ARISTÓFANES, A EDUCAÇÃO EM AS NUVENS - Programa de … · profissionais, chamados sofistas, que...

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1 doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.04008 ARISTÓFANES, A EDUCAÇÃO EM AS NUVENS MEDEIROS, Andressa Carolina (Cesumar) BORDIN, Reginaldo Aliçandro (Cesumar-PPE/UEM/PUC-PR) Introdução O objetivo deste texto é discutir a concepção de educação na comédia de Aristófanes, As Nuvens. As comédias foram um gênero teatral em que seus personagens encenavam aspectos da vida: nelas se realizavam críticas políticas, denúncias e o comportamento dos homens. Sua importância, para além da natureza artística e teatral, encontra-se no fato de o autor colocar em relevo, nos seus personagens, as mudanças que se processaram na sociedade, na educação e na escola. Em seus personagens, a exemplo de Sócrates (469-399 a.C.), o autor denuncia o descompasso da educação no cumprimento de seus objetivos ao mesmo tempo em que apresenta um novo modelo de formação e de homem que ela deveria formar. Foi Aristófanes o comediante mais importante da Grécia Clássica. Nasceu na Grécia por volta de 448 a.C. e lá morreu em 380. Era pertencente de uma classe social composta de ruralistas empobrecidos. Contemporâneo de Sócrates (469 – 399 a.C.) e de Platão (427 – 347 a.C.), Aristófanes compreendeu de forma extraordinária as profundas transformações sociais de seu contexto. Essa é a justificativa para a retomada do clássico As Nuvens como objeto de estudo. Aristófanes captou e revelou as contradições e as lutas que permeavam o movimento dos homens, tanto nos âmbitos institucionais quanto nos indivíduos que a constituem (NAGEL, 2006). Em suas comédias, Aristófanes retratou a vida e viu com clarividência a dissolução de toda a herança espiritual do passado e não ficou impassível diante dessa dissolução. Além disso, Aristófanes não estabeleceu a crítica apenas ao universo da polis grega, mas também às maneiras malcriadas e excêntricas dos representantes da nova educação

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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.04008

ARISTÓFANES, A EDUCAÇÃO EM AS NUVENS

MEDEIROS, Andressa Carolina (Cesumar)

BORDIN, Reginaldo Aliçandro (Cesumar-PPE/UEM/PUC-PR)

Introdução

O objetivo deste texto é discutir a concepção de educação na comédia de

Aristófanes, As Nuvens. As comédias foram um gênero teatral em que seus personagens

encenavam aspectos da vida: nelas se realizavam críticas políticas, denúncias e o

comportamento dos homens. Sua importância, para além da natureza artística e teatral,

encontra-se no fato de o autor colocar em relevo, nos seus personagens, as mudanças que

se processaram na sociedade, na educação e na escola. Em seus personagens, a exemplo de

Sócrates (469-399 a.C.), o autor denuncia o descompasso da educação no cumprimento de

seus objetivos ao mesmo tempo em que apresenta um novo modelo de formação e de

homem que ela deveria formar.

Foi Aristófanes o comediante mais importante da Grécia Clássica. Nasceu na

Grécia por volta de 448 a.C. e lá morreu em 380. Era pertencente de uma classe social

composta de ruralistas empobrecidos. Contemporâneo de Sócrates (469 – 399 a.C.) e de

Platão (427 – 347 a.C.), Aristófanes compreendeu de forma extraordinária as profundas

transformações sociais de seu contexto. Essa é a justificativa para a retomada do clássico

As Nuvens como objeto de estudo. Aristófanes captou e revelou as contradições e as lutas

que permeavam o movimento dos homens, tanto nos âmbitos institucionais quanto nos

indivíduos que a constituem (NAGEL, 2006).

Em suas comédias, Aristófanes retratou a vida e viu com clarividência a dissolução

de toda a herança espiritual do passado e não ficou impassível diante dessa dissolução.

Além disso, Aristófanes não estabeleceu a crítica apenas ao universo da polis grega, mas

também às maneiras malcriadas e excêntricas dos representantes da nova educação

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(JAEGER, 2001). Tudo indica que ele tinha verdadeira aversão às novas formas de

educação, tal como expressa no seu célebre texto, As Nuvens.

Apresentada em 423 a.C., As Nuvens está situada no conjunto das transformações

que redefiniram o cenário da hélade. Até aquele momento, os gregos tinham visto o

declínio da aristocracia, de seu modo de vida e da organização política. Assistiram, ainda, à

decadência das antigas crenças míticas frente ao surgimento de uma nova sabedoria, a

racionalidade filosófica. Além disso, em seu horizonte, despontava desde o século VII a.C.

uma nova modalidade política que deslocava o centro do poder da vida familiar para a

ágora. Os ritos políticos, tão caros ao mundo homérico, cederam espaço para o uso da

palavra e da força da persuasão, próprios da democracia. A palavra, segundo Jean-Pierre

Vernant, não era mais o termo ritual, mas o debate contraditório, a discussão e a

argumentação. A arte política, portanto, era exercida essencialmente pelo uso da linguagem

e, nesse aspecto, a retórica e a sofística tornavam-se instrumentos eficazes nas lutas da

assembleia e do tribunal (VERNANT, 2003).

A importância do uso da palavra está na origem do novo modelo educacional,

criticado por Aristófanes, iniciado em meados do século V a.C. na Grécia, tendo Atenas

como seu centro. Essa revolução na educação dá-se com o surgimento de instrutores

profissionais, chamados sofistas, que ofereciam instrução em retórica, filosofia e política

aos jovens que dispusessem de ócio suficiente para o estudo e de recursos para pagar seus

substanciais honorários (FINLEY, 1988).

Essas mudanças, que afetaram a vida do ateniense, foram percebidas por

Aristófanes ao apontar o que considerava a crise dos valores morais e políticos. Essa crise

também foi observada por outros intelectuais, como Platão em Teeteto. É possível, assim,

constatar um caráter de movimento da intelectualidade, em uma época em que muitos deles

estavam questionando e, muitas vezes, desafiando crenças tradicionais profundamente

enraizadas, tanto na área religiosa, quanto na ética e na política. Assim, Aristófanes juntou-

se ao ataque em sua peça, As Nuvens e, em razão disso, repensou a função da educação e

seus objetivos. Sua postura crítica justifica a importância de sua obra para a História e para

a Filosofia da Educação.

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Aristófanes, a Educação em As Nuvens

Entre os mais reconhecidos produtos do mundo helênico está o teatro. Os helenos

eram apaixonados por essa forma de arte e, como de costume, pelo menos nos séculos V e

IV a.C, realizavam disputas públicas: as tragédias de Ésquilo (525-456 a.C), de Eurípides

(484-406 a.C.) e de Sófocles (496-406 a.C.) eram bem apreciadas pelo público, atento às

suas encenações. Ao lado desse gênero dramático, que refletia o conflito que caracterizava

a condição humana e social do grego, estava outra modalidade: a comédia, gênero artístico

que ocupava espaço importante na vida dos cidadãos gregos. Sua finalidade não pode ser

considerada, como se crê à primeira vista, apenas a de provocar nos ouvintes o riso. Mais

que isso, a comédia realizava uma crítica contundente à vida pública, política e também

assumia uma função pedagógica.

As peças teatrais eram apresentadas sob a forma de concurso durante três festivais

anuais em honra ao deus Dionísio. A administração desses festivais ficava por conta de um

arconte1, o principal magistrado civil de Atenas. O Estado bancava os custos do teatro,

com o pagamento do coro2, dos prêmios e dos coregos3, espécie de mecenas da época,

responsáveis pela manutenção dos atores, dos cenários e dos figurinos. Cada concurso era

composto de três peças trágicas e cinco cômicas. Os prêmios eram destinados aos poetas e

também aos atores e coregos (VASCONCELLOS, 1987).

A comédia procurou realizar uma função crítica da polis, graças à junção de dois

fatores: o franco falar (parrhesía) e certos traços herdados de suas origens nos festivais de

encerramentos agrícolas do ano. O termo parrhesía é oriundo do sistema democrático e

pode ser traduzido nos dias atuais como “liberdade de expressão”. Quanto à herança da

origem rural, é possível observar uma linguagem mais coloquial, que se distancia da

1 Era o responsável por credenciar os concorrentes que desejavam produzir suas peças no festival para obterem um coro (VASCONCELLOS, 1987, p.20). 2 A principal característica do coro é falar ou cantar em uníssono. Em As Nuvens, o coro estabelece a ligação entre os discursos, promove a mediação entre os personagens e assume posições intermediárias (VASCONCELLOS, 1987, p.58-59). 3 O corego era um dos cidadãos de posses da comunidade, apontado pelo arconte para assumir as despesas relativas ao coro, aos músicos, aos figurinos e aos adereços. Consta que ser escolhido como corego era tido como alta honraria (VASCONCELLOS, 1987, p.57).

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erudita. Temas considerados chulos, como a digestão, a excreção e a reprodução são

retratados de forma natural, comum (TSURUDA, 2007).

“Nas comédias apareciam caricaturas de assembleias, caricaturas de políticos, ou de

pessoas conhecidas, como Eurípedes ou Sócrates, designados pelos próprios nomes”

(ROMILLY, 1984, p.120). Dessa forma, os atores gozavam de ampla liberdade para

criticar figuras públicas e particulares, além de proporcionar um caráter licencioso ao

gênero cômico.

No caso de As Nuvens, o enredo conta a história de Strepsiades, um velho

camponês que procura uma maneira de não quitar suas dívidas contraídas para satisfazer os

desejos de seu único filho, Fidipides, fruto de um casamento desastroso com uma mulher

nobre. Fidipides fora criado como um nobre e como tal, o pai endividou-se por conta do

esporte aristocrático predileto do filho: hipismo.

Logo depois do nascimento deste filho meu e de minha muito boa esposa, eu e ela discutimos sobre o nome a dar a ele. Ela queria que o nome tivesse alguma coisa que lembrasse “cavalo4”: Xântipo, Cáripo ou Calipides. Eu, pensando no avô dele, queria que fosse Filonides5. A discussão durou muito tempo, mas finalmente a gente concordou com Fidipides. Ensinando a ele as palavras a mãe dizia: “Quando você guiar o seu carro para ir à cidade, como Megaclés, vestindo uma túnica da cor de púrpura...”. E eu dizia: “Em vez disso, quando você trouxer as cabras do monte Fileu6, como seu pai, vestido com uma pele de cabra...”. Mas ele não quis de jeito nenhum ouvir as minhas palavras e atropelou meus bens com seus cavalos. Agora, obrigado a procurar durante toda a noite a melhor saída, só achei uma: um caminho divinamente maravilhoso; se eu puder convencer meu filho a seguir esse caminho, estou salvo! [...] (ARISTÓFANES, 2000, p. 16).

Nos conflitos entre pai e filho, Aristófanes descortina a mudança: o filho não se

sujeita aos valores paternos e nem à obediência que caracterizaram o mundo homérico,

como se verá adiante. Em vista da rebeldia de Fidipides, Strepsiades vê no pensadouro, ou

seja, na escola, um meio de inculcar no filho os valores que o pai não conseguiu realizar.

Ao colocar essa discussão em tela, Aristófanes demonstra que a escola se tornou a

instituição responsável pela formação dos homens. Além disso, na nova configuração

4 Cavalo em grego é híppos (ARISTÓFANES, 2000, P.104). 5 Philonides significa”parcimonioso” em grego (ARISTÓFANES, 2000, P.104). 6 Fileu: um monte situado na Ática, próximo a Atenas.

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social, os valores familiares da nobreza não correspondem mais às exigências da vida

produtiva, pois deixaram de ser a guerra e os valores cavalheirescos. Em função disso,

Aristófanes pontuou o descompasso dos conteúdos formativos transmitidos pela escola,

que não interessavam ao filho e que escapavam da compreensão do pai.

Ali é o “pensadouro”, a escola dos espíritos sábios. Lá dentro vivem pessoas que, falando a respeito do céu, nos convencem de que ele é um forno que cobre a gente e de que a gente é o carvão dele. Aqueles caras ensinam os outros, se eles quiserem contribuir com algum dinheiro, a tornarem vitoriosas todas as causas, justas ou injustas, usando só as palavras (ARISTÓFANES, 2000, p. 18).

Em As Nuvens, Aristófanes desdenhou dessa nova educação, representada pelos

sofistas, grupo de filósofos que procurou estabelecer uma postura baseada no princípio do

relativismo ético e político, como se verá em Protágoras mais adiante. No decurso da

comédia, os sofistas são apresentados como loucos, excêntricos e trapaceiros. Além disso,

Aristófanes os culpa de destruírem a moral e a religião, ensinando não ser o sol mais que

uma pedra dourada, ridicularizando os antigos deuses, introduzindo novas divindades e

corrompendo os jovens, inculcando nestes o desrespeito pelos pais e pelos mais velhos

(FINLEY, 1991).

Ao mesmo tempo, essa nova educação ateniense, observada em As Nuvens, se

revela mais preocupada com a formação puramente artística e esportiva do que com e

intelectual:

esta educação não é absolutamente técnica, mas permanece orientada para a vida nobre e seus ócios; estes aristocratas atenienses, apesar de serem grandes latifundiários e homens políticos, nada recebem, em sua educação, que os prepare para essas atividades (MARROU, 1975, p.77).

Dessa forma, o ensino dos sofistas preconizava a natureza prática da linguagem em

seu aspecto persuasivo (a retórica), reduzindo a educação a um caráter utilitário.

Os ataques de Aristófanes às consideradas formas modernas de educação aparecem

na construção que fez dos personagens. Por meio das figuras do pai, do filho, do escravo,

do credor, do discípulo, do mestre, das ideias de raciocínio justo e injusto, ele expressa seu

posicionamento diante da função da escola, dos conteúdos e metodologias. O autor

procurou delinear as teorias e as práticas educacionais que os homens de sua época

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consideravam ultrapassadas ou adequadas. Registrou também a contraposição dos valores

assumidos pelos professores e pelos alunos, expressando as necessidades de uma sociedade

em crise ou em transformação (NAGEL, 2006).

Nesse período, é importante destacar que, dada às transformações pelas quais

passou a sociedade ateniense, a educação não era mais familiar, como em Homero, mas

realizada por uma instituição específica – os pensadouros. O surgimento da escola está

relacionado à necessidade de educar uma demanda crescente de crianças. Por isso, um

ensino individual seria incompatível com a realidade. Essa demanda crescente pode estar

relacionada, segundo Moses Finley, à Guerra do Peloponeso, que compeliu a população

rural a abandonar o campo e viver dentro dos limites dos muros da cidade (FINLEY,

1988).

Com base no modelo da formação homérica, a areté aristocrática foi convelida pela

educação dos sofistas e a crítica recai sobre os métodos, os fins da educação e sobre os

resultados finais. Não se formava mais o herói, o homem virtuoso que aliava com

excelência a perfeição física e a intelectual (espiritual). Por outro lado, o produto dessa

nova educação era o disputador (erístico), um modelo de homem que tem por objetivo

sempre vencer pelo discurso e, consequentemente, ganhar dinheiro com isso.

Esse tema, discutido e rejeitado por Platão no Teeteto, indicava que o caminho

aberto pelos sofistas abria uma discussão importante no mundo clássico a respeito da

possibilidade de que qualquer cidadão grego poderia governar, desde que fosse habilidoso

na arte da retórica. Na polis essa ideia tinha uma consequência abrangente, pois, a rigor,

relativizava a norma – já que a nobreza considerava a participação na vida pública um

dever sagrado e, portanto, hereditário – e implicava em transformar as decisões públicas

acessíveis aos que não eram de linhagem nobre. Esse postulado é revelador da dimensão da

mudança política na Grécia de Aristófanes: a nova sociedade civil havia construído um

modelo de Estado, distinto do aristocrático, cujo ideal de homem deveria ser compatível

com as exigências em curso.

Aristófanes revela o valor comercial da nova educação, uma vez que os sofistas

cobravam para ensinar. Protágoras, um dos maiores representantes da sofística e um

defensor desse princípio, foi o primeiro que propôs o exercício do ofício de professor

mediante um pagamento. “Protágoras pedia a considerável soma de dez mil dracmas (a

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dracma [...] representava o salário diário de um operário qualificado)” (MARROU, 1975,

p.86).

Além disso, outra crítica aos sofistas feita por Aristófanes é a inutilidade de alguns

conteúdos ensinados.

DISCÍPULO: Ele disse que os intestinos dos mosquitos são muito finos; o cólon, sendo estreito, obriga o ar a passar com força diretamente até o traseiro; depois, saindo através do reto apertado, faz o ânus ressoar por causa da violência do sopro. STREPISIADES: Então o traseiro dos mosquitos é uma trombeta! O autor desta descoberta é triplamente feliz! Com certeza, quem conhece bem o intestino pode escapar facilmente de uma condenação se for acusado [...] (ARISTÓFANES, 2000, p. 22).

Para retratar a educação sofística, Aristófanes construiu um quadro cômico e, ao

fazê-lo, utilizou-se de dois personagens alegóricos, os logos justo e o logos injusto. Ao se

optar por um ou por outro raciocínio, o que entra em questão são as consequências para o

indivíduo e para o coletivo. Aristófanes levanta um questionamento sobre a função da

educação: ela deve formar o homem com valores morais e sociais ou se ater às

preocupações instrumentais, técnicas apenas?

Segundo o estudioso da paideia grega, Werner Jaeger, a antiga educação – o logos

justo - foi caracterizada como aquela que exige da criança uma conduta virtuosa.

(JAEGER, 2001).

Então vou dizer como era a educação antiga, quando eu ganhava dinheiro ensinando a justiça e todos cultivavam a moderação. Para começar, as crianças andavam em silêncio; todos os meninos de cada bairro andavam nas ruas em perfeita ordem, a caminho da casa do professor de música, sem mantos e em grupos bem alinhados, ainda que a neve caísse como farinha de trigo de uma peneira. Lá o professor ensinava antes de tudo um hino [...]. Nunca podiam comer raiz forte no jantar, nem tirar dos mais idosos o aneto e o aipo, ou ser gulosos, ou rir às gargalhadas, ou cruzar as pernas. [...] você aprenderá a detestar a praça pública, a detestar os banhos públicos, a corar de tudo que é indecoroso, a zangar-se quando riem de suas boas maneiras, a levantar-se de seu assento quando os idosos se aproximam, a não ser grosseiro com os pais, a não praticar qualquer ato vergonhoso, ofensivo ao pudor que é o seu ornamento [...] Você passará o tempo nos ginásios atléticos, brilhante e viçoso, como uma flor, em vez de declamar na praça pública bobagens grosseiras sem o menor sentido, como se faz atualmente (ARISTÓFANES, 2000, p. 72-73).

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Paradoxalmente, Aristófanes apresenta as características da nova educação,

representada pelo logos injusto.

De fato, eu estava bufando de impaciência até as entranhas, ansioso por derrubar todos esses argumentos com palavras contrárias às dele. Eu, o Raciocínio Injusto, recebi esta qualificação entre os pensadores exatamente porque tive antes de qualquer outro a ideia de falar contra as leis e a justiça. Esta arte tem um valor maior que qualquer outra7; ela ensina a defender as razões mais fracas e fazê-las prevalecerem apesar de sua fragilidade. [...] Em seguida, você censura os rapazes por ficarem na praça pública, mas eu acho que eles estão certos. Se isso fosse um mal, Homero nunca teria feito o elogio de Nestor e de todos os sábios frequentadores constantes dela (ARISTÓFANES, 2000, p. 74-75).

Nessa concepção educacional, a regra da moderação deixa de existir e a criança é

estimulada a viver de acordo com a natureza, ou seja, a satisfazer necessidades

consideradas naturais. Não há como determinar a medida exata de todas as coisas e, por

isso, não há um único critério de avaliação ou de escolha. Segundo Protágoras, o homem é

a medida de todas as coisas. Por homem, entendia o sujeito individual e não o homem

universal e, por medida, a regra e norma do juízo, portanto, de livre escolha do sujeito.

Nas Nuvens, esse novo homem aparece nas figuras de Strepsiades, Fidipides e

Raciocínio Injusto. As relações familiares também são satirizadas. Conforme apresentado

anteriormente, o pai (Strepsiades) não tem qualquer legitimidade sobre o filho (Fidipides),

embora sustente seus luxos.

Mas coitado de mim! Não posso dormir, atormentado pelas despesas, pelo custo das cocheiras e dos cavalos e pelas dívidas contraídas por meu filho para sustentar tudo isso! Exibindo sua longa cabeleira ele monta a cavalo, guia um carro, sonha com cavalos, enquanto eu estou minguando ao ver a lua8 trazendo os dias dos vencimentos, ao mesmo tempo que as dívidas e os juros se amontoam (ARISTÓFANES, 2000, p.13).

E, na tentativa de ser ver livre de suas dívidas, o pai pede insistentemente ao seu

filho para que aprenda a retórica. O pai acredita que com a capacidade de argumentação

poderá burlar seus credores.

7 Literalmente “maior que dez mil estateres”; o estater era uma moeda grega antiga de certo valor (ARISTÓFANES, 2000, p.107). 8 Os meses do calendário grego antigo era lunares (ARISÓFANES, 2000, p.104).

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Escute o meu apelo! Você, que é a criatura mais querida por mim, vá aprender com eles! [...] O pessoal diz que eles usam dois raciocínios ao mesmo tempo: o justo e o injusto. Um desses raciocínios – o injusto – derrota o outro – o justo – defendendo as causas injustas. Então, se você me der o prazer de aprender esse raciocínio injusto, eu não vou pagar a ninguém um simples centavo de todas as dívidas que eu contraí por sua causa, meu filho (ARISTÓFANES, 2000, p.19).

Aristófanes retrata com bastante clareza a desobediência dos filhos, o desrespeito à

tradição. Mais adiante o filho cede ao pedido do pai e, com o aprendizado do logos injusto

– que é colérico, ansioso, vangloria-se da arte de contradizer as leis, defende as piores

causas e ataca as leis e os costumes –, relativiza as normas. Pois, através dessa perspectiva,

modifica-se a vida pública, alterando as normas coletivas para defender interesses pessoais.

Meu filho! Oba! Oba! Tenho de mostrar a minha alegria, antes de tudo por ver a sua cor. Seu jeito é de um homem preparado para negar tudo, para contradizer tudo. No seu rosto se lê perfeitamente: “Que tem você a alegar?”, e me anima esta maneira de parecer ofendido quando está ofendendo e maltratando os outros; conheço muito bem essas coisas! E nos seus olhos vejo esta maneira ática de olhar9! Agora trate de me salvar, já que você até hoje tem sido minha perdição (ARISTÓFANES, 2000, p.81).

A importante contribuição de As Nuvens é a discussão que se estabelece acerca dos

fins da educação e os possíveis resultados da formação. Assim, Aristófanes representa

uma nova educação que nada tem de comum com a da antiga tradição. Ao refutar os ideais

da educação antiga, ele põe em relevo o tipo de homem resultante da nova educação e as

consequências.

Fidipides, após uma discussão tola com seu pai, o espanca. E, utilizando todos os

argumentos aprendidos pela retórica, o filho explica sob todos os pontos de vista que é

lícito bater no pai. Feito isso, Fidipides se retira e avisa que vai bater na mãe. Então

Strepsiades reflete sobre sua errada atitude de aderir ao logos injusto e, como vingança,

ateia fogo na escola de Sócrates (ARISTÓFANES, 2000).

9 Os habitantes da Ática, onde ficava Atenas, tinham a fama de cínicos (ARISTÓFANES, 2000, p.107).

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Portanto, no novo poder intelectual que o produto da educação sofística defende, o

indivíduo não se submete a qualquer norma e, ao representá-lo assim, Aristófanes destaca a

sua falta de escrúpulos morais (JAEGER, 2001).

Enfim, fosse Aristófanes um conservador ou não, o que importa é o fato de ele ter

compreendido que a Grécia do seu tempo apresentava uma nova conjuntura econômica e

política e, por isso, a regras da educação arcaica não se aplicava mais ao novo contexto.

Além disso, Aristófanes, de olho no seu tempo, realizou uma análise da educação,

apresentando-a como portadora de um ethos que valorizava a ação pragmática, em

detrimento das especulações filosóficas. O Pensadouro - a escola - aparece como uma

instituição contraditória: de um lado, ela não responde às necessidades dos alunos, já que

ensina conteúdos fora da realidade, como medir o pulo de uma pulga; de outro, é

apresentado como aquele lugar onde se procura encaminhar soluções para as novas

demandas sociais, com suas contradições e interesses.

Assim, em suas comédias, Aristófanes pensou a transformação social de sua época

e, por isso, entendeu que a educação era responsável por (re)produzir os conhecimentos e

valores morais de seu tempo.

Considerações Finais

A retomada da obra As Nuvens se faz necessária para compreender a educação dos

atenienses. De acordo com as novas exigências de uma sociedade exaustada por cinquenta

anos de combate contra os persas, não fazia mais sentido uma educação que não tivesse um

caráter utilitário e pragmático.

Não se perderá tempo especulando, com os velhos físicos da Jônia, sobre

a natureza do mundo ou sobre a natureza dos deuses [...]. Urge viver e, na

vida, sobretudo na vida política, possuir a Verdade importa menos que

lograr impor hic et nunc, a um público determinado, a admissão de tal ou

qual tese, como verossímil (MARROU, 1975, p.88).

Aristófanes percebeu os propósitos da educação para aquela sociedade e, ao mesmo

tempo, expôs a crítica sobre o que, de fato, era ensinado pelos sofistas aos alunos. Os

sofistas foram racionalistas, espíritos críticos, muitas vezes revolucionários, e seu interesse

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pelos homens os levou a suscitar problemas como o da natureza da lei, do justo e de

injusto, da concórdia. Eles trouxeram a esses problemas pontos de vista ousados, que

abalaram muitas vezes os fundamentos das regras morais (ROMILLY, 1984).

E, ao lado dessa educação que objetivava preparar os homens para viver no novo

contexto, Aristófanes aponta a preocupação da escola em investigar assuntos, de certo

modo, irrelevantes para a formação de um cidadão. Esta dualidade expressa as

contradições, não só das instituições, mas também dos indivíduos constituintes delas

(NAGEL, 2006).

É partir da análise crítica que Aristófanes realizou – em As Nuvens – sobre os

rumos da educação de seu tempo, que se fez necessária a interpretação desse clássico. É

importante reconhecer as relações com base nas quais esse autor analisou os fenômenos

que tangenciaram sua contemporaneidade.

REFERÊNCIAS

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