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ARQUEOLOGIA DA PAISAGEM ENTRE O JARDIM BARROCO FRANCÊS E O JARDIM ROMÂNTICO INGLÊS NO SÉCULO XVIII MARTINS, CHRISTIANE CHAGAS “ A história humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbio, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos namoros de esquinas. ” Nos jardins. Ferreira Gullar Toda a matéria transformada e produzida pelo ser humano contém dentro de si aspectos da cultura que a produziu. A esta matéria os arqueólogos convencionam chamar de cultura material/artefato. O produto construído pelo homem é “contaminado” pelos elementos sociais, políticos, econômicos, históricos, artísticos, antropológicos, filosóficos, ideológicos e simbólicos, que formam e constituem uma determinada sociedade. Este produto que se materializa como produção humana, além de receber influências da sociedade que o construiu, também está imbuído do contexto social que o formou. O artefato como produto é a consequência de um processo cultural cujo princípio estabelece uma relação entre o indivíduo e a matéria. Este produto é possuidor de uma lógica encadeada de ideias, que foi refletida, planejada, escolhida, executada e finalmente concretizada como símbolo desta lógica contextual. Para a Arqueologia da Paisagem, a paisagem também é entendida como um artefato, posto que é construída culturalmente e como tal, a paisagem/artefato, é o resultado intencional da cultura. Considerada como produto desta ação, tem o potencial de transformar-se em uma ferramenta para entender as pessoas e seus comportamentosdentro da sociedade. (Apud. ZARANKIN, 2012. In: HODDER, 1982, SHANKS e TILLEY, 1981, MILLER, 1987). Se quisermos compreender melhor uma sociedade devemos estudar seus artefatos, mas se quisermos compreender melhor sobre artefatos, devemos estudar a sociedade que o produziu.

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ARQUEOLOGIA DA PAISAGEM ENTRE O JARDIM BARROCO

FRANCÊS E O JARDIM ROMÂNTICO INGLÊS NO SÉCULO XVIII

MARTINS, CHRISTIANE CHAGAS

“ A história humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes

presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas

ruas de subúrbio, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos namoros de esquinas. ”

Nos jardins.

Ferreira Gullar

Toda a matéria transformada e produzida pelo ser humano contém dentro de si aspectos da

cultura que a produziu. A esta matéria os arqueólogos convencionam chamar de cultura

material/artefato. O produto construído pelo homem é “contaminado” pelos elementos

sociais, políticos, econômicos, históricos, artísticos, antropológicos, filosóficos, ideológicos e

simbólicos, que formam e constituem uma determinada sociedade. Este produto que se

materializa como produção humana, além de receber influências da sociedade que o

construiu, também está imbuído do contexto social que o formou. O artefato como produto é

a consequência de um processo cultural cujo princípio estabelece uma relação entre o

indivíduo e a matéria. Este produto é possuidor de uma lógica encadeada de ideias, que foi

refletida, planejada, escolhida, executada e finalmente concretizada como símbolo desta

lógica contextual. Para a Arqueologia da Paisagem, a paisagem também é entendida como

um artefato, posto que é construída culturalmente e como tal, a paisagem/artefato, é o

resultado intencional da cultura. Considerada como “produto desta ação, tem o potencial de

transformar-se em uma ferramenta para entender as pessoas e seus comportamentos”

dentro da sociedade. (Apud. ZARANKIN, 2012. In: HODDER, 1982, SHANKS e TILLEY,

1981, MILLER, 1987). Se quisermos compreender melhor uma sociedade devemos estudar

seus artefatos, mas se quisermos compreender melhor sobre artefatos, devemos estudar a

sociedade que o produziu.

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A materialização da paisagem converte, elementos naturais, em objetos culturais, ou

melhor, em artefatos, pois “recebe uma forma dada pelo homem, “ uma forma humana”,

porque encerra em si um conteúdo social e não apenas natural.”(FUNARI, 2003)

Entendendo a paisagem, como um artefato social que carrega consigo características do

seu contexto, uma identidade; a paisagem torna-se assim, subjetivada, percebida sob o

olhar de um sujeito, passível à interpretações, produto de uma relação entre homem e

natureza e portanto, humanizada. Desta forma, a Arqueologia da Paisagem compreende

que a paisagem está imbuída de símbolos e significados e “ pode ser considerada um tipo

de comunicação não-verbal e sua leitura como fonte de informação social se transforma no

desafio do arqueólogo. ”(ZARANKIN, 2012. In. MONKS,1992, FLETCHER, 1989,

ZARANKIN, 1999, 2002)

“Por outro lado, e como reverso dessa “humanização” do universo material, ocorre uma falsa

percepção de que as relações sociais humanas sejam naturais, e não históricas e sociais. ”

(FUNARI, 2003, p.37). Contudo é necessário que a paisagem ao ser estudada deva ser

antes de tudo contextualizada dentro do momento histórico, que lhe conferiu sentido, e

nunca analisada isoladamente, para não incorrermos no pernicioso erro de tratá-la como

mera decorrência do mundo natural. A paisagem é construída, portanto é um artefato,

produto de ação social, repleta de significados e potencialmente transmissora e receptora de

um discurso sem palavras, porém não mudo.

“A noção de paisagem no Ocidente surgiu associada ao desenvolvimento da

pintura”(ALVES, 2001) constituindo-se através de significados múltiplos e diferentes

sentidos à partir do séc. XVI em diante. A criação da ideia de paisagem no séc. XVI de uma

certa maneira, está profundamente ligada as transformações ocorridas também com as

noções de homem, natureza e espaço pela qual as sociedades da Idade Média e Moderna

se apropriaram.

Durante a Idade Média, estas noções encontraram-se sob uma forte influência coercitiva de

dogmas religiosos, comandados pela igreja católica. O mundo medieval com uma sociedade

tripartiti (aqueles que oravam, guerreavam e trabalhava), hierarquizada e sacralizada pela

ordem católica romana só entra em decadência diante das “ameaçadoras” descobertas

científicas do Renascimento como: a descoberta de um novo mundo, a retomada cultural às

obras clássicas e as novas visões religiosas que protestavam contra a visão católica

vigente.

Contudo, dentre todas estas transformações; talvez a que tenha “iniciado” ou proporcionado,

a grande possibilidade da mudança efetiva na maneira de como o homem vê/entende o

mundo que o cerca (espaço, o lugar e a paisagem), foi heliocentrismo.

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Quando pensamos nas transformações da relação do homem com a natureza, podemos

destaca a relevância da redescoberta de Galileu Galilei sobre o heliocentrismo. Entretanto, a

maior importância desta ideia, talvez não seja a de que a Terra não é o centro do universo,

mas, sobretudo por ter descontruído um espaço medieval finito e fechado para a construção

do conhecimento de um espaço moderno aberto e infinito. Esta mudança de

posicionamento, alterou a percepção do homem com a natureza e sua relação com o

espaço ocupado e consequentemente com a paisagem.

Segundo Foucault (1984), “pode-se dizer, para retraçar muito grosseiramente esta história

do espaço que ele era na idade média um conjunto hierarquizado de lugares: lugares

sagrados e profanos; lugares protegidos e sem defesa, etc. Toda esta hierarquia, esta

oposição, este entrecruzamento de lugares era o que se poderiam chamar, grosseiramente

de espaço medieval; espaço de localização. Esses espaços iniciaram-se com Galileu Galilei;

pois o verdadeiro escândalo da sua obra, não foi ter redescoberto que a Terra girava em

torno do Sol (1609), mas ter construído um espaço infinito e infinitamente aberto. De tal

forma que o lugar da idade média se encontrava, de uma certa maneira dissolvido. O lugar

de uma coisa não era mais do que um ponto em movimento. Dito de outra forma, a partir de

Galileu, séc. XVII, a noção de Extensão toma lugar da localização.”

Esta nova visão sobre um espaço que antes era de localização, para um espaço, de

extensão, desconstruiu a antiga visão medieval, sobre a relação do homem com a natureza,

em favor da nova construção renascentista de extensão do espaço que ampliou a visão

sobre o mundo natural, agora, infinito. O lugar de uma coisa ou pessoa, no mundo, dependia

agora da extensão que esta encontrava -se em relação as outras. De acordo com sua

posição, sua percepção sobre o espaço podia ser diferente, podia mudar, dependendo de

onde o sujeito estivesse observando a coisa ou o outro. Imprimindo uma nova ordem

espacial e configurando uma outra identidade para a paisagem.

Ao pensarmos as cidades como paisagens sociais, pensamos na transformação do mundo

natural em um mundo artificial, em busca de mais conforto e segurança. Todavia, as

mudanças da cidade medieval para a cidade renascentista, cartesiana, ordenada e

disciplinada não se deu de forma paulatina nem abrangente, mas, se deu de forma pontual e

em pequenas escalas. Não houve imperativamente, um remodelamento do espaço da

cidade medieval para uma transformação sob os auspícios de uma ordem renascentista.

Como afirma MUMFORD (1998, p.379) “não existe cidade renascentista. Há, contudo,

trechos da ordem renascentista, espaços abertos e clarificações que modificaram belamente

a estrutura da cidade medieval”, cujos padrões de ruas estreitas e sinuosas, continuaram

em grande parte da cidade e estas permaneceram rodeadas por muralhas.

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Mas, embora a arquitetura renascentista não tenha modificado como um todo a cidade

medieval, sob o signo de uma nova ordem; no que tange as ideias e conceitos sobre o

homem, o renascimento transformou, absolutamente, a visão estreita e medieval que se

tinha do lugar do homem na natureza e sua relação com a mesma.

A releitura de Protágoras, “o homem passa a ser a medida de todas as coisas” sob os

auspícios da razão renascentista é apoteose do homem ; consequentemente sua relação

com o mundo natural, antes de estranhamento, temor e insegurança incontrolável,

gradativamente vai se transformando para uma relação de controle e domínio, apesar do

ainda temeroso além-mar e do desconhecido Novo Mundo.

Depois disto, o mundo natural, através dos avanços tecnológicos e científicos, passa a ter a

possibilidade de controle e transformação ampliados. A “natureza” não cerca e amedronta

mais o homem como o fazia na cidade medieval. Este vai além do seus muros e fortalezas,

ele vai além-mar e busca dominá-la e explorá-la; pois apesar de ainda pertencer a um

“espaço” de origem divina e por tal sacralizada, agora, há a dúvida sobre sua verdadeira

origem e lei que a ordenam. Seriam leis divinas ou físicas. Seria regida pela religião ou

razão. Gera uma dúvida. “A razão e a não razão constitui para a cultura ocidental a

dimensão de sua originalidade.” (FOUCAULT, 1984)

Mas, “a dúvida cartesiana desfaz o encanto dos sentidos e atravessa as paisagens do

sonho sempre guiadas pela luz das coisas verdadeiras (...) de fato, penso que o que se

buscou foi um método, uma maneira racional, razoável e econômica de exercer o poder (...)

buscou-se uma maneira discreta e econômica, e é essa economia do poder que chamamos

de humanidade. ” (Ibidem FOUCAULT, 1984)

Podemos dizer, talvez, que o humanismo, séc.XVII, estruturou mais ideias e ideologias do

que propriamente suas representações no espaço. Contudo a ordem barroca que sucedeu

estas ideias, reabilitou o poder real e engendrou o Estado como nação, imprimindo como

estratégia representativa, a construção da paisagem barroca. Este “outro lugar”, a paisagem

monárquica era construída para lhe conferir poder e supremacia divina, sob o signo da

uniforme ordenação.

O espaço, o homem, a natureza e as relações com a paisagem já não eram mais os

mesmos; eram entendidos diferentemente que antes e agora cumpriam uma função definida

e determinada de domínio e representatividade deste homem ou do poder absoluto dentro

deste espaço/paisagem.

Poderíamos dizer que com todas estas transformações e mudanças de mentalidade da

ordem barroca: a percepção e o entendimento de espaço também mudou; assim como foi

construído um outro entendimento deste espaço. À partir do surgimento dos Estados

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nacionais enquanto conceito de país e do poder Absolutista como representante divino

deste Estado, surge a noção de um outro espaço, a paisagem, ligado etimologicamente a

própria ideia da construção de país.

“Do latim pagus, (...) francês pays e daqui paysan e paysage. Em italiano, com a mesma

origem resultou paesaggio e em espanhol paisage. Nas línguas germânicas, em inglês e em

alemão, de uma raiz comum, land, com significado idêntico ao de pagus, e também de

região e país, ser formam landscape e landschaft.” (AMARAL, 2001, p.75) “ A utilização de

landscape data de finais do séc. XVI ou princípios do séc. XVII, quando a influência de

pintores paisagistas holandeses encorajou o renascimento e redefinição de “paisagem” para

referir as representaçãoes de cenas, sobretudo as rurais, e depois de panoramas, em geral,

ou um espaço particular.”(Apud. AMARAL, 2001, p.75. In: PRESTON JAMES << The

terminology of regional description >>, Amals, Association of American Geographers, 1934,

24, pp. 78-86).

“A noção da paisagem no Ocidente surgiu associada ao desenvolvimento da arte da pintura.

”(ALVES, 2001, p.67) (...) “A origem da palavra é atribuída ao poeta flamão Jean Molinet

que, em 1493, a utilizou com o sentido de “quadro representando uma região.” (Apud.

ALVES. In: ROGER, 1997)

“O termo paisagem, durante quase dois séculos, não foi utilizado para designar um fato

geográfico, mas o produto da arte de representar numa tela um dado acontecimento

enquadrado por uma dada realidade geográfica. De acordo com a interpretação de

Alexandre Humboldt, a paisagem foi uma criação do homem urbanizado do norte da

Europa.” (Apud. ALVES. In: BUESCU, 1990 p.67)

“Em contrapartida, escolas de pintura da paisagem foram-se afirmando em Flandres (séc.

XV), na Holanda (séc. XVII), na Inglaterra do (séc. XVIII e XIX) e na França (séc. XIX). As

obras saídas destas escolas laicizaram a paisagem, libertando-a de qualquer referência

religiosa; todavia, fizeram-no sob a influência da representação do espaço desenvolvida

pelos pintores italianos.” (Apud. ALVES. In: ROGER 1997, p.68). Entretanto a paisagem não

pode ser limitada apenas como uma faceta de materialização do espaço, posto que é uma

representação concreta, mas sobretudo social e parte ativa de uma dinâmica subjetivada.

“Na medida em que a paisagem exprime as facetas sensoriais dos territórios em domínios

tão variados como a afetividade, o imaginário e a aprendizagem sociocultural, a paisagem

tem de ser construída como um sistema indentitário e nunca poderá ser redutível à

materialidade do mundo físico.” (ALVES, 2001, p.74).

“A paisagem deve ser assumida como um dos elementos centrais do sistema cultural, uma

espécie de montagem ordenada de objetos (materiais e imateriais) que atua como um

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sistema de significado através do qual o sistema social é comunicado, reproduzido,

experimentado e explorado (Apud. ALVES, In: DUCAN, 1988).

Como um dos elementos que compõe o sistema contextual da ordem barroca, a paisagem

do séc. XVI/XVII se constitui de forma laica, tendo além das representações pictóricas, o

jardim paisagístico/séc.XVIII; como um de seus exemplos.

“O jardim torna-se rapidamente um cenário, uma vitrine, (...) conjuntos limitados há muito

tempo chamados de cidades fazem referências a práticas urbanas infinitas; no segundo

caso, um urbano ilimitado refere-se a práticas fragmentadas e limitadas. De uma condição

urbana a outra, as relações do limite e da ausência de limites, do finito e do infinito se

transformaram radicalmente. É por isto que a história dos jardins, inevitavelmente ligada as

“culturas” (China, Japão, Oriente) que precedem os “novos mundos” vai da concepção do

jardim como um microcosmo do infinito; como espelho do poder ou como uma projeção da

casa (...) é lembrar que o jardim e a paisagem estão relacionados à culturas políticas

europeias e outras, a representação do limite, do privado e do público. (...) O jardim é um

palco: privativo ou público ele não é um simples pedaço de Terra e de Cultivo, mas um

conjunto de sinais “em representação”, um jardim faz Mundo. ” (CORBOU, 2011, p.9-10)

Doravante, vamos evocar o jardim barroco, com: suas formas simétricas, majestosas, sua

natureza controlada, seus modelos naturais trabalhados na arte da topiaria, seus caminhos

alinhados, sua perspectiva angular de observador e objeto observado, de evocação

mitológica, com esculturas greco-romanas, arquitetura “clássica”, parterres, organgeries,

pelouses, corbeilles, bosques, tapis vert, espelhos d’água; ou seja, a criação de uma nova

ordem na projeção do jardim ocidental.

“Durante muito tempo, essa foi a concepção francesa (...) de um jardim voltado para o

poder, o Estado real. Ela começou no Rei Sol, no absolutismo (séc. XVII), no criador de

jardins André Le Notre, e para ela o poder ser reflete num jardim que pode ter as dimensões

de um parque real. (...) se o jardim é um espelho real, a República francesa marcará seus

parques, seus jardins, suas praças haussmanianas (séc. XIX) com o selo dos símbolos que

exprimem o poder público. O jardim é um espelho real, cujo grande canal segue os reflexos,

mas que também pode ser um serviço público do Estado.” (Ibidem CORBOU, 2011, p.11).

“Um jardim não é uma parte da natureza. É a ordenação da natureza pelo homem, de

acordo com uma orientação que reflete suas próprias teorias e preocupações. (...) No século

XVII, os jardins consistiam em padrões rigidamente ordenados de plantas, veredas e

estatutária decorativa. Faziam parte do conjunto arquitetônico de um palácio com o de

Versailles”. (Jones, 1982, p.56). O jardim, é um produto social, uma construção artificial

onde se privilegia elementos escolhidos pelo seu proprietário.

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O jardim de Versailles como exemplo supremo de paisagem barroca francesa projeta em

seus contornos cartesianos e geometrizados, uma perspectiva que tem sua origem

“renascentista”, mas cujo gradiente hierárquico, de elevação dos níveis espaciais é

apropriado pelo barroco e usado para promover no visitante um espetáculo teatralizante de

experiências e emoções espantosas.

A construção horizontal e a vertical do jardim em níveis diferenciados e que se elevam

mediante sua proximidade como palácio, propicia ao visitante uma expectativa própria de

cenários teatrais. Esta expectativa o conduz a uma gradação ampliada de dimensões

diferem, através de um conjunto de formas, função e paisagismo, cuja formatação e controle

da natureza e do espaço leva o usuário para uma experiência de ascensão, onde o ponto

máximo desta emoção, ou seja, o seu clímax, consiste em deparar-se com elementos

majestosos, grandiosos e de absoluto fantasia, como: fontes que esguicham água, bosques,

parterres, pelouses, espelhos d’água, etc.; todos em escalas monumentais. Exibindo e

glorificando do poder do rei em dominar a natureza e o espaço. De forma

impressionantemente exuberante em seus contornos, direções, escalas, dimensões,

funções e perspectiva estavam a serviço de sua majestade, legitimando seu poder, exibindo

seu fausto, ostentando a exuberância e principalmente controlando, delineando e

imprimindo uma nova moda, cultura, maneiras e comportamentos sociais na sociedade do

séc. XVII.

Planta do jardins de Versailles, França.

Fonte: www.wikipédia.com

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Esse novo espaço barroco delineia, ordena e conduz a novos movimentos corporais que

são realizados pelo passeio e pelo olhar deste usuário, que através de suas experiências

sensoriais irá vivenciar e construir, conscientemente ou subjetivamente uma outra noção

de paisagem. A nova perspectiva impressa e que vai persuadir as sensações de luz, cheiro,

temperatura, textura, altura, proteção/desproteção, etc; promove uma persuasão de

experiências e consequentemente uma diferente subjetivação do espaço. Por meio de seus

caminhos (abertos e fechados), pela direção de suas aléias ou pelas novas espécies de

plantas escolhidas para compor o jardim, estas sensações podem ser vivenciadas, contudo,

planejadas, conduzidas e argimentadas de acordo com as escolhas e os interesses de sua

majestade. Neste processo, “o particular é submetido ao geral e o mundo é ordenado e

domesticado. E ordenar é suprimir diferenças. É subjugar as lógicas e movimento próprios

de cada elemento aos princípios que coordenam o todo.”(XAVIER, 2000)

Elaborada como símbolo do poder vigente a paisagem projeta-se como um microcosmos da

sociedade barroca. O jardim é o produto de uma escolha humana e configura, dentro de si,

uma intenção subjacente em suas formas e composições. Desta forma, a Arqueologia da

Paisagem percebe que a paisagem é um artefato que denota uma ideologia, onde jaz de

forma tácita, simbolicamente, na ordenação da natureza pelo homem.

O jardim é mais do que um palco ou um cenário, onde o esboço de poder se mostra ou a

sociedade “encena” suas atividades sociais. Não é apenas um mero reflexo das ações

sociais. Ele é também um produto dela e como tal é um vetor de comunicação não-verbal.

O jardim é mais do que, apenas uma representação do poder real, ele é um objeto vivo,

dinâmico e ativo, que está sempre em transformação; que é modificado e disciplinado pelas

ações humanas, mais que, de alguma forma, também modifica, altera e disciplina os

comportamentos sociais. Mais que uma imagem de projeção, são arte materializada, tanto

que “os jardins paisagísticos, jardins criados como pintura (...) seduziram pintores como

Claude Lorrain, artista francês do séc. XVIII” (NUNES, 2004, p.5) expoente da Europa

ocidental.

À estas magnificas “obras de arte” era vedada a entrada do público comum, dos estratos

inferiores da sociedade, da população simples e pobre, que mantinha o rei e sua corte, na

mais absoluta opulência, através, entre outros aspectos do pagamento de pesados

impostos. E este “mundo encantado, séc. XVIII” estava prestes a ruir. As despesas

vultuosas da monarquia que cresciam na contramão da arrecadação de impostos. Somados

ao empobrecimento da ociosa nobreza, em contrapartida, a desenvolvimento tecnológico

promovia o surgimento de outro estrato social, que enriquecia através da produção

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industrial. A lógica mercantil estava sendo, paulatinamente, substituída pela capitalista e

emergia com ela a classe burguesa, sedenta por ascensão social e política.

Logo, no bojo destas transformações sociais e na emergência burguesas, nasce os

embriões que suscitarão, futuramente um outra ordem, distinta da monárquica. Junto com

ela, coadunam-se “os sêmens” da ordem capitalista que, assim como a ordem monárquica o

fez, também produzirá uma paisagem que a represente. Diante da estratégia de

representação burguesa/capitalista, a paisagem barroca francesa se transforma no

romântico inglês e se distinguiam completamente da anterior; opondo-se radicalmente ao

modo cartesiano e a geometria euclidiana.

O jardim inglês pretende-se naturalista ou o mais próximo possível que uma paisagem

artificial possa se parecer com o mundo natural. Nele “a natureza seria reabilitada à imagem

e semelhança da arte. A geometria das grandes alamedas e dos canteiros de flores seria

quebrada de maneira aparentemente acidental, mas, na verdade cuidadosamente

planejada.” (JONES,1982, p.52) E tem por objetivo, a intenção de não ser igual ao anterior.

A paisagem romântica deseja assemelhar-se com a natureza e não evidenciar as marcas

de controle dentre as formas naturais, como fez o barroco, com topiarias, pelouses,

parterres, corbeilles etc. Pretende fundir-se, se possível, com ela, de modo que seja difícil

perceber onde se inicia e onde termina a intervenção humana sobre o mundo. Refuta as

conformações monárquicas pois estas são artificiais demais, mas recorre as ruínas e os

templos clássicos como afirmação de sua herança ocidental. Sem hereditariedade por

nascimento, a emergente burguesia necessita demarcar sua procedência para ser

merecedora da “ dignidade social” e busca na origem clássica da cultura ocidental, a

simpatia para forjar sua própria “tradição inventada” (HOBSBAWN,1997, p.9)

O estilo barroco não a representava simbolicamente, pois, preferencialmente, não o utiliza

como sua configuração predileta. Esta ordem não desejava ser aceita socialmente como a

antiga, por imposição absoluta do poder divino; ela seria aceita naturalmente, como mais

uma parte integrante do universo social. Como parte deste universo, assim como a natureza

é parte do mundo. E como tal necessitava de uma ordem estética que a simbolizasse. Estes

símbolos, que emergem com a burguesia não tem representação hierárquica na sua origem

de ancestralidade por nascimento, mas pela força do trabalho que gerou sua riqueza;

expressados pela escolha de materiais que imitem elementos como àqueles efêmeros,

oriundos do meio natural e simbolicamente simples como suas origens.

Este pensamento naturalizante também se refletiu na paisagem humana e na forma de se

construir os novos jardins românticos ingleses. O estilo inglês buscou uma configuração,

sem precedentes, longe do “modelo europeu” e em simpatia com o modelo oriental.

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O contato dos ingleses com o oriente (principalmente China, Japão e Índia) através do

comércio e viajantes, trouxe muitas novidades para o homem moderno e uma outra visão de

conhecimento, laico e tolerante sobre outras culturas. Embora as formas orientais de um

jardim cosmogônico, criado para reflexão e meditação, repleto de simbologias espirituais,

tenham sido transplantadas para o ocidente; seu significado espiritualizado que o simboliza

não conseguiu ser ou não quis sê-lo. O jardim inglês não carrega em seu bojo esta acepção,

apenas copia a conformação oriental, mas profana seu sentido, posto que é apartado de seu

significado espiritual e transforma uma paisagem de meditação em uma paisagem de

circulação.

Ao se apropriar das formas curvilíneas do oriente, traz para a Europa uma configuração

naturalizada da paisagem. Apesar de ser um espaço construído artificialmente e sobre ele

preterir as escolhas e intenções do seu proprietário; este passa a pretender não deixar estes

objetivos tão evidenciados. Esta paisagem pretende apresenta-se da forma mais natural

possível, com que fosse uma obra da própria natureza, um acaso orgânico e não um

produto da ação humana. A estratégia naturalizante, embora sutil e evanescente é tão eficaz

quanto a barroca, no que se dispõe ao alcance de objetivo determinado.

Contudo, o estilo inglês intenciona ter uma identidade própria, não deseja imitar

simplesmente, as obras orientais. Objetivando criar uma paisagem que lhe fosse

representativa, a nova classe emergente, imbuída do furor enciclopedista da época e dos

descobrimentos arqueológicos de Herculano (1738) e Pompéia (1748), mistura nesta

paisagem elementos da Arcádia clássica a uma composição orientalizante no jardim.

O jardim romântico apresenta desenhos sinuosos em favor da antiga geometricidade

simbólica; os palácios barrocos, agora são palacetes; a grandiosidade dá lugar a

graciosidade; o luxo (mármore, cristais, ouro) evidentes antes, agora são apenas aparente

(escaiolas, talhas pintadas de dourado, etc); a teatralidade do claro x escuro, rende-se a

teatralidade suave como que naturalizante; o dinamismo dos gradientes de níveis

hierárquicos bem marcados e a perspectivas retilíneas, em troca por gradientes de níveis

sem marcas visíveis, como dando a impressão que a hierarquia de um nível a outro

transcorresse de forma continua e natural; por fim a exuberância é naturalizada.

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“O efeito era uma paisagem que crescera por acidente, na qual templos e lagos haviam sido

disseminados pelo acaso e pela história. (...) em lugar dessa enfadonha repetição Alexandre

Pope recomenda a naturalidade calculada de uma paisagem como a de Stowe, a grande

mansão rural de Lorde Cobham em Buckinghamshire.”(JONES,1982, p.60) A presença de

curvas e contracurvas, a mudança de perspectiva, a introdução de elementos históricos

clássicos, a ideia de arquitetura em ruína, as chinoiseries, os túmulos, as escolhas de

plantas caducifólias, os elementos efêmeros (madeira/ gesso), as “folies”, “as loucuras como

a casa coluna no Desert de Retz” (Ibidem JONES, 1982, p.66) são característica da

paisagem romântica, que são exemplos típicos deste jardim inglês, como se a própria

natureza o tivesse realizado; por acaso, espontaneamente.

Entendemos esta paisagem construída com uma naturalidade planejada, contudo como

materialização de um discurso não-verbal, que, pretendia suavizar na paisagem, através de

suas formas orgânicas vaporizadas, flexíveis, suaves e curvilíneas, as denotações

simbólicas destes novos burgueses, representados ideologicamente dentro deste espaço.

Neste jardim subjaz as intenções e objetivos ampliados desta ordem ascendente, que

tacitamente, deseja, assim como a aristocracia, também se legitimar através da paisagem,

só que de modo diferente.

“Este jardim é uma paisagem tanto literária quanto visual, uma paisagem de ideias.”(Ibidem

JONES,1982, p.62). Estas ideias, cujos símbolos estão representados nesta paisagem

disciplinada para parecer orgânica e natural são vaporizadas e diluídas nestas formas, para

que sejam também entendidas implicitamente como que fossem orgânicas.

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A naturalização das ideias as torna menos incisivas e agressivas, aproximando-as do

mundo natural e distanciando-as do mundo cultural, social e político que as concebeu e

construiu.

Desta forma as ideias e ideologias que subjazem através dos contorno e composições da

paisagem tornam-se mais fluidas e suaves, espontâneas, e, por conseguinte dispositivos

mais eficientes para legitimar, conduzir, vigiar, controlar e persuadir através da natureza

(naturalmente) os comportamentos que se entendem adequados ao discurso da nova

ordem social burguesa.

Assim, entendendo a paisagem como um artefato, uma cultura material não-verbal, “arte

fato”, um objeto estético e cultural, formador e conformador de uma lógica encadeada de

ideias; ela deixa de ser simplesmente um produto da fabricação humana para representar e

simbolizar mais do que isso.

Como um objeto de estudo multidimensional, a paisagem não é mais entendida como um

mero reflexo das ações sociais, para a Arqueologia da Paisagem e passa a ser tratada

como um sujeito ativo e dinâmico, um produto da ação social, que transforma e é

transformada pelo homem e possuidora de um discurso subjacente. Vetorial de uma

comunicação não verbal, mas simbolicamente materializada em sua compleição, a

paisagem envia e recebe mensagens através de uma gramática concreta, cuja leitura

“acontece mediante a signos que carecem de estrutura sintática verbal, ou seja, que não

tem estrutura sintática, pelo que não pode ser analisados sequências de constituintes

hierárquicos.” (Ibidem ZARANKIN, 2012, p.22, Hall, 1959)

Apesar de ser modificada pelos comportamentos humanos que a constroem, ela também

contribui para delinear e modificar comportamentos sociais estabelecidos, na medida que

representa esforços conscientes e ou inconscientes de sua manipulação pelo homem.

Constituindo-se em um potencial dispositivo para regular a conduta social e contribuindo

para a compreensão da subjetivação destas relações.

RUBERTON (1989) mostrou que, “mas do que um simples espelho da organização das

coisas, a paisagem é uma força ativa na criação da ordem social, legitimando-a e trazendo

mudanças para ela.”

BEAUDRY (1991, p. 174) declara que “a cultura material [paisagem/artefato] não é vista

somente como um produto passivo do comportamento econômico, mas como um

componente instrumental de ações simbólicas. E o fato dos comportamentos serem

efêmeros torna os traços matérias ainda muito mais interessantes.”

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“Desta maneira, a cultura material (paisagem/jardim) produto da ação social, tem o potencial

de transformar-se em ferramenta para entender as pessoas e seus comportamentos.”

(HODDER, 1982).

MEINING (1979) já dizia “se nós queremos compreender a nós mesmos, faremos sito bem,

quando olharmos em torno da nossa própria paisagem.” Lewis (1979) “ a paisagem humana

é a nossa autobiografia verbal, refletindo as nossas aspirações, valores e até nossos

medos; tangíveis de forma visível através dos registros culturais, que temos escrito na

paisagem, estando sujeitos a serem mais verdadeiros do que muitas autobiografias, por

estarmos com menos auto-consciência, sobre como nos auto-descrevemos. ”

A transformação da paisagem, de acordo com ISAAC (1982) e MARK LEONE (1984), pode

ser considerada uma forma de legitimação através da qual a sociedade hierarquizada se

reproduz e se representa. ”

IENTSCH ainda afirma que, “como um símbolo, os jardins são capazes de conter múltiplos

significados. ” Eles possuem multidimensões que uma análise puramente funcional ou

tecnológica não é capaz de revelar.

Entendendo-os como uma criação simbólica da realidade, torna-se um tanto explicito os

motivos de negação da burguesia pelo modelo anterior de paisagem. Mas fica uma

pergunta! Por que esta classe apesar de assemelhar-se com o modelo oriental, não

escolheu copiá-lo integralmente, mas preferiu construir uma estética própria?

Talvez, em princípio, a busca por uma identidade original que a representasse esteja na

gênese da questão. A burguesia, diferentemente da aristocracia, constituiu sua riqueza sob

égide do trabalho e sob signo do sol. Ideia está repudiada pela outra classe. Entretanto, este

estrato social não possuía “estirpe” e sua ancestralidade não está relacionada com a

antiguidade através do tempo. Sua origem funda-se numa outra “economia de poder”

(FOUCAULT, 1984), no tempo capital que oscila, para cima ou para baixo, de acordo com a

variação do mercado. Este último, possuindo a capacidade de transformar um homem pobre

em rico, quase, da noite para o dia, independentemente da sua origem hierárquica.

Com toda esta liberdade de transitação individual dentro deste espaço, nunca antes vivido; a

ascendente burguesia, desejava ser representada dentro da paisagem social, com a mesma

liberdade ou fluidez que experimentava no mundo político e econômico. Assim, rejeita as

formas rígidas e geometrizadas da paisagem barroca, que representava uma sociedade

igualmente rígida e repleta de tradições aristocráticas, em favor de uma paisagem fluida,

onde estas definições não ficam bem marcadas. Como também não é bem definido as

origens de nascimento da classe burguesa.

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A organicidade do espaço romântico em tentativa de negação do barroco é clara. A intenção

de dissolver no espaço a interferência humana, naturalizando a paisagem através de sua

sinuosidade e “rocailles”, dissipa em suas formas as diferenças espaciais, antes bem

definidas. Os espaços assemelhados à natureza não demonstram barreiras ou

impedimentos visuais, pelo contrário, eles circulam, cheios de possibilidades a cada

movimento do corpo ou do olhar. Estes outros contornos ampliam a compatibilidade com a

burguesia que, tacitamente, dissimula suas diferenças sociais através da naturalização da

sua própria aparência simbólica; tão variável quanto é variável as formas naturalizadas do

jardim.

As diversas possibilidades espaciais, conciliam-se com as propícias diversidades sociais, há

muitos tempo negada, engendrando identificação com espaços abertos, orgânicos e fluidos.

Dentro deste contexto, não há lugar para uma perspectiva retilínea. Inversamente, projeta-

se uma perspectiva difusa. Uma “ilusão” de diversas possibilidades, de mudança de olhar a

cada curva do caminho, assimétrico, mas que simboliza e legitima a descontínua origem do

poder burguês.

A mesma ordem que preterirá o barroco, escolherá elementos que denotem transitabilidade

para formar a composição interna da paisagem. Como tal a escolha de plantas cuja

aparência transmita a mensagem de mudança, intemperidade e intermitência serão

privilegiadas. Os vegetais, em sua maioria, cujas raízes não possuem profundidades

arraigadas à terra; cujos troncos são estreitos por não serem marcados pelos anéis do

tempo e cujas folham caducam, demonstram, a olhos vistos, o quanto a ordem natural da

vida e sua estruturação pode ser transitória e mutável de acordo com a sua natureza

circunstancial e dinâmica.

A vegetação barroca, “topiarizada”, dominada, disciplinada, além de suas árvores de troncos

grossos e raízes profundas, como carvalhos, que evidenciam perenidade, temporalidade e

simbolizam ancestralidade, são, de certa medida, refutadas do jardim romântico. Assim

como, analogamente no Brasil, a “alteza” da palmeira imperial, simbolicamente aristocrática

e marcadora de distinção social é representante simbólico de uma ideologia de

hereditariedade e continuidade. E como tal estes elementos não serão apropriados, nem

empoderados pela burguesia como seus símbolos identitários. Pelo contrário, são preteridos

por ela, em troca daqueles que não possuem suas origens ligadas à terra, nem a

continuidade hierárquica. Oriunda do esforço individual, cujas origens são variadas e

recentes, além de transitivas como nos fazem lembrar as árvores caducifólias, com a

possibilidade de se transformar a depender das circunstâncias temporais.

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Nesta paisagem/jardim seus sinuosos caminhos nos conduzem a outras formas de ver e ser

visto. A outras mobilidades, físicas, sensoriais, perceptivas e sociais antes não

experimentadas. Nos conduzem a liberdade de fruição, de circulação, mas contudo sem

estarmos realmente livres, pois o jardim é uma “natureza” artificializada. Diferentes

possibilidades se abrem e se fecham, a cada curva do sinuoso caminho, “nuances de um

limite fugidio” (ANDRADE, 2016), mas sempre recordam a cada subjetivação sobre a

inconstância que a mobilidade circulante traz. O jardim romântico não se pretende sagrado

como o oriental, aliás deste modelo apropria-se apenas das suas formas, pois a ideologia

constitutiva representará a materializante ordem capitalista.

Revela uma outra ortopedia, diferente da anterior, mas não menos pretenciosa. Sugere uma

outra disciplina do movimento, da percepção, da subjetivação. Constrói uma nova

gramática não verbal entre os elementos e uma outra relação com o indivíduo e com a

natureza. Tão coercitiva e dinâmica quanto a anterior, mas apenas menos evidente, ou

melhor, mais naturalizada, cuja ideologia subjacente se legitima, confere-lhe identidade

ainda que se torne sutil ao nosso olhar.

“Toda ordem social tende a naturalizar de diferentes formas e com diferentes objetivos a sua

própria arbitrariedade. A naturalização é um processo representacional através do qual a

natureza é redefinida nos termos desta nova natureza.” (BERMINGHAM, 1994, p.245, Apud,

XAVIER,2000)

Ambas as ordens (Barroco/monárquico e o Romântico/burguês) utilizaram-se desta

estratégia de “naturalização” da paisagem como dispositivos de poder, através de um

discurso não-verbal, materializado no mundo físico. A necessidade representacional de

ambas ordens evidencia a paisagem como um artefato ou um “Superartefato” (MARK

LEONE, 1988) potencialmente eficiente para ordenar e disciplinar não só o mundo físico,

mas também o universo social. Sobretudo por meio da relação que a sociedade confere à

paisagem e a paisagem ativa na sociedade.

Compreender, identificar, interpretar e revelar estas transformações é o grande desafio da

interdisciplinar Arqueologia da Paisagem.

Refereências

ANDRADE, Rubens de. Comunicação oral em aula ministrada na EBA/UFRJ, Jun/2016.

ALVES, Teresa. Paisagem – em busca do lugar perdido, In: Finisterra, XXXVI, 72, p. 67-74,2001.

AMARAL, Idílio do. Acerca de paisagem: apontamentos para um debate, In: Finisterra, XXXVI, 72, p. 75-81, 2001.

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