelas mudanças que

foram referindo, e nomeadamente, na escala e modos de governação da, e através

da, educação.

Nesse sentido, os autores destacam quatro assumpções que, na sua

perspetiva, são tendencialmente considerados como categorias “naturais, fixas e

imutáveis, ou noutras palavras, ontológica e epistemologicamente ossificadas”

(Robertson e Dale, 2007: 3)21: o “nacionalismo metodológico”, o “estatismo

metodológico”, o “educacionalismo metodológico”, e o “fetichismo espacial”.

Estas quatro assumpções referidas estão intimamente relacionadas e

concorrem, então, para cristalizar a abordagem das ciências sociais no que à

educação diz respeito, obnubilando as transformações sociais e os novos espaços

e escalas em que a educação opera, bem como os atores que nela intervêm. A

consequência deste facto, argumentam Robertson e Dale (2007), é o risco de não

se ver de que forma os atores estão a usar estrategicamente o espaço para

20 Os autores referem mesmo o facto de Beck (in, “The cosmopolitan society and its enemies”, Theory, Culture and Society, 19 (1-2), pp. 17-44) defender a necessidade de existência de um novo léxico para descrever os fenómenos sociais na medida em que, para ele, estes não dependem do que considera serem conceitos ou categorias “zombies”: „Estado-nação‟, „identidades‟, „classes‟, etc. Não considero que estas sejam categorias dispensáveis ou de somenos importância para análise do mundo social complexo em que hoje vivemos, no entanto, tal como Robertson e Dale – ao afirmarem que os argumentos de Beck são controversos e que não têm intenção de desenvolver essa discussão –, considero que essa mesma complexidade inerente às estruturas e processos sociais impõe a necessidade de criar, ou ter em consideração, também outros conceitos, não no sentido do abandono daqueles mas do seu alargamento e complexificação através da consideração e/ou cruzamento de outras categorias. 21 A tradução para português de citações de obras originais em língua estrangeira é da minha inteira responsabilidade.

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promover novos projetos de educação com diferentes lógicas. De que modo,

então, considero ter ultrapassado os “ismos” metodológicos referidos por

Robertson e Dale (2007)?

Se, tal como afirmei, o objeto em estudo neste trabalho se constitui nas

relações discursivas estabelecidas pelos novos movimentos sociais entre

educação e desenvolvimento, nomeadamente a educação para o desenvolvimento,

o que está em causa é, claramente, olhar para além de um “nacionalismo

metodológico”. Segundo Robertson e Dale (2007), o exemplo mais claro da

existência deste é a centralidade atribuída ao Estado-nação na pesquisa em

educação, de tal forma que as sociedades são vistas como sendo contidas por

aqueles. Mas acontece que

“a base de estado, soberano e autónomo que a sociologia da educação tem,

em grande medida, tomado como adquirido, tem vindo a sofrer uma grande

erosão ao longo das duas últimas décadas (…) [a] equação de estado

(nacional) e sociedade (nacional) tem que ser problematizada (…)” (Dale,

2005: 53).

Neste sentido, é necessário ter em conta a(s) reconfiguração(ões) do Estado

numa época de globalização e como, neste contexto, o ciclo político se forma,

dando relevo a atores como as agências transnacionais e a blocos político-

económicos, bem como o papel que os novos movimentos sociais desempenham

e/ou podem desempenhar nesta(s) reconfiguração(ões) que atravessa(m) a

própria conceção e ação políticas, numa época de globalização económica, mas

também política, e que trazem implicações para o governo e para a governação do

setor educativo.

Concordo com Roger Dale quando este se refere à globalização como uma

alteração das relações estabelecidas entre os Estados-nação e as forças

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supranacionais, considerando que a globalização “não é simplesmente um

fenómeno económico ou político mas um fenómeno político-económico.” (2000:

94), na medida em que, apesar dos aspetos da economia global parecerem

escapar com facilidade ao controlo dos Estados-nação, não deixam de assentar

em aparelhos politicamente determinados (Dale, 2000 e 2005). É neste cenário

que surgem os grandes blocos de união interestadual com interesses políticos e

económicos (a União Europeia, os Estados Unidos da América – NAFTA, a Ásia-

Pacífico – ASEAN) e também as agências transnacionais que influenciam, de

modo mais ou menos direto, a formulação das políticas nacionais

(designadamente, a Organização das Nações Unidas e o Banco Mundial).

A consideração do fenómeno de desnacionalização, ou de ir para além do

“nacionalismo metodológico” (Robertson e Dale, 2007), está presente neste

trabalho exatamente na consideração da existência de diferentes níveis de

Estado, que não se confina à escala do Estado-nação. Sendo os discursos dos

novos movimentos sociais – em particular, como já clarifiquei, do movimento

Comércio Justo – o objeto em análise neste trabalho, não vou deixar de

considerar os discursos das agências transnacionais e da União Europeia (bloco

regional) relativamente à questão da educação, do desenvolvimento e da

educação para o desenvolvimento22. O motivo dessa consideração prende-se com

a hipótese da existência de modos distintos de pensar e agir sobre a realidade

social e, também, com posições e papéis distintos no contexto de globalização

política: por um lado, as agências transnacionais e os blocos político-económicos

representando um modelo de globalização hegemónica e “top-down” enquanto,

por outro, os novos movimentos sociais assumindo-se como modelo contra-

hegemónico e “bottom-up”.

22 No capítulo dedicado às questões metodológicas explicarei, mais detalhadamente, o estatuto que cada um dos discursos assumiu no trabalho.

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Intimamente articulado com “nacionalismo metodológico” (Robertson e Dale,

2007), está o “estatismo metodológico” que, nas palavras dos autores, se

“refere à tendência em assumir que existe uma forma intrínseca a todos os

Estados. Ou seja, é assumido que todas as políticas são geridas, organizadas

e administradas essencialmente da mesma forma, com o mesmo conjunto de

problemas e responsabilidades e através do mesmo conjunto de instituições.

O problema surge porque o Estado, enquanto objeto de análise, existe tanto

enquanto força material como enquanto constructo ideológico.” (Robertson e

Dale, 2007: 4)

É neste sentido que o Estado, mais do que explanans deve tornar-se

explanandum (Dale 2005; Robertson e Dale, 2007), ou seja, o Estado precisa de

ser explicado mais do que ser parte da explicação de fenómenos sociais e

políticos. A ideia de globalização política apresenta-se como particularmente

desafiadora na medida em que, não só descentra da escala nacional a

organização política dominante (desnacionalização), mas também descentra do

Estado o papel de ator principal (desestatização) (Robertson et all, 2007).

Esta necessidade de olhar para além do Estado (independentemente da

escala considerada) para compreender as dinâmicas sociais é também defendida

por Manuel Castells (2003), cuja conceptualização da “sociedade em rede” vem

reconfigurar, entre outros aspetos, o papel do conhecimento na vivência da

cidadania. E, tal como afirmam Stephen Stoer e António Magalhães,

“se, em termos modernos, a cidadania era determinada pela ligação ao

trabalho assalariado e à pertença nacional, actualmente parece depender da

integração na rede, isto é, a sua determinação alarga-se para o campo

cultural (como resultado, a cidadania, assume novas formas: em lugar de ser

«atribuída», ela é, antes, «reclamada», ou «reivindicada»”) (2003: 1191).

Tal como refere Touraine, “não é possível definir um objeto nomeado

movimentos sociais sem escolher um modo geral de analisar a vida social (…)”

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(1984: 3). O conceito de movimento social está intrinsecamente ligado ao conceito

de ação, do sujeito que age e “é agido” por estar inserido num conjunto de

determinações. Ao agir, ao “reclamar” para si próprio o exercício da cidadania,

faz com que esta se cruze e articule com os conceitos de conhecimento,

reflexividade e agência (Giddens, 1996) que despoletam a emergência de um novo

ator: os novos movimentos sociais (Santos, 1994, 2002 e 2003; Pureza e Ferreira,

2001). É que, e de acordo com Touraine (1998)

“[em] vez de se ver os movimentos sociais apenas nos levantamentos

populares que desencadeiam revoluções, a sua presença tem de ser

reconhecida em todos os aspetos da vida social onde a capacidade social

para a ação sobre si mesma está constantemente a aumentar e onde os

conflitos sociais em torno da apropriação dos principais recursos culturais

são cada vez mais vividos. (…) a nossa vida pessoal e coletiva está cada vez

mais permeada de movimentos sociais.” (: 8).

Offe (1992) refere que, desde 1970, os cientistas sociais que se dedicam à

área da política constatam a existência de uma certa fusão entre a esfera do

Estado e da sociedade civil ao nível de manifestações sociopolíticas globais e

também dos cidadãos enquanto atores políticos. Também Santos (1994) refere o

interesse da sociologia pelos novos movimentos sociais que, genericamente,

podem ser definidos como “um sector significativo da população que desenvolve e

define interesses incompatíveis com a ordem política e social existente e que os

persegue por vias não institucionalizadas” (Dalton e Kuechler, 1990, cit in

Santos, 1994). Maria da Glória Gohn (2002), num interessante e abrangente

trabalho em que analisa os paradigmas clássicos e contemporâneos das teorias

dos movimentos sociais, refere que

“[p]artindo da inadequação do paradigma tradicional marxista, denominado

por alguns clássico ou ortodoxo, para a análise dos movimentos sociais que

passaram a ocorrer na Europa a partir dos anos 60 [do século XX], assim

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como fazendo a crítica aos esquemas utilitaristas que as teorias baseadas na

lógica racional e estratégica dos atores (que analisavam os movimento como

negócios, cálculos estratégicos etc.), Touraine, Offe, Melluci, Laclau e

Mouffe, entre outros, partiram para a criação de esquemas interpretativos

que enfatizavam a cultura, a ideologia, as lutas sociais cotidianas, a

solidariedade entre as pessoas de um grupo ou movimento social e o

processo de identidade criada.” (Gohn, 2002: 121).

A autora analisa as diferenças entre as teorias dos NMS nos paradigmas

europeu e norte-americano e, dentro destes, entre diferentes autores, mas ainda

assim, estabelece algumas características teóricas básicas para a conceção e

compreensão dos NMS (Gohn, 2002: 121-124):

- a construção de um modelo teórico baseado na cultura que nega a visão

desta enquanto conjunto fixo e predeterminado de normas e valores herdados,

apropriando a base marxista de cultura enquanto ideologia mas negando a

ideologia enquanto falsa representação do real;

- partilha da importância da consciência, ideologia, lutas sociais e

solidariedade na ação coletiva de base neomarxista mas negação do principio

marxista clássico (ou ortodoxo) de entendimento da ação coletiva apenas ao nível

das estruturas, das ações de classe, que prioriza as determinações macro da

sociedade e que impedem a explicação

“[d]as ações que advêm de outros campos, tais como o político e,

fundamentalmente, o cultural; o que ocorre é uma subjugação desses

campos ao domínio do econômico, matando o que existe de inovador: o

retorno e a recriação do ator, a possibilidade de mudança a partir da ação do

individuo, independente dos condicionamentos das estruturas.” (Gohn,

2002: 122)

- eliminação da centralidade um sujeito histórico específico e pré-

determinado através da conceptualização dos atores sociais enquanto coletivo

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difuso e não hierarquizado que participam em ações coletivas fundamentadas em

ações solidárias e/ou comunitárias;

- centralidade e redefinição da política, que passa abarcar todas práticas

sociais.

O que parece ser distintivo dos novos movimentos sociais face aos „velhos

movimentos sociais‟ é a sua característica de ação coletiva organizada em torno

de preocupações tematicamente identificadas e não classistas, privilegiando

áreas como o ecologismo, o feminismo, o antirracismo, o consumo, etc., e ainda

que, tal como afirma Offe (1992), a sua base social de apoio seja composta por

segmentos bem definidos da estrutura social, aquilo que constitui a sua

verdadeira novidade é a pouca relevância de códigos socioeconómicos (como a

classe) e códigos políticos (como, por exemplo, a clivagem esquerda/direita) na

sua autoidentificação.

A relativa fusão entre Estado e sociedade civil a que Offe (1992) se refere ao

falar dos novos movimentos sociais, pode ser entendida numa outra

característica de que estes se revestem: em última análise, o impacto que os

novos movimentos sociais procuram é político, ou seja, as reivindicações feitas

traduzem-se em exigências políticas feitas ao Estado, entendido nas diferentes

escalas em que este se reconfigurou, e fazendo com que a intervenção política e a

cidadania seja “reclamada” ou “reivindicada” (Stoer e Magalhães, 2003 e 2005).

De acordo com Santos (2000), a oposição „Norte‟/„Sul‟ é uma assunção

básica dos novos movimentos sociais e o autor sugere mesmo que os guiões

alternativos à globalização hegemónica devem ser delineados através do „Sul‟.

Santos (2002: 56) refuta a ideia de que “a globalização é um fenómeno linear,

monolítico e inequívoco”. Para o autor, esta ideia prevalecente sobre a

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globalização torna-a, aparentemente, transparente e sem complexidade, “a ideia

de globalização obscurece mais do que esclarece o que se passa no mundo. E o

que obscurece ou oculta é, quando visto de outra perspectiva, tão importante que

a transparência e simplicidade da ideia de globalização, longe de serem

inocentes, devem ser considerados dispositivos ideológicos e políticos dotados de

intencionalidades específicas.” (Santos, 2002: 56). O autor destaca a falácia do

determinismo e a falácia do desaparecimento do Sul, como duas dessas

intencionalidades. A falácia do determinismo refere-se ao que se poderia chamar

de naturalização do processo de globalização, ou seja, a “inculcação da ideia de

que a globalização é um processo espontâneo, automático, inelutável e

irreversível que se intensifica e avança segundo uma lógica e uma dinâmica

próprias suficientemente fortes para se imporem a qualquer interferência

externa.” (Santos, 2002: 56), o que, para o autor, é uma ideia falsa, já que, “[a]

globalização resulta, de facto, de um conjunto de decisões políticas identificadas

no tempo e na autoria.”. Quanto à falácia do desaparecimento do Sul, Santos

(2002) refere-se às relações Norte/Sul em termos de desenvolvimento e comércio

internacional e à ideia de que

“[h]oje, quer ao nível financeiro, quer ao nível da produção, quer ainda ao

nível do consumo, o mundo está integrado numa economia global onde,

perante a multiplicidade de interdependências, deixou de fazer sentido

distinguir entre Norte e Sul (…). Quanto mais triunfalista é a concepção da

globalização menor é a visibilidade dos Sul ou das hierarquias do sistema

mundial.” (Santos, 2002: 57).

Não obstante a integração na economia mundial global, a verdade é que os

países – e até mesmo regiões do globo – se posicionam de modo distinto nessa

mesma economia global. As fronteiras entre „Norte‟ e „Sul‟ não são, então,

fronteiras estabelecidas geograficamente mas sim pela disparidade de riqueza

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entre países ricos e países pobres e pelo rácio de inclusão e exclusão dos

diferentes países e/ou regiões. O „Sul‟ é, então, visto geo-politica-

economicamente como a parte do mundo oprimida e explorada e os projetos de

globalização contra-hegemónica23 devem ser traçados a partir da sua perspetiva,

reconhecendo a relação Norte/Sul como uma relação imperial („Aprender que há

um Sul‟); identificando essa relação como profundamente injusta e

desumanizante para ambos o que significa colocar-se ao lado da vítima

(„Aprender a ir para o Sul‟) e terminar a relação imperial destruindo todas as

suas ligações, a nível pessoal e mundial, deixando de tomar o partido da vítima

para se tornar a vítima („Aprender com o Sul‟). Uma das questões que se pode

levantar é se o Comércio Justo é tão derivado da “reflexividade política” (Beck,

2000a) do Norte, da reflexividade política Ocidental, quanto do Sul, ou seja, qual

o papel que o Sul efetivamente tem neste movimento?

Atualmente, a questão do consumo tem vindo a assumir um papel central

em diversos movimentos sociais (nomeadamente ecologista, pacifista, direitos

humanos) e pode ser analisado enquanto campo de confronto entre visões

paradigmáticas e subparadigmáticas de mudança social. O autor distingue estas

duas visões da seguinte forma: “Os argumentos paradigmáticos apelam a actores

colectivos que privilegiam a acção transformadora enquanto os argumentos

subparadigmáticos apelam a actores colectivos que privilegiam a acção

23 A distinção entre “globalização hegemónica” e “globalização contra-hegemónica” é, também, feita por Santos (2002). Na perspetiva do autor, e ainda contrariando a ideia da existência de uma globalização monolítica, a “globalização hegemónica” é constituída por localismos globalizados – processo pelo qual determinado fenómeno local é globalizado com sucesso” (Santos, 2002: 71) – e globalismos localizados – “efeito específico nas condições locais produzido pelas práticas e imperativos transnacionais que decorrem de localismos globalizados” (Santos, 2002: 71). A resistência a estes dois fenómenos – isto é, à “globalização hegemónica” – faz-se através do cosmopolitismo – “organização transnacional da resistência de Estados-nação, regiões, classes ou grupos sociais vitimizados pelas trocas desiguais de que se alimentam os localismos globalizados e os globalismos localizados” (Santos, 2002: 72-73) – e do património comum da humanidade – “lutas transnacionais pela proteção e desmercadorização de recursos, entidades, artefactos, ambientes considerados essenciais para a sobrevivência digna da humanidade e cuja sustentabilidade só pode ser garantida à escala planetária.” (Santos, 2002: 75). Estes dois modos de resistência consubstanciam-se, segundo o autor, em “globalização contra-hegemónica”.

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adaptativa.” (Santos, 2002: 98). Já num trabalho anterior, o autor afirmara que

“[e]nquanto as lutas políticas subparadigmáticas visam reproduzir uma forma

dominante de sociabilidade, as lutas políticas paradigmáticas anseiam pela

experimentação social com formas de sociabilidade alternativa. (Santos, 2000:

317). Neste sentido, “enquanto, na luta política subparadigmática, a

emancipação pela qual se luta é a que é possível dentro do paradigma dominante

– e que, portanto, não questiona fundamentalmente a regulação social instituída

–, na luta política paradigmática, a confrontação ocorre entre a regulação

socialmente construída pelo paradigma dominante e a emancipação imaginada

pelo paradigma emergente. Entre as duas lutas, há uma total

incomensurabilidade.” (Santos, 2000: 319).

Ora, o modo como os atores sociais se relacionam com o consumo é muito

diverso e relaciona-se com as suas posições culturais, sociais, económicas e

políticas. Podemos identificar, por exemplo, o consumo passivo (ou consumo

alienado); o consumo estético (relacionado com estilos de vida); o consumo

reflexivo (que se refere à aplicação do conhecimento na gestão da vida pessoal e

coletiva) e interventivo (ou seja, consumo ético relacionado com questões sociais

e políticas). Este último parece ser o que está na base do movimento Comércio

Justo na medida em que, na sua génese e atualmente, pretende responder a

questões como: “o que posso fazer, no meu quotidiano, para tornar menos

injusto o sistema económico?” “O que posso fazer, enquanto consumidor, para

alterar a relação comercial injusta entre „Norte‟ e „Sul‟?” “Como posso dar um

sentido ético/reflexivo às minhas escolhas enquanto consumidor?”. Nestas

questões fica evidente o exercício de uma cidadania reflexiva na medida em que

se atribui um forte significado político a escolhas pessoais e grupais, bem como

uma dialética entre o possível e o desejável, na qual a agência é central.

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Pretende-se, portanto, passar de consumidor a „consumerista‟, ou seja, a

perspetivar o consumo como ato político usando o poder que enquanto

consumidor se pode ter.

Também de modo claro, do meu ponto de vista, este trabalho escapa ao

“educacionalismo metodológico” (Robertson e Dale, 2007), entendido enquanto

constructo abstrato e rígido: a educação vista como escolarização e sem

questionamentos conceptuais. Daí a necessidade de “explorar as implicações de

diferentes definições e fronteiras de modo a examinar novas formas de

conceptualizar a educação (…) em vez de assumir/aceitar que todos queremos

dizer a mesma coisa quando falamos de educação” (Robertson e Dale, 2007: 7).

Esta é uma das finalidades deste trabalho que, inscrevendo-se na sociologia

política e da educação-não escolar, procurará atribuir

“(...) ênfase à problemática da sociabilidade em detrimento de uma definição

do educativo e do escolar ocupada apenas com a diversificação das

oportunidades de acesso aos bens escolares (…) [procurando] formas

alternativas e, mesmo, modos contraditórios de definir politicamente a

questão educativa.” (Correia, 2001: 37).

É que, não obstante a existência de diversas obras que, desde há já algumas

décadas, apontam para o facto de a “educação estar a sair da escola” e,

consequentemente, para a necessidade de não reduzir o educativo ao escolar

(apenas como exemplo, Faure, 1972; Beillerot, 1985; Pain, 1990; Canário, 1995;

Correia, 2001), a verdade é que a forma escolocêntrica de pensar a educação

ganhou relevo, não só na investigação em ciências da educação (pelo menos no

contexto português), mas também no papel cada vez mais amplo que é atribuído

à escola pela sociedade. Pretendo, assim, de algum modo, esbater fronteiras

entre o educativo e o não-educativo através da atribuição do estatuto de

educativo a situações não escolares, na linha do que afirma Afonso (1992: 86),

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quando propõe o desenvolvimento de “uma sociologia da educação (não-escolar)

que estude como se caracterizam os contextos educativos informais, mas

sobretudo, não-formais, enquanto instâncias de reprodução ou mudança social”

através da incorporação, nas preocupações científicas da sociologia da educação,

de formas e contextos de aprendizagem que não se reduzem à instituição escolar

e onde possam ocorrer processos de educação não-formal (Afonso, 1992 e 2005).

Durante décadas, e decorrente do predomínio das Teorias do Capital

Humano, o binómio educação-desenvolvimento foi sendo construído tendo por

base a ideia de que a mais educação – entendida maior nível de escolarização –

corresponderia, necessariamente, um maior e melhor desenvolvimento. Esta

forma de equacionar a relação entre educação e desenvolvimento

“atingiu um sucesso considerável nos anos 60/70, com o desenvolvimento

da „teoria do capital humano‟. (…) Para a „teoria do capital humano‟, o maior

nível de qualificação académica será acompanhado de uma maior

capacidade para produzir de forma mais rápida, segura e eficiente. Nesse

sentido, tendo em atenção as repercussões que a educação teria na

produtividade do trabalho, investir em educação seria, do lado da oferta,

bastante vantajoso.”. (Cabrito, 2002: 22).

Esta teoria que encontra sustentação nos trabalhos de Theodore Schültz e,

também, segundo Lopes (2010), em Gary Becker e Jacob Mincer, é “[c]riticada

fortemente a partir da década de 60 [e] veio a retomar parte da sua importância

inicial a partir dos finais do século XX, com as novas teorias do crescimento

económico (Lucas, 1988; Romer, 1989), que priorizam o papel do conhecimento e

da investigação científica na capacidade competitiva das economias e no êxito

dos trabalhadores no mercado de trabalho.” (Cabrito, 2002: 25).

Inerente a este binómio está uma identificação, por um lado, da educação

com a escolarização e, por outro, do desenvolvimento com o crescimento

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económico. Assim, a ênfase era (é?) colocada na educação escolar e a

escolarização vista como fator de progresso e desenvolvimento económico.

Tal como já afirmei, apesar de ser muito usada por organizações da

sociedade civil, como ONG‟s, e por estruturas de influência e decisão política de

natureza diversa, tais como a ONU e a União Europeia, a noção de educação

para o desenvolvimento tem sido pouco explorada conceptualmente. O que

significa „educação‟ quando se fala de educação para o desenvolvimento? De

escolarização? Da promoção de sociabilidades? Da formação de força produtiva?

E o que significa „desenvolvimento‟ quando se fala de educação para o

desenvolvimento? De progresso? De evolução? De mudança social? De

crescimento económico?

Desenham-se, então, relações entre educação e desenvolvimento que não

são passíveis de ser entendidas de modo linear pela característica polissémica

dos dois conceitos, bem como pela complexidade de articulações que podem ser

(ante)vistas quando nos debruçamos sobre os agentes que dela se ocupam.

Torna-se necessário, então, explorar essas diferentes conceções e articulações de

modo a perceber que conceções e objetivos económicos, culturais, sociais e

políticos lhes estão subjacentes. De que modo é entendida a educação, o

desenvolvimento e a educação para o desenvolvimento para a União Europeia

(enquanto instância de decisão e de influência política), para as organizações

transnacionais (enquanto instâncias de ação ao nível da cooperação

internacional) e para os novos movimentos sociais, nomeadamente o Comércio

Justo?

Importa, portanto, perceber qual a história, formas e contextos que a

educação para o desenvolvimento foi assumindo, tentando assim, conceptualizá-

la.

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

50

Nas práticas de educação para o desenvolvimento pode perceber-se um

percurso que vai da intenção de „ajuda‟ – que se caracteriza sobretudo pela

criação de um elo de auxílio entre os países ricos (o „Norte‟) e os países pobres (o

„Sul‟) – à intenção de „transformação‟, com a tentativa de análise das causas e

consequências dos diferentes modos de desenvolvimento entre „Norte‟ e „Sul‟ e as

relações de dependência entre centro e periferia (cf. Mesa, 2005).

É possível, desde já, identificar intenções na educação para o

desenvolvimento protagonizada por organizações da sociedade civil

consubstanciadas na “Sensibilização da opinião pública em geral e de

determinados grupos específicos dos países do Norte, em particular; Campanhas

informativas e de sensibilização; Formação; Participação na definição de políticas

através de lobbying e advocacy”. (in, CIDAC – Centro de Informação e

Documentação Amílcar Cabral, 2004: 5)24.

Sobretudo através do Centro Norte-Sul, a União Europeia tem formulado

(tal como já foi referido) recomendações e diretivas sobre a importância da

educação para o desenvolvimento. Importa, pois, perceber qual o papel que a

educação para o desenvolvimento tem na agenda europeia, bem como que tipo de

relações Norte-Sul são privilegiadas.

Em novembro de 2001, uma Resolução do Conselho de Ministros da União

Europeia sobre Educação para o Desenvolvimento e sensibilização da opinião

pública europeia a favor da Cooperação para o Desenvolvimento

“[s]alienta a importância do factor "comércio equitativo", que constitui um

método eficaz de educação para o desenvolvimento. Considera que seria útil

24 De acordo com CIDAC (2004), lobbying consiste na capacidade de um dado grupo relacionado a um determinado tema, desenvolver actividades de pressão político-social, no curto e médio prazo, por meio de acções concretas concebidas para um período de tempo específico. O termo advocacy refere-se à capacidade de um dado grupo desenvolver actividades de pressão político-social, no longo prazo, motivadas e estimuladas por uma causa. Sendo ambas acções de pressão política e social, advocacy tem mais como finalidade as mudanças de comportamento, o lobbying é mais dirigido a causar mudanças políticas e legislativas públicas.

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analisar, em concertação com os meios interessados, as possibilidades de

promover ainda mais o conceito de comércio equitativo” (conforme

documento disponível on-line)

legitimando, deste modo, o Comércio Justo enquanto conceito e prática de

educação para o desenvolvimento. Esta mesma posição foi recentemente

reforçada no Relatório sobre Comércio Equitativo e Desenvolvimento, produzido

pela Comissão de Desenvolvimento em 2006 e apresentado ao Parlamento

Europeu (documento disponível on-line).

Na definição e princípios do Comércio Justo é referido, de forma explícita, o

papel que a educação assume naquilo que é enunciado como sendo as “duas

almas” do Comércio Justo, enquanto movimento internacional: a comercialização

de produtos produzidos segundo os critérios estabelecidos e a sensibilização e

educação dos consumidores numa ótica de consumo reflexivo e interventivo.

Assim, o Comércio Justo enquanto novo movimento social que se pretende

constituir enquanto modelo alternativo de desenvolvimento, no que às relações

Norte/Sul diz respeito, e por estar fortemente vinculado a práticas de educação e

desenvolvimento, poderá permitir analisar conceções e práticas que esta relação

pode assumir.

Ultrapassar o “fetichismo espacial” (Robertson e Dale, 2007), implica ter em

consideração o papel que o espaço tem em processos e relações sociais,

nomeadamente, que ele é objeto mas também resultado de lutas, o que significa

considerar a sociedade e o espaço como parte integrante um do outro, ao invés

de considerar este último apenas como o pano de fundo, ou o cenário, onde as

relações sociais têm lugar.

A contemplação de diferentes escalas em que o Estado se reconfigura não é

tida em conta neste trabalho apenas como constatação, ou seja, como um novo

contexto de definição e ação política e social, mas sim como elemento

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interpretativo, na medida em que os diferentes atores usam diferentemente o

espaço, e diferentes escalas, para agir socialmente. Significa isto que não basta

considerar a existência de um mundo globalizado que contribui para o processo

de desestatização e desnacionalização, ou seja, entender a globalização como um

processo sem sujeito mas ter em conta que aquilo que é denominado

“globalização hegemónica” (Santos, 2002) tem, como principal agente um projeto

político neoliberal que, não sendo inevitável nem indispensável, é, no entanto,

conduzido através da combinação entre Estados-nação, empresas multinacionais

e transnacionais, agências transnacionais (BM, OMC, OCDE, FMI) e organizações

regionais (Robertson, Bonal e Dale, 2002). Perante este cenário, percebemos que

o espaço de elaboração e implementação política foi alterado, e ainda de acordo

com Robertson, Bonal e Dale (2002), em termos de escala, ou seja, o espaço

político – social e discursivamente construído, bem como a sua organização,

articulação e regulação – foi reconfigurado, isto é, houve um reescalonamento

que relocaliza o território e cuja principal característica reside no projeto político

neoliberal. Ultrapassar o “fetichismo espacial” é também, abandonar uma

conceção dicotómica e cristalizada do local e do global em que o primeiro é

romantizado e o segundo diabolizado, na medida em que essa conceção contribui

para negar as possibilidades de agência. Neste sentido, torna-se relevante

perceber se, e como, o reescalonamento do espaço de ação social e política pode

ser utilizado para desenvolver movimentos sociais, ou seja, de que forma os

movimentos sociais, e neste caso específico o Comércio Justo, podem usar a

escala de modo a imporem-se “de baixo para cima”, na medida em que ao

disporem de diferentes instâncias de contestação, aumentam os espaços de ação

disponíveis em termos de agência social.

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Sintetizando o que até aqui foi dito no que diz respeito ao objeto de estudo e

à problemática:

- este trabalho tem como finalidade contribuir para a complexificação da

discussão em torno das relações entre educação e desenvolvimento;

- o objeto de estudo deste trabalho é as relações discursivas estabelecidas

pelos novos movimentos sociais para as relações entre educação e

desenvolvimento;

- assumo como hipótese de trabalho que, num contexto de globalização

política e económica e de reescalonamento do Estado, os discursos dos novos

movimentos sociais se apresentem como contra-hegemónicos, pelo que serão

esses os discursos centrais em análise, ainda que contrastados com os discursos

de outros atores políticos que assumem a educação, o desenvolvimento e a

educação para o desenvolvimento como centrais;

- assim, as questões de pesquisa, relacionadas com o discurso dos novos

movimentos sociais, debruçam-se sobre i) se, e como, aquele se constitui

enquanto discurso contra-hegemónico; ii) o que influencia e/ou determina a

produção do discurso; iii) como é produzido e organizado o discurso; iv) o que

significa educação na equação educação para o desenvolvimento; v) o que

significa desenvolvimento na equação educação para o desenvolvimento.

2.3. ‘Opções’ metodológicas

Retomando a ideia segundo a qual a construção do objeto de estudo não

pode ser separada das opções teóricas e conceptuais, mas também metodológicas

que são tomadas, pode-se considerar que, no limite, não é o/a investigador/a

que escolhe a metodologia a utilizar, mas que é na articulação coerente entre

objeto, problemática e teoria, ou seja, no modo como se pensa o processo e o

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projeto de pesquisa, que as opções metodológicas tomam forma e se „escolhem a

si próprias‟. Trata-se, pois, de deixar espaço que permita que objeto,

problemática e teoria definam opções metodológicas congruentes com o que se

pretende estudar, ou seja, não escolhemos o método: é o método que nos escolhe

a nós. Com base nesta ideia, e considerando o objetivo e objeto de trabalho acima

enunciados, a metodologia que guiou este trabalho foi a análise de discurso. Esta

„opção‟, insisto, é uma consequência do objeto, objetivo e hipótese do trabalho,

pelo que decorre do facto de estarem aqui em causa, ou seja, em estudo,

discursos e, nomeadamente, discursos políticos.

Concordo com Stephen Ball (2006) quanto à necessidade de, em trabalhos

que assumem o político como central, ou seja, em trabalhos de sociologia política

(termo que, refere Ball, foi cunhado por Jenny Ozga em 1987), se definir

conceptualmente o que se quer dizer com política25: “Para mim, muito repousa no

sentido ou possíveis sentidos que damos a política; isso afeta „como‟ pesquisamos

e como interpretamos o que encontramos.” (Ball, 2006:44). É exatamente nesse

sentido que o autor faz a distinção entre a política como discurso e a política como

texto:

“Os discursos políticos (e uso aqui o termo no sentido Foucaultiano, como

uma prática regulada que se refere a afirmações, em vez do sentido

linguístico da linguagem em uso) produzem quadros de sentido e de

evidência nos quais a política é pensada, falada e escrita. Os textos políticos

são definidos no âmbito desses quadros que constrangem mas nunca

determinam todas as possibilidades de ação (Ball, 2006: 44).

25 Stephen Ball (2006: 44) chega mesmo a colocar a questão “what is policy?”. Em português esta pergunta é ainda mais pertinente dado que a língua inglesa permite uma diferenciação entre politics e policies que não existe em língua portuguesa e que distingue a conceção ampla de uma política (politics) e a materialização desta em medidas políticas concretas (policies): “A primeira é a conceção orientadora da mudança social a implementar, as segundas são elaboradas a partir da primeira enquanto seu enquadramento orientador” (Stoer e Magalhães, 2005: 22).

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Sigo a linha de Ball (2006), na medida em que esta distinção da política

como discurso e da política como texto tem valor operatório neste trabalho,

nomeadamente, no que às implicações metodológicas diz respeito. Na perspetiva

do autor, a resposta à questão “o que é a política?” não significa a opção pelo

entendimento desta como uma ou outra coisa: na verdade, segundo Ball (2006),

a política é ambas as coisas, ou seja, é texto e discurso.

Na dimensão da política como texto, Stephen Ball (2006) enfatiza a ideia,

também defendida por Codd (1988) de que “para qualquer texto, uma pluralidade

de leitores produz uma pluralidade de leituras” (Codd, 1988: 239). Isto significa

que os autores não detêm controlo sobre os significados que os leitores atribuem

aos textos, apesar dos esforços dos autores das políticas para “controlarem” o

texto, nomeadamente, através do uso de uma linguagem que promove um

aparente interesse, ou bem, público e universal tornando oculta a diversidade de

interesses e a heterogeneidade da sociedade (Codd, 1988). No entanto, é

necessário ter em conta esses esforços e os efeitos que eles têm nos leitores (Ball,

2006) para que, em termos de análise da política como texto, não se caia na

falácia intencional (Codd, 1988, 2004) que o modelo de análise técnico-

empiricista de documentos de política implica. Significa isto que este modelo de

análise se baseia na procura das intenções dos autores, ou seja, na procura de

uma leitura “correta”, na medida em que assenta no que o(s) autor(es) pretendem

com o texto. Como perspicazmente alerta John Codd (1988, Olssen, Codd e

O‟Neill, 2004), a consideração deste tipo de preocupação – baseada nas

„verdadeiras‟ intenções dos autores do texto – sugere a ideia de que o significado

de um texto tem uma correspondência direta com as intenções de um autor,

sendo portanto uma evidência do que pretendeu exprimir. Ora, ainda segundo

Codd (1988), este tipo de abordagem tem uma impossibilidade intrínseca na

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medida em que, não só as intenções não são acontecimentos mentais privados,

como as intenções não são o mesmo que declarações de intenções, e também não

é a mesma coisa referir „intenção‟ enquanto plano prévio ou enquanto ação

realizada intencionalmente. Deste problema inerente à abordagem técnico-

empiricista, no que à falácia intencional diz respeito, decorre ainda um outro:

como alerta Stephen Ball (2006)

“é crucial reconhecer que as políticas em si mesmas, os textos, não são

necessariamente claros, fechados ou completos. Os textos são o produto de

compromissos a vários níveis (na influência inicial, na micropolítica da

formulação legislativa, no processo parlamentar e na política e micropolítica

de articulação de grupos de interesse). Eles são, tipicamente, os produtos

canibalizados de múltiplas (mas circunscritas) influências e agendas” (Ball,

2006: 44).

A acrescentar a estes compromissos há também a considerar a questão da

representação, tão bem analisada no trabalho de Stoer, Cortesão e Magalhães

(1997). Com base num exemplo de uma medida – texto – de política educativa em

Portugal, os autores defendem que a decisão política se toma no confronto entre

a diversidade de representações que cada ator político tem, ou dizendo de outro

modo, na hibridez identitária que constitui cada ator político. Significa isto que o

momento da decisão, o momento de cortar com opções, é também o momento de

escolha entre diversas fidelidades, percursos ideológicos e institucionais,

compromissos, acordos, negociações, promessas e conflitos que compõem o

decisor político, pelo que a questão levantada por Codd (1988) relativamente à

intenção é assaz pertinente e desmistificadora da suposta linearidade dos textos

políticos pois, tal como afirma Ball (2006), as políticas são representações

codificadas de modo complexo e descodificadas de modos também complexos.

Se “os textos e os seus leitores e o contexto de resposta, todos têm histórias”

(Ball, 2006: 45) não é possível, através da análise política, tornar a linguagem

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transparente para todos os leitores, nem captar na linguagem a realidade da

experiência do autor, exprimindo-a num discurso que todos os leitores

reconheçam como verdade (Codd, 1988): “o que a abordagem técnico-empiricista

é incapaz de ter em conta é o facto de a linguagem, em si mesma, ser uma esfera

de prática social necessariamente estruturada pelas condições materiais nas

quais esta prática se realiza.” (Olssen, Codd e O‟Neill, 2004: 64). É importante

então, na consideração da política como texto, ter em conta que os textos não

nascem de um vazio institucional ou social, nem da simples intenção do autor:

os textos de política são passíveis de leituras e interpretações várias, ou seja, são

“writerly texts” e não “readerly texts” (cf. distinção de Roland Barthes, referida

por Codd, 1988) na medida em que sobrevêm em contextos e discursos

ideológicos, políticos e sociais particulares. É neste sentido que, tal como afirma

Ball (2006: 45), “[é] também importante não reificar a política – não identificar a

política apenas com um conjunto de textos.”.

É nesta consideração de que a política é mais do que um conjunto de textos

que a dimensão da política como discurso deve ser entendida. É que a

consideração da política como texto foca a sua atenção no que “aqueles que

habitam a política pensam e as relações entre pensamento e ação e erra e falha

na atenção ao que eles não pensam. Assim, precisamos ter em conta o modo

como conjuntos de política, ou políticas relacionadas, exercem poder através da

produção26 de „verdade‟ e „conhecimento‟, enquanto discurso.” (Ball, 2006: 48).

Esta aceção tem, clara e reconhecidamente, a influência dos trabalhos de

Foucault (1971, 1997, 1998, 2005) no que diz respeito à ideia de que os

discursos não são sobre objetos mas que, eles próprios, constituem os objetos e,

nesse sentido, instituem “regimes de verdade”, que se constroem também a partir

do discurso político:

26 O destaque é do autor.

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“Os discursos referem-se ao que pode ser dito e pensado, mas também

determinam quem pode falar, quando, onde e com que autoridade. Os

discursos corporizam o sentido e uso de proposições e palavras. Assim, são

construídas determinadas possibilidades de pensamento. As palavras são

ordenadas e combinadas de modo particular e outras combinações são

deslocadas ou excluídas.” (Ball, 2006: 48).

A política como discurso assenta, então, na ideia de que a linguagem não é

apenas uma série de símbolos utilizados para se transmitirem mensagens sobre

um mundo exteriormente constituído, mas sim uma prática social que torna

possível a construção de uma visão do mundo e de significados (Codd, 1988).

Neste sentido, somos também „construídos‟ e „falados‟ pela política na medida em

que, ao ser discursiva, a política constrói e muda as possibilidades de pensar a

realidade social (Ball, 2006). Se a política envolve ação (ou falta dela) na seleção

de objetivos, de valores e distribuição de recursos (Codd, 1988), ou seja, se a

política constitui um projeto (ou projetos) de mudança social (Stoer e Magalhães,

2005), a elaboração de políticas constitui-se no exercício de poder através da

linguagem que é utilizada para legitimar determinada ação ou projeto de

mudança.

É por relação às dimensões textuais e discursivas da política que Codd

(1988) estabelece um quadro de referência para análise de políticas, começando

por distinguir entre análise para a elaboração da política e análise das políticas.

Esta, que se consubstancia numa apreciação crítica das políticas existentes (por

oposição à base sobre a qual as políticas são construídas, no caso da análise

para a elaboração de políticas), deverá examinar os processos que influenciam ou

determinam a construção das políticas e os valores, pressupostos, e ideologias na

base da construção das políticas. Poder-se-ia dizer que se trata de uma análise

do conteúdo das políticas, o que, de acordo com o que até agora afirmei e

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defendi, significa uma análise do discurso e do texto. Mas então o que significa

fazer uma análise do conteúdo das políticas tendo por referência que estas se

constituem enquanto discurso e enquanto texto? Ou seja, o que distingue a

análise de conteúdo e a análise de discurso, concretamente no que concerne à

análise política?

A análise de discurso tem, como principal objetivo de investigação,

analisar as perspetivas em que as relações sociais de poder se constroem no

plano discursivo, enquanto que o objetivo primeiro da análise de conteúdo é o de

captar algo que estará subjacente à superfície textual, desvendando assim o

significado dos textos e as intenções dos autores que o produziram. Segundo

L‟Écuyer (1988), a análise de conteúdo permite “descobrir o significado da

mensagem estudada” (: 50), sendo, antes de mais, uma produção de

interpretações sobre textos, interpretações essas que resultam de uma leitura

orientada e organizada dos textos submetidos a análise, ainda que aquela possa

não se limitar à mera aplicação técnica de procedimentos rotineiros e universais.

Ora, na concordância das perspetivas que até aqui tenho vindo a expor e que

suportam a minha argumentação, a análise de conteúdo, pelas suas

características acima enunciadas, adequa-se mais a uma abordagem técnico-

empiricista da análise de políticas. O trabalho de análise de conteúdo –

nomeadamente a produção de inferências –, ainda que aborde os contextos de

produção dos textos e da própria análise, resulta na construção de um outro

texto interpretativo do primeiro, de modo a compreender, interpretar e/ou

reproduzir uma realidade existente de forma independente dos textos em análise

e centrada nas intenções dos autores – intenções estas que estariam subjacentes

ao texto político –, aproximando-a assim tanto da falácia intencional como do

idealismo linguístico. (Codd, 1988; Olssen, Codd e O‟Neill, 2004). Assim, a análise

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de conteúdo pode ser um recurso metodológico central em trabalhos de

investigação que se insiram em paradigmas interpretativos ou compreensivos, em

estudos que adotem como metodologia, por exemplo, o estudo de caso, a

etnografia ou o método biográfico – situações em que os dispositivos de recolha

de dados (como as entrevistas, recolha documental, observação ou diários de

campo por exemplo), não dispensam a análise de conteúdo enquanto dispositivo

de análise que permite desocultar sentidos, intenções e práticas dos atores.

A análise do discurso concebe a linguagem – e portanto, o discurso – como

um modo de agir no mundo, contribuindo para a manutenção e/ou mudança da

estrutura social e dos modos de conceber o mundo, ou seja, é uma abordagem

que, tal como referem Robertson (2008) e Gomes (1997), procura transcender a

dicotomia entre abordagens interpretativas e estruturais. Desta forma, defendo

que este é um método (e um entendimento) mais adequado para a análise

política. De facto, o objeto que está em análise nas práticas de análise de

conteúdo é o próprio texto enquanto que na análise de discurso é o discurso,

onde o texto se inclui. Como referirei no capítulo acerca da metodologia, o objeto

da análise do discurso, e mais concretamente, da Análise Crítica do Discurso –

perspetiva adotada no meu trabalho –, é mais vasto do que o texto propriamente

dito, sendo que este é uma das dimensões dos atos discursivos passíveis de

análise27.

Se assumo a intenção de estudar as relações discursivas estabelecidas entre

educação e desenvolvimento pelos atores políticos que assumem a educação para

o desenvolvimento como prática central, torna-se fulcral interrogar o discurso e o

seu papel na constituição de representações sociais e na construção social e

política da educação e do desenvolvimento. O facto de estas duas conceções

27 Como também referirei no capítulo metodológico, na terminologia do modelo de Análise de Discurso que adotei, desenvolvido por Fairclough, os textos são uma das dimensões de análise discursiva ou semiótica, ou seja, os textos são eventos discursivos.

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serem, em si mesmas, polissémicas aumenta a multiplicidade de possibilidades

que a agregação dos dois, numa única expressão, pode indiciar. Por outro lado,

se o discurso político institui “regimes de verdade” ao delimitar um suposto bem

comum universal, através de discursos hegemónicos, é necessário considerar a

existência de “outros” discursos, contra-hegemónicos, que procuram conquistar

algum tipo de centralidade no discurso político. E essa é, como já referi, a

hipótese de trabalho por mim assumida, ao considerar os discursos dos novos

movimentos sociais.

Assim, e voltando, de novo, a Codd (Codd, 1988; Olssen, Codd e O‟Neill,

2004), os discursos a analisar serão considerados, não como discursos com um

significado autêntico ou enquanto planos para a ação política que exprimem

intenções inequívocas, mas como discursos ideológicos, construídos dentro de

contextos históricos e políticos particulares. Isto permitirá uma atitude de

desconstrução dos discursos que permita focalizar os processos da sua

produção, a organização que os discursos assumem e o que permite e delimita os

seus significados, renunciando assim à existência de discursos políticos

provenientes de “lugares brancos” ou de “não lugares” (Magalhães e Stoer,

2006b).

3. Roteiro do trabalho

Tal como a utilização da primeira pessoa do singular na escrita deste

trabalho é um desvio face ao habitual nos textos académicos, também a

organização que este trabalho assume não segue os cânones usuais numa tese

de doutoramento. De facto, esta não é uma dissertação organizada de uma forma

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„clássica‟, isto é, que comece com uma introdução, seguida de um

enquadramento teórico, ou „estado da arte‟, com um posterior enquadramento

metodológico e explanação dos procedimentos usados, para passar de seguida à

análise e conclusão. O método adotado neste trabalho desafiou a ortodoxia da

escrita de teses por duas razões: primeiro, porque as características da

perspetiva metodológica adotada – a análise do discurso – exigiram que a sua

explanação fosse feita logo no início, isto porque a análise de discurso se

constitui num “pacote completo” (Phillips e Jørgensen, 2002), ou seja, assume-se

enquanto perspetiva teórico-metodológica, pelo que se constitui também

enquanto quadro teórico. Segundo, porque sendo uma das dimensões de análise

a Prática Social – o que implica colocar em relação as estruturas sociais e os

eventos –, a existência de um enquadramento teórico na lógica da „revisão da

literatura‟ ou do situar o „estado da arte‟ pareceu-me menos profícuo do que

tecer, de uma forma articulada, os conceitos orientadores da análise com a

própria análise, evitando repetições ou sobreposições, e dando relevo ao papel

heurístico que os conceitos e perspetivas teóricas têm numa pesquisa.

Assim, após esta Introdução em que são explicitados o objeto, a

problemática de investigação e o método – ou seja, como se situa o trabalho do

ponto de vista da sua construção teórico-metodológica –, segue-se o II capítulo,

denominado Da Metodologia. Aqui é explicitado o quadro epistemológico do

trabalho e a conceção metodológica que o orientou. É também neste capítulo que

se apresenta o modelo de análise construído e todas as decisões inerentes ao

modus operandi subjacente à análise produzida.

O III capítulo é dedicado à Análise. Começo com a Análise da Prática

Social, ou seja, a análise da relação dialética entre as estruturas sociais e os

eventos sociais. Deste subcapítulo fazem parte a análise da matriz social do

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discurso e dos efeitos ideológicos que estes produzem. Este capítulo tem ainda

um outro subcapítulo dedicado à Análise dos Textos. Aqui é considerada a

prática discursiva que os textos evidenciam, quer em termos de

interdiscursividade como de intertextualidade. Uma outra dimensão consta

também deste subcapítulo: o vocabulário. Aqui serão tidos em consideração os

significados que os textos constroem, bem como os lugares comuns neles

presentes e as assunções que produzem o, e são reproduzidas pelo, discurso

enquanto modo de legitimação do mesmo.

O IV capítulo é dedicado à discussão do tipo de mudança social que a

ordem de discurso contra-hegemónica preconiza, discutindo e problematizando

as conceções paradigmáticas e subparadigmáticas que lhe possam estar

subjacentes.

São apresentados, num volume separado – Volume II-Anexos –, os

documentos que estiveram em análise neste trabalho.

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IIII DDAA MMEETTOODDOOLLOOGGIIAA

“Uma linguagem que, finalmente, diga o que temos a

dizer. Pois as nossas palavras já não correspondem ao

mundo. Quando as coisas eram um todo, podíamos

confiar nas nossas palavras para as exprimirem. Mas

essas coisas fragmentaram-se aos poucos, rasgaram-

se, ruíram num caos. E, no entanto, as nossas palavras

permanecem as mesmas. Não se adaptaram à nova

realidade. Assim, sempre que tentamos falar do que

vemos, estamos a falar com falsidade, distorcendo

assim precisamente aquilo que tentamos representar. E

agora é tudo uma confusão. Mas as palavras, como

você já sabe, são capazes de modificar. O problema é

como demonstrar isso.”

Paul Auster, A Trilogia de Nova Iorque.

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II DA METODOLOGIA

Paul de Bruyne, Jacques Herman e Marc de Schoutheete (1974), num

trabalho sobre a pesquisa em Ciências Sociais, definem metodologia,

simultaneamente, como uma lógica e como uma heurística na medida em que

“[p]ara ser fiel às suas promessas, uma metodologia deve abordar as ciências sob

o ângulo do seu produto – como resultado em forma de conhecimento científico –

mas também como processo – como génese desse mesmo conhecimento.” (: 27)

não podendo, portanto, confinar-se àquilo que os autores designam como

“«metrologia» ou tecnologia da medida dos factos científicos” (ibidem). Neste

sentido, Bruyne, Herman e Schoutheete (1974) constroem um “espaço

metodológico” quadripolar constituído pelo pólo epistemológico que “é a garantia

da objetivação – isto é, da produção – do objeto científico, da explicitação das

problemáticas da pesquisa” (Bruyne, Herman e Schoutheete, 1974: 35), pelo pólo

teórico, “que guia a elaboração das hipóteses e a construção dos conceitos

[sendo] o lugar da formulação sistemática dos objetos científicos” (ibidem), pelo

pólo morfológico, entendido enquanto “instância que enuncia as regras de

estruturação, de formação do objeto científico” (ibidem) e, finalmente, o pólo

técnico, que é o lugar que “controla a coleta dos dados, esforça-se por constatá-

los para poder confrontá-los com a teoria que os suscitou” (ibidem: 36). Nas

palavras destes autores, toda e qualquer metodologia é construída na interação e

articulação destes quatro pólos, conforme é representado pela figura seguinte:

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Figura 1. – Modelo quadripolar a partir de Bruyne, Herman e Schoutheete (1974).

Ora, a visão defendida por vários analistas de discurso (cf., por exemplo,

Wodak e Meyer, 2009; Laclau e Mouffe, 1985; Fairclough, 1989, 1992, 1995,

2003 e 2009; Phillips e Jørgensen, 2002), é a de que a análise de discurso não

pode ser usada como um método de análise separado dos fundamentos teóricos e

metodológicos da própria análise, dado não ser uma técnica de análise de dados,

mas sim um todo, um conjunto teórico-metodológico. Na feliz expressão de

Phillips e Jørgensen (2002), a análise de discurso é um “pacote completo” e,

ainda segundo as mesmas autoras, esse “pacote” contém: “1) premissas

filosóficas (ontológicas e epistemológicas) relativas ao papel da linguagem na

construção social do mundo; 2) modelos teóricos; 3) linhas/orientações

metodológicas de como abordar um domínio de pesquisa; 4) técnicas de análise

específicas.” (Phillips e Jørgensen: 4).

Neste trabalho – e adiantando já o modelo de análise desenvolvido e que

será detalhadamente apresentado nas páginas seguintes –, a relação entre o

“modelo quadripolar” e o conjunto teórico-metodológico – ou o “pacote completo”

que as autoras supracitadas referem –, de que a análise de discurso se reclama,

pode ser antevisto na Figura 2:

Pólo epistemológico Pólo teórico

Espaço

metodológico

Pólo morfológico Pólo técnico

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Pólo epistemológico

Construccionismo

social

Premissas filosóficas

Pólo teórico Estruturalismo/Pós-

estruturalismo Modelos teóricos

Pólo morfológico

Análise do discurso Linhas/orientações

metodológicas

Pólo técnico Análise Crítica do

Discurso

Técnicas de análise específicas

Figura 2. – Relação entre a análise de discurso e o modelo quadripolar de Bruyne, Herman e Schoutheete (1974) neste trabalho.

Não se trata de fazer uma correspondência direta e simplista entre os

pólos enunciados por Bruyne, Herman e Schoutheete (1974) e a análise de

discurso, mas sim, de problematizar esta última enquanto método, no sentido de

organização coerente e criticamente articulada de teorias e práticas de

investigação, ou seja, de que modo a análise de discurso se pode construir no

“espaço metodológico” (Bruyne, Herman e Schoutheete, 1974) que caracteriza a

pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Assim sendo, argumentarei, neste

parte do meu trabalho, que a análise de discurso se constitui num “espaço

metodológico” (Bruyne, Herman e Schoutheete, 1974) próprio, ou seja, é

constituída por cada um dos pólos acima referidos.

Figura 3. – A abordagem dialética-relacional da ACD enquanto espaço metodológico no modelo quadripolar de Bruyne, Herman e Schoutheete (1974).

Construccionismo social

Estruturalismo/Pós-estruturalismo

Abordagem dialética-relacional

Análise do Discurso Análise Crítica do Discurso

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70

Defenderei, portanto, que a “abordagem dialética-relacional” – modelo de

análise do discurso que uso neste trabalho – é uma abordagem construída na

interação de que Bruyne, Herman e Schoutheete (1974) falam. Uma análise

menos atenta da Figura 3., em contraste com a Figura 1., poderia indiciar que a

Análise Crítica do Discurso se constitui enquanto técnica, mas não é isso, de

todo, o que aqui expresso. Primeiro há que ter em conta que o pólo técnico, e a

sua dimensão de técnicas de análise específicas, não devem ser confundidos com

análises técnicas, ou seja, com uma tecnicidade formatada e de aplicação

rotineira e de caráter meramente procedimental. Para além disso, e conforme

mostra a Figura 3., os pólos, ou premissas no caso da Análise de Discurso, estão

todos relacionados diretamente entre si, inter-influenciando-se, pelo que o pólo

técnico, ou as técnicas de análise específicas, – no caso deste trabalho, a Análise

Crítica do Discurso – são claramente influenciadas, de forma direta, pelos outros

pólos ou premissas.

Neste capítulo metodológico pretendo explorar e apresentar esta ideia. A

argumentação que desenvolverei é, obviamente, heurística: é uma construção

cognitiva e serve para a compreensão situada da construção metodológica do

meu trabalho, não pretendendo ter uma qualquer validade externa a este nem

ser uma tipificação geral da Análise de Discurso enquanto espaço de decisão

metodológica.

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71

1. A Análise de Discurso: fundamentos epistemológicos e

teórico-metodológicos

1.1. Premissas filosóficas da análise do discurso ou o pólo

epistemológico

Numa obra clássica em que fazem a análise da construção social da

realidade, Peter Berger e Thomas Luckmann (1973) realçam a relatividade social

daquilo que denominamos „realidade‟ e „conhecimento‟ na medida em que

“aglomerações específicas da «realidade» e do «conhecimento» referem-se a

contextos sociais específicos e que estas relações terão de ser incluídas numa

correta análise sociológica desses contextos.” (Berger e Luckmann, 1973: 13). Na

conceção dos autores, isto não significa que a realidade seja inexistente, ou que

não haja materialidade subjacente aos objetos, factos ou ações, mas sim que a

materialidade desses objetos, factos ou ações é indissociável das significações

que lhes são atribuídas e que permitem transformá-los em objetos, factos e ações

específicos. Deste modo, não é possível pensar a realidade como algo exterior aos

sujeitos, mas, sim, como algo que é construído e, simultaneamente, apreendido

por aqueles através da mediação de símbolos e sinais que lhe conferem

objetivação e significado. A linguagem é um desses mediadores uma vez que

tipifica experiências e as agrupa em categorias em termos das quais a realidade

ganha sentido para um conjunto mais ou menos amplo de pessoas (Bergman e

Luckmann, 1973). Neste sentido, a linguagem não é encarada apenas como

reflexo da realidade e do mundo social mas sim um domínio onde essa mesma

realidade e mundo social são construídos e ganham sentido e significado. É neste

quadro de relativismo epistemológico e ontológico que se insere o

construccionismo social, constituindo-se este como o quadro global de diferentes

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72

abordagens de análise do discurso.

Segundo Phillips e Jørgensen (2002), a construção e operacionalização do

discurso enquanto objeto de análise num quadro de construccionismo social

implica:

- uma abordagem crítica ao conhecimento dado como certo e garantido, ou

seja, a compreensão de que o nosso acesso à realidade é feito através de

categorias que não refletem de modo transparente a realidade que “está lá fora”,

mas que é produto da nossa forma de categorizar o mundo, ou seja, produto do

discurso;

- uma visão antifundacionista do conhecimento, na medida em que,

enquanto seres históricos e culturais, as nossas visões do, e conhecimento sobre,

o mundo são produto de interações historicamente situadas. O discurso é um

modo de ação social que tem um papel na produção do mundo social e na

manutenção de padrões sociais. O facto de o mundo ser construído social e

discursivamente significa que o seu caráter não é pré-atribuído ou determinado

por condições externas, ou seja, é uma visão antiessencialista;

- a construção do conhecimento sobre o mundo e o social, bem como a

compreensão que dele fazemos, é feita através de interações segundo as quais

são construídas verdades comuns e que competem sobre o que é verdadeiro e

falso;

- algumas formas de ação tornam-se naturais e outras impensáveis,

dentro de uma particular visão do mundo, pelo que a construção social do

conhecimento e da verdade tem consequências sociais.

Em suma, a análise de discurso discute e analisa o papel que o discurso

tem na construção da realidade social e na constituição do mundo, podendo esse

papel ser representado da seguinte forma:

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O discurso é constitutivo O discurso é constituído

Figura 4: O papel do discurso na constituição do mundo (adaptado de Phillips e Jørgensen, 2002: 20).

Como mais à frente argumentarei, diferentes abordagens ou métodos de

análise do discurso, ainda que semelhantes quanto à consideração da existência

de um papel da linguagem e do discurso na constituição do mundo – o mesmo é

dizer, convergindo numa abordagem de construccionismo social –, divergem no

grau e intensidade que este papel tem, ou seja, posicionam-se diferentemente no

continuum acima representado.

1.2. Modelos teóricos de conceptualização do discurso ou o pólo

teórico

Se, epistemologicamente, a Análise de Discurso se situa no

construccionismo social, do ponto de vista do “modelo teórico” (Phillips e

Jørgensen, 2002), ou do “pólo teórico” (Bruyne e outros, 1974), ela situa-se no

quadro de referência estruturalista e pós-estruturalista (Phillips e Jørgensen,

2002). Retomando a ideia de que a realidade é construída socialmente, as

abordagens de análise do discurso assumem a proposta teórica da filosofia

estruturalista e pós-estruturalista de que o acesso à realidade é sempre feito

através da linguagem dado ser através desta que criamos representações da

realidade. Assim, a linguagem não é um mero reflexo de uma realidade pré-

existente, mas contribui, ativamente, para a construir dado que o seu significado

só é atribuído e apreendido através do discurso.

Deste modo, a linguagem não é vista apenas como um canal de

comunicação e transmissão de informação mas sim como um “sistema simbólico”

que é, simultaneamente, “estrutura estruturante” (Bourdieu, 2001) e “estrutura

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estruturada” (Bourdieu, 2001). Esta compreensão da linguagem como um

sistema não determinado pela realidade a que se refere, que não espelha a

realidade, mas, pelo contrário, que a constrói, tem a sua fundamentação na

linguística estruturalista desenvolvida com base nas ideias de Saussure. Phillips

e Jørgensen (2002) referem a importância da linguística saussuriana na

compreensão da relação entre linguagem e realidade: “Saussure argumentou que

os signos são constituídos por dois lados, forma (significante) e conteúdo

(significado), e que a relação entre os dois é arbitrária.” (Phillips e Jørgensen,

2002: 10). Assim, o significante corresponde à “forma” ou “corpo” que se vê ou

ouve da palavra e o significado àquilo que o conjunto de sons ou letras

representa. Deste modo, um materializa o outro, ou seja, um signo é,

simultaneamente, um conceito e uma “imagem acústica”, e a relação entre estas

duas faces do signo é construída e não natural:

“O sentido que atribuímos às palavras não lhes é inerente mas sim o

resultado de convenções sociais através das quais conectamos determinados

sentidos a determinados sons. (…) Saussure conceptualizou esta estrutura

como uma instituição social e, portanto, variável com o tempo.” (Phillips e

Jørgensen, 2002: 10).

O trabalho de Saussure influenciou, de modo determinante, as conceções

estruturalistas da linguagem, não só pela referida relação, socialmente

construída, entre significante e significado existente nos signos mas também pela

distinção fundamental que o autor fez entre langue – a estrutura da linguagem, a

rede de signos que dá sentido a estes últimos e que é inalterável – e parole – o

uso situado da linguagem, ou seja, o seu uso pelos falantes em situações

específicas. E na teoria saussuriana28, a langue é uma estrutura fixa e imutável

28 Para Saussure, a linguística deveria focar-se no estudo da langue uma vez que a parole estaria desqualificada enquanto objeto principal da linguística, dados os seus “vícios”, como erros, usos incorretos, idiossincrasias, etc. (Phillips e Jørgensen, 2002).

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onde a parole é desenhada, ou seja, é onde

“os signos adquirem sentido pela sua diferença com outros signos. Na tradição

Saussuriana, a estrutura da linguagem pode ser vista como uma rede de

pesca na qual cada signo tem o seu lugar como um dos nós da rede. Quando

a rede é esticada, o nó é fixado na sua posição pela distância a que fica de

outros nós, tal como o signo é definido pela sua distância face a outros signos.

A maioria da teoria estruturalista assume que os signos são fechados em

relações particulares uns com os outros: cada signo tem um lugar específico

na rede e o seu sentido é fixo.” (Phillips e Jørgensen, 2002: 11)

E é precisamente nesta conceção da linguagem enquanto estrutura estável

e imutável, característica do estruturalismo, que se dá a “viragem linguística”

protagonizada pelo pós-estruturalismo e que se traduz em duas críticas

essenciais às posições estruturalistas da linguagem. A primeira refere-se a esta

posição fixa que os signos adquiririam na linguagem, e a conceptualização desta

última enquanto estrutura estável e total. Na conceção pós-estruturalista, o

sentido ou significado dos signos pode variar de acordo com o contexto em que

são usados, pelo que as palavras não podem ser fixadas num sentido definitivo.

Isto significa que a própria estrutura da linguagem existe, mas sempre num

estado temporário, o que permite que o pós-estruturalismo dê resposta a uma

das questões insolúveis para os estruturalistas – a mudança: “Com o foco

estruturalista numa estrutura de base fixa é impossível compreender a

mudança. De onde vem a mudança? No pós-estruturalismo a estrutura torna-se

modificável e os sentidos dos signos podem mudar na relação que mantêm com

os outros.” (Phillips e Jørgensen, 2002: 11).

A segunda crítica pós-estruturalista relaciona-se com a distinção entre

langue e parole criada pela teoria do discurso saussuriana. Se, para esta, o

objeto de estudo só poderia ser a langue dado o caráter arbitrário que o uso

situado da linguagem tem (parole), o pós-estruturalismo ultrapassa esta clivagem

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na medida em que considera que é no uso concreto da linguagem que a estrutura

é criada, reproduzida e passível de ser modificada. Portanto, na conceção pós-

estruturalista do discurso, é superado o corte entre langue e parole, dado que

aquilo que faz com que os signos mudem, com que a estrutura (langue) mude, é

precisamente o uso situado da linguagem (parole), uma vez que é em atos

específicos do discurso que a estrutura é desenhada, sendo então aí que ela pode

ser reproduzida ou alterada através da introdução de ideias e significados novos.

1.3. Linhas e orientações metodológicas ou o pólo morfológico

Ainda que nem todas as abordagens de análise de discurso subscrevam

explicitamente posições pós-estruturalistas relativamente ao discurso, há

pontos-chave nos quais as diferentes propostas convergem no que diz respeito à

conceção de discurso:

- “ (…) o discurso cria representações do mundo que não são apenas reflexo de

uma realidade pré-existente, mas constrói – ou contribui para construir – a

realidade ao atribuir sentidos ao mundo, de forma a excluir sentidos

alternativos. Neste sentido, os discursos são constitutivos na construção da

realidade, incluindo o conhecimento e as identidades.” (Phillips, 2007: 285);

- uma das qualidades intrínsecas ao discurso é “a sua natureza instável,

efémera e dependente do contexto, baseada na conceção pós-estruturalista do

conhecimento, das identidades e das relações sociais enquanto contingente:

ou seja, enquanto entidades social e historicamente específicas que mudam

no tempo e no espaço.” (Phillips, 2007: 286);

- “(…) os discursos habitam espaços nos quais diferentes discursos são

articulados lado a lado ou competem em lutas para ditar a verdade” (Phillips,

2007: 286). Esta característica opõe-se à “posição Saussuriana, uma visão

estruturalista da linguagem em que esta é uma estrutura estável, imutável e

total. Assim, os discursos são modos particulares de construção do mundo em

termos de sentido, que estão em relações instáveis entre si. A produção

discursiva de sentido pode, então, ser entendida enquanto coprodução, na

qual diferentes discursos são coarticulados pelas pessoas em interações

sociais produtoras de sentido.” (Phillips, 2007: 286).

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77

Se estas são premissas similares de entre as várias abordagens de análise

de discurso, existem também diferenças importantes que distinguem essas

abordagens. Não sendo o meu objetivo fazer um trabalho sobre a análise do

discurso, apresentando e dissecando cada uma das propostas existentes,

considero, no entanto, útil salientar, ainda que de forma breve e não completa

em termos de extensão de abordagens existentes, algumas das diferenças29. O

facto de terem por base diferentes áreas disciplinares é um dos motivos que leva

a que diferentes abordagens de análise do discurso tenham características

distintivas. Uma diferença importante diz respeito ao desacordo existente quanto

ao âmbito e alcance dos discursos, ou seja, na consideração se os discursos

constituem completamente o social ou se são, eles próprios, também constituídos

por outros aspetos do mundo social. Isto implica a consideração, ou não, de

aspetos extradiscursivos, ou mesmo não-discursivos, do mundo social.

Ernest Laclau e Chantal Mouffe, em 1985, desenvolveram uma abordagem

de análise do discurso na qual os aspetos não-discursivos da realidade social não

são considerados. Isto não significa que não exista nada para além do discurso,

mas que, pelo contrário, o discurso é, em si mesmo, material. Deste modo,

instâncias como a economia, as infraestruturas e as instituições são também

parte do discurso e têm, elas próprias, uma dimensão discursiva que lhes é

constitutiva. Esta posição, ao situar-se num extremo do continuum apresentado

na Figura 1., defende que o discurso é totalmente constitutivo do mundo, sendo,

portanto, diametralmente oposta às conceções mais estruturalistas do discurso.

29 Na verdade, a diversidade de abordagens, conceptualizações, métodos e práticas de Análise de Discurso são imensas. Do mesmo modo, a classificação que delas se faz é também reveladora de uma heterogeneidade que começa, logo, pelos critérios utilizados na construção de referentes de tipologização: o âmbito ou o alcance do discurso, a definição de discurso, os objetos de análise, as correntes teóricas onde se inserem, etc. Maingeneau (1997: 16) chega mesmo a afirmar que “[v]ale dizer que, fazendo variar este ou aquele parâmetro, pode-se construir uma infinidade de objetos de análise. Na realidade, seria melhor questionar o que poderia não ser „discurso‟ ”.

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78

A abordagem de Laclau e Mouffe assenta nas contribuições pós-marxistas e pós-

estruturalistas, com ênfase na crítica ao materialismo histórico. O conceito chave

desta abordagem, o de “luta discursiva” (Laclau e Mouffe, 1985), é concebido

tendo em conta a consideração de uma instabilidade total e fundamental da

linguagem. Nesta perspetiva, diferentes discursos, cada um deles representando

modos particulares de compreender e descrever o mundo social, estão envolvidos

numa luta constante entre si para se tornarem hegemónicos, ou seja, para fixar

sentidos de linguagem de acordo com as suas perspetivas, tornando-se, assim –

ainda que provisoriamente – hegemónicos.

Não é desta forma que os discursos são considerados, neste trabalho. Tal

como Olssen, Codd e O‟Neill (2004), também defendo que a consideração da

relação entre os discursos e os domínios e práticas sociais de onde eles provêm

não é despicienda quando se analisa discursos de política e, especificamente, de

política educativa. Ou seja, na análise discursiva que tem como referência textos

políticos advogo que os discursos não podem ser vistos “simplesmente como

„textos‟, ou como langue e parole, mas sim como o conjunto de fenómenos onde, e

através dos quais, se constrói a produção social de sentido.” (Olssen, Codd e

O‟Neill, 2004: 67). Neste sentido, a perspetiva metodológica do meu trabalho

enquadra-se na Análise Crítica do Discurso (ACD) dado o seu foco na relação

entre o social e o linguístico. Para Wodak e Meyer (2009), as características

distintivas da ACD, relativamente a outras abordagens de análise de discurso,

são: o facto de ser orientada especificamente para um problema (oriented-

problem, no original), ser uma abordagem interdisciplinar no que concerne ao

quadro teórico e/ou à coleta de dados; estar interessada nos usos da linguagem

reais que se tornam naturais (e não em sistemas abstratos de linguagem), e,

portanto, no uso situado da linguagem; o estudo das funções dos contextos de

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uso da linguagem; a extensão da linguística à ação e interação, ou seja, para

além da gramática; e a extensão a aspetos não-verbais da linguagem.

Também Phillips e Jørgensen (2002) salientam características da ACD que

evidenciam a adequabilidade desta aos objetivos e objeto do meu trabalho:

1) a consideração de que as estruturas e processos sociais são

parcialmente discursivos, ou seja, existem aspetos da prática social cuja análise

implica, necessariamente, a convocação de outras ferramentas analíticas, numa

perspetiva transdisciplinar, que pode envolver, por exemplo, lógicas económicas.

Neste trabalho o contributo da abordagem da Economia Política Cultural,

desenvolvida por Bob Jessop (2004) é uma mais valia na análise dos contextos

sociais onde os discursos são produzidos. Para Bob Jessop

“A Economia Política Cultural é uma abordagem pós-disciplinar que adota a

„viragem cultural‟ na investigação económica e política sem negligenciar a

articulação da semiótica com as materialidades inter-relacionadas da

economia e da política, no âmbito de formações sociais mais vastas.” (Bob

Jessop, 2004:1).

Sendo o objeto deste trabalho a construção da relação discursiva entre

educação e desenvolvimento pelos novos movimentos sociais, a “materialidade

económica e política” referida por Jessop, bem como a análise do contexto social

onde os textos são produzidos, não poderia deixar de estar presente. É que tal

como afirma Bourdieu (1998: 151), “[n]ão há ciência no discurso considerado em

si mesmo e para si mesmo; as propriedades formais das obras só deixam

apreender o seu sentido se as reportarmos por um lado, às condições sociais da

sua produção – quer dizer às posições que os seus autores ocupam no campo de

produção – e, por outro lado, ao mercado para que foram produzidas (o qual só

pode ser o próprio campo de produção) e também, em caso de necessidade, aos

mercados sucessivos nos quais foram recebidas”.

2) O discurso é, simultaneamente constitutivo e constituído, isto é, o

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discurso é uma forma de prática social que estabelece uma relação dialética com

outras dimensões sociais. Segundo Wodak e Meyer (2009: 21) “[p]ara a ACD esta

relação não é apenas determinista mas invoca o conceito de mediação30.”. De

facto, ao contrário de Laclau e Mouffe (1985) que, como já referi, consideram que

o discurso é constitutivo do mundo, não considerando dimensões não-

discursivas do mundo social, na ACD o discurso ocupa uma posição intermédia

no contínuum agora representado na Figura 5:

O discurso é constitutivo Relação Dialética O discurso é constituído

Laclau e Mouffe ACD

Figura 5: O papel do discurso na constituição do mundo, na perspetiva de Laclau e Mouffe e da Análise Crítica do Discurso (adaptado de Phillips e Jørgensen, 2002: 20).

A abordagem da ACD permite-me, assim, analisar de que modo o discurso

produzido pelos novos movimentos sociais contribui para moldar e/ou alterar

estruturas sociais mas também como as refletem, ou seja, de que modo os

discursos considerados para análise refletem e/ou moldam e alteram os lugares

de onde eles são produzidos. A atenção a discursos de outros atores políticos,

aqui considerados como tendo uma posição hegemónica, ocupando assim outros

lugares na estrutura social – ou seja, ter em conta diferentes ordens de discurso

existentes no mesmo campo social –, permitirá ponderar a existência de

intertextualidade(s) e de eventuais conflitualidades discursivas, o que poderá ser

um elemento heurístico com um potencial interessante. Não se trata de perceber

ou realçar que afirmações estão certas e/ou erradas sobre a educação, o

desenvolvimento, e as relações que lhes são atribuídas pelos atores: o que

importa é explorar padrões dentro e através dos discursos, identificando as

30 O destaque é dos autores.

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consequências sociais de diferentes representações e construções discursivas da

realidade. Não será, certamente, aleatório o modo como a relação entre educação

e desenvolvimento é estabelecida discursivamente: „Educação, Desenvolvimento‟;

„Educação e Desenvolvimento‟; „Desenvolvimento através da Educação‟,

„Educação no Desenvolvimento, „Educação para o Desenvolvimento‟. Tal como

afirma Fairclough (1992),

“a constituição discursiva da sociedade não emana de uma associação livre de

ideias na cabeça das pessoas, mas sim de uma prática social na qual está

firmemente enraizada e orientada para as estruturas sociais materiais reais.

(…) As práticas sociais têm várias orientações – económicas, políticas,

culturais, ideológicas – e o discurso pode estar implicado em todas elas sem

que qualquer uma seja redutível ao discurso.” (: 66).

3) A linguagem deve ser empiricamente analisada no interior do seu

contexto social, dada a assumpção de que todos os discursos são históricos, ou

seja, não podem ser entendidos fora do seu contexto (Wodak e Meyer, 2009). Isto

significa que o trabalho de quem desenvolve análises críticas do discurso é

sempre baseado em análises concretas e linguísticas do uso da linguagem em

interações sociais. O que está em causa na ACD é uma articulação dialética entre

as dimensões sociais e as dimensões linguísticas do discurso, pelo que é

fundamental a distinção entre práticas discursivas e outras práticas sociais.

4) O discurso funciona ideologicamente, isto é, na conceção da ACD as

práticas discursivas têm efeitos ideológicos. Isto significa que o discurso

contribui para a criação e reprodução de relações de poder desigual entre

diferentes grupos sociais. Há aqui uma aproximação às conceções foucaultianas

do discurso, nomeadamente, na conceção de poder, visto como uma força

produtiva – portanto, que produz sujeitos e agentes – em contraste com uma

visão do poder entendido enquanto propriedade dos indivíduos. Neste trabalho,

esta é uma conceção importante, na medida em que o reconhecimento de

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diferentes tipos ideológicos de discurso é uma das características que permite

perceber por que razão a linguagem é importante no domínio político e,

especificamente, no domínio das políticas de educação e de desenvolvimento.

Como afirma Fairclough, “a luta pela linguagem pode manifestar-se como uma

luta entre tipos de discursos ideologicamente diversos.” (1989: 90) e o que está

em causa nessas lutas é qual discurso se torna dominante. Trata-se, portanto, –

e de acordo com a distinção feita por Roland Barthes (referida por Codd, 1988) –

de não „consumir‟ passivamente os textos, encarando-os como “readerly texts”,

mas sim de os tratar como produtos ideologicamente contextualizados,

contribuindo para a sua leitura enquanto “writerly texts”.

5) Por fim, uma última característica distintiva que aproxima as diferentes

abordagens no âmbito da ACD, é o facto de elas serem críticas, ou seja, de se

situarem num modelo de pesquisa crítico. Isto significa, segundo Wodak (2004)

“distanciar-se dos dados, situar os dados no social, adotar uma posição política

de forma explícita, e focalizar a autorreflexão, como compete a estudiosos que

estão fazendo pesquisa.” (: 234). Não obstante a diversidade de noções que o

conceito „crítica‟ pode ter, o que ressalta de comum em bibliografia diversa é este

caráter de implicação e/ou posicionamento que impede a ACD de ser

politicamente neutra, isto é, a „crítica‟ é entendida como a preocupação em

desvendar o papel do discurso na manutenção de relações de poder desiguais. É

esta preocupação que torna a abordagem crítica politicamente comprometida

com a mudança social. Ora, no meu trabalho, este compromisso com a mudança

social, no sentido de perceber o que se mantém nos discursos sobre educação e

desenvolvimento e se, e como, a mudança pode acontecer, é um compromisso

assumido, nomeadamente, quando tenho como hipótese que os discursos dos

novos movimentos sociais se podem constituir como contra-hegemónicos no que

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àquela relação diz respeito, pelo que a designação educação para o

desenvolvimento, usada pelos novos movimentos sociais, pode indiciar uma

redefinição da articulação entre os conceitos.

O caráter crítico da ACD articula-se com dois outros conceitos centrais

desta abordagem: a ideologia e o poder. Não obstante, tal como chamam a

atenção Wodak e Meyer (2009), os conceitos de ideologia e de poder não serem

consensuais entre as diferentes abordagens de ACD31, pode-se genericamente

considerar que a abordagem crítica em ACD pretende revelar estruturas de poder

e desmascarar ideologias dominantes, entendidas enquanto “o tipo de crenças

comuns escondidas e latentes, que, muitas vezes, aparecem disfarçadas de

metáforas conceptuais e analogias” (Wodak e Meyer, 2009: 8). Relativamente ao

poder, a sua centralidade em ACD reside no facto de, “a maior parte das vezes se

analisar a linguagem daqueles que estão no poder. Tipicamente, os

pesquisadores de ACD interessam-se pelo modo como o discurso (re)produz a

dominação social, ou seja, o abuso de poder de um grupo sobre outro

(…)”(Wodak e Meyer, 2009: 9). Assim sendo, qual a pertinência da ACD para

quem, como eu, está interessada em estudar discursos que se preveem contra-

hegemónicos? Através desta abordagem poderei perceber se, e como é que, os

novos movimentos sociais resistem discursivamente a discursos dominantes e

produzidos por quem tem poder, e de que modo estes diferentes discursos

coexistem.

31 Os autores chegam mesmo a afirmar que “é importante sublinhar que a ACD nunca foi, nem nunca tentou ser ou providenciar, uma única e específica teoria. Do mesmo modo, nenhuma metodologia específica é característica de ACD. Pelo contrário, os estudos em ACD são múltiplos, derivados de quadros teóricos bastante diferentes e orientados para diferentes métodos e dados. (…) As definições dos termos „discurso‟, „crítica‟, „ideologia‟, poder‟ e outros são também múltiplos. Assim, qualquer crítica à ACD deve sempre especificar a que pesquisa ou pesquisador se refere.” (Wodak e Meyer, 2009: 5). Neste trabalho dos autores agora referidos é feita, precisamente, uma

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Tal como desenvolverei de seguida, o modelo de ACD que adotei neste

trabalho ancora-se na abordagem dialética-relacional desenvolvida por Norman

Fairclough (2009). Para já, importa referir que, no que às questões de crítica,

poder e ideologia diz respeito, genericamente, Fairclough (2009) considera que a

ACD é crítica no sentido em que

“[a] ciência social crítica tem por objetivo contribuir para chamar a atenção

para os „males‟ sociais32 (em sentido lato – injustiça, desigualdade, falta de

liberdade, etc.) através da análise às suas fontes e causas, às resistências e às

possibilidades de os superar. Podemos dizer que tem, simultaneamente, um

caráter „negativo‟ e „positivo‟. Por um lado, analisa e procura explicar

dialecticamente relações entre a semiótica e outros elementos sociais para

clarificar como é que a semiótica opera no estabelecimento, reprodução e

mudança de relações de poder desiguais (dominação, marginalização,

exclusão de algumas pessoas por outras) e em processos ideológicos, e como,

em termos mais gerais, tem efeitos no „bem-estar‟ humano. Estas relações

requerem análise porque não existem sociedades cuja lógica e dinâmica,

incluindo o modo como a semiótica opera nelas, sejam totalmente

transparentes: as formas segundo as quais aparecem às pessoas são, muitas

vezes, parciais e, em parte, enganadoras. Por outro lado, a crítica é orientada

para analisar e explicar, com foco nestas relações dialéticas, as diversas

formas em que a lógica e dinâmica dominantes são testadas, desafiadas e

corrompidas pelas pessoas, bem como identificar possibilidades que estas

sugerem para superar obstáculos que permitam enfrentar os „males‟ e

melhorar o bem-estar.” (Fairclough, 2009: 163).

interessantíssima análise de diferentes abordagens de ACD tendo em conta as suas semelhanças e, também, as suas diferenças. 32 Social „wrongs‟, no original. Numa conferência proferida em 2008, a que tive oportunidade de assistir, Fairclough explicou que usa o termo „social wrong‟ em detrimento de „social problem‟ uma vez que esta última expressão levaria a procurar identificar „soluções‟ para o „problema‟ referido. No entanto, na sua perspetiva, nem todos os problemas têm solução porque, muitas vezes, o que é identificado como um suposto „problema‟ é funcional à ordem social existente, pelo que, a sua „resolução‟ não é possível sem a alteração dessa mesma ordem. Fairclough (2009:186), em nota de fim de artigo, refere: “(…) penso que construir os males como „problemas‟ que precisam de „soluções‟ – que, em princípio podem ser providenciadas ainda que não estejam ainda em prática – é parte do discurso autojustificativo (e, poderíamos dizer, ideológico) dos sistemas sociais contemporâneos em países como Inglaterra. A objeção a isto é que alguns males são produzidos pelos sistemas e não são resolúveis no seu interior.”.

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1.4. Técnicas de análise específica ou o pólo técnico

Um dos precursores da ACD foi Norman Fairclough, cuja obra Language

and power, publicada em 1989, faz uma das primeiras abordagens à ACD33,

focando a linguagem e o discurso enquanto instrumentos de poder, com a

intenção de

“corrigir uma subestimação generalizada do significado da linguagem na

produção, manutenção e mudança das relações sociais de poder [e] ajudar a

aumentar a consciência de como a linguagem contribui para o domínio de

umas pessoas sobre outras, porque a consciência é o primeiro passo em

direção à emancipação.” (Fairclough, 1989: 1).

Nesta obra, Fairclough (1989) especifica que o sentido que atribui à

linguagem é o de “linguagem como modo de prática social”, o que, segundo o

mesmo, implica considerar a linguagem parte da sociedade e não algo exterior a

ela; que a linguagem é um processo social; e que a linguagem é um processo

socialmente condicionado, nomeadamente, por outras partes não-linguísticas da

sociedade (Fairclough, 1989). Isto não significa que a relação entre linguagem e

sociedade seja uma relação simétrica, ou seja, que sejam duas faces equivalentes

de um mesmo processo. Fairclough (1992) considera a linguagem como uma das

vertentes do todo que constitui o social, isto é, o social é constituído por

elementos linguísticos e não-linguísticos. É esta relação entre linguagem e

sociedade como sendo não simétrica que molda a conceção analítica de discurso

de Fairclough a partir da distinção entre texto e discurso:

“Um texto é um produto mais do que um processo – um produto do processo

de produção de texto. Mas usarei o termo discurso34 para referir o processo

global de interação social do qual o texto é apenas uma parte. Este processo

33 Apoio-me em Wodak e Meyer (2009) que fazem uma análise do desenvolvimento da ACD e a sua história referindo três obras como sendo pioneiras: Language and Power (Fairclough, 1989), Language, Power and Ideology (Wodak, 1989) e Prejudice in Discourse (van Dijk, 1984). 34 O destaque é do autor.

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inclui, em adição ao texto, o processo de produção35 do qual o texto é um

produto, e o processo de interpretação36, para o qual o texto é um recurso. A

análise do texto é, correspondentemente, apenas uma parte da análise de

discurso, que inclui também análise dos processos de produção e de

interpretação.” (Fairclough, 1989: 24).

Deste modo, a conceptualização da linguagem enquanto discurso,

pressupõe não só analisar textos e processos de produção e de interpretação mas

também analisar as relações entre estes e suas condições sociais de existência,

seja esta considerada em termos de condições imediatas do contexto ou das

estruturas sociais e/ou institucionais mais remotas. Neste sentido Fairclough

(1989) propõe o seguinte dispositivo de análise:

Figura 6 – Discurso como texto, interação e contexto, segundo Norman Fairclough (1989).

A operacionalização deste dispositivo implica, segundo Fairclough (1989)

três dimensões de análise crítica do discurso: i) descrição – dimensão relacionada

com as propriedades formais do texto, sendo que análise, nesta dimensão,

significa identificar características formais do texto em termos de categorias num

35 O destaque é do autor. 36 O destaque é do autor.

Condições Sociais de Produção

Condições Sociais de Interpretação

Contexto

Processo de produção

Processo de interpretação

Interação

Texto

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quadro descritivo; ii) interpretação – considera a relação entre texto e interação,

ou seja, considera, simultaneamente, o texto enquanto produto do processo de

produção e recurso no processo de interpretação, em que a análise se centra nos

processos cognitivos dos participantes; iii) explanação – relativa à relação entre

interação e contexto social, isto é, relativa à determinação social dos processos

de produção e interpretação, bem como os seus efeitos sociais. Aqui a análise

centra-se nas relações entre eventos sociais transitórios e as estruturas sociais

mais duráveis que moldam os, e são moldadas pelos, eventos.

Nos seus trabalhos posteriores, Norman Fairclough foi desenvolvendo a

sua análise em torno da relação entre a linguagem e os processos sociais,

abandonando o uso do termo linguagem substituindo-o por discurso. Com a

publicação, em 1992, de Discourse and Social Change, Fairclough complexifica a

sua abordagem de ACD, situando-a numa perspetiva de mudança social. Para

tal, Fairclough (1992) clarifica o sentido que atribui ao discurso bem como as

dimensões que privilegia de modo a redesenhar o seu dispositivo analítico do

discurso. Assim, Fairclough (1992) usa o termo „discurso‟ para se referir à

„parole‟, ou uso da linguagem, o que significa que, para si, e de acordo com

abordagens mais pós-estruturalistas da linguagem, o uso situado da linguagem

pode e deve ser estudado, na medida em que é através dele que é possível

perceber a mudança e o papel do discurso na mudança social. Fairclough (1992:

63-64) esclarece que

“ao usar o termo „discurso‟ proponho olhar para o uso da linguagem como

uma forma de prática social em vez de uma atividade puramente individual ou

reflexo de variáveis situacionais. Isto tem várias implicações. Primeiro, implica

considerar o discurso um modo de ação, uma forma segundo a qual as

pessoas podem agir sobre o mundo e, especialmente, sobre o outro, assim

como um modo de representação. (…) Segundo, implica considerar que existe

uma relação dialética entre discurso e estrutura social, sendo essa relação,

genericamente, entre prática social e estrutura social: a primeira é,

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simultaneamente, condição para e efeito da segunda. Por um lado, o discurso

é moldado e constrangido pelas estruturas sociais no sentido mais lato a

todos os níveis (…) por outro lado, é socialmente constitutivo.”.

Esta perspetiva do discurso que Fairclough defende já tinha aqui sido

anunciada, no entanto, é a sua dimensão dialética que quero aqui realçar, na

medida em que o dispositivo analítico de Fairclough tem que ser compreendido

em função dessa dimensão. Só assim é possível escapar à armadilha de

sobrevalorizar a determinação social do discurso ou a construção social através

do discurso. Tendo esta dimensão em consideração, Fairclough (1992) defende

que a análise de discurso pressupõe a articulação entre três níveis de análise que

denominou como conceção tridimensional do discurso, elaborada a partir do

dispositivo de análise anterior (ver Figura 6.).

Figura 7. – Conceção tridimensional do discurso de Norman Fairclough (1992).

Para Fairclough (1992: 72), esta conceção tridimensional do discurso é

“uma tentativa de reunir três tradições analíticas, cada uma delas

indispensável para a análise do discurso. Elas são a análise textual e

linguística detalhada da tradição linguística, a tradição macrosociológica de

análise da prática social em relação às estruturas sociais e a tradição

Prática Social

Prática Discursiva

(produção, distribuição, consumo)

Texto

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microsociológica interpretativa que vê a prática social como algo que as

pessoas produzem ativamente e a que atribuem sentido com base em

procedimentos de senso-comum partilhados.”

Assim, Fairclough (1992) sofisticou o dispositivo analítico proposto em

1989, detalhando cada um dos níveis de análise propostos, de modo a, também

assim, promover a articulação analítica de cada uma das três dimensões e a

articulação entre processos de análise macro – de cariz sociológico – e micro – de

cariz mais linguístico. No quadro seguinte apresento as categorias analíticas

propostas por Fairclough (1992) para cada um dos três níveis e dimensões

referidas:

Análise das Práticas Sociais

Matriz social do discurso Hegemonia (orientações económicas, políticas, culturais, ideológicas)

Ordens do discurso

Efeitos ideológicos e políticos

Sentidos

Pressuposições

Metáforas

Análise da Prática

Discursiva

Produção do texto Interdiscursividade

Intertextualidade manifesta

Distribuição do texto Cadeias intertextuais

Consumo do Texto Coerência

Condições da prática

Análise dos

Textos

Controlo Interaccional

Estrutura

Coesão

Polidez

Ethos

Gramática

Transitividade

Tema

Modalidade

Vocabulário

Significado

Criação

Metáfora

Quadro 1. Categorias analíticas no modelo tridimensional de Fairclough (1992).

Este é ainda o modelo mais referido do trabalho de Fairclough, pese

embora em 1999, o autor ter desenvolvido, com Lilie Chouliaraki, uma nova

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abordagem da ACD. De facto, os autores afirmam que

“[e]xistiram várias versões prévias desta forma de ACD (por exemplo,

Fairclough 1989, 1992a, 1995b). Oferecer uma nova versão do quadro

analítico neste momento está de acordo com a visão expressa [aqui nesta

obra] de que a ACD enquanto método deve ser vista como estando

constantemente em evolução à medida que se estende a sua aplicação a novas

áreas da vida social e, correspondentemente, desenvolve a sua teorização do

discurso.” (Chouliaraki e Fairclough, 1999: 59).

A nova “teorização do discurso” a que os autores se referem prende-se com

o relevo que os autores atribuem à ACD na pesquisa crítica sobre a mudança

social nas sociedades contemporâneas, ou seja, na modernidade tardia (Giddens,

1996). As três dimensões conceptualizadas por Fairclough (1992) não são

ignoradas mas é assumido, de forma mais clara, um deslocamento do linguístico

para o social, na medida em que a prática social assume uma centralidade

relativamente ao texto. Este movimento do texto para a prática social visa,

sobretudo, ultrapassar a dificuldade analítica, no modelo anterior, de

operacionalizar a dialética entre as três dimensões consideradas. Chouliaraki e

Fairclough (1999) explicam que é compreensível a tendência para o foco na

linguagem, ou seja, para o „desvio linguístico‟, mas que tal é problemático num

modelo analítico que se pretende dialético. Por outro lado, as características das

sociedades contemporâneas, com todas as alterações políticas que lhes são

reconhecidas, revelam também, na opinião dos autores, a necessidade de

enfatizar o discurso como um momento das práticas sociais, enfatizando, assim,

o papel destas na ACD, na medida em que as práticas sociais são alteradas

também discursivamente:

“Há uma insistente necessidade de teorização crítica e análise da modernidade

tardia que não pode apenas iluminar o novo mundo que está a emergir mas

também mostrar que direções alternativas não realizadas existem – como os

aspetos deste novo mundo que elevam a vida humana podem ser acentuados,

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como aspetos que lhe são prejudiciais podem ser mudados ou mitigados.

Então, a motivação básica de uma ciência social crítica é contribuir para a

consciencialização do que é, de como se tornou, e do que pode vir a ser, com

base na ideia de que as pessoas podem ser capazes de fazer e refazer a sua

vida (Calhoun, 1995). E isto é também uma motivação para a ACD.”

(Chouliaraki e Fairclough, 1999: 4).

Assume-se então, de modo claro, que o discurso é um modo ação social,

que apesar de constrangido pelas estruturas sociais é, simultaneamente, um

processo ativo de produção que pode transformar essas mesmas estruturas.

Deste modo, neste novo modelo, enfatiza-se o papel do discurso na mudança

social ao enquadrar a ACD como um modo de pesquisa social crítica.

Uma outra preocupação é expressa por Fairclough, em 2003, na obra

Analysing Discourse – textual analysis for social research. Aqui o autor preocupa-

se, sobretudo, com um detalhe relativo à análise linguística de textos na medida

em que considera que muitos cientistas sociais descuram esta componente

discursiva em termos de análise. Fairclough (2003), volta a insistir na ideia de

que a sua abordagem tenta ultrapassar a divisão estabelecida entre aqueles cujo

trabalho é inspirado na teoria social e que tendem a não analisar textos, e

aqueles cujo foco principal é na linguagem usada nos textos negligenciando

aspetos de teoria social:

“isto não é, ou não deveria ser um „ou‟. Por um lado, qualquer análise de

textos que pretenda ser significativa em termos de ciência social, tem que se

relacionar com questões teóricas sobre o discurso (por exemplo, os efeitos

socialmente „constitutivos‟ do discurso). Por outro lado, não é possível uma

real compreensão dos efeitos sociais do discurso sem olhar de perto para o

que acontece quando as pessoas falam ou escrevem.” (Fairclough, 2003: 3).

A questão que se coloca é como construir uma abordagem de análise da

linguagem em textos. Fairclough (2003) propõe uma abordagem subsidiária da

Linguística Sistémica Funcional (cf. Fairclough, 2003: 5) enfatizando aspetos

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gramaticais e semânticos. No entanto, chama a atenção para o facto de esta ser

uma abordagem possível de entre outras: segundo Fairclough (2003), é

importante, sobretudo, ter em atenção o projeto mais global que caracteriza a

ACD, e adequar a análise que é feita aos textos a esse quadro mais global,

nomeadamente através da construção de categorias de análise de textos que

permitam dar conta dos efeitos sociais do discurso. Como o próprio Fairclough

refere “este livro centrou-se apenas numa pequena parte daquilo que eu vejo

como um projeto maior – a ACD como um modo de pesquisa social crítica”

(Fairclough, 2003: 202). Nesse sentido, Fairclough (2003) esquematiza a

abordagem da ACD que defende sofisticando-a um pouco mais em 2009.

Esta nova aceção metodológica da ACD (Chouliaraki e Fairclough, 1999;

Fairclough, 2003; Fairclough, 2009), pelas características já enunciadas, e

também pela possibilidade de ultrapassar o que Stephen Ball (2006) refere como

sendo a dicotomia simplista entre estrutura e agência, é a mais produtiva na

minha análise, face ao objeto e objetivo construídos. Apoiando-se em Bourdieu,

Ball (2006) defende que estrutura e agência não são dois pólos distintos

colocados num contínuum mas sim que são implícitos um no outro, ou seja,

“vivemos e pensamos as estruturas mais do que simplesmente somos oprimidos

e limitados por elas.” (Ball, 2006: 44). É exatamente neste quadro, e nas

características da modernidade tardia (Giddens, 1996) que os novos movimentos

sociais podem ser compreendidos e os seus discursos analisados.

O dispositivo analítico do meu trabalho ancora-se na “abordagem

dialética-relacional” apresentada por Fairclough (2009), e que é a sua mais

recente proposta. Antes de o expor, apresentarei os pressupostos base da

“abordagem dialética-relacional”:

- Semiótica: Fairclough (2009) usa este termo para se referir ao discurso

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como produção de sentido enquanto elemento do processo social, o que tem a

“vantagem de sugerir que a análise de discurso é relativa a várias „modalidades

semióticas‟, sendo a linguagem apenas uma de entre elas (outras são as imagens

visuais e a „linguagem corporal‟)” (Fairclough, 2009: 163). Deste modo, o termo

„discurso‟ passa a ser usado para se referir, especificamente, tanto à linguagem

que está associada a um campo ou prática social específica (como o discurso

político, ou o discurso médico, por exemplo), como a um modo de construir

aspetos do mundo associados a uma perspetiva social específica (por exemplo, o

discurso neo-liberal, o discurso managerialista, o discurso assistencialista, etc).

- Dialética: a ACD não se foca apenas nas dimensão semiótica em si

mesma considerada, mas sim nas relações entre a semiótica e outros elementos

sociais. É esta assumpção que caracteriza esta abordagem enquanto dialética-

relacional: as relações entre elementos dos processos sociais (entre os quais, a

semiótica) são dialéticas no sentido em que estes últimos, não sendo redutíveis

entre si, também não são completamente independentes, ou seja, “[p]odemos

dizer que cada um „internaliza‟ os outros sem ser redutível a eles (Harvey, 1996) –

por exemplo, relações sociais, poder, instituições crenças e valores culturais são

em parte semióticos; „internalizam‟ a semiótica sem lhe serem redutíveis.”

(Fairclough, 2009: 163).

- Transdisciplinaridade: a “abordagem dialética-relacional” de ACD é uma

forma particular de pesquisa interdisciplinar, no sentido em que, ao relacionar

disciplinas e teorias na abordagem a assuntos de pesquisa, conceptualiza o

diálogo entre elas enquanto fonte de desenvolvimento teórico e metodológico de

cada uma (Fairclough, 2009).

- Crítica: tal como referi anteriormente (v. página 58-59), o caráter crítico

da “abordagem dialética-relacional”, ao ancorar-se na assumpção de que a

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pesquisa social deve contribuir para enfrentar injustiças sociais, reside na

análise das causas dessas mesmas injustiças e também na análise das

resistências e modos de as ultrapassar (Fairclough, 2009).

- Processo social: neste modelo de ACD o processo social é visto como uma

interação entre três níveis da realidade – estruturas sociais, práticas sociais e

eventos (Fairclough, 2009). As práticas sociais medeiam a relação entre as

estruturas sociais mais gerais e abstratas e os eventos sociais concretos e

particulares.

Sendo estes os pressupostos base da “abordagem dialética-relacional” (cf.

Fairclough, 2009), posso inferir que esta se constitui num modo de análise que

visa, de um ponto de vista crítico e transdisciplinar, compreender as relações

dialéticas que se estabelecem entre diferentes níveis do processo social –

estruturas, práticas e eventos –, com ênfase nos seus aspetos semióticos.

Segundo Fairclough (2009), a “abordagem dialética-relacional” foca-se

essencialmente em duas relações dialéticas:

“entre estrutura (especialmente práticas sociais enquanto nível intermédio de

estruturação) e eventos (ou estrutura e ação, estrutura e estratégia), e, dentro

de cada uma, entre elementos semióticos e outros elementos. Há três modos

principais através dos quais a semiótica se relaciona com outros elementos de

práticas sociais e de eventos sociais – enquanto uma faceta da ação; na

construção (representação) de aspetos do mundo; e na constituição de

identidades.” (Fairclough, 2009: 164).

Ainda segundo o autor, é possível identificar três categorias semióticas que

correspondem aos três modos acima enunciado. Assim, a ação pode ser

analisada através do género, que consiste nos modos semióticos de agir e de

interagir com outros através da fala, escrita ou meios visuais; a construção

(representação) pode ser analisada através do discurso, ou seja, das formas

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semióticas de construir aspetos do mundo (e que podem ser identificados com

posições/perspetivas de diferentes grupos e/ou atores sociais); e a constituição

de identidades através dos estilos, isto é, “ os „modos de ser‟, no seu aspeto

semiótico.” (Fairclough, 2009: 164), modos de identificação, construção ou

enunciação de identidades sociais ou institucionais37. O autor esclarece ainda

que os aspetos semióticos dos eventos são os textos e os aspetos semióticos das

redes de práticas sociais que constituem o campo social são as ordens de

discurso. Uma ordem de discurso consiste numa ordem particular de relações

entre diferentes modos de construção de significado, ou seja, configurações

particulares de diferentes géneros, diferentes discursos e diferentes estilos.

(Fairclough, 1992, 2009).

A abordagem dialética-relacional desenvolvida por Fairclough (2009) pode

ser sintetizada de acordo com o quadro 2., apresentado na página seguinte:

37 O autor apresenta os seguintes exemplos para cada uma das três categorias semióticas: género – notícias, entrevista para um emprego, relatórios, anúncios na televisão ou na internet, etc; discurso – discursos sobre a pobreza são diferentes conforme são construídos no interior de uma prática social específica (política, cientistas sociais, etc.) mas também, em cada um destes consoante diferentes posições ou perspetivas (por exemplo, discurso político assistencialista, de dependência, de autonomia, etc); estilos – formal, informal, público, etc.

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Etapa 1

Foco no aspeto

semiótico de um mal social

Passo 1

Selecionar um tópico de pesquisa que relacione com, ou que aponte para, um mal social e que possa ser abordado produtivamente de forma transdisciplinar, com um foco particular nas relações dialéticas entre discurso e outros momentos de prática social.

Passo 2 A partir dos tópicos de pesquisa inicialmente identificados construir objetos de estudo através da sua teorização de modo transdisciplinar.

Etapa 2

Identificar obstáculos para lidar com o mal

social

Passo 1 Analisar relações dialéticas entre discurso e outros elementos sociais: entre ordens de discurso e outros elementos de práticas socais, entre textos e outros elementos ou eventos.

Passo 2 Selecionar textos, bem como focos e categorias para a sua análise, à luz de, e apropriados à, constituição do objeto de pesquisa.

Passo 3 Desenvolver análises de textos, tanto análise interdiscursiva como análise linguística/semiótica.

Etapa 3 Considerar se a ordem

social „necessita‟

do mal social

Considerar se o mal social em foco é inerente à ordem social, se pode ser ultrapassado dentro dessa mesma ordem social ou se tal apenas é possível alterando-a. É um modo de ligar o „ser‟ com o „deveria ser‟: se a ordem social pode ser mostrada como dando inerentemente origem a grandes injustiças sociais, isso é uma razão para pensar que talvez tenha que ser mudada. Esta etapa relaciona-se também com questões de ideologia: o discurso é ideológico na medida em que contribui para sustentar relações de poder e de dominação específicas.

Etapa 4

Identificar formas

possíveis de ultrapassar

os obstáculos

Mudança da análise de uma crítica negativa para uma crítica positiva: identificar, com foco nas relações dialéticas entre semiótica e outros elementos, possibilidades, nos processos sociais existentes, para ultrapassar obstáculos no sentido de lidar com o mal social em questão. Isto inclui desenvolver um „ponto de entrada‟ semiótico na pesquisa sobre as formas através das quais estes obstáculos são atualmente desafiados e objeto de resistência e contestação, seja no âmbito de movimentos ou grupos organizados social ou politicamente, seja mais informalmente por pessoas no curso das suas vidas profissionais, sociais ou domésticas.

Quadro 2. Modelo da abordagem dialética-relacional (a partir de Fairclough, 2009).

É de salientar que este quadro se constitui numa sintetização da

abordagem dialética-relacional e que, apesar de identificar os passos

metodológicos centrais, não pretende constituir-se numa mecanização do

modelo. De acordo com Fairclough (2009: 167), “estas são partes essenciais da

metodologia (uma questão de „ordem teórica‟), e apesar de fazer algum sentido

prosseguir de um [passo e etapa] para o seguinte (uma questão de „ordem

processual‟), a relação entre eles ao fazer a pesquisa não é de uma ordem

sequencial simples.”

De seguida, tendo por base esta abordagem dialética-relacional,

apresentarei o „design‟ – ou seja a articulação do desígnio e do desenho – do meu

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trabalho de investigação.

2. ‘Design’ metodológico

Tal como refere Fairclough (2003), nos trabalhos em que a ACD é

assumida como referência teórica-metodológica, o fundamental é que a análise

elaborada adeque a intenção central da ACD (“pesquisa social crítica”) aos

propósitos da pesquisa realizada. É nesse sentido que o trabalho empírico em

ACD se consubstancia num trabalho de „design‟: o desenho de um modelo ou

dispositivo analítico deve estar intrinsecamente articulado com o desígnio da

ACD e da pesquisa concreta a realizar, dado ser na confluência do desenho e do

desígnio que é possível conceber e configurar um modelo de análise.

Importa, então, referir que este trabalho se assume como um modo de

“estender a aplicação [da ACD] a novas áreas da vida social” (Chouliaraki e

Fairclough, 1999: 59), porque tal acarreta implicações para o „design‟

metodológico. Refiro-me à questão do desvio existente entre o que Wodak e Meyer

(2009) dizem ser, genericamente, o cerne das preocupações de quem trabalha em

ACD, ou seja, a centralidade atribuída aos discursos de poder. Apesar de ter já

referido e sustentado esta questão (cf. página 71) convoco-a para aqui

exatamente por ser um exemplo da necessidade de um „design‟ metodológico

quando se trabalha em ACD. Se se atentar no Quadro 2. facilmente se constata

que a existência da Etapa 4 (Identificar formas possíveis de ultrapassar os

obstáculos) não é adequada a este trabalho. Na verdade, essa etapa constitui

aqui um „pano de fundo‟, na medida em que assumo como hipótese de trabalho

que o discurso do Comércio Justo – enquanto novo movimento social – se

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

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constitui enquanto discurso contra-hegemónico. Neste sentido, a análise aqui

produzida não recai sobre um discurso de poder e de dominação, mas, pelo

contrário, sobre um discurso que se apresenta como passível de contestar e,

assim, alterar – tendo em conta o papel do discurso na constituição do mundo

social – a estrutura social e os modos de conceber o mundo. Fairclough descreve

a Etapa 4 como sendo o momento em que se

“desloca a análise de uma crítica negativa para uma crítica positiva:

identificar, com foco nas relações dialéticas entre semiótica e outros

elementos, possibilidades, no interior dos processos sociais existentes, de

ultrapassar obstáculos no sentido de lidar com o mal social em questão. Isto

inclui desenvolver um „ponto de entrada‟ semiótico na pesquisa sobre as

formas através das quais estes obstáculos são atualmente desafiados e objeto

de resistência e contestação, seja no âmbito de movimentos ou grupos

organizados social ou politicamente, seja mais informalmente por pessoas no

curso das suas vidas profissionais, sociais ou domésticas. Um foco

especificamente semiótico incluiria modos através dos quais se reage ao

discurso dominante, como é que este é contestado, criticado e contraditado

(na sua argumentação, na sua constituição do mundo, na constituição de

identidades sociais, etc.).” (2009: 171).

Ora, neste trabalho, não cabe esta ideia de deslocamento de crítica

negativa para uma crítica positiva em que esta está associada a discursos de

resistência ou de construção de alternativas. Na verdade, o discurso aqui em

análise é um discurso que se assume como sendo contra-hegemónico e, o que

importa perceber é se, e como, se constrói essa contra-hegemonia. Nesse sentido,

e ainda que apoiando-me na abordagem dialética-relacional de Fairclough (2009),

são inevitáveis alterações a essa mesma abordagem, conforme é possível perceber

no Quadro 3.:

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“As pessoas acima do lucro”

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Etapa 1

Focar um aspeto

semiótico de uma prática

contra-hegemónica

Passo 1

Selecionar um tópico de pesquisa que se relacione com uma prática social assumida como contra-hegemónica e que possa ser abordado produtivamente de forma transdisciplinar, com um foco particular nas relações dialéticas entre discurso e outros momentos de prática social.

Passo 2 Construir um objeto de estudo através da sua teorização de modo transdisciplinar, considerando o tópico de pesquisa inicialmente identificado.

Etapa 2

Identificar modos de resistência

e/ou

contestação

Passo 1 Analisar relações dialéticas entre discurso e outros elementos sociais: entre ordens de discurso e outros elementos de práticas sociais, entre textos e outros elementos ou eventos.

Passo 2 Selecionar textos, bem como focos e categorias para a sua análise, à luz de, e apropriados à, constituição do objeto de pesquisa.

Passo 3 Desenvolver análise de textos, tanto análise interdiscursiva como análise linguística/semiótica, que permita dar conta da argumentação produzida pelo discurso.

Etapa 3

Evidenciar características

contra-hegemónicas dos discursos

analisados

Considerar em que medida o discurso analisado se constitui como contra-hegemónico e de que modo constrói visões alternativas da ordem social existente, tendo em conta, quer o tópico de pesquisa, quer o objeto construído. Ponderar as relações que se estabelecem entre o discurso analisado e discursos hegemónicos e dar conta da(s) contingência(s) que o tornam contra-hegemónico relacionando-o com questões de ideologia e de poder.

Quadro 3. Modelo de Análise Crítica do Discurso neste trabalho (a partir da abordagem

dialética-relacional desenvolvido por Fairclough, 2009).

A análise desenvolvida implicou, naturalmente, a operacionalização do

modelo construído. Assim sendo, apresento, de seguida, essa mesma

operacionalização em cada Passo e correspondente Etapa.

2.1. Focar um aspeto semiótico de uma prática contra-hegemónica

Este é um assunto que foi já apresentado e justificado na Introdução deste

trabalho (cf. 2.1. Objeto de estudo e 2.2. Problemática de investigação). No

entanto, e no sentido de dar unidade a este momento , volto ao que aí foi

referido, mas apresentado sob a forma proposta por Fairclough (2009).

Passo 1: o “tópico de pesquisa”, para usar as palavras de Fairclough

(2009), deste trabalho consubstancia-se na expressão educação para o

desenvolvimento, partilhada por diferentes ONG‟s que corporizam novos

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100

movimentos sociais. Tal como já referido, esta foi uma “realidade que se tornou

notada” (Bourdieu, 2001) e que conjugou uma pertinência pessoal, social e

científica pois, como afirma Fairclough (2009: 168),

“[u]m tópico pode atrair o nosso interesse por ser proeminente na literatura

académica relevante, ou por ser um foco de atenção no domínio ou campo em

questão (…). Os tópicos são muitas vezes „dados‟, e muitas vezes selecionam-

se virtualmente a si próprios – quem duvida, por exemplo, que a „imigração‟,

„terrorismo‟, „globalização‟ ou „segurança‟ são tópicos contemporâneos

importantes, com implicações significativas para o bem-estar humano, e a que

os investigadores devem atentar?”.

Passo 2: a perspetiva que Fairclough (2009) enuncia neste passo não se

distancia do que Bourdieu (2001) afirma relativamente à construção do objeto de

estudo. O que está aqui em causa é, sobretudo, a necessidade de construir um

objeto a partir da sua interrogação sistemática, ou seja, colocando-o em

interação com perspetivas teóricas que permitam concebê-lo numa dada ordem

epistemológica e teórica, para que assim possa ser analisado. Neste trabalho (e

como também já foi afirmado na Introdução – 2.1. Objeto de estudo e 2.2.

Problemática de investigação), o objeto constitui-se nas relações discursivas

estabelecidas entre educação e desenvolvimento pelo movimento Comércio Justo.

2.2. Identificar modos de resistência e/ou contestação

Passo 1: Este é o primeiro momento de análise do trabalho, onde pretendo

dar conta das relações dialéticas entre discurso e outros elementos do processo

social (instâncias como a economia, as infraestruturas e as instituições). Aqui

será enfatizada, então, a dimensão dialética do processo social (característica

desta abordagem de ACD) ao colocar em evidência a interação entre estruturas e

eventos sociais, o mesmo é dizer, tendo em consideração a sua dimensão

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101

semiótica, entre ordens de discurso e textos. Para tal, abordarei a politicidade do

discurso, isto é, as características de produção do discurso que permitem

caracterizá-lo enquanto discurso político dada a estrutura social existente. Após

a identificação da politicidade do discurso face à estrutura social, poderei

abordar os efeitos ideológicos que os discursos produzem, nomeadamente, em

termos de orientações económicas e políticas que eles exploram e/ou constroem.

Estes efeitos ideológicos, diretamente relacionados com a estrutura social, na

medida em que contribuem para a sua construção, manutenção e/ou alteração,

permitirão, em termos de discussão, identificar e caracterizar os discursos em

análise como hegemónicos ou contra-hegemónicos.

Passo 2: tendo em conta as ordens de discurso identificadas e

reconhecendo, desde já, a existência de ordens de discurso hegemónicas e

contra-hegemónicas, a seleção de textos foi feita considerando esta dualidade.

Assim, selecionei textos que, à partida, podem caracterizar estas duas ordens de

discurso dado o lugar político e social de onde são produzidos. Tal como afirmei,

tenho como hipótese de trabalho que o discurso do Comércio Justo, dado

constituir-se num novo movimento social, se constitua enquanto discurso

alternativo ou contra-hegemónico. Neste sentido, importa ter em conta, também,

discursos hegemónicos, dado que procuro, entre outras coisas, perceber se, e

como, o discurso do Comércio Justo é contra-hegemónico. Assim, a consideração

dos discursos hegemónicos têm, na pesquisa, o papel de contrastar o discurso

contra-hegemónico, no sentido de dar relevo à construção de modos de

resistência e alternativa. No quadro seguinte os textos selecionados aparecem

identificados segundo a sua possível inclusão nas ordens de discurso referidas:

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Ordem de discurso hegemónico Ordem de discurso contra-hegemónico

United Nations Millenium Declaration (ONU);

Estratégia 2020 para a Educação – Aprendizagem para Todos: investir nos conhecimentos e competências das pessoas para promover o desenvolvimento (BM)

Consenso Europeu sobre o

Desenvolvimento (UE);

Comunicação relativa à Educação e à Formação no contexto da redução da pobreza nos países em desenvolvimento (CE).

Documentário televisivo “Toda a verdade sobre o Comércio Justo”;

Entrevista de Frans van der Hoff à CBC Radio Canada;

Conteúdos on-line da organização de

Comércio Justo “World Fair Trade Organization”

Quadro 4. Documentos em análise segundo ordens de discurso previamente identificadas.

Os textos para análise foram escolhidos em função de critérios de

pertinência e não de quantidade. Na verdade, o que é importante na seleção de

dados em análise de discurso não é a questão de quantos dados se reúnem e se

estes são representativos da globalidade de dados, mas sim reunir material que

permita penetrar o mais profundamente possível na questão em estudo. Nesse

sentido, e quanto aos discursos hegemónicos, procurei textos provenientes de

organizações transnacionais e de blocos regionais, tendo em consideração a sua

produção discursiva da relação entre educação e desenvolvimento e, também,

dado o seu papel de produção ideológica e elaboração da agenda, no contexto do

“ciclo das políticas” (Bowe, Ball e Gold, 1992). Dentro destes, selecionei os que,

cumulativamente, cumpriam o critério de atualidade e de pertinência face ao

objeto de estudo.

No que diz respeito aos discursos contra-hegemónicos, e tendo já

anteriormente justificado a opção por este movimento em detrimento de outros, a

seleção foi feita com base também em critérios de pertinência. Por um lado,

foram selecionados todos os textos produzidos pela organização internacional

representativa do movimento (WFTO) que fixam significados ao definir valores,

princípios, práticas e ação do Comércio Justo (“Princípios do Comércio Justo”,

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103

“Carta de Compromissos”, “História do Comércio Justo”), por outro lado, foram

também considerados textos divulgados na comunicação social que têm como

ator central aquele que é (re)conhecido como o „fundador‟ do movimento, e

vencedor do prémio Norte-Sul da Comissão Europeia, e criador do primeiro

rótulo “Comércio Justo” - Frans van der Hoff.

Dadas as características do movimento foi pesquisei documentos onde a

dimensão educativa do Comércio Justo estivesse presente de forma explícita. Nas

organizações de coordenação do movimento, nomeadamente na WFTO, a

presença dessa dimensão aparece nos interstícios do discurso e apenas no que

às ações de lobbying e advocacy diz respeito. Isto exigiu que se alargasse a busca

a outras organizações, de caráter mais restrito, ou seja, que não representam

institucional e internacionalmente o movimento, e onde a dimensão educativa

fosse explícita. No entanto, a existência de centenas de organizações de âmbito

local (e nacional) que têm ações de educação para o desenvolvimento no âmbito

do Comércio Justo impediu a sua consideração.

Há uma característica dos textos selecionados que lhes é comum: todos

são de domínio público, isto é, acessíveis a qualquer cidadão que procure

informar-se sobre o assunto. Esta era, para mim, uma condição importante.

Apesar de a AD, genericamente considerada, não obstar à utilização de textos

privados, no sentido em que são produzidos especificamente para a pesquisa em

causa, a mim importava, sobretudo, como é que os textos produzem

publicamente o discurso. O mesmo é dizer que, dadas as características do

trabalho, não me interessavam textos produzidos especificamente para a análise,

mas sim textos já existentes e públicos, dado que, não é a perceção dos atores

individualmente considerados que está aqui em questão mas sim a construção

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104

social, a partir do discurso, feita por atores políticos coletivos.

Ao longo da análise a referência aos textos – que constam do Volume II

deste trabalho, organizado, também, de acordo com esta ordenação – será feita

em termos da seguinte codificação:

Documento Codificação

United Nations Millenium Declaration (ONU) D1

Estratégia 2020 para a Educação – Aprendizagem para Todos: investir nos conhecimentos e competências das pessoas para promover o desenvolvimento (BM)

D2

Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento (UE) D3

Comunicação relativa à Educação e à Formação no contexto da redução da pobreza nos países em desenvolvimento (CE).

D4

Documentário televisivo “Toda a verdade sobre o Comércio Justo” D5

Entrevista de Frans van der Hoff à CBC Radio Canada D6

Conteúdos on-line de organizações de Comércio Justo (WFTO): What is Fair Trade D7

Conteúdos on-line de organizações de Comércio Justo (WFTO): 60 Years of Fair Trade

D8

Conteúdos on-line de organizações de Comércio Justo (WFTO): Charter of Fair Trade Principles

D9

Conteúdos on-line de organizações de Comércio Justo (WFTO): 10 principles of Fair Trade

D10

Conteúdos on-line de organizações de Comércio Justo (WFTO): Fair Tarde Glossary D11

Conteúdos on-line de organizações de Comércio Justo (WFTO): Marks and labels D12

Quadro 5. Codificação dos documentos em análise.

Passo 3: este é o momento em que os textos ganham centralidade, através

da sua análise. Esta recai sobre três dimensões: a prática discursiva, o

vocabulário utilizado e as assunções feitas.

Quanto à primeira, o que estará em causa é a interdiscursividade e a

intertextualidade, ou seja, explorar padrões dentro e através do discurso. A

análise da interdiscursividade permitirá perceber se, e como, diferentes discursos

se relacionam de modo a identificar conexões entre diferentes representações

discursivas da realidade, na medida em que nenhum discurso é uma entidade

fechada, pelo contrário, está constantemente a ser transformado devido ao

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105

contacto com outros discursos. Dados os diferentes níveis, papéis e funções dos

tipos de atores políticos considerados nesta análise, a conflitualidade discursiva

poderá ser um elemento heurístico com um potencial interessante. A análise da

intertextualidade permitirá apreender se, e de que modo, são convocados textos

para o interior de outros textos, no sentido de perceber a legitimação

argumentativa e/ou retórica dos mesmos. Como é possível perceber, os primeiros

modelos de ACD desenvolvidos por Fairclough (cf. Figura 6., Figura 7. e Quadro

1.), nomeadamente o modelo tridimensional, distinguiam a análise da prática

discursiva da análise textual. Ora, neste trabalho, e à semelhança do que

Fairclough (2009) defende na sua proposta de Abordagem Dialética-Relacional

(ver Quadro 3.), a prática discursiva é integrada na análise dos textos, na medida

em que sendo o texto o produto da prática social que é o discurso, considero que

a análise da prática discursiva é, em si mesma, parte da análise textual, tal como

a linguagem o é.

Relativamente à segunda e à terceira dimensão – o vocabulário e as

assunções – o que se pretendeu foi dar ênfase à análise da linguagem usada

através de categorias que permitissem dar conta dos efeitos sociais do discurso.

Assim, foi dada especial atenção ao vocabulário utilizado, no sentido de

apreender o significado das palavras, aos lugares comuns existentes e diferentes

tipos de assunções existentes nos textos.

As dimensões de análise e as categorias analíticas que permitiram que os

textos “falassem”, ou seja, que permitiram dar relevo aos efeitos sociais do

discurso, encontram-se organizadas e descritas nos quadros seguintes:

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Dimensões de análise

Categorias de análise

Descrição

Análise da

prática social

Politicidade do discurso

De que forma o texto afirma a sua politicidade? Propõe-se a objetivos políticos? Que papel político assume?

Efeitos ideológicos do discurso

Orientações económicas

Se, e quais, indicações económicas estão, explicita ou implicitamente, presentes? Que imaginário económico é privilegiado?

Orientações políticas

Se, e quais, indicações politicas estão, explicita ou implicitamente, presentes? Que objetivos políticos enuncia?

Quadro 6: Dispositivo de análise da prática social.

Dimensões de análise

Categorias de análise

Descrição

Análise

dos

textos

Prática Discursiva

Intertextualidade

Que outros textos são incluídos? O texto pertence

a uma cadeia textual? Que outros textos são,

significativamente, excluídos? Qual a função de

outros textos incluídos?

Interdiscursividade Que outros discursos/vozes são incluídos? Que outros discursos/vozes são excluídos? Qual a função de outros discursos/vozes incluídos?

Vocabulário

Significados

Educação

Que conceção(ões) de educação está(ão) presente(s) no texto? Qual o seu papel no desenvolvimento?

Desenvolvimento

Que conceção(ões) de desenvolvimento está(ão) presente(s) no texto? Que relação estabelece com a educação?

Lugares comuns Que expressões retóricas são utilizadas? De que modo se constituem enquanto meio de persuasão?

Assunções

Que assunções são feitas sobre o que existe, sobre a realidade? Que assunções são feitas sobre o que poderá existir? Que assunções são feitas sobre o que é bom ou desejável?

Quadro 7: Dispositivo de análise dos textos.

No que diz respeito à validade da análise, e especificamente à validade

interna, ou seja, à coerência e consistência da análise produzida, tive em conta

as considerações de Phillips e Jørgensen (2002) no que diz respeito à solidez,

abrangência e transparência dos trabalhos de Análise de Discurso:

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

107

“ – A análise deve ser sólida38. É melhor que a interpretação seja baseada num

conjunto de características textuais diferentes do que em apenas uma

característica.

– A análise deve ser abrangente39. Isto não significa que todos os aspetos do

texto tenham que ser analisados de todas as formas possíveis – o que seria

impossível em muitos casos – mas que as questões colocadas ao texto devem

ser plenamente respondidas e que qualquer característica textual que entre

em conflito com a análise deve ser tida em conta.

– (…) A análise deve ser apresentada de modo transparente40, permitindo ao

leitor, tanto quanto possível, „testar‟ as afirmações produzidas. Isto pode ser

conseguido através da documentação das interpretações feitas e dando ao

leitor acesso ao material empírico ou, pelo menos, reproduzindo extratos

longos na apresentação da análise.” (Phillips e Jørgensen, 2002: 173).

A operacionalização desta proposta de validade interna encontra-se

plasmada quer nos Quadros acima apresentados, quer nos capítulos seguintes.

2.3. Evidenciar características contra-hegemónicas do discurso analisado

Este é o momento de articular as considerações produzidas pela análise,

tendo em conta os passos da Etapa 2, e de descrever e caracterizar as ordens de

discurso aqui consideradas: ordem de discurso hegemónica e ordem de discurso

contra-hegemónica.

Fundamentalmente, considera-se se o discurso central em análise se

constitui como discurso de resistência a ordens sociais vigentes, ou seja,

considera-se em que medida o discurso do Comércio Justo se constitui como

contra-hegemónico, tendo em conta, quer os conceitos de educação e de

desenvolvimento, quer a relação estabelecida entre estes. Procura-se ponderar as

38 O destaque é das autoras. 39 O destaque é das autoras. 40 O destaque é das autoras.

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relações que se estabelecem entre o discurso do Comércio Justo e discursos

hegemónicos e dar conta da(s) contingência(s) que o tornam contra-hegemónico

relacionando-o com questões de ideologia e de poder e enquadrando-o em

leituras paradigmáticas ou subparadigmáticas de mudança social.

O quadro seguinte sintetiza a operacionalização do modelo de ACD aqui

usado, permitindo uma melhor apreensão desta sobretudo quando confrontado

com o Quadro 2 e com o Quadro 3.

Etapa 1

Focar um aspeto

semiótico de uma prática

contra-hegemónica

Passo 1

O que significa a expressão educação para o desenvolvimento no contexto dos novos movimentos sociais, considerando que a agregação destes dois conceitos, ambos intrinsecamente polissémicos, pode indiciar uma multiplicidade de possibilidades.

Passo 2

As relações discursivas estabelecidas entre educação e desenvolvimento pelos novos movimentos sociais que assumem a educação para o desenvolvimento como prática central, considerando que, num contexto de globalização política e económica e de reescalonamento do Estado, estes discursos se apresentam como contra-hegemónicos.

Etapa 2

Identificar modos de resistência

e/ou contestação

Passo 1 Matriz social do discurso: politicidade do discurso. Efeitos ideológicos e políticos: orientações económicas; orientações políticas.

Passo 2

Seleção de textos representativos das ordens de discurso acima identificadas: - United Nations Millenium Declaration (ONU); - Education Sector Strategy Update – Achieving Education For All, Broadening Our Perspective, Maximizing Our Effectiveness (BM); - Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento (UE); - Comunicação relativa à Educação e à Formação no contexto da redução da pobreza nos países em desenvolvimento (Comissão Europeia); - Documentário televisivo “Toda a verdade sobre o Comércio Justo”; - Entrevista de Frans van der Hoff à CBC Radio Canada; - Conteúdos on-line de organizações de Comércio Justo.

Passo 3 Análise dos textos: interdiscursividade; intertextualidade vocabulário (significado das palavras; lugares comuns presentes); assunções.

Etapa 3

Evidenciar características

contra-hegemónicas do

discurso analisado

Considerar em que medida o discurso do Comércio Justo se constitui como contra-hegemónico e de que modo constrói visões alternativas da ordem social existente, tendo em conta, quer os conceitos de educação e de desenvolvimento, quer a relação estabelecida entre estes. Ponderar as relações que se estabelecem entre o discurso do Comércio Justo e discursos hegemónicos e dar conta da(s) contingência(s) que o tornam contra-hegemónico relacionando-o com questões de ideologia e de poder e enquadrando-o em leituras paradigmáticas ou subparadigmáticas da mudança social.

Quadro 8. Operacionalização do modelo de Análise Crítica do Discurso neste trabalho (a partir da abordagem dialética-relacional desenvolvido por Fairclough, 2009).

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IIIIII DDAA AANNÁÁLLIISSEE

―Pela primeira vez em toda a experiência de escrever

relatórios, descobre que as palavras não funcionam

necessariamente, que elas podem tornar pouco claro as

coisas que tentam dizer. Olha à sua volta e fixa a

atenção em vários objectos, um após outro. Vê o

candeeiro e diz para si mesmo: candeeiro. Vê a cama e

diz para si próprio: cama. Vê o bloco de apontamento e

diz para si mesmo: bloco de apontamentos. Não podia

chamar cama ao candeeiro, pensa ele, ou candeeiro à

cama. Não, estas palavras ajustam-se perfeitamente à

volta das coisas que representam, e no acto de as

proferir sente uma profunda satisfação, como se tivesse

acabado de provar a existência do mundo.‖

Paul Auster, A Trilogia de Nova Iorque.

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111

III DA ANÁLISE

Tendo em mente o modelo de análise presente neste trabalho, baseado nas

últimas abordagens desenvolvidas por Norman Fairclough (Fairclough, 2009) no

que respeita à ACD, este capítulo dará conta da análise efetuada aos discursos

em causa. A sua organização obedeceu, não ao critério de produção da própria

análise – isto é, seguindo os passos que a análise deu, numa lógica de relato –,

mas sim ao critério de sistematização da análise, ou seja, de uma organização

que permitisse dar conta, de modo sistematizado, do que a análise produziu.

Assim, este capítulo encontra-se organizado em torno dos dois níveis de análise –

prática social e textos – e, dentro destes, optei por ter por referente as duas

ordens de discurso. Isto significa que as diferentes dimensões de análise que

constituem cada um dos dois níveis (cf. Quadros 6 e 7) são apresentadas e

discutidas no interior de cada uma das ordens de discurso, na medida em que é

a partir das primeiras que será possível caracterizar estas últimas.

Apoiando-me na proposta de Fairclough (2009) de uma abordagem

dialética-relacional que dê conta do papel do discurso na constituição do mundo

social e, simultaneamente, do modo como aquele é influenciado por este último,

começarei por abordar essa mesma dimensão dialética. Assim, inicio com a

análise da prática social, com o objetivo de colocar em evidência a interação entre

as estruturas sociais e os eventos sociais. Para tal, começo por situar o contexto

político-económico em que esta prática social decorre na medida em que, e de

acordo com Codd (1988, 2004), a primeira dimensão a ter em conta em termos

de análise de discurso político é o contexto da sua produção. O contexto é então

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

112

entendido, não só como o ‗local‘ de onde provêm os discursos, mas também como

as condições sociais – históricas, políticas e económicas – que o sustentam, ou

seja, as construções materiais e discursivas de diferentes instâncias que

permitiram a emergência de estruturas sociais de produção discursiva. Como

defendi ao longo da fundamentação teórico-metodológica é a consideração dos

contextos sociais de produção dos discursos que permitirá analisar os mesmo em

termos da sua politicidade, isto é, identificar o caráter político dos discursos em

causa, o que implica compreender os processos de elaboração da ―política como

discurso‖ (Ball, 2008) (cf. Introdução).

Na análise da prática social são considerados dois aspetos: a matriz social

do discurso em termos da sua politicidade – isto é, de que forma o texto afirma a

sua politicidade, o que faz com que o discurso em análise seja entendido

enquanto discurso político – e os efeitos ideológicos – ou seja, que imaginário e

representação do mundo está presente no discurso. A análise destas duas

dimensões será apresentada, separadamente, no interior dos discursos

hegemónicos e dos discursos contra-hegemónicos.

A análise dos textos será apresentada também considerando as duas

ordens de discurso e, em cada uma delas, as dimensões já enunciadas – prática

discursiva e vocabulário (onde se incluem significados, lugares comuns e

assunções).

De seguida, será discutida a ordem contra-hegemónica, no sentido de

perceber o que a caracteriza.

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1. Da prática social

―«Quando uso uma palavra», disse o Humpty Dumpty

com desdém, «ela significa exactamente o que eu quero

que ela signifique – nem mais nem menos»

«A questão», disse Alice, «é saber se tu podes fazer com

que as palavras tenham significados tão diferentes!».

«A questão é», disse Humpty Dumpty, «quem deve ser o

mestre».‖

Lewis Carrol, Alice do Outro lado do Espelho

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115

A análise da prática social necessita de uma compreensão dos processos

de elaboração política, o que, por sua vez, não pode ser feito, sem ter em

consideração o fenómeno da globalização, não em termos de ―fetichismo espacial‖

(Robertson e Dale, 2007), mas sim enquanto arena social, material e

discursivamente construída, que contribui para a propagação de determinados

modos de agir social e politicamente. Tal como afirmam Robertson et all (2007),

se a globalização é um fenómeno relativamente novo (os autores referem a

emergência do termo ―globalizado‖ e ―globalismo‖ nos anos 1940), a verdade é

que se tornou, a partir dos anos 1980, um conceito teórico e um instrumento

analítico central no estudo, compreensão e explicação de fenómenos de índole

diversa que marcam as sociedades atuais.

Apesar da ‗novidade‘ do conceito, a sua análise leva alguns autores a

afirmarem que o fenómeno da globalização, enquanto relação entre Estados-

nação, sempre existiu (Dale, 2000) remetendo a sua origem para o início de

trocas comerciais a nível internacional a partir do século XVI (Waters, 1999;

Olssen, Codd e O‘Neill, 2004). Hirst e Thompson (2002), num trabalho em que

afirmam que a ―[g]lobalização se tornou num conceito da moda nas Ciências

Sociais‖ (2002: 68), também argumentam que

―[a] atual economia altamente internacionalizada tem precedentes: é uma

entre uma série de conjunturas ou estados distintos da economia

internacional que existem desde que, nos anos 1860, se começou a

generalizar uma economia baseada na moderna tecnologia industrial‖ (Hirst e

Thompsom, 2002: 68).

No entanto, Dicken (1999) faz uma distinção interessante que pode

permitir diferenciar dois períodos nas relações económicas mundiais em termos

de quantidade e qualidade. Segundo este autor, até meados dos anos 1970

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poder-se-ia falar de processos de internacionalização que envolveriam

―a simples extensão de atividades económicas através das fronteiras

nacionais. Este é, essencialmente, um processo quantitativo41 que conduz a

atividade económica a um mais extenso padrão geográfico‖ (Dicken, 1999: 5).

E, de acordo com o autor, atualmente encontramo-nos em processos de

globalização que

―são qualitativamente42 diferentes dos processos de internacionalização.

Envolvem não só a extensão geográfica da atividade económica através das

fronteiras nacionais mas também – e mais importante – a integração

funcional43 destas atividades internacionais dispersas.‖ (Dicken, 1999: 5).

Ou seja, uma primeira característica da globalização a ser relevada é o seu

caráter de articulação e de complexidade no que aos fenómenos económicos diz

respeito. No entanto, é hoje em dia claro que o fenómeno da globalização não se

restringe ao plano económico apesar de este ser uma instância fundamental para

compreender o papel e a extensão da globalização.

Se para Giddens (1996) a globalização pode, genericamente, ―ser definida

como a intensificação das relações sociais de escala mundial‖ (:45), na sua

perspetiva ela é intrinsecamente moderna. A razão é que a ligação em rede de

diferentes contextos é uma forma de distensão espácio-temporal, sendo que esta,

por sua vez, é uma das fontes de dinamismo da modernidade, a par da

descontextualização e da reflexividade. Também Waters (1999) acentua a relação

entre modernidade e globalização a partir da organização moderna da vida social

no espaço e no tempo. Paradoxalmente, a designação utilizada por diferentes

sociólogos para analisar o modo como, numa época de globalização, novos modos

41 O destaque é do autor. 42 O destaque é do autor. 43 O destaque é do autor.

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de relação espácio-temporais moldam a vida social parece ser contraditória: se

alguns, nomeadamente Giddens (1996), falam de uma distensão espacio-

temporal, outros, como, por exemplo, David Harvey (2000) referem uma

compressão espacio-temporal. Defendo, no entanto, que esta aparente

contradição reside nos termos utilizados para referir o fenómeno e não na

substância do mesmo. De facto, o que parece estar em causa, em ambos os

casos, é uma redução do tempo e espaço necessários às trocas de fluxos

informacionais e de capital que tem como consequência uma maior proximidade

entre pontos diferentes do planeta. Se o uso do termo compressão evidencia, à

partida, esta aproximação, o termo distensão tem que ser contextualizado na

metáfora de rede, usada por Giddens, para melhor se compreender como é que a

distensão permite uma maior ligação e, portanto, aproximação de diferentes

lugares: ―A globalização diz essencialmente respeito a esse processo de distensão,

na medida em que os modos de conexão entre diferentes contextos sociais ou

regiões se ligam em rede através de toda a superfície da Terra.‖ (Giddens, 1996:

45). Numa outra obra Giddens acrescenta que, tendo a globalização a ver com a

transformação do espaço e do tempo, ―[d]efini-la-ia como a acção à distância44,

relacionando a sua intensificação nos anos mais recentes com a emergência de

meios de comunicação global e instantânea e de transporte de massa‖ (Giddens,

1997b: 4).

O incremento e desenvolvimento das tecnologias de informação e

comunicação é um fator decisivo para a construção da ―economia global‖, na

medida em que contribui, de modo significativo, para a remoção de barreiras

―espácio-temporais‖ e a construção de ―redes‖ que permitem aumentar a rapidez

de fluxos e trocas, não só informacionais, mas também comerciais e de capital.

44 O destaque é do autor.

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Segundo Olssen, Codd e O‘Neill (2004) as diferentes formas de globalização têm

sido moldadas pelo progresso tecnológico e o seu rápido desenvolvimento terá

sido determinante para reduzir a possibilidade de os Estados-nação manterem

economias independentes entre si: ―como consequência dessas novas tecnologias

sugere-se que os mercados, governos e grupos políticos independentes no interior

de Estados-nação específicos tornaram-se ‗mais sensivelmente ajustados‘ uns

aos outros‖ (Olssen, Codd e O‘Neill, 2004: 4).

As formas assumidas pela ―economia global‖ quase que tornam, do ponto

de vista económico, desapropriadas as fronteiras dos Estados-nação dada a

crescente internacionalização de trocas comerciais e de transações financeiras

que reconfiguram a noção de espaço e território o que, inevitavelmente, tem

consequências políticas, em termos de instituições, elaboração e implementação.

A primeira dessas consequências é o papel político dos Estados-nação. A

conceptualização política do Estado-nação teve uma importância teórica central

no desenvolvimento das Ciências Sociais, nomeadamente, em Ciência Política e

Sociologia e constitui-se, segundo Giddens (1996) numa das dimensões da

modernidade. A ideia de globalização política apresenta-se como particularmente

desafiadora na medida em que descentra da escala nacional a organização

política dominante (desnacionalização) e descentra do Estado o papel de ator

principal (desestatização) (Robertson et all, 2007). Estas duas características da

globalização política – e que trazem consequências ao nível do governo e da

governação – encontram expressão na famosa frase de Daniel Bell ―o Estado-

nação tornou-se demasiado pequeno para os grandes problemas da vida e

demasiado grande para os pequenos problemas da vida‖ e que é corroborada pela

perspetiva, defendida por Roger Dale, de que a forma que os problemas assumem

neste momento, bem como a capacidade para lhes responder, são globais pelo

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que, os Estados-nação, não têm por si só faculdade para os resolver. Existem

pois

―problemas que são verdadeiramente globais e transnacionais – na verdade a-

nacionais – e que se situam para além do poder de resolução de qualquer

nação individualmente considerada. A particularidade que distingue a

globalização daquilo que acontecia antes é que esta é supranacional‖ (Dale,

2000: 93).

Porém, isto não significa que os Estados-nação se tenham tornado

dispensáveis ou obsoletos. Num trabalho de 1999, Roger Dale analisa os efeitos

da globalização na política dos Estados-nação, com especial ênfase nos seus

mecanismos. O argumento central, com o qual concordo, é o de que apesar da

existência real de uma influência supranacional nas políticas nacionais não há

motivo para afirmar que os Estados-nação não têm já qualquer papel político ou

perderam todo o seu poder. Isto é patente em dois factos: primeiro, os Estados-

nação foram, e são, construtores ativos da globalização política; segundo, a

existência de entidades políticas supraestatais não é sinónimo de total

esvaziamento do Estado-nação. Se Boaventura Sousa Santos (2001) considera

que os poderes dos Estados-nação são diminuídos por razões de aliança

económica e política com outros Estados e/ou organizações – na procura de ter

acesso a novas formas de poder e o exercício de um papel a nível internacional –,

Roger Dale chama a atenção para o facto de estas cedências serem feitas

voluntariamente exatamente para manter ou aumentar uma posição privilegiada

na economia mundial. Este facto não significa que o sistema mundial seja menos

estatizado até porque ―apesar de a sobrevivência do sistema ser mais importante

do que os interesses das nações individuais, o sistema e a sua sobrevivência só

podem ser conduzidos pelos Estados‖ (Dale, 2000: 94).

Por outro lado, se a globalização afeta e influencia as políticas dos

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Estados-nação, nomeadamente através da existência de um conjunto de regras

que emanam de instituições políticas supranacionais, os diferentes países, tal

como afirma Roger Dale (1999), não as interpretam ou aplicam, necessariamente,

de forma igual. Independentemente da diversidade de políticas existentes, o facto

de existir uma multiplicidade de mecanismos através dos quais a globalização

influencia as políticas dos Estados-nação, é, em si mesmo, um fator de

diversidade (Dale 1999). A principal característica da globalização, no que às

questões políticas diz respeito, é o facto de criar ―padrões, genericamente

similares, de desafio para os Estados que moldam as suas possibilidades de

resposta de modo semelhante‖ (Dale, 1999: 1). E um desses padrões é a

prioridade que a dimensão económica assume relativamente a outras dimensões

políticas, de modo a tornar os Estados competitivos, num quadro de modelo

económico capitalista neoliberal. O estabelecimento de padrões que orientassem

a ação governativa dos diferentes Estados-nação foi o propósito do denominado

―Consenso de Washington‖. John Williamson (1993), que assume ter preparado,

em meados de 1989, uma lista das principais reformas económicas que urgia que

a América Latina adotasse45, afirma que não obstante o seu trabalho se

intitulasse ―O que Washington entende por reforma política‖,

―precipitadamente foi apelidado de «Consenso de Washington», um termo

imediatamente contestado [por não ter sido] unanimemente aprovado em

Washington, e, portanto, não ser um consenso, para além de que o âmbito

geográfico ultrapassava a área referida. (…) Tentei descrever o que era

convencionalmente considerado sensato em vez do que eu próprio julgava

45 O Consenso de Washington, tal como foi formulado, consistia na adoção de 10 medidas essenciais para a recuperação económica dos países e que, segundo Robertson et al ―se tornaram globalizadas e se espalharam nos países de baixos rendimentos‖ (2007: 37) através das clausulas condicionantes da ajuda prestada. As 10 medidas eram: disciplina fiscal; novas prioridades nos gastos públicos; reforma dos impostos; liberalização financeira; taxa de câmbio competitiva; liberalização do comércio; aumento do investimento estrangeiro direto; privatização das empresas estatais; desregulação da economia; direitos de propriedade. (a partir de Williamson, 1993: 1332-1333).

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sensato: ou seja, a intenção era que fosse uma lista positiva e não normativa‖

(Williamson, 1993: 1329).

Robertson et all (2007) não partilham desta opinião dado que colocam aquilo que

Williamson denomina como ―convencionalmente sensato‖ num lugar ideológico e,

portanto, retirando-o do ―não-lugar‖ político (Magalhães e Stoer, 2006) que

Williamson parece atribuir-lhe. Robertson et all (2007) afirmam que esta nova

ortodoxia política, que ficou conhecida como ―Consenso de Washington‖, refletiu

uma mudança na trajetória política de duas economias chave dos países

desenvolvidos (os Estados Unidos da América e o Reino Unido) resultante da

crise económica mundial dos anos de 1970 que obrigou a uma reforma

económica estrutural: segundo estes autores, e apoiando-se também em outros,

as políticas económicas neoliberais foram centrais nesta transformação

estrutural, ou seja, há uma clara assunção ideológica no que foi considerado ser

‗o‘ caminho para a reconversão económica mundial e que resulta de uma leitura

e construção política. Também Boaventura Sousa Santos (2001: 33) se refere ao

―Consenso de Washington‖ como o consenso neoliberal subscrito pelos Estados

centrais do sistema mundial ―abrangendo o futuro da economia mundial, as

políticas de desenvolvimento e especificamente o papel do Estado na economia.‖,

atribuindo-lhe a ―paternidade das características hoje dominantes da

globalização‖ (Santos, 2001: 33). Na sua perspetiva, ―[o]s diferentes consensos

que constituem o consenso neoliberal partilham uma ideia-força que, como tal,

constitui um meta-consenso. Essa ideia é a de que estamos a entrar num período

em que desapareceram as clivagens políticas profundas.‖. (Santos, 2001: 33). O

autor salienta ainda que, para este meta-consenso, contribuem as seguintes

ideias:

- o fim das rivalidades entre países hegemónicos dada a ―interdependência entre

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as grandes potências, [a] cooperação e [a] integração regionais.‖ (Santos, 2001:

33);

- a capacidade de controlo, pelos países centrais, de possíveis focos de

instabilidade através de intervenções seletivas, da dívida externa e da ajuda

internacional;

- a redução da transformação social a uma questão técnica, por oposição a uma

questão política, dado o desaparecimento do conflito Leste/Oeste e da

compreensão da relação Norte/Sul enquanto ―campo fértil de interdependências

e cooperações.‖ (Santos, 2001: 34).

Este ―meta-consenso‖ referido por Boaventura Sousa Santos, e que reforça

a análise da globalização enquanto ―fenómeno político-económico.‖ (Dale, 2000:

94), é corroborado pela construção de dispositivos políticos que permitem a

implementação e a disseminação da ortodoxia económica proclamada pelo

―Consenso de Washington‖. Refiro-me especificamente às organizações

transnacionais e aos blocos político-económicos que se constituem enquanto

atores hegemónicos na ordem político-económica mundial e que materializam a

interdependência, cooperação, ajuda internacional e integração regional a que

Santos (2001) se refere e que são, simultaneamente, produtores e produtos da

globalização político-económica, entendida enquanto processo linear e inevitável.

Não obstante a força paradigmática desta noção de globalização Santos

(2001) chama a atenção para a pluralidade de visões existentes sobre a mesma –

ainda que com diferentes graus de impacto – que se traduzem em discursos

contraditórios. O autor identifica uma dessas contradições como sendo de

―natureza político-ideológica, (…) entre os que vêem na globalização a energia

finalmente incontestável e imbatível do capitalismo e os que vêem nela uma

oportunidade nova para ampliar a escala e o âmbito da solidariedade

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transnacional e das lutas anticapitalistas.‖ (Santos, 2001: 61).

Quero, portanto, realçar a ideia de que a globalização ao alterar a escala e

a dimensão espácio-temporal dos fenómenos sociais – económicos, políticos e

culturais –, fê-lo não só em termos de estrutura mas também de agência, tendo-

se transnacionalizado os espaços político-sociais de regulação(ões) mas também

de emancipação(ões). A dicotomia, comummente estabelecida, entre regulação e

emancipação tem vindo a ser discutida e questionada dada a complexidade das

sociedades atuais, sejam elas caracterizadas enquanto sociedades de risco (Beck,

1992; Adam, Beck e van Loon, 2000), de modernidade radicalizada (Giddens,

1996), pós-industrial (Daniel Bell) ou pós-moderna (Harvey, 2000). Stoer e

Magalhães (2005) argumentam que o fim das metanarrativas fundadoras da

ordem social e a sua explosão em ‗pequenas‘ narrativas vêm complexificar os

processos de mudança social e o próprio conceito de ‗emancipação‘ e ‗regulação‘:

―está-se longe de contemporaneamente se poder destacar um actor central e

privilegiado dos processos de mudança social (…). Os ideais emancipatórios

surgem como heterogéneos e, por vezes, mesmo conflituantes entre si (…). Não

é, assim, possível estabelecer um quadro que seja ao mesmo tempo

suficientemente amplo e suficientemente específico para que o «desejável»

congregue os incomensuravelmente diferentes projectos dos múltiplos actores

em presença.‖ (Stoer e Magalhães, 2005: 24).

Na minha perspetiva, estes dois fatores – o alargamento da escala de ação

para um nível global e a impossibilidade contemporânea de vislumbrar uma

metanarrativa (e portanto, um ator) central nos processos de mudança social –

são algumas das características de que se reveste, hoje, a ação coletiva

enquadrada no que se convencionou chamar novos movimentos sociais.

A discussão sobre ‗o que há de novo nos novos movimentos sociais‘ centra-

se sobretudo nas eventuais distinções que estes possam ter relativamente aos

velhos movimentos sociais e, mesmo, à identificação destes. Deste modo, a

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identidade dos primeiros constrói-se pela contraposição a estes últimos e

também pela própria conceção de movimento social46. Esta não é, no entanto,

uma tarefa fácil: a pluralidade de movimentos sociais que são identificados

enquanto novos demonstra uma heterogeneidade tal que, como afirma Scott

(1990), deixa em aberto a possibilidade de consensualizar um conjunto de

características que permitam a sua (auto)identificação. No entanto, Offe (1992)

salienta a novidade dos NMS por referência, não aos valores defendidos por

estes, mas por atuarem dentro de uma nova ordem, pelo caráter eminentemente

político dado o seu objetivo de interferência ao nível institucional e ao nível de

valores e hábitos de vida, e pelos modos de ação interna e externa.

É possível, assim, relevar, pelo menos, cinco modos de novidade de que os

NMS se revestem, por contraponto aos ―velhos‖ movimentos sociais (de que o

movimento operário do século XIX é exemplo):

- são protagonizados por novos atores sociais, isto é, não só a base social

de apoio destes movimentos é transclassista como a sua identificação é

deslocada para novos indicadores de identidade social (Offe, 1992), reconhecida

como híbrida;

- introduzem novos temas de reivindicação, temas esses que não estão

apenas centrados em questões de redistribuição da riqueza, ultrapassando a

cristalização de lugares ideológicos como esquerda e direita e politizando novas

46 Esta é, segundo Touraine (1984) uma questão central da Sociologia. A sua centralidade ganha força pela sua consideração, não apenas enquanto levantamentos populares ou revoluções, mas pelo reconhecimento de todos os momentos de ação da sociedade sobre si própria e em torno de conflitos (Touraine, 1998). Já anteriormente, Touraine estabelecera a seguinte distinção entre ação coletiva, luta e movimento social: ―falar de ações coletivas é considerar que os conflitos são respostas a uma situação que deve ser definida por si mesma, ou seja, em termos de integração ou desintegração de um sistema social definido por um princípio de unidade. Pelo contrário, falar de lutas implica uma conceção estratégica duma mudança social, sem referência a um sistema que seja capaz de manter suficientemente o seu equilíbrio e a sua integração. (…). A transição de condutas coletivas a lutas destroi a referência a uma sociedade, impede a consideração dos conflitos como respostas. A passagem das lutas a movimentos sociais, pelo contrário, reestabelece a relação entre ação coletiva e sistema social, mas em sentido inverso.‖. (Touraine, 1984: 6-7).

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áreas da vida social (Offe, 1992);

- aumentam a escala de ação, fazendo uso das alterações espácio-

temporais, do reescalonamento do Estado e do desenvolvimento das novas

tecnologias de informação;

- criam novas formas de organização, que podem assumir constituições

organizativas e jurídicas diversas – normalmente identificadas com o terceiro

setor, como ONG‘s, associações, ipss47 – , ou mesmo formas que se caracterizam

por ser descentralizadas, difusas, com um funcionamento mais horizontal,

através de redes ou fluxos (Wainright, 2006) com formas de liderança e pertença

menos estruturada e, eventualmente, temporária e múltipla;

- reinventam novas formas de ação, que podem passar por ações

fraturantes, com grande impacto mediático, por um trabalho de bastidores

fundado no lobbying ou por um trabalho de proximidade alicerçado em ações de

advocacy.

É também nesta linha que Boaventura Sousa Santos caracteriza a

novidade destes movimentos:

―A novidade maior dos NMSs reside em que constituem tanto uma crítica da

regulação social capitalista, como uma crítica da emancipação social socialista

tal como ela foi definida pelo marxismo. Ao identificar novas formas de

opressão que extravasam das relações de produção e que nem sequer são

específicas dela, como sejam a guerra, a poluição, o machismo, o racismo ou o

47 Muitas vezes encontra-se, na literatura, uma sobreposição relativa aos termos movimentos sociais (ou novos movimentos sociais) e ONG. Na verdade, estas são coisas e formas distintas: os movimentos sociais, genericamente entendidos enquanto modos de ação coletiva, assumem muitas vezes a formulação organizacional e jurídica de ONG, que é definida pela legislação do país onde esta é sediada. Mas um movimento social não tem que ser uma ONG, esta é apenas uma, de entre outras possibilidades, forma de organização da ação e não a elaboração e definição política da ação em si mesma. Assim, uma ONG pode desenvolver ações no âmbito de um movimento social e pode enquadrar a sua ação num movimento mas ela não totaliza o movimento (por exemplo, a Greenpeace é uma ONG que representa o movimento ambientalista a nível global mas não o esgota, na medida em que outras ONG‘s e outras associações também o representam a nível global ou local). Da mesma forma os movimentos sociais podem não ter nenhuma estrutura organizativa formal na sua base (um exemplo disto é o recentemente criado Movimento dos Indignados, a nível global, ou dos Precários Inflexíveis, a nível nacional). Importa assim distinguir a formulação substantiva (movimento social) da formulação organizacional ou jurídica (ONG‘s, associações,…).

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produtivismo, e ao advogar um novo paradigma social menos assente na

riqueza e no bem-estar material do que na cultura e na qualidade de vida, os

NMSs denunciam, com uma radicalidade sem precedentes, os excessos de

regulação da modernidade. Tais excessos atingem, não só o modo como se

trabalha e produz, mas também o modo como se descansa e vive; a pobreza e

as assimetrias das relações sociais são a outra face da alienação e do

desequílibrio interior dos indivíduos; e, finalmente, essas formas de opressão

não atingem especificamente uma classe social e sim grupos sociais

transclassistas ou mesmo a sociedade no seu todo.‖ (Santos, 1994: 222).

Mas é importante ter em consideração o ‗aviso‘ feito por Castells (2003) de

que

―os movimentos sociais podem ser conservadores, revolucionários, ambas as

coisas ou nenhuma delas. (…) do ponto de vista analítico, não há movimentos

sociais ―bons‖ ou ―maus‖. Todos eles são sintomas das nossas sociedades, e

todos causam impacto nas estruturas sociais, em diferentes graus de

intensidade e com resultados distintos‖ (Castells, 2003: 85-86).

Apresentado o contexto que enquadra as práticas sociais em questão neste

trabalho é possível, agora, analisar de que forma se relacionam as estruturas

sociais e os eventos (Fairclough, 2009).

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127

1.1. Do discurso hegemónico

1.1.1. Matriz social do discurso: politicidade do discurso

Os textos considerados para análise em termos de discurso hegemónico

são textos provenientes de diferentes organizações mas que têm em comum uma

característica: todas são organizações supranacionais, ou seja, cuja constituição

em termos de escala, está para além dos estados-nação constituindo-se,

portanto, em formas de reescalonamento do Estado. No entanto, como lembra

Roger Dale (2001), é importante não tratar as organizações supranacionais de

forma a-problemática, ou seja, não as ―ver como homogéneas e referentes a

valores mundiais e a políticas mundiais da mesma forma.‖ (Dale, 2001: 163). De

facto, as organizações aqui consideradas – ONU, Banco Mundial, União Europeia

(e nesta, a Comissão Europeia que é o seu órgão executivo) – são diversas quer

quanto à sua constituição, quer quanto aos objetivos e ao seu papel no ―ciclo das

políticas‖ (Bowe, Ball e Gold, 1992).

A ONU e o Banco Mundial têm em comum o facto de serem organizações

transnacionais, ou seja, organizações que, não obstante terem sido criadas por

iniciativa direta dos Estados-nação, operam para além destes. A ONU foi criada

no fim da II Guerra Mundial com a intenção de ―manter a paz e a segurança

internacional, desenvolver relações amigáveis entre as nações e promover o

progresso social, melhores condições de vida e os direitos humanos‖48, tendo-se

dedicado, sobretudo a partir de 1984, a questões relativas ao desenvolvimento

dos países mais pobres. Referindo-se à ONU como uma ―sopa de letras‖, dada a

sua complexa estrutura administrativa e de organização – programas, fundos,

comissões –, Pinto (2010) refere que ―[a]s actividades de desenvolvimento da ONU

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desenrolam-se em três instâncias: 1. a ONU, isto é, os órgãos principais, em

especial o Conselho Económico e Social (CES); 2. as instituições de Bretton

Woods; 3. e, mais recentemente, a Organização Mundial do Comércio (OMC)‖

(Pinto, 2010: 131). A autora estabelece, assim, a ligação entre as duas

organizações aqui consideradas, dado que uma das instituições de Bretton

Woods49, criada na conferência realizada, e que assume o papel de mecanismo de

desenvolvimento, é o próprio Banco Mundial.

É importante referir, no entanto, que o Banco Mundial assume que não é

―um banco no sentido comum mas uma parceria única para reduzir a pobreza e

apoiar o desenvolvimento‖50, sendo constituído por cinco organizações51. Esta

negação desse ―sentido comum‖ significa que o papel do Banco Mundial não é,

apenas, o de empréstimo financeiro a troco de juros – a atividade central do setor

bancário – mas sim um papel político. Na verdade, se o BM fornece ―empréstimos

a juros baixos, créditos sem juros e doações aos países em desenvolvimento‖52

também oferece ―apoio aos países em desenvolvimento através de conselhos de

políticas, pesquisas e análises, e assistência técnica‖53. A contrapartida que os

48 In http://www.un.org/en/aboutun/index.shtml 49 Maria do Céu Pinto esclarece que ―[a]s chamadas ―instituições de Bretton Woods‖ resultaram da conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, realizada na localidade de Bretton Woods (…). Na conferência, foram definidas regras, instituições e procedimentos para as relações monetárias e financeiras entre os países mais industrializados do mundo.‖ (Pinto, 2010: 132). 50 In, http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/EXTABOUTUS/0,,contentMDK:20103838~menuPK:1696997~pagePK:51123644~piPK:329829~theSitePK:29708,00.html 51 As cinco organizações que compõem o Grupo Banco Mundial são o BIRD – Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento; a AID – Associação Internacional de Desenvolvimento; a CFI – Corporação Financeira Internacional; a AMGI – Agência Multilateral de Garantias de Investimentos; e o CIADI – Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas sobre Investimentos. (http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/EXTABOUTUS/0,,contentMDK:20046292~menuPK:1696892~pagePK:51123644~piPK:329829~theSitePK:29708,00.html) 52 In http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/EXTABOUTUS/0,,contentMDK:20103838~menuPK:1696997~pagePK:51123644~piPK:329829~theSitePK:29708,00.html 53 In, http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/EXTABOUTUS/0,,contentMDK:20103838~menuPK:1696997~pagePK:51123644~piPK:329829~theSitePK:29708,00.html

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“As pessoas acima do lucro”

Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

129

empréstimos a juros baixos têm é, então, uma contrapartida política porque o

que é apresentado como sendo um serviço prestado – os ―conselhos de políticas‖,

a ―ajuda técnica‖ – é um modo de fixar orientações políticas:

―[n]os casos dos empréstimos de ajustamento estrutural, pretende-se

encaminhar as economias para as regras de mercado, incluindo a privatização

de serviços empresas públicas e, em geral, a redução da presença do Estado

na economia. No caso de empréstimos de ajustamento sectorial, visa-se a

reestruturação de sectores considerados de importância determinante para a

liberalização das economias. O Banco também presta consultadoria à

preparação de projectos não financiados por si. Trata-se de um apoio dado a

projectos específicos ou à formação de quadros e à divulgação de técnicas de

preparação e análise.‖ (Pinto, 2010: 135).

Há, então, uma intencionalidade política na ação do Banco Mundial que

advém da sua capacidade de financiar os ‗países em desenvolvimento‘ e que

exemplifica aquilo que Roger Dale (2001) denomina de ―poderoso papel das

organizações internacionais enquanto instituições de ‗governação global‘ ‖ (Dale,

2001: 161). Esta ‗governação global‘ é consequência da globalização política que,

segundo Robertson et al (2007), se caracteriza por descentrar da escala nacional

a organização política dominante – desnacionalização – e descentrar do Estado o

papel de ator principal – desestatização. É a constatação deste processo de

desnacionalização que leva Roger Dale (2001) a

―reconhecer que as organizações internacionais não confinam as suas

intervenções apenas à área dos mandatos políticos; elas também, e de uma

forma crescente, tratam de questões quer de capacidade, quer de governação.

A governação tornou-se no objectivo chave de organizações como (…) o Banco

Mundial nos anos mais recentes.‖ (Dale, 2001: 161).

De facto, na Estratégia 2020 para a Educação do Grupo Banco Mundial (D2), o

objetivo de mandato e de capacidade estão bem presentes, ao enfatizar,

assertivamente, o que se vai fazer:

―Para alcançar a aprendizagem para todos, o Grupo Banco Mundial canalizará

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

130

os seus esforços para a educação em duas vias estratégicas: reformar os

sistemas de educação no nível dos países e construir uma base de

conhecimento de alta qualidade para reformas educacionais no nível global.‖

(D2);

―No nível dos países, o Grupo do Banco irá concentrar-se em apoiar reformas

dos sistemas educacionais.‖ (D2).

Mas também a declaração de intenção de governação se encontra plasmada no

texto, nomeadamente, quando é afirmado que

―Melhorar os sistemas de educação significa ir além de fornecer simplesmente

recursos.‖ (D2);

―A abordagem da nova estratégia ao sistema educacional centra-se em maior

responsabilização e resultados como complemento de proporcionar recursos.

Reforçar os sistemas educacionais significa alinhar a sua governação, a gestão

de escolas e professores, regras de financiamento e mecanismos de incentivo,

com o objectivo da aprendizagem para todos. Isto implica uma reforma das

relações de responsabilização entre os vários actores e participantes no

sistema educacional, para que esse relacionamento seja claro, coerente com

as funções, medido, monitorizado e apoiado. Significa também estabelecer um

ciclo claro de retorno entre o financiamento (incluindo a ajuda internacional) e

os resultados. (…) Numa perspectiva operacional, o Banco Mundial

concentrará cada vez mais a sua ajuda financeira e técnica em reformas do

sistema que promovam os resultados da aprendizagem.‖ (D2).

Estas afirmações demonstram a politicidade inerente ao discurso do

Banco Mundial em matéria de educação. Essa politicidade afirma-se no

estabelecimento do mandato e capacidade – ou seja, do que é desejável e possível

alcançar – mas também na intenção de governação54. E é exatamente pelo seu

54 Importa esclarecer o que significa governação uma vez que, segundo Jessop (1998,) originalmente, este termo se referia ―principalmente à ação ou modo de governar, guiar ou conduzir numa direção, sobrepondo-se a ‗governo‘ ‖ (Jessop, 1998: 30) e que o seu uso se tornou popular em muitos contextos, tendo-se tornado numa palavra ‗zumbido‘ (buzzword, no original) que poderia significar qualquer coisa ou nada (Jessop, 1998). Para Jessop, ―o fator chave para o seu renascimento foi, provavelmente, a necessidade de distinguir entre ‗governação‘ e governo‘. Assim, governação referir-se-ia a modos e formas de governar e governo às instituições e agentes

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

131

papel de banco ―não no sentido comum do termo‖ que o Banco Mundial assume

um papel de governação dado que explicita o que e como se deve fazer para

atingir o desejável e o possível e conecta o financiamento atribuído à existência

de resultados e de retorno, e às reformas que o próprio Banco Mundial elencou

como sendo imprescindíveis.

Este papel é também percebido no modo como o Banco Mundial se coloca,

a si próprio, na relação com os governos nacionais, convertendo, assim, a

suposta assistência técnica em governação:

―Numa perspectiva operacional, o Banco Mundial concentrará cada vez mais a

sua ajuda financeira e técnica em reformas do sistema que promovam os

resultados da aprendizagem. Para esse efeito, o Banco irá concentrar-se em

ajudar os países parceiros a consolidar a capacidade nacional para reger e

gerir sistemas educacionais, implementar padrões de qualidade e equidade,

medir o sistema de desempenho com relação aos objectivos nacionais para a

educação e apoiar a definição de políticas e inovação com base comprovada.

(D2)‖;

―Uma detalhada análise de sistema e o investimento em conhecimentos e em

dados permitirá ao Banco e aos decisores políticos ―analisar no nível global e

agir no nível local‖ – ou seja, avaliar a qualidade e a eficácia de muitos

domínios da política, mas concentrarem a acção em áreas onde os

melhoramentos podem trazer uma maior recompensa em termos de

resultados de escolaridade e aprendizagem.‖ (D2).

A partilha de papéis políticos entre o BM e os governos nacionais é

refletida pela referência a ambos em atos de governação – ―o Banco irá

concentrar-se em ajudar os países parceiros a consolidar a capacidade (…) para

reger e gerir (…), implementar (…), medir (…) apoiar a definição de políticas‖;

―permitirá ao Banco e aos decisores políticos analisar (…) concentrarem‖ – apesar

de esta dupla referência ser de iniciativa unilateral. De facto, não obstante os

encarregues de governar‖ (Jessop, 1998: 30).

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

132

dois protagonistas aparecerem, aparentemente, de modo paritário – os países

intervencionados são referidos como ―países parceiros‖; a intervenção do BM é

referida como sendo a de ―ajudar‖ –, a verdade é que neste documento, produzido

apenas pelo BM, é definido o quê, como, quem e o porquê se decide politicamente.

A ONU, sendo também uma organização transnacional, assume um papel

muito mais fluído, „soft‟ – para não dizer inexistente – em termos de governação.

De facto, no seu discurso encontram-se, sobretudo, recomendações, facto a que

não será alheio quer a organização da instituição, quer os seus objetivos e modos

de ação. Não sendo financiadora direta de Estados-nação, e estando até

dependente do pagamento de quotas por parte destes para operar, a ONU

assume cada vez mais um papel de guardiã e vigilante de direitos e valores

supostamente universais. Deste modo, o seu discurso é, enquanto discurso

político, essencialmente de produção ideológica, próprio de quem se encontra

num ―contexto de influência‖ (Bowe, Ball e Gold, 1992):

―We will spare no effort to free our fellow men, women and children from the

abject and dehumanizing conditions of extreme poverty, to which more than a

billion of them are currently subjected. We are committed to making the right

to development a reality for everyone and to freeing the entire human race

from want.‖ (D1);

―We resolve therefore to create an environment – at the national and global

levels alike – which is conducive to development and to the elimination of

poverty.‖ (D1);

We are concerned about the obstacles developing countries face in mobilizing

the resources needed to finance their sustained development. We will therefore

make every effort to ensure the success of the High-level International and

Intergovernmental Event on Financing for Development, to be held in 2001.‖

(D1).

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“As pessoas acima do lucro”

Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

133

É que, não obstante a utilização de verbos indiciadores de ação – como ―vamos‖,

―resolvemos‖, ―vamos fazer‖ – eles são logo seguidos de expressões que

transformam a ação em contextualização da ação – ―criar um ambiente que

conduza‖, ―esforços para assegurar‖ – ou em ação de preocupação e não de

mudança ou alteração.

Esta característica é uma constante no documento em análise: nos

momentos em que, no documento, são indicadas resoluções elas transformam-se

em resoluções de intenção e não de ação, uma vez que é indicado o que se resolve

mas não como se vai fazer para cumprir, ou fazer cumprir, essa resolução. Esta

constatação torna-se ainda mais evidente quando essas resoluções de intenção se

referem a temas complexos e que envolvem diversos intervenientes, diversas

variáveis e diversas possibilidades processuais que não são, sequer, referidas, da

mesma forma que não o são eventuais conflitos ou posições díspares que possam

colocar em causa essas resoluções de intenção. Os extratos abaixo citados

exemplificam o que acabo de afirmar, sendo necessário explicitar que, todos eles

se referem a resoluções – ―We resolve therefore‖ (D1) – tomadas no âmbito dos

objetivos considerados mais significativos nesta Declaração – ―7. In order to

translate these shared values into actions, we have identified key objectives to

which we assign special significance. (…) II. Peace, Security and disarmament (…)

III. Development and poverty eradication (…) IV. Protecting our common

environment (…) V. Human rights, democracy and good governance (…) VI.

Protecting the vulnerable(…) VII. Meeting the special needs of Africa (…) VIII.

Strengthening the United Nations‖ (D1):

―To strengthen respect for the rule of law‖ (D1);

To take concerted action against international terrorism, and to accede as

soon as possible to all the relevant international conventions. (D1);

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“As pessoas acima do lucro”

Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

134

―To redouble our efforts to implement our commitment to counter the world

drug problem‖ (D1);

―To halve, by the year 2015, the proportion of the world‘s people whose income

is less than one dollar a day and the proportion of people who suffer from

hunger and, by the same date, to halve the proportion of people who are

unable to reach or to afford safe drinking water.‖ (D1);

―To ensure that, by the same date, children everywhere, boys and girls alike,

will be able to complete a full course of primary schooling and that girls and

boys will have equal access to all levels of education.‖ (D1);

―To promote gender equality and the empowerment of women as effective ways

to combat poverty, hunger and disease and to stimulate development that is

truly sustainable.‖ (D1);

―To make every effort to ensure the entry into force of the Kyoto Protocol,

preferably by the tenth anniversary of the United Nations Conference on

Environment and Development in 2002‖ (D1);

―To intensify our collective efforts for the management, conservation and

sustainable development of all types of forests.‖ (D1);

―To respect fully and uphold the Universal Declaration of Human Rights‖ (D1);

―To strive for the full protection and promotion in all our countries of civil,

political, economic, social and cultural rights for all.‖ (D1);

―To strengthen the capacity of all our countries to implement the principles

and practices of democracy and respect for human rights, including minority

rights.‖ (D1);

―To expand and strengthen the protection of civilians in complex emergencies,

in conformity with international humanitarian law.‖ (D1);

―To strengthen international cooperation, including burden sharing in, and

the coordination of humanitarian assistance to, countries hosting refugees

and to help all refugees and displaced persons to return voluntarily to their

homes, in safety and dignity and to be smoothly reintegrated into their

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“As pessoas acima do lucro”

Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

135

societies.‖ (D1);

―To give full support to the political and institutional structures of emerging

democracies in Africa.‖ (D1);

―To encourage and sustain regional and subregional mechanisms for

preventing conflict and promoting political stability, and to ensure a reliable

flow of resources for peacekeeping operations on the continent.‖ (D1);

―To reaffirm the central position of the General Assembly as the chief

deliberative, policy-making and representative organ of the United Nations,

and to enable it to play that role effectively.‖ (D1);

―To ensure that the Organization is provided on a timely and predictable basis

with the resources it needs to carry out its mandates.‖ (D1).

Todos os extratos acima constituem ―resoluções‖55. Como se pode verificar,

todas elas são resoluções de intenção, na medida em que estabelecem o quê mas

não o como. ―Como?‖, é aliás, uma pergunta que se poderia colocar no final de

cada uma destas ―resoluções‖, mas à qual não se obteria qualquer resposta, não

obstante elas serem apresentadas como resoluções no âmbito de objetivos chave

que têm como função traduzir ―valores‖ em ―ações‖.

O terceiro discurso identificado como hegemónico foi o discurso da União

Europeia. Como já afirmei ao longo do trabalho, a União Europeia distingue-se

dos outros dois discursos considerados por ser uma organização regional. A

constituição de blocos político-económicos que agregam estados-nação é também

uma forma de globalização política. A história da constituição da União Europeia

evidencia a agregação de interesses económicos a interesses políticos e como os

primeiros foram centrais na constituição da mesma. O início da União Europeia é

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

136

feito através da associação de países com base em critérios económicos e, pela

consulta à história da União Europeia, é facilmente identificável o alargamento

das competências do foro estritamente económico ao foro político-económico e

que a própria evolução da denominação traduz (CECA – Comunidade Europeia

do Carvão e do Aço; CEE – Comunidade Económica Europeia; UE – União

Europeia).

No domínio da cooperação com países terceiros, a União Europeia define a

sua intervenção deste modo:

―Mais de metade dos financiamentos consagrados à ajuda aos países pobres

provêm da UE e dos seus Estados-Membros, que são o principal doador de

ajuda no mundo. A política de desenvolvimento é muito mais do que garantir

o abastecimento em água potável ou a melhorar a rede viária, embora

obviamente este tipo de iniciativas também seja importante. A UE recorre

também ao comércio para fomentar o desenvolvimento, abrindo os seus

mercados às exportações provenientes dos países pobres e incentivando-os a

intensificarem as trocas comerciais entre si.‖56.

Também aqui se encontra, de modo explícito, o papel do financiamento

como promotor da política de desenvolvimento da UE: a primeira afirmação feita

é a do papel da União no financiamento dos países pobres, legitimando, assim,

as orientações políticas que venham a ser privilegiadas, sendo que, a política de

educação da UE para a erradicação da pobreza se

―Constitui [n]uma reorientação dos seus apoios sectoriais no sentido da

redução da pobreza e dos seus compromissos internacionais

recentemente assumidos, em apoio das políticas dos países em

desenvolvimento e em complementaridade com os outros dadores.57‖ (D4)

e

―Tem por objectivo concentrar o conjunto dos seus métodos no apoio à

55 De forma a tornar percetível para o leitor a ideia que estou a defender, selecionei duas ―resoluções‖ – de entre várias no mesmo tom – de cada um dos oito ―objetivos chave‖ identificados. 56 In, http://europa.eu/pol/dev/index_pt.htm 57 O destaque a bold é do documento original.

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

137

educação e à formação e apresentar orientações para a Comunidade.58‖

(D4).

Ora, esta ―reorientação dos seus apoios sectoriais‖ e o ―objetivo de

concentrar‖ métodos e ―apresentar orientações‖ evidenciam uma dupla dimensão

política do discurso da Comissão Europeia. Por um lado, uma dimensão política

para dentro, ou seja, organizar os modos de ação dos Estados-membro de forma

concertada. Esta dimensão política para dentro, ou interna, é reforçada pelo facto

de este ser um discurso proveniente da instituição europeia – a Comissão

Europeia – que ―representa os interesses da Europa no seu conjunto (por

oposição aos interesses específicos de cada país)‖59. Por outro lado, é também

patenteada, neste discurso, uma dimensão política para fora, na medida em que

se afirma a complementaridade com outros doadores e também estabelece o

mandato e a capacidade da sua política.

Estas duas dimensões podem ser interpretadas de acordo com a ideia de

Santos (2001) segundo a qual uma das dimensões da globalização política é o

enfraquecimento dos poderes do Estado-nação que o obriga a, paradoxalmente,

―regular a sua própria desregulação‖ (Santos, 2001: 45) o que significa que os

Estados-nação devem ―intervir para deixarem de intervir‖ (Santos, 2001: 45), ou

seja, legislar no sentido de ceder poder a entidades supranacionais. Esta

―regulação da desregulação‖ é visível no discurso da UE tanto na dimensão

política para dentro como na dimensão política para fora: na primeira, ao

estabelecer uma agenda política não só para UE como para cada um dos

Estados-membro – através da expressão da concertação de esforços e

harmonização de iniciativas por parte dos Estados-membro, implicando uma

58 O destaque a bold é do documento original. 59 In http://ec.europa.eu/about/index_pt.htm , consultado em 10/10/2011.

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eventual reorientação das suas políticas nacionais de cooperação; na segunda,

ou seja, na dimensão política para fora, ao indicar aos países beneficiários o que

devem privilegiar em termos de decisão e ação política:

―Os países devem, portanto, melhorar a eficiência dos seus sistemas de

ensino. Os países que o conseguem, caracterizam-se por uma combinação de

despesas elevadas no ensino primário, custos unitários razoáveis e uma taxa

de insucesso escolar baixa.

Por conseguinte, os dadores discutirão com os países beneficiários as suas

estratégias de ensino a fim de maximizar os efeitos da ajuda financeira que

poderão consagrar a tais estratégias.‖ (D4).

Para além do estabelecimento do mandato político também se encontram

intenções de governação no documento analisado:

- por um lado, apesar de se reconhecer o papel dos países, são definidas

prioridades pela Comissão que não só são elencadas como são destacadas a

‗bold‘:

―A comunicação reconhece o papel primordial dos países e fixa três

prioridades para o apoio da Comunidade: o ensino básico, em especial o

ensino primário e a formação dos professores, a formação ligada ao

emprego e o ensino superior,60 sobretudo a nível regional.‖ (D4);

- por outro lado, (mas cumulativamente) os países serão recompensados

se seguirem as diretrizes da UE, ou seja se se adaptarem à noção de ‗país como

deve ser‘ que está subjacente ao discurso produzido:

―A comunidade internacional dará preferência aos países que se

mostrarem mais firmemente empenhados no processo da educação para

todos, em especial aqueles que têm em conta as necessidades das

populações mais pobres, que favorecem a escolarização das raparigas e

eliminam os obstáculos de acesso ao ensino como, por exemplo, os

custos associados à educação.‖61 (D4);

60 O destaque a bold é do documento original.

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

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―A adopção, por um país, de um ensino primário gratuito e obrigatório tem

consequências em termos de recursos financeiros suplementares. A

Comunidade deverá, portanto, ajudar os países que demonstraram

determinação em seguir esta via.‖ (D4) .

No ―Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento‖ (D3), apresentado sob a

forma de ―Declaração conjunta do Conselho e dos Representantes dos Governos

dos Estados-Membros reunidos no Conselho, do Parlamento Europeu e da

Comissão sobre a política de desenvolvimento da União Europeia‖, volta a estar

presente a dimensão política para dentro. Começa por afirmar que

―A cooperação para o desenvolvimento é uma competência partilhada entre a

Comunidade Europeia e os Estados-Membros. A política da Comunidade em

matéria de cooperação para o desenvolvimento é complementar das políticas

dos Estados-Membros.‖ (D3)

salientando, então, não só a repartição de responsabilidades, como, sobretudo o

caráter supletivo da política de cooperação da Comunidade face às políticas de

cooperação dos Estados-membros. No entanto, esta suposta complementaridade

é negada imediatamente a seguir quando é afirmado que

―Importa que o nosso [dos Estados-Membros e da Comunidade] esforço de

coordenação e harmonização contribua para uma maior eficácia da ajuda.

Para tal, baseando-se nos progressos realizados nos últimos anos, o

«Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento» oferece, pela primeira vez, uma

visão comum que norteia a acção da UE, tanto a nível dos Estados-Membros

como da Comunidade, no domínio da cooperação para o desenvolvimento.‖

(D3).

Esta ―visão comum‖ reforça o papel político da União Europeia enquanto

bloco político no sentido da constituição de uma unidade forte. Esse reforço

torna-se ainda mais explícito pela adoção do termo ―consenso‖ no título do

61 O destaque a bold é do documento original.

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

140

documento, indiciador que ―os textos, eles próprios, são o resultado de lutas e

compromissos. O controlo da representação da política é problemático.‖ (Bowe,

Ball e Gold, 1992: 21). É esta ―visão comum‖ ―consensualizada‖ que permite

passar de ―políticas de cooperação‖, no plural, dos Estados-membros para

―política de cooperação‖, no singular, da União Europeia. Deste modo, esta ―visão

comum‖ que foi ―consensualizada‖ – expressão que lhe atribui força, na medida

em que a legitima através da sua construção partilhada e/ou negociada – é

também uma forma de política para dentro porque constrói uma orientação para

a União e para os Estados-membros numa lógica de unidade de ação. É que o

―consenso‖ não é um documento que fixa apenas uma ―visão comum‖, não se

limita ao mandato, estendendo-se à capacidade e à governação:

―Esta visão comum é explanada na primeira parte da declaração; quanto à

segunda parte, enuncia a política de desenvolvimento da Comunidade

Europeia, em cujo âmbito deve ser concretizada esta visão a nível da

Comunidade, e analisa com mais pormenor as prioridades de acção concreta a

este nível.‖ (D3).

Os discursos hegemónicos aqui considerados, produzidos por três

organizações distintas, têm papéis diferentes no ―ciclo das políticas‖ (Bowe, Ball e

Gold, 1992), abordagem desenvolvida para dar conta da complexidade e

articulação dos processos de elaboração e implementação política. Nesse sentido,

os autores distinguiram três contextos principais de política – contexto de

influência, contexto da produção de texto e contexto da prática –, cuja

representação se constitui num ciclo contínuo dado estarem inter-relacionados

mas não serem lineares nem sequenciais. Segundo Bowe, Ball e Gold (1992: 19),

―O primeiro contexto, o contexto de influência, é onde, normalmente, a política

pública é iniciada. É aqui que os discursos políticos são construídos. É aqui

que as partes interessadas lutam para influenciar a definição e propósitos

sociais da educação, o que significa ser educado. (…) Este contexto de

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

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influência tem uma relação simbiótica, mas ainda assim difícil, com o

segundo contexto, o contexto da produção do texto político. Porque enquanto

a influência está muitas vezes relacionada com a articulação de interesses

restritos e ideologias dogmáticas, os textos políticos são normalmente

articulados na linguagem de um bem público geral. O seu recurso baseia-se

em afirmações de senso comum populares e razão política. Assim, os textos

políticos representam a política. (…) As políticas são, então, representações

textuais mas também constroem constrangimentos e possibilidades materiais.

As respostas aos textos têm consequências ‗reais‘. Estas consequências são

experienciadas no interior do terceiro contexto, o contexto da prática, a arena

prática à qual a política se refere, à qual é dirigida. O ponto-chave é que a

política não é simplesmente recebida e implementada no interior desta arena,

mas é sujeita a interpretação e é ‗recriada‘.‖.

Num trabalho anterior (Costa, 2001) defendi que estes três contextos

principais têm uma correspondência com os processos de elaboração e

implementação política, ou seja, a produção de ideologias, o estabelecimento da

agenda e a tomada de decisão, apesar de estes poderem coexistir nos diferentes

contextos e níveis políticos. No caso dos discursos aqui em análise, a sua

consideração em temos do cruzamento destas perspetivas é representada no

quadro da página seguinte:

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Ciclo das Políticas

Contexto de influência Contexto de produção do

texto político Contexto da prática

ONU United Nations Millenium Declaration (D1)

United Nations Millenium Declaration (D1)

BM

Estratégia 2020 para a Educação – Aprendizagem para Todos: investir nos conhecimentos e competências das pessoas para promover o desenvolvimento (D2)

Estratégia 2020 para a Educação – Aprendizagem para Todos: investir nos conhecimentos e competências das pessoas para promover o desenvolvimento (D2)

Estratégia 2020 para a Educação – Aprendizagem para Todos: investir nos conhecimentos e competências das pessoas para promover o desenvolvimento (D2)

UE

Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento (D3) Comunicação relativa à Educação e à Formação no contexto da redução da pobreza nos países em desenvolvimento (D4)

Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento (D3) Comunicação relativa à Educação e à Formação no contexto da redução da pobreza nos países em desenvolvimento (D4)

Comunicação relativa à Educação e à Formação no contexto da redução da pobreza nos países em desenvolvimento (D4)

Produção de ideologias

Estabelecimento da agenda

Tomada de decisão

Processo de elaboração política

Quadro 9. Discursos hegemónicos em análise no cruzamento do ciclo das políticas com o processo de elaboração política.

Se a ONU tem um papel, sobretudo, no contexto de influência, e portanto,

na produção de ideologia, não deixa, por esse mesmo motivo, de operar em

termos de estabelecimento da agenda. Isto significa que, através do seu papel de

influência, a ONU não só define que objetivos de desenvolvimento devem ser

fixados para o milénio como também coloca esses mesmos objetivos na agenda

política internacional. Isso é claramente visível, como defenderei mais adiante,

em termos de intertextualidade.

Já o Banco Mundial e a UE agregam a estes contextos um posicionamento

no contexto da prática, o que fica claro na diferença verificada nos discursos em

consideração no que diz respeito à sua intenção, ou não, de governação. De

facto, tanto o Banco Mundial como a União Europeia (sobretudo através da

Comissão), definem o quê, quem, como e porquê, demonstrando a perspicácia de

Roger Dale quando defendeu que a relação dos processos de globalização com a

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educação mostram a existência de uma agenda globalmente estruturada para a

educação (Dale, 2001). Também no que toca às relações entre educação e

desenvolvimento parece haver uma ―agenda globalmente estruturada‖ (Dale,

2001), tornando-se portanto, importante perguntar – com inspiração em Roger

Dale (2001) mas contextualizando no que às questões de educação e

desenvolvimento diz respeito –, ―a quem é ensinado o quê, como, por quem, e em

que circunstâncias?; como, por quem e através de que estruturas, instituições e

processos são definidas estas coisas, como é que são governadas, organizadas e

geridas?‖ (Dale, 2001: 149). É preciso, pois, perceber que efeitos ideológicos estes

discursos têm e que agenda constroem. A consideração desses efeitos é feita de

seguida.

1.1.2. Efeitos ideológicos do discurso – políticos e económicos

Não é consensual a forma como ―ideologia‖ é entendida. Boudon (1986)

expõe várias posições teóricas que, ao longo do tempo, se constituíram desde

que, no final do século XVIII, Destutt de Tracy criou o termo para designar uma

disciplina ―que teria por objeto as ideias, como a mineralogia tem por objeto os

minerais ou a geologia a Terra‖ (Boudon, 1986: 40). Referindo que a ―história da

palavra ideologia mostra que ela foi usada para designar uma ambição, a de

pensar e criar uma base científica62 da ordem social‖ (Boudon, 1986: 41), o autor

sistematiza as diferentes definições do conceito distinguindo-as pela sua

referência, ou não, a critérios de falsidade. Wodak e Meyer (2009) alertam para o

facto de também em ACD, apesar de central, não ser consensual a definição de

ideologia (cf. página 81). Assim, julgo importante esclarecer aqui que uso a noção

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explicitada por Olssen, Codd e O‘Neill (2004: 66), para quem ideologia se refere

―às relações entre sistemas de representação e poder tal como são desigualmente

expressas nos sistemas sociais (…) a sentidos e representações que são parciais,

ou seja, que são verdadeiros mas que ocultam outros sentidos e representações

que são igualmente reais.‖. Assim, os efeitos ideológicos do discurso aqui

considerados referem-se, não à criação de ‗falsas consciências‘, como na aceção

marxista, mas sim a regimes de produção de verdades, de crenças comuns, que

contribuem para a implementação e construção de formas ―corretas‖ de ver o

mundo. Esta consideração é feita deste modo na medida em que o discurso pode

ser

―ideológico no sentido Althusseriano porque pode tornar-se inconsciente, um

‗sistema de representações‘ (Althusser, 1969: 231-6) tomado como garantido.

Esta forma de ideologia é inscrita no discurso em vez de ser simbolizada por

ele, ou seja, não é sinónimo de um conjunto de doutrinas ou de um sistema

de crenças que os indivíduos possam escolher aceitar ou rejeitar.‖ (Olssen,

Codd e O‘Neill, 2004: 65).

Tendo, então, por referência que os efeitos ideológicos – do ponto de vista

político e económico – são aqui considerados por relação ao modo como os

discursos constroem uma noção de verdade e, assim, promovem o bem comum.,

a primeira questão a relevar, porque diretamente relacionada com o que afirmei

no ponto anterior, é o da irreversibilidade do caráter ideológico destes discursos.

Esta irreversibilidade advém, não só do facto de os discursos, nomeadamente os

discursos políticos, serem sempre ideológicos, mas sobretudo pelo lugar de onde

são proferidos. Como afirmei no ponto anterior, os discursos em análise neste

momento são discursos provenientes de instituições com lugares demarcados no

―ciclo das políticas‖ (Bowe, Ball e Gold, 1992) e com um papel no processo de

62 O destaque é do autor.

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elaboração política (cf. quadro 9). Isto significa que, inevitavelmente, os discursos

contêm, em si mesmos, uma dimensão ideológica que se caracteriza por defender

e promover uma forma de bem comum, dado que as políticas são sempre

ideologicamente informadas apesar da sua construção retórica lhes atribuir,

quase sempre, um lugar incontestado fundado na promoção de um ‗bem comum‘

universal. Esta suposta universalidade de um ‗bem comum‘ é uma forma de

legitimação do discurso político que não pode deixar de ser lida dentro de uma

narrativa que constrói, ela própria, uma realidade e que concorre com outras

narrativas, também elas construtoras de outras realidades. Magalhães e Stoer

(2006b) caracterizam esses lugares incontestados, enquanto modo de

legitimação, como ―lugares brancos‖ e ―não lugares‖. Os primeiros dizem respeito

a formas de legitimação política que assumem a existência de ―uma instância

ética que os legitima de uma forma inquestionável em termos epistemológicos e

políticos. (…) esse lugar é tão claro que se torna invisível aos próprios olhos

daqueles que o habitam‖ (Magalhães e Stoer, 2006b: 27-28). Já os segundos – os

―não lugares‖ – caracterizam-se pelo facto de os discursos se legitimarem através

de uma suposta neutralidade e recusa de ter em consideração os contextos onde

são produzidos:

―os discursos construídos a partir de ―não lugares‖ também se apresentam

como lugares universais, quer dizer, independentes dos contextos em que se

situam e sobre os quais se debruçam. Os discursos tecnocráticos mostram

muitas destas características: falam como se o ponto a partir do qual dizem

fosse suficientemente neutro para os tornar, de alguma forma,

inquestionáveis.‖ (Magalhães e Stoer, 2006b: 27).

Assim, o discurso da ONU é um claro exemplo de um discurso que se

legitima pela sua produção a partir de um ―lugar branco‖ (Magalhães e Stoer,

2006b):

―1. We, heads of State and Government, have gathered at United Nations

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Headquarters in New York from 6 to 8 September 2000, at the dawn of a new

millennium, to reaffirm our faith in the Organization and its Charter as

indispensable foundations of a more peaceful, prosperous and just world.‖

(D1);

―We reaffirm our commitment to the purposes and principles of the Charter of

the United Nations, which have proved timeless and universal. Indeed, their

relevance and capacity to inspire have increased, as nations and peoples have

become increasingly interconnected and interdependent.‖ (D1);

―We are determined to establish a just and lasting peace all over the world in

accordance with the purposes and principles of the Charter.‖ (D1).

Esta consideração pode ainda ser levada mais longe: a ONU legitima-se, a

si própria, enquanto ‗instituição branca‘ ao iniciar o seu discurso afirmando-se

enquanto instância de valor e importância ética inquestionável e assumindo a

universalidade dos princípios e valores constituintes da Organização das Nações

Unidas e da Carta da Nações Unidas. Essa universalidade dos princípios e

valores da Carta é, então, não só tomada como garantida como também

legitimadora dos discursos da ONU, na medida em que é ela que enquadra o

discurso produzido. É de observar que é esta mesma produção da ONU enquanto

instituição inquestionável e inevitável que encerra o documento. A última

consideração dá conta da indispensabilidade da organização, descrita enquanto

―casa comum de toda a família humana‖ para a consecução de ‗bens comuns‘,

também eles ‗inquestionáveis‘ – paz, cooperação e desenvolvimento:

―32. We solemnly reaffirm, on this historic occasion, that the United Nations is

the indispensable common house of the entire human family, through which

we will seek to realize our universal aspirations for peace, cooperation and

development. We therefore pledge our unstinting support for these common

objectives and our determination to achieve them.‖ (D1).

O uso de expressões como as citadas acima, e que são ―reafirmadas

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solenemente‖, contribui para a construção de um sentido de unidade, de

harmonia e de concórdia, concorrendo assim para construção da ONU enquanto

instituição de valor inultrapassável para o ‗bem comum‘ da humanidade.

Outra marca distintiva deste discurso como ―lugar branco‖ (Magalhães e

Stoer, 2006b) é a seguinte referência feita também no enquadramento,

apropriadamente identificado no documento como ―Valores e Princípios‖ em que

a Declaração do Milénio se ancora:

―we have a collective responsibility to uphold the principles of human dignity,

equality and equity at the global level. As leaders we have a duty therefore to

all the world‘s people, especially the most vulnerable and, in particular, the

children of the world, to whom the future belongs.‖ (D1).

Esta afirmação despoleta uma adesão imediata ao discurso, na medida em que

ninguém negará, não só a importância do papel dos líderes e a responsabilidade

coletiva, como, sobretudo, a referência à dignidade humana, igualdade e

equidade, aos mais vulneráveis e às crianças ―a quem o futuro pertence‖. As

expressões usadas permitem a caracterização deste discurso como ―lugar branco‖

(Magalhães e Stoer, 2006b) na medida em que é um discurso benévolo, com o

objetivo de criação de consensos através da identificação de um ‗bem superior‘,

de uma ética acima de qualquer questionamento ou controvérsia. O mesmo se

pode afirmar quando a ONU define o que considera serem os valores que devem

guiar as relações internacionais no século XXI:

6. We consider certain fundamental values to be essential to international

relations in the twenty-first century. These include:

•Freedom. (…); •Equality. (…); •Solidarity. (…); •Tolerance. (…); •Respect

for nature. (…); •Shared responsibility.63 (…)‖ (D1).

Estes valores, especialmente quando cruzados com os oito objetivos chave

63 O destaque a bold é do documento original.

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já enunciados (cf. páginas 131 e 132), enunciam a possibilidade de construção

de um mundo organizado por referência a critérios de justiça e harmonia. Nunca

são referidos os constrangimentos possíveis derivados da ordem político-

económica mundial, da estratificação dos países e do seu posicionamento no

sistema mundial. Mesmo nos momentos em que há referência a problemas – seja

a pobreza, a degradação ambiental, a dívida externa, a insegurança, … – o

discurso é sempre construído por relação à possibilidade de superação desses

mesmos problemas, através de uma postura suave, que oculta as dificuldades de

atingir a harmonia declarada, dado que não tem em conta o conflito e, muito

menos, pondera o papel deste na criação dos problemas enumerados. Por outro

lado, a característica conciliadora do discurso contribui mesmo para esconder

algumas contradições. Por exemplo, como é possível ter como ―valor‖ a

―tolerância‖ defendendo que

―Differences within and between societies should be neither feared nor

repressed, but cherished as a precious asset of humanity‖ (D1)

e, simultaneamente,

―To strive for the full protection and promotion in all our countries of civil,

political, economic, social and cultural rights for all.‖ (D1).

Os direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais que a ONU pretende

defender são de raiz moderna e profundamente ocidentais, ainda que elevados (e

muito por influência da ONU) a valores ‗universais‘. E não estando aqui em

causa o seu valor, per si, a questão que se coloca é como é que, numa perspetiva

de ―tolerância‖ – expressão que já possui em si mesma um valor ideológico – a

ONU concilia, no seu discurso, o relativismo e o etnocentrismo culturais.

Em suma, no seu discurso, a ONU promove a ideologia da harmonia

através de dois mecanismos:

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- ao não ter em consideração, de forma real e clara, a existência de

conflitos que contribuem para os desequilíbrios mundiais, desequilíbrios esses

que são decisivos, porque funcionais, à manutenção da ordem mundial existente;

- ao assumir que os valores e princípios que advoga são partilhados pela

humanidade, ou seja, são universais.

Esta ideologia da harmonia é construída através de um discurso

manifestamente produzido a partir de um ―lugar branco‖ (Magalhães e Stoer,

2006b) e que se caracteriza por ser um discurso suave, benigno, conciliador e

(supostamente) axiologicamente neutro.

O discurso da UE tem também características de discurso elaborado a

partir de um ―lugar branco‖ (Magalhães e Stoer, 2006b), sobretudo no documento

―Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento‖, que se constitui numa declaração

conjunta do Conselho e dos representantes dos governos dos Estados-membros,

do Parlamento Europeu e da Comissão sobre a política de desenvolvimento da

UE. O facto de ser uma Declaração não é despiciendo para o tipo de discurso que

o documento produz: também o documento da ONU é uma Declaração, ou seja,

ambos são discursos provenientes do mesmo género (Fairclough, 2003 e 2009),

ou seja, do mesmo modo semiótico de agir. É por essa razão que este discurso, à

semelhança da Declaração do Milénio das Nações Unidas, se apresenta num

estilo de declaração de intenções, embora de modo mais concretizador

relativamente a este último, dado o posicionamento da UE no ―ciclo das políticas‖

(Bowe, Ball e Gold, 1992). Atente-se nestas afirmações constantes no documento:

―A luta contra a pobreza à escala mundial não é apenas uma obrigação moral:

contribuirá igualmente para a construção de um mundo mais estável, mais

pacífico, mais próspero e mais justo, que reflicta a interdependência entre os

países mais ricos e os países mais pobres — um mundo em que não

permitamos que cada hora veja morrerem de pobreza 1200 crianças, nem

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fiquemos indiferentes enquanto mil milhões de seres humanos lutam para

sobreviver com menos de um dólar por dia e o VIH/SIDA, a tuberculose e a

malária ceifam a vida de mais de 6 milhões de pessoas por ano.‖ (D3);

―Reafirmamos que o desenvolvimento é em si mesmo um objectivo essencial; e

que o desenvolvimento sustentável engloba a boa governação e os direitos

humanos, bem como vertentes políticas, económicas, sociais e ambientais.‖

(D3);

―13. A parceria e o diálogo da UE com os países terceiros visará a promoção de

valores comuns, a saber, o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades

fundamentais, a paz, a democracia, a boa governação, a igualdade entre os

sexos, o Estado de direito, a solidariedade e a justiça. A UE está firmemente

empenhada num multilateralismo efectivo em que todas as nações do mundo

partilhem a responsabilidade do desenvolvimento.‖ (D3).

Encontram-se, aqui, as mesmas características que me levaram a

qualificar o discurso da ONU como construtor de uma ideologia da harmonia.

Também nesta Declaração são ocultadas qualquer tipo de referências ao papel

que a própria UE tem, enquanto bloco político-económico dominante na cena

internacional, nomeadamente no que às questões Norte-Sul diz respeito,

optando-se por realçar o domínio do desejo de um mundo harmonioso. O

discurso é construído em função de um desejo de prosperidade, justiça e paz que

legitima o papel da UE mas que nunca equaciona esse mesmo papel na

existência de disfunções como a pobreza e outras que, não sendo nomeadas, são

subentendidas por relação a esse desejável. Portanto, encontra-se aqui também

um discurso benigno, perpassado por uma neutralidade axiológica, que tem

como função a adesão imediata e acrítica de um qualquer leitor, ao que poderiam

ser as ‗intenções‘ benévolas da UE.

Esta similaridade com o discurso da ONU esgota-se, no entanto, aqui.

Devido ao facto de ser proveniente de uma organização que, para além da

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produção de ideologia e do contexto de influência, tem também o papel de

estabelecimento da agenda e contexto da prática (cf. quadro 9), o discurso neste

documento assume também características de ―não lugar‖ (Magalhães e Stoer,

2006b), ou seja, de uma neutralidade que advém do enunciar da competência

técnica que a Comissão Europeia reconhece a si própria, nomeadamente, quando

elenca o ―Papel específico e vantagens comparativas da Comunidade‖ (D3):

―46. No âmbito das competências que lhe foram conferidas pelo Tratado, cabe

à Comissão desempenhar um vasto papel no domínio do desenvolvimento. A

sua presença mundial, a promoção da coerência das suas políticas de

desenvolvimento, a sua competência e conhecimentos específicos, o seu

direito de iniciativa a nível comunitário, o modo como facilita a coordenação e

a harmonização e o seu carácter supranacional assumem especial significado.

A Comunidade pode distinguir-se pela sua vantagem comparativa e valor

acrescentado, que permitem que se estabeleça uma complementaridade com

as políticas bilaterais dos Estados-Membro e de outros doadores

internacionais.‖ (D3);

―47. Em nome da Comunidade, a Comissão procurará representar uma mais-

valia desempenhando os seguintes papéis:

―48. Em primeiro lugar, uma presença mundial. A Comissão está presente,

como parceiro de desenvolvimento, em mais países do que os Estados-

Membros, mesmo os de maiores dimensões, sendo, em alguns casos, o único

parceiro da UE cuja presença se faz sentir de uma forma significativa. Tem

uma política comercial comum, programas de cooperação que abrangem

praticamente todos os países e regiões em desenvolvimento e conduz o diálogo

político em conjunto com Estados-Membros. Beneficia do apoio de uma vasta

rede de delegações, o que lhe permite dar resposta a uma grande diversidade

de situações, inclusive nos Estados mais frágeis de que os Estados-Membros

se retiraram.‖ (D3);

―49. Em segundo lugar, com o apoio dos Estados-Membros, garante a

coerência das políticas de desenvolvimento nas acções comunitárias,

especialmente nos casos em que as políticas comunitárias têm um impacto

significativo nos países em desenvolvimento, nomeadamente a nível do

comércio, da agricultura e pescas e das políticas de migração, promovendo

este princípio de uma forma mais alargada. Com base nas suas próprias

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experiências e na sua experiência exclusiva no domínio do comércio, a

Comunidade dispõe de uma vantagem comparativa em termos de prestação de

apoio aos países terceiros por forma a integrar o comércio nas estratégias

nacionais de desenvolvimento e a apoiar a cooperação regional, sempre que

possível.‖ (D3);

―50. Em terceiro lugar, promove as melhores práticas de desenvolvimento. A

Comissão, em conjunto com os Estados-Membros, fomentará o debate

europeu sobre o desenvolvimento e incentivará as melhores práticas de

desenvolvimento, como sejam o apoio orçamental directo e a ajuda sectorial,

sempre que adequado, o desligamento da ajuda, uma abordagem baseada em

resultados e na desconcentração da aplicação prática da assistência.

Melhorando as suas capacidades analíticas, dispõe de um potencial que lhe

permite servir de fórum intelectual em determinadas questões ligadas ao

desenvolvimento.‖ (D3);

―51. Em quarto lugar, contribui para facilitar a coordenação e a

harmonização. A Comissão desempenhará um papel activo na implementação

da Declaração de Paris sobre a eficácia da ajuda e constituirá uma das forças

impulsionadoras para promover o cumprimento, por parte da UE, dos

compromissos assumidos em Paris em termos de apropriação, alinhamento,

resultados da harmonização e responsabilização mútua. A Comissão

continuará a promover os 3 cês — coordenação, complementaridade e

coerência — como contributo da UE para uma agenda internacional mais

vasta em prol da eficácia da ajuda. A Comunidade apoiará também uma maior

coordenação da assistência em caso de catástrofe e do nível de preparação

para dar resposta a essas situações, no contexto dos sistemas e mecanismos

internacionais existentes e do papel de liderança da ONU na garantia da

coordenação internacional.‖ (D3);

―52. Em quinto lugar, constitui um executante nos domínios em que a

dimensão e a massa crítica assumem especial importância.‖ (D3).

Estas vantagens de que a Comissão se reclama enquanto promotora do

desenvolvimento resultam de 2 tipos de fatores: o papel da UE enquanto bloco

político-económico – sobretudo com reflexo na sua ―presença mundial‖ e na sua

influência nas políticas comerciais que afetam os países em desenvolvimento –; o

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seu lugar de potência na cena internacional que lhe dá o estatuto de ‗expertise‘

em processos de desenvolvimento. Neste sentido, este é um discurso que constrói

um modelo de desenvolvimento, que tem como função ideológica a formação de

opinião sobre o que é o desenvolvimento, quais são os fatores promotores de

desenvolvimento e o que se deve fazer para o alcançar. À ideologia da harmonia

junta-se, então, uma ideologia desenvolvimentista, que se caracteriza pela

definição das áreas e setores que contribuem para o desenvolvimento em ordem

a alcançar a harmonia que o discurso começa por referir. Essas áreas e setores

estão definidas no documento na sua ―Parte II: A política de desenvolvimento da

Comunidade Europeia‖ (D3) que

―define a política renovada da Comunidade Europeia para o desenvolvimento,

que põe em prática a visão europeia sobre o desenvolvimento definida na

primeira parte no que respeita aos recursos afectados à Comunidade, em

conformidade com o Tratado. Clarifica a mais-valia e o papel da Comunidade e

a forma como os objectivos, princípios, valores, coerência das políticas de

desenvolvimento e compromissos estabelecidos nesta visão comum serão

postos em prática a nível comunitário. Identifica prioridades que se reflectirão

em programas de cooperação para o desenvolvimento eficazes e coerentes a

nível dos países e das regiões. Servirá de orientação ao planeamento e

implementação da componente de ajuda ao desenvolvimento de todos os

instrumentos e estratégias comunitárias de cooperação com países terceiros‖

(D3).

Esta ideologia desenvolvimentista pressupõe, então, a modelação dos

processos de desenvolvimento à imagem do pensamento ocidental. Não obstante

ser referido o propósito de ―Atender às necessidades dos países parceiros‖ (D3)

enquanto título enquadrador das áreas a apoiar, logo de seguida se afirma que

―71. Dando resposta às necessidades manifestadas pelos países parceiros, a

Comunidade desenvolverá a sua acção predominantemente nos seguintes

domínios, considerando-se que alguns deles constituem a sua vantagem

comparativa:‖ (D3),

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ou seja, o discurso transforma os países parceiros em países clientes, na medida

em que a Comissão presta um serviço de consultadoria onde identifica as

―vantagens comparativas‖. Esses domínios de ação comunitária que serão de

―vantagem comparativa‖ são:

―Comércio e integração regional (…); Ambiente e gestão sustentável dos

recursos naturais (…); Infra-estruturas, comunicações e transportes (…); Água

e energia (…); Desenvolvimento rural, ordenamento do território, agricultura e

segurança alimentar (…); Governação, democracia, direitos humanos e apoio

às reformas económicas e institucionais (…); Prevenção de conflitos e

fragilidade dos Estados (…); Desenvolvimento humano (…); Coesão social e

emprego (…)‖ (D3).

A pluralidade de áreas referenciadas espelha os dois efeitos ideológicos – a

ideologia da harmonia e a ideologia desenvolvimentista – que, conforme tenho

vindo a argumentar, emanam deste discurso, e reflete até a articulação entre os

dois: é que a delimitação do campo do desejável, produzido pelo discurso, centra-

se na ideia da consecução de um mundo sem desfasamentos e diferenças

económicas e de poder porque segue um modelo de desenvolvimento ocidental. A

consideração do que significa este modelo de desenvolvimento ocidental será

abordada no ponto referente aos significados que o discurso constrói.

As diferenças discursivas entre o ―Consenso Europeu sobre o

Desenvolvimento‖ (D3) e a ―Comunicação relativa à Educação e à Formação no

contexto da redução da pobreza nos países em desenvolvimento‖ (D4) são

abundantes, fator para o qual concorre o facto de serem documentos de género

(Fairclough, 2003 e 2009) diferente. A ―Comunicação relativa à Educação e à

Formação no contexto da redução da pobreza nos países em desenvolvimento‖

(D4), emanada da CE – órgão executivo da UE –, é um documento que tem como

objetivo ―apresentar um quadro global para os objectivos, as prioridades e os

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métodos da Comunidade e dos seus Estados-membros‖ (D4) e ―Constitui uma

reorientação dos seus apoios sectoriais‖ (D4). Assim, ao contrário do ―Consenso

Europeu do Desenvolvimento‖ (D3) que se constitui numa ―Declaração conjunta‖

e, portanto, enuncia visões comuns de vários órgãos da UE (Conselho,

representantes dos governos, Parlamento Europeu, Comissão sobre a política de

desenvolvimento da UE), o documento agora em causa (D4) tem a forma de

―Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu‖ (D4). Basta

atentar nos títulos dos documentos para perceber diferentes graus de

determinação que cada um deles enuncia: ―Declaração conjunta do‖ remete para

um género discursivo enunciativo consensualizado, ou pelo menos negociado,

entre os órgãos da UE indicados; ―Comunicação da Comissão ao Conselho e ao

Parlamento‖ indicia um género discursivo prescritivo de um órgão da UE a

outros. Sendo, então, formas semióticas de agir distintas, o discurso constrói-se

de modo, também, diferente.

Neste documento (D4) ressalta a utilização de formas verbais compostas,

de voz ativa – ―deverão melhorar‖ (D4); ―deverão ser tidas em conta‖ (D4) –, cuja

função semiótica é a de prescrever ações. Para além desta forma, é também de

realçar o modo afirmativo como é estabelecida a relação entre educação / luta

contra a pobreza / desenvolvimento:

―A educação e a formação desempenham um papel essencial na luta contra a

pobreza e no desenvolvimento‖ (D4);

―A educação e a formação exercem um impacto positivo importante sobre a

saúde, a participação social e política, a igualdade de oportunidades

entre os sexos, as taxas de crescimento económico, os rendimentos e a

produtividade, em especial no âmbito de uma redistribuição equitativa

dos frutos deste crescimento.‖64 (D4);

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“As pessoas acima do lucro”

Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

156

―Neste contexto, a educação fornece uma base de competências que facilita o

acesso ao emprego, especialmente para os que não prossigam os estudos no

secundário.‖ (D4);

―a educação exerce efeitos positivos em termos de boa governação‖65 (D4).

Este modo afirmativo caracteriza-se pelo uso de expressões como ―a

educação e a formação desempenham‖, ―a educação e a formação exercem‖, ―a

educação fornece‖ e é conjugado com um modo positivo: ―papel essencial‖,

―impacto positivo‖, ―base de competências que facilita‖, ―efeitos positivos‖. Esta

conexão entre um modo afirmativo e um modo positivo assegura e declara o

caráter benéfico da educação sobre a luta contra a pobreza e na promoção do

desenvolvimento. Neste sentido, constrói e naturaliza uma visão do papel da

educação nestes processos: a educação tem uma função ortopédica nos

processos de desenvolvimento já que é a prescrição receitada para ‗curar‘ a

‗doença‘ da pobreza e do subdesenvolvimento.

Este é, então, um discurso marcado pela ideologia da educação ortopédica,

no sentido em que enuncia o modo de corrigir e evitar a pobreza, entendida

enquanto deformidade do desenvolvimento, modo esse que assenta na educação.

A legitimação desta ideologia é feita pela construção do discurso a partir de um

―não lugar‖ (Magalhães e Stoer, 2006), ou seja, a partir de um lugar

inquestionável, mas agora de um lugar ‗tecnicamente inquestionável‘, e não,

como no caso do discurso da ONU, ‗eticamente inquestionável‘. Esta relação,

entre a ideologia da educação ortopédica e o ―não lugar‖ (Magalhães e Stoer,

2006) como modo de legitimação discursiva e ideológica, é evidente no seguinte

extrato:

64 O destaque a bold é do documento original. 65 O destaque a bold é do documento original.

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

157

―Simultaneamente, provou-se que não é possível o desenvolvimento do ensino

primário e o crescimento das economias sem um sistema de educação que

forme tanto os professores como um elevado número de estudantes para além

do ciclo elementar, incluindo os estudos universitários.‖ (D4)

A utilização do termo ―provou-se‖ reforça o caráter afirmativo e positivo do

discurso, referidos anteriormente, através do efeito técnico, da

inquestionabilidade resultante da ‗prova‘ que, supostamente, atribui

neutralidade, dado que o conhecimento ‗provado‘ é um conhecimento neutro e,

por conseguinte, não ideológico. O facto de não haver referência a como, onde,

quando, quem e por que meios se provou poderia causar reticências, mas tem o

efeito contrário: a abstração na enunciação da prova atribui-lhe universalidade.

A declaração do que se ―provou‖ reforça o meu argumento de que estamos em

presença de uma ideologia da educação ortopédica: à semelhança dos extratos

anteriores, também aqui a educação é a solução para o desenvolvimento, neste

caso identificado enquanto crescimento económico.

Também o discurso do Banco Mundial se reveste de características mais

identificáveis com discursos produzidos a partir de ―não lugares‖ (Magalhães e

Stoer, 2006b) e enquadráveis na ideologia da educação ortopédica.

À semelhança do discurso anterior (D4), também este (D2), constrói a sua

legitimação a partir de um lugar ‗tecnicamente inquestionável‘, estabelecido

através do recurso a um ciclo argumentativo composto por três dimensões: as

mudanças sociais identificadas, a ‗expertise‘ do Banco decorrente da sua

experiência de trabalho na área, e os estudos e estatísticas referidas.

As mudanças sociais legitimam o discurso do BM na medida em que

conferem o contexto da ação, que é, não só descrito, mas ativamente produzido

pelo discurso através do recurso a orações curtas, afirmativas e que se

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

158

encadeiam umas nas outras:

―Estamos a viver num período de extraordinária transformação.‖ (D2);

―A expansão e a melhoria da educação são fundamentais para a adaptação à

mudança e para o enfrentamento destes desafios.‖ (D2);

―Além disso, o panorama global para a educação está a mudar. Um conjunto

de mudanças é a demografia: taxas de fertilidade mais reduzidas estão a

alterar os perfis populacionais das populações muito jovens, típicas de muitos

países de baixo rendimento, para ―explosões juvenis‖, mais comuns nos países

de rendimentos médios e cada vez mais concentradas nas áreas urbanas. Ao

mesmo tempo, o aumento impressionante de novos países de rendimento

médio tem intensificado o desejo de muitas nações de aumentar a sua

competitividade mediante a criação de novas forças de trabalho capacitadas e

ágeis. Há um outro conjunto de alterações que é tecnológico: avanços incríveis

nas tecnologias de informação e comunicação (TICs) e outras tecnologias estão

a mudar os perfis dos empregos requeridos pelos mercados de trabalho, ao

mesmo tempo a oferecer possibilidades de aprendizagem acelerada e melhor

gestão dos sistemas de educação.‖ (D2).

A ‗expertise‘ do BM atribui-lhe autoridade institucional, constituída pelo seu

papel no ―ciclo das políticas‖ (Bowe, Ball e Gold, 1992) discutido anteriormente:

―O Grupo do Banco tem efectuado substanciais contributos para o desenvolvi-

mento da educação em todo o mundo, ao longo dos últimos 49 anos.‖ (D2);

―Desde o lançamento de um projecto de construção de escolas secundárias na

Tunísia, em 1962, o Banco Mundial investiu já, globalmente, 69 mil milhões

de dólares na educação, através de mais de 1.500 projectos. O apoio

financeiro do Banco Mundial foi subindo ao longo da década, desde que as

MDG foram estabelecidas, atingindo mais de $5 mil milhões em 2010. Desde

2001, quando a Sociedade Financeira Internacional (IFC) concentrou a sua

atenção no sector da educação, já ali investiu $500 milhões, em 46 projectos

privados de educação.‖ (D2);

―O Grupo Banco Mundial tem apoiado este esforço – não apenas com

financiamento e assistência técnica, mas também com ideias.‖ (D2).

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

159

Este modo de legitimação é ainda reforçado pela referência a ―consultas‖ feitas e

à experiência do BM no mundo e junto de outros interlocutores:

―Esta estratégia reflecte as melhores percepções e conhecimentos sobre o que

funciona na Educação, a partir de consultas de âmbito mundial aos governos,

professores, estudantes, pais, sociedade civil e parceiros no desenvolvimento

em mais de 100 países. Somos gratos a todos os participantes que se

reuniram para dar forma a esta estratégia com a sua energia, as suas ideias e

as suas experiências. Na realidade, esta é a estratégia deles. Esperamos

trabalhar com eles para alcançar a Aprendizagem para Todos.‖ (D2).

Aqui, a legitimação articula a experiência com a negociação: a menção a

―parceiros‖ que contribuíram com ―ideias e as suas experiências‖, que deram

forma a esta estratégia, torna-os argumentativamente coautores ao ponto de esta

ser ―a estratégia deles‖. No entanto, logo de seguida, o BM afirma que ―espera‖ vir

a ―trabalhar com eles‖ havendo, então, uma inflexão do discurso para o domínio

do desejável ou da ―esperança‖ e da junção, ao invés da partilha e coautoria,

inflexão esta que é mais concordante com a menção feita ao modo como o Banco

desenvolveu a sua atividade desde a última estratégia adotada e que atribui o

estatuto de ―cliente‖ aos países intervencionados:

―Tornou-se mais próximo dos países clientes graças à descentralização das

suas operações, tendo agora 40 por cento do pessoal nas representações

nacionais.‖ (D2).

Já a referência a estudos, números e estatísticas emprestam uma

objetividade à análise que ‗fecha‘ o ciclo argumentativo. O discurso construído por

referência a critérios de objetividade e cientificidade fundamenta a intervenção

passada do BM e reforça a análise efetuada do contexto de ação, tendo assim

uma dupla função legitimadora – fortalecer as duas dimensões já citadas do ciclo

argumentativo e sustentar a estratégia proposta pelo Banco:

―O número de crianças em idade escolar, não escolarizadas, caiu de 106

milhões em 1999 para 68 milhões em 2008. Mesmo nos países mais pobres,

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160

as taxas médias de matrícula no ensino primário subiram acima de 80 por

cento e as taxas de conclusão, acima de 60 por cento. E entre 1991 e 2007, o

rácio de raparigas para rapazes na educação primária e secundária, nos

países em desenvolvimento, melhorou de 84 para 96 por cento, com ganhos

ainda mais elevados no Médio Oriente e Norte de África e na Ásia Meridional.‖

(D2);

―pesquisas recentes mostram que o nível de competências de uma força de

trabalho – medido pelos resultados de avaliações internacionais de

estudantes, como o Programa Internacional para a Avaliação de Alunos (PISA)

e as Tendências Internacionais no Estudo da Matemática e das Ciências

(TIMSS) – prevêem taxas de crescimento económico muito mais elevadas que

as médias de escolaridade. Por exemplo, um aumento de um desvio-padrão

nas notas de leitura e matemática dos estudantes (equivalente

aproximadamente a uma subida do ranking de desempenho de um país, da

mediana para os 15 por cento do topo), está associado a um aumento muito

elevado de 2 pontos percentuais no crescimento anual per capita do GDP.‖

(D2);

―Nalguns países estudos recentes indicam que de 25% a 50% dos jovens

formados no ensino primário não conseguem ler uma frase simples. As

avaliações internacionais de estudantes revelam também grandes lacunas no

conhecimento entre a maioria dos países em desenvolvimento e os membros

da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).‖

(D2);

―A ciência emergente do desenvolvimento cerebral mostra que para se

desenvolver adequadamente, o cérebro em crescimento de uma criança

precisa ser acalentado muito antes do início do ensino escolar formal, aos 6

ou 7 anos.‖ (D2).

O documento em análise do BM ―estabelece o programa do Grupo Banco

Mundial para alcançar ―Educação para Todos‖ no mundo em desenvolvimento,

ao longo da próxima década.‖ (D2) e, logo no título, se antevê o cariz de

funcionalidade atribuído à educação: ―Aprendizagem para todos – investir nos

conhecimentos e competências das pessoas para promover o desenvolvimento‖. O

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161

uso da preposição simples ―para‖ exprime a intenção e finalidade da

―aprendizagem para todos‖: a educação tem o papel de promotora do

desenvolvimento. Este modo de relação entre educação e desenvolvimento,

construído numa lógica de funcionalidade da primeira face à segunda, é expressa

em vários momentos do documento:

―Em suma, os investimentos em educação de qualidade produzem

crescimento económico e desenvolvimento mais rápidos e sustentáveis.‖ (D2);

―Indivíduos instruídos têm mais possibilidade de conseguir emprego, de

receber salários mais altos e ter filhos mais saudáveis.‖ (D2);

―É por isto que a nossa Estratégia para o Sector da Educação 2020

estabelece o objectivo de alcançar a Aprendizagem para Todos.66

Aprendizagem para Todos significa a garantia de que todas as crianças e

jovens - não apenas os mais privilegiados ou os mais inteligentes - possam

não só a escola, mas também adquiram o conhecimento e as habilidades de

que necessitam para terem vidas saudáveis, produtivas e obterem um

emprego significativo.‖ (D2);

―A mente humana é que torna possíveis todos os outros resultados de

desenvolvimento, desde os avanços na saúde e inovação agrícola à construção

de infra-estruturas e ao crescimento do sector privado. Para que os países em

desenvolvimento tirem pleno partido destes benefícios – aprendendo com o

manancial de ideias no nível global e através da inovação – é preciso que

possam aproveitar o potencial da mente humana. E não há melhor ferramenta

que a educação para o fazer‖ (D2);

―A nova estratégia centra-se na aprendizagem por uma simples razão: o

crescimento, desenvolvimento e redução da pobreza dependem dos

conhecimentos e qualificações que as pessoas adquirem, não no número de

anos que passaram sentados numa sala de aula‖ (D2);

―No nível pessoal, embora um diploma possa abrir as portas para um

emprego, são as competências do trabalhador que determinam a sua

66 O destaque a bold é do documento original.

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

162

produtividade e capacidade para se adaptar a novas tecnologias e

oportunidades. Conhecimento e qualificações contribuem também para que

um indivíduo possa ter uma família saudável e instruída, e participe na vida

cívica.‖ (D2).

Colocar sobre a educação, e mais concretamente sobre a aquisição de

conhecimentos de cada indivíduo, a responsabilidade de crescimento económico,

de desenvolvimento, de redução da pobreza, de produtividade do trabalhador e

da inovação é construir a visão de que a ―escola pode compensar a sociedade‖,

reforçando, assim, a ideologia da educação ortopédica defendida por outras

organizações desta ordem de discurso hegemónica.

A caracterização da ordem de discurso hegemónica, do ponto de vista

ideológico, pode ser sintetizada de acordo com o seguinte quadro:

Ideologia da harmonia

Ideologia desenvolvimentista

Ideologia da educação ortopédica

Características principais

- discurso suave - discurso conciliador

- discurso enunciativo - discurso prescritivo - discurso afirmativo

Racionalidade discursiva

- inquestionabilidade ética

- neutralidade axiológica

- inquestionabilidade técnica

- racionalidade ocidental moderna

- inquestionabilidade técnica

- prova e objetividade

Metáfora ―Prosperidade, justiça e

paz‖

―O desenvolvimento é, em si mesmo, um objetivo essencial‖

―A educação pode compensar a sociedade‖

“Lugar branco” (Magalhães e Stoer,

2006b) “Não lugar” (Magalhães e Stoer, 2006b)

Lugares de legitimação política

Quadro 10. Caracterização ideológica dos discursos hegemónicos em análise.

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

163

1.2. Do discurso contra-hegemónico

1.2.1. Matriz social do discurso: politicidade do discurso

A atribuição de ‗político‘ ao discurso do Comércio Justo tem que ser

contextualizada no alargamento da definição de política, que como já referi, é

característico dos novos movimentos sociais. Para tal, importa, antes de mais,

clarificar em que sentido é que o movimento Comércio Justo pode ser

considerado um novo movimento social – por contraponto aos ‗velhos‘

movimentos sociais –, tendo por referência as características já apontadas (cf.

páginas 122-123): novidade de atores sociais; aumento da escala de ação; novas

formas de organização; novas formas de ação e novos temas.

Relativamente à primeira característica, o Comércio Justo é um

movimento que se caracteriza por um ecletismo no que toca aos atores. Tal como

é afirmado pela World Fair Trade Organization (WFTO) o movimento é constituído

por uma cadeia que interliga produção, distribuição, comercialização e consumo,

sendo que, em cada um destes momentos, há um conjunto de atores que

contribui para o desenvolvimento do movimento:

―Fair Trade is a trading partnership‖ (D7);

―Fair Trade organizations have a clear commitment to Fair Trade as the

principal core of their mission. They, backed by consumers, are engaged

actively in supporting producers‖ (D7);

―World Shops, or Fair Trade shops as they are called in other parts in the

world, have played (and still play) a crucial role in the Fair Trade movement.

They constitute not only points of sales but are also very active in

campaigning and awareness-raising.‖ (D8)

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

164

―The Fair Trade movement is the combined efforts of Fair Trade organizations,

campaigners and businesses to promote and activate the Fair Trade principles

of empowering producers, making trade more fair, and sustainable

livelihoods.‖ (D11)

A ideia de um elo ou de uma cadeia, aparece logo na definição do

movimento que se autoidentifica como uma ―parceria‖, constituída pelas

organizações que compõem o movimento, pelos produtores e pelos consumidores.

Diversos entre si, estes elos são também diversos em si mesmos, dando assim

um caráter híbrido ao movimento, em termos de identidade social. Se os

diferentes tipos de atores terão diversas motivações para se constituírem

enquanto parte deste movimento, dentro de cada um destes tipo a diversidade de

motivações e razões será exponencial, não sendo possível identificar um

marcador de classe social na identificação do movimento.

A própria história do movimento demonstra essa hibridez que lhe é

constitutiva desde o seu início:

―It all started in the United States, where Ten Thousand Villages (formerly Self

Help Crafts) began buying needlework from Puerto Rico in 1946, and SERRV

began to trade with poor communities in the South in the late 1940s. (…) The

earliest traces of Fair Trade in Europe date from the late 1950s when Oxfam

UK started to sell crafts made by Chinese refugees in Oxfam shops. (…) At the

same time, Dutch third world groups began to sell cane sugar with the

message ―by buying cane sugar you give people in poor countries a place in

the sun of prosperity‖. (…) During the 1960s and 1970s, Non-Governmental

Organizations (NGOs) and socially motivated individuals in many countries in

Asia, Africa and Latin America perceived the need for fair marketing

organizations which would provide advice, assistance and support to

disadvantaged producers. (…) Parallel to this citizens‘ movement, the

developing countries were addressing international political fora such as the

second UNCTAD conference (United Nations Conference on Trade and

Development) in Delhi in 1968, to communicate the message ―Trade not Aid‖.

(D8).

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

165

Esta característica transclassista do movimento contribui também para

um alargamento da escala de ação que não se confina, apenas, ao local dados os

objetivos de ação do movimento:

―Fair Trade today is a truly global movement. Over a million small-scale

producers and workers are organized in as many as 3,000 grassroots

organizations and their umbrella structures in over 50 countries in the South.

Their products are sold in thousands of World-shops or Fair Trade shops,

supermarkets and many other sales points in the North and, increasingly, in

sales outlets in the Southern hemisphere.‖ (D8)

―During its history of over 60 years, Fair Trade has developed into a

widespread movement. Thanks to the efforts of Fair Trade Organizations

worldwide, Fair Trade has gained recognition among politicians and

mainstream Businesses‖. (D8)

―The movement is engaged in debates with political decision-makers in the

European institutions and international fora‖ (D8)

Este alargamento da escala de ação existe, então, também ao nível da

consideração e interação com atores políticos supranacionais, entendidos em

termos de novas formas de Estado e empresas multinacionais, e que, segundo

Santos (2002), são os principais atores da globalização económica. Este

alargamento da escala influencia também as formas de ação do movimento, na

medida em que o impacto procurado tem que ter em conta as arenas em que o

movimento intervém, tendo por referência que

―Fair Trade organizations (…) are engaged actively in supporting producers,

awareness raising and in campaigning for changes in the rules and practice of

conventional international trade.‖ (D8)

Deste modo, as formas de ação desmultiplicam-se:

- as ―Lojas do Mundo‖ ou ―Lojas de Comércio Justo‖, referidas num extrato

acima, são a face mais visível de ação do movimento, apesar de, paradoxalmente,

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166

poderem não ser associadas a uma forma de ação de um movimento social dada

a vertente comercial das mesmas. No entanto, se se tiver em conta que as

organizações de CJ estão ―ativamente empenhadas em apoiar os produtores‖ e

em ―mudar as regras e prática do comércio internacional convencional‖, a

existência destas lojas tem que ser considerada uma forma de ação, na medida

em que essas lojas se traduzem no elemento de mediação entre o produtor e o

consumidor, sendo também ―muito ativas em campanhas e conscencialização‖;

- os ―debates com os decisores políticos em instituições europeias e fóruns

internacionais‖, enquanto ação de lobbying político e que exemplifica os novos

modos de ação dos NMS por relação com os novos contextos sócio-políticos em

que se inserem, ou seja, o aproveitamento de margens e espaços de ação criados

pelas novas estruturas e práticas sociais. O movimento Comércio Justo criou

mesmo uma organização dedicada ao lobbying e também à advocacy:

―An important tool was the establishment of a joint Advocacy Office in

Brussels, which focuses on influencing (European) policy-makers. It is

supported, managed and funded by the whole movement, represented in FLO,

WFTO, NEWS and EFTA.‖ (D7).

- o recurso a ações mediáticas, corporizadas num evento que acontece no

mesmo dia, em todo o mundo, sobre o mesmo tema:

―In 1996, NEWS! established the European World Shops Day as a Europe-

wide day of campaigning on a particular issue, often with a goal at the

European level. This initiative has been taken up by WFTO, which brought it

to a worldwide level. The first World Fair Trade Day, which involves the

worldwide Fair Trade movement, was celebrated on May 4, 2002. Now World

Fair Trade Day takes place every year on the second Saturday of May and has

its own Website: www.WFTDay.info.‖ (D8)

Todas estas ações, nomeadamente pela sua organização supranacional,

são possíveis pela existência de estruturas de coordenação que o movimento criou

ao longo do seu tempo de existência:

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167

―From the mid 70s, Fair Trade Organizations worldwide began to meet

informally in conferences every couple of years. By the mid 80s there was a

desire to come together more formally and the end of the decade saw the

foundation of the European Fair Trade Association (EFTA, an association of

the 11 largest importing organizations in Europe) in 1987 and the

International Fair Trade Association (IFAT), now the World Fair Trade

Organization (WFTO), in 1989. The organizations that are a part of WFTO vary

greatly. They represent the whole chain from producer to sale and also include

support organizations such as Shared Interest, which provides financial

services and support to produces.‖ (D8)

Esta ‗necessidade‘ de criação de estruturas de coordenação a trabalhar em

rede é justificada no sentido de permitir a amplificação do movimento dada a

profusão de arenas, modos de ação e atores envolvidos:

―Networking between Fair Trade Organizations is crucial to their success. All

over the world, networks have been established. Regional networks include

the WFTO Asia (formerly Asia Fair Trade Forum - AFTF), Co-operation for Fair

Trade in Africa (COFTA), WFTO Latin America (formerly the Association Latino

Americana de Commercio Justo - IFAT LA) and WFTO Europe (formerly - IFAT

Europe). National networks include Ecota Fair Trade Forum in Bangladesh,

Fair Trade Group Nepal, Associated Partners for Fairer Trade Philippines, Fair

Trade Forum India, Kenya Federation for Alternative Trade (KEFAT), etc.. FLO,

WFTO, NEWS! and EFTA started to meet in 1998 with the aim to enable these

networks and their members to cooperate on important areas of work, such as

advocacy and campaigning, standards and monitoring of Fair Trade.‖ (D8)

―The first European World Shops conference took place in 1984. This

conference set the beginning of close cooperation between volunteers working

in World Shops from all over Europe. The Network of European World Shops

(NEWS!) was formally established in 1994 and now represents approximately

3.000 World Shops in close to 20 European countries. NEWS! coordinates

European campaigning activities and stimulates the exchange of information

and experiences about development of sales and awareness raising work.‖ (D8)

Este modo de organização, não se identificando completamente com as

formas de organização dos NMS anteriormente descritas, também não é

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168

necessariamente identificável com formas de organização de ‗velhos‘ movimentos

sociais. Apesar desta estruturação, a WTFO define-se como sendo ―the global

network of Fair Trade Organizations and WFTO associates representing the

supply chain from producer to retailer‖ (D11) e as Organizações de Comércio

Justo do seguinte modo:

―Fair Trade Organizations are organizations of which Fair Trade is part of their

mission and constitutes the core of their objectives and activities. They are

actively engaged in supporting producers, raising awareness for Fair Trade

and in campaigning for changes in the rules and practices of ordinary

international trade.‖ (D9)

O trabalho em rede, a representação de produtores, distribuidores e

retalhistas na mesma organização, e aquilo a que se poderia chamar uma

definição inclusiva de Organizações de Comércio Justo (na medida em que define

‗critérios mínimos para a consideração destas organizações enquanto tal)

contribui, assim, para tornar mais fluído o modo de organização do movimento,

não se podendo mesmo encontrar referência a uma liderança na verdadeira

aceção do termo. De facto, o Glossário do Comércio Justo (D11), criado pela

constatação de que

―The myriad of terms used in the movement leaves many confused. The Fair

Trade Glossary was developed by the WFTO and FLO to clarify confusion.‖

(D9),

revela a existência de múltiplas estruturas, atores e processos com trabalho a

nível de coordenação, distinguindo-se ―Sistema de Comércio Justo‖,

―Stakeholders de Comércio Justo‖, ―Operadores de Comércio Justo‖, ―Termos de

licenciamento e rotulagem‖, ―Termos de definição de critérios‖, ―Termos de

produtos‖, ―Termos de preço‖, ―Termos de certificação‖ e ―Termos de comércio‖

(D11).

A necessidade de explicitação das ações, processos e atores envolvidos no

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

169

movimento advém da complexidade do mesmo mas, também, da questão mais

sensível, na medida em que dela depende, em última instância, o seu sucesso: a

confiança dos consumidores. Como refere o consumidor europeu participante no

documentário exibido e produzido em França,

―JP – A verdadeira questão é saber se o dinheiro vai para o produtor. Essa é a

verdadeira questão e nada mais‖ (D5).

Isto significa que, no limite, o sucesso do movimento está dependente da

confiança que o mesmo adquire junto do último elo da cadeia estabelecida – o

consumidor. Aquela é encontrada através do desenvolvimento de sistemas

abstratos (Giddens, 1996) e de sistemas periciais (Giddens, 1996), ou seja,

através de formas modernas de lidar com o risco e o perigo (Giddens, 1996):

―In 1997 their worldwide association, Fairtrade Labelling International (FLO),

was created. Today, FLO is responsible for setting international standards for

Fair Trade products, certifying production and auditing trade according to

these standards and for the labelling of products.‖ (D8)

―Parallel to the development of labelling for products, the World Fair Trade

Organization (WFTO) developed a monitoring system for Fai Trade

Organizations. In order to strengthen the credibility of these organizations

towards political decision-makers, mainstream business and consumers, the

WFTO Fair Trade Organization Mark was launched in January 2004. The

Mark is available to member organization that meet the requirements of the

WFTO monitoring system and identifies them as registered Fair Trade

Organizations. WFTO is workin with FLO on a Quality Management System

for Fair Trade. WFTO is also developing a third-party certified product label for

Fair Trade Organizations.‖ (D8).

Mas este esforço pode não funcionar de igual modo para todos os

produtos, para todos os consumidores e para todos os riscos:

―JP – (lendo o rótulo de uma lata) ―Cotonetes Max Havelaar. Feitos à mão‖.

Isto não é um pouco duvidoso? Mete algum medo.‖ (D5),

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

170

decorrendo daí a necessidade de afirmar que

―The Fair Trade movement is conscious of the trust placed in it by the public

and is committed to developing and promoting the highest possible standards

of integrity, transparency and accountability in order to maintain and protect

that trust.‖ (D9)

Uma outra característica do CJ que o enquadra enquanto NMS é a

novidade no que diz respeito ao tema de reivindicação:

―The growth of Fair Trade (or alternative trade as it was called in the early

days) from the late 60s onwards has been associated primarily with

development trade. It grew as a response to poverty and sometimes disaster in

the South and focused on the marketing of craft products. Its founders were

often the large development and sometimes religious agencies in European

countries. These NGOs, working with their counterparts in countries in the

South, assisted to establish Southern Fair Trade Organizations that organize

producers and production, provide social services to producers, and export to

the North. Alongside the development trade there was also a branch of

solidarity trade. Organizations were set up to import goods from progressive

countries in the South that were both politically and economically

marginalized‖ (D8)

Se a questão do ‗desenvolvimento‘ não é, em si mesma, nova a sua

vinculação à transformação dos processos de produção, distribuição e consumo,

enquanto modo de ação dos movimentos sociais por contraponto às políticas

existentes, é uma novidade. O próprio movimento o reconhece quando afirma

que

―Fair Trade, fundamentally, is a response to the failure of conventional trade

to deliver sustainable livelihoods and development opportunities to people in

the poorest countries of the world; this is evidenced by the two billion of our

fellow citizens who, despite working extremely hard, survive on less than $2

per day. Poverty and hardship limit people's choices while market forces tend

to further marginalise and exclude them. This makes them vulnerable to

exploitation, whether as farmers and artisans in family-based production

units (hereafter "producers") or as hired workers (hereafter "workers") within

larger businesses.‖ (D10)

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“As pessoas acima do lucro”

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171

―The Fair Trade movement believes that trade can be a fundamental driver of

poverty reduction and greater sustainable development, but only if it is

managed for that purpose, with greater equity and transparency than is

currently the norm. We believe that the marginalised and disadvantaged can

develop the capacity to take more control over their work and their lives if they

are better organised, resourced and supported, and can secure access to

mainstream markets under fair trading conditions.‖ (D9)

―The Fair Trade movement shares a vision of a world in which justice and

sustainable development are at the heart of trade structures and practices so

that everyone, through their work, can maintain a decent and dignified

livelihood and develop their full human potential.‖ (D9)

O movimento assume, então, o que Santos e Rodríguez (2003) consideram

ser urgente: ―formular alternativas económicas concretas que sejam ao mesmo

tempo emancipatórias e viáveis e que, por isso, dêem conteúdo específico às

propostas por uma globalização contra-hegemónica‖ (Santos e Rodríguez, 2003:

22). Esta é, então, uma das formas de o movimento politizar novas áreas da vida

social – o que segundo Offe (1992) é uma das novidades dos NMS – na medida

em que se desafia o discurso político-económico vigente ―segundo [o] qual «não

há alternativa nenhuma» ao capitalismo neoliberal [que] ganhou credibilidade,

inclusivamente entre os círculos políticos e intelectuais progressistas‖ (Santos e

Rodríguez, 2003: 22).

É exatamente neste quadro que o discurso do Comércio Justo se pode

considerar político, dado que é a possibilidade de reconfigurar ou reconstruir o

mundo social que politiza os movimentos sociais e, portanto, o seu discurso. A

dimensão política do seu discurso é clarificada ao assinalar a necessidade de agir

dentro de uma lógica de reconstrução social em vez de, apenas, constatar as

desigualdades e os problemas:

―A primeira coisa que nos mostra é um romance da literatura holandesa.

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172

O herói, Max Havelaar, vendedor de café, denuncia as explorações nas

colónias.

FVH – Ele foi para a Indonésia, trabalhar para o Governo, e não tardou a

descobrir que as coisas estavam a piorar, cada vez mais, justamente nos

campos de café, onde havia uma enorme exploração. Em cem anos, nada

mudou.

Ele protestou, mas não fez uma única proposta. Ora, no CJ, o objetivo foi criar

propostas. Há que estabelecer regras: ―Eu vendo-o, mas mediante certas

condições. Tenho de sobreviver‖.

E isso é, precisamente, o CJ. As leis de mercado têm de ser diferentes.

Não somos contra o mercado, mas este tem de ter regras.‖ (D5)‖

―A globalização como tal criou não só um número tremendo de…. não só de

pobres, mas também…. miséria… que se tem de responder. Com os

mecanismos de Comércio Justo, nós estamos a criar condições para reais

respostas…para…o capitalismo que…não funciona tal…como se apresenta‖

(D6)

―nós enfrentamos, como tal, o mercado livre (…) e pusemos como regra que o

café devia ser …comprado… sob condições…do preço mínimo de

sobrevivência. Portanto, há um preço mínimo.

Quando o mercado vai…abaixo dele, ele não vai com ele, não o acompanha.

Então, cria uma espécie de segurança para as pessoas‖ (D6)

Por outro lado, a politicidade do movimento afirma-se, também, pela centralidade

que a ação política, em diferentes escalas, assume no movimento:

―The movement is engaged in debates with political decision-makers in the

European institutions and international fora on making international trade

fairer. On top of that, Fair Trade has made mainstream business more aware

of its social and environmental responsibility.‖ (D8)

―In the course of the years, the Fair Trade movement has become more

professional in its awareness-raising and advocacy work.‖ (D8)

Beck (2000a) enquadra o alargamento da noção de política nos processos

de individualização da sociedades que, na sua perspetiva, se fazem sentir não só

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173

no mundo privado mas também público, considerando que ―os sujeitos

individualizados, improvisadores para com eles mesmos e para com o seu

mundo, já não são os ‗seguidores de papéis‘ da simples sociedade industrial

clássica, tal como era assumido pelo funcionalismo.‖ (Beck, 2000a: 17). É neste

sentido que o autor argumenta ser um erro identificar a política apenas com o

Estado ou com o sistema político e distingue a noção de ‗política‘ da de

‗subpolítica‘. Não obstante não estar de acordo com a nomeação atribuída – no

sentido em que o prefixo ‗sub‘ pode anunciar um qualquer tipo de subalternidade

– a ideia é interessante: à ‗política‘ corresponderia uma definição clássica da

mesma, assente nos aparelhos estatais de governação; à ‗subpolítica‘ a ação de

―configurar a sociedade a partir de baixo. (…) No surgimento da subpolitização

existem oportunidades crescentes para os grupos até aqui afastados do

processo de tecnização e industrialização passarem a ter voz e vez no processo

de organização da sociedade: cidadãos, opinião pública, movimentos sociais,

grupos de peritos, os trabalhadores no seu local de trabalho (…)‖ (Beck,

2000a: 23).

Ora, a politicidade do movimento CJ, para além do já referido, é também

percetível na politização de uma área da vida social que, numa época de

globalização neoliberal, ganhou uma notoriedade sem precedentes: o consumo.

Pelo facto de ser um movimento que se define como uma ―parceria‖ entre elos de

uma cadeia que se inicia nos produtores e termina nos consumidores, a

dimensão política do movimento alarga-se a todos os intervenientes do processo,

incluindo estes últimos. Esse é, aliás, um dos objetivos expressos no discurso do

movimento:

―Fair Trade has led the way in encouraging and enabling consumers to take

regard of the social, economic and environmental consequences of their

purchasing. While other ethical purchasing initiatives are being developed to

respond to the growing interest, the unique approach of Fair Trade continues

to be most successful in terms of producer and consumer support.‖ (D9)

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174

A compreensão do papel politico dos consumidores, inerente ao ato de

consumo, é reconhecida:

―JP – Há muitas vigarices no café. Se conseguirmos fazer com que ganhem

algum dinheiro ou com que sintam orgulho no trabalho que fazem e que

deixem de ser explorados pelas grandes multinacionais… - A diferença de

preço não é muito significativa.

Os consumidores europeus têm de tomar consciência de que podem ser úteis

a muitos produtores que, sem nós, seriam explorados.‖ (D5)

Mas Frans van der Hoff vai mais longe: para ele

―comprar é votar, comprar é votar para o tipo de mundo que cada um quer‖

(D6).

Na verdade, ele defende a politicidade inerente à compra, a politicidade do poder

dos consumidores, recusando a identificação do ato de comprar com

assistencialismo, caridade ou ajuda:

―Muito brevemente iremos entrar no Norte… e, como sempre,… para corrigir a

abordagem de partilha do Comércio Justo que nós odiamos. Partilha! – Eu

compro… porque…para… o pobre, o barbeiro, possa ter…um pouco de

cerveja. Isso é… ridículo!... Isso nós não queremos.‖ (D6)

Em síntese, a matriz social do discurso contra-hegemónico aqui em

análise é a de um novo movimento social que assume a sua politicidade no que

toca, sobretudo, aos temas de reivindicação, às formas de ação, escala de ação e

atores envolvidos. No quadro seguinte é sistematizada a análise da matriz social

do discurso contra-hegemónico, considerando a sua politicidade:

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175

Dimensões Características

Atores envolvidos Identidade social híbrida

Escala de ação Global

Formas de ação Múltiplas: concretização de propostas, lobbying, advocacy, politização do consumo

Estruturas de coordenação Organização em rede

Temas de reivindicação Transformação dos processos de produção, distribuição e consumo

Quadro 11.Matriz social do discurso contra-hegemónico em análise.

1.2.2. Efeitos ideológicos do discurso: políticos e económicos

Retomo aqui a conceção de ideologia enquanto sistema de representações

inscrito no discurso e que, apesar de parcial, produz regimes de verdade que

permitem a construção de formas ‗corretas‘ de ver o mundo. Nesse sentido, o

discurso do Comércio Justo é também, necessariamente, um discurso ideológico

na medida em que contribui para a construção de um determinado modo de ver

o mundo e da formulação de um bem comum. No entanto, a sua característica de

discurso contra-hegemónico implica a assunção do lugar a partir do qual fala,

impedindo, portanto, que se construa a partir de ―não lugares‖ ou ―lugares

brancos‖ (Magalhães e Stoer, 2006b). Quero com isto dizer que, tendencialmente,

os discursos hegemónicos assentam nesse modo de legitimação discursiva devido

ao poder consentido que exercem, no sentido Gramsciano, enquanto produtores

de ideologia. Ao surgirem como contestação à ordem social vigente, os discursos

contra-hegemónicos necessitam de afirmar o seu lugar de produção, o mesmo é

dizer, ‗atribuir-lhe uma cor‘ e ‗atribuir-lhe um contexto‘, de modo a desenvolver

uma argumentação que legitime a sua produção e existência.

No discurso em análise essa legitimação é logo feita na definição quer do

movimento, quer do esforço de consensualização e estabilização do conceito

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176

orientador do movimento. Ao explicitar que

―The term Fair Trade defines a trading partnership, based on dialogue,

transparency and respect, that seeks greater equity in international trade. It

contributes to sustainable development by offering better trading conditions

to, and securing the rights of, marginalized producers and workers –

especially in developing countries.‖ (D11)

―The Fair Trade movement is the combined efforts of Fair Trade organizations,

campaigners and businesses to promote and activate the Fair Trade principles

of empowering producers, making trade more fair and sustainable

livelihoods.‖ (D11)

o movimento define o que é o conceito por relação à sua substância, aos seus

princípios, à sua finalidade, aos seus objetivos, ao modo de os concretizar e aos

destinatários, bem como, o que é o movimento por relação ao conceito e às

organizações que o compõem.

O movimento, ao afirmar que

―Fair Trade is more than just trading: it proves that greater justice in world

trade is possible. It highlights the need for change in the rules and practice of

conventional trade and shows how a successful business can also put people

first.‖ (D7),

deixa claro o ‗lugar‘ de onde fala: é um lugar de contestação, construído a partir

da ―necessidade de mudança das regras e práticas‖ e também um lugar de

constatação dado que ―prova ser possível uma maior justiça no comércio

mundial‖ e ―mostra como‖ essa mudança é possível. Esta constatação é feita não

só através do conteúdo do que é dito mas também da forma verbal usada para o

dizer, nomeadamente, através do uso de expressões que denotam assertividade

como ―é mais do que‖, ―prova que‖, ―é possível‖, ―destaca a‖, ―mostra‖. Esta

assertividade encontra razão de ser numa lógica de argumentação de que o

discurso se reveste: ao contestar o discurso necessita de argumentar para

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177

constatar.

É a partir desta legitimação discursiva, fundada num ―lugar de

contestação‖ e num ―lugar de constatação‖, que o discurso se situa

ideologicamente, ou seja, que o discurso constrói a sua forma de ver o mundo.

Esta está plasmada, precisamente, no que o movimento afirma ser a sua visão:

―The Fair Trade movement shares a vision of a world in which justice and

sustainable development are at the heart of trade structures and practices so

that everyone, through their work, can maintain a decent and dignified

livelihood and develop their full human potential. (D9).

Esta visão declarada fixa um desejo identificado enquanto ‗bem comum‘ –

―de modo a que toda a gente possa, através do seu trabalho, manter uma vida

decente e digna e desenvolver todo o seu potencial humano‖ – mas não um

desejo no vazio, meramente enunciado: ele é sustentado no desenvolvimento de

uma prática – ―através do trabalho‖ – e num requisito – ―no qual a justiça e o

desenvolvimento sustentável estão no centro das estruturas e práticas de

comércio‖. Neste sentido, este é um discurso que se constrói no campo das

possibilidades desejadas e das condições de efetivação dessas possibilidades. É

através da fixação deste desejo que a ideologia inscrita no discurso ganha

visibilidade:

―The Fair Trade movement believes that trade can be a fundamental driver of

poverty reduction and greater sustainable development, but only if it is

managed for that purpose, with greater equity and transparency than is

currently the norm. We believe that the marginalised and disadvantaged can

develop the capacity to take more control over their work and their lives if they

are better organised, resourced and supported, and can secure access to

mainstream markets under fair trading conditions.‖ (D9)

O extrato citado é composto por duas orações que expressam os princípios

do qual o movimento parte, devidamente identificados enquanto tal: ―o

movimento acredita que‖; ―Nós acreditamos que‖. No entanto, cada uma destas

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178

orações é seguida de uma conjunção subordinativa condicional – ―mas apenas

se‖; ―se estiverem‖ – e continuada por outra oração indicativa das condições

necessárias para o cumprimento da primeira. O conteúdo expresso por estas

duas orações – ―for gerido para esse fim, com maior equidade e transparência do

que é atualmente a norma‖; ―melhor organizados e apoiados e puderem aceder

aos mercados principais sob condições comerciais mais justas‖ – não só indicia,

uma vez mais, o ―lugar de contestação‖ como ‗ensaia‘, do ponto de vista

ideológico, a solidariedade enquanto forma de resolução do que contesta. Esse

‗ensaio‘ torna-se claro quando, ainda na clarificação da visão comum, é referido o

papel atribuído aos consumidores dos países desenvolvidos:

―We also believe that people and institutions in the developed world are

supportive of trading in this way when they are informed of the needs of

producers and the opportunities that Fair Trade offers to change and improve

their situation. Fair Trade is driven by informed consumer choices, which

provides crucial support for wider campaigning to reform international trade

rules and create a fairer economic system. Fair Trade connects the aims of

those in the developed world who seek greater sustainability and justice with

the needs of those in the South who most need those changes. It enables

citizens to make a difference to producers through their actions and choices

as consumers. Demand for Fair Trade products enables Fair Trade

Organizations and others who adopt Fair Trade practices to extend the reach

and impacts of their work, as well as visibly demonstrating and articulating

public support for changes in international trade rules to governments and

policy makers.‖ (D9)

Deste modo, identifico neste discurso a ideologia da solidariedade que

enforma a ideia de parceria existente entre os elos da cadeia que o movimento

constrói. Esta ideologia da solidariedade é perspetivada no discurso através do

uso de expressões como ―as pessoas e as instituições no mundo desenvolvido,

quando informadas das necessidades dos produtores e das oportunidades que o

Comércio Justo oferece para mudar e melhorar a sua situação, apoiam esta forma

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de comércio‖; ―O Comércio Justo une os objetivos de quem, no mundo

desenvolvido, procura uma maior sustentabilidade e justiça com as necessidades

daqueles que no Sul mais necessitam dessas mudanças‖.

Também os ―Princípios do Comércio Justo‖ dão corpo a esta ideologia da

solidariedade:

―CORE PRINCIPLES

Market access for marginalised producers67

Many producers are excluded from mainstream and added-value markets, or

only access them via lengthy and inefficient trading chains. Fair Trade helps

producers realise the social benefits to their communities of traditional forms

of production. By promoting these values (that are not generally recognised in

conventional markets) it enables buyers to trade with producers who would

otherwise be excluded from these markets. It also helps shorten trade chains

so that producers receive more from the final selling price of their goods than

is the norm in conventional trade via multiple intermediaries.

Sustainable and equitable trading relationships

The economic basis of transactions within Fair Trade relationships takes

account of all costs of production, both direct and indirect, including the

safeguarding of natural resources and meeting future investment needs.

Trading terms offered by Fair Trade buyers enable producers and workers to

maintain a sustainable livelihood; that is one that not only meets day-to-day

needs for economic, social and environmental well-being but that also enables

improved conditions in the future. Prices and payment terms (including

prepayment where required) are determined by assessment of these factors

rather than just reference to current market conditions. There is a

commitment to a long-term trading partnership that enables both sides to

cooperate through information sharing and planning, and the importance of

these factors in ensuring decent working conditions is recognised.

Capacity building & empowerment

Fair Trade relationships assist producer organisations to understand more

about market conditions and trends and to develop knowledge, skills and

resources to exert more control and influence over their lives.

Consumer awareness raising & advocacy

Fair Trade relationships provide the basis for connecting producers with

67 Este destaque a bold e os seguintes são do documento original.

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180

consumers and for informing consumers of the need for social justice and the

opportunities for change. Consumer support enables Fair Trade Organizations

to be advocates and campaigners for wider reform of international trading

rules, to achieve the ultimate goal of a just and equitable global trading

system.

Fair Trade as a “social contract”

Application of these core principles depends on a commitment to a long-term

trading partnership with producers based on dialogue, transparency and

respect. Fair Trade transactions exist within an implicit ―social contract‖ in

which buyers (including final consumers) agree to do more than is expected by

the conventional market, such as paying fair prices, providing pre-finance and

offering support for capacity building. In return for this, producers use the

benefits of Fair Trade to improve their social and economic conditions,

especially among the most disadvantaged members of their organisation.‖ (D9)

Nestes cinco princípios básicos do movimento – ―acesso dos produtores

marginalizados ao mercado‖; ―relações comerciais sustentáveis e justas‖;

―empowerment e capacitação‖; ―conscientização dos consumidores e advocacy‖;

―comércio justo como ‗contrato social‘ ‖ – a ideologia da solidariedade está

presente através:

- da ―promoção de valores que possibilitam‖,

- ao ―ajudar pequenas cadeias comerciais para que os produtores recebam

mais (…) do que é a norma‖,

- ao ―permitir aos produtores e trabalhadores manterem uma subsistência

sustentável‖,

- ao estabelecer que ―os preços e termos de pagamento (incluindo o pré-

pagamento quando necessário) são determinados por esses fatores em vez de

serem referenciados às condições de mercado‖,

- ao assumir ―um compromisso de parceria comercial a longo prazo‖,

- ao ―auxiliar as organizações de produtores (…) a desenvolver

conhecimento, habilidades e recursos para exercer mais controlo e influência

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181

sobre as suas vidas‖,

- ao ―providenciar as bases para conectar os produtores com os

consumidores‖.

A conceção do Comércio Justo enquanto ‗contrato social‘ resume esta

ideologia solidária, na medida em que ―os compradores (incluindo o consumidor

final) concordam em fazer mais do que é esperado no mercado convencional, tal

como, pagar preços justos, providenciar pré-financiamento e oferecendo apoio à

capacitação. Em troca, os produtores usam os benefícios (…) para melhorar as

suas condições económicas e sociais.‖.

Ao afirmar que

―In this way, Fair Trade is not charity but a partnership for change and

development through trade.‖ (D9)

o movimento responde à reivindicação que o originou:

―the developing countries were addressing international political fora such as

the second UNCTAD conference (United Nations Conference on Trade and

Development) in Delhi in 1968, to communicate the message ―Trade not Aid‖.

This approach put the emphasis on the establishment of equitable trade

relations with the South, instead of seeing the North appropriate all the

benefits and only returning a small part of these benefits in the form of

development aid.‖ (D8)

Neste sentido, o movimento constrói uma visão do mundo que se

caracteriza por ser solidária e não caritativa. Importa, no entanto, ter em conta a

distinção conceptual que Jean-Louis Laville (2009) encontra no termo

solidariedade. Segundo este autor,

―[o] conceito moderno de solidariedade remete a dois projetos diametralmente

opostos, sendo, portanto, impossível apresentar uma acepção unificada. A

solidariedade filantrópica corresponde ao primeiro deles, remetendo à visão de

uma sociedade ética na qual os cidadãos, motivados pelo altruísmo, cumprem

seus deveres uns para com os outros voluntariamente. A segunda forma é a

versão da solidariedade como princípio de democratização societária,

resultando de ações coletivas‖ (Laville, 2009: 310).

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182

O que parece estar em causa no Comércio Justo é uma ideologia da

solidariedade que se apoia na segunda forma apontada por Laville (2009). É que

se a primeira – a solidariedade filantrópica – assenta em ações paliativas que têm

como objetivo ‗aliviar‘ as bolsas de pobreza, criando vínculos de dependência, a

segunda

―baseia-se tanto na ajuda mútua, como na expressão reivindicativa, tangendo,

ao mesmo tempo, à auto-organização e ao movimento social. Esta segunda

versão supõe haver uma igualdade de direitos entre as pessoas que nela se

engajam. (…) ela se empenha em aprofundar a democracia política mediante

uma democracia econômica e social.‖ (Laville, 2009: 310).

A admiração dos produtores pelo facto de o seu café comercializado

através do CJ ter aceitação por parte dos consumidores, apesar do seu preço

final mais elevado por comparação a outros existentes no mercado, poderia ter

justificação numa forma de solidariedade filantrópica. Mas, não obstante o

caráter de ‗ajuda‘ que possa também estar subjacente a esse ato de compra, essa

não é a única razão justificativa:

―P10 – isto é a sala do Conselho de Administração. Vamos ver o senhor

presidente, Fernando Garcia, …

R – Durante uma conversa, quisemos saber a sua opinião acerca dos

consumidores ocidentais que aceitam pagar um pouco mais pelos produtos

dos pequenos agricultores.

P11 – (Garcia) Surpreende-me, porque, normalmente, os consumidores

querem o mais barato.

R – Quando lhe dizemos que o seu café é mais caro, o padre Francisco irrita-

se:

FVH – Isso não é correto! O produto do CJ tem um valor justo! O resto é que é

injusto, totalmente injusto! É essa a mensagem que temos de transmitir e não

especular com situações de pobreza. A exploração dos pobres é o grande

problema!

Por isso, irrito-me quando confundem o CJ com algo de beneficência. Não é

isso! É um mercado como deve ser. O resto é exploração!‖ (D5)

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183

A caracterização da ordem de discurso contra-hegemónica, do ponto de

vista ideológico, pode ser sintetizada da seguinte forma:

Ideologia da solidariedade

Características principais

- discurso condicional - discurso das possibilidades e das condições da sua efetivação

- discurso argumentativo

Racionalidade discursiva

- parceria - democracia política através da democracia económica e social

Metáfora ―Por as pessoas primeiro‖

“Lugar de contestação” / “Lugar da constatação”

Lugares de legitimação política

Quadro 12. Caracterização ideológica do discurso contra-hegemónico em análise.

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185

2. Dos textos

―Consideremos uma palavra que se refere a um objecto: guarda-chuva, por

exemplo. Quando digo a palavra «guarda-chuva», vemos o objecto na

mente. Vemos uma espécie de bengala, com varas de metal que se dobram

e que formam uma armação para um tecido impermeável que, quando

aberto, nos protege da chuva. Este último pormenor é importante. O

guarda-chuva não é apenas uma coisa, é uma coisa que exerce uma

função; por outras palavras, exprime a vontade do homem. Quando

paramos para pensar nisto, verificamos que todos os objectos são

semelhantes ao guarda-chuva, pois também servem uma função. Um lápis

serve para escrever, um sapato para o calçarmos, um automóvel para o

guiarmos. E o que eu pergunto agora é o seguinte: o que acontece quando

uma coisa deixa de cumprir a sua função? Ainda é a mesma coisa ou

transformou-se numa coisa diferente? Quando arrancamos o tecido de um

guarda-chuva, o guarda-chuva ainda é um guarda-chuva? Abrimos a

armação, pomo-la sobre a cabeça e saímos para a chuva e ficamos

completamente encharcados. Será que ainda podemos chamar guarda-

chuva àquele objecto? De uma maneira geral, é isso que as pessoas fazem.

Quando muito, dirão que o guarda-chuva está estragado. Mas para mim

isto é um erro grave, é a causa de todos os nossos problemas. Como já não

pode desempenhar a sua função, o guarda-chuva deixou de ser um

guarda-chuva. Pode parecer-se ainda com um guarda-chuva, pode ter sido

um guarda-chuva, mas agora transformou-se noutra coisa. No entanto, a

palavra empregue é a mesma. Por conseguinte, já não consegue exprimir o

que é o objecto. É imprecisa, é falsa, esconde uma coisa que deveria

revelar. E se nem sequer conseguimos nomear um objecto comum do dia-a-

dia que temos nas mãos, como é que podemos esperar falar das coisas que

verdadeiramente nos preocupam? Continuaremos sempre perdidos, a não

ser que comecemos a incorporar a noção de mudança nas palavras que

usamos.‖

Paul Auster, Trilogia de Nova Iorque

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186

A análise dos textos foi feita, tal como já referi, tendo em conta dois

aspetos: a prática discursiva e o vocabulário.

Do primeiro – prática discursiva – fazem parte a intertextualidade e a

interdiscursividade (Fairclough, 1992, 1995, 2003, 2009). Fairclough (2003)

define a intertextualidade de um texto da seguinte forma: ―é a presença no seu

interior de elementos de outros textos (e, portanto, de outras vozes para além da

do autor) que podem ser relacionados (dialogadas com, assumidas, rejeitadas,

etc.) de várias formas.‖ (Fairclough, 2003: 218). No que diz respeito à

interdiscursividade, Fairclough (2003) refere que a sua análise ―é a análise de

uma mistura particular de géneros, de discursos e de estilos sobre os quais [o

texto] é desenhado, e como diferentes géneros, discursos ou estilos são

articulados (ou ‗trabalhados‘) juntos no texto‖ (Fairclogh, 2003: 218).

Assim, aqui será dada atenção ao modo como os textos interagem entre si

dentro de uma determinada ordem de discurso e, também, à existência – ou não

– de outros discursos, dentro de uma dada ordem de discurso. A consideração

destas duas dimensões – intertextualidade e interdiscursividade – tem como

objetivo a ponderação, por um lado, da existência de cadeias intertextuais e, por

outro, da influência que diferentes discursos têm entre si.

O segundo aspeto – o vocabulário – pretende, principalmente, entender e

dar conta do modo como os conceitos centrais dos discursos em análise são

construídos em termos de significado, seja em termos dos usos preposicionais –

isto é, de que forma são postos em relação os conceitos –, seja em termos

proposicionais – isto é, qual o modo retórico (sobretudo em termos de lugares

comuns usados) utilizado em termos persuasivos. A consideração do modo

preposicional e do modo proposicional fundamenta-se na ideia de que ambos,

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

187

quando dotados de sentido, constroem um modelo de realidade. Este modo

proposicional inclui ainda as assunções existentes, no sentido de dar conta do

modo como os discursos utilizam ideias ‗feitas‘ quanto à realidade, ao desejável e

ao que se deve atingir, ou seja, que ideias implícitas existem nos textos. Segundo

Fairclough, os ―[i]mplícitos são uma propriedade essencial dos textos e uma

propriedade de considerável importância social‖ (2003: 54). Este aspeto, porque

intersecciona os dois anteriores, é apresentado na sua relação com estes.

À semelhança do capítulo anterior (1. Prática Social), também este

capítulo se organiza em tornos das duas ordens de discurso, isto é, cada um dos

aspetos referidos é apresentado em duas secções diferentes que correspondem às

ordens de discurso em causa.

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

189

2.1. Do discurso hegemónico

2.1.1. Prática discursiva

Nos documentos considerados para análise relativamente ao discurso

hegemónico a intertextualidade é uma constante. Significa isto que a presença de

outros textos é significativa, textos esses também identificados com o discurso

hegemónico tal como ele aqui é considerado: um discurso produzido por

organizações com um papel ativo no ―ciclo das políticas‖ (Bowe, Ball e Gold,

1992) e que exercem um ―poder consentido‖ dado o seu papel na ordem político-

económica mundial.

No entanto, a análise produzida deu conta de uma particularidade na

dimensão da intertextualidade do discurso hegemónico, particularidade essa que

está relacionada com quem refere quem. Esta particularidade permitiu-me criar

uma distinção entre aquilo que denomino uma forma de ‗intertextualidade

interna‘ e o que identifico ser uma forma de ‗intertextualidade externa‟. A primeira

– intertextualidade interna – refere-se a um tipo de intertextualidade que tem

como caraterística principal o facto de, num dado texto, serem ativamente

incluídos textos que, não só pertencem à mesma ordem de discurso, como são

produzidos pela mesma organização que os refere. Já a segunda –

intertextualidade externa – dá conta de uma intertextualidade que ocorre no

interior de uma mesma ordem de discurso, mas que se estabelece pela referência

a textos produzidos por outras organizações que não a autora do texto em

questão, ou seja, com outros ‗autores‘. Estes dois modos de construir a

intertextualidade podem coexistir num mesmo texto ou pode estar presente

apenas um deles.

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

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Confirmando o seu ‗lugar‘ no ―contexto de influência‖ e o seu papel de

―produção de ideologia‖, o texto da ONU refere-se, sem exceções, a outros textos

produzidos pela organização, criando assim uma ―cadeia intertextual‖

(Fairclough, 2003) em que os textos – e o discurso – se legitimam uns aos outros.

As referências encontradas, no texto da ONU, a outros textos são as seguintes:

―We reaffirm our commitment to the purposes and principles of the Charter of

the United Nations, which have proved timeless and universal. Indeed, their

relevance and capacity to inspire have increased, as nations and peoples have

become increasingly interconnected and interdependent.‖ (D1)

―We also resolve to address the special needs of small island developing States

by implementing the Barbados Programme of Action and the outcome of the

twenty-second special session of the General Assembly rapidly and in full.‖

(D1)

―We reaffirm our support for the principles of sustainable development,

including those set out in Agenda 21, agreed upon at the United Nations

Conference on Environment and Development.‖ (D1)

―To make every effort to ensure the entry into force of the Kyoto Protocol,

preferably by the tenth anniversary of the United Nations Conference on

Environment and Development in 2002‖ (D1)

―To press for the full implementation of the Convention on Biological Diversity

and the Convention to Combat Desertification in those Countries Experiencing

Serious Drought and/or Desertification, particularly in Africa.‖ (D1)

―To respect fully and uphold the Universal Declaration of Human Rights.‖ (D1)

―To combat all forms of violence against women and to implement the

Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against

Women.‖ (D1)

Os extratos apresentados mostram como o texto inclui outros textos,

especificamente identificados ainda que referidos de forma indireta, ou seja, sem

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citações e sem referência ao conteúdo desses outros textos, construindo assim

uma relação entre os textos que é assumida. Como afirmei, todos as referências

feitas são a outros textos produzidos pela mesma organização, ou seja, trata-se

de uma intertextualidade interna, confirmando assim a ‗inquestionabilidade ética‘

(cf. 1.1.2) que a ONU atribui a si própria, dado que este modo de

intertextualidade cumpre a função de reforçar o papel da organização.

Nos outros textos analisados a intertextualidade tem, fundamentalmente,

caraterísticas de intertextualidade externa. É de realçar que o texto da ONU –

―United Nations Millenium Declaration‖ (D1) – é um texto presente em todos os

outros textos analisados e que foram incluídos na ordem de discurso

hegemónica. Isto significa que este texto é assumido como central na construção

desta ordem de discurso dada a sua presença, por vezes até de forma direta, ou

seja, através da citação textual do seu conteúdo:

―5. O objectivo global e essencial da cooperação para o desenvolvimento da UE

é a eliminação da pobreza no contexto do desenvolvimento sustentável, o que

inclui a prossecução dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM).‖

(D3)

―6. Eis os (oito) ODM: erradicar a pobreza extrema e a fome; assegurar uma

educação básica para todos; promover a igualdade dos sexos e a capacitação

das mulheres; reduzir a taxa de mortalidade infantil; melhorar a saúde

materna; combater o VIH/SIDA, a malária e outras doenças; assegurar a

sustentabilidade ambiental e estabelecer uma parceria mundial para o

desenvolvimento.‖ (D3)

―8. A UE está determinada a actuar em prol da realização destes objectivos, e

bem assim dos objectivos de desenvolvimento acordados nas principais

conferências e cimeiras das Nações Unidas.‖ (D3)

―12. A agenda dos ODM e as dimensões económicas, sociais e ambientais da

erradicação da pobreza no contexto do desenvolvimento sustentável

desdobram-se em múltiplas actividades de desenvolvimento, que vão desde a

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

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governação democrática às reformas políticas, económicas e sociais, à

prevenção de conflitos, à justiça social, à promoção dos direitos humanos e ao

acesso equitativo aos serviços públicos, à educação, à cultura, à saúde,

incluindo a saúde sexual e reprodutiva e os direitos afins, conforme

estabelecido na Agenda da ICPD do Cairo; desde o ambiente e a gestão

sustentável dos recursos naturais a um crescimento económico favorável aos

mais pobres, ao comércio e desenvolvimento, à migração e desenvolvimento, à

segurança alimentar, aos direitos das crianças, à igualdade entre os sexos e à

promoção da coesão social e de um trabalho digno.‖ (D3)

―A UE apoiará as estratégias dos países parceiros centradas nos ODM e que

visem a redução da pobreza, o desenvolvimento e as reformas, e alinhará a

sua actuação pelos sistemas e procedimentos daqueles países.‖ (D3)

―24. A fim de atingir os ODM, continuará a dar-se prioridade aos países

menos desenvolvidos e a outros PBR, como testemunha a elevada proporção

da ajuda da UE que lhes é consagrada‖ (D3)

―Importa que as políticas não relacionadas com o desenvolvimento apoiem os

esforços dos países em desenvolvimento no sentido da realização dos ODM. A

EU terá em conta os objectivos da cooperação para o desenvolvimento na

execução de todas as políticas susceptíveis de afectarem os países em

desenvolvimento. (…) Tal representa um contributo adicional significativo da

UE para a realização dos ODM.‖ (D3)

―Os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio relativos à educação

especificam que, até 2015, todas as crianças (rapazes e raparigas) deverão

concluir pelo menos o ensino primário.‖ (D4)

―embora os países em desenvolvimento tenham feito grandes avanços na

última década em direcção aos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio de

educação primária universal e igualdade de género, um sem número de

evidências demonstram que muitas crianças e jovens dos países em

desenvolvimento saem da escola sem terem aprendido muito.‖ (D2)

―O Grupo Banco Mundial está empenhado em consolidar esse progresso e a

incrementar o seu apoio para ajudar todos os países a alcançarem a Educação

para Todos (EFA) e os objectivos de educação das Metas de Desenvolvimento

do Milénio (MDG).‖ (D2)

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―O apoio financeiro do Banco Mundial foi subindo ao longo da década, desde

que as MDG foram estabelecidas‖ (D2)

―Com dezenas de milhares de crianças ainda fora do sistema escolar e a

persistência de discriminações de género, os esforços para alcançar as MDG

para a educação têm de prosseguir.‖ (D2)

―O Fórum de Dacar ("Educação para todos") de Abril de 2000, reiterou e

alargou o compromisso da comunidade internacional relativo ao ensino

primário obrigatório para todos e gratuito em 2015.‖ (D2)

―A estratégia Aprendizagem para Todos promove os objectivos de equidade

subjacentes às MDG para a educação. Ao adoptar o objectivo de aprendizagem

para todos, a nova estratégia eleva as MDG da educação, ligando-as ao objec-

tivo universalmente partilhado de acelerar a aprendizagem.‖ (D2)

―Em muitos países de baixo rendimento e Estados frágeis empenhar-se em

cumprir os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio continua a ser

prioridade.‖ (D2)

Deste modo, o texto da ONU assume um caráter de legitimação na medida

em que ele é referenciado no sentido de contextualizar a ação e o discurso que

cada um dos organismos constrói, ou seja, a ―United Nations Millenium

Declaration‖ serve como legitimadora do discurso produzido por cada um dos

outros textos que o referem. Esse papel de legitimação discursiva através de uma

forma de intertextualidade externa prende-se com o caráter de ‗bem comum

universal‘ de que, tanto a ONU, como texto por ela produzido, se reclamam. Dado

que a relação intertextual que é estabelecida entre o texto produzido pela ONU e

os outros textos é uma intertextualidade assumida, ou seja, a referência que lhe

é feita é no sentido de estabelecer um ponto de partida base para o discurso

construído, estas organizações (BM, CE, UE) reconhecem-lhe, também, esse

papel universal.

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

194

Se o texto produzido pela ONU tem um papel de intertextualidade externa

face aos outros textos em análise no discurso hegemónico, ele não é o único.

Outros textos são convocados no interior dos textos analisados (exceção feita ao

D1 que, como já afirmei, apresenta apenas características de intertextualidade

interna):

―O Fórum de Dacar ("Educação para todos") de Abril de 2000, reiterou e

alargou o compromisso da comunidade internacional relativo ao ensino

primário obrigatório para todos e gratuito em 2015.‖ (D4)

―Os países em desenvolvimento comprometeram-se igualmente a reforçar os

recursos consagrados aos sectores sociais na Cimeira Social Mundial de

Copenhaga (1995).‖ (D4)

―A UE tem o maior interesse em que a ronda das negociações de Doha sobre

desenvolvimento e os acordos de parceria económica (APE) UE-ACP sejam

concluídos o mais rapidamente possível e conduzam a resultados ambiciosos

e favoráveis aos países pobres.‖ (D3)

―A Comissão desempenhará um papel activo na implementação da Declaração

de Paris sobre a eficácia da ajuda e constituirá uma das forças

impulsionadoras para promover o cumprimento, por parte da UE, dos

compromissos assumidos em Paris em termos de apropriação, alinhamento,

resultados da harmonização e responsabilização mútua.‖ (D3)

―Aplicará activamente, em toda a programação, os princípios definidos pela

OCDE para um bom compromisso internacional para com os Estados frágeis.‖

(D3)

―É intenção da Comunidade contribuir para a iniciativa «Educação para

Todos».‖ (D3)

―As avaliações internacionais de estudantes revelam também grandes lacunas

no conhecimento entre a maioria dos países em desenvolvimento e os

membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico

(OCDE).‖ (D2)

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

195

―Na realidade, os mais recentes resultados (2009) PISA reforçam a lição de que

os países que registam maior sucesso na promoção da aprendizagem são

aqueles que têm as diferenças menos acentuadas nos resultados de

aprendizagem entre os estudantes.‖ (D2)

Este modo de intertextualidade externa tem também como função,

essencialmente, legitimar o discurso produzido em cada um dos textos e a

ideologia preconizada. Constrói-se, assim, um discurso em circuito fechado, isto

é, um discurso que se legitima em espiral, recorrendo a textos de organizações

diversas que produzem e (auto)reproduzem essa mesma ordem de discurso.

No que diz respeito à interdiscursividade, o que esteve em causa do ponto

de vista da análise foi em que medida outros discursos e/ou vozes estão, ou não,

incluídas nos textos e discurso analisados. A análise do discurso hegemónico

deu conta da seguinte presença de outros discursos e vozes:

―Mas este sucesso deu origem a novos desafios, numa altura em que as

condições no mundo mudaram. (…) Os ganhos no acesso fazem incidir agora

a atenção para o desafio de melhorar a qualidade da educação e acelerar a

aprendizagem.‖ (D2)

―A nova estratégia centra-se na aprendizagem por uma simples razão: o

crescimento, desenvolvimento e redução da pobreza dependem dos

conhecimentos e qualificações que as pessoas adquirem, não no número de

anos que passaram sentados numa sala de aula.‖ (D2)

―A educação e a formação exercem um impacto positivo importante sobre a

saúde, a participação social e política, a igualdade de oportunidades

entre os sexos, as taxas de crescimento económico, os rendimentos e a

produtividade, em especial no âmbito de uma redistribuição equitativa

dos frutos deste crescimento.68‖ (D4)

―Paralelamente, a educação exerce efeitos positivos em termos de boa

68 O destaque a bold é do documento original.

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

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governação69: a educação pode desempenhar um papel essencial reforçando a

capacidade para reivindicar uma maior transparência e responsabilidade por

parte das autoridades e, deste modo, permitir a obtenção de um melhor

acesso aos recursos locais e aos serviços públicos.‖ (D4)

―7. Reafirmamos que (…) o desenvolvimento sustentável engloba a boa

governação e os direitos humanos, bem como vertentes políticas, económicas,

sociais e ambientais.‖ (D3)

―• To halve, by the year 2015, the proportion of the world‘s people whose

income is less than one dollar a day and the proportion of people who suffer

from hunger and, by the same date, to halve the proportion of people who are

unable to reach or to afford safe drinking water; • To ensure that, by the same

date, children everywhere, boys and girls alike, will be able to complete a full

course of primary schooling and that girls and boys will have equal access to

all levels of education; • By the same date, to have reduced maternal mortality

by three quarters, and under-five child mortality by two thirds, of their

current rates.; • To have, by then, halted, and begun to reverse, the spread of

HIV/AIDS, the scourge of malaria and other major diseases that afflict

humanity.; • To provide special assistance to children orphaned by

HIV/AIDS.; • By 2020, to have achieved a significant improvement in the lives

of at least 100 million slum dwellers as proposed in the ―Cities Without

Slums‖ initiative.; (…) • To promote gender equality and the empowerment of

women as effective ways to combat poverty, hunger and disease and to

stimulate development that is truly sustainable; • To develop and implement

strategies that give young people everywhere a real chance to find decent and

productive work.; • To encourage the pharmaceutical industry to make

essential drugs more widely available and affordable by all who need them in

developing countries; • To develop strong partnerships with the private sector

and with civil society organizations in pursuit of development and poverty

eradication.‖ (D1).

Os extratos citados revelam que os textos trazem para o seu interior

outros discursos que não os identificados com uma ordem hegemónica. A

referência ao ―desafio de melhorar a qualidade da educação‖, e que não é o

69 O destaque a bold é do documento original.

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

197

―número de anos que passaram sentados numa sala de aula‖ que trará

crescimento, articula o discurso do Banco Mundial, produzido numa dimensão

ideológica de educação ortopédica, com discursos que reconceptualizam a

educação, o desenvolvimento e a relação entre ambos, de modo não hegemónico.

Quero com isto dizer que, aparentemente, há uma articulação do discurso do

Banco Mundial com os discursos que atribuem centralidade aos fins e meios da

educação e à sua articulação com modelos de desenvolvimento, que não se

limitam à oferta de mais educação, ou melhor, de mais escola. No entanto, esta,

como disse, aparente, reconceptualização tem que ser enquadrada no campo

mais vasto dos significados que este texto e discurso constroem. É que a palavra

―qualidade‖, para além de polissémica, tem vindo a tornar-se recorrente em

qualquer ordem de discurso, ou seja, ela própria se tem tornado hegemónica,

necessitando, por isso, de o seu contexto de utilização e sentido(s) que assume

serem objeto de análise.

As conceções de desenvolvimento usadas quer pela UE, quer pela ONU,

assumem um grau de interdiscursividade com os discursos que defendem

conceitos de desenvolvimento que não se reduzem ao crescimento económico. Do

mesmo modo, as referências feitas pela CE aos efeitos que a educação terá não a

colocam, exclusivamente, ao serviço da formação da força produtiva, isto é, não

limitam o seu mandato à formação de trabalhadores, tendo também em conta a

formação de cidadãos e o desenvolvimento pessoal. No entanto, uma vez mais,

torna-se necessário perceber de que forma estas aceções são tecidas em

articulação com outros momentos do discurso, ou seja, como constroem,

efetivamente, o significado de tais palavras e expressões.

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“As pessoas acima do lucro”

Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

198

2.1.2. Vocabulário

Após as referências salientadas na secção anterior relativamente à prática

discursiva e, nomeadamente, no que à interdiscursividade diz respeito, importa

agora dar conta da análise produzida em termos de vocabulário. A análise desta

dimensão centrou-se (cf. Quadro 7) nos significados construídos e nos lugares

comuns usados de modo a realçar, não só as construções conceptuais, mas

também os usos preposicionais – ou seja, a relação conceptual construída – e os

usos proposicionais – ou seja, a utilização de modos retóricos com função

persuasiva.

Em secção anterior (cf. 1.1.2) dei conta do modo como o discurso

hegemónico constrói uma ideologia, também ela hegemónica, no que diz respeito

à educação e ao desenvolvimento, tendo salientado a existência de uma ideologia

da harmonia, uma ideologia desenvolvimentista e uma ideologia da educação

ortopédica. Esta construção ideológica socorre-se de um determinado

entendimento do que significa educação, desenvolvimento e, também, da relação

existente entre os dois.

No documento da ONU, o desenvolvimento é entendido, sobretudo, como

erradicação da pobreza. No documento United Nations Milenium Declaration é

afirmado que são

―our universal aspirations for peace, cooperation and development.‖ (D1)

pelo que a organização afirma como um dos seus objetivos o desenvolvimento e a

erradicação da pobreza, articulando, então, os dois termos através de uma

conjunção coordenativa copulativa. As características desta ligação são

entendidas da seguinte forma:

―11. We will spare no effort to free our fellow men, women and children from

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

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the abject and dehumanizing conditions of extreme poverty, to which more

than a billion of them are currently subjected. We are committed to making

the right to development a reality for everyone and to freeing the entire human

race from want.‖ (D1)

Não há referência ao modo como estes dois aspetos estão relacionados,

apenas se afirma essa ligação construindo assim uma relação de evidência entre

ambos. Esta relação é construída através do uso de lugares comuns que se

constituem em expressões retóricas de adesão fácil e imediata: ―paz, cooperação e

desenvolvimento‖, ―condições desumanizantes e abjectas‖, ―fazer do direito ao

desenvolvimento uma realidade‖, ―libertar os nossos companheiros homens,

mulheres e crianças‖.

Para a UE o desenvolvimento está também inextrincavelmente associado à

luta contra a pobreza, mas aqui o desenvolvimento é adjetivado como

sustentável:

―1. Nunca, como agora, a erradicação da pobreza e o desenvolvimento

sustentável assumiram tamanha importância.‖ (D3)

Aqui é enunciada a relação estabelecida entre os dois termos:

―A luta contra a pobreza à escala mundial não é apenas uma obrigação moral:

contribuirá igualmente para a construção de um mundo mais estável, mais

pacífico, mais próspero e mais justo, que reflicta a interdependência entre os

países mais ricos e os países mais pobres‖ (D3)

Constrói-se assim uma relação de funcionalidade entre desenvolvimento e

luta contra a pobreza, no sentido em que esta é entendida como a condição para

a existência daquele: ―a luta contra a pobreza contribuirá para‖. Significativo é o

facto de a ação contra a pobreza ser discursivamente construída de modo

distinto pelas duas organizações: a ONU refere a ―erradicação da pobreza‖ e a UE

a ―luta contra a pobreza‖. Na minha perspetiva, esta diferença radica na

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

200

construção ideológica que cada um dos textos promove: a ONU uma ideologia da

harmonia e a UE uma ideologia desenvolvimentista (cf. 1.1.2).

Também aqui as expressões retóricas proliferam e ajudam a fixar a relação

estabelecida entre desenvolvimento e luta contra a pobreza: ―a luta contra a

pobreza não é apenas uma obrigação moral‖, ―construção de um mundo mais

estável, mais pacífico, mais próspero e mais justo‖.

Nestes dois textos, dado o seu objeto e objetivo, a educação é referida

apenas uma vez em cada um. No texto da ONU, a educação é enunciada em

forma de objetivo a alcançar na promoção do desenvolvimento:

―To ensure that, by the same date, children everywhere, boys and girls alike,

will be able to complete a full course of primary schooling and that girls and

boys will have equal access to all levels of education (D1)

e a sua conceção restringe-se à educação escolar. No texto da UE, a educação é

referida enquanto parte do papel da sociedade civil, mencionando-se a intenção

de consagrar

―especial atenção à educação para o desenvolvimento e à sensibilização dos

seus próprios cidadãos.‖ (D3).

Não obstante esta menção à educação por relação a um público e a um modo

não-escolar, é importante recordar que, tal como foi evidenciado ao nível da

intertextualidade, os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio – onde se inclui o

anterior extrato citado de D1 – são a referência da UE para a promoção do

desenvolvimento.

O texto da Comissão Europeia (D4) e o texto do Banco Mundial

concretizam, de um modo mais evidente, as aceções relativas à educação e ao

desenvolvimento e, sobretudo, à relação entre ambos.

Para a CE, o desenvolvimento é também sinónimo de ―luta contra a

pobreza‖ e a relação entre eles – educação e desenvolvimento/luta contra a

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

201

pobreza – é assumido como sendo o objetivo do próprio documento:

―O objectivo da presente comunicação é salientar a importância capital da

educação na luta contra a pobreza e para o desenvolvimento‖ (D4).

Deste modo, todo o documento é construído no sentido de evidenciar essa

relação ou, mais simplesmente, assumi-la, sendo ambas formas semióticas de

construir ‗essa‘ verdade:

―A educação e a formação exercem um impacto positivo importante sobre a

saúde, a participação social e política, a igualdade de oportunidades

entre os sexos, as taxas de crescimento económico, os rendimentos e a

produtividade, em especial no âmbito de uma redistribuição equitativa

dos frutos deste crescimento70. Neste contexto, a educação fornece uma

base de competências que facilita o acesso ao emprego, especialmente para os

que não prossigam os estudos no secundário.‖ (D4)

―Simultaneamente, provou-se que não é possível o desenvolvimento do ensino

primário e o crescimento das economias sem um sistema de educação que

forme tanto os professores como um elevado número de estudantes para além

do ciclo elementar, incluindo os estudos universitários. O desenvolvimento

do ensino deve, por conseguinte, ser equilibrado, ou seja, é necessário

garantir que os sistemas produzam estudantes em diferentes níveis, cujas

qualificações correspondam à procura do mercado de trabalho.‖ (D4)

―Daí resulta a necessidade de apoiar estratégias, sistemas e processos

pedagógicos que favoreçam a procura de ensino e a aquisição das

habilitações necessárias para contribuir para o crescimento económico

de um país e o aumento da produtividade e eficácia dos que dispõem de um

emprego. O corolário deste desenvolvimento é que qualquer estratégia de

desenvolvimento deverá aprofundar as relações complexas entre ensino,

habilitações e emprego no quadro integrado de uma estratégia de redução da

pobreza. (D4)

―De igual modo, a fim de reforçar as taxas de escolarização, as escolas

secundárias deveriam dispor de ligações com o mercado do trabalho. As

empresas deveriam estabelecer parcerias a fim de reforçar as sinergias com a

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

202

escola.‖ (D4)

―Isto implica a aplicação de políticas activas de mercado de trabalho

associando o desenvolvimento das qualificações e o emprego‖ (D4)

Estes extratos evidenciam a noção de desenvolvimento presente, a

conceção de educação subscrita e a relação que deve existir entre os dois. Assim,

o desenvolvimento é entendido, genericamente, como crescimento económico: as

constantes referências a ―taxas de crescimento económico‖, ―rendimentos‖ e

―produtividade‖ confirmam tal entendimento. Este sentido articula-se com a

conceção de educação que está presente: a educação é aqui entendida como

escolarização na medida em que ela ―fornece uma base de competências‖, através

de um ―sistema de educação‖ que deve ―produzir estudantes‖ e favorecer a

―aquisição de habilitações‖. Ora, estas duas aceções que os conceitos aqui

adquirem favorecem um tipo de relação específico entre ambos. Assim, a relação

que a educação (escolarização) estabelece com o desenvolvimento (crescimento

económico) é uma relação de funcionalidade da primeira face à segunda, num

quadro de ideologia da educação ortopédica: as ―qualificações [devem

corresponder] à procura do mercado de trabalho‖, ―qualquer estratégia de

desenvolvimento deverá aprofundar as relações complexas entre ensino,

habilitações e emprego‖, ―as escolas secundárias deveriam dispor de ligações com

o mercado do trabalho‖ e deve-se associar ―o desenvolvimento das qualificações e

o emprego‖. Ou seja, claramente desenha-se aqui uma relação entre educação e

desenvolvimento subsidiária das teorias do capital humano, enfatizando a

educação como investimento individual, mas também coletivo, com reflexos num

desenvolvimento perspetivado numa lógica de modernização.

Também o texto do Banco Mundial enfatiza esta conceção de educação, de

70 Este destaque a bold, e os seguintes, são do documento original.

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

203

desenvolvimento e este modo de relação entre ambos:

―os investimentos em educação de qualidade produzem crescimento

económico e desenvolvimento mais rápidos e sustentáveis. Indivíduos

instruídos têm mais possibilidade de conseguir emprego, de receber salários

mais altos e ter filhos mais saudáveis.‖ (D2)

―A educação é fundamental para o desenvolvimento e o crescimento.‖ (D2)

―o motor deste desenvolvimento no entanto será, em última análise o que as

pessoas aprendem, dentro e fora da escola, desde o jardim-escola até ao

mercado de trabalho.‖ (D2)

―Há um outro conjunto de alterações que é tecnológico: avanços incríveis nas

tecnologias de informação e comunicação (TICs) e outras tecnologias estão a

mudar os perfis dos empregos requeridos pelos mercados de trabalho, ao

mesmo tempo a oferecer possibilidades de aprendizagem acelerada e melhor

gestão dos sistemas de educação.‖ (D2)

―o crescimento, desenvolvimento e redução da pobreza dependem dos

conhecimentos e qualificações que as pessoas adquirem‖ (D2)

―No nível pessoal, embora um diploma possa abrir as portas para um

emprego, são as competências do trabalhador que determinam a sua

produtividade e capacidade para se adaptar a novas tecnologias e

oportunidades.‖ (D2)

―Na fase primária, o ensino de qualidade é essencial para dar aos estudantes a

alfabetização e aritméticas básicas, das quais depende a aprendizagem no

resto da vida. (…) Segundas oportunidades e oportunidades de aprendizagem

informais são assim essenciais para garantir que todos os jovens possam

adquirir competências para o mercado de trabalho.‖ (D2)

―As crianças e os jovens não podem desenvolver as competências e valores de

que precisam sem a base educacional fornecida pelas escolas.‖ (D2)

Esta constatação da vinculação da educação à escolarização, é feita

apesar de o BM afirmar ter como

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

204

―Objectivo: aprendizagem para todos, para além da escolarização‖ (D2)

num dos sub-títulos do documento. No entanto, neste âmbito o BM declara que

―O ponto essencial da estratégia para a educação do Grupo do Banco é:

Investir cedo. Investir com inteligência. Investir em todos.‖ (D2)

Ora, esta última afirmação clarifica o sentido de ―para além da

escolarização‖: o que está aqui em causa é ir para além dos públicos em idade

escolar e não, necessariamente, para além dos modelos, fins e meios escolares.

Para além do reforço da relação entre escolarização e crescimento

económico (entendidos enquanto ‗educação‘ e desenvolvimento‘), o Banco

Mundial introduz no seu discurso a noção de aprendizagem, ao distinguir o que é

ensinado do que é aprendido. Considero que isto não se traduz, necessariamente,

numa ‗novidade‘ em termos de conceptualização da educação mas sim uma

continuidade conceptual revestida de novidade de práticas. Isto porque o BM

justifica esta ‗nova abordagem‘ da seguinte forma:

―Mas este sucesso deu origem a novos desafios, numa altura em que as

condições no mundo mudaram. (…) Os ganhos no acesso fazem incidir agora

a atenção para o desafio de melhorar a qualidade da educação e acelerar a

aprendizagem.‖ (D2)

O extrato citado aponta para essa continuidade no sentido da evolução da

estratégia com recurso a modos de legitimação discursiva assentes na utilização

de lugares comuns – como a ―qualidade‖ – e em assunções – como ―as condições

do mundo mudaram‖.

A existência de lugares comuns e assunções é, aliás, uma constante

enquanto estratégia discursiva, tal como se pode constatar nos extratos dos

textos em análise. A utilização de expressões como ―qualidade‖, ―aumento‖

―equílibrio‖, ―eficácia‖, ―investir com inteligência‖, ―investir em todos‖, são modos

semióticos de, através da utilização de lugares comuns, construir uma aceitação

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

205

generalizada das perspetivas veiculadas pelos discursos. Do mesmo modo,

assunções como ―produzem‖, ―é fundamental‖, ―são o motor‖, ―é essencial‖ e

―dependem dos‖ constituem-se enquanto formas de fixar, discursivamente, o que

existe, o que deveria existir e o que seria desejável existir.

Assim, o discurso hegemónico constrói uma conceção de desenvolvimento

que, por ser acoplado à luta ou erradicação da pobreza, se centra, quase

exclusivamente, em questões de crescimento económico. Neste sentido, o

conceito volta a ganhar a dimensão que teve, aquando do seu aparecimento no

contexto do fim da segunda guerra mundial, e com o processo de descolonização.

Roque Amaro (2003), refere que

―boa parte da produção teórica inicial sobre «desenvolvimento» visava a

evolução desses países, pelo que o conceito apareceu quase sempre ligado à

resolução dos chamados «problemas e vícios do subdesenvolvimento»‖ (Amaro,

2003: 40).

A interdependência, e quase justaposição, do ‗desenvolvimento‘ ao

conceito de ‗crescimento económico‘ traduziu-se na utilização de indicadores

económicos para aferir o nível de desenvolvimento dos países, o que teve como

consequências:

―considerar-se frequentemente o crescimento económico (enquanto processo

contínuo de aumento da produção de bens e serviços) como a condição

necessária e suficiente («sine qua non») do desenvolvimento, de que

dependiam as melhorias de bem estar da população, a todos os outros níveis

(educação, saúde, habitação, relações sociais, sistema político, valores

culturais, etc.); utilizar-se sistematicamente (…) os indicadores de crescimento

económico, e em particular o nível de rendimento per capita, para classificar

os países em temos de desenvolvimento.

Esta «promiscuidade» dos dois conceitos alargou-se entretanto a um outro, o

de industrialização, uma vez que, tendo sido o crescimento económico

(condição do desenvolvimento) assente historicamente nos países ditos

desenvolvidos, em processos de industrialização, rapidamente a expressão

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

206

«países industrializados» se converteu em sinónimo de «países desenvolvidos» e

aquela foi apresentada como uma etapa obrigatória na caminhada dos países

do Terceiro Mundo para o desenvolvimento.‖ (Amaro, 2003: 48)

Este é, portanto, um conceito de desenvolvimento claramente apoiado na

teoria da modernização que, de acordo com Fortuna (1987), situa os países, em

termos de desenvolvimento, num momento histórico particular, entre as

economias agrícolas ou entre as economias industriais, ou seja, entre economias

tradicionais (menos desenvolvidas e identificadas com o Terceiro Mundo) ou

Estados modernos (mais desenvolvidos, identificados com a civilização ocidental).

O que permitiria aos países do Terceiro Mundo passar de um estado a outro seria

a adoção de políticas e práticas que possibilitassem a passagem por diferentes

etapas de desenvolvimento até chegarem ao nível dos países ocidentais. Assim, ―o

subdesenvolvimento e a pobreza desaparecerão à medida que aqueles países

melhor conseguirem duplicar a estratégia de desenvolvimento anteriormente

ensaiada pelos países desenvolvidos de hoje (Fortuna, 1987: 175).

O discurso hegemónico em análise reveste-se de algumas das

características principais que So (1990) aponta para descrever a teoria da

modernização: atentar no desenvolvimento dos ‗países em vias de

desenvolvimento‘71; focar aspetos gerais do desenvolvimento, ao invés de ter em

conta a especificidade dos países; identificar as causas dos problemas como

sendo maioritariamente internas; construir a natureza das relações entre as

nações como benéficas; apontar como soluções para o desenvolvimento o

aumento das relações dos ‗países em vias de desenvolvimento‘ com o ocidente;

construir uma visão otimista dos processos de desenvolvimento.

71 Na verdade, a teoria da modernização não se referia a ‗países em vias de desenvolvimento‘ mas sim a ‗países de terceiro mundo‘ ou ‗países subdesenvolvidos‘. Aquela expressão veio substituir estas duas últimas mostrando o poder do discurso na construção e reconstrução do mundo.

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

207

Relativamente à conceção de educação presente neste discurso, nota-se

uma clara influência da teoria do capital humano. No âmbito de estudos de

Economia do Desenvolvimento (cf. Cabrito, 2002) tem vindo a ser enfatizado,

como fator preponderante do subdesenvolvimento, a existência de mão de obra

desqualificada: ―um traço comum às comunidades em que se verificam mais

baixos níveis de produção, maiores assimetrias na distribuição da riqueza, taxas

mais elevadas de natalidade e de mortalidade, menores consumos de bens

essenciais e de serviços culturais por habitante, etc., é a incapacidade da mão de

obra em responder às solicitações de novas formas e processos produtivos,

concretizada em elevadas taxas de analfabetismo e em deficiente nível de

formação profissional.‖ (Cabrito, 2002: 46). Ora, esta relação entre

subdesenvolvimento e mão de obra desqualificada tem também tradução em

estudos de Economia da Educação que incidem sobre o investimento em

educação e que ―indiciam para um papel decisivo da educação no

desenvolvimento. Na verdade, são os países onde são maiores os níveis de

produtividade e o ritmo de produção e menores as assimetrias na distribuição de

rendimentos e na fruição de bens de natureza social e cultural, aqueles que

apresentam maior nível relativo de investimento nas atividades de educação

inicial e de formação profissional contínua.‖ (Cabrito, 2002: 46).

O autor chama, assim, a atenção para o facto de esta relação entre

educação e produtividade por parte de alguns economistas, ter naturalizado a

associação feita entre educação e desenvolvimento tanto por parte dos discursos

científicos (sobretudo com as propostas da teoria do capital humano, a partir da

década de 1960), como dos discursos políticos, através da incorporação daqueles

nestes últimos.

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

208

Deste modo, o discurso hegemónico sobre a educação, o desenvolvimento

e a relação entre ambos pode ser sintetizado de acordo com o quadro seguinte:

Discurso Hegemónico

Desenvolvimento - luta/erradicação da pobreza

- crescimento económico - aproximação à teoria da modernização

Educação

- escolarização - instrução

-desenvolvimento de competências - formação para o mercado de trabalho - aproximação à teoria da modernização

Relação Educação/

/Desenvolvimento

- funcionalidade da primeira para atingir a última - aquisição de competências para a inovação

Quadro 13. Caracterização do vocabulário no discurso hegemónico em análise.

2.2. Do discurso contra-hegemónico

2.2.1. Prática discursiva

Nos textos do Comércio Justo considerados para análise a

intertextualidade assume características distintas da intertextualidade presente

no discurso hegemónico. Enquanto neste a intertextualidade é manifesta – ao

ponto de se poder, até, distinguir entre intertextualidade interna e externa – aqui

a intertextualidade é latente. Quero com isto dizer que não existem referências

específicas a outros textos produzidos no âmbito desta ordem de discurso, mas

apenas menções a outras estruturas do movimento e à sua produção textual:

―Fair Trade products are goods and services that are produced, traded and

sold in accordance with these Fair Trade principles and, wherever possible,

verified by credible, independent assurance systems such as those operated

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“As pessoas acima do lucro”

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209

by FLO (―Fairtrade-Certified‖) and WFTO (Sustainable Fair Trade Management

System)‖. (D9)

―It all started in the United States, where Ten Thousand Villages (formerly Self

Help Crafts) began buying needlework from Puerto Rico in 1946, and SERRV

began to trade with poor communities in the South in the late 1940s.‖ (D8)

―The earliest traces of Fair Trade in Europe date from the late 1950s when

Oxfam UK started to sell crafts made by Chinese refugees in Oxfam shops.‖

(D8)

―At the same time, Dutch third world groups began to sell cane sugar with the

message ―by buying cane sugar you give people in poor countries a place in

the sun of prosperity‖. These groups went on to sell handicrafts from the

South, and in 1969 the first ―Third World Shop‖ opened.‖ (D8)

―During the 1960s and 1970s, Non-Governmental Organizations (NGOs) and

socially motivated individuals in many countries in Asia, Africa and Latin

America perceived the need for fair marketing organizations which would

provide advice, assistance and support to disadvantaged producers. Many

such Southern Fair Trade Organizations were established, and links were

made with the new organizations in the North. These relationships were based

on partnership, dialogue, transparency and respect. The goal was greater

equity in international trade.‖ (D8)

―By the mid 80s there was a desire to come together more formally and the

end of the decade saw the foundation of the European Fair Trade Association

(EFTA, an association of the 11 largest importing organizations in Europe) in

1987 and the International Fair Trade Association (IFAT), now the World Fair

Trade Organization (WFTO), in 1989. The organizations that are a part of

WFTO vary greatly. They represent the whole chain from producer to sale and

also include support organizations such as Shared Interest, which provides

financial services and support to produces.‖ (D8)

―FLO, WFTO, NEWS! and EFTA started to meet in 1998 with the aim to enable

these networks and their members to cooperate on important areas of work,

such as advocacy and campaigning, standards and monitoring of Fair Trade.‖

(D8)

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

210

―In the course of the years, the Fair Trade movement has become more

professional in its awareness-raising and advocacy work. It produces well-

researched documents, attractive campaign materials and public events. It

has also benefited from the establishment of European structures that help to

harmonize and centralise its campaigning and advocacy work. An important

tool was the establishment of a joint Advocacy Office in Brussels, which

focuses on influencing (European) policy-makers. It is supported, managed

and funded by the whole movement, represented in FLO, WFTO, NEWS and

EFTA.‖ (D8)

―In 1997 their worldwide association, Fairtrade Labelling International (FLO),

was created. Today, FLO is responsible for setting international standards for

Fair Trade products, certifying production and auditing trade according to

these standards and for the labelling of products.‖ (D8)

―A priest working with smallholder coffee farmers in Mexico and a collaborator

of a Dutch church-based NGO conceived the idea of a Fair Trade label. Coffee

bought, traded and sold respecting Fair Trade conditions would qualify for a

label that would make it stand out among ordinary coffee on store shelves,

and would allow not only Fair Trade Organizations, but any company to sell

Fair Trade products. In 1988, the ―Max Havelaar‖ label was established in The

Netherlands.‖ (D8)

Assim, a intertextualidade é latente no sentido em que o texto remete, ou

menciona, outros textos e vozes. Esta referência tem como função fixar a

credibilidade do movimento por referência a: modos de organização do

movimento (nomeadamente, cooperação em rede entre as estruturas); definição

de critérios de fiabilidade (como a produção de rótulos e marcas identificativas);

história do movimento (dando conta do desenvolvimento que este teve em termos

de crescimento organizativo e geográfico). Esta intertextualidade latente assume

também a forma de menção à existência de ―documentos e materiais‖ produzidos

no âmbito de campanhas.

É, no entanto, de salientar aquilo a que chamo intertextualidade invertida.

Esta forma de intertextualidade caracteriza-se pelo facto de o texto, apesar de

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211

não citar outros textos, referir textos da sua autoria, textos esses que, pelas suas

características, serão textos citados (direta ou indiretamente) por outras

organizações pertencentes ao movimento. É o caso dos ―Princípios das

Organizações de Comércio Justo‖, prescritos pela WFTO, e que as organizações

de Comércio Justo devem seguir no seu trabalho diário:

―Principle One: Creating Opportunities for Economically Disadvantaged

Producers (…); Principle Two: Transparency and Accountability (…); Principle

Three: Fair Trading Practices (…); Principle Four: Payment of a Fair Price (…);

Principle Five: Ensuring no Child Labour and Forced Labour (…); Principle

Six: Commitment to Non Discrimination, Gender Equity and Freedom of

Association (…); Principle Seven: Ensuring Good Working Conditions (…);

Principle Eight: Providing Capacity Building (…); Principle Nine: Promoting

Fair Trade (…); Principle Ten: Respect for the Environment (…)‖ (D10)

A intertextualidade invertida é, então, a existência de textos, no interior do

texto em análise, que subjazem à criação de outros textos da mesma ordem de

discurso.

No que diz respeito à interdiscursividade, ou seja, à presença, no discurso

em análise, de outros discursos, a análise deu conta da sua existência de duas

formas. Ao longo dos textos analisados são referidos outros discursos,

identificados com uma ordem hegemónica, mas que têm uma função distinta

neste discurso contra-hegemónico.

Um dos discursos referidos é o discurso acerca dos direitos dos

trabalhadores. Segundo a WFTO,

―Fair Trade also adheres to standards (such as ILO conventions) that have

been widely – but by no means universally – adopted in national legal systems

as well as through voluntary codes of conduct by companies. However,

breaches of these principles are commonplace in the developing world, and

even in the most developed countries, ensuring compliance remains a major

challenge. The Fair Trade approach to this problem is based on its

developmental objectives and recognises that exploitation is a symptom of

poverty and inequality rather than the cause. Fair Trade therefore seeks to

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

212

address the underlying causes of poverty through new forms of trading

relationships rather than merely tackling the symptoms by checking

compliance with standards within individual operators and supply chains.

Furthermore, while compliance with legal requirements and respect for basic

human rights are of course important and non-negotiable, they are

insufficient in themselves to achieve the transformation towards long-term

development that is needed. These changes require deeper engagement by

actors in the trading chain, and recognition of the wider social and political

context of their economic relationships and transactions.‖ (D9).

O movimento afirma, então, a sua concordância com os critérios definidos

pela OIT mas assume a ser comum a existência de ―brechas nesses princípios‖

no ―mundo em desenvolvimento‖, pelo que, afirma a necessidade de ―ter em

conta as causas subjacentes à pobreza através de novas formas de relação

comercial‖ em vez de ―apenas combater os sintomas através da verificação do

cumprimento de critérios individuais‖, uma vez que, ―a exploração um sintoma

da pobreza e desigualdade e não a sua causa‖. Assim, o movimento propõe a

inclusão de uma dimensão de Comércio Justo aos direitos laborais (cf. D9)

assumindo uma interdiscursividade negativa, ou seja, contestando o discurso

produzido pela OIT e tentando alterá-lo através da enunciação de alternativas.

Outro discurso está presente neste, assumindo uma outra forma de

interdiscursividade:

―Fair Trade and Fair Trade Organizations have been recognised repeatedly by

European Institutions as well as national and regional governments for its

contribution to poverty reduction, sustainable development and consumer

awareness-raising. The European Parliament passed several resolutions on

Fair Trade (in 1994, 1998 and 2006) and many European ministers and prime

ministers have publicly endorsed Fair Trade. (…) Fair Trade is increasingly on

the agenda of policy makers throughout the world.‖ (D8)

Esta forma de interdiscursividade, que qualifico de interdiscursividade

positiva, caracteriza-se por ser uma interdiscursividade que se apoia numa outra

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

213

ordem de discurso. Isto significa que aqui, o fator hegemónico do discurso

referido não ser tido em conta, na medida em que o estatuto e papel da

organização que o produz, é entendido como benéfico para o movimento. O facto

de uma organização regional como a União Europeia, através do seu Parlamento

e instituições, ―reconhecer repetidamente‖ o contributo do Comércio Justo na

―redução da pobreza, desenvolvimento sustentável e conscientização dos

consumidores‖ é usado como uma forma de legitimação do movimento, não

obstante o discurso hegemónico que a União Europeia produz.

Esta interdiscursividade positiva pode indiciar uma aproximação, ainda

que estratégica, às organizações hegemónicas. De facto, esta é uma situação com

que o movimento lida nesta fase do seu desenvolvimento e que produz uma outra

forma de interdiscursividade: a interdiscursividade interna. Quero com isto

identificar a possibilidade de existência de discursos plurais no interior da ordem

discursiva e que é decorrente da existência de controvérsias no interior do

movimento:

―E1. A maioria das pessoas, penso eu, tende a associar o Comércio

Justo…com… pequenos produtores, com a ―arraia-miúda‖, com produtores do

3º Mundo…Portanto… terá havido alguma surpresa ao encontrar tipos como

Nestlé, Wall-Mart, ou o Starbucks estando neste…clube…do Comércio Justo…

(…) O que sente em relação a isso?

E2. Miserável!… O Comércio Justo … estabeleceu-se como um conjunto de

pequenos produtores. Mas, eles esqueceram-se do…objetivo básico…de

providenciar uma nova oportunidade e uma nova possibilidade de diferentes

mercados para pequenos produtores, deixando entrar os grandes tubarões.

Porque eles estavam interessados em ter…mais, e mais e mais…mercado!...

Starbucks entrou…Nestlé entrou… Cerolee(?) entrou… nós estamos a gritar

dos campos que eles não deviam estar… e, como tirá-los?… Nestlé está… no

México…Nestlé é o nosso…maior inimigo!... 85% do mercado é controlado pela

Nestlé!...É um novo conflito que temos de resolver.‖ (D6)

Esta divergência, ou interdiscursividade interna, é completamente

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

214

excluída dos textos produzidos pela WFTO. Pelo contrário, aquilo que para Frans

van der Hoff é ―Miserável!‖, é entendido pela WTFO como um avanço e um ganho

conseguido pelo movimento:

―The movement is engaged in debates with political decision-makers in the

European institutions and international fora on making international trade

fairer. On top of that, Fair Trade has made mainstream business more aware

of its social and environmental responsibility. In short: Fair Trade is becoming

more and more successful.‖ (D8)

―Thanks to the efforts of Fair Trade Organizations worldwide, Fair Trade has

gained recognition among politicians and mainstream businesses. More

successes are to be expected, as Fair Trade Organizations develop into

stronger players and mainstream companies become more and more attuned

to the demand for Fair Trade in the marketplace. Watch this space!‖ (D8)

Este conflito, que constrói o movimento numa dupla controvérsia – do

movimento face ao exterior e no interior do movimento –, será abordado no

capítulo dedicado à caracterização desta ordem de discurso contra-hegemónica.

2.2.2. Vocabulário

A conceção de desenvolvimento que o discurso do Comércio Justo constrói

encontra-se presente nos diversos documentos em análise, na medida em que, o

movimento se identifica como

―It contributes to sustainable development by offering better trading

conditions to, and securing the rights of, marginalized producers and workers

– especially in the South.‖ (D7)

―Fair Trade is more than just trading: it proves that greater justice in world

trade is possible. It highlights the need for change in the rules and practice of

conventional trade and shows how a successful business can also put people

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“As pessoas acima do lucro”

Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

215

first.‖ (D7)

―Fair Trade, fundamentally, is a response to the failure of conventional trade

to deliver sustainable livelihoods and development opportunities to people in

the poorest countries of the world; this is evidenced by the two billion of our

fellow citizens who, despite working extremely hard, survive on less than $2

per day. Poverty and hardship limit people's choices while market forces tend

to further marginalise and exclude them. This makes them vulnerable to

exploitation, whether as farmers and artisans in family-based production

units (hereafter "producers") or as hired workers (hereafter "workers") within

larger businesses.‖ (D9)

―The Fair Trade movement shares a vision of a world in which justice and

sustainable development are at the heart of trade structures and practices so

that everyone, through their work, can maintain a decent and dignified

livelihood and develop their full human potential.‖ (D9)

―The Fair Trade movement believes that trade can be a fundamental driver of

poverty reduction and greater sustainable development, but only if it is

managed for that purpose, with greater equity and transparency than is

currently the norm. We believe that the marginalised and disadvantaged can

develop the capacity to take more control over their work and their lives if they

are better organised, resourced and supported, and can secure access to

mainstream markets under fair trading conditions.‖ (D9)

A definição do movimento fixa o sentido atribuído ao desenvolvimento

também – tal como o discurso hegemónico – por relação à luta contra a pobreza.

No entanto, encontra-se uma diferença fundamental na construção discursiva do

modo de combater a pobreza. Se no discurso hegemónico a ênfase é colocada no

crescimento económico como fator de erradicação ou luta contra a pobreza, aqui

o desenvolvimento, ou a falta dele, é discursivamente relacionado com as

condições do comércio internacional convencional, no sentido em que o

movimento identifica o ―falhanço do comércio convencional em providenciar

meios de subsistência sustentáveis e oportunidades de desenvolvimento para as

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“As pessoas acima do lucro”

Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

216

pessoas nos países mais pobres do mundo‖. Assim, a conceção de

desenvolvimento não é alocada ao crescimento económico dos países mas sim à

reformulação das condições de comércio o que, por sua vez, retira a

‗responsabilidade‘ de desenvolvimento das pessoas e dos países colocando-a na

organização do sistema mundial.

Esta é, portanto, uma conceção de desenvolvimento mais consentânea

com a perspetiva de sistema-mundo desenvolvida, a partir dos anos 1970, por

Immanuel Wallerstein. Esta perspetiva caracteriza-se, sobretudo, por questionar

a lógica da unidade de análise centrada nas sociedades e nos Estados,

defendendo que a unidade básica de análise deveria ser o sistema histórico em

vez do Estado/sociedade. Para Wallerstein isto seria mais do que uma

substituição semântica porque o termo sistema histórico liberta da conotação

central que ‗sociedade‘ adquiriu ao ligar-se com ‗Estado‘ e, assim, do pressuposto

acerca do ‗quando‘ e do ‗onde‘ (So, 1990). Esta deslocação do Estado ou da

sociedade para o sistema-mundo, permite, então, focar os processos de

desenvolvimento já não nos países subdesenvolvidos – de acordo com a teoria da

modernização – ou da periferia – de acordo com a teoria da dependência –, mas

sim ―na periferia, como no centro, como na semiperiferia, como na economia

mundo‖ (So, 1990: 357). Os extratos acima referidos permitem uma identificação

da perspetiva de desenvolvimento que o movimento preconiza com as premissas

desenvolvidas por Wallerstein, na medida em que coloca o cerne das questões de

desenvolvimento nos processos e nas condições estruturais da economia

mundial.

Não deixa de ser relevante o uso do termo ―trabalhadores‖ e ―produtores‖ –

conforme extratos acima transcritos –, ao longo dos textos analisados, por

contraposição a ―recursos humano‖ que mais não é do que uma reconfiguração

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

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discursiva de ―trabalhador‖. Esta reconfiguração dissocia os trabalhadores das

condições de produção, atribuindo-lhe um estatuto idêntico aos dos ―recursos

materiais‖, dessocializando o fator ‗trabalho‘. Para o movimento,

―The term workers usually describes field workers, artisans or other workers

including migrant, temporary, seasonal, sub-contracted and permanent

workers, and all other hired labour personnel. The term, however, is limited to

personnel who are entitled to join unions and therefore normally excludes

middle and senior management‖ (D11)

Da mesma forma, é recorrente o uso do termo ―pessoas‖ que, à exceção do

documento da ONU, não é encontrado no discurso hegemónico. Isto vincula a

conceção de desenvolvimento a conceções diferentes da que o entendem

enquanto crescimento económico. É também a partir dos anos 1970 que,

segundo Roque Amaro (2003), se dá uma viragem nas abordagens e práticas de

desenvolvimento. A ―crença ocidental‖ (Rist, 2001) no desenvolvimento é posta

em questão levando a uma ―adjectivação (…) que procura traduzir uma variedade

de propostas e de conteúdos‖ (Amaro, 2003). Roque Amaro (2003), propõe a

organização destas novas conceptualizações do desenvolvimento em torno de seis

novos conceitos, entre os quais o desenvolvimento integrado que, segundo o

autor, pressupõe uma abordagem interdisciplinar e pode ser entendido como

―o processo que conjuga as diferentes dimensões da Vida e dos seus percursos

de mudança e de melhoria, implicando, por exemplo: a articulação entre o

económico, o social, o cultural, o político e o ambiental; a quantidade e a

qualidade; as várias gerações; a tradição e a modernidade; o endógeno e o

exógeno; o local e o global; os vários parceiros e instituições envolvidas; a

investigação e a acção; o ser, o estar, o fazer, o criar, o saber e o ter (as

dimensões existenciais do desenvolvimento); o feminino e o masculino; as

emoções e a razão...‖ (Amaro: 2003:59)

A consideração da vinculação do conceito de desenvolvimento do CJ ao

―desenvolvimento integrado‖ (Amaro, 2003) prende-se com a relação

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

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discursivamente construída entre desenvolvimento e

i) sustentabilidade,

―The cost of sustainable production is the cost of producing a product

sustainably and in a socially, economically and environmentally responsible

way that conforms with Fairtrade Standards. The Standards Unit assumes

that the COSP reflects sustainability.‖ (D11)

ii) condições de vida das populações e dos trabalhadores,

―The organization trades with concern for the social, economic and

environmental well-being of marginalized small producers and does not

maximize profit at their expense. It is responsible and professional in meeting

its commitments in a timely manner. Suppliers respect contracts and deliver

products on time and to the desired quality and specifications. Fair Trade

buyers, recognizing the financial disadvantages producers and suppliers face,

ensure orders are paid on receipt of documents and according to the attached

guidelines. (D10)

iii) condições de trabalho,

―The organization seeks to increase positive developmental impacts for small,

marginalized producers through Fair Trade.‖ (D10)

―The organization respects the right of all employees to form and join trade

unions of their choice and to bargain collectively. Where the right to join trade

unions and bargain collectively are restricted by law and/or political

environment, the organization will enable means of independent and free

association and bargaining for employees. The organization ensures that

representatives of employees are not subject to discrimination in the

workplace.‖ (D10)

―A pre payment of at least 50% is made if requested.‖ (D10)

iv) não discriminação,

―The organization does not discriminate in hiring, remuneration, access to

training, promotion, termination or retirement based on race, caste, national

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origin, religion, disability, gender, sexual orientation, union membership,

political affiliation, HIV/Aids status or age. The organization provides

opportunities for women and men to develop their skills and actively promotes

applications from women for job vacancies and for leadership positions in the

organization. The organization takes into account the special health and

safety needs of pregnant women and breast-feeding mothers. Women fully

participate in decisions concerning the use of benefits accruing from the

production process.‖ (D10)

v) recusa da exploração do trabalho infantil mas atendendo às

especificidades sociais e culturais das comunidades

―Fairtrade differentiates between the employment of children below the age of

15 by the producer and members of producer organizations, and children

helping out on family farms. Children sometimes carry out small tasks which

could be beneficial to their development, such as learning a skill, having a

responsibility, and/or contributing to their or their families' well-being or

income. However, if children are helping out on family farms, Fairtrade

requires that they do so only if they work after school or during holidays, the

work they do is appropriate for their age, they do not work long hours and/or

under dangerous or exploitative conditions, and are supervised and guided by

an adult family member. In Fairtrade no child below the age of 18 can

undertake any type of work which, by its nature or the circumstances under

which it is carried out, is likely to jeopardize their health, safety or morals,

and their school attendance. Examples of child work considered to be

unacceptable are work that involves slave-like practices; recruitment into

armed conflict; sex work and/or illicit activities. Examples of activities that are

potentially damaging to a child include work in an unhealthy environment;

excessive working hours resulting in tiredness or lack of sleep; work that

involves handling or any exposure to toxic chemicals; work at dangerous

heights; operation of dangerous equipment; and work that involves abusive

punishment.‖ (D11)

vi) pagamento de um preço justo pelo trabalho, definido como

―The Fairtrade Minimum Price (where it exists) is the minimum price that

must be paid by buyers to producers for a product to become certified against

the Fairtrade Standards. The FMP is a floor price which covers producers'

average costs of production and allows them access to their product markets.

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“As pessoas acima do lucro”

Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

220

The FMP represents a formal safety net that protects producers from being

forced to sell their products at too low a price when the market price is below

the FMP. It is therefore the lowest possible price that the Fairtrade payer may

pay to the producer.‖ (D11)

―Fairtrade Premium is an amount paid to producers in addition to the

payment for their products. The use of the Fairtrade Premium is restricted to

community (for a small producer organization or contract production set-up)

or to the socioeconomic development of the workers and their community (for

a hired labour situation). Its specific use is democratically decided by the

producers.‖ (D11)

Este modelo de ―desenvolvimento integrado‖ (Amaro, 2003) a que o

Comércio Justo aspira pode ser resumido com as palavras de Frans van der Hoff:

―Francisco leva-nos à grande sala comum para nos mostrar frescos que

retratam o modelo social a que aspiram

[várias imagens de frescos: 3 pessoas em círculo, de mãos dadas, à volta de

um globo terrestre;]

FVH – É, sobretudo, a solidariedade a nível mundial. Todos unidos para

melhorar as coisas.

[imagem 2: uma mulher desenhada até ao busto, nú, de braços abertos em

ligação à Terra – mãe natureza]‖ (D5)

No que à educação diz respeito, o movimento faz também uma inversão no

que toca à sua conceção. Essa inversão é feita, desde logo, pela não vinculação

da educação à escolarização e à preparação para o mercado de trabalho. A ênfase

é colocada nos processos de ―conscientização dos consumidores‖:

―From the beginning, the Fair Trade movement aimed to raise awareness

among consumers of the problems caused by conventional trade, and to

introduce changes to its rules. The sale of products always went alongside

with information on the production, producers and their conditions of living. It

has become the role of World / Fair Trade Shops to mobilise consumers to

participate in campaigning activities for more global justice.‖ (D8)

O ―aumento da conscientização entre os consumidores para os problemas

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221

causados pelo comércio convencional‖ insere-se na conceção de que a educação

é, acima de tudo, uma forma de ‗transformar‘ os indivíduos em cidadãos:

conscientes, críticos, capazes de intervir socialmente com vista a melhorar a

sociedade. Só assim se atinge verdadeiramente a democracia: ―A noção de

democracia implica a noção de uma cidadania democrática na qual os agentes

são responsáveis, capazes de participar, de escolher os seus representantes e de

monitorizar o seu desempenho‖ (Morrow e Torres, 1998: 147). Esta noção de

democracia implica um processo de aprendizagem, que não se confina às

dimensões escolares e/ou formais, mas que se situa predominantemente na

interação crítica, emancipadora e transformadora dos sujeitos, entre si, e com o

mundo:

―Os indivíduos não se encontram naturalmente prontos para a participação

política. Necessitam de educação em várias vertentes da política democrática,

incluindo a justificação das normas, o comportamento ético, o conhecimento

do progresso democrático e do desempenho técnico. A construção do sujeito

pedagógico é um problema conceptual central, um dilema da democracia‖

(Morrow e Torres, 1998: 147).

Esta ―construção do sujeito pedagógico‖ necessário à formação do cidadão

democrático não pode ser realizada apenas através da educação formal. Neste

sentido, ganha uma relevância especial a ideia de educação não formal e

informal, no sentido em que muitas das aprendizagens fundamentais para o

exercício da democracia e da cidadania se situam fora dos limites das disciplinas

tradicionais e se localizam na interseção de muitas delas.

O termo utilizado pelo movimento – ―conscientização‖ – remete, de modo

quase imediato, para a obra de Paulo Freire. De facto, conscientização é um

conceito central na sua obra, já que congrega em si a dimensão política e a

dimensão individual na relação dos sujeitos com o conhecimento. O processo de

aprender, que na perspetiva de Paulo Freire é eminentemente humano, não é

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222

neutro, envolve uma componente ideológica que implica um processo de análise,

uma reflexão crítica e uma tomada de posição:

―No processo de produzir e de adquirir conhecimentos, terminamos também

por aprender a ‗tomar distância‘ dos objetos, maneira contraditória de nos

aproximarmos deles. A ‗tomada de distância‘ dos objetos implica a tomada de

consciência dos mesmos (...) A conscientização é o aprofundamento da tomada

de consciência. Não há conscientização sem tomada de consciência, mas nem

toda tomada de consciência se alonga obrigatoriamente em conscientização. É

neste sentido que a pura tomada de consciência a que falte a curiosidade

cautelosa mas arriscada, a reflexão crítica, a rigorosidade dos procedimentos

de aproximação ao objeto fica no nível do ‗senso comum‘.‖ (Freire, 1991: 110)

Algumas vezes referiu que ―conscientização‖ era usada mais como uma

simples palavra ou slogan, do que como um conceito, lamentando esta

manipulação:

―Nos anos 70, com exceções, é claro, falava-se ou se escrevia de

conscientização como se fosse ela uma pílula mágica a ser aplicada em doses

diferentes com vistas à mudança do mundo. ... Me pareceu àquela época ...

que, de um lado, eu deveria de uma vez deixar de usar a palavra, de outro,

procurar, em entrevistas, em seminários, em ensaios – o que fiz realmente –

aclarar melhor o que pretendia com o processo conscientizador, no sentido de

diminuir os riscos abertos às interpretações idealistas, tão funestas quanto as

objectivistas mecanicistas.‖ (Freire, 1991:112).

Na perspetiva de Paulo Freire, a educação enquanto conceito deverá

permitir aos sujeitos uma tomada de consciência de forma a que eles alcancem a

conscientização. Assim, a educação deve ser a ‗educação para a conscientização‘

e a finalidade inerente ao ato educativo é tornar os indivíduos capazes de, mais

do que ler a palavra, ‗ler o mundo‘.

Esta ‗conscientização‘ e ‗leitura do mundo é entendida, no Comércio Justo,

como uma forma de educação tanto dos consumidores como dos produtores.

Para os primeiros, ela terá como objetivo

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

223

―(E1. O que é que você preferia que o Norte pensasse quando os seus consumidores

adquirissem um produto?)

E2. Que… conseguindo… um maior sistema democrático no mercado pode-se

construir um…mundo, onde todos podem viver bem, … para aliviar a

pobreza.‖ (D6).

Para os segundos,

―E2. Empowerment político… como..eu percepciono… uma das coisas mais

importantes.‖ (D6).

Este ‗empowerment político‘ é feito também através da implementação e

desenvolvimento, nas cooperativas de produtores, de sistemas de formação

formalizados:

―R – Aos 66 anos, o padre Francisco apoia-se agora nas jovens gerações para transmitir

a sua mensagem. Um dos resultados concretos do CJ, é a criação desta escola.

[imagens de uma escola e jovens a ter aulas].

Aqui, os filhos dos produtores aprendem não só a faina agrícola, como também os

princípios do CJ. [imagem de jovens a jogar basquetebol]

No futuro, estarão mais preparados para seguir, ou não, aquilo que o padre Francisco

chama de ―Utopia Realista‖ [imagem de um fresco a retratar um mestre-escola em

frente a um quadro de giz com as palavras ―la utopia‖].‖ (D5)

Discurso Hegemónico

Desenvolvimento - luta contra a pobreza

- sustentabilidade económica, social e ambiental - aproximação à teoria do sistema-mundo

Educação - conscientização

- empowerment político

Relação Educação/

/Desenvolvimento - relação simbiótica

Quadro 14. Caracterização do vocabulário no discurso contra-hegemónico em análise.

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225

IIVV

DDOO DDIISSCCUURRSSOO CCOONNTTRRAA--HHEEGGEEMMÓÓNNIICCOO,,

OOUU RREEFFLLEEXXÕÕEESS CCOONNCCLLUUSSIIVVAASS

“Tudo mudara para mim, e palavras que antes nunca

havia compreendido começaram subitamente a fazer

sentido. Isto foi como que uma revelação, e quando

finalmente pude absorver isso, espantava-me como fora

possível ter vivido tanto tempo sem ter aprendido algo

tão simples.”

Paul Auster, Trilogia de Nova Iorque

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

226

O discurso contra-hegemónico que esteve em discussão neste trabalho foi

analisado, do ponto de vista da sua politicidade, por referência à sua constituição

enquanto movimento social, termo que remete

“em sentido amplo, a lutas sociais travadas coletivamente, propondo

mudanças em diferentes esferas (política, cultural, económica, social) e níveis

(local, setorial, macrossocial). Este conceito aporta a idéia de uma ação

coletiva que apresenta questionamentos ao sistema ou normas específicas,

designando assim eventos de composições e alcances distintos” (Icaza, 2009:

260).

A análise produzida permitiu identificar a matriz social do discurso e

caracterizá-lo ideologicamente. Esta caracterização, que identificou a construção

de uma ideologia da solidariedade, remete o discurso deste movimento para o

âmbito da economia solidária, entendida enquanto

“uma economia na qual o desenvolvimento social não seja uma preocupação

subsidiária, relegada a mecanismos compensatórios, uma economia cuja

lógica intrínseca implique e estimule a cooperação e a reciprocidade, em

benefício da equidade e da justiça social” (Laville e Gaiger, 2009: 168).

A economia solidária apresenta como traço estruturador a “primazia da

solidariedade sobre o interesse individual e o ganho material” (Laville e Gaiger,

2009: 162) sendo essa solidariedade promovida através de um vínculo social,

estabelecido entre os intervenientes na atividade económica. No Comércio Justo,

esse vínculo é criado entre os diferentes elos da cadeia que compõem o processo,

desde o produtor ao consumidor. Essa ligação dá-se “não tanto pela redução da

distância física, mas pela aproximação ética” (Cotera e Ortiz, 2009: 61). A ideia

da possibilidade de existência de um comércio que é „justo‟ e de uma economia

que é „solidária‟ é desafiante por duas ordens de razão: por um lado, porque

assume o “imaginário económico” (Jessop, 2004; Jessop e Oosterlynck, 2008), e,

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

227

por outro, porque questiona a necessidade de adjetivação da economia. Estas

duas ordens de razão estão inextrincavelmente relacionadas: a necessidade de

adjetivação da economia só é explicável pela cristalização de um conceito de

economia que a afasta da sua origem enquanto ciência social e que agudiza a

necessidade da sua conceptualização em termos políticos. Para Jessop e

Oosterlynck (2008) é necessário “reconhecer as dimensões semióticas da

economia política e, ao mesmo tempo, estabelecer como e porquê apenas alguns

imaginários económicos, entre tantos que atualmente circulam, foram

selecionados e institucionalizados” (Jessop e Oosterlynck, 2008: 1).

Assim, considero que esta reconceptualização da economia através da

ênfase na sua politicidade – construída de acordo com uma ideologia da

solidariedade – é uma das formas de o Comércio Justo, enquanto novo

movimento social, preconizar a mudança social.

Esta não é, no entanto, a única expressão de mudança social presente no

discurso deste movimento. Tal como a análise deu conta, essa mudança estende-

se à conceptualização da educação, do desenvolvimento e da relação entre

ambos.

Krause (2010) constrói uma tipologia de educação para o desenvolvimento

com base em práticas e definições de educação para o desenvolvimento

assumidas por diversos atores:

i) a educação para o desenvolvimento como consciencialização:

“A ED é a disseminação pública de informação sobre um vasto conjunto de

assuntos (ex.: desenvolvimento sustentável, paz e desenvolvimento, comércio e

desenvolvimento, ODM), países em desenvolvimento e políticas de cooperação

para o desenvolvimento; o trabalho de consciencialização foca-se na

informação cognitiva disseminada através de uma abordagem «top-down»”

(Krause, 2010: 7);

ii) a educação para o desenvolvimento como educação global:

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Políticas de Educação, Desenvolvimento e Novos Movimentos Sociais

228

“a ED foca a interdependência local-global; envolve participação da população

alvo; estimula a compreensão crítica de assuntos de desenvolvimento,

ambiente, direitos humanos, interculturalidade, paz e a responsabilidade de

cada um num mundo globalmente interdependente; procura mudar atitudes e

comportamentos e promover o envolvimento e advocacy para a justiça social

global e sustentabilidade” (Krause, 2010: 7);

iii) a educação para o desenvolvimento como promotora de „aptidões de

vida‟:

“a ED relaciona a vida pessoal e local (política/social/económica/ambiental) a

assuntos globais; foca-se em processos de aprendizagem, apoia o pensamento

crítico, a autorreflexão, e as escolhas independentes do aprendente; tem como

objetivo o desenvolvimento de competências necessárias para ter uma vida

plena na complexa e dinâmica sociedade mundial; equipa os indivíduos com

aptidões necessárias à participação em processos de mudança desde o nível

comunitário local ao nível global” (Krause, 2010: 7).

O autor ressalva que esta tipologia não é exaustiva e que é construída

enquanto ideal-tipo, pelo que a mistura de características enunciadas em

práticas reais é, não só possível, como provável. No entanto, e dado que o que

aqui é considerado não são as práticas em si mesmas mas sim os discursos

enquanto prática, parece-me possível enquadrar, com base na análise produzida,

o discurso do CJ na “educação para o desenvolvimento como educação global”. A

enunciação do primeiro tipo de educação para o desenvolvimento feita por Krause

(2010) enquanto “consciencialização” poderia, numa análise menos atenta, fazer

a identificação do discurso do movimento com esse primeiro tipo. Mas as

características identificadas no vocabulário usado pelo CJ (cf. Quadro 14),

remetem para o segundo tipo identificado por Krause (2010).

Assim, a mudança preconizada pelo discurso do CJ, no que às conceções

de educação e de desenvolvimento diz respeito, bem como quanto à relação

anunciada entre estas duas, engloba os fins, os meios e a população alvo da

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229

educação, a multidimensionalidade do desenvolvimento e o relacionamento

circular entre os dois conceitos. De facto, não só a educação deixa de estar

identificada exclusivamente com a escolarização como deixa de ser um ato do

„Norte‟ sobre o „Sul‟, ou seja, deixa de ser um ato de “modelação da educação nas

sociedades em desenvolvimento” (Dale, 1982). Da mesma forma, a sua finalidade

centra-se, sobretudo, nos processos de cidadania ativa – ou seja, uma cidadania

que não é apenas reconhecida – tanto dos produtores do Sul como dos

consumidores do Norte. A intervenção educativa é, então, discursivamente

construída como uma dupla conscientização: dos produtores no sentido de

ultrapassar os obstáculos produzidos pelas regras do comércio internacional, e

dos consumidores no sentido de perspetivarem o consumo como um ato político.

Não obstante esta dupla conscientização, aquela que é discursivamente

valorizada enquanto tal – pelo uso dessa mesma palavra – é a que é realizada

com os consumidores do Norte.

Também a noção de desenvolvimento advogada aponta para novas formas

de conceber o conceito. Quando Frans van der Hoff afirma

“Aqui não queremos desenvolvimento, nem prosperidade, pois sabemos que

isso se baseia na exploração. Queremos condições de vida dignas, uma

pobreza digna, com casas decentes, acesso a cuidados de saúde, e alimentos

suficientes para comer.” (D5)

está a denunciar os „vícios‟ do desenvolvimento tal como ele é, hegemonicamente,

entendido. É precisamente essa forma hegemónica de conceber o

desenvolvimento que leva Esteva (1992) a afirmar que “[a]o homem moderno foi

oferecida uma expectativa ilusória, implícita na conotação do desenvolvimento e

da sua rede semântica: crescimento, evolução, maturação, modernização.”

(Esteva, 1992:23). Esta “expectativa ilusória” é recusada no discurso do

movimento no sentido em que, ao enfatizar a importância da sustentabilidade

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230

económica, social e ambiental, recusa a aceção de desenvolvimento conotada

com „crescimento‟.

E é nesse sentido que a relação entre educação e desenvolvimento é

circular. Na verdade, a relação que é desenhada pelo discurso é tanto de

educação para o desenvolvimento como de desenvolvimento para a educação, na

medida em que os dois conceitos se inter-relacionam, não se antevendo uma

relação de subordinação de um face a outro mas sim de complementaridade.

Na Introdução deste trabalho fiz referência à distinção elaborada por

Santos (2000, 2002) entre conceções paradigmáticas e subparadigmáticas de

mudança social, distinção essa que assenta, sobretudo, nas finalidades visadas

pelos atores identificadas, respetivamente, como transformadoras ou

adaptativas. No entanto, esta dicotomização espartilha a conceção de mudança

social de um modo que pode não ser o mais eficaz na medida em que não

pondera, por exemplo, a distinção entre meios e fins. O movimento cujos

discursos estiveram aqui em análise é um exemplo disso mesmo. De facto, se por

um lado a análise do vocabulário deu conta de uma produção discursiva

transformadora, por outro, essa transformação assenta em processos de

produção, distribuição e consumo. Ora, a “expectativa ilusória” que refere Esteva

(1992) assenta, precisamente, nesses processos que, por sua vez, são base da

economia capitalista mundial. Como conciliar então aquilo que parece ser uma

contradição entre uma mudança paradigmática e uma mudança

subparadigmática? Essa parece ser também a questão que se levanta quando se

tem em conta a controvérsia interna ao movimento (cf. página 214). Num

trabalho mais recente, Santos e Rodríguez (2004) parecem querer ultrapassar

essa contradição ao afirmarem que

“[m]ais do que da velha dicotomia entre reforma e revolução, trata-se é de,

como afirma Gorz (1997), aplicar reformas revolucionárias, ou seja,

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empreender reformas e iniciativas que surjam dentro do sistema capitalista

em que vivemos, mas que facilitem e dêem credibilidade a formas de

organização económica e de sociabilidade não capitalista.” (Santos e

Rodriguez, 2004: 26-27).

Este entendimento de alternativas que contemplassem não só os fins, mas

também os meios, tinha já sido explorado no campo da Psicossociologia quando

Langue (1993) afirmou que

“Normalmente simplificamos rapidamente as coisas opondo os extremos. Este

é o caso do exemplo paradigmático da oposição entre patrão e sindicatos. Ao

modo de ação institucional clássico que representa a submissão ao instituído,

opomos a ação anti-institucional do instituinte agressivo e vindicativo. Mas

existe uma terceira via, menos espetacular mas muitas vezes mais eficaz, que

é o modo de ação contrainstitucional. Nesta estratégia de ação já não se trata

de se opor ao poder numa “prova de força” onde as regras (normalmente,

definidas pelo poder estabelecido) são respeitadas, mas sim de agir “à

margem”, onde não se espera, onde o poder instituído não previu que a reação

agisse.” (Langue, 1993: 73).

Este alargamento de possibilidades de enquadramento da ação e da

mudança social considera não só os fins a atingir mas também os meios usados

para o fazer.

Esse parece ser o entendimento que o CJ tem quando se reclama da

penetração conseguida em estruturas e instituições políticas e económicas

hegemónicas. No entanto, esta não é uma posição consensual no movimento (cf.

páginas 213 e 214). A existência desta controvérsia interna, aparentemente de

difícil superação porque enraizada em visões opostas do mundo, parece dar razão

a Chantal Mouffe na defesa de um pluralismo agonístico (por oposição a

antagonista):

“This is why a perspective like “agonistic pluralism” which reveals the

impossibility of establishing a consensus without exclusion is of fundamental

importance for democratic politics. By warning us again of the illusion that a

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fully achieved democracy could ever be instantiated, it forces us to keep the

democratic contestation alive.” (Mouffe: 2000, 17).

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“As pessoas acima do lucro”

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