Apontamentos Penal i e II

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TEORIA DO BEM JURÍDICO 13. Noção Essência do Direito Penal como objectivo de proteger bens jurídicos fundamentais. O Prof. Figueiredo Dias define bem jurídico como, expressão de um interesse de uma pessoa ou da comunidade, integridade do Estado, vão-se sentar na própria pessoa ou na comunidade. Trata-se do objecto do Direito Penal, objecto que é em si mesmo socialmente relevante fundamental para a integridade do Estado. A noção material de crime era todo o comportamento humano que lesava ou ameaçava de lesão bens jurídicos fundamentais. A ideia de que o crime lesa bens fundamentais e não direitos remonta a Birnbaum (séc. XIX), que vem dizer que os crimes não lesam direitos, mas sim bens, isto é, entidades para além da própria ordem jurídica. Os bens jurídicos não são realidades palpáveis, concretas, são antes valores da existência social. Não é efectivamente o legislador que cria esses bens, pois eles já existem, preexistem, sendo certo obviamente que quando o legislador lhes confere tutela jurídica transforma esses bens em bens jurídicos. Estes bens são interesses da coexistência social, são valores reputados fundamentais à própria existência da sociedade organizada em termos de Estado. Os comportamentos que agridam lesem, ponham em causa, façam perigar esses interesses, devem ser objecto de uma reacção. O Direito Penal não deve intervir para tutelar todo e qualquer bem jurídico; o Direito Penal deve intervir apenas para tutelar as ofensas mais graves a esses bens jurídicos que, por outro lado, têm de ser bens jurídicos fundamentais, daí carácter subsidiário e fragmentário do Direito Penal.

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TEORIA DO BEM JURÍDICO

 13. Noção

Essência do Direito Penal como objectivo de proteger bens jurídicos fundamentais.

O Prof. Figueiredo Dias define bem jurídico como, expressão de um interesse de uma pessoa ou da comunidade, integridade do Estado, vão-se sentar na própria pessoa ou na comunidade.

Trata-se do objecto do Direito Penal, objecto que é em si mesmo socialmente relevante fundamental para a integridade do Estado.

A noção material de crime era todo o comportamento humano que lesava ou ameaçava de lesão bens jurídicos fundamentais.

A ideia de que o crime lesa bens fundamentais e não direitos remonta a Birnbaum (séc. XIX), que vem dizer que os crimes não lesam direitos, mas sim bens, isto é, entidades para além da própria ordem jurídica.

Os bens jurídicos não são realidades palpáveis, concretas, são antes valores da existência social.

Não é efectivamente o legislador que cria esses bens, pois eles já existem, preexistem, sendo certo obviamente que quando o legislador lhes confere tutela jurídica transforma esses bens em bens jurídicos.

Estes bens são interesses da coexistência social, são valores reputados fundamentais à própria existência da sociedade organizada em termos de Estado. Os comportamentos que agridam lesem, ponham em causa, façam perigar esses interesses, devem ser objecto de uma reacção.

O Direito Penal não deve intervir para tutelar todo e qualquer bem jurídico; o Direito Penal deve intervir apenas para tutelar as ofensas mais graves a esses bens jurídicos que, por outro lado, têm de ser bens jurídicos fundamentais, daí carácter subsidiário e fragmentário do Direito Penal.

O Direito Penal só deve intervir para proteger bens jurídicos fundamentais, ou seja, valores, interesses sociais e individuais juridicamente reconhecidos quer do próprio, quer da colectividade, em virtude do especial significado que assumem para a sociedade e das suas valorações éticas, sociais e populares.

O Direito Penal justifica a sua intervenção não só devido à natureza dos bens jurídicos em causa, que têm de ser bens jurídicos fundamentais, mas também atendendo à intensidade da agressão que é levada a cabo para com esses bens jurídicos fundamentais.

 14. Evolução do conceito de bem jurídico

Existem várias perspectivas

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a)     Concepção liberal ou individualLigada ao liberalismo e a Füerbach, constata-se que há crime

quando se verifica uma lesão de bens jurídicos que estão concretizados na esfera jurídica de um certo indivíduo. Portanto, uma lesão de valores ou interesses que correspondem a bens jurídicos subjectivos.

b)     Concepção metodológica de bem jurídicoProcuram ver no bem jurídico um papel voltado para uma função

interpretativa. Fornecer fórmulas para interpretar as normas. Instrumento de interpretação dos tipos legais de crimes. O bem jurídico tem como papel fundamentar a intervenção do Direito Penal.

c)     Concepção socialIndependentemente destes valores e interesses estarem

subjectivados, concretizados na esfera jurídica de um indivíduo, podendo estar efectivamente imanentes à colectividade social.

Não necessitam, de ser individualmente encabeçados na esfera social de um determinado sujeito em concreto. Os bens jurídicos são vistos numa óptica social, como bens universais pertencentes à colectividade.

d)     Concepção funcionalPodia-se ver nos bens jurídicos, funções que esses mesmos bens

jurídicos desempenhavam para o desenvolvimento da própria sociedade, as funções sociais desempenhadas por esses bens.

 15. O bem jurídico hoje: concepção mista

O Prof. Figueiredo Dias, diz que os bens jurídicos são uma combinação de valores fundamentais, por referência à axiologia constitucional.

São bens jurídicos fundamentais por referência à Constituição, aqueles que visam o bom funcionamento da sociedade e das suas valorações éticas, sociais e culturais. Portanto, uma concepção mista em que se dá ênfase a uma combinação individualista, social ou mesmo funcional do bem jurídico.

Os bens jurídicos tutelados pelas diferentes incriminações têm de estar de acordo com a Constituição, significando isto que: tem de estar em harmonia com o princípio da representatividade política e com o princípio da reserva de lei formal, é a Assembleia da República que deve efectivamente escolher quais esses valores, quais esses interesses que carecem de tutela jurídico-penal.

 16. Princípios fundamentais[5]

De harmonia com os princípios imanentes a um Estado de direito democrático deve-se dizer que só deve haver criminalização de comportamentos humanos quando a tutela conferida por outros ramos

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de direitos não seja suficiente para acautelar esses bens jurídicos, é o princípio da subsidiariedade do Direito Penal.

As restrições limitam-se ao necessário, ou seja, se outros ramos do direito através das suas sanções, forem suficientes para acautelar a manutenção destes bens jurídicos, então não se impõe a tutela do Direito Penal, porque ela deixa de ser necessária, é o princípio da necessidade.

Conjugam-se os princípios da necessidade e da subsidiariedade, o Direito Penal só deve intervir quando estejam em causa bens jurídicos fundamentais e que outros ramos de direito não sejam suficientes para salvaguardar os bens jurídicos. A ideia de necessidade – a pena deve ser necessária.

Por outro lado, de harmonia com o princípio ou com o carácter fragmentário do Direito Penal, não são todos os bens jurídicos que o Direito Penal deve tutelar, mas tão só os que o art. 18º CRP indica: os bens fundamentais.

O princípio da proporcionalidade, a intensidade com que se devem restringir direitos fundamentais do cidadão é variável consoante a necessidade maior ou menor que há de tutelar outros bens jurídicos fundamentais, por referência à gravidade dos bens jurídicos em questão.

A teoria do bem jurídico, legítima a intervenção do Direito Penal nos quadros valorativos do art. 18º CRP, tendo efectivamente um poder muito forte de critica argumentativa e permite ao legislador, ou ao jurista verificar:

Por um lado, se esses bens jurídicos que o legislador resolve tutelar quando cria incriminações são:-         Bem jurídico fundamental, se o não forem, a tutela do Direito

Penal é inconstitucional;-         Permite verificar se a intensidade da agressão justifica a tutela

do Direito Penal, isto é, se é efectivamente necessária a tutela do Direito Penal ou se outra tutela será suficiente.

Por outro lado, permite dizer se o legislador ordinário respeitou a axiologia constitucional nas diferentes incriminações e nas inserções sistemáticas dos diferentes tipos legais de crime; permite verificar também se o princípio da proporcionalidade do Direito Penal, assente em que, as diferentes gravidades de ilícito devem corresponder diferentes penas, se isso é ou não observado.

 17. Relação ordem jurídica penal e ordem jurídica constitucional

O Prof. Figueiredo Dias, diz que existe uma axiologia constitucional, os bens jurídicos, são exclusivamente definidos na Constituição. Mútua referência, só não ordem constitucional, é possível identificar os bens jurídicos que a ordem jurídica vai defender.

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A restrição do Direito Penal é a restrição de uma tutela de bens jurídico constitucionalmente consagrados. Compromisso de ter de proteger os bens jurídicos constitucionalmente consagrados.-         Direito Penal de justiça ou clássico ou primário: corresponde

ao núcleo de bens jurídicos consagrados constitucionalmente, estando consagrados no Código Penal;

-         Direito Penal secundário: todos os bens jurídicos que estavam na Constituição, mas não nos direitos, liberdade e garantias, não devem ser tratados no Código Penal, mas em legislação avulsa.

Não há uma exclusiva vinculação da ordem penal à constitucional. A ordem constitucional identifica valores fundamentais, na ordem social, encontram-se valores que podem fazer intervir o Direito Penal, valores que poderão não estar referidos constitucionalmente.

Não há correspondência total da ordem penal na ordem constitucional

[5] Art. 18º/2 CRP.

TEORIA DOS FINS DAS PENAS 

18. IntroduçãoO Direito Penal pode encontrar legitimação a partir de duas ideias

fundamentais:-         Da teoria do bem jurídico;-         Da teoria dos fins das penas.No âmbito dos fins das penas, pode-se distinguir, fins de duas

naturezas: fins mediatos e fins imediatos:-         Como fins mediatos das penas tem-se os fins do Estado;-         Como fins imediatos das penas tem-se a ideia de retribuição e

de prevenção.O Direito Penal é um ramo de direito produzido pelo Estado e como

tal, deve em última análise prosseguir fins imanentes a esse mesmo Estado.

A finalidade das penas[6] pode ser vista não numa óptica mediata de finalidades a prosseguir pelo próprio Estado, mas numa óptica formal e abstracta.

Três finalidades podem ser prosseguidas com os fins imediatos das penas:

1)     Ideia de retribuição;2)     Ideia de prevenção:

a)   Geral;b)   Especial.

As penas servem para retribuir o mal a quem praticou o mal, esta é a teoria retributiva das penas: tem uma finalidade retributiva.

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Ou então poder-se-á dizer que as penas servem para fazer com que as pessoas em geral não cometam crimes, uma finalidade de prevenção geral.

Ou dizer que as penas servem para que a pessoa que é condenada a uma pena e que a tenha de cumprir não volte ela própria a cometer crimes, tem-se aqui uma finalidade deprevenção especial.

A estas ideias subjacentes aos fins das penas, há que distinguir entre:-         Teorias absolutas das penas;-         Teorias relativas das penas. 

19. Teorias absolutas – teoria da retribuição ou retributivaApresenta a ideia de que as penas são um mal que se impõe a

alguém, por esse alguém ter praticado um crime. Significa a imposição de um mal a quem praticou um mal, uma ideia de castigo. Escolhe-se uma pena que corresponde a determinado facto, deve ter correspondência com a proporcionalidade na responsabilidade do agente.

É uma teoria inadequada para fundamentar a actuação do Direito Penal, embora este tenha um fim de retribuição, não pode ter a teoria da retribuição como fim em si mesmo.

 20. Teorias relativas

a)     Teoria da prevenção[7]:Numa óptica de prevenção geral, pode-se dizer que as penas

pretendem evitar que as pessoas em geral cometam crimes.Numa óptica da prevenção especial, pode-se verificar que o direito

penal, ao submeter um indivíduo a uma sanção por um crime que ele cometeu, pretende evitar que esse indivíduo volte a cometer crimes. Fá-lo por duas vias:

1)     Ou porque esse indivíduo é segregado, isto é, enquanto está a cumprir pena tem a impossibilidade de reincidir;

2)     Ou então, já não assente na ideia de segregação, mas numa ideia de regeneração, de recuperação ou de ressociabilização, através de um tratamento que lhe será submetido no âmbito do cumprimento da pena.

O Direito Penal é chamado a retribuir um crime, mas é concebido com uma ideia de prevenir (teoria da prevenção geral). O objectivo da pena é essencialmente o objectivo de exercer uma influência na comunidade geral – ameaçar se cometer um crime, pois ao cometer fica submetido a uma determinada pena – prevenir a prática de crimes.

Füerbach, cria a “teoria psicológica da coacção”, as infracções que as pessoas cometem têm, um impulso psicológico, a função da pena é combater esse impulso de cometer crimes.

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Intimida-se as pessoas, com esta coacção para que os cidadãos em geral não cometam crimes. Esta prevenção geral divide-se em:-         Prevenção geral positiva, revelar à comunidade o que

acontece se praticar um crime;-         Prevenção geral negativa revelar a intimidação.Aparece a teoria da prevenção especial, tem também a ideia de

prevenção, mas a prevenção já não é a comunidade em geral, mas sim a prevenção do indivíduo, ou seja, que o agente não volte a cometer um crime. Pretende evitar a reincidência.

Os principais defensores da teoria da prevenção especial asseguram-na de três formas[8]:

1)     Salvaguardar a comunidade do delinquente;2)     Intimidar o autor [9]com a pena;3)     Evitar a reincidência[10].É a teoria que mais se opõe à retributiva. O Direito Penal é cada vez

mais dirigido à pessoa do criminoso, criando condições para o sociabilizar. É alvo de críticas.

Tal como a prevenção geral, não nos fornece um critério de quanto e a duração das penas. Os sistemas (teorias) desenvolvidos por si só são falíveis, começando a se desenvolver teorias mistas.

 21. Teoria dialéctica dos fins das penas

Klaus Roxin desenvolve esta teoria mista, dizendo que cada uma das teorias per si, de importância solada são insuficientes para justificar os fins das penas. Engloba três fases:

1)    Fase da ameaça penal: a formulação de um preceito legal, abstractamente definido na lei, em que existe a tipificação do comportamento como criminoso e os estabelecimentos da sanção correspondente; os fins das penas seriam predominantemente de natureza, de prevenção geral;

2)    Fase da condenação: fase em que o indivíduo que cometeu um crime vai ser julgado e em que o juiz lhe comunica a pena aplicável, momento da retribuição;

3)    Fase da execução da pena: em que a finalidade da pena estaria aqui numa óptica de prevenção especial, de recuperação ou ressociabilização do delinquente.

 22. Outras teorias

a)     Teorias unificadoras retributivasViam no Direito Penal o fim retributivo (fim essencial), mas partindo

das insuficiências da retribuição iam apontar ao Direito Penal a finalidade de prevenção.

b)     Teorias unificadoras preventivasDois objectivos:-         Aproveitar o que têm de positivo a prevenção especial e geral;

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-         Criar o que falta nelas, a prevenção.Características:-         Os fins das penas são essencialmente e exclusivamente

preventivos;-         Renúncia de toda a ideia de retribuição;-         Princípio da culpabilidade para a limitação da pena vai-se ter em

conta a culpa do agente[11]. Apenas não pode ultrapassar a medida de culpa. Ao grau de culpa vai-se encontrar a medida da pena[12].

O Código Penal assume princípios de prevenção especial e um misto de prevenção geral – teorias unificadoras preventivas.

Sistema exclusivamente preventivo em que se procura fazer uma coexistência dos princípios de prevenção especial e geral.

Função da tutela necessária dos bens jurídicos – objectivos de ressociabilização do agente encontrando o limite da pena, a culpa.

[6] Pena, sanção característica do Direito Penal determinadas pela lei.

[7] Geral ou especial.

[8] Quando se aplica uma pena a um indivíduo.

[9] Aquele que praticou o facto.

[10] A pena serve para corrigir o delinquente.

[11] Limita a intervenção penal.

[12] Vai limitar a medida da pena.

TEORIA DA LEI PENAL

 23. Síntese histórica

A primeira manifestação de direito organizado na península ibérica – período visigótico – relativo ao Direito Penal foi o Código Visigótico, que tentava restringir o poder do imperador, e o máximo de obediência à lei, referência a incriminações de carácter doloso.

Influência árabe, período da reconquista, não há uma lei concreta.No séc. XII e XIII, formas de organização do Estado – período

afonsino. Concentra-se nos reis os poderes, tendo o mesmo monopólio do poder de punir. Há tentativas de organizar o poder – centralização do poder real, limitar as questões de justiça privada. Atribuir exclusividade de repressão pública. As penas eram marcadas por grande crueldade.

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Nos livros das ordenações há uma linha idêntica na matéria de punição, estas ordenações mantiveram-se até ao séc. XIX (1852).

Características das ordenações:-         Casuísmo: direito casuísta evolui na aplicação concreta de

casos a caso;-         Arbitrariedade: o juiz tinha uma longa margem de

discricionariedade de fazer funcionar as penas daquele que estava perante si, as penas eram transmissíveis;

-         Desigualdade: as penas eram aplicadas em conformidade com a posição social do acusado.

Este período dura até ao constitucionalismo liberal [13]. Há uma tentativa de criação de um Código Penal em 1779, é inspirado pelos movimentos europeus de Direito Penal[14].

No séc. XIX – 1822 – com a constituição liberal vem reorganizar o Estado português – corte com o regime das ordenações contendo princípios de Direito Penal.-         Princípio da humanização das penas passou a ser proibido

certas penas cruéis;-         Combater a desigualdade das penas;-         Necessidade das penas;-         Princípio da proporcionalidade das penas;-         Acabar com a transmissibilidade da responsabilidade criminal.Em 1852 é feito o primeiro Código Penal Português, transpõe para o

Direito Penal os princípios penas consagrados.Em 1886 é feito um novo Código Penal, não mais do que o Código

Penal de 1852 com algumas alterações.Em 1954 é reformado, autoria de Cavaleiro Ferreira.O Código Penal de 1982 consiste nos projectos e ante-projectos do

Prof. Eduardo Correia:-         De 1963, no que à parte geral diz respeito;-         De 1966, no que à parte especial diz respeito.Sofre alterações em 1984 e uma profunda alteração de 195, dirigida

por Figueiredo Dias, alteração à parte especial.

[13] Carta constitucional de 1822.

[14] Projecto de Melo Freir procura a humanidade das penas.

 

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

 

24. Fundamentos

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O Direito Penal funda-se na Constituição, as normas penas ordinárias são autorizadas, são delegadas por outras normas, essas de natureza constitucional.

Na Constituição encontram-se vários conjuntos de normas que conexionam directamente com o Direito Penal.

Em primeiro lugar encontram-se um grupo de normas que proíbem certas penas e certas medidas de segurança[15]. Neste sentido pode-se ver aqui que este conjunto de normas constitucionais que proíbem certas penas ou certas medidas de segurança filiam-se num princípio de política penal, que é o princípio da humanidade das penas.

Mas na Constituição encontram-se também normas que proíbem a transmissibilidade das penas; o art. 30º/3 CRP, consagra assim, o princípio da intransmissibilidade das penas e acolhe o carácter pessoal da responsabilidade penal (art. 11º CP).

A Constituição contém também um conjunto de normas que delimitam a aplicação no tempo das leis penais e fixam o âmbito da sua interpretação (art. 29º CRP):

-         Art. 29º/1, proíbe-se a retroactividade das leis penais incriminadoras;

-         Art. 29º/3, proíbe a integração de lacunas em Direito Penal por analogia;

-         Art. 29º/4, impõe obrigatoriamente a retroactividade das leis penais mais favoráveis ao agente;

-         Art. 29º/5, consagra-se o princípio “ne bis in idem”, ou seja, o princípio de que ninguém pode ser condenado mais do que uma vez pela prática do mesmo facto.

Também os princípios gerais de direito internacional são fonte de Direito Penal (art. 29º/2 CRP).

O Direito Penal funda-se também no sentido de que o legislador ordinário deve de alguma forma dar acolhimento e plasmar a axiologia ou a valoração constitucional.

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Diz-se que as valorações, as opções axiológicas constitucionais devem ser respeitadas pelas normas penais, porque é a Constituição que contem os valores que o Direito Penal deve proteger (art. 18º CRP):

-         Princípio da necessidade da pena: da máxima restrição da pena e das medidas de segurança;

-         Princípio da intervenção mínima do Direito Penal, ou da subsidiariedade do Direito Penal;

A lei, só pode intervir para restringir ou limitar direitos, liberdades e garantias fundamentais quando isso se revele absolutamente imprescindível para acautelar outros direitos tão fundamentais.

-         Princípio da jurisdicionalidade da aplicação do Direito Penal ou princípio da mediação judicial (arts. 27º/2, 33º/4, 30º/2 CRP):

As sanções de Direito Penal e a responsabilidade criminal de uma pessoa só podem ser decididas pelos tribunais, que são órgãos de soberania, independentes, órgãos que julgam com imparcialidade.

Outro princípio fundamental que norteia todo o Direito Penal é o princípio da legalidade, na sua essência visa a submissão dos poderes estabelecidos à lei, traduz-se numa limitação de poderes estabelecidos pela própria lei.

 

25. Decorrência do princípio da legalidade

Princípio “nullum crimen, nulla poena sine lege”, ou seja, princípio de que não há crime nem pena sem lei, extrai-se o seguinte:

-         Não pode haver crime sem lei;

-         A lei que define crime tem de ser uma lei precisa – “nullum crimen nula poena sine lege certa”;

-         Proíbe-se a retroactividade da lei pena – “nullum crimen nulla poena sine lege previa”;

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-         Proíbe-se a interpretação extensiva das normas penais incriminadoras – “nullum crime nulla poena sine lege strica”;

-         Proíbe-se a integração de lacunas por analogia e impõe-se a retroactividade das leis penais mais favoráveis.

Por outro lado, o princípio da legalidade impõe particularidades no âmbito da competência para a criação de normas penais incriminadoras e normas penais favoráveis.

O princípio da legalidade impõe a exigência da intervenção judicial ou da imediação judicial na aplicação ou na apreciação da responsabilidade criminal do agente. O princípio da legalidade impõe ainda a proibição de uma dupla condenação pelo mesmo facto.

Uma lei penal não deve conter tão só a descrição de um comportamento considerado crime; deve conter, em conexão com essa descrição, a correspectiva sanção jurídico-penal.

O princípio da legalidade tem um fundamento político, um fundamento saído da Revolução Francesa, do Iluminismo, e que assenta na ideia de que existe uma razão comum a todos os homens que encontram expressão comum na lei e evitam o arbítrio.

Neste sentido, o princípio da legalidade tem como fundamento a garantia dos direitos individuais.

O princípio da legalidade, mesmo no domínio do Direito Penal tem uma justificação e um fundamento de constituir uma garantia de direitos individuais do cidadão.

Enquanto submissão do poder de punir o Estado à lei, o princípio da legalidade tem esse fundamento: garantir os direitos individuais do cidadão.

 

26.  Decorrências do princípio da legalidade enquanto garantia dos direitos individuais do cidadãoa)     Missão de fazer leis penais

Uma delas afere-se pelas pessoas que têm a missão de criar crimes e estabelecer as correspondentes sanções jurídico-penais, isto é, que tem a missão de fazer leis penais.

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Do princípio da legalidade decorre a ideia de que não há crime nem pena sem lei (escrita), a definição de um comportamento como crime e a correspondente sanção que se lhe aplica tem de constar de uma lei escrita. Tem competência para criar normas incriminadoras[16], a Assembleia da República (art. 165º CRP).

b)     Não há crime nem pena sem lei prévia

É outra concretização do princípio da legalidade na garantia de direitos individuais, a exigência de lei prévia, “nullum crimen nulla poena sine lege prévia”.

Impõe que as leis a aplicar sejam a lei que vigora no momento da prática do facto.

Outro princípio que é o da imposição de leis penais retroactivas quando as leis penais posteriores forem favoráveis ao arguido, ao agente.

c)     Exigência de lei expressa

Pode ser analisada a partir de duas outras decorrências:

1)    O princípio de que não há crime nem pena sem lei certa – “nullum crimen nulla poena sine lege certa”;

2)    Decorrência de que não existe crime nem pena sem lei escrita – “nullum crimen nulla poena sine lege scripta”.

d)     Exigência de intervenção judicial, “nullum crimen nulla poena sine juditio”.

Neste sentido, as sanções jurídico-penais sejam elas penas ou medidas penais, têm de ser sempre aplicadas por um órgão de soberania independente, com a finalidade de aplicar a justiça, que entre nós são os tribunais.

e)     Proibição de dupla condenação pelo mesmo facto

Consagra-se o princípio “ne bis in idem”, isto é, o princípio de que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo facto.

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Existem categorias analíticas e sistemáticas da teoria do facto punível: são as categorias da tipicidade, da ilicitude e da culpabilidade. Muito genericamente dir-se-á:

1)    O crime é um facto humano;

2)    Tem de ser típico, ou seja, tem de estar descrito numa lei, tem de corresponder a uma descrição legal;

3)    Este facto tem ainda de ser simultaneamente ilícito.

 

27. Fontes de Direito Penal

a)     A lei (escrita)

Aqui está a tal decorrência do princípio da legalidade “nullo crimen nulla poena sine lege scripta”, não há crime nem pena sem lei escrita (art. 165º CRP).

b)     Costume

Como fonte de incriminação não é admissível em Direito Penal, de contrário violaria o disposto no art. 1º CP, e arts. 29º e 165º/1-c CRP, nomeadamente estaria a violar o princípio da representatividade política e da reserva da lei formal.

No entanto o costume tem valia quando visa, não criar ou agravar a responsabilidade penal do agente, mas quando a sua intervenção resulte benéfica para o agente: ou seja, quando o costume se venha traduzir no âmbito de uma norma favorável, isto é, quando o costume de alguma forma venha atenuar ou mesmo excluir a responsabilidade criminal do agente.

c)     Jurisprudência

Não é fonte imediata de direito.

Reconduz-se à aplicação da lei ao caso concreto.

Há uma grande tendência para que os tribunais se orientem para decisões anteriores.

d)     Doutrina

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Não é fonte imediata de direito, mas sim fonte mediata. Corresponde ao conjunto das opiniões dos eminentes penalistas.

e)     Fontes de direito internacional – tratado

São fonte de Direito Penal, tal como a lei, porque depois de todo o processo de assinatura, aprovação, ratificação, eles entram na ordem jurídica nacional como lei escrita.

 

28. Interpretação da lei penal

Tem-se de dividir as normas penais em dois grupos: normas incriminadoras e normas favoráveis.

Deve entender-se por normas incriminadoras aquelas que criam ou agravam a responsabilidade jurídico-penal do agente. São aquelas normas que de alguma forma contêm a criação de crimes, ou que contêm agravamentos dos pressupostos de punibilidade ou de punição.

Normas favoráveis, são aquelas normas que visam diminuir a responsabilidade jurídico-penal do agente, ou atenuá-la, tornando mais suaves os pressupostos da punibilidade ou da punição.

a)      Normas penais incriminadoras

Proíbe-se a interpretação extensiva das normas penais incriminadoras, de outra forma estar-se-ia a violar o princípio da legalidade na sua decorrência “nullum crimen nulla poena sine lege stricta”, ou seja, de que as normas penais devem ser estritamente aplicadas; é admissível a interpretação restritiva; proíbe-se a aplicação analógica no âmbito das normas penais incriminadoras, quer por analogia legis, quer por analogia iuris.

b)      Normas penais favoráveis

Proíbe-se a interpretação restritiva de normas penais favoráveis; admite-se a interpretação extensiva; relativamente ao problema da analogia:

1)    Alguns autores – Teresa Beleza, etc., admitem a analogia, nas normas penais favoráveis;

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2)    Outros autores – Cavaleiro Ferreira – a analogia em Direito Penal, quer de normas favoráveis, quer de normas incriminadoras, está vedada;

3)    Outros ainda – Frederico da Costa Pinto – entende que no âmbito das normas favoráveis a analogia está de todo excluída. Em certos casos pode-se admitir a interpretação extensiva de normas favoráveis, mas não é possível o recurso à analogia no âmbito de normas favoráveis.

 

29. Normas incriminadoras

A interpretação extensiva em normas incriminadoras não é possível. Só é possível, no âmbito de normas incriminadoras uma interpretação declarativa lata. Tudo aquilo que a exceda e que vise harmonizar a letra da lei à sua razão de ser, à sua “ratio”, se ultrapassar este sentido literal máximo possível já se está a fazer interpretação extensiva. Esta não deve ser admitida em Direito Penal, porque se entende que por força do princípio da legalidade, na sua vertente garantia, se exige que a lei penal seja uma lei penal expressa. Assim a norma deve dizer expressamente quais são as condutas, activas ou omissivas que, a serem ou não adoptadas, constituem objecto de incriminação em sede de Direito Penal. No entanto admite-se a interpretação restritiva.

Afirma-se rotundamente que não é possível integrar lacunas por analogia. Isto é, perante um caso omisso que o legislador penal ano tipificou, não classificou como crime, o juiz não pode, ao contrário de que acontece no domínio do direito civil regular esse caso omisso, nem recorrendo à analogia legis, nem à analogia iuris, nem tão pouco criar a norma de harmonia com o espírito do sistema. O juiz pura e simplesmente julga, absolvendo.

 

30. Normas favoráveis

As normas favoráveis são aquelas que visam, ou que traduzem para o agente, uma posição mais benéfica porque:

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-         Ou excluem a ilicitude de um facto típico e portanto justificam o facto e tornam-no ilícito, tornando-o ilícito, excluem a responsabilidade penal, porque não há responsabilidade penal por factos lícitos.

-         Ou tornam-se mais brandos, mais suaves, os pressupostos da punibilidade e da punição.

Pode-se fazer interpretação extensiva, mas com limites.

Mas já não se aceita que se faça interpretação restritiva de normas penais favoráveis, isto porque, a ser possível, diminuir-se-ia o campo de aplicabilidade destas normas favoráveis, o que significa aumentar o campo de punibilidade.

Quanto à analogia:

Existem várias posições. Uma (Teresa Beleza) admite-se a integração de lacunas no âmbito de normas penais favoráveis.

Outra posição é a de que se admite por princípio a integração de lacunas por analogia no âmbito de normas penais favoráveis, desde que essa analogia não se venha a traduzir num agravamento da posição de terceiros, por ele ter de suportar na sua esfera jurídica efeitos lesivos ou por ter auto-limitado o seu direito de defesa.

 

31. Leis penais em branco

É uma norma que contem uma sanção para um pressuposto ou um conjunto de pressupostos de possibilidade ou de punição que não se encontram expressos na lei, mas sim noutras normas de categoria hierárquica igual ou inferior à norma penal em branco[17].

Levantam-se problemas quanto à constitucionalidade de tais

normas, precisamente porque no entender de determinada doutrina,

estas normas seriam inconstitucionais por consistirem numa

violação de uma decorrência do princípio da legalidade que é a

Page 17: Apontamentos Penal i e II

existência de lei penal expressa, mais concretamente a existência

de lei penal certa – “nullum crimen nulla poena sine lege certa”.

A doutrina maioritária defende a constitucionalidade e validade

das normas penais em branco, dentro de certos limites ou desde

que sejam respeitados determinados limites.

Desde que as normas penais em branco contenham os

pressupostos mínimos de punibilidade e de punição, ou seja, que

digam quem são os destinatários e em que posição é que eles se

encontram e que contenham a respectiva sanção; desde que

correspondam a uma verdadeira necessidade que o legislador tem

de tutelar bens jurídicos fundamentais através desta técnica, sob

pena de não o fazendo, a alternativa resultaria da sua

desprotecção, estas normas não serão inconstitucionais.

 

32. Concurso legal ou aparente de normas

Na determinação da responsabilidade criminal dos agentes que

praticam factos penalmente relevantes podem suceder situações de

anulação ou concurso de infracções, sempre que o agente com a

sua conduta cometa uma pluralidade de infracções. As quais podem

traduzir o preenchimento de vários tipos de crimes, ou do mesmo

tipo mais do que uma vez.

A teoria do concurso permite distinguir os casos nos quais as

normas em concurso requerem uma aplicação conjunta, das

Page 18: Apontamentos Penal i e II

situações em que o conteúdo da conduta é absorvido por uma única

das normas.

-         Concurso efectivo ou concurso de crimes: constitui a situação em

que o agente comete efectivamente vários crimes e a sua

responsabilidade contempla todas essas infracções praticadas;

-         Concurso aparente ou concurso de normas: uma vez que a

conduta do agente só formalmente preenche vários tipos de

crimes, na concretização da sua responsabilidade a aplicação de

um dos crimes afasta a aplicação de outro ou outras de que o

agente tenha também preenchido os elementos típicos.

Em rigor não se pode falar em verdadeiro concurso de crimes,

mas tão só em concurso de normas (concurso legal), o qual se

traduz num problema de determinação da norma aplicável[18].

O tema do concurso de infracções deve ser integrado no âmbito

da teoria da infracção, constituindo uma forma de crime.

O que se depreende da prática judiciária, em consonância com a

maioria da doutrina é que a resolução concreta do concurso de

normas opera no momento final da teoria da infracção. Sendo

sempre um dos últimos passos na resolução da responsabilidade

dos intervenientes no crime.

Page 19: Apontamentos Penal i e II

A relação de concurso aparente consagra-se por conexões de

subordinação e hierarquia, podendo identificar-se essencialmente

três tipos de relações:

1)      Relação de especialidade

Uma norma encontra-se numa relação de especialidade em

relação a outra quando acrescenta mais um tipo incriminador, não a

contradizendo contudo.

Neste sentido, vê-se que por força de uma relação de especialidade em que as normas se podem encontrar, tanto pode subsistir a norma que contenha a moldura penal mais elevada, como a norma que contenha a moldura penal mais baixa.

2)      Relação de subsidiariedade

Nos casos em que a norma vê a sua aplicabilidade condicionada pela não aplicabilidade de outra norma, só se aplicando a norma subsidiária quando a outra não se aplique. A norma prevalecente condiciona de certo modo o funcionamento daquela que lhe é subsidiária. Distinguem-se dois tipos:

a)    Subsidiariedade expressa: é a própria lei que afirma expressamente que uma norma só se aplica se aquela outra não se puder aplicar;

b)    Subsidiariedade implícita ou material: resulta quando em face de um raciocínio imperativo, se chega à mesma conclusão, ou seja, quando por força de uma interpretação verificar-se que a relação que existe entre as normas não pode deixar de ser uma relação de subsidiariedade.

Existem tendencialmente ou em princípio quatro grandes situações em que as normas se encontram numa relação de subsidiariedade implícita ou material:

Page 20: Apontamentos Penal i e II

1º    Diz-se que as incriminações de perigo ou os crimes de perigo se encontram numa relação de subsidiariedade implícita ou material em relação aos crimes de lesão.

2º    Casos em que subsiste uma imputação a título negligente e doloso, sendo certo que a responsabilidade por facto negligente é subsidiária à imputação por facto doloso;

3º    Diferentes formas de participação ou autoria;

4º    Entre as condutas de omissão e por acção.

3)      Relação de consunção

Quando um certo tipo legal de crime faça parte não por uma definição do código, mas por uma forma característica, a realização de outro tipo de crime, ou seja, quando tem uma discrição típica suficientemente ampla que abranja os elementos da discrição típica da outra norma.

A finalidade das normas concentra-se sempre na tutela de bens jurídicos, sendo possível identificar em cada tipo legal a ratio da conduta descrita.

A relação de consunção acaba por colocar em conexão os valores protegidos pelas normas criminais. Não deve confundir-se com a relação de especialidade, pois ao contrário do que se verifica naquela relação de concurso de normas, a norma prevalecente não tem necessariamente de conter na sua previsão todos os elementos típicos da norma que derroga.

[15] Arts. 24º/2, 25º/2, 30º/1 e 2, 33º/1 e 3, 30º/4 CRP.

[16] Normas incriminadoras: são aquelas que criam crimes ou que agravam os pressupostos de punibilidade ou de punição.

[17] Exs arts. 278º, 213º/1-b, 150º/1 CP.

[18] O concurso estabelecido entre as normas revela-se meramente aparente, sendo de excluir a aplicação cumulativa, pois não se aplicam todos os preceitos normativos.

VIGÊNCIA TEMPORAL DA LEI

Page 21: Apontamentos Penal i e II

 

33. Introdução

Uma das decorrências do princípio da legalidade é que não há crime sem uma lei anterior ao momento da prática do facto que declare esse comportamento como crime e estabeleça para ele a correspondente sanção[19].

Em Direito Penal vigora portanto a lei do momento da prática do facto. Mas a aplicação externa ou exacerbada deste princípio poderia levar a situações injustas. Donde o princípio geral em matéria penal é de que as leis penais mais favoráveis aplicam-se sempre retroactivamente.

 

34. Aplicação da lei

Qual é a lei que no momento do julgamento o juiz devia aplicar ao

arguido? É a lei do momento da prática do facto, que é a mas

favorável, do que a lei posterior, ainda que essa lei tenha revogado

aquela. Existe ultra-actividade da lei penal, porque se aplica sempre

a lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido.

O momento da prática do facto é sempre aquele em que, no caso de se tratar de um crime comissivo ou por acção, o agente actuou, ou, no caso de se tratar de um crime omissivo, no momento em que o agente deveria ter actuado.

Duas situaçõesUma nova lei vem descriminalizar uma determinada conduta. Como

deve reagir a ordem jurídica? Se a conduta vier a ser descriminalizada não deve ser condenado por essa conduta, mesmo que o agente tenha já sido condenado e se encontre detido (art. 2º/2 CP). Cessa os efeitos penais – princípio da aplicação da lei mais favorável.

Regime que se revela concretamente mais favorável, deve-se aplicar este regime ao agente.

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No entanto a lei no art. 2º/4 CP coloca um limite para o efeito retroactivo – “salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado”. É diferente dos efeitos da descriminalização.

Há autores que defendem a inconstitucionalidade do art. 2º/4 CP, outros defendem a sua constitucionalidade.

 

35. Constitucionalidade do art. 2º/4 CP

A Constituição de 1976 foi revista em 1982, o Código Penal é de 1982 e entrou em vigor em 1983; donde, o legislador penal deveria ter conhecimento das disposições constitucionais e se legislou ordinariamente consagrando esta ressalva, é porque a ressalva não é incompatível com o disposto na Constituição, por ser legislação posterior.

Não é incompatível o art. 2º/4 CP com o art. 29º/4 CRP, na medida em que a Constituição manda aplicar retroactivamente a lei de conteúdo mais favorável ao arguido, e arguido tem um sentido técnico-jurídico rigoroso: uma coisa é arguido, outra é condenado e outra ainda é réu.

O art. 2º/4 CP, diz que a lei penal de conteúdo mais favorável só não se aplica ao condenado, e isto porque, se já há trânsito em julgado da sentença condenatória, é porque esse indivíduo já foi condenado, não se estando a falar em arguido mas sim em condenado.

A entender-se o contrário, ou seja, a entender-se a aplicabilidade da lei mais favorável, pôr-se-ia em causa o princípio “ne bis in idem”, e também se poria em causa a intangibilidade no caso julgado.

Se realmente se pudesse aplicar retroactivamente esta lei mais favorável, então estava-se a julgar outra vez o mesmo indivíduo pela prática do mesmo facto. E o princípio “in bis in idem”, de que ninguém deve ser julgado/condenado duas vezes pelo mesmo facto (art. 29º/5 CRP) era posto em causa.

 

36. Inconstitucionalidade do art. 2º/4 CP

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O Direito Penal tem carácter subsidiário, é o princípio da subsidiariedade do Direito Penal. Logo o Direito Penal só deve intervir quando se torne necessário a sua intervenção.

Não faz sentido que o Estado, equacionando uma valoração eminente a um determinado crime, se abstenha a partir de determinado momento de impor uma determinada punição; como também não faz sentido continuar a aplicar uma punição que o Estado recusou num determinado momento.

Esta ressalva é inconstitucional porque viola o princípio da igualdade, e também existe o princípio da igualdade dos cidadãos na administração da justiça.

Um outro argumento para a inconstitucionalidade da ressalva do art. 2º/4 CP, substancialmente não existem diferenças a que se aplique retroactivamente as normas que operam a descriminalização, das normas que não operam uma descriminalização mas principalmente uma despenalização, porque nos dois casos se altera o regime penal.

O que está em causa é uma diferente valoração do legislador quanto aos factos considerados crimes.

 

37. Leis temporárias e leis de emergência

As leis temporárias são as leis que marcam “ab initio”, à partida, o seu prazo de vigência; são as normas que se destinam a vigorar durante um determinado período de tempo pré-fixado. São leis temporárias que caducam com o “terminus” da vigência que pré-fixaram.

As leis de emergência são as leis que face a determinado circunstancialismo anormal vêm penalizar, criminalizar determinadas condutas que até aí não eram consideradas crime, ou vêm efectivamente agravar a responsabilidade penal por determinado facto que até aí já era crime, mas em que esse agravamento se deve tão só a situações ou circunstâncias anormais que reclamam a situação de emergência.

Page 24: Apontamentos Penal i e II

Ressalva-se no art. 2º/3 CP, que continua a ser punido o facto

criminoso praticado durante o período de vigência de uma lei de

emergência.

Significa que, não obstante no momento do julgamento a lei já não estar em vigor por já ter caducado ou já ter sido revogada, deve continuar a ser punido pelo facto que praticou durante esse período em que a lei estava efectivamente em vigor.

Em bom rigor, no âmbito das leis temporárias não há uma verdadeira sucessão de leis no tempo, porque:

-         A lei é temporária em sentido estrito, não necessita de nenhuma outra lei para que se possa afirmar uma sucessão de leis penais no tempo; a lei é só uma só faz sentido falar em sucessão de leis penais no tempo e em retroactividade ou irretroactividade quando estão em causa mais do que uma lei, pelo menos duas leis. Aqui a lei é só uma.

-         Não há uma lei diferente, não há uma sucessão de regimes, donde também não faz sentido falar em aplicação retroactiva porque a lei é sempre a mesma.

 

38. Aplicação da lei no espaço

Não são só conexões geográficas que o legislador utiliza para tornar aplicável a lei penal portuguesa, para que seja competente para julgar factos penalmente relevantes.

O legislador utiliza também a conexão dos valores ou dos interesses lesados ou ameaçados de lesão com as actividades criminosas, o valor dos interesses postos em causa pela prática do crime. Isto evidencia-se em sede de dois princípios:

-         Princípio da tutela ou da protecção dos interesses nacionais.

-         Princípio da universalidade ou de aplicação universal.

Vindo estes princípios consagrados no art. 5º CP.

Page 25: Apontamentos Penal i e II

 

39. Princípio da tutela ou da protecção dos interesses nacionais

Quando se trate de crimes expressamente consagrados no art. 5º/1 CP, são crimes que o Estado português entende ferirem a sensibilidade jurídica nacional, são crimes que põem em causa valores ou interesses fundamentais do Estado português.

Os factos penalmente relevantes ocorridos em território nacional, a lei portuguesa é competente para os julgar – princípio da territorialidade.

Este princípio da territorialidade é depois complementado pelo princípio do pavilhão ou da bandeira pelo qual independentemente do espaço aéreo ou das águas, a lei penal portuguesa também se aplica a factos praticados no interior de navios com pavilhão português, ou a bordo de aeronaves registadas em Portugal.

 

40. Princípio da universalidade ou da aplicação universal

São de alguma forma crimes que todos os Estados têm interesse

em punir. De um modo geral, independentemente da nacionalidade

dos seus autores, são crimes que reclamam uma punição universal

e daí que as ordens jurídicas se reclamem competentes para fazer

aplicar a sua lei penal a esses factos descritos no art. 5º/1-b CP.

Da alínea c) do art. 5º/1 CP retira-se o princípio da nacionalidade, também dito princípio da personalidade activa ou passiva.

O princípio da nacionalidade activa diz basicamente que a lei portuguesa se aplica a factos praticados no estrangeiro por portugueses. É de harmonia com o princípio da nacionalidade activo, que a lei penal portuguesa aplica-se a factos praticados no estrangeiro que sejam cometidos por cidadãos nacionais.

Page 26: Apontamentos Penal i e II

O princípio da nacionalidade passiva diz que a lei penal portuguesa se aplica a factos cometidos no estrangeiro contra portugueses.

Condições para o princípio da nacionalidade:

1º     Condição: os agentes sejam encontrados em Portugal (art. 5º/1-b CP);

2º     Condição: que os factos criminosos “sejam também puníveis pela legislação do lugar em que foram praticados, salvo quando nesse lugar não se exerça poder punitivo”;

3º     Que “constituam crime que admite extradição e esta não possa ser concedida”, não se admite a extradição de cidadãos nacionais.

Esta condição prevista na 3ª condição, só funciona cumulativamente quando se trate de um caso de nacionalidade passiva, quando se trate de um crime praticado no estrangeiro por um estrangeiro contra um, português.

 

41. Teoria da ubiquidade

Visa abranger os delitos à distância.

O art. 7º CP é importante: se considerar que a conduta ou o resultado típico tiveram lugar em Portugal, então pode-se considerar que o facto ocorreu em território nacional; e aí poder-se-á aplicar a lei penal portuguesa por força do preceituado no art. 4º CP e que consagra o princípio da territorialidade, uma vez precisamente que este princípio vem dizer que a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados no território nacional.

Uma vez em sede do art. 5º CP vai-se analisar caso a caso:

-         Se será o princípio da protecção dos interesses nacionais, poderá ser um dos crimes elencados no aliena a);

-         Se haverá afloramento do princípio da universalidade (alínea b));

-         Se será eventualmente o princípio da nacionalidade activa ou passiva previsto na alínea c); e aqui verificar se estão reunidas

Page 27: Apontamentos Penal i e II

todas as condições previstas e se existem ou não restrições à aplicabilidade da lei portuguesa[20].

 

42. Princípio da dupla incriminação e princípio da especialidade

O princípio da dupla incriminação, significa que só é admitida a extradição se o Estado português considerar também crime o facto pelo qual se pede a extradição ou o facto que fundamenta a extradição.

O princípio da especialidade significa que a extradição só pode ser concedida para o crime que fundamenta o seu pedido, não podendo o extraditado ser julgado por uma infracção diferente e anterior à que fundamenta o pedido de extradição.

Por outro lado, também em princípio não se admite a extradição quando seja prioritariamente aplicável a lei penal portuguesa.

 

43. Princípio da administração supletiva da justiça penal (art. 5º/1-e CP)Admite que o Estado português julgue um criminoso que tenha

cometido um crime no seu país de origem contra um cidadão desse país e fuja para Portugal. Pressupostos:

-         Que o agente se encontre em Portugal;

-         A extradição seja pedida;

-         Seja possível a extradição mas não seja admitida.

O art. 6º define as condições gerais de aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos por estrangeiros:

-         Princípio de que ninguém pode ser responsabilizado por um facto mais do que uma vez (art. 29º CRP);

-         Art. 6º/2 CRP, depois de ver que lei penal é competente, tem-se que ter em atenção a lei do lugar onde o facto foi cometido, e mais favorável, mas que puna o facto.

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As condições no art. 6º/2 CP não funciona quando está em causa o princípio da protecção dos interesses nacionais (art. 6º/3 CP).

[19] Nullum crimen nulla poena sine lege previa

[20] O art. 6º CP só tem conexão com o art. 4º CP e com os princípios da universalidade/protecção de interesses nacionais e nacionalidade.

TEORIA DO FACTO PUNÍVEL OU TEORIA DA INFRACÇÃO

 

44. Introdução

É a teoria que tem por objecto o estudo do crime. O conjunto dos pressupostos de punibilidade e de punição que são comuns a todos os crimes, a todos os factos tipificados na lei como crime.

Os requisitos comuns é que um facto deve ter para ser considerado criminoso e para que dele decorra uma responsabilidade jurídico-penal para o seu autor, para o agente daquela infracção.

Pode-se formalmente definir crime como um comportamento humano que consiste numa acção penalmente relevante, acção essa que é típica, ilícita, culposa e punível.

Esta teoria permite desde logo uma aplicação certa, segura e racional da lei penal.

Passa-se dum casuísmo, de verificar caso a caso o que é crime para através da teoria da infracção, ter-se uma vocação generalizadora de factos penalmente relevantes, de factos criminosos.

E através do estudo destas categorias analíticas pode-se determinar a responsabilidade jurídico-penal duma pessoa, pode-se firmá-la ou excluía, através duma análise de subsunção progressiva.

 

45. Acção penalmente relevante

É todo o comportamento humano dominado ou dominável pela vontade.

Através deste conceito, já se está a excluir a responsabilidade jurídico-penal de comportamentos que provêm não de pessoas mas de animais.

Ter-se-á depois de verificar o seguinte: se está em presença de um comportamento humano dominado pela vontade, tem-se de ver se esse comportamento humano preenche ou não um tipo legal de crime.

Tem-se de ver se essa acção preenche a tipicidade de um dos tipos previstos na parte especial do Código Penal, ou então em legislação penal lateral.

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Para isso é preciso verificar se essa acção é típica, isto é, é necessário verificar se estão preenchidos os elementos objectivos[21] e subjectivos[22] de um tipo legal.

Como se verifica se a acção é típica?

Tem-se efectivamente de analisar esta categoria que é a tipicidade, tem-se de verificar se aquela actuação humana se subsume ao tipo normativo na previsão dos seus elementos objectivos e subjectivos.

Depois, tem-se de ver se o elemento objectivo do tipo está preenchido.

O elemento subjectivo geral do tipo é o dolo. Tem-se de se ver então o que é o dolo: consiste na consciência e vontade de realizar os elementos objectivos de um tipo legal.

Estando preenchida a tipicidade, vai-se verificar que esta categoria analítica que é composta por elementos subjectivos e objectivos, estando integralmente preenchida indicia a ilicitude.

 

46. Ilicitude

A ilicitude num sentido formal, é a contrariedade à ordem jurídica na sua globalidade, de um facto ilícito é um facto contrário à ordem jurídica, contrário ao direito.

Mas numa óptica material, o facto ilícito consiste numa danosidade social, numa ofensa material a bens jurídicos.

Em princípio da lei penal só tipifica factos que são contrários ao direito. Mas a ilicitude indiciada pelo facto típico ou pela tipicidade pode ser excluída.

Pode estar excluída pela intervenção de normas remissivas, que vêem apagar o juízo de ilicitude do facto típico, são as designadas causas de justificação que, a estarem presentes, justificam o facto típico, excluindo a ilicitude indiciada pela própria tipicidade.

Mas pode acontecer, que preenchido um tipo mediante uma acção penalmente relevante e a ilicitude indiciada pelo tipo, pode ser que não se verifique nenhuma causa de justificação ou de exclusão da ilicitude.

Na maior parte dos casos em que as pessoas cometem crimes não estão a actuar ao abrigo de nenhuma causa de exclusão da ilicitude.

 

47. Culpa

É a categoria analítica do facto punível.

Sabendo-se que só se pode formular um juízo de censura de culpa sobre um imputável, porque as penas só se aplicam a quem seja susceptível de um juízo de

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censura de culpa; àquelas pessoas a quem não for susceptível formular um juízo de censura de culpa aplicam-se medidas de segurança, é nomeadamente o caso dos inimputáveis e dos menores de 16 anos.

Logo, para que o juízo de culpa possa ser formulado é preciso que o agente tenha capacidade de culpa. O agente não tem capacidade de culpa se tiver menos de 16 anos, ou se for portador de uma anomalia psíquica ou de um estado patológico equiparado.

Mas para além de ter capacidade de culpa, o agente também tem de ter consciência da ilicitude do facto que pratica; e para além da capacidade de culpa e da consciência da ilicitude é preciso, para se formular sobre o agente um juízo de censura de culpa, que o agente não tenha actuado em circunstâncias tão extraordinárias que o desculpem.

 

48. Punibilidade

Para além de o facto ter consistido numa acção típica, ilícita e culposa, é ainda preciso que seja punível.

Então chega-se à conclusão que por vezes existem determinados factos praticados no seio de acções penalmente relevantes, típicas, ilícitas culposas, mas contudo os agentes não são punidos. E porque é que não há punibilidade em sentido estrito?

-         Ou porque não se verificam condições objectivas de punibilidade;

-         Ou então porque se trata de uma isenção material, no caso de desistência;

-         Ou porque se trata de uma causa pessoal de isenção de pena.

Porque é que se fala numa subsunção progressiva?

Porque quando se analisa a responsabilidade jurídico-penal de alguém, tem-se de analisar detalhadamente todas estas categorias.

Ainda que intuitivamente se possa dar automaticamente a resposta, tem-se de percorrer estas etapas porque, por hipótese, se chegar à conclusão que aquele comportamento não foi dominado nem tão pouco era dominável pela vontade humana, imediatamente se nega a responsabilidade criminal do agente.

Os tipos, a não ser quando a lei expressamente o diga, são sempre dolosos.

O estudo analítico do crime, da teoria da infracção, vai permitir:

-         Por um lado, fazer uma aplicação certa, segura e uniforme da lei penal;

-         Por outro lado, vai ter uma vocação de subsunção progressiva.

Mas se hoje, entende-se que o crime é uma acção típica, ilícita, culposa e punível, esta tripartição entre tipicidade, ilicitude e culpa é uma conquista dogmática da Escola

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Clássica. E àEscola Clássica segue-se cronologicamente a Escola Neo-clássica, e a esta segue-se a Escola Finalista.

Todas estas escolas teorizam o crime tripartindo-o, dizendo que era uma acção típica, ilícita e culposa. Agora, o que cada uma destas escolas considerava como integrante de cada uma destas categorias analíticas é que diverge.

Escola Clássica:

-         Beling/Van Listz;

-         Acção – naturalista (acção natural);

-         Tipicidade – correspondência meramente externa, sem consideração por quaisquer juízos de valor; só elementos objectivos e descritivos;

-         Ilicitude – formal;

-         Culpa – psicológica (inserção de todos os elementos subjectivos – dolo e negligência).

-         Criticas – os factos penalmente relevantes com negligência e os comportamentos omissos.

Escola Neo-clássica:

-         Prof. Figueiredo Dias;

-         Acção – negação de valores;

-         Tipicidade – o tipo tem também elementos normativos e determinados crimes têm também na sua tipicidade elementos subjectivos;

-         Ilicitude – material;

a)    Permite graduar-se o conceito de ilicitude;

b)    Permite a descoberta ou a formação de causas de justificação.

-         Culpa – censurabilidade: pressupostos da culpa – capacidade de culpa, consciência da ilicitude, exigibilidade;

-         Os conceitos de acção social e a posição de Figueiredo Dias, renúncia a um particular conceito de acção e os conceitos de:

a)    Tipo indiciador;

b)    Tipo justificador ou tipo do dolo negativo;

-         A teoria dos elementos negativos do tipo.

Escola finalista:

-         Wessel;

Page 32: Apontamentos Penal i e II

-         Acção – final;

-         Tipicidade – o dolo é um elemento subjectivo geral dos tipos;

-         Ilicitude – conceito de ilicitude pessoal – o desvalor da acção e do resultado;

-         Culpa – normativa; elementos da culpa.

Todos estes sistemas partem duma análise quadripartida do crime, como acção típica, ilícita e culposa.

 

49. O sistema clássico

Parte de uma concepção positiva, mecânica, mesmo naturalista, lógica da teoria da infracção.

O conceito de acção para os clássicos é visto como um conceito naturalista da acção, como um movimento corpóreo, um esforço muscular ou nervoso que produz uma alteração objectiva do mundo real.

O tipo ou tipicidade é a correspondência externa de um comportamento considerado acção uma disposição legal, à discrição legal de um tipo legal de crime.

Mas a tipicidade era vista do ponto de vista meramente externo ou objectivo sem nenhuma consideração de valor.

A ilicitude é uma categoria separada. Para os Clássicos a ilicitude é vista numa óptica meramente formal, ou seja, como contrariedade à ordem jurídica na sua globalidade. Um facto ilícito é um facto contrário à lei.

Não vem permitir uma graduação do conceito de ilicitude, porque se em sentido formal, a ilicitude significa contrariedade à ordem jurídica, se o facto ilícito é o facto que contraria a ordem jurídica, donde contraria a lei, e o facto lícito é o facto que não contraria a lei, então só se pode afirmar que um comportamento é ou não é ilícito, é ou não é contrário à ordem jurídica.

Quanto à culpa, para os Clássicos, era nessa categoria dogmática do facto punível que se incluíam todos os elementos subjectivos. Portanto, a ilicitude e a tipicidade eram meramente objectivas. Tudo quanto fossem elementos subjectivos estaria na culpa.

A culpa era vista de uma óptica psicológica, porque a culpa corresponde à ligação psicológica entre uma pessoa e o seu comportamento, e essa ligação poderia ser uma ligação dolosa ou uma ligação negligente.

Logo, o dolo e a negligência são meras formas de culpa.

A tipicidade é meramente objectiva. É depois em sede de culpa que se terá de verificar que relação existe entre o agente e o seu facto, para se poder afirmar uma culpa meramente psicológica.

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50. Criticas ao sistema Clássico

A primeira crítica diz respeito ao conceito de acção. Este conceito de acção como movimento corpóreo que produz a alteração objectiva no mundo exterior é um conceito criticável por várias razões.

Mas talvez a crítica mais forte que se pode tecer ao conceito de acção dos clássicos é precisamente a omissão porque a responsabilidade penal é afirmada por factos cometidos por acção, mas também por omissões penalmente relevantes.

O conceito de acção dos clássicos deixa de fora as omissões, ou os crimes omissivos.

Daí que os clássicos tenham reformulado um pouco esta noção, dizendo então que a acção homicida é a acção que se esperava que o agente tivesse.

Em relação à ilicitude, sendo uma ilicitude meramente formal, só nos permite afirmar se um comportamento, se um facto, se uma acção, é ou não ilícita, não nos permitindo graduar o conceito de ilicitude.

Em relação à culpa.

Sendo a culpa vista numa óptica meramente psicológica, pergunta-se como é que os Clássicos explicam a culpa negligente, mormente os casos de negligência inconsciente.

Nos comportamentos dolosos, o agente conhece e quer empreendida com determinado resultado típico, ou assumir uma determinada conduta consubstanciada num tipo legal de crime.

 

51. Sistema Neo-clássico

É desenvolvido na Alemanha a partir dos anos 20, procurando “limar” alguns defeitos ou arestas do sistema clássico.

A acção para os Neo-clássicos:

Vêem dizer que não é importante verificar se ouve ou não um movimento corpóreo que produziu uma alteração objectiva no mundo exterior, porque as actuações humanas são pautadas por determinadas valorações.

O que interessa é efectivamente o valor que está subjacente a um determinado comportamento. Assim, os Neo-clássicos passam a ver a acção (o crime) como a negação de valores através de um comportamento. Portanto, o crime é todo aquele comportamento que nega valores.

Klaus Roxin entende que o que é importante em sede de Direito Penal, em sede comportamental são tão só os factos ou as acções voluntárias, isto é, aqueles comportamentos dominados ou domináveis pela vontade.

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Dentro da vertente Neo-clássica surge outro conceito de acção, que é a acção social, desenvolvida por Smith.

Este autor defende que mais importante que tudo para afirmar a existência duma acção penalmente relevante é verificar se aquele comportamento, se aquela actuação deve ser tido como uma acção em termos sociais. Isto é, se socialmente aquele comportamento merece a qualificação de acção.

E isto porque, desde logo, há acções que à prática, podem parecer negar valores, mas que não devem ser acções penalmente relevantes de harmonia com a própria concepção social de acção.

A tipicidade, os Neo-clássicos vêm dizer que a tipicidade é composta por uma série de elementos, e o tipo não é valorativamente neutro, implica já um juízo de valor para quem preenche a tipicidade. Referem que o tipo tem também elementos normativos, elementos que, descrevendo entidades do mundo real, carecem duma interpretação complementar pelo recurso a normas.

Para estes autores, o tipo é composto por elementos positivos e por elementos negativos:

-         Elementos positivos: aqueles que fundam positivamente a responsabilidade penal do agente;

-         Elementos negativos: são as causas de justificação que, quando relevantes, justificam o facto típico.

A culpa para os Neo-clássicos, não é uma culpa psicológica, como pretendiam os Clássicos, mas é antes um conceito que é integrado já por um critério de censurabilidade assente na existência de determinados pressupostos, nomeadamente a capacidade de culpa e a consciência da ilicitude.

A culpa é já uma culpa com ingredientes normativos e implica um juízo de censurabilidade pela prática de um facto.

 

52. Criticas ao sistema Neo-clássico

O conceito de acção: um comportamento humano que nega valores. Ora, na negação de valores cabe não só o comportamento activo, como existem também omissões que podem de igual modo lesar valores.

Portanto, aqui neste conceito de crime como comportamento socialmente relevante que lesa valores, já se pode enquadrar de alguma forma o comportamento omissivo ou a omissão, coisa que ficava de fora do conceito meramente causal e naturalístico de acção dos Clássicos.

Há determinados comportamentos cuja apreensão da negação ou de valores só pode ser dada pela finalidade do comportamento, ou da acção.

Os Neo-clássicos não incluíam o dolo em sede de tipo ou de tipicidade.

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O dolo é um elemento da culpa, ou uma forma de culpa, porque só excepcionalmente a tipicidade é integrada por elementos subjetivos, chamados elementos subjetivos específicos, com a intenção de apropriação no crime de furto, etc.

Também os Neo-clássicos não resolvem correctamente problema da negligência e dos comportamentos negligentes.

 

53. Sistema finalista

Os finalistas propõem um conceito de acção que é um conceito de acção final. Chagam à conclusão que o direito, a realidade normativa, não pode aparecer totalmente divorciada e desligada da realidade ôntica, da realidade do ser que é anterior à realidade normativa.

Se o direito visa regular comportamentos humanos, estabelecer regras de conduta, então o direito, sob pena de ser uma falácia, tem de respeitar a natureza ôntica, a natureza do ser, e o que é próprio do ser humano para os finalistas, dentro de um conceito de acção, é o agir com vista à obtenção de um fim servindo-se de conhecimentos objectivos e causais que permitem essa obtenção, este conceito de acção deve ser respeitado em sede de tipicidade.

Portanto, a intenção que preside a uma determinada acção, que é a sua finalidade, deve ser espelhada no tipo. Logo, o dolo que é a intenção, o fim da actuação, deve ser um elemento subjectivo do tipo.

Quanto ao conceito de ilicitude: começa a falar-se de um conceito de ilicitude pessoal.

Actuar ilicitamente já não é tanto actuar contrariamente à ordem jurídica na sua globalidade, como pretendiam os Clássicos (ilicitude formal). Já não interessará tanto actuar lesando bens jurídicos fundamentais, como pretendiam os Neo-clássicos (ilicitude material).

Interessará mais, verificar se aquela pessoa que actua de determinada forma actua ilicitamente, se se lhe pode atacar um juízo de desvalor na acção ou no facto que pratica. Existe aqui uma certa concepção ética do direito.

Dentro deste conceito de ilicitude pessoal de se poder reprovar uma pessoa por adoptar um determinado comportamento, podem-se distinguir dois desvalores:

1)     O desvalor da acção, da conduta empreendida pelo agente;

2)     O desvalor do resultado, em que se traduz o comportamento ou a conduta do agente.

A acção, embora no âmbito dos crimes negligentes seja também desvaliosa [23], por comparação dos crimes dolosos em que o agente actua querendo e conhecendo um determinado resultado, o desvalor da acção nos crimes dolosos é muito superior.

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Quanto à culpa.

Os finalistas têm um conceito de culpa puramente normativo.

A consciência da ilicitude, a capacidade de culpa e a exigibilidade dos comportamentos passam a ser elementos da culpa. Faltando um destes elementos da culpa, já não é possível formular sobre uma pessoa um juízo de culpa.

A capacidade de culpa consiste no fundo em a pessoa ter capacidade para avaliar as exigências. São incapazes de culpa:

a)     Os inimputáveis em razão da idade (menores de 16 anos);

b)     Os portadores de anomalias psíquicas, que são inimputáveis em razão da anomalia psíquica.

A consciência da ilicitude é um elemento autónomo da culpa.

 

54. Criticas ao sistema finalista

O conceito de acção, é um conceito de acção final e os finalistas nunca conseguiram com este conceito justificar muito bem os crimes de negligentes. Sendo assim também para as omissões.

Daí que quem segue a sistemática finalista opte por uma quadripartição do facto

punível, em que se distingue:

-         Crime doloso por acção;

-         Crime doloso por omissão;

-         Crime por acção negligente;

-         Crime por omissão negligente.

-          

55. Acção

Acção penalmente relevante é todo o comportamento humano, com relevância no mundo exterior, que é dominado ou dominável pela vontade. Fica logo excluído os comportamentos ou as acções das coisas, das forças da natureza e dos animais irracionais.

Dentro do ponto de vista dos fins das penais, quer numa óptica retributiva, quer numa óptica preventiva, não faz sentido criminalizar comportamentos que não sejam dominados pela vontade.

Uma acção penalmente relevante pode consistir:

-         Num comportamento positivo – num “facere”;

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-         Num comportamento negativo – num “non facere”.

A acção tem relevância quer consista num comportamento positivo, quer numa omissão. A nossa lei equipara a omissão à acção; essa equiparação é dada pelo art. 10º CP.

Há duas formas de comportamento omissivo penalmente relevante, que se diferenciam: são designadas omissões puras (ou impróprias) e as omissões impuras (ou impróprias).

Quando o legislador descreve as incriminações, através de normas proibitivas e de normas que pressupõem um determinado resultado típico do tipo, para estar preenchido, para ser consumado exige uma conduta e um resultado.

No caso das omissões impuras nem toda a gente pode incorrer em responsabilidade jurídico-penal por omissão impura, porque o legislador só responsabiliza pelas omissões impuras aqueles sobre quem recaía ou impendia um dever jurídico que pessoalmente o obrigasse a evitar a produção do resultado típico.

Os clássicos consideravam por acção penalmente relevante todo o movimento corpóreo, esforço nervoso ou muscular, que produz uma alteração objectiva no mundo real.

O conceito de acção causal é criticável, isto porque:

-         Torna-se mais difícil de explicar como é que nestes casos das omissões impuras pode haver a acção omissiva;

-         Crime de injúria: este crime só é concebível a partir de uma certa ponderação social daquele comportamento como negação de um determinado valor, só é crime porque socialmente se convenciona que aquele comportamento é uma acção relevante;

-         Este conceito de acção causal não afasta, de per si, comportamentos dominados pela vontade.

Só através de um critério exterior ao próprio conceito de acção causal é que se consegue delimitar os comportamentos com relevância penal e os comportamentos que não têm essa relevância.

Para os Neo-clássicos, o conceito de acção é todo o comportamento que nega valores – é uma negação de valores.

Smith vem com um conceito social de acção, dizendo que acção penalmente relevante é aquilo que é socialmente adequado a ser acção.

Mas este conceito não explica de per si porque é que algumas omissões negam valores não é dada tanto pela acção, mas pela ordem jurídica.

Muitas vezes também, a relevância social da acção não pode estar desligada daquilo que o agente quis.

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Por outro lado, não há dúvida que o mesmo comportamento pode ter vária e diferente relevância social, consoante a intenção do agente.

Finalmente o conceito de acção final para os finalistas.

É todo o comportamento em que a pessoa se serve dos conhecimentos objectivos e causais para atingir uma determinada finalidade.

O processo causal nos crimes omissivos representa especialidades face aos crimes activos. Essas especialidades fazem com que os próprios finalistas tivessem de chegar a uma análise quadripartida do facto punível (ou da infracção):

-         Crimes dolosos por acção;

-         Crimes dolosos por omissão;

-         Crimes negligentes por acção;

-         Crimes negligentes por omissão.

Este conceito de acção final não é compreensível para abarcar todas as realidades e comportamentos que podem dar origem à responsabilidade jurídico-penal.

Há autores que, em relação ao conceito de acção penalmente relevante, como categoria autónoma da punibilidade, porque não é um conceito isento de críticas em qualquer formulação, dizem que nós devemos renunciar a um particular conceito de acção e é própria tipicidade que englobamos os comportamentos por acção e por omissão (Prof. Figueiredo Dias).

Há outros autores que discordam e que dizem que o conceito de acção penalmente relevante e efectivamente uma categoria que não se deve descurar, porque o conceito de acção tem um determinado rendimento em sede de dogmática jurídico-penal.

 

56. Tipo ou tipicidade

Por detrás de cada tipo incriminador, o legislador há-de pretender sempre a tutela de um ou mais bens jurídicos, porque o direito penal encontra a sua justificação na tutela de bens jurídicos fundamentais.

O bem jurídico é algo distinto do chamado objecto do facto ou objecto da acção.

Enquanto que o bem é aquela realidade que não é uma realidade palpável, é um valor, um interesse.

O objecto do facto ou da acção é o “quid” concreto sobre o qual incide a actividade criminosa do agente.

 

57. Estrutura do tipo

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Por detrás de cada tipo legal encontra-se sempre a tutela de um ou mais bens jurídicos.

Os tipos têm na sua descrição elementos descritivos, predominantemente, mas também é concebível que nalguns tipos apareçam elementos normativos. Aliás foram os Neo-clássicos que chamaram à atenção para a existência destes elementos normativos do tipo.

Os elementos descritivos são aqueles elementos que expressam entidades do mundo real, quer no foro exterior quer interior, quer para a sua cabal compreensão, não necessitam de nenhuma valoração suplementar feita pelo recurso a uma norma.

Os elementos normativos são aqueles que, expressando também entidades do mundo real, para seu cabal entendimento carecem do recurso a uma valoração suplementar, do recurso por exemplo a outra norma.

Há quem diga, como Ihering, que não existem elementos puramente descritivos: todos eles são mais ou menos normativos; postulam sempre, para seu cabal entendimento e compreensão, uma valoração suplementar, seja ética, seja de ordem jurídica.

O tipo é integrado sobretudo a partir duma abordagem finalista, por uma estrutura mista: é composto por elementos objectivos e por elementos subjectivos.

Referindo, agora, tão só ao crime comissivo por acção, ou crime doloso por acção, pode-se encontrar os seguintes elementos objectivos do tipo:

a)     O agente;

b)     A conduta ou descrição da acção típica;

c)     O resultado;[24]

d)     O nexo de imputação, também designado de causalidade[25];

e)     Algumas circunstâncias que rodeiam a conduta ou descrição da acção típica.

Estes elementos objectivos do tipo referenciam entidades ônticas que existem independentemente de qualquer representação entre a mente do agente e o facto por ele praticado, por isso se dizem elementos objectivos.

Os elementos subjectivos, são aqueles que pressupõem já uma relação com o foro íntimo do agente, ou seja, entre a representação da mente do agente daquilo que ele pensa e quer aquilo que objectivamente se verifica, por isso se designam elementos subjectivos.

Como elementos subjectivos e no âmbito do crime doloso, encontram-se os chamados elementos subjectivos específicos, que são elementos que têm de existir para que os tipos legais de crime se considerem efectivamente preenchidos. São as especiais tendências, as especiais intenções.

O elemento subjectivo geral será o dolo, no âmbito dos crimes dolosos.

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O dolo consiste no conhecimento e vontade de empreender um determinado tipo legal de crime. O dolo consiste no conhecer e querer os elementos objectivos de um tipo legal de crime.

O dolo apresenta pois, uma estrutura bipartida, integrada por um elemento intelectual que é o conhecimento – o conhecimento de uma determinada realidade objectiva; e um elemento de natureza volitiva, o querer efectivamente essa realidade objectiva de determinada forma.

Nos crimes negligentes, o elemento geral será a negligência.

 

58. Elementos objectivos do tipo especial

a)     Agente

O agente é aquela (s) pessoa (s) que adopta uma conduta típica descrita num determinado tipo legal de um crime e que empreende a realização típica – o agente do tipo legal de crime.

b)     Acção típica ou conduta

A conduta típica, também dita descrição da acção típica, ou tão só a acção típica, aparece como um elemento objectivo do tipo legal de crime e encontra-se efectivamente descrita no tipo.

c)     Resultado

É também um elemento objectivo do tipo, nos chamados crimes materiais ou de resultado: é o próprio resultado típico.

Há crimes em que, para além da descrição da conduta típica, se exige que espaço-temporalmente se desprenda ou se destaque da conduta típica algo diferenciado que é o resultado – o resultado típico – para que o facto possa estar efectivamente consumado.

Nestes crimes materiais ou de resultado, que para além da conduta pressupõe, ainda, para a sua consumação, a verificação do resultado típico.

d)     Nexo de causalidade

Isto traduz-se, em saber se um determinado resultado pode ser imputado a uma conduta do agente; se aquilo que se verifica pode ser efectivamente considerado como obra daquela actuação típica do agente.

É um elemento não escrito do tipo, isto porque, nos crimes materiais ou de resultado, naqueles crimes que se designam normalmente por crimes de forma livre. Ou seja, são crimes cuja obtenção do resultado típico previsto pela norma pode ser obtido, por referência à conduta do resultado típica que é matar, pelas mais diferentes formas.

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Por vezes, muito raramente, o legislador pode pretender dar cobertura literal a esse elemento, ou a este nexo de nexo de causalidade ou de imputação objectiva, e descrevê-lo.

É o que acontece nos chamados crimes de realização vinculada.

Aqui o crime é de realização vinculada, pela descrição do elemento, por uma certa descrição do nexo de causalidade. Um outro elemento não escrito no tipo e que existe apenas nalgumas classificações, ou nalguns tipos de crime – os crimes de omissão impura ou imprópria – é o chamado dever de garante.

Muitas vezes a lei descreve comportamento que considera proibidos e que as pessoas não devem adoptar, porque ao adoptá-los isso importa a obtenção de um determinado resultado lesivo, o qual pode ser obtido quer por via de um comportamento activo ou de uma acção, quer por via de um comportamento omissivo ou de uma omissão.

Para que uma pessoa seja responsabilizada por ter dado origem à produção de um resultado típico proibido pela lei em virtude de uma inactividade, ou em virtude da sua passividade ou omissão, é preciso que sobre essa pessoa impenda um dever jurídico que pessoalmente a obrigue a evitar a produção desse resultado lesivo.

Este dever de garante pode resultar fundamentalmente de três pontos: ou directamente da lei, ou de contrato, ou de uma situação de imergência.

e)     Circunstâncias que rodeiam a conduta

As circunstâncias podem ser, para a nossa lei, ou crimes autónomos, ou então elementos que integram qualificações ou priviligiamentos de tipos legais de crimes.

 

59. Acepções em que se utiliza a palavra tipo

a)     Tipo de garantia, total, ou em sentido amplo

Pretende abranger todos os elementos que concorrem para fundamentar uma responsabilidade criminal, abrangendo simultaneamente não só a categoria analítica da tipicidade mas também as outras categorias dogmáticas como a ilicitude a culpa e a própria punibilidade.O tipo garantia corresponde ao conjunto de pressupostos de punibilidade e de punição de um tipo legal, de um crime.

b)     Tipo iniciador ou tipo em sentido restrito

O tipo abrange tão só a categoria da tipicidade, com a estrutura somente de elementos objectivos e subjectivos.

Podendo-se dizer assim que, tipo indiciador ou tipo em sentido restrito é a correspondência objectiva e subjectiva à definição de um tipo legal de crime. Ou, por outras palavras, com a expressão tipo indiciador, tipo em sentido restrito ou tipo de

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injusto, visa-se a delimitação de um comportamento proibido ou exigido, ao qual se comina uma sanção penal geral e abstractamente estabelecida.

Tipo em sentido restrito, porquê?

Porque o facto de preencher um tipo neste sentido restrito não significa de per si que a pessoa vá ser punida, porque a pessoa pode ter actuado tipicamente, todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo podem estar preenchidos mas a pessoa não ter responsabilidade jurídico-criminal porque, por hipótese, naquele caso actuou em legítima defesa.

E designa-se também tipo indiciador porquê?

Porque uma vez preenchida integralmente a tipicidade, preenchidos integralmente os elementos constitutivo do tipo de crime, formula-se um juízo de valor sobre essa pessoa no sentido de que a tipicidade indicia a ilicitude, a qual pode ser excluída pela intervenção das causas de justificação.

c)     Tipo intermédio

Pretende-se significar que a um comportamento típico acresce simultaneamente um juízo de equidade.

Significa pois, a situação de que alguém cometeu um facto típico em sentido estrito, que é simultaneamente ilícito, ou seja, uma pessoa cometeu um facto que corresponde à descrição objectiva e subjectiva de uma norma legal, não actuando ao abrigo de nenhuma causa de exclusão da ilicitude, ou não actuando ao abrigo de nenhuma causa de justificação.

 

CLASSIFICAÇÃO DOS TIPOS DE CRIME

 

IMPUTAÇÃO OBJECTIVA

 

IMPUTAÇÃO SUBJECTIVA

 

ILICITUDE

 

CULPA

 

COMPARTICIPAÇÃO CRIMINOSA

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[21] Agente, conduta, resultado, nexo de causalidade.[22] Dolo, especiais intenções.[23] Pela inobservância de um dever de cuidado.[24] Nos casos dos crimes materiais ou de resultado.[25] Também nos crimes materiais ou de resultado.  

Caso prático 

 António, cobrador da Carris, foi assaltado em plena viagem de eléctrico.

Com efeito, de repente sentiu um forte puxão pela correia da mala de mão em que guardava o dinheiro, que o fez desequilibrar-se e cair, largando a mala na queda. Só que, tendo sido atacado pelas costas dentro do eléctrico apinhado de gente, não teve tempo nem possibilidade de ver o ladrão. Não obstante, ao recobrar o equilíbrio, imediatamente notou que alguém saltara, com alguma precipitação, do eléctrico em andamento e se lançara numa corrida pela rua acima que mais parecia ser uma fuga. Julgando ter descoberto o assaltante, António pendurou-se no corrimão da porta e, segurando uma pistola que trazia consigo, disparou dois tiros quase simultâneos sobre o dito corredor, Bento, sendo sua intenção fazê-lo parar, por forma a recuperar a mala do dinheiro. Com o primeiro dos tiros atingiu uma das pernas do desafortunado passageiro corredor mas, com o segundo atingiu, por falta de pontaria, uma terceira pessoa, Carlos, causando-lhe a morte. Por acaso, essa terceira pessoa era o verdadeiro ladrão que, segundos antes descera já do eléctrico para se afastar, com aparente tranquilidade, com a mala do dinheiro escondia debaixo do casaco.

Aprecie a responsabilidade criminal de António. António tem uma acção (dar dois tiros) penalmente relevante, porque é um

comportamento humano dominado pela vontade: António não actuou coagido (no âmbito de uma coacção física ou “vis absoluta”); também não actuou no âmbito de nenhum movimento reflexo, nem de sonambulismo ou qualquer outro estado de inconsciência.

A acção de António é um comportamento humano dominado pela vontade que produz uma alteração objectiva no mundo exterior.

De seguida vai-se verificar se essa acção é ou não típica, isto é, se a conduta de António preenche, objectiva e subjectivamente, o tipo. Mas qual tipo?

Aquilo que se identifica imediatamente nesta situação é que António quer atingir Bento, dispara dois tiros que lhe são dirigidos e atinge Bento, mas também atinge Carlos.

Seria mais fácil se houvesses apenas um tiro; mas houve dois tiros, ou seja, pode dizer-se que houve duas acções:

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-         Um tiro dirigido a Bento, que atinge Bento;-         Outro tiro dirigido a Bento, que atinge Carlos.Portanto, tem-se que dividir esta responsabilidade penal, na medida em que

António pratica factos penalmente relevantes em dois objectos.Por outro lado, identifica-se aqui também desde logo uma situação

de “aberratio ictus”, em que o agente visualiza um objecto e atinge outro, não porque tenha confundido os objectos mas precisamente por uma ineficiente execução.

Assim,Em relação a Bento e dentro do primeiro disparo:A intenção do agente era pará-lo para assim conseguir reaver a mala.

Podemos portanto dizer que o agente tem um dolo de ofensas corporais (art. 143º CP).

Assim, vamos verificar se uma primeira acção o tipo do art. 143º CP está preenchido.

Elementos objectivos:Há um agente, António.Há uma conduta – pegar na arma e disparar – que corresponde à conduta

descrita no tipo, que é ofender corporalmente outra pessoa.O resultado típico é o ferimento, a própria ofensa sofrida por Bento na

perna.Há imputação objectiva – firma-se facilmente o nexo de causalidade,

porque é previsível que de um tiro ocorra um ferimento na perna – objectivamente o tipo do art. 143º CP está preenchido.

Elemento subjectivo:Há dolo, o dolo (de tipo) é conhecer e querer os elementos objectivos de um

tipo.O agente conheceu e quis aquilo que fez: o agente conheceu e quis

disparar a arma para ferir o ladrão; o agente quer aquele resultado típico que previamente conheceu. Portanto, há dolo.

Objectiva e subjectivamente o tipo está preenchidoEm relação ao segundo disparo:O agente quer atingir Bento e atinge Carlos. Temos aqui uma situação, já

identificada de “aberratio ictus”.A regra geral[1] será punir agente em concurso efectivo por uma tentativa, é

um facto negligente:-         Tentativa em relação ao objecto que o agente visou, mas não atingiu;-         É um facto negligente em relação ao objecto que o agente não

visualizou, mas que efectivamente atingiu.Aplicando esta solução modelar à nossa hipótese, teríamos então um

concurso efectivo de:-         Tentativa de ofensas corporais em relação a Bento – art. 143º CP;-         Homicídio negligente em relação a Carlos – art. 137º CP.Relativamente à tentativa, temos que provar que os elementos do facto

tentado estão presentes.Em primeiro lugar, a tipicidade do facto tentado vem prevista no art. 22º CP.

Ai se diz que há tentativa quando o agente pratica actos de execução de um crime que decidiu cometer sem que o resultado típico se chegue a verificar.

Assim:

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O agente praticou actos de execução constitutivos do tipo legal de crime (art. 2º/2-a CP), na medida em que disparou a arma, sendo sua intenção ferir Bento[2], mas o resultado típica ofensa corporal – não se chegou a consumar (verificou-se outro objecto).

Neste sentido temos provada e firmada a tentativa do art. 143º CP.Quanto ao art. 137º CP:[3]

Vai-se pressupor que há imputação objectiva porque o agente violou o dever de cuidado que lhe era exigível, de que ele era capaz, ele devia-se certificar se a sua pontaria era suficientemente boa para, com o eléctrico em movimento e estando rodeado de pessoas, não atingir outra pessoa.

Não tendo observado esses deveres de cuidado, não há dúvida nenhuma que a morte de Carlos lhe pode ser imputada.

Assim temos:-         Art. 143º CP, mais tentativa do art. 143º CP (em relação a Bento); e-         Art. 137º CP (em relação a Carlos).Uma vez identificados e firmados os tipos, sabemos que a tipicidade indicia

a ilicitude.Vai-se então ver, dentro destas categoria dogmática da teoria do facto

punível que é a ilicitude, se há ou não causas de justificação ou de exclusão da ilicitude, para podermos concluir se o facto, além de típico, é também ilícito.

Sabemos da matéria de facto que António, quando dispara contra Bento, tem intenção de o parar porque está convencido que Bento é o ladrão.

Por outras palavras, António pensa que está a actuar em legítima defesa quando na realidade não está, porque para isso era necessário que Bento tivesse praticado uma agressão.

Temos então uma situação em que o agente actua com “animus defendendi” (elemento subjectivo da causa de justificação), mas em que avalia mal a realidade porque julga que esta excluiria a ilicitude do seu facto.

Ou seja, o agente está em erro sobre um pressuposto de facto de uma causa de justificação, que é uma situação subsumível ao art. 16º/2 CP, erro sobre uma circunstância que a exigir excluiria a ilicitude do facto.

Assim, em relação a Bento:Os factos típicos que António praticou foram o do art. 143º CP (primeiro

disparo) mais tentativa do art. 143º (segundo disparo).Mas quando os praticou António está em erro sobre um pressuposto de

facto de uma causa de justificação. Se o regime de relevância desse erro nos é dado pelo n.º 2 do art. 16º CP, então exclui-se o dolo.

Nos termos do n.º 3 do art. 16º CP ressalva-se a punibilidade por negligência nos termos gerais.

Então:Em relação às ofensas corporais consumadas (primeiro disparo) o agente

poderá ser responsabilizado por ofensas corporais negligentes, nos termos do art. 148º CP.

Em relação à tentativa de ofensas corporais (segundo disparo):As tentativas em Direito Penal são sempre dolosas, não há tentativa

negligente. Por isso não é possível punir uma tentativa negligente, porque é uma figura que a lei não conhece.

Assim, quanto a este facto o agente não tem responsabilidade criminal.E mesmo que tivesse, por força do preceituado no art. 23º CP uma tentativa

só é punível se ao crime, a ser considerado, corresponder uma pena superior a

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três anos. Como o crime do art. 143º CP tem uma moldura penal de até três anos, também por uma razão de punibilidade o agente não seria unido.

Mas desde logo porque a tentativa é sempre dolosa, não há tentativas negligentes em Direito Penal, o agente não seria responsabilizado.

Assim, podemos concluir que a responsabilidade penal de António para com Bento será de ofensas corporais negligentes nos termos do art. 148º CP, por remissão do n.º 3 do art. 16º CP.[4]

Em relação a Carlos:O agente praticou o facto típico de homicídio negligente (art. 137º CP).Se o facto é típico, vamos ver se também é ilícito, uma vez que sabemos

que a tipicidade indicia a ilicitude. Simplesmente, esse juízo de ilicitude pode ser quebrado por contra-norma, por causas de exclusão da ilicitude ou de justificação, que vêm aprovar o facto.

Recapitulando a matéria de facto nos temos que António, por força de uma “aberratio ictus”, mata Carlos, que na realidade tinha sido o verdadeiro ladrão.

Será que existe aqui alguma causa de justificação que venha a excluir a ilicitude do facto típico?

Na realidade Carlos tinha sido o ladrão. Donde, poderá configurar-se aqui uma situação de legítima defesa. Vamos então verificar se os elementos objectivos e subjectivos da legítima defesa estão preenchidos.

Art. 32º CP:Por parte de Carlos verifica-se a existência de uma

agressão. Agressão, para efeitos de legítima defesa, é todo o comportamento humano que contraria a ordem jurídica e que o defendente não é obrigado a suportar.

No caso concreto essa agressão ofende bens de natureza patrimonial de terceiro.

É uma agressão ilícita porque é contrária à lei (conceito de ilicitude formal), que neste caso consubstancia desde logo um tipo legal de crime que é o furto (ou, virtualmente, roubo, porque houve violência para a subtracção).

É uma agressão actual: há já uma consumação formal, mas ainda não há uma consumação material.

Há várias teses sobre a consumação do crime de furto, nomeadamente a que é defendida pelo prof. Eduardo Correia segundo a qual, não obstante ter havido subtracção da coisa móvel objecto do facto (consumação formal do crime de furto, desde que o agente preencha o elemento subjectivo especifico do art. 203º CP que é a intenção de apropriação ilegítima para si ou para terceiro da coisa furtada), só há de alguma forma verdadeira consumação material do crime quando em relação ao objecto do facto o agente detém para com ele uma certa“posse pacífica”, em que ele se pode comportar como verdadeiro detentor ou titular da coisa furtada.

Ora, neste caso da hipótese ainda não há essa posse pacífica[5].Assim:É uma agressão actual e ilícita, que ofende interesses de natureza

patrimonial de terceiro, sendo esses interesses dignos de tutela jurídico-penal.Vai-se agora ver se o meio é necessário.Em primeiro lugar, a adequação do meio afere-se no caso concreto; o meio

necessário para repelir a agressão actual e ilícita tem que ser o meio menos gravoso para o agressor, mas tem que ser simultaneamente um meio eficaz.

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Uma arma de fogo em determinadas circunstâncias é um meio adequado para repelir a agressão – se (X) está na iminência de uma agressão à sua vida e se utiliza uma arma de fogo para repelir essa agressão, o meio é adequado, ainda que seja previsível a morte do agressor.

Em segundo lugar, a utilização de uma arma de fogo, mesmo que seja para salvaguardar bens de natureza patrimonial, desde que dirigida a um órgão não vital do agressor, é também um meio adequado.

Portanto, a arma de fogo em si nada nos diz quando ao meio ser ou não ser adequado. A legítima defesa (ao contrário do direito de necessidade), não assenta numa ideia de ponderação de interesses: não tem de haver uma sensível superioridade entre o bem que se defende e o bem que se lesa com a defesa.

Daí que se compreenda que o agente, para salvaguardar o seu património (propriedade), possa ferir o ladrão. E ninguém diz que o agente está em excesso de legítima defesa por excesso do meio empregue.

Da mesma forma que para salvaguardar a sua honra ou a sua autodeterminação sexual o agente possa lesar a vida do agressor. Não deixa de estar a actuar em legítima defesa. Na legítima defesa a necessidade do meio não joga com a natureza dos interesses em causa.

Assim, meio necessário será aquele, dentro dos meios que o agente tem à sua disposição, o meio de eficácia mais suave, ou seja, aquele cujas consequências são menos gravosas para o agressor. Mas meio simultaneamente eficaz.

Então, entre uma pedra, um pau e uma arma de fogo, o meio certamente mais suave será a pedra ou mesmo o pau. Mas poderá não ser um meio eficaz, tudo depende das circunstâncias do caso concreto.

Na hipótese, atendendo às circunstâncias, parece que se pode afirmar que o meio utilizado foi um meio necessário.

Assim, uma vez verificada a existência de todos os elementos objectivos da legítima defesa, vai-se agora analisar o elemento objectivo desta causa de justificação que é o “animus defendendi”, consciência e vontade que pessoa tem de se defender.

António não sabe que Carlos é o ladrão, portanto ele não tem consciência da agressão. Sendo assim, ele não pode ter querido repelir a agressão. Logo, falta o elemento subjectivo da justificação.

Então, que o facto é ilícito ninguém dúvida, uma vez que falta um elemento da causa de justificação. Sendo o facto ilícito, como é que vamos responsabilizar o agente?

O que o agente fez, o resultado, no fim de contas foi bem feito, porque Carlos era o ladrão. Mas a acção de António, porque não sabia que Carlos era o ladrão, é desvaliosa. Quando existe desvalor na acção, mas não existe desvalor no resultado, temos a punibilidade por facto tentado.

Então aplica-se analogicamente, mesmo à legítima defesa, o n.º 4 do art. 38º CP e pune-se o agente por facto tentado.

Vimos também em sede própria que relativamente a esta questão a Doutrina não é unânime:

-         Há quem considere, em relação a todas as causas de justificação que, quando estão presentes os elementos objectivos e tão só falta o elemento subjectivo, se aplica a punibilidade por facto tentado;

-         Na perspectiva de outros autores, há que distinguir:

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·        Se as causas de justificação têm, em relação ao elemento subjectivo, uma bipartição estrutural em que é possível distinguir o elemento intelectual e o elemento volitivo, ou seja, consciência da agressão e vontade de se defender, a falta do elemento subjectivo importa a punição por facto doloso consumado;

·        Quando as causas de justificação quanto ao elemento subjectivo pressupõem apenas o elemento intelectual, que é o conhecimento da situação objectiva da justificação (de que é exemplo o consentimento, previsto no art. 38º CP), a falta do elemento subjectivo importa a punição por facto tentado.

-         Há ainda outros autores que negam a existência de elementos subjectivos nas causas de justificação; e, negando-os, os factos estão justificados desde que se encontrem preenchidos os elementos subjectivos

Adoptando agora a primeira solução e aplicando à nossa hipótese analogicamente o n.º 4 do art. 38º CP, temos então que o agente seria punido, relativamente a Carlos, por facto tentado, mas o facto praticado pelo agente foi o homicídio negligente.

Ora, a tentativa é sempre dolosa, não há tentativas negligentes em Direito Penal. Portanto, o agente não seria responsabilizado juridico-penalmente por este facto.

Mas mais ainda e isto é que é importante [6]: a justificação nos factos negligentes prescinde sempre do elemento subjectivo da justificação, sob pena de os factos negligentes nunca poderem ser justificados.

O que é que se quer dizer com isso?Se António está na iminência de ver a sua integridade corporal lesada e,

para repelir essa agressão, pega na pasta e dá com ela na cabeça da pessoa que o vai ofender corporalmente, António, do ponto de vista jurídico-penal tem uma acção penalmente relevante que é típica: preenche os elementos objectivos do crime de ofensas corporais, bem como os elementos subjectivos porque actuou com dolo, conheceu e quis ferir o seu agressor.

O facto é típico mas está justificado pela intervenção desta causa de justificação, porque estão preenchidos os elementos objectivos da legítima defesa: António actuou com consciência de que estava perante a iminência dessa agressão.

Agora, o que é que acontece se António está na iminência de ser alvo de uma agressão e distraidamente atira a pasta ao ar, porque está a brincar com ela, e depois a pasta cai na cabeça daquela pessoa que estava na iminência de ofender corporalmente António?

Do ponto de vista jurídico-penal António pratica um crime de ofensas corporais negligentes, porque quando partiu a cabeça àquela pessoa não conheceu nem quis aquele resultado, isso resultou de uma falta de cuidado.

Logo, repare-se:Se na primeira situação, em que o agente dolosamente quer partir a cabeça

ao seu agressor, o facto está justificado[7].Nesta segunda situação, e que há um facto negligente, em que há um

desvalor do resultado mas não há um desvalor da acção, o facto tem de estar necessariamente justificado. Se o facto doloso está justificado, o facto negligente que é menos desvalioso também tem de estar justificado,

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presidindo-se do elemento subjectivo da justificação, da consciência que o agente tinha de que estava na iminência de ser vítima de uma ofensa corporal.

Se fosse necessário esse elemento, nunca poderia haver justificação de factos negligentes, porque o agente para ter consciência de que estava perante a iminência de uma agressão, para repelir essa agressão tinha de sempre de actuar querendo repelir essa agressão. E portanto, tinha sempre de actuar dolosamente.

-         Se os factos dolosos são justificados – e para esses é preciso a existência do elemento subjectivo da justificação;

-         Os factos negligentes são justificados, prescindindo-se do elemento subjectivo da justificação.

Portanto, na nossa hipótese, como se trata de um facto negligente (homicídio negligente) prescinde-se do elemento subjectivo da justificação.

Donde, como o agente objectivamente está perante uma situação de legítima defesa, o facto por ele praticado esta justificado.

[1] Só excepcionalmente, nas situações de “aberratio ictus”, e quando a matéria de facto nos permitir concluir isso, é que nós punimos o agente em concurso efectivo por uma tentativa do facto em relação ao objecto visado, em concurso com um facto consumado com dolo eventual em relação ao objecto atingido.

Mas isto apenas nos acasos em que a lei seja de molde a permitir-nos concluir que em relação ao objecto não representado mas atingido pelo agente houve ainda a possibilidade de dolo eventual.[2] Decisão de cometimento do crime – elemento subjectivo[3] Embora não tenha sido ainda estudada a tipicidade do facto negligente vamos pressupô-la.[4] Esta remissão não é automática, tendo que ser analisada caso a caso.[5] Para quem considera o crime de furto como um crime de estado vê assim a questão resolvida para efeitos de legítima defesa.Desta forma, indo por um ou por outro caminho, está justificada a actualidade da agressão para efeitos de legítima defesa.[6] É uma especialidade dos crimes negligentes[7] Num facto doloso podemos distinguir entre desvalor da acção e desvalor do resultado

PENAL II

 HOMICÍDIO SIMPLES

 1.     Introdução

O crime de homicídio descrito no art. 131º CP constitui o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida.

É a partir deste tipo legal fundamental que a lei edifica os restantes tipos de crimes contra a vida, ora qualificando-o, ora privilegiando-o, ora especializando as formas de ataque ao bem jurídico ou tipo subjectivo de ilícito e o tipo de culpa congruente.

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O bem jurídico protegido pelo homicídio, não é simplesmente a vida humana, mas, mais rigorosamente, a vida de pessoa já nascida.

É a Constituição a impor a defesa da vida humana. O direito à vida funda-se na norma constitucional que consagra a sua inviolabilidade e proíbe a pena de morte (art. 24º/2 CRP). Decorre da consagração deste direito o comando ao legislador ordinário para que incrimine o homicídio e os comportamentos perigosos para a vida alheia mais relevantes.

 2.     O tipo objectivo de ilícito

O tipo objectivo de ilícito do homicídio consiste em matar outra pessoa. Atrás desta aparente simplicidade esconde-se uma série de problemas dos mais complexos e de difícil e contestável solução com que depara a doutrina do direito penal; e não só do direito penal ou mesmo do direito, senão que de todo o pensamento filosófico e científico que tem a ver com o homem.

 3.     O início da vida ou início da vida extra-uterino

Duas teses se apresentam como possíveis e têm, na verdade, sido defendidas na literatura jurídico-penal. Segundo uma dessas teses a vida começaria, tal como para o direito civil é prescrito pelo art. 66º/1 CC, com a completação do processo de nascimento (o “nascimento completo e com vida”). Segundo uma outra tese a protecção dispensada pelo crime de homicídio iniciar-se-ia não com a conclusão, mas pelo contrário com o início do acto de nascimento.

A vida relevante para efeitos de homicídio ou de crimes de perigo para a vida do capítulo I é a vida extra-uterina.

O momento de início da vida verifica-se quando se iniciar contracções ritmadas, intensas e frequentes que previsivelmente conduzirão à expulsão do feto.

A capacidade de vida autónoma do feto não é pressuposto da qualidade de pessoa para efeito de integração do tipo objectivo de ilícito. Suficiente é que a criança, no referido momento inicial do nascimento, esteja viva. Por isso o crime de homicídio é possível relativamente a crianças que, pelos mais diversos motivos não tenham nenhuma possibilidade de continuar a viver fora do ventre materno.

 4.     O termo da vida

O momento a partir do qual cessa a tutela jurídico-penal dispensada por aquele tipo. A qualidade da pessoa para efeito do tipo de ilícito objectivo do homicídio termina com a morte. O critério adoptado é o da morte cerebral. Morte é assim, para este efeito, a destruição anatómica estrutural do cérebro na sua totalidade; nunca, portanto, uma mera lesão cerebral ou mesmo a chamada “morte neocortical”.

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O tipo objectivo de ilícito do homicídio deve pois, dizer-se que ele se realiza com a morte de uma pessoa, isto é, com o causar a morte de pessoa diferente do agente.

O “causar morte” significa que tem de se estabelecer o indispensável nexo de imputação objectiva do resultado à conduta.

 5.     O tipo subjectivo de ilícito

O tipo subjectivo de ilícito do homicídio previsto no art. 131º CP, exige o dolo, em qualquer das suas formas contempladas no art. 14º CP, directo, necessário ou eventual. Trata-se por isso de um tipo relativamente ao qual se verifica aquilo que a doutrina chama de total congruência entre a sua parte objectiva e a parte subjectiva. Importa todavia sublinhar que, para se verificar dolo eventual relativamente a condutas objectivamente e mesmo extremamente perigosas, não basta que o agente preveja o perigo de resultado e se conforme com ele, tornando-se antes sempre necessário que aquele preveja e se conforme com o próprio resultado; e o mesmo se dirá para as acções cometidas em estado de afecto, por mais que as regras da experiência mostrem que as acções como a levada a cabo se segue normalmente o resultado morte

 6.     As causas de justificação

Consentimento: seja ele presumido ou consentido (arts. 38 e 39 CP) não exclui, em caso algum, a ilicitude do homicídio doloso, mas pode conduzir a que a punição venha ocorrer, antes que pelo art. 131º CP, pelo art. 134º CP.

 7.     As formas especiais do crime

a)     TentativaA tentativa do cometimento do homicídio é sempre punível por força

do disposto no art. 23º/1 CP. Dada a particular gravidade do crime em questão, há por vezes tendência jurisprudencial para antecipar o mais possível o início da tentativa, reputando actos de execução o que verdadeiramente não passa de actos preparatórios, em princípio não puníveis[1].

b)     ComparticipaçãoEm matéria de autoria e de cumplicidade valem completamente as

regras gerais. Particulares dificuldades suscita todavia a questão de saber se, relativamente a um mesmo crime de homicídio, pode um comparticipante ser punido por homicídio simples e outro por homicídio qualificado ou privilegiado.

c)     ConcursoO crime de homicídio do art. 131º cede sempre relativamente à sua

qualificação como homicídio privilegiado (art. 133º CP) ou qualificado (art. 132º CP).

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Uma tentativa de homicídio (nomeadamente sobre a forma de tentativa impossível, nos termos do art. 23º/3 à contrario CP) pode porem já concorrer, em concurso efectivo, com um homicídio por negligência nos termos do art. 137º CP. Já porem relativamente ao homicídio doloso consumado, o crime do art. 137º CP só aparentemente pode concorrer com o do art. 131º CP.

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8.     Tipos de culpa “exclusivas”A estrutura dos homicídios é refractária a que sejam “puros” tipo de

ilícito, ou seja, erguidos em função do maior ou menor desvalor material dos comportamentos homicidas que registam, e só nessa base consideráveis.

A lei usa terminologia de onde se conclui que é a culpa que desencadeia a aplicação destas normas. Tem de haver maior censurabilidade ou perversidade do agente para que o homicídio qualificado (art. 132º CP) produza efeitos; tem de haver menor culpa, para que o privilégio do art. 133º CP actue; o mesmo acontece nos arts. 134º e 136º CP.

Os homicídios dolosos são tipos de ilicitude e culpa, ou seja: eles não contêm só, nem determinadamente, aspectos da figura-de-delito que respeitem à danosidade do comportamento contêm aspectos que retratam a atitude do autor, mais ou menos censurável.

[1] Esta tendência é injustificável e deve ser decididamente combatida.

 

 

HOMICÍDIO QUALIFICADO

 

9.     Introdução

O critério generalizador, dos exemplos-padrão consubstancia-se num tipo de culpa, cuja função é a de caracterizar de forma autónoma uma atitude do agente actualizada no facto como especialmente censurável ou perversa.

A delimitação da noção do tipo de culpa é fundamental na apreensão do critério generalizador utilizado pelo legislador. A sua existência e a sua missão no âmbito de um conceito material de culpa, capaz de converter-se numa medida susceptível de elevação ou diminuição para além dos limites fixados pela graduação da ilicitude.

O homicídio qualificado não é mais que uma forma agravada do homicídio “simples” previsto no art. 131º CP.

A qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou

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perversidade” do agente referida no art. 132º/1 CP, verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no art. 132º/2 CP. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador. Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º/2 CP.

Estes elementos são típicos de certas classes de crimes, designadamente das que constituem grupos valorativos que exprimem um maior ou menor desvalor da atitude relativamente ao tipo fundamental. Ou seja, são típicos os crimes a que se pode chamar variantes que constituem especificações dependentes através da adição ao tipo fundamental de elementos que exprimem uma agravação ou uma atenuação quer do conteúdo da ilicitude quer do conteúdo da culpa dando origem a tipos qualificados ou privilegiados.

Face ao art. 132º CP não parece porém que se possa defender outra doutrina que não seja a de ver ali, elementos constitutivos do tipo de culpa. É exacto, que muitos dos elementos constantes das diversas alíneas do art. 132º/2 CP, em si mesmos tomados, não contendem directamente com uma atitude mais desvaliosa do agente, mas sim com um mais acentuado desvalor da acção e da conduta, com a forma de cometimento do crime. Ainda nestes casos, porém, não é esse maior desvalor da conduta o determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado. Só assim se podendo compreender e aceitar que haja hipóteses em que aqueles elementos estão presentes e, todavia, a qualificação vem em definitivo a ser negada. Tido isto tudo na conta devida não há objecções de princípio a que se defenda que a agravação da culpa é em todos os casos suportada por (ou se reflecte necessariamente em) uma correspondente agravação (gradual-quantitativa) do conteúdo de ilícito. 

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10. Princípio da legalidade

O que está aqui em causa é o maior grau de culpa e não de ilicitude porque nem todas as condutas do n.º 2 envolvem uma maior ilicitude. A ilicitude tem que estar definida e não estar em aberto “são estas entre outras”, por isso a técnica legislativa pelo legislador é incompatível com a ilicitude. A atitude interna do agente tem a ver com a individualidade (culpa).

O fundamento de qualificação é a culpa agravada devido a especial censurabilidade ou perversidade porque o ilícito é o mesmo do 131º, e por isso o n.º 2 tem um carácter exemplificativo, exemplos padrão, “são estas entre outras”. O n.º 1 do 132º é que tipifica, é que qualifica o homicídio e o n.º 2 apenas nos ajuda a orientar quanto ao fundamento para qualificar o crime, o n.º 1 é que é o critério para qualificar.

Primeiro vou ao n.º 2 para ver se se levantam indícios e depois ao n.º 1 para ver se preenche o critério da especial censurabilidade ou perversidade. Pode-se preencher o n.º 1 qualificando o crime sem preencher o n.º 2 porque são exemplos.

Há autores que entendem que é um tipo misto de ilicitude e culpa (Teresa Beleza, Costa Pinto, Fernanda Palma).

A qualificação assenta na culpa, critério para qualificar é a “especial censurabilidade ou perversidade”, o agente actuou com uma exigibilidade acrescida.

Os exemplos do n.º 2 só levam à qualificação se estiver preenchido o n.º 1, o agente actua com culpa agravada, o facto típico e ilícito é o mesmo do 131º a diferença está na culpa (é mais grave a culpa do agente).

Para Fernanda Palma, Teresa Beleza e Costa Pinto a culpa agravada é um critério para a qualificação, mas não é o único fundamento, integram também uma ilicitude acrescida (há um misto de ilicitude e culpa). Na alínea a) o comportamento do agente revela um maior desvalor da acção (da conduta), é um grau mais grave de ilícito e se fosse só a culpa não era necessário descrever as situações

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porque a culpa é um juízo de censura. Na regra de determinação da pena (moldura penal) não se pode ter um tipo de crime que assenta só na culpa (art. 71º n.º 2), tem de ter também como fundamento a ilicitude.

Na posição defendida pelo Prof. Fernando Silva é exclusivamente um tipo de culpa, a alínea a) envolve um maior desvalor da acção, mas nem todas as alíneas o envolve, o preenchimento do n.º 2 não implica a qualificação, tem que estar presente o critério qualificador. O legislador deu-nos exemplos padrão para nos orientar no n.º 2. O art. 71º CP funciona no âmbito da determinação concreta da pena, e ao integrar o agente no 132º a determinação concreta da medida da pena é abstracta (de 12 a 25 anos) e só depois na determinação concreta da pena é que se chama à colação o art. 71º.

Estrutura do homicídio qualificado:

Começa-se pelo art. 131º (homicídio doloso), depois vai-se ao art. 132º n.º 1 (é preciso especial censurabilidade ou perversidade), de seguida vai-se ao n.º 2 para ver se a conduta se integra nalguma das alíneas, e de seguida volta-se ao n.º 1 para ver se o critério está presente.

Duas características do n.º 2 do art. 132º:

1)    “É susceptível” (não funciona automaticamente), o facto de o n.º 2 estar preenchido não significa que seja homicídio qualificado, só o é se estiver preenchido também o n.º 1.

     Contêm apenas elementos indiciadores (duplo efeito):

-         Positivo (só se integra numa das alíneas, em principio revela especial censurabilidade ou perversidade, indicia a circunstância mas pode não revelar).

-         Negativo (se o caso não se integra em nenhuma das alíneas, a partida não revela especial censurabilidade ou perversidade, mas pode revelar)

2)    “Entre outras” – carácter exemplificativo, não há um carácter taxativo, pode-se fazer uma analogia orientada.

Fundamentos:

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-       Relação entre o agente e a vítima, n.º 2 a)

-       Motivações do agente, n.º 2 c)

-       Modos de praticar o facto, n.º 2 c)

Duplo critério para aplicar o art. 132º num caso não previsto nas alíneas:

        Aproximação quantitativa, (se se pode aplicar analogamente numa das alíneas).

        Integração do critério qualitativo, (saber se revela especial censurabilidade ou perversidade).

Para o Prof. Fernando Silva – é compatível com a constituição, porque mesmo que se integre no n.º 2 tem de se ver se a conduta revela especial censurabilidade ou perversidade (faz-se analogia para chamar à colação certas circunstâncias), não é inconstitucional, porque o critério está presente no n.º 1.

Para Figueiredo Dias – não se viola um princípio constitucional (princípio da legalidade), porque estamos a falar da culpa.

Conclusão: As circunstâncias do n.º 2 não funcionam automaticamente, e as circunstâncias têm um carácter meramente exemplificativo.

 

11. Do ilícito penal

A estrutura do ilícito penal não pode deixar de reflectir a concepção que se adopte acerca da essência da ilicitude. Esta, por seu turno, depende decisivamente da posição que se perfilhe sobre a natureza das normas jurídicas, em especial das normas jurídico-penais.

Assim, uma conduta é ilícita na medida em que contradiz uma norma jurídica (ilicitude formal) e, ao contrariá-la, lesa ou põe em perigo os bens jurídicos protegidos pela norma (ilicitude material).

As normas incriminadoras constituem verdadeiros imperativos endereçados a todos, impondo a quem o seu conteúdo afecta uma conduta conforme ao direito. Daí que se deva concordar que a

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vontade dirigida ao fim a alcançar pertence ao tipo de ilícito dos crimes dolosos.

A norma incriminadora não é só norma de determinação, é também norma de valoração. Desde logo porque a razão de ser da própria imperatividade deve buscar-se no valor que há-de ser realizado pela conduta prescrita.

 

12. Da culpa jurídico-penal

A culpa é, ao lado da ilicitude, o outro pressuposto material fundamental da punibilidade.

Desde logo, importa referir que a problemática da culpa pode ser vista a partir da sua consideração como categoria dogmática ou dando corpo ao princípio jurídico-constitucional da culpa. A culpa a apreciar em ambos os casos é, obviamente, uma e a mesma entidade.

De acordo com aquele princípio, a culpa é fundamento da pena e limite da sua medida, ou seja, não há pena sem culpa, e a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa. Esta decorrência do princípio da culpa, a que há que reconhecer a natureza de princípio constitucional da política criminal, integrante da Constituição em sentido material. O princípio da culpa deduz-se do reconhecimento da dignidade da pessoa humana (art. 1º CRP), do direito à integridade moral e física (art. 25º/1 CRP) e do direito à liberdade (art. 27º/1 CRP), podendo acrescentar ainda que constitui pressuposto de várias outras disposições constitucionais. De acordo com este princípio, a pena pressupõe a culpa, e esta consiste num juízo de censura dirigido ao agente que, tendo podido actuar segundo o dever, optou por agir ilicitamente, evidenciando uma atitude contrária ao direito. Ou seja, o fundamento de uma agravação ou de uma atenuação que altera uma moldura penal pode não ser um fundamento de ilicitude, mas apenas um fundamento da culpa.

O princípio da culpa visa a realização da justiça, limitando assim as exigências que de outros pontos de vista se façam à responsabilização do autor, e a maximização da liberdade individual, duas funções que não têm a ver com a teoria dos fins das penas.

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13. Tipos de culpa agravadores da pena

O especial tipo de culpa do homicídio doloso é em definitivo conformado através da verificação da “especial censurabilidade ou perversidade” do agente. À primeira vista dir-se-ia que, traduzindo-se a culpa jurídico-penal, em último termo, em um juízo de censura, apelar tipicamente para uma especial censurabilidade só poderia ter o significado tautológico e, como tal, inútil e equívoco, de apelar para uma culpa especial.

A ideia de censurabilidade constitui conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No art. 132º CP trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Nesta medida, pode afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias de um maior grau de ilicitude.

Com a referência à especial perversidade tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinado e constitui indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto, pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se “à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor”.

Importa salientar que a qualificação de especial se refere tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada.

A natureza jurídica que se atribui aos exemplos-padrão, no art. 132º CP é a de determinação de uma moldura penal agravada, e, de modo algum, a de elementos do tipo. A relação entre uma especial maior

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culpa e uma moldura penal agravada está perfeitamente de acordo com o princípio da culpa.

a)     Artigo 132º/2-a CP: “ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima”:

Neste, se tem pretendido encontrar uma particular justificação para a ideia de que circunstâncias como esta seriam particularmente indicativas de que a agravação do homicídio tem de que ver também com um maior desvalor do tipo de ilícito, só por essa via relevando para a verificação de um tipo de culpa especialmente agravado.

b)     Artigo 132º/2-b CP: “praticar o facto contra a pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez”:

Consagrou-se neste exemplo-padrão cuja estrutura valorativa se liga, de forma clara, à situação de desamparo da vítima em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, independentemente do carácter insidioso ou não do meio utilizado para matar.c)     Artigo 132º/2-c CP: empregar tortura ou acto de crueldade para

aumentar o sofrimento da vítima”:

Traduz-se em o agente se servir de uma forma de actuação causadora da morte em que o sofrimento físico ou psíquico infligido, pelo acto de matar ou pelos actos que o antecedem, ultrapasse sensivelmente, pela sua intensidade ou duração, a medida necessária para causar a morte, com a precisão, em todo o caso de que o acto de crueldade tem de ter lugar para aumentar o sofrimento da vítima: relação meio/fim.

d) Artigo 132º/2-d CP: “ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil”:

É estruturado com apelo a elementos estritamente subjectivos, relacionados com a especial motivação do agente. Ser determinado matar por:

        Avidez: significa a pulsão de satisfazer um desejo ilimitado de lucro à custa de uma desconsideração brutal da vida de outrem;

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        Pelo prazer de matar: significa o gosto ou a alegria sentidos com o aniquilamento de uma vida humana, sem que todavia eles devam reconduzir-se a uma “anomalia psíquica” nos termos e para os efeitos do art. 20º CP;

        Para excitação ou para satisfação do instinto sexual: significa que a motivação requerida se verifica não apenas quando a morte da vítima visa determinar a libertação do agente da pulsão sexual, mas também sempre que aquela serve a prática de actos necrófilos ou simplesmente visa despertar do instinto sexual;

        Por qualquer motivo torpe ou fútil: significa que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana.

e)     Artigo 132º/2-e CP: “ser determinado por ódio racial, religioso ou político”;

f)       Artigo 132º/2-f CP: “ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime”:

Não é necessário que este outro crime venha a ter lugar, ainda que mesmo só sob a forma tentada, bastando que, no plano do agente, o homicídio surja (relação meio/fim) como determinado, ainda que só de forma eventual, pela perpetração de um outro crime. Como necessário não é, por outro lado, que o homicida seja agente do outro crime, podendo este ser cometido por “terceiro”. Como necessário é ainda que o homicídio seja cometido com dolo intencional ou directo, bastando dolo eventual.

g)     Artigo 132º/2-g CP: “praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum”:

Juntam-se nesta alínea três constelações que se deixam reduzir à mesma estrutura através da ideia da particular perigosidade do meio

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empregado e da consequente maior dificuldade de defesa em que se coloca a vítima.

i) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas:

Constitui uma circunstância cujo exacto sentido pode dar lugar a fundadas dúvidas. Pode pensar-se desde logo que, para que ela tenha lugar, necessário se torna que ocorra no quadro de uma associação criminosa que tenha pelo menos três membros.

O teor literal do preceito, nomeadamente na parte em que se serve do adjectivo “juntamente”, parece indicar que o exemplo-padrão só deverá considerar-se preenchido quando no facto comparticipem pelo menos três agentes em co-autoria: “juntamente com outro ou outros” é precisamente a expressão de que se serve o art. 25º CP para definir a co-autoria; além de que o cúmplice verdadeiramente não pratica um facto de homicídio, mas participa em um facto praticado por outrem.

ii) Utilizar meio particularmente perigoso: é servir-se para matar de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que crie ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes.

iii) Crimes de perigo comum: são os constantes dos arts. 272º a 286º CP sendo certo que a ligação entre este exemplo-padrão e o tipo de culpa deve fazer-se através da falta de escrúpulo em princípio revelada pela utilização de um meio adequado à criação ou produção de um perigo comum.

h)     Artigo 132º/2-h CP: “utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso”:

Meio “insidioso” será todo o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas à do veneno – do ponto de vista pois do seu carácter enganador, sub-reptício, dissimulado ou oculto.

i)       Artigo 132º/2-i CP: “agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas”;

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j)       Artigo 132º/2-j CP: “praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Ministro da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das Regiões Autónomas ou do território de Macau, Provedor de Justiça, governador civil, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente ou examinador, ou ministro de culto religioso, no exercício das suas funções ou por causa delas”;

l)       Artigo 132º/2-l CP: “ser funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade”.

 

14. Relações entre tipo objectivo, o tipo subjectivo de ilícito e o tipo de culpa.

O homicídio qualificado é, tal como o homicídio simples um tipo unicamente punível a título de dolo sob qualquer uma das suas formas inscritas no art. 14º CP: intencional, directo ou eventual. Uma vez que os exemplos-padrão não fazem parte do tipo de ilícito, uma de duas: ou se mantém em plena congruência entre o tipo objectivo e tipo subjectivo de ilícito – caso em que o dolo não será necessária nem a representação, nem a vontade de realização dos elementos integradores dos exemplos-padrão, tudo se passando nesta sede como se de um homicídio simples se tratasse; ou, em nome de argumentos específicos de protecção e defesa do agente, análogos aos que dão corpo ao princípio da legalidade, se exige que o agente tenha representado e querido os elementos que constituem os exemplos-padrão, pelo menos aqueles “que respeitem ao lado objectivo do ilícito, isto é, ao desvalor objectivo da conduta”.

 

15. As formas especiais do crime

a)     Tentativa

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Se o tipo objectivo de ilícito do homicídio qualificado é, como tem vindo a defender-se, exactamente o tipo objectivo de ilícito do homicídio simples, então nada haverá nesta matéria a apontar de particular quanto à necessária caracterização dos actos constitutivos de uma tentativa como actos de execução para efeito do disposto no art. 22º CP; nem tão-pouco quanto ao dolo que os deve abranger. Questão será saber se – partindo uma vez mais da factualidade representada pelo agente – os actos de execução praticados revelam já a especial censurabilidade do agente. Em caso afirmativo o agente deve ser punido por tentativa de homicídio qualificado (arts. 22º, 23º e 132º CP); em caso negativo por tentativa de homicídio simples (arts. 22º, 23º e 131º CP).

Situação diversa será a de o homicídio simples se ter consumado mas as circunstâncias que fundamentam o exemplo-padrão terem sido apenas tentadas.

A concepção vincadamente objectiva que caracteriza a tentativa no Código Penal refere-se igualmente nos critérios em que se funda a definição de actos de execução, nas diversas alíneas do art. 22º/2 CP; são actos de execução:

1)     Os actos que “preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime”;

2)     Os actos que “são idóneos a produzir o resultado típico; e

3)     Os actos que “segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, são de natureza a fazer esperar que se lhe sigam os actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores”, ou seja, os que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime ou são idóneos a produzir o resultado típico.

Característica comum a esta definição tripartida de actos de execução é a referência aos elementos constitutivos do tipo de crime, integrando, deste modo, “a exigência da criação de um perigo de lesão do bem jurídico tutelado para se afirmar a existência de um acto executivo”.

Existe uma norma na parte geral que prevê a punibilidade da tentativa. Esta resulta, assim, da conexão daquela norma da parte geral (o art. 23º CP) com cada um dos tipos da parte especial, atento o

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art. 74º CP que contem os termos da atenuação especial ex vi art. 23º/2 CP. Deste modo se estende à tentativa a punibilidade do crime consumado. O homicídio tentado é sempre punível (arts. 131º e 23º/1 e art. 132º CP).

b)     Comparticipação

A técnica utilizada pelo Código Penal em matéria de qualificação do homicídio simplifica altamente as questões relativas à autoria e participação em matéria do homicídio qualificado. Se todas as circunstâncias contidas no art. 132º/2 CP não são mais que casos exemplares que podem conduzir à integração do tipo de culpa agravado consagrado no art. 132º/1 CP, e se, como é indispensável à afirmação do dolo, para integração daquele tipo tem de partir-se das representações do agente – fica então próxima a afirmação de que a contribuição de cada um dos agentes para o facto tem de ser valorada autonomamente, enquanto fundamentadora ou não de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente respectivo.

A apreciação a efectuar deverá incluir a contribuição de cada comparticipante, valorando-a autonomamente enquanto reveladora ou não de uma especial censurabilidade ou perversidade[2]. A acessoriedade prescreve a aplicação da moldura penal modificada apenas quando se trate de uma modificação com natureza típica, ou seja, de uma regulamentação legal fechada das circunstâncias modificativas da pena.

No art. 132º CP a cláusula geral exemplificada – a especial censurabilidade ou perversidade – integra um tipo de culpa. O que significa que o legislador entendeu fornecer ao juiz um critério decisivo, à luz do qual têm, de ser consideradas as diversas alíneas do art. 132º/2 CP e a própria noção de Leitblid dos exemplos-padrão do homicídio qualificado. Daí que não baste um aumento – ainda que essencial – do grau de ilicitude para se afirmar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, devendo também verificar-se uma atitude particularmente rejeitável ou desviada relativamente aos valores.

Dir-se-á que um aumento essencial da ilicitude se reflecte, em regra, num aumento também ele essencial da culpa.

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c)     Concurso

Não pode aceitar-se a existência de problemas de concurso nem entre a verificação de diversos exemplos-padrão, nem entre tipo fundamental (art. 131º CP) e regra de determinação da moldura penal do grupo valorativo de homicídio especialmente grave, nem entre esta e a regra de determinação da moldura penal contida no art. 133º CP. E isto é assim, em virtude destes preceitos não conterem verdadeiros tipos de crime, mas apenas regras modificativas das molduras penal do homicídio.

Dai que não possa encarar-se como concurso ideal o caso do homicídio qualificado em que se verifica o preenchimento de dois ou mais exemplos-padrão.

d)     A proibição da dupla valoração

A proibição do duplo aproveitamento ou da dupla valoração de elementos do tipo de crimes na determinação da medida concreta da pena está prevista no art. 72º/2 CP. Nestes termos é proibido aproveitar mais uma vez circunstâncias que levaram à formação da moldura penal, e que são pressupostos da sua aplicação, na fixação da medida da pena no caso individual. A fundamentação desta proibição é evidente: os elementos do tipo de crime foram já ponderados no âmbito da determinação da moldura penal, e deste modo, constituem já pressupostos da medida concreta da pena, que há-de ser escolhida dentro dos limites daquela moldura, sem que os referidos elementos a possam voltar a influenciar.

 

[2] Teoria da acessoriedade limitada

 

HOMICÍDIO PRIVILEGIADO

 

16. Fundamento e consequências

O art. 133º CP é construído com base em três conceitos-tipo de natureza emocional, embora de forma mais acentuada nuns casos que noutros – a emoção violenta; a compaixão e o desespero; e com

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base num conceito-tipo de natureza ético-social – um motivo de relevante valor social ou moral. Qualquer destes conceitos-tipo deve sempre ser entendido objectivamente, isto é, é matéria de facto que, ou não exige o recurso a valorações, ou então exige o recurso a valorações em boa medida extra-jurídicas.

O art. 133º CP assenta ainda em duas cláusulas de valoração. Uma delas é particular e refere-se apenas à emoção violenta, a compreensibilidade, e a outra é geral, a diminuição sensível da culpa do agente.

O art. 133º CP consagra hipóteses de homicídio privilegiado em função, em último termo, de uma cláusula de exigibilidade diminuída legalmente concretizada. A emoção violenta compreensível, a compaixão, o desespero ou um motivo de relevante valor social ou moral privilegiam o homicídio quando e apenas quando “diminuam sensivelmente” a culpa do agente. Esta diminuição não pode ficar a dever-se nem a uma imputabilidade diminuída, nem a uma diminuída consciência do ilícito, mas unicamente a uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente.

Sempre que o juiz considere verificados os pressupostos de que depende o privilegiamento, deve necessariamente renunciar a uma atenuação especial da pena. O princípio da proibição da dupla valoração de que o disposto no proémio do art. 71º/2 CP constitui apenas uma manifestação, proíbe que o mesmo substrato considerado para integração do art. 133º CP seja de novo valorado para efeito de atenuação especial da pena. Mas é evidente que, para além dos elementos descritos no art. 133º CP, podem no caso convergir outros e diferentes elementos relevantes para efeito dos arts. 71º e 72º CP. Nada impede nestes casos que, determinada a medida da pena face ao art. 133º CP aquela seja depois especialmente atenuada face às regras especiais de determinação da pena contidas nos arts. 72º e 73º CP.

 

17. Os elementos privilegiadores

a)     Compreensível emoção violenta que domina o agente

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Ao colocar como circunstância privilegiante do crime o estado emocional do autor, o art. 133º CP acentua: no grau de emoção e a necessidade de ela se verificar no momento da prática do facto, como causa do crime (“foi levado a matar”). Trata-se pois, de um estado psicológico que não corresponde ao normal do agente, encontrando-se afectadas a sua vontade, a sua inteligência e diminuídas as suas resistências éticas, a sua capacidade para se conformar com a norma.

A compreensível emoção violenta é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser considerado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível.

O requisito da “compreensibilidade” da emoção representa por isso ainda uma exigência adicional relativamente ao puro critério de menor exigibilidade subjacente a todo o preceito.

b)     Compaixão

Há casos de homicídio por compaixão em que o autor age em autêntica situação de desespero ou dele próxima: a decisão homicida só surge ao fim de uma longa e desgastante luta interior que acaba por se tornar insuportável.

Nas basta a valia objectiva da compaixão, como se o homicídio fosse menos ilícito pela realização de um valor, embora de menor valia que a vida, a ordem jurídica quer proteger. É necessário que o motivo exerça uma forte pressão sobre o agente de forma a alterar a sua capacidade de determinação, afectar a sua vontade diminuir as suas capacidades.

c)     Desespero

Embora muito próximo da emoção violenta, distingue-se dela porque coincide, em geral, com situações que se arrastam no tempo, fruto de pequenos ou grandes conflitos que acabam por levar o agente a considerar-se numa situação sem saída, deixando de acreditar, de ter esperança.

A lei, mais uma vez, não exige apenas que o agente esteja desesperado, mas que tal desespero diminua sensivelmente a sua culpa.

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Os casos de desespero não podem identificar-se com os casos de emoção violenta compreensível quanto ao fundamento da atenuação. Nos casos de desespero o art. 133º CP além dessa emoção, exige que ela diminua consideravelmente a culpa, o que só poderá entender-se se levar em conta os motivos do autor. Motivos que ter a ver com o amor maternal ou a salvaguarda da própria dignidade, em casos em que não é exigível que alguém suporte um tal grau de humilhação que ponha em causa aquela dignidade.

d)     Motivo de relevante valor social ou moral

Esta é uma cláusula cujo conteúdo é manifesto e tem a ver com sociedades concretas e com morais concretas. Não poderão estar em causa apenas os valores sociais dominantes ou a moral dominante. Em qualquer caso a cláusula há-de ter conteúdo objectivo. Esse conteúdo deve ser positivamente valorado, sob pena de se abrir porta a todo o tipo de fanatismos ou de fundamentalismos. Está aqui em causa uma menor ilicitude, dado o valor que a ordem jurídica atribui àqueles motivos. Porém, esse menor grau de ilicitude não basta para fundamentar o privilégio, funcionando como mero indício da diminuição sensível da culpa. Também se exige que o agente esteja dominado pelos motivos em causa, para que eles revistam um carácter de essencialidade e, por isso, afectem o seu normal discernimento e a sua capacidade de se determinar de acordo com essa vontade.

 

18. As formas especiais do crime

a)     Tentativa

Nos termos combinados dos arts. 23º/1 e 133º CP a tentativa é punível.

b)     Comparticipação

Se o homicídio se torna privilegiado por força de circunstâncias que actuam ao nível da culpa, então é perfeitamente possível que um comparticipante deva ser punido por homicídio privilegiado, outro por homicídio simples ou qualificado.

c)     Concurso

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Só pode dar-se entre os elementos objectivos, nunca entre tipos de culpa respectivos, jamais pode coincidir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente com uma diminuição sensível da sua culpa. 

 

19. Tipo subjectivo

O crime do art. 133º CP é doloso, como resulta da sua conjugação com o art. 13º CP. Qualquer das modalidades do dolo, previstas no art. 14º CP (directo, necessário ou eventual) permite preencher o tipo subjectivo.

O dolo deve abranger todos os elementos que integram o tipo objectivo – deve referir-se à acção e ao objecto da acção.

Assim qualquer problema de erro sobre as circunstâncias do facto deve resolver-se nos termos do art. 16º/1 e 3 CP.

 

20. Culpa

As várias situações previstas no art. 133º CP são elementos subjectivos do tipo de culpa, isto é, é exigida uma circunstância externa, mesmo que só representada pelo autor, que haja efectivamente incidir na formação da vontade. Mas, verificados os elementos subjectivos do tipo de culpa, nem por isso se presume uma diminuição sensível da culpa do agente. Ela deve ser comprovada em cada caso concreto.

HOMICÍDIO A PEDIDO DA VÍTIMA 21. Introdução, razão de ser do art. 134º CP

O homicídio a pedido da vítima é um homicídio sui generis neste aspecto: há um diálogo do homicida com a vítima, por via do qual esta lhe exprime o seu consentimento para que a mate e provoca até, em princípio, a própria decisão do homicida, de modo a torná-lo sensível às suas razões para não querer viver mais.

Há uma margem jurídica de relevância do consentimento que leva a retirar efeitos jurídicos da opção de prescindir de viver, para além daqueles que no art. 134º CP directamente retirou, mas segundo um critério de concordância com a axiologia dessa norma.

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O homicídio a pedido da vítima configura uma forma privilegiada do crime fundamental de homicídio.

A caracterização da infracção como forma não autónoma do crime fundamental, significa que o homicídio a pedido da vítima reproduz o núcleo essencial do ilícito típico de um crime (“matar outra pessoa”).

O art. 134º CP configura uma norma especial, mesmo em relação ao art. 132º CP, face ao qual emerge como “mais especial”. Em caso de concurso de ambas as normas, o art. 134º CP afasta (por razões de especialidade) o art. 132º CP.

O regime de privilégio radica, por seu turno, no “pedido sério, instante e expresso” da vítima, que determina tanto a redução do ilícito como da culpa do agente. No pedido actualiza-se a autonomia e a autodeterminação da vítima bem como a sua renúncia à tutela (penal) do bem jurídico. Com a consequente redução do conteúdo do ilícito – ao menos na vertente dodesvalor da acção. Enquanto isto é do lado do agente, avulta o “pensamento fundamental de que, face à insistência da vítima, ele terá agido sob a influência de representações de algum modo altruístas e será, por vias disso, menos merecedor de pena do que o homicida comum”.

 22. Conduta típica

Para além de matar outra pessoa, elemento de comunicabilidade com o crime fundamental do homicídio (art. 131º CP), o que singulariza o homicídio a pedido da vítima e explica o regime de privilégio que a lei lhe dispensa, é o facto de a produção da morte resultar do exercício autoresponsável da autodeterminação da vítima. Para tanto prescreve a lei um conjunto de exigências adicionais, vertidas na fórmula: “determinado por pedido sério, instante e expresso que ela lhe tenha feito”.

Com a exigência do pedido quer a lei significar que não basta o simples consentimento da vítima ou qualquer atitude passiva equivalente. Pedido, só por si, significa que a vítima tem de intervir activamente no processo de formação da decisão do agente. Com o pedido, a vítima tem de dar a conhecer a sua vontade de morrer e de receber a morte das mãos da pessoaconcretamente indicada.

Autonomia da vítima, o pedido tem de existir antes e durante a actuação do agente. E pode ser revogado a todo o tempo. Para além disso, é o pedido que determina o quem, quando e como da acção de produção da morte.

No que ao agente especificamente respeita, não pode desatender-se o alcance do inciso “que ela lhe tenha feito”. O agente tem de ser individualmente determinado pela vítima, que não pode dirigir o pedido a um conjunto, maior ou menor, e mais ou menos heterogéneo de pessoas. Por outro lado e complementarmente, o pedido tem de ser

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directamente dirigido ao agente e não pela mediação de um intermediário.

A seriedade – que aponta para a vontade verdadeira, não-influenciada e amadurecida – desempenha um papel de travão ou inibição. Visa impedir a actuação apressada ou precipitada, nomeadamente o aproveitamento da incapacidade duradoira ou ocasional ou de um pedido inquinado por vícios da vontade. Pela positiva, trata-se de assegurar um pedido sustentando por uma vontade livre, consciente do fim-de-produção-da-morte e para ele finalisticamente orientada.

No que toca à capacidade, a vítima deve, pelo menos satisfazer as exigências de que a lei (art. 38º/3 CP) faz depender a validade e eficácia do consentimento. Por vias disso, não será nem relevante o pedido feito por menor de quatorze anos. Para além disso, tudo dependerá de a vítima possuir ou não o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do acto e a liberdade para se decidir de acordo com aquela valoração.

O pedido terá de ser instante, seguramente a qualificação que, em definitivo, marca a diferença entre o pedido relevante para efeitos de homicídio a pedido da vítima e o normal consentimento. É a partir dela que, com algum fundamento, se pode caracterizar este pedido como uma forma de consentimento qualificado.

O pedido tem de ser expresso, quer dizer inequívoco. Para ser expresso, o pedido não tem de ser feito por palavras podendo ser transmitido por gestos, desde que unívocos.

Só pode beneficiar do regime do art. 134º CP o agente que tiver praticado o facto determinado pelo pedido da vítima. Entre o pedido da vítima e a decisão do agente terá de mediar um nexo de causalidade correspondente ao da doutrina da instigação. Por vias disso, não pode considerar-se determinado pelo pedido o agente que, já antes (do pedido) estava decidido à prática do facto e a quem o pedido apenas confirmou no seu propósito.

 23. O tipo objectivo

Para se verificar a infracção, o agente tem de “matar outra pessoa”. Isto é, têm de se verificar aqui todos os pressupostos do tipo objectivo do crime de homicídio, para cujo regime cabe, por isso, uma remissão generalizada. O que vale sobretudo para as matérias atinentes ao bem jurídico, objecto da acção, conduta típica, causalidade, imputação objectiva, etc. A exigência da realização do ilícito típico do homicídio determina, por outro lado, a exclusão do âmbito do homicídio a pedido da vítima dos factos que possam levar-se à conta de suicídio, auxílio ao suicídio ou mesmo à chamada eutanásia indirecta.

 

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24. O tipo subjectivoO homicídio a pedido da vítima pressupõe o dolo do agente,

normalmente, o dolo directo. Embora excepcionais, sempre é possível representar hipóteses de dolo eventual.

O elemento intelectual do dolo exige a representação de todos os elementos pertinentes ao tipo objectivo. Se o agente actua sem ter tido conhecimento da existência do pedido, será punido por homicídio nos termos normais, não pode beneficiar do regime de privilégio do art. 134º CP desde logo por não se poder afirmar que ele se decidiu determinado pelo facto; se, inversamente, o agente actuou erradamente convencido da verificação dos pressupostos objectivos da incriminação, não pode deixar de beneficiar, nos termos da doutrina do erro, do regime de privilégio do art. 134º CP.

 25. Ilicitude e justificação

De acordo com o sentido e a intencionalidade do preceito – pois, se até o pedido sério, instante expresso (o chamado consentimento qualificado) só atenua a pena – está excluída a possibilidade de o consentimento valer como causa de justificação. Uma exclusão que se comunica a toda a ordem jurídica. Resumidamente, o consentimento nunca será bastante para excluir a ilicitude da morte de outra pessoa: seja qual for a sua idade, seja qual for o seu estado de saúde; e trate-se de homicídio doloso ou negligente. 

26. As formas especiais do crimea)     TentativaÉ punível nos termos do art. 134º/2 CP. Em caso de concurso entre

tentativa de homicídio a pedido da vítima e ofensa corporal (consumada), há concurso aparente, excluindo-se a punibilidade pelas ofensas corporais.

Já será diferente o regime em caso de desistência da tentativa (do homicídio a pedido da vítima) se entretanto se tiverem verificado ofensas corporais: é a chamada tentativa qualificada. Aqui, a desistência não parece prejudicar a punibilidade a título de ofensas corporais. Tal parece resultar, desde logo, da intencionalidade normativa do art. 134º CP apenas orientado para sancionar uma solução de privilégio para homicídio a pedido da vítima. Acresce que, por via de regra, as lesões corporais não são cobertas pelo consentimento. E se o fossem, estaria-se perante um consentimento contrário aos bons costumes.

b)     ComparticipaçãoAutor pode ser qualquer pessoa, desde que destinatária do pedido.

Na definição do âmbito da autoria suscitam-se problemas na linha de fronteira com o incitamento ou ajuda ao suicídio; para além disso, suscitam-se aqui problemas no âmbito da comparticipação.

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A relação especial do agente, sobre que assenta o regime do homicídio a pedido da vítima, releva também da ilicitude e é, qua tale, comunicável.

Quem fica sempre impune é a vítima que sobrevive à tentativa não consumada do homicídio a pedido.

c)     ConcursoEntre homicídio a pedido da vítima e as ofensas corporais valem as

regras gerais relativas ao concurso entre o homicídio e os crimes contra a integridade física e que, em princípio, prescrevem a consunção destes por aquele. Devem em qualquer caso, ressalvar-se os problemas específicos suscitados pela chamada tentativa qualificada. Para além disso, o homicídio a pedido da vítima afastará normalmente (concurso aparente ex vi relação de especialidade) as demais formas de homicídio. Isto vale também para o homicídio privilegiado (art. 133º CP). Será concretamente, assim, sempre que o pedido e as circunstâncias que o acompanham despertarem no agente; por exemplo, aquela “compreensível compaixão” a que se refere o art. 133º CP.

INCITAMENTO OU AJUDA AO SUICÍDIO

 

27. Generalidades

O art. 135º CP pune quem incitar ou ajudar outrem ou suicídio.

Suicídio só pode ser a diminuição da própria vida pelo respectivo titular, tendo este o domínio do acontecimento.

Segue-se que uma tal atitude tem de ser consciente e voluntária porque “incitamento” tem a ver ou com a formação da decisão – o que obviamente não anula a vontade – ou com um seu encorajamento; e “ajuda” significa cooperação em algo que o ajudado conhece e pretende bem como reforço de tal pretensão.

Suicídio é pois um comportamento voluntário dirigido à própria morte, possuindo o autor o domínio do acontecimento e um limiar de consciência bastante para compreender o sentido existencial de tal conduta.

 

28. O bem jurídico

O bem jurídico típico é a vida humana e, mais precisamente a vida de outra pessoa.

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É precisamente a identificação da vida humana (de outra pessoa) como bem jurídico tutelado que empresta à incriminação do incitamento ou ajuda ao suicídio a indispensável ligação material. Uma legitimação que alguns pretendem poder questionar ou mesmo minar, a partir da irrelevância ou indiferença do suicídio para a ordem jurídico-penal.

A circunstância de o art. 135º CP que incrimina autonomamente formas de participação no suicídio, estar inserido no capítulo dos crimes contra a vida, não significa que ali se proteja exclusivamente a vida humana.

Na verdade, se há indícios que, embora arrumados noutros títulos, por protegerem outros valores, não deixam de prever condutas também violadoras da vida humana, nada obsta que no art. 135º CP classificado pelo legislador como “crime contra a vida”, estejam em causa outras razões, para além da perigosidade para essa mesma vida das condutas ali incriminadas.

O significado de suicídio no art. 135º CP:

O incitamento ou a ajuda, para se manterem dentro do quadro legal do preceito referido, não podem ir ao ponto de negar, entendido o termo como privar, toda a autonomia e toda a parcela de liberdade de decisão. No suicídio tem de existir ainda vontade. Ora, quando há nele uma participação trata-se já de uma vontade que, embora não anulada, foi atingida por uma interferência com um sentido específico. A ilicitude de tais interferências reside, não só no perigo ou aumento de perigo para a vida, mas também na intervenção numa esfera de autonomia própria, maxime tratando-se de um acordo tão dramaticamente decisivo.

No art. 135º/1 CP suicídio consciente e livre tem na origem um desejo de morte não patológico. A capacidade de valoração e determinação da vítima não está sensivelmente afectada.

No art. 135º/2 CP suicídio com vontade imperfeita. Para além dos casos de ser efectuado por menores de 16 anos em que há presunção legal de incapacidade, tem na sua origem factos psicológicos mórbidos formalmente redutores do instinto de conservação. Tais

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circunstâncias, embora não supressoras da vontade geram estreitamento da liberdade.

 

29. A fronteira entre o suicido e o homicídio (autoria mediata)

A identificação das situações concretas de suicídio como pressuposto típico do crime de incitamento ou ajuda ao suicídio postula a definição de duas linhas divisórias que, com Roxinpode-se designar como fronteira externa e fronteira interna. A fronteira externa separa as águas entre o incitamento ou ajuda ao suicídio e o homicídio a pedido da vítima a partir da definição e valoração dos contributos da vítima e do terceiro, vistos no seu perfil exterior. Por seu turno, na fronteira interna procura determinar-se em que medida e independentemente do recorte exterior, as coisas se extremam a partir da situação psíquica ou espiritual da vítima.

Relativamente a esta questão, os autores e os tribunais têm acolhido privilegiadamente a duas correntes: a chamada solução da culpa (ou da exculpação) e a solução do consentimento.

A doutrina da culpa, a solução tradicional, é hoje particularmente representada por Roxin. Chama-se solução da culpa porque recorre à aplicação analógica das regras ou princípios da exclusão da culpa, nomeadamente a inimputabilidade e o estado de necessidade desculpante. Segundo ela, deverá afirmar-se a responsabilidade por homicídio em autoria mediata do terceiro quando a vítima actua em circunstâncias tais que, na hipótese de ela lesar bens jurídicos alheios, veria afastada a sua culpa. Na síntese de Roxin: “Não há suicídio quando o suicida se encontra numa situação que, segundo as regras correntes do direito penal, excluíra a culpa”.

A solução do consentimento, em vez de apelar para as regras e critérios da culpa, esta doutrina apela para as regras e critérios do consentimento e concretamente do consentimento“qualificado” subjacente ao homicídio a pedido da vítima. Que são critérios claramente mais exigentes e, por vias disso, a resultar num alargamento do universo dos casos de autoria mediata de homicídio, isto é, em alargamento da punição da comparticipação na autodestruição de outrem. Na verdade, agora só poderá falar-se

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de suicídio quando a vítima satisfaz as exigências do consentimento – livre e esclarecido – reforçadas sob a forma de pedido “sério, instante e expresso” (art. 134º CP).

Mais do que meros expedientes dogmáticos alternativos preordenados à superação do problema em exame, a solução da culpa e a solução do consentimento revelam dois grandes paradigmas de compreensão ética ético-jurídica do suicídio e da comparticipação do suicídio. E como tais susceptíveis de emergir em afloramentos próprios em praticamente todas as áreas problemáticas do regime jurídico-penal da comparticipação no suicídio.

Como resulta do art. 135º/2 CP a lei portuguesa afastou-se tanto da solução da culpa, como da solução do consentimento. Ao prescrever que o auxílio a menor de 16 anosdetermina a agravação da pena (do incitamento e ajuda ao suicídio) a lei admite eo ipso que possa haver suicídio de inimputável, nessa medida desrespeitando a solução da culpa (e, por maioria de razão, a solução do consentimento).

À luz do direito português vigente o que é decisivo é a capacidade para representar o carácter autodestrutivo da sua conduta e a liberdade para se decidir naquele sentido. Tal capacidade terá seguramente de denegar-se a um menor de 14 anos. É certo que também a inimputabilidade por anomalia psíquica há-de valer, em geral, como um sintoma daquela incapacidade. Só que aqui tudo dependerá, em definitivo, das circunstâncias pessoais do agente em concreto.

 

30. A conduta típica

Incrimina-se duas modalidades de conduta: o incitamento e a ajuda ao suicídio. Trata-se de condutas de sentido e compreensão idênticas às da instigação e cumplicidade, só que aqui não podem ser nomeadas em tais, uma vez que o suicídio não é um facto criminalmente típico e ilícito.

Não podem, em qualquer caso, valer como típicas condutas que correspondem ao exercício de um direito ou ao cumprimento de um dever.

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        Incitar

Significa determinar outrem à prática do suicídio. A conduta do agente tem de desencadear um processo causal, sob a forma de influência psíquica sobre a vítima, despertando nela a decisão de pôr termo à vida. Tem de se tratar de uma decisão até ali inexistente: se a vítima já estava decidida a suicidar-se, a acção do agente já só poderá valer como ajuda. Pode incitar-se por qualquer meio desde que de meio idóneo e eficaz se trate. Por via de regra o incitamento será pessoal e individualizado, não estando porém, excluída a possibilidade de um incitamento colectivo.

        Ajudar

É toda a forma de cooperação que, não constituindo um incitamento, é causal em relação à conduta do suicida na sua conformação concreta. Pode ser ajuda “material ou moral” (art. 27º CP), física ou psíquica.

Incitar ou ajudar estão inscritas na factualidade típica como condutas alternativas, sendo qualquer delas bastante para, só por si realizar o ilícito típico.

 

31. Tipo subjectivo

As condutas de incitamento ou ajuda ao suicídio têm um sentido final nelas incorporado como qualidade própria e referido, justamente, à comissão do autocídio da vítima. No art. 135º CP não está pressuposto qualquer outro momento anímico autonomizável e fundamentador do ilícito. E nem um entendimento da vontade num sentido estrito, que não a deixe superar os limites dentro dos quais se explica o seu domínio, põe em causa esta afirmação. O objecto do dolo pode abranger um resultado material cuja realização seja efectuada por um terceiro no qual incidirá a atitude psicológica do autor, pelo menos enquanto representação.O dolo no crime de incitamento ou ajuda ao suicídio compreende,

no seu aspecto volitivo, uma atitude anímica tendente a provocar noutra pessoa uma decisão de suicídio ou a contribuir para a execução de um propósito suicida.

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A infracção só é punível a título de dolo[3], sendo suficiente o dolo eventual. O dolo tem de abranger o suicídio: para além de compreender o incitamento ou a ajuda, tem de abarcar também a realização do suicídio. Se o agente sabe que a sua decisão não é livre e responsável, então ele “quer” cometer homicídio, devendo ser punido como tal. Já se o agente pensa, erradamente, que a decisão da vítima é livre e responsável ou que ainda há uma vontade de suicídio, então ele tenta cometer incitamento ou ajuda ao suicídio, quando, objectivamente, está a praticar homicídio. Contudo ele só poderá ser punido pela infracção menos grave, a do art. 135º CP. 

 

32. O resultado típico do art. 135º CP

O art. 135º CP prevê um crime de resultado.

Num crime de mera actividade, o dolo “deve abranger unicamente circunstâncias relativas à acção do agente, não sendo necessário que este queira ou conheça qualquer resultado não compreendido no tipo”. Portanto, para se considerar o art. 135º CP como prevendo um crime formal, o dolo do agente teria de dirigir-se apenas à própria acção idónea para o incitamento ou (e) para a ajuda ao suicídio.

Deve atender-se a que a relevância jurídico-penal dos comportamentos, tecnicamente classificados de determinação ou de cumplicidade, depende de ter havido actos executivos por parte do autor material.

 

33. As formas especiais do crime

a)     Comparticipação

Não punibilidade da vítima sobrevivente da tentativa de suicídio. Não punibilidade que se mantém mesmo que tenha sido ela a determinar o agente à ajuda ao suicídio.

b)     Tentativa

O facto só é punível “se o suicídio vier efectivamente a ser tentado ou a consumar-se”. A partir daqui questiona-se se a tentativa é ou não punível converte-se em boa medida num problema de índole

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prevalentemente dogmático-categorial. Tudo depende da estrutura típica da infracção, nomeadamente do sentido e alcance da consumação no complexo iter da incriminação.

c)     Concurso

Se o agente incitar e ajudar a mesma pessoa cometerá apenas um crime de incitamento ou ajuda ao suicídio. Pode haver concurso ideal com outras infracções quando o meio utilizado para ajudar ou incitar configura um ilícito criminal, como o incêndio. Também pode haver concurso ideal na hipótese de suicídio de uma mulher grávida, em caso de aborto punível.

Pode haver concurso real com o homicídio a pedido da vítima. É o que acontece se o agente aceita, a pedido da vítima, dar o “golpe de misericórdia”. Também pode haver concurso real com o crime de homicídio. Tal será mesma a regra no chamado “suicídio alargado” que se dá quando o suicida arrasta para a morte outras pessoas, normalmente filhos menores ou outros dependentes.

 

34. Agravação

O art. 135º/2 CP prescreve a qualificação da infracção por circunstâncias atinentes à pessoa da vítima: ser menor de 16 anos ou ter a sua capacidade de valoração ou de determinação sensivelmente diminuída. Pelo menos ao nível  da pena abstracta, não revelam as circunstâncias atinentes ao agente, nomeadamente o facto de ele ter agido pormotivos egoístas. A qualificação está prevista para uma fenomenologia relativamente extensa, onde podem ocorrer situações de homicídio em autoria mediata: a utilização da vítima da autodestruição como um “instrumento”. Antes de se proceder à subsunção do caso no regime do art. 135º/2 CP, há-de por isso, apurar-se se, em concreto, se está perante uma situação de autêntico suicídio. Ou se, inversamente, o caso não há-de, antes, ser levado à conta de homicídio.

[3] A negligência não é punível

 INFANTICÍDIO

 

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35. O privilegiamento e os seus elementos típicos

O fundamento do privilegiamento do homicídio da criança é pois, o estado de perturbação em que se encontra a mãe durante ou logo após o parto. E estes são simultaneamente os elementos constitutivos do tipo objectivo de ilícito. O estado de perturbação pode ser condicionado tanto endogenamente como exogenamente.

O objecto do facto é o filho. Do ponto de vista do bem jurídico trata-se pois aqui da vida de outra pessoa, nos precisos termos em que o elemento vale para efeito do tipo de homicídio, não da vida intra-uterina que constitui o bem jurídico do crime de aborto (art. 140º CP).

 

36. Conduta

A conduta consiste em a mãe matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência perturbadora.

a)     Matar

Assume, no presente contexto, precisamente o mesmo significado que igual elemento típico no crime de homicídio. Apenas se salientará que a conduta deve ter lugar durante ou logo após o parto, enquanto o resultado (a morte) pode ter lugar em momento posterior.

O crime pode ser cometido por omissão.

b)     A conduta tem lugar durante o parto

Se ela ocorre, a partir do momento em que se inicia o processo de nascimento, quer dizer desde que se iniciam as contracções ritmadas, intensas e frequentes que previsivelmente conduzirão à expulsão da criança ou, em alternativa, desde que tem início o processo cirúrgico correspondente.

Que a conduta possa ter lugar logo após o parto é elemento relativamente ao qual suscita dúvidas se deve conferir-se uma conotação especificamente temporal ou antes psicológica, uma vez que, além deste requisito, se torna necessário que a mãe se encontre ainda sob a influência perturbadora do parto; de outro modo a lei não

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teria referido as exigências de que o facto ocorra durante ou logo após o parto e a mãe se encontre ainda sob a sua influência perturbadora, mas apenas esta última. A conduta tem por isso de ter lugar durante o qual é razoável supor segundo os pontos de vista objectivos dos conhecimentos da medicina, que a influência perturbadora deste ainda subsiste.

 

37. As formas especiais do crime

a)     Tentativa

É punível nos termos do art. 23º CP. Ela pressupõe que os actos de execução tiveram lugar, ou persistiram, durante ou logo após o parto e sob a sua influência perturbadora.

b)     Comparticipação

Autora pode ser apenas a mãe da criança. Autoria mediata é possível, por exemplo, no caso de a mãe se servir de terceiro de boa fé para administrar uma poção fatal à criança. E o mesmo se diga da instigação nos casos em que esta deva ser considerada dentro do quadro da autoria (art. 26º in fine CP). Não se está por isso perante um crime de mão própria, mas apenas perante um tipo que pressupõe determinada qualidade especial de autoria, ser mãe da criança. Consequentemente não é punível – por este preceito mas eventualmente pelos arts. 131º, 132º ou 133º CP – a autoria mediata de terceiro que se serve da mãe para matar a criança durante ou logo após o parto e sob a sua influência perturbadora. O mesmo devendo afirmar-se para a cumplicidade de terceiro.

 c)     Concurso

O infanticídio consome a exposição ou abandono do art. 138º CP [4]. Discutível pode ser as relações de concurso do crime de infanticídio com crimes contra a integridade física.

[4] Concurso aparente.

 EXPOSIÇÃO OU ABANDONO

 

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45. O tipo legal objectivo

O bem jurídico protegido no presente tipo legal é a vida humana. Trata-se porém, não de um tipo de dano, mas sim de um crime de perigo concreto.

O agente tem de colocar em perigo a vida de uma pessoa, através de uma das duas modalidades de conduta descritas no art. 138º CP. Este elemento típico implica evidentemente que com o acto do agente, se crie um perigo ou se potencie um perigo. Assim, não haverá crime quando o perigo já exista e não se encontre mais à disposição do agente qualquer meio de diminui-lo ou atenuá-lo.

a)    Exposição

O agente tem de expor a pessoa em lugar que a sujeite a uma situação de que não se possa só por si defender. A exposição implica que a vítima deva ser transferida de um local [7]para um outro menos seguro – o que significa que se tem de verificar uma qualquer[8] deslocação espacial produzida pelo agente; dessa deslocação deve resultar um agravamento de riscos de tal ordem que a vítima fique numa situação em que seja incapaz de, por si só, defender-se[9]. Dois factores para se aferir o perigo:

        Atender ao local onde a vítima é exposta ou colocada;

        Características da própria vítima.

O agente tem uma conduta que faz nascer para a vítima uma situação de perigo.

Esta modalidade de conduta pode ser cometida por qualquer pessoa[10]. Pode também ser cometida por omissão[11].

b)      Abandono

Consiste em o agente abandonar a vítima sem defesa sempre que tenha um dever de a guardar, vigiar ou assistir.

O abandono tem de ser realizado por um agente sobre o qual impenda um especial dever[12] – com o que se trata de um crime específico próprio.

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Este dever tem de ser pré-existente à situação de abandono e deve estar em directa conexão com a ausência de defesa da vítima; ou seja: é necessário que o dever que sobre o agente impende tenha por finalidade garantir o auxílio para situações de risco em que incorpora a vítima.

Do abandono tem que resultar uma situação de agravamento de riscos[13] para o qual a vítima não tenha, por si, capacidade de se defender.

 

46. O tipo legal subjectivo

O tipo legal só se preenche com dolo, bastando o dolo eventual. Este dolo tem evidentemente de abarcar a criação de perigo para a vida da vítima, bem como a ausência de capacidade para se defender por parte da vítima.

O dolo (do agente) tem que pressupor o conhecimento do perigo, o agente tem que querer o perigo para a vítima, mas não quer a morte. O dolo de perigo é por natureza algo difícil de verificar, o legislador tem que ver que o agente admitiu o perigo mas não se conformou com a lesão.

A conduta, para além de abandono ou exposição, tem que vir a produção efectivamente um perigo para a vida da vítima. O resultado tem que se autonomizar, se não houver a consumação do perigo não é crime.

 

47. As formas especiais do crime

a)     Tentativa

É punível a tentativa deste crime. Dada a especial configuração do tipo de crime, a desistência pode ser relevante se o agente voluntariamente impedir a produção de resultado não compreendido no tipo; ou seja, tendo já colocado em perigo a vida da vítima, haverá desistência relevante se o agente diminuir o perigo criado, impedindo o efectivo dano.

b)     Comparticipação

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São aplicáveis as regras gerais da comparticipação, no caso de exposição. No caso de abandono, tratando-se de um crime específico, em princípio, haverá a derrogação daquelas regras.

c)     Concurso

O art. 138º CP é um crime de perigo concreto, pelo que, verificando-se dolo quanto ao dano, não deverá ser aplicado.

Pode ser discutível a correcta ligação entre este crime (em especial no caso da modalidade de conduta de abandono) e o crime de omissão de auxílio (art. 200º CP). A correcta destrinça deve ser realizada em função do facto de o dever de auxílio (vigilância e guarda), no caso de abandono, ser pré-existente à criação do risco, enquanto no crime de omissão o dever de auxílio é exactamente consequência da situação de risco. Poderá, contudo, verificar-se uma situação de concurso entre omissão de auxílio e exposição ou abandono. Assim, no caso de, estando a vítima numa situação descrita no art. 200º CP, o agente, além de não prestar auxílio, deslocar a vítima para outro local, criando ou agravando o perigo para a vida da vítima.

 

48. As agravações

O art. 138º/2 e 3 CP prevê a agravação das molduras legais. Uma primeira agravação resulta da especial qualidade do agente: ascendente, descendente, adoptante ou adoptado.

Uma segunda agravação reside na agravação da pena por um evento mais grave (crime praeterintencional). Nestes dois casos (produção da morte ou uma ofensa à integridade física da vítima) são aplicáveis as regras gerais de agravação da pena (art. 18º CP). De qualquer modo, decisivo para a verificação do crime praeterintencional é que o resultado produzido (a morte ou uma ofensa à integridade física grave, nos termos do art. 144º CP) seja imputável à situação de perigo criado e directamente conexionada com a ausência de capacidade de defesa por parte da vítima. Verificado um destes resultados, mas em consequência de uma outra fonte de perigos, o princípio será o de afirmar um concurso entre crimes e o crime negligente produzido.

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 [7] Relativamente seguro.[8] Por mínima que seja.[9] Face aos novos riscos criados pela exposição e que colocam em perigo a sua vida.[10] É um crime comum.[11] Segundo as regras gerais.[12] De guardar, assistir ou vigiar.[13] Para a vida da vítima.

ABORTO

 

49. Introdução

Tal como decorre da própria lei, o legislador português adoptou a solução correspondente ao modelo das indicações. Partindo do princípio da dignidade penal do bem jurídico da vida intra-uterina, o legislador consagrou situações medicamente indicadas em que este valor pode ser sacrificado face a outros valores constitucionalmente relevantes. Isto significa essencialmente que a solução adoptada pelo legislador português se baseia na impunidade da interrupção da gravidez fundada numa ideia de conflito de valores. A concretização da solução desse conflito de valores dá-se exactamente pela regulamentação das indicações[14].

Deste modelo resulta um princípio de punibilidade do crime de aborto, em correspondência com a ideia de dignidade de protecção, constitucionalmente fundada, da vida intra-uterina.

 

50. O bem jurídico

O bem jurídico protegido no crime de aborto é a vida humana intra-uterina. Trata-se de um bem jurídico autónomo e também eminentemente pessoal. A autonomia do bem jurídico resulta da consideração de que, no crime de aborto, não está protegida a vida humana que é protegida nos crimes de homicídio, isto é, a distinção entre o crime de homicídio e de aborto não é uma mera distinção de objectos da conduta criminosa.

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Ao poder-se afirmar que o bem jurídico principal é a vida intra-uterina, resultam daí imediatamente algumas consequências em termos de definição do objecto de protecção: tem que estar em causa a vida humana implantada no útero da mãe.

Pode dizer-se, em suma, que o bem jurídico fundamental dos crimes de aborto é a vida intra-uterina. Mas por forma diversa, intervêm ainda outros bens jurídicos na concreta conformação típica do crime de aborto, em especial os valores da liberdade e da integridade da mulher grávida.

 

51. O tipo objectivo de ilícito

Embora o tipo objectivo de ilícito não o refira expressamente, objecto de crime de aborto é o feto ou o embrião. O crime de aborto não distingue, para efeitos de punibilidade, entre feto e embrião, como cientificamente acontece.

O crime de aborto só se pode verificar até ao momento em que não se possa falar mais de vida intra-uterina e se verifique o início da vida humana para efeitos de tutela penal; pelo que a morte de uma criança após o início do acto de nascimento deverá ser equacionada no âmbito dos crimes contra a vida.

A acção tem que consistir em fazer abortar. A expressão utilizada pelo legislador português não é de todo inequívoca, pois abortar tanto significa expulsar o feto do ventre materno, como a eliminação do feto. Dada a configuração do tipo legal e o bem jurídico em causa, parece que o aspecto essencial é o resultado: morte do feto. O crime de aborto é pois um crime de resultado.

A forma por que se provoca a morte do feto é irrelevante. Tanto pode ser por intervenção directa sobre o feto como por intervenção indirecta, por actuação sobre a mulher grávida. Decisivo é que aquela actuação torne o feto incapaz de vida.

O tipo de crime de aborto, como crime de resultado que é, pode também ser cometido por omissão segundo as regras gerais (art. 10º CP). Saliente-se que o dever de garante recai sobre a mulher grávida, mas recai também sobre o médico e, eventualmente, sobre o pai.

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O crime de aborto assume distintas ilicitudes consoante o agente em causa e consoante a mulher grávida preste o consentimento ao aborto ou não.

No caso mais grave, o crime pode ser praticado por qualquer pessoa (crime comum), tanto por um leigo, como por um médico[15], mas sem o consentimento da mulher grávida. Neste caso, aplicam-se as regras gerais da autoria e comparticipação.

A segunda hipótese é a de se verificar um crime comum, mas em que o aborto é realizado com o consentimento da mulher grávida. Agente e mulher grávida constitui um factor de redução do ilícito.

A terceira hipótese é a de ser a própria mulher grávida a realizar o aborto. O art. 140º/3 CP distingue a realização por facto próprio ou por facto alheio. Isto significa que a realização pela mulher grávida do aborto pode assumir a forma de autoria mediata, co-autoria ou autoria individual. Por outro lado, a mulher grávida pode, da mesma forma, ser responsabilizada pelo assentimento dado ao aborto. Naturalmente que, neste caso, para se verificar o assentimento é irrelevante saber de quem a iniciativa partiu.

 

52. O tipo subjectivo de ilícito

O crime de aborto tem de ser realizado dolosamente, sendo suficiente o dolo eventual. O dolo tem evidentemente que se referir também ao resultado: a morte do feto. Este aspecto pode contribuir para a resolução de problemas atinentes à punibilidade, ou não, do aborto nas hipóteses de tentativa de suicídio da mulher grávida.

No art. 140º CP vêem consideradas três modalidades de aborto:

1)     Aborto consentido: é praticado com o consentimento da mãe (art. 140º/2 CP), neste tipo legal de crime o consentimento é um elemento positivo do tipo, para estar preenchido o tipo tem que haver consentimento.

2)     Aborto passivo: vem tipificado no art. 140º/1 CP, a diferença é a ausência do consentimento, é um elemento negativo do tipo. O tipo para estar preenchido é necessário a ausência do consentimento.

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3)     Aborto activo: o art. 140º/3 CP refere-se à conduta da mãe, ou ao dar consentimento que se faça o aborto (o que é por si crime) ou à conduta de ela própria se fazer abortar. Dar consentimento para praticar o aborto é uma conduta que é crime.

 

53. As formas especiais do crime

a)     Tentativa

Não haverá punibilidade da tentativa seja para terceiro, seja para a mulher grávida – nos casos em que a mulher grávida tente abortar ou der assentimento a um aborto tentado. Mantém-se porém, punível a tentativa do crime de aborto mais grave, portanto, sem consentimento da mulher grávida. Em regra, a tentativa iniciar-se-á com a intervenção corporal sobre a mulher, em ordem a produzir o aborto. São pensáveis as tentativas impossíveis e são também aplicáveis as regras gerais da desistência.

b)     Comparticipação

A mulher grávida é quase exclusivamente punível como autora. É possível a afirmação da cumplicidade por um terceiro.

 c)     Concurso

Uma vez que o bem jurídico protegido pelo crime de aborto é um bem jurídico pessoal, a pluralidade de abortos implicará por regra a pluralidade de crimes.

As hipóteses de concurso de crimes podem manifestar-se de forma algo complexa nos casos de aborto sem consentimento. De facto, o preenchimento do art. 140º/1 CP envolverá necessariamente o preenchimento de crimes contra a integridade física e contra a liberdade. Aplicar-se-ão aqui as regras gerais para esta forma de concurso de crimes.

No caso do aborto consensual já não serão pensáveis – além dos casos previstos no art. 141º CP – hipóteses de concurso. Eventualmente pode estar associado a crimes como o de usurpação de funções (art. 358º-b CP) etc.

[14] A indicação médica – em sentido estrito – e em sentido lato; a indicação feteopática e a indicação criminológica.

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[15] Se não se verificar uma das indicações previstas no art. 142º CP.

 

ABORTO AGRAVADO

 

54. O crime de aborto agravado pelo resultado (art. 141º/1 CP)

O fim protectivo da norma é facilmente perceptível: agravar a punição por abortos realizados em situação de particular risco para a vida e integridade física da mulher grávida. É indiscutivelmente um caso praeterintencional, resultante da combinação entre um crime fundamental doloso (o crime de aborto, art. 140º/1 e 2 CP) e um evento agravante (a morte ou a ofensa à integridade física da mulher) que, nos termos gerais do art. 18º CP deve ser imputado a título de negligência.

 

55. O tipo de ilícito

Pressupostos de realização do tipo legal de aborto agravado é, em primeiro lugar, a realização de um crime de aborto pelo agente, podendo este ser realizado com ou sem consentimento da mulher grávida.

Deve fazer-se notar que, a despeito de alguma equivocidade na descrição típica, o crime de aborto tem de ser consumado, ou seja, tem de verificar-se a morte do feto. De facto, embora o tipo legal refira o aborto ou os meios empregues, a verdade é que a pena (agravada) é aplicável “àquele que a fizer abortar”. Assim a circunstância (o evento) agravante pode estar associada aos meios utilizados, mas tem de verificar-se sempre um aborto.

É necessário que do aborto ou dos meios nele empregues resulte um evento agravante: a morte ou a ofensa à integridade física grave da mulher grávida. Para ambos os casos o evento tem de ser imputado a título de negligência. O agente tem de cometer pela forma descrita um homicídio negligente (art. 137º CP) ou uma ofensa à integridade física grave por negligência (art. 148º/3 CP).

 

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56. As formas especiais do crime

a)     Tentativa

É possível a tentativa do crime de aborto agravado quando se tiver verificado um dos eventos agravantes em razão dos meios empregues, não se verificando, porém, o aborto; mas só é possível a tentativa, no caso do art. 141º/1 CP, havendo tentativa do crime fundamental doloso com verificação do evento agravante.

b)     Comparticipação

É admissível nos termos gerais em que esta é admissível nos crimes praeterintencionais. As duas únicas excepções residem em que não é punível a comparticipação da mulher grávida (sob qualquer forma), nem é concebível a cumplicidade, para este tipo de crime, quando o aborto tenha sido realizado pela própria mulher grávida.

c)     Concurso

Uma vez que o crime praeterintencional constitui uma derrogação às regras do concurso de crimes, não se colocam quaisquer problemas, em geral, de concurso. A situação mais corrente de concurso será eventualmente com as outras circunstâncias agravantes do aborto, previstas no art. 141º/2 CP.

 

57. Agravação por habitualidade ou intenção lucrativa na prática

de aborto punível (art. 141º/2 CP)

A primeira circunstância agravante é constituída pelo facto de o agente se dedicar habitualmente à prática do aborto punível.

Para que se verifique a habitualidade é necessário que o agente tenha praticado, pelo menos, dois factos que estejam por qualquer forma entre si conexionados. No direito português o conceito de habitualidade estava sobretudo ligado aos crimes contra o património.

A segunda circunstância agravante é o facto de o agente actuar com intenção lucrativa. O ânimo do lucro coincide, neste contexto, com o enriquecimento e significa o propósito de melhoramento, por qualquer forma, da situação patrimonial tal como decorre do elemento

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intenção, é necessário que o agente actue com dolo previsto no art. 141º/1 CP, não sendo necessário que o lucro seja o motivo principal, nem, evidentemente, que o agente obtenha a melhoria da situação patrimonial.

 INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ NÃO PUNÍVEL

 58. A indicação médica (ou terapêutica) em sentido estrito

A interrupção da gravidez encontra-se justificada nos termos do art. 142º/1-a CP. A interrupção tem de constituir não um meio simplesmente possível ou (e) adequado, não o meio porventura mais pesado, física ou (e) psicologicamente, para a grávida, mas o único meio de tutela dos valores ou interesses tipicamente protegidos, em suma, um meio sem alternativa. É preciso que o perigo não seja removível de outro modo.

Necessário se torna, em segundo lugar, que a interrupção se revele indispensável não simplesmente para evitar, mas para remover o perigo. É preciso por isso que o perigo seja actual e não meramente potencial, que ele se encontre já “instalado” no momento em que a intervenção tem lugar.

O perigo existente tem, por outro lado, de dizer respeito à vida ou ao corpo ou à saúde física ou psíquica da mulher grávida.

Indispensável é ainda que o perigo se refira a uma lesão grave e irreversível do corpo ou da saúde, devendo ter-se em atenção que estes requisitos são cumulativos e não alternativos.

Verificada a existência de uma indicação médica em sentido estrito, a interrupção pode ser levada a cabo em qualquer momento temporal de evolução da gravidez.

 59. A indicação médica (ou terapêutica) em sentido lato

A interrupção de uma gravidez pode ser justificada, em segundo lugar nos termos do art. 142º/1-b CP. Há aqui um alargamento dos limites da indicação médica ou terapêutica.

Para além de se requerer que seja grave, não se exige aqui o carácter irreversível da lesão do corpo ou da saúde mas sim que ela seja duradoura.

 60. A indicação embriopática ou de fetopática

Encontra-se justificada no art. 142º/1-c CP. Exige-se, que recaía um juízo de previsão fundada em motivos seguros. Esta previsão não pode deixar de ser medicamente fundada.

À verificação da indicação torna-se necessário que o juízo de previsão se dirija a uma doença grave ou malformação congénita

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incurável, isto é, a uma lesão do estado de saúde que ou deixa ao nascituro pequenas hipóteses de sobrevivência ou lhe causa danos irreparáveis físicos ou psíquicos.

 61. A indicação criminal

Encontra-se justificada no art. 142º/1-d CP. Sérios indícios têm o significado de crença fundada que o médico deve inquirir acerca de a mulher ter sido vítima de crime sexual e deste ter resultado a gravidez.

 62. Pressupostos comuns da justificação relativos à intervenção

O primeiro dos pressupostos é que ela seja “efectuada por um médico ou sob a sua direcção” (art. 142º/1, 1ª parte CP). A razão de ser desta exigência é claramente a de, no interesse da grávida, afastar a possibilidade de a interrupção ser feita por qualquer pessoa não completa e oficialmente capacitada para levar a cabo diagnósticos e intervenções médicas particularmente melindrosas.

O segundo pressuposto é o de que a interrupção tenha lugar “em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido” (art. 142º/1, 2ª parte CP). Ainda aqui se trata principalmente de proteger o interesse da grávida assegurando-lhe um serviço que dê garantias de qualidade e de responsabilização.

Um terceiro pressuposto é o de que a indicação se verifique “segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina”.

 63. Pressupostos comuns de justificação relativos ao

consentimentoA interrupção da gravidez deve ter lugar “com o consentimento da

mulher grávida” (art. 142º/1, 3ª parte CP).Especialidades relativamente ao consentimento geral existem desde

logo em matéria de capacidade. Com efeito, capaz de consentir não é a mulher de 14 anos que possua o discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance; capaz de consentir é só a mulher de 16 anos ou mais que seja psiquicamente capaz (art. 142º/3-b, 1ª parte CP).

Se a mulher for incapaz o consentimento é prestado “respectiva e sucessivamente, conforme os casos pelo representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta por quaisquer parentes da linha colateral” (art. 142º/3-b, 2ª parte CP).

 64. Justificação da interrupção sem consentimento

A lei renúncia à exigência de consentimento da grávida como condição de justificação (art. 142º/4 CP) no pressuposto da verificação cumulativa de dois pressupostos:

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1)     Que não seja possível obter o consentimento nos termos do art. 142º/1; e

2)     Que a efectivação da interrupção se revista de urgência.Não é possível obter o consentimento, relativamente a mulher maior

de 16 anos e psiquicamente capaz (art. 142º/3-a CP) se aquela se não encontrar em estado de poder exprimir ou transmitir validamente a sua vontade.

A efectivação da interrupção é urgente quando o seu retardamento representa a criação ou potenciação de um risco para os interesses que a lei tem em vista proteger ou permitir a interrupção.

A decisão sobre a urgência pertence ao médico e deve ser encontrada tendo em atenção o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina.

 65. Conhecimento da (e erro sobre a) justificação

Como em geral, também aqui o agente precisa de actuar no conhecimento dos pressupostos de que depende a justificação. Se os não conhece, o agente deve ser punido pelo art. 140º CP; se a título de aborto consumado, ou apenas tentado por aplicação analógica do disposto no art. 39º/4 CP é questão que deve considerar-se não assumir aqui qualquer especialidade relativamente à solução que se defenda, em geral, para as causas de justificação.

Também se deve afirmar que o disposto no art. 16º/2, 1ª parte CP (“o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto…” exclui o dolo – e aqui a punição) tem plena aplicação nestas hipóteses. Particularmente importante será verificar se é efectivamente de um tal erro que se trata, ou se diferentemente o erro versa sobre o âmbito ou os limitesda justificação; neste último caso, como se sabe, o erro não constitui um erro que exclui o dolo, nos termos do art. 16º/2 CP, mas sim um erro que só pode revelar pela via da falta de consciência do ilícito, nos termos do art. 17º CP.

OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES

 

66. GeneralidadesO crime de ofensa à integridade física simples surge como o tipo

legal fundamental em matéria de crimes contra a integridade física. É a partir da “ofensa ao corpo ou à saúde de outrem” que se deixa constituir uma série de variações qualificadas, como ofensa à integridade física grave (art. 144º CP), agravada pelo resultado (art. 145º CP), qualificada (art. 146º CP), privilegiada (art. 147º CP) e por negligência (art. 148º CP). De realçar a similitude entre a forma como passam a ser estruturados no Código Penal os crimes contra a integridade física e contra a vida.

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67. O bem jurídico

O bem jurídico protegido é a integridade física da pessoa humana.

Relativamente ainda ao conceito de integridade física e ao seu conteúdo cabe não perder de vista que se, por um lado, não lhe deverá reconhecer uma amplitude excessiva, que possa contender inclusivamente com a protecção dispensada a outros bens jurídicos pelo Código Penal, por outra banda, é inegável que certas lesões do corpo ou da saúde, certos “maus-tratos físicos”, acarretam necessariamente consigo consequências psíquicas, e que é de considerar como lesão da saúde o abalo psicológico de certa gravidade.

Trata-se de um crime material e de dano. O tipo legal em análise abrange com efeito um determinado resultado que é a lesão do corpo ou da saúde de outrem, fazendo-se a imputação objectiva deste resultado à conduta ou omissão do agente de acordo com as regras gerais. Está-se também perante um tipo legal de realização instantânea, bastando para o seu preenchimento a verificação do resultado descrito.

 

68. O tipo objectivo de ilícito

A lei distingue duas modalidades de realização do tipo:

a)     Ofensas no corpo;

b)     Ofensas na saúde.

Muitas das vezes haverá coincidência entre estas duas formas de realização do tipo.

O tipo legal do art. 143º CP fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados, ou de uma eventual incapacidade para o trabalho.

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Por ofensa no corpo poder-se-á entender “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante”.

Objecto da acção é o corpo humano. Contemplam-se aqui unicamente “ofensas contra o físico ou contra a parte corporal do homem”. O elemento típico “corpo” é ainda susceptível de abranger próteses quando estas se encontrem ligadas à pessoa com carácter de permanência.

A ofensa ao corpo não poderá ser insignificante. Sob o ponto de vista do bem jurídico protegido não será de ter como relevante a agressão e ilícito o comportamento do agente, se a lesão é diminuta. A apreciação da gravidade da lesão não se deve deixar fundar em motivos e pontos de vista pessoais do ofendidos, necessariamente subjectivos e arbitrários, antes deverá partir de critérios objectivos, se bem que não perdendo totalmente de vista factores individuais.

Como lesão da saúde deve considerar-se “toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a”. É de considerar como lesão da saúde, em primeiro lugar, a criação de um estado de doença, seja através de uma infecção, do contágio de uma doença sexualmente transmissível, ou por qualquer outra via.

Objecto da agressão é apenas empregando a expressão utilizada pelo legislador no art. 143º CP, “outra pessoa”. As chamadas auto-lesões não são puníveis como ofensa à integridade física.

O preenchimento do tipo legal, tanto pode ter lugar por acção como por omissão quando sobre o omitente recaía um dever jurídico que pessoal o obrigue a evitar o resultado (dever jurídico de garante – art. 10º CP).

 

69. O tipo subjectivo de ilícito

O tipo legal do art. 143º CP exige o dolo em qualquer das suas modalidades (art. 14º CP). O dolo de ofensa à integridade física refere-se às ofensas no corpo ou na saúde do ofendido. A motivação

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do agente é irrelevante sob este ponto de vista, embora possa ser tida em conta para efeitos de determinação da medida da pena.

Em matéria de erro sobre o tipo são aqui pensáveis várias situações, todas elas no entanto recondutíveis às soluções vertidas pelo legislador no art. 16º CP.

 

70. Causas de justificação

O consentimento funciona aqui como uma verdadeira e própria causa de exclusão da ilicitude, uma vez que, não obstante reconhecido o valor da autonomia do titular do bem jurídico e penalmente tolerada a conduta, está em causa uma manifestação de danosidade social que a ordem jurídica não pode ser indiferente.

O consentimento em causa tanto pode ser expresso (art. 38º CP) como presumido (art. 39º CP).

 

71. As formas especiais do crime

a)     Tentativa

O crime de ofensa à integridade física simples não é punível no estádio da tentativa. De facto, o limite mínimo previsto para a punibilidade da tentativa (art. 23º CP) não é atingido pela moldura penal do art. 143º CP que tem como limite máximo os três anos.

b)     Comparticipação

É um crime individual, pelo que se aplicam as regras gerais sobre a comparticipação criminosa.

c)      Concurso

Encontram-se em concurso legal ou aparente com o tipo legal de ofensa à integridade física simples os tipos legais de crime correspondentes aos arts. 144º, 145º, 146º, 147º e 148º CP. Da mesma forma mostra-se passível de excluir a aplicação do art. 143º CP, desta feita em virtude de interceder entre os respectivos tipos legais uma relação de consunção, a participação em rixa (art. 151º CP), os maus-tratos ou sobrecarga em menores, de incapazes ou do

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cônjuge (art. 152º CP), a coacção (art. 154º CP), o roubo (art. 210º CP). Pode haverconcurso efectivo com o crime de difamação (art. 180º CP), violação de domicílio (art. 190º CP), violação (art. 164º CP), ameaça (art. 153º CP) entre outros.

Bastante discutida tem sido a questão do concurso entre os crimes de homicídio (art. 131º CP) e de ofensa à integridade física. O problema não terá grande relevância sempre que o homicídio venha a consumar-se, pois que aqui funcionam as regras gerais do concurso aparente sob a forma da relação de subsidiariedade. Diferente será a situação se se consuma o crime de ofensa à integridade física, tendo lugar ao mesmo tempo uma desistência da tentativa relevante em relação ao crime de homicídio. Neste caso deve punir-se o agente pelo crime doloso, na medida em que o dolo de homicídio parece conter em si o dolo de ofensa à integridade física (aquele que pretende matar outrem tem que ferir, envenenar, ou por outra forma lesar a integridade física de outrem). Envereda-se assim pela aceitação de uma relação de subsidiariedade entre o tipo legal de ofensa à integridade física e o de homicídio, independentemente de em relação a este último se ter agido com dolo eventual ou outro qualquer tipo de dolo.

AGRAVAÇÃO PELO RESULTADO 

77. GeneralidadesEstá-se perante um delito qualificado pelo resultado que se

caracteriza por uma especial combinação de dolo e negligência [16]. O delito fundamental doloso é por si só susceptível de punição, no entanto a pena é substancialmente elevada com base numa especial censurabilidade do agente, uma vez que o perigo específico que envolve esse comportamento se concretiza num resultado agravante negligente.

 78. O bem jurídico

Através deste tipo legal protege-se a integridade física e a vida, uma vez que a não existir essa disposição a punição seria feita através das regras do concurso, o que implicaria a consideração autónoma e diferenciada dos dois bens jurídicos. Existe uma punição agravada em relação aos dois crimes que pressupõe bens jurídicos distintos.

 79. O tipo objectivo de ilícito

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As condutas previstas por este tipo legal são as que correspondem ao preenchimento dos tipos legais de lesões à integridade física simples e de lesões à integridade física graves. O comportamento lesivo da integridade física tanto se pode traduzir numa acção, como numa omissão; ponto é, que nesta última hipótese, recaía sobre o agente um dever jurídico de garante.

 80. O tipo subjectivo de ilícito

A lesão da integridade física tem que ter sido praticada a título doloso (o dolo eventual é suficiente).

Em relação ao resultado morte deve o agente ter actuado pelo menos com negligência. A questão que se coloca é a de saber se o evento agravante pode ter sido dolosamente produzido. Embora genericamente esta combinação crime fundamental doloso-evento agravante doloso possa ser uma possibilidade de acordo com a regra geral do art. 18º CP, a solução mais acertada neste caso consiste em proceder à punição do agente de acordo com as normas do concurso legal ou aparente de crimes, vale dizer, por homicídio doloso consumado.

 81. As causas de justificação

Relativamente ao consentimento do ofendido valem inteiramente as regras gerais (arts. 38º e 149º CP). Assim, onde o resultado último da conduta do agente é a morte, e dada a natureza indisponível do bem jurídico em causa, a antinomia do titular do bem jurídico não é relevante, vale dizer que o consentimento não se mostra susceptível de dirimir a ilicitude. O ofendido poderá pois permitir a lesão da sua integridade física, e estar-se sob essa perspectiva das coisas perante uma disposição relevante, mas cuja eficácia justificativa cede onde intervém o resultado mortal.

 82. As formas especiais do crime

a)     TentativaA punibilidade da tentativa não é compatível com o que vem de

afirmar-se, uma vez que a verificação do resultado agravante supõe sempre a consumação do crime fundamental doloso (ofensas à integridade física simples ou grave). Isto porquanto só uma vez consumado este crime é que se poderá avaliar o perigo específico que aí se encerra para posterior imputação do evento agravante. Se este tem lugar independentemente da verificação da lesão dolosa ganha autonomia como crime negligente.

b)     ComparticipaçãoOs comparticipantes serão punidos de acordo com a moldura

praeterintencional sempre que tiverem a consciência de que a ofensa

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estava ligado um perigo típico, perigo esse que se podia concretizar num homicídio ou em ofensas à integridade física graves.

c)      ConcursoPoderá haver concurso efectivo com o art. 200º CP se o agressor,

além ter causado a morte ou as ofensas à integridade física graves, omitiu as medidas necessárias para o afastamento do perigo para a vida ou a integridade física do ofendido e que poderia tomar sem grave risco para si. O dolo do agente, ainda que eventual, abrange a morte da vítima, passará a existir concurso legal ou aparente entre esta disposição e os arts. 131º ou 132º CP. Inversamente o homicídio negligente previsto no art. 137º CP é consumido pelo art. 145º CP.

[16] Crime praeterintencional.

  

OFENSAS À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA 

83. Fundamento e âmbito de aplicação do tipo qualificadoRepousa este tipo legal no mesmo pensamento que presidiu à

construção do tipo legal de homicídio qualificado (art. 132º CP), ou seja, a ideia de “uma especial censurabilidade ou perversidade do agente”.

A aplicação deste art. 146º CP e o funcionamento da qualificação que aqui se prevê supõem a verificação de uma lesão da integridade física simples (art. 143º CP), grave (art. 144º CP), ou a ocorrência de um dos resultados que nos termos do art. 145º CP são susceptíveis de conduzir a uma agravação da responsabilidade do agente.

Além da verificação de qualquer destes resultados, necessário se torna que a conduta do agente revele uma censurabilidade acrescida, uma “especial censurabilidade ou perversidade”,para utilizar a expressão do legislador no art. 146º/1 CP, e que se mostra susceptível de decorrer de uma das circunstâncias previstas no art. 132º/2 CP, entre outras.

 84. O tipo de culpa

Todas as circunstâncias referentes no art. 132º/2 CP são relativas à culpa, e é feita a gravidade desta culpa assim indiciada que justifica, ou deixa fundar, a agravação de que fala o art. 146º/1 CP. E esta última proposição é certa, quer enveredemos pela caracterização destas circunstâncias como elementos da culpa, quer consideremos que todas estas circunstâncias dizem respeito ao tipo de ilícito, uma vez que mesmo sufragando esta última posição se terá que reconhecer que não basta o grau mais grave do ilícito, é necessário que este reflicta uma especial censurabilidade do agente, vale dizer,

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uma atitude não conforme com os valores fundamentais defendidos pelo ordenamento jurídico-penal.

O crime de ofensa à integridade física qualificada apenas é punível a título de dolo; o dolo eventual é suficiente.

 85. As formas especiais do crime

a)     TentativaA tentativa deste crime é punível sempre que o agente pratica

actos de execução do crime de ofensa à integridade física, sem que este chegue a consumar-se, em circunstâncias susceptíveis de revelar especial censurabilidade. Será todavia necessário que em causa estejam lesões da integridade física graves, uma vez que a moldura penal prevista para as lesões da integridade física simples não admite a punição da tentativa, e, por outra banda, afasta-se a consideração da tentativa relativamente ao crime praeterintencional do art. 145º CP.

b)     ComparticipaçãoA qualificação das lesões da integridade física deixa-se fundar

numa maior censura do agente, ou seja, é ao fim ao cabo um problema de maior culpa. Assim sendo, em caso de comparticipação encontra aplicação no art. 29º CP e não o art. 28º CP, sendo cada comparticipante punido segundo a sua culpa.

c)     ConcursoVerificando-se simultaneamente as circunstâncias objectivas de que

depende a qualificação (art. 146º CP), ou o privilegiamento (art. 147º CP), da ofensa à integridade física tem plena aplicação as referencias ao homicídio privilegiado.

 OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA PRIVILEGIADAS

 86. Fundamento e âmbito de aplicação do tipo privilegiado

A aplicação deste art. 147º CP coloca ao juiz duas diferentes questões: a primeira relacionada com o âmbito de aplicação desta disposição e com a análise dos seus pressupostos; a segunda, uma vez que se tenha enveredado pela aplicação do tipo privilegiado, com a atenuação especial da pena, a levar a cabo de acordo com as regras gerais nesta matéria.

 87. As formas especiais do crime

A não ser que se trate de lesões da integridade física enquadráveis no art. 143º CP a tentativa deste crime é possível e punível.

Está-se nestes casos perante um concurso de circunstâncias modificativas atenuantes, sendo à partida de admitir o funcionamento sucessivo de cada uma delas.

 OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA

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 88. O bem jurídico

É intenção do legislador proteger aqui a integridade física da pessoa viva contra ataques negligentes, pelo que o bem jurídico protegido é idêntico ao que subjaz aos tipos dolosos de ofensas à integridade física.

 89. O tipo objectivo de ilícito

Está-se perante um tipo legal de resultado, que se analisa em concreto na prática de ofensas à integridade física simples ou graves.

Acerca das condutas que integram cada um destes tipos legais de crime (arts. 143º e 144º CP). O tipo legal tanto pode ser preenchido por acção como por omissão, desde que, neste último caso, se possa afirmar em relação ao agente a existência de um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado (art. 10º/2 CP).

A lesão da integridade física terá que ser objectivamente imputada à conduta (ou omissão) do agente. O que supõe, pelo menos no caso de comportamento negligentes, a violação de um dever objectivo de cuidado.

É preciso ainda ter em conta aquelas situações em que, não tendo o agente respeitado o deve objectivo de cuidado que sobre ele impendia, vem a causar um resultado que provavelmente se produziria de igual modo se se tivessem observado todas as cautelas impostas pela ordem jurídica.

Não parece todavia ser de excluir a imputação do resultado ao agente em todo e qualquer caso em que provavelmente ele viria a verificar por outra via, como defende a teoria da evitabilidade (há cuidados que têm que ser observados mesmo com probabilidade não evitem o resultado), mas apenas naqueles casos em que a violação do dever de cuidado não traduza uma potenciação do risco relativamente ao comportamento esperado e exigido pela ordem jurídica (teoria da potenciação do risco).

Se desta forma (apurando o âmbito de protecção da norma, risco permitido, comportamentos alternativos conforme ao direito, princípio da confiança) se afastam todas aquelas situações em que o resultado não se deixa associar, sob um ponto de vista normativo, à violação do dever de cuidado, nem por isso deixa de ser necessário recorrer a um princípio de adequação para proceder à imputação do resultado produzido à conduta do agente. Fala-se assim de previsibilidade objectiva, sendo de imputar ao agente a lesão do bem jurídico sempre que esta surgir como uma consequência previsível e normal da violação do dever de cuidado.

 90. O tipo subjectivo de ilícito

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Para que se possa punir o agente por ofensa à integridade física negligente é necessário que este se encontre em condições de reconhecer as exigências de cuidado que lhe dirige a ordem jurídica e de as cumprir. Trata-se de uma medida individual, subjectiva, aferida de acordo com as suas possibilidade e capacidades concretas e que, em certos casos, poderá revelar-se susceptível de afastar a responsabilidade penal.

É necessário ainda que ao agente fosse possível actuar de outro modo.[17].

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91. As formas especiais do crimea)     TentativaDe acordo com o art. 22º CP, há tentativa quando “o agente pratica

actos de execução de um crime que decidiu cometer”. Ao incorporar por esta via na tentativa um elemento subjectivo, afastou-se a consideração deste instituto em relação aos crimes negligentes. Rejeitou-se a construção da tentativa como mero “perigo para os bens jurídicos tutelados”,concebido de forma geral e objectiva, e independentemente do seu reconhecimento por parte daquele que actua[18], para assim se optar por uma construção dualista da tentativa, ligada a um particular tipo de culpa que exclui a negligência.

b)     ComparticipaçãoSe bem que o domínio do facto ainda esteja remotamente presente

na negligência consciente, não é por apelo a esta teoria que se deixa caracterizar a autoria nos crimes negligentes, mas sim através da violação do dever jurídico de cuidado, que recai sobre o agente.

c)     ConcursoIntercede entre este tipo legal e a disposição sobre o roubo um

concurso legal ou aparente, sob a forma de uma relação de consumação, sendo de punir o agente através do art. 210º CP. Entre o art. 148º CP e o art. 200º CP, bem como o art. 259º CP, pode-se afirmar um concurso efectivo de crimes, sendo por conseguinte, de aplicar as regras gerais sobre o concurso.

[17] Exigibilidade de um comportamento conforme à ordem jurídico-penal.

[18] Tentativa enquanto tipo de ilícito.

 CONSENTIMENTO

 92. Generalidades

Em rigor, este preceito não seria indispensável, tendo em conta o regime geral do consentimento previsto nos arts. 38º e 39º CP. Este é, de resto, um dos aspectos que singulariza o Direito Penal em matéria de consentimento: a previsão de um regime geral da figura, no contexto da disciplina das derimentes gerais. A tendência do direito comparado é para inscrever oconsentimento como uma causa de justificação exclusivamente associada às ofensas corporais e, por vias disso, arrumada no capítulo correspondente da parte especial do Código Penal.

 93. Tipicidade e ilicitude

Trata-se seguramente de uma causa de justificação.A existência de um consentimento justificante, no contexto de um

paradigma dualista da concordância do portador concreto, pressupõe

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naturalmente o preenchimento da factualidade típica das ofensas corporais. E tanto do tipo objectivo como do tipo subjectivo. O art. 149º CP não se aplica, por isso, a factos ou eventos que, contendo embora com a integridade física ou a saúde, não configurem, todavia, ofensas corporais típicas.

 94. Objecto do consentimento

À semelhança do que, em geral, acontece em relação às ofensas corporais se põe, com particular relevo doutrinal e pragmático, o problema do objecto do consentimento. E também aqui tem de se subscrever a resposta sustentada pela opinião dominante. No sentido de que o consentimento tem de abranger cumulativamente:

a)     O resultado lesivo, já pelo seu relevo como dimensão do ilícito penal e como referente de segurança e estabilização do intersubjectiva; já, sobretudo, porquanto o poder de controlo sobre o resultado, como expressão concreta da lesão e da renúncia à tutela penal, é um elemento irredutível no regime do consentimento enquanto estatuto jurídico-penal daautonomia do portador concreto do bem jurídico.

b)     A acção entendida como a identificação do agente e a determinação das pertinentes circunstâncias de tempo, lugar, etc.

 95. Vícios da vontade

Para ser eficaz o consentimento tem de ser “livre e esclarecido” (art. 38º/2 CP). Por vias disso, o consentimento nas lesões corporais pressupõe normalmente um dever de esclarecimento ainda mais exigente do que o consagrado (art. 157º CP) para as intervenções médico-cirúrgicas. Além do mais, porquanto aqui não intervém nem faz sentido a invocação de qualquer limite correspondente ao chamado privilégio terapêutico, previsto para as intervenções médico-cirúrgicas (art. 157º CP).

Deve considera-se ineficaz o consentimento em dois grupos de casos:

1º     Erro sobre a finalidade altruística;2º     Situação análoga à do direito de necessidade.Apesar de tudo, é o erro espontâneo não dolosamente

provocado, que suscita as maiores divergências. Descontada a orientação tradicional, propensa a dar relevância a todo o erro, perfilam-se duas correntes divergentes.

A primeira privilegiando a posição do agente (e destinatário da declaração do consentimento) e, por vias disso, considerando irrelevante o erro, salvo duas excepções:

a)     Quando o erro é conhecido do agente, que dele se aproveita;b)     Quando sobre o agente impende o dever jurídico de esclarecer o

ofendido.

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A segunda entende, pelo contrário, que “o problema da origem do erro, saber se ele foi fraudulentamente provocado ou ficou a dever-se a outra razão, não tem significado para aeficácia do consentimento”. Por vias disso, estende a tese da invalidade do consentimento a todo o erro referido ao bem jurídico, mesmo espontâneo. O que significa tornar relevante o chamado erro na declaração e o erro sobre o conteúdo.

 96. Bons costumes

A lei portuguesa exige os “bons costumes” em limite e eficácia do consentimento. O intérprete e aplicador do direito acabarão, assim, por se confrontar com as dificuldades conhecidas da experiência jurídico-penal comparatística.

Um dado, à partida, avulta como líquido: à vista da sua indeterminação e dos pertinentes comandos constitucionais (legalidade/determinabilidade), a cláusula dos bons costumes terá de ser interpretada restritivamente. De resto, não se trata de fazer depender a validade do consentimento da conformidade com os bons costumes. O que tem de se provar é, antes, que o facto contraria os bons costumes, devendo superar-se a favor do arguido – isto é: da validade do consentimento – os casos de dúvida.

Para além disso, parece igualmente pacífico que o referente dos bons costumes é o facto – a lesão da integridade física – e não o consentimento em si.

Antes de uma definição positiva de bons costumes, uma aproximação pela negativa, que se projecta em duas conclusões decisivas:

a)     Ao contrário do entendimento dominante durante um logo período, a cláusula dos bons costumes não pode abrir porta à punição de lesões corporais (consentidas) em nome da sua imoralidade;

b)     Em segundo lugar, os bons costumes não podem sustentar a punibilidade de lesões corporais consentidas só porque preordenadas à prática de condutas ilícitas, mesmo criminalmente ilícitas.

Pela positiva, a fronteira dos bons costumes passa pela distinção entre ofensas ligeiras e graves. Precisamente a divisória subjacente à separação entre os arts. 143º e 144º CP e, por vias disso, entre os crimes semi-públicos e públicos. “Feitas todas as contas, parece ser o carácter grave e irreversível da lesão que deve servir para integrar, essencialmente, embora não só, a cláusula dos bons costumes”. No sentido de que as lesões ligeiras escaparão, em princípio, à censura dos bons costumes. Só não será assim nos casos excepcionais em que a lesão consentida viola uma expressa proibição legal

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directamente referida ao bem jurídico típico das ofensas corporais, isto é, ditada pelo propósito de proteger a integridade física.

O quadro é radicalmente outro do lado das ofensas graves e irreversíveis, que, por via de regra, serão contrárias aos bons costumes. Só não será assim nos casos em que a lesão esteja ao serviço de interesses de superior e inquestionável dignidade, reconhecida pela ordem jurídica.

 INTERVENÇÕES E TRATAMENTOS MÉDICO-CIRÚRGICOS

 97. Generalidades

O art. 150º CP deve ser lido numa relação de integração sistemática e de complementaridade normativa com os arts. 156º CP (intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários) e 157º CP (dever de esclarecimento). Três preceitos que, no seu conjunto, dão corpo positivado ao regime jurídico-penal das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos. Trata-se, resumidamente, de um regime que se analisa em dois enunciados fundamentais: em primeiro lugar, a proclamação da atipicidade das intervenções médico-cirúrgicas na direcção dos crimes de ofensas corporais e de homicídio; em segundo lugar, a punição dos tratamentos arbitrários como um autónomo e especifico crime contra a liberdade.

O art. 150º CP ganha um duplo alcance normativo:a)     Por um lado, cabe-lhe dar expressão normativa à decisão

político-criminal de excluir as intervenções médico-cirúrgicas do alcance das incriminações das ofensas corporais;

b)     Por outro lado, cabe-lhe definir o sentido e alcance do conceito jurídico-penal de intervenção médico-cirúrgica, e, por vias disso, delimitar a área problemática coberta pelo regime jurídico-penal das intervenções médico-cirúrgicas.

 98. A definição legal e os critérios da atipicidade

O enunciado da lei portuguesa – “não se consideram ofensa à integridade física” – é unívoco no sentido da atipicidade das intervenções médico-cirúrgicas na perspectiva das ofensas corporais. E é assim tanto nos casos em que a intervenção tem sucesso como nos casos em que ela falha.

A lei portuguesa assumiu, de forma consequente, a solução doutrinal que coloca a intervenção medicamente indicada e prosseguida segundo as leges artis fora da área de tutela típica das ofensas corporais e do homicídio. A produção dos resultados indesejáveis só relevará como ofensa corporal típica, quando representar a consequência adequada da violação das leges artis.

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Para exclusão das intervenções médico-cirúrgicas da factualidade típica das ofensas corporais é igualmente irrelevante a existência ou não de consentimento.

A definição legal de intervenção médico-cirúrgica integra um conjunto de elementos subjectivos e objectivos. Concretamente: dois elementos subjectivos e outros tantos de índole objectiva. Na síntese de Englisch, “só pode falar-se de intervenção terapêutica nos casos em, que se verifica, não apenas a indicação objectiva e a execução segundo as leges artis, mas também a direcção da vontade do agente para a terapia”. Numa aproximação mais analítica, do lado subjectivo exige-se, para além da específica qualificação do agente (há-de tratar-se de“médico ou pessoa legalmente autorizada”), a intenção terapêutica, compreendida pela lei portuguesa em termos particularmente amplos, abrangendo tanto o diagnóstico como a prevenção.Enquanto isto é do lado objectivo, exige-se a indicação médica e a realização segundo as leges artis.

Os quatro elementos são de verificação necessariamente cumulativa, resultando, por isso, reciprocamente redutores.

 99. Criação de perigo por violação das “leges artis”

O art. 150º/2 CP, pôs de pé a criação de um perigo “para a vida” ou de “grave ofensa para o corpo ou para a saúde”, como consequência de violação das leges artis. Com a sua consagração, o legislador quis assumidamente alargar o arsenal de meios punitivos dos ilícitos imputáveis aos médicos. Para além de responderem por ofensas corporais negligentes (art. 148º CP) e por intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários (art. 156º CP), os médicos passariam a responder também por um novo crime, que terá sido pensado como umcrime de perigo concreto.No plano objectivo, a infracção configura um crime específico próprio com a estrutura de um crime de perigo concreto. No tipo subjectivo só é punível o dolo, que tem de abarcar para além da intervenção com violação das leges artis, o perigo (para a vida, para o corpo ou para a saúde).

 PARTICIPAÇÃO EM RIXA

 100.    Generalidades

A interpretação desenvolvida do tipo de crime de participação em rixa, bem como a mediação sobre as razões de política criminal que nortearam o legislador, a par da análise da técnica legislativa utilizada para prosseguir a protecção dos bens jurídicos são os principais instrumentos para alcançar a dilucidação relativa à qualificação e classificação deste tipo de crime.

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 101.    Os bens jurídicos

A rixa pressupõe uma desordem, uma contenda física entre duas ou mais pessoas com golpes de reciprocidade. A conduta prevista no tipo de crime consiste em “intervir” ou “tomar parte”, assentando num envolvimento pessoal de cada um dos intervenientes, que contribuem desse modo para a desordem. É possível identificar, a partir desta ideia de rixa três elementos:

1)     A existência de uma contenda, ou seja, uma briga envolvendo agressões físicas;

2)     A participação de duas ou mais pessoas;3)     A vontade de intervir, ou tomar parte na rixa, pois está-se na

presença de um tipo doloso.O tipo legal de crime do art. 151º CP, pode interpretar-se como

sendo pluriofensivo, integrando um leque de bens jurídicos que de forma mediata ou imediata conhecem nesta incriminação uma tutela penal.

Os bens jurídicos protegidos pelo art. 151º CP, são a vida (art. 131º CP) e a integridade física (art. 144º CP).

 102.    O tipo objectivo de ilícito

O tipo objectivo de ilícito consiste em intervir ou tomar parte em rixa de duas ou mais pessoas. É que a ocorrência da morte ou de uma ofensa à integridade física grave, embora seja um elemento do tipo legal condicionante da punibilidade, não integra, todavia, o conteúdo do ilícito da participação em rixa.

Considera-se que este tipo de crime deve ser classificado como crime de perigo, a conduta de intervir ou tomar parte na rixa revela-se por si perigosa para a vida e para a integridade física, para além de ameaçar toda uma série de bens jurídicos que de forma mediata surgem acautelados. No entanto, só pode responsabilizar-se a conduta dos que intervêm na rixa nos casos em que essa perigosidade assume maiores proporções, concretizadas na verificação de uma morte ou de um ofensa grave à integridade física. As condições objectivas de punibilidade, neste caso, constituem uma indicação de quais os bens jurídicos tutelados pela norma.

A morte ou às ofensa à integridade física graves constituem condições objectivas de punibilidade do tipo legal de crime. O preenchimento do tipo esgota-se com a intervenção ou com o facto de tomar parte numa rixa de duas ou mais pessoas, não constituem por isso resultado típicos do crime. A exigência da verificação dos respectivos bens jurídicos, bem pelo contrário, só seria incompatível a consideração da morte ou da ofensa grave como resultado do tipo.

  103.    O tipo subjectivo de ilícito

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Exige o dolo em qualquer das suas formas contempladas no art. 14º CP: directo, necessário ou eventual. Mas este dolo refere-se exclusivamente à perigosidade da rixa e não ao resultado morte ou lesão corporal. Assim, é indiferente a representação ou não da eventualidade do resultado, indiscutível e suficiente é a representação e conformação com a perigosidade da rixa: dolo de perigo concreto. Sendo a morte ou a lesão corporal grave uma condição objectiva de punibilidade, evidente se torna a irrelevância da não representação ou da não conformação com um tal resultado.

Considerada a acção descrita no art. 151º/1 CP como um tipo legal de crime de perigo concreto, então não basta, para afirmação do respectivo dolo, a representação e conformação com a perigosidade abstracta da participação na rixa, mas exige-se o conhecimento do perigo que concretamente a rixa, em que se participa, constitui para a vida ou integridade física substancial.

 104.    As causas de justificação

Dadas as particularidades do crime de participação em rixa (contribuição causal e voluntária de cada um dos participantes na criação da situação de perigo para os bens vida e integridade física substancial), resulta complexa a questão da justificação, tanto mais quanto é certo que a prática de uma tal conduta de verdadeira participação em rixa nunca está ao serviço da realização de qualquer interesse juridicamente protegido.

Não tem sentido a invocação do consentimento, uma vez que, sendo este pressuposto pelo próprio conceito de rixa, mesmo assim a lei considera a rixa como crime. Além desta decisiva razão, acresce ainda o facto de estarem em causa bens jurídicos indisponíveis: a vida e a integridade física (art. 144º CP).

A única causa de justificação que é pensável em relação à participação em rixa é a legítima defesa, própria ou alheia. Todavia, em relação à legítima defesa própria, uma vez que cada um dos participantes é, simultaneamente, agressor e agredido, nunca poderá um participante na rixa exercer qualquer direito de legítima defesa, enquanto não abandonar, manifestamente, a rixa.

Diferente já é o caso da justificação de uma acção mortal praticada por um dos participantes sobre um outro que, no decurso da rixa constituída por ofensas corporais mesmo que graves, se decide e prepara para matar aquele. Aqui, poderá considerar-se justificado o homicídio com base no direito de necessidade defensiva, mas não a acção de participação em rixa.

Diferente é o tratamento da intervenção de um terceiro com o objectivo de separar os contendores ou de defender um deles. O art. 151º/2 CP contém uma disposição específica para estas situações: “a participação em rixa não é punível quando for determinada por motivo

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não censurável nomeadamente quando visar reagir contra um ataque, defender outrem ou separar os contendores”. Esta norma consagra expressamente um direito de intervenção de um terceiro alheio à criação ou desenvolvimento da situação de rixa.

Apesar de na simples rixa (tipo legal de perigo abstracto que, como não está previsto no art. 151º/1 CP) serem afectados apenas bens jurídicos disponíveis (a integridade física simples: arts. 143º e 149º/1 CP), deve entender-se que mesmo em relação a esta rixa mantém-se o direito de intervenção de terceiro, direito que, nesta hipótese, se traduz em separar os contendores.

Considerar-se-á agora, o direito de intervenção de terceiro, quando a rixa constitui um perigo concreto de lesão de vida ou da integridade física grave dos contendores:

a)     A primeira hipótese prevista no art. 151º/2 CP – “quando visar reagir contra um ataque”. Quando alguém se vê obrigado a envolver-se fisicamente com outrem que o vai agredir, não está a participar ou a tomar parte numa rixa (nem sequer a pôr-lhe termo), mas pura e simplesmente a reagir contra uma agressão, face à qual tem o direito de legítima defesaou, pelo menos, o direito de necessidade defensiva.

b)     Segunda hipótese prevista no art. 151º/2 CP – “quando visar […] defender outrem” – contempla as situações em que, no decurso da rixa um ou alguns dos corrixantes se vêem na impossibilidade física de reagir contra as agressões do outro ou outros. A partir de um tal momento, a intervenção de um terceiro pode configurar-se como um direito de necessidade defensiva (“legítima defesa limitada”) alheia.

c)     A terceira hipótese – “quando visar […] separar os contendores” – configura um direito de necessidade defensiva alheia. Cada um dos contendores, dada a indisponibilidade dos bens jurídicos lesados pela rixa, ou em risco de o serem, é simultaneamente agredido e agressor. Assim, o terceiro tem em relação a todos eles, enquanto agressores, o direito de impedir essas agressões. E, na medida em que todos são agressores, tem esse direito em relação a todos eles (contendores). A forma de impedir essas mútuas agressões é separá-los, pondo, assim, termo à rixa.

Esta intervenção positiva (no sentido de impedir danos ainda mais graves num dos rixantes ou de pôr termo à rixa) pode converter-se de um direito num dever, quando sobre o terceiro recaia um dever de garante, nos termos do art. 10º/2 CP, face aos rixantes ou algum deles. É claro que este dever de intervenção está condicionado à inexistência de riscos graves para a vida ou integridade física do terceiro.

 

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105.    As causas de exclusão de culpaNesta matéria, pouco há que registar de específico. Quanto aos

verdadeiros participantes na rixa (art. 151º/1 CP), apenas haverá que ter em conta a eventual inimputabilidade (art. 20º/1 CP) dos ou de algum dos participantes. Quanto à intervenção de terceiro (art. 151º/2 CP), poderá haver situações de excesso no exercício do direito de intervenção, devido a eventuais perturbações não censuráveis (excesso do direito de necessidade defensiva), aplicando-se, analogicamente, o art. 32º/2 CP. 106.    Morte ou ofensa corporal grave como condições objectivas

de punibilidadePor condições objectivas de punibilidade stricto sensu, entende-se

as condições que se têm de verificar para que aqueles que praticam um facto típico ilícito e culposo possam ser punidos.

Integram a categoria analítica da punibilidade e constituem situações positivas de cuja verificação depende a possibilidade de responsabilização dos agentes. Para além de se registar a existência de algumas destas condições com carácter geral, alguns tipos legais, exigem especificamente que, para além da conduta do agente ter de preencher os elementos objectivos e subjectivos do tipo, tenha ainda de provocar a verificação de determinada situação objectiva.

No tipo legal de crime de participação em rixa a morte e a ofensa à integridade física constituem condições objectivas de punibilidade. Neste crime a conduta do agente consiste em intervir ou tomar parte na rixa, para o preenchimento do tipo de ilícito basta que alguém dolosamente intervenha ou tome parte na rixa de duas ou mais pessoas.

Para a punibilidade dos participantes, quer o dano se verifique num dos participantes, quer se verifique em terceiro que nada tenha a ver com a rixa; a única ligação necessária é de carácter puramente objectivo, e traduz-se na existência de uma imputação objectiva com a rixa. Podendo ocorrer a qualquer título de imputação subjectiva e em qualquer vítima.

 107.    As formas especiais do crime

a)     ComparticipaçãoÉ um tipo legal de crime de comparticipação necessária.b)     ConcursoExcluída fica à partida, qualquer possibilidade de concurso com o

crime de ofensas corporais simples (art. 143º CP). É que, pressupondo a participação em rixa a aceitação livre de recíprocas ofensas corporais, estas, quando simples, não podem ser consideradas ilícitas (art. 149º/1 CP).

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Em rigor não se pode falar de verdadeiro concurso de crimes, mas tão só em concurso de normas (concurso legal) o que se traduz num problema de determinação da norma aplicável.

A relação de concurso aparente consagra-se por conexões de subordinação e hierarquia, podendo identificar-se essencialmente três tipos de relações: especialidade (sempre que um dos tipos incorpore os elementos essenciais do outro acrescentando-lhe elementos especializadores que pretendem conceder maior precisão àquela situação. Uma norma prevalece sobre a outra por particularizar dentro daquele tipo de crime a forma de cometimento do mesmo. Centra-se numa conexão de relatividade, uma norma é especial em relação a outra que é geral, ou então é ainda mais especializada do que outra já de si especial. Uma das normas contém todos os elementos da outra, aditando-lhe elementos suplementares que constituem a especialização); subsidiariedade (nos casos em que uma norma vê a sua aplicabilidade condicionada pela não aplicabilidade de outra norma, só se aplicando a norma subsidiária quando a outra não se aplique. A norma prevalente condiciona de certo modo o funcionamento daquela que lhe é subsidiária. Está-se perante um concurso por força da subsidiariedade nos casos em que as normas se condicionam expressamente, ou seja, por imposição da própria lei – subsidiariedade expressa; ou nos casos em que há uma relação lógica detectada através de um raciocínio interpretativo que permite extrair essa conclusão – subsidiariedade implícita.); consunção (sempre que um tipo de crime faça parte, por definição, de um outro. A descrição típica de uma norma é de tal forma ampla que acaba por abranger elementos da descrição típica da outra. O âmbito de protecção visado por uma das normas acaba por ser consumida pela norma mais abrangente, tornando dispensável a sua aplicação, uma vez que os interesses que pretende salvaguardar estão assegurados pela aplicação da outra. A relação de consumação acaba por colocar em conexão os valores protegidos pelas normas criminais. Não deve confundir-se com a relação de especialidade, pois ao contrário do que se verifica naquela relação de concurso de normas, a norma prevalente não tem necessariamente de conter na sua previsão todos os elementos típicos da norma derrogada).

Quanto ao concurso existente entre o tipo legal de crime de participação em rixa e o de homicídio. Sempre que esteja em causa determinar a responsabilidade daquele que durante uma rixa mata alguém, deve proceder-se no apuramento da sua responsabilidade criminal, a um concurso aparente, fruto da relação de consunção em que os tipos legais de crime de participação em rixa e de homicídio se encontram.

A relação concursal aqui existente estabelece-se entre um crime de dano e um crime de lesão para o mesmo bem jurídico[19].

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O tipo legal de crime previsto no art. 151º CP procura tutelar a vida e a integridade física, e o âmbito desta tutela fica salvaguardado se for possível imputar ao agente a prática de um crime de homicídio, cuja abrangência envolve a tutela que a participação em rixa pretende proteger.

No que diz respeito ao crime de ofensa à integridade física grave, previsto no art. 144º CP, e à sua relação com a participação em rixa, entende-se haver igualmente um concurso aparente por força da consunção. As razões invocadas para o homicídio aplicam-se, mutatis mutandis, para este crime. O agente deve ser punido pelo crime mais grave por ele praticado, ou seja, o de ofensas corporais graves. Uma vez que esta situação configura um exemplo de dispensa de aplicação do crime de participação em rixa. Pois também aqui se pune a consumação da lesão e se deve afastar a incriminação do simples perigo por esta estar abrangida pela primeira.

Tratando-se de crimes que tutelam o mesmo bem jurídico, o crime de homicídio e o de participação em rixa, têm um campo de aplicação que se entrecruza. A participação na rixa protege a vida e a integridade física, nomeadamente em situações que envolvem perigo para esses bens jurídicos, mas só faz sentido responsabilizar o agente que com a sua conduta preenche os pressupostos desta incriminação se a sua conduta não lesou efectivamente a vida ou a integridade física de outros intervenientes ou de terceiro. Pois, neste caso, ele deverá ser incriminado pela norma mais abrangente e mais grave. [19] Se o bem jurídico colocado em perigo e o que for efectivamente lesado não corresponderem, ou seja, se não se

estiver perante o mesmo, o concurso será necessariamente efectivo, pois o desvalor do facto não pode ser abarcado por um só dos tipos de crime mas apenas por ambos em conjunto.

MAUS-TRATOS E INFRACÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA 

108.    GeneralidadesA função do art. 152º CP é prevenir as frequentes e, por vezes,

tão “subtis” quão perniciosas – para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento da personalidade ou para o bem-estar – formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho. A necessidade prática da criminalização das espécies de comportamentos descritos neste art. 152º CP resultou de um duplo factor: por um lado, o facto de muitos destes comportamentos não configurem em si o crime de ofensas corporais simples (art. 143º CP), como é o caso das condutas descritas no art. 152º/1-b) e c) CP; por outro lado, a criminalização destas condutas, com a consequente responsabilização penal dos seus agentes, resultou daconsciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos.

 109.    O bem jurídico

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A ratio do tipo não está, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. O âmbito punitivo deste tipo de crime inclui os comportamentos que, de forma reiterada, lesam esta dignidade. Se, em tempos passados, se considerou que o bem jurídico protegido era apenas a integridade física, constituindo o crime de maus-tratos uma forma agravada do crime de ofensas corporais simples, hoje, uma tal interpretação redutora é, manifestamente, de excluir.

 110.    O tipo objectivo de ilícito

O crime de maus-tratos, de sobrecarga ou de violação das normas de segurança no trabalho pressupõe um agente que se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo daqueles comportamentos. É, portanto um crime específico. Crime específico que será impróprio ou próprio, consoante as condutas em si mesmas consideradas já constituam crime, ou consoante as condutas não configurem em si mesmas qualquer crime.

Sujeito passivo ou vítima só pode ser a pessoa que se encontre, para com o agente, numa relação de subordinação existencial, de subordinação laboral, ou numa relação decoabitação conjugal ou análoga. Relativamente aos que se encontram numa relação de subordinação existencial, exige-se, ainda, que seja menor (de 18 anos) ou particularmente indefesa, em razão da idade, doença, deficiência física ou psíquica, ou gravidez.

 111.    O tipo subjectivo de ilícito

Este crime exige dolo. Todavia, uma vez que este crime tanto pode ser um crime de resultado (caso de maus-tratos físicos) como de mera conduta, como ainda noutra perspectiva, tanto pode ser um crime de dano como crime de perigo, o conteúdo do dolo é variável em função da espécie de comportamento do agente.

 112.    As formas especiais do crime

a)     ComparticipaçãoO crime previsto no art. 152º CP é um crime específico, que tanto

pode ser próprio como impróprio, isto é, a especial relação existente entre o agente e a vítima fundamenta, nuns casos, a ilicitude do comportamento, e, noutros, apenas agrava a ilicitude deste. Ora, atendendo-se quer à gravidade da pena, quer ao facto de poderem subsumir-se ao tipo legal condutas pela incomunicabilidade das relações especiais, funcionando, pois, a excepção prevista na parte final do art. 28º/1 CP. Autor ou cúmplice deste crime só pode ser, pois, quem estiver, para com o sujeito passivo, na relação prevista no tipo legal.

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Relativamente a pessoas que estejam nas relações de protecção previstas, então já são possíveis as diversas espécies de autoria (nomeadamente a co-autoria) e a cumplicidade.

b)     ConcursoEntre o crime de maus-tratos físicos ou psíquicos (art. 152º/1-a CP)

e o crime de ofensas corporais simples (art. 143º/1 CP) existe uma relação de especialidade, só se aplicando, portanto, a pena estabelecida para aquele. O mesmo se diga da relação entre o crime de maus-tratos (psíquicos) através de ameaças (art. 152º/1-a, 2ª parte CP), e o crime de ameaça(art. 153º CP), de difamação (art. 180º CP) ou de injúria (art. 181º CP), em que também o concurso é aparente, cedendo estes àquele.

Entre o crime de maus-tratos e o crime de ofensas corporais graves (art. 144º CP) há uma relação de consumação, aplicando-se somente a pena prevista para este crime.

 113.    Agravação pelo resultado

O art. 152º/4 CP prevê duas hipóteses de agravação da pena dos crimes descritos no art. 152º/1, 2 e 3 CP. De acordo com o princípio geral de exclusão da responsabilidade penal objectiva, o resultado mais grave e não representado pelo agente tem de poder ser imputado ao agente a título de negligência (art. 18º CP).

A agravação da pena para prisão de 2 a 8 anos pressupõe o seguinte: lesão grave da integridade física (art. 152º/4-a CP); relação de adequação, segundo o juízo ex ante, entre a conduta ofensiva ou as múltiplas acções ofensivas da integridade física, a perigosidade das actividades ou a perigosidade resultante da não observância das regras de segurança no trabalho e a lesão corporal grave; não representação do resultado, embora o devesse ter representado (negligência inconsciente) ou representação, do risco da ocorrência de tal resultado, mas sem a conformação com tal risco (negligência consciente), pois caso o agente aceite o risco de tal resultado há o crime de ofensas corporais graves (art. 144º CP), aliás como refere a parte final do art. 152º/1-c CP.

A agravação da pena para prisão de 3 a 10 anos (art. 152º/4-b CP) pressupõe, do mesmo modo, que entre o resultado morte e os maus-tratos, físicos ou psíquicos, as actividades perigosas, o trabalho excessivo ou a não observância das regras de segurança haja uma relação de adequação (previsibilidade objectiva) e uma violação do dever subjectivo de cuidado.