Arquitetura Defesa Brasil Colonia

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    A arquitetura de defesa no Brasil Colonial

    Jos de Arimathia Cordeiro Custdio

    DOI 10.5433/1984-7939.2011v7n10p173

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    Resumo: Este artigo discorre sobre o estilo arquitetnico colonialbrasileiro, cujas razes medievais enfatizavam o carter defensivodas construes, tanto militares quanto eclesisticas. Ilustra a reflexoa partir de registros visuais fotogrficos que valorizam a arquiteturade defesa em sua angulao e enquadramento. Recupera a histriade tais monumentos histricos e suas funes de defesa do territriobrasileiro, poca alvo de disputas mercantis.

    Palavras-chaves: Arquitetura colonial. Defesa. Fortalezas.Fotografia.

    Abstract: This article discusses the Brazilian colonial architecturestyle, which medieval roots emphasized the defensive character of thebuildings, such as the militar as the ecclesiastic ones. It arises fromphotographic visual records which valorize the defense architecturein its angles and frames. It recovers the history of those historicmonuments and their defense functions of Brazilian territory, thatwas, at that time, a target of commercial disputes.

    Keywords: Colonial architecture. Defense. Fortress. Photography.

    Jos de Arimathia Cordeiro Custdio *

    A arquitetura de defesa no Brasil ColonialThe defense architecture in Colonial Brazil

    * Professor universitrio. Doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina.Especialista em Fotografia e em Histria Social pela mesma instituio. E-mail:[email protected]

    discursos fotogrficos, Londrina, v.7, n.10, p.173-194, jan./jun. 2011

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    Introduo

    Em termos histricos, considera-se que o perodo colonial brasileirovai de 1500 (chegada da esquadra de Pedro lvares Cabral) at 1822(independncia). Naturalmente, a arquitetura encontrada em tal perodopossui caractersticas europeias, quase totalmente portuguesas. evidenteque mesmo Portugal trouxe colnia traos de outras influncias, como arabe. Em conventos do Nordeste, encontramos azulejos e torres quelembram minaretes.

    As marcas estilsticas so, contudo, muito mais ricas. Adotandomateriais locais, conforme as possibilidades scio-econmicas de cadalugar, os colonizadores construram edifcios e espaos com traosmedievais, renascentistas, maneiristas, barrocos, rococs, at chegar aoneoclssico, estilo forte j do Perodo Imperial (1822-1889). Emboracada estilo tenha uma esttica prpria, com signos e sentidos caractersticos,no Brasil a transio e a convivncia entre eles acabaram gerando, emalguns casos, debates inacabados entre estudiosos da arte e da arquitetura.

    Porm, o que indiscutvel a importncia do legado arquitetnicocolonial brasileiro, encontrado principalmente no Nordeste e Sudeste dopas, e especialmente ao longo do litoral, no caso das construes militares.

    destas construes que trata este estudo. O objeto de reflexo a arquitetura colonial tem aqui uma de suas dimenses funcionaisdestacada: o carter de defesa, herdado da no muito distante IdadeMdia. No caso das fortificaes costeiras, o objetivo era bem claro:proteger o territrio de invasores estrangeiros e houve muitos: espanhoisem Santa Catarina; holandeses em Pernambuco; franceses no Rio deJaneiro. Logo, os muros, guaritas, seteiras e fossos deveriam garantir aresistncia e o ataque s foras inimigas.

    Da mesma forma, mas com um componente a mais (aespiritualidade), os conventos construdos no perodo colonial brasileirotambm pareciam fortalezas, erguidos para proteger no somente doseventuais invasores pagos, mas tambm para separar os religiosos dosperigos diablicos do mundo exterior. Assim, os claustros e os ptios

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    internos se tornaram caractersticos dos conventos, desde os primeiros,fundados no Egito por Santo Anto, no sculo III, at os atuais, como aAbadia da Ressurreio em Ponta Grossa (Paran).

    A arquitetura dos mosteiros beneditinos medievais modelo paratoda a cristandade j trazia todo um simbolismo espacial. Tomemoscomo exemplo a Abadia de Sankt Gallen (Sua), do sculo IX. A Igreja,claro, fica no centro. A leste, os aposentos do Abade, representante maiorde Deus na Terra. Depois, os demais monges, formando uma milciasagrada. A Biblioteca fica entre a igreja e o claustro, pois o conhecimentoest entre a divindade e o recolhimento. A leste ficam tambm a escola,oficina de escrita e ateli de arte, que so funes espirituais. J lugarescomo o refeitrio, claustro dos novios, estbulos e latrinas, muito maisligados a profanos e coisas mundanas, ficam no lado oeste. As sepulturasesto a leste, do lado da aurora, que simboliza a ressurreio. A oeste ficaa Hospedaria, pois o lugar dos homens ligados ao mundo, que estoapenas de passagem.

    De volta ao Brasil, Tirapeli (2006, p.7) afirma que no perodocolonial predominou o estilo maneirista, barroco e rococ, presentes emconstrues militares, civis e religiosas no litoral, no interior, e em MinasGerais, principalmente, a partir do sculo 18. E acrescenta: Logo apso Descobrimento do Brasil, as primeiras construes realizadas foram asfortalezas, erguidas com o objetivo de defesa das vilas e cidades litorneas.Os arquitetos eram militares e, posteriormente, padres jesutas, quefundaram vilas e construram igrejas e conventos. Vilas para ocupao eigrejas para manter a f crist entre os colonizadores e promover acatequese dos ndios, diz o autor (2006, p.10).

    Na mesma direo orientam Tenrio, Almeida e Dantas (2006,p.12):

    Ao chegar, os colonizadores iniciaram a ocupao da terra epreocuparam-se, antes de qualquer coisa, em defender o territriotomado e ensinar sua cultura aos nativos [...]. Ao se estabeleceraqui, aps as expedies exploradoras, as primeiras construesedificadas, que so igualmente as primeiras manifestaes

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    artsticas dos portugueses no novo territrio, so os fortes e asigrejas. A primeira, para assegurar o domnio de El-rei, o segundo,para render devoo a Deus. Um para defender os homens naTerra, o outro para proporcionar a entrada dos homens no cu.

    Como bem anota Campos (2006, p.21), o homem geralmenteedifica a casa e suas dependncias em conformidade com a experincia eos valores sociais de seu tempo. sobre um tempo de necessidade dedefesa e afirmao de valores (monrquicos e catlicos), portanto, querepousa este estudo.

    Caractersticas da Arquitetura Colonial

    Praticamente por trs dcadas, no houve interesse (leia-semercantil) dos colonizadores portugueses no territrio brasileiro. Foi como estabelecimento das Capitanias Hereditrias, justamente a partir daterceira dcada do sculo XVI, que teve incio a atividade arquitetnicano Brasil com alguma expresso. Igarassu e Olinda em Pernambuco, eSo Vicente, em So Paulo, so desta dcada. Salvador, fundada comvrias caractersticas do pensamento medieval, de 1549. Sobre estaltima, Baeta (2010, p.349) fala da

    [...] necessidade de o ncleo urbano se apertar entre seus limitesde proteo: acidentes naturais, como a falha geolgica da primeiracapital do Brasil, ou barreiras edificadas, como as muralhas quevo cercar as cidades lusas e alguns ncleos importantes do litoralbrasileiro.

    preciso, contudo, destacar a existncia de duas construes emsolo baiano de grande importncia histrica, muito apropriadas para esteestudo. Uma delas o nico castelo feudal das Amricas, o Castelo GarciaDvila, na Praia do Forte, cuja construo se iniciou em 1551, emboratenha ficado pronto apenas sete dcadas depois, e esteja em restauraoh anos.

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    A segunda o Mosteiro de So Bento de Salvador, de 1582, oprimeiro em terras americanas. Atualmente, a exemplo dos mosteirosbeneditinos de So Paulo e Rio de Janeiro, o soteropolitano foi totalmentecercado pela cidade. No faltaram, alis, tentativas do poder secular dederrub-lo, mas ele sempre resistiu. Mas, mesmo encurralados entretrfego intenso e multides de transeuntes, tais mosteiros aindaconseguem ser ilhas de silncio, contemplao e atividades espirituais.Suas paredes ainda defendem seus moradores do alarido profano.

    O mesmo ocorreu com muitas fortificaes coloniais, hojetransformadas para deleite dos apreciadores de Histria em atraestursticas. Diversas acabaram como os mosteiros engolidas pelocrescimento urbano. Um forte em Salvador (So Pedro), um no Rio deJaneiro (Copacabana) e dois em Recife (Brum e Cinco Pontas) soalguns exemplos. Vrias so propriedade das Foras Armadas e cuidadaspor elas. o caso da Fortaleza de Santa Cruz (Niteri), com sua corbranca caracterstica. Em Governador Celso Ramos (SC), aUniversidade Federal de Santa Catarina est envolvida na preservaoda Fortaleza de Anhatomirim. Em Itamarac (PE), at um arteso, ex-presidirio, comprometeu-se com a restaurao do Forte Orange.

    Segundo Tirapeli (2006, p.13),

    Para defenderem a nova terra contra invasores e ndios, osportugueses construram fortalezas em vrios pontos da costalitornea. Muitas delas resistiram ao tempo e ainda podem serconhecidas de perto. Salvador, a antiga capital colonial, a cidadecom o maior nmero de fortificaes, que esto ao redor da Baade Todos os Santos. Devido proximidade com os espanhis, ailha mais fortificada a de Santa Catarina, onde hoje est a cidadede Florianpolis. No litoral paulista tambm existem muitos fortes,e em Bertioga est o mais antigo deles, chamado So Joo, ondeHans Staden serviu aos portugueses em 1537. Entretanto, a maiorfortaleza do Brasil no fica no litoral, mas sim em Rondnia, e sechama Real Forte do Prncipe da Beira. Situada na margem direitado rio Guapor, foi construda a mando do Marqus de Pombal,na segunda metade do sculo 18, para marcar a fronteiraportuguesa na Amaznia.

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    Enfim, fortificaes, igrejas e conventos eram aspecto determinantee essencial na paisagem urbanstica colonial. As fortalezas ficavam empontos elevados da encosta e frequentemente em uma necessria passagemde embarcaes. No raro eram as construes que formavam umcomplexo de defesa. Em Santa Catarina, as fortalezas de Ratones,Anhatomirim e So Jos da Ponta Grossa formavam um tringulo defensivopara o invasor que vinha do norte. Na Baa da Guanabara, Santa Cruz eSo Joo se localizam no ponto mais estreito.

    Acrescentando-se estratgia de avistar o inimigo de longe umsentido espiritual, as construes religiosas tambm eram erguidas, comfrequncia, em lugares bem altos. A Igreja de Nossa Senhora daConceio, em Santa Cruz Cabrlia (BA), pode ser vista de longe, domar ou do rio a perspectiva do invasor. A Igreja de Santo Antonio, amais antiga de Aracaju, fica num ponto alto, de onde se v quase toda acidade. Ainda em Aracaju, a Igreja de So Judas Tadeu, onde h umconvento franciscano, tambm fica em um ponto elevado.

    Mas o melhor exemplo o Convento da Penha, em Vila Velha(ES). Alis, toda igreja que leva este nome (Penha, que vem de penhasco)fica muito alta. A tradio popular, inclusive, conta que o convento capixabaficou l em cima por causa da prpria santa, cuja imagem desaparecia noite da pequena capela (num ponto mais baixo do morro) e amanheciano alto, onde hoje realmente est o convento.

    Sabe-se que muitos dos primeiros arquitetos do perodo colonialeram, at por fora das circunstncias, religiosos e militares. Havia tambmaqueles de conhecimento prtico mestres-de-obras, pedreiros,carpinteiros. Todos contriburam, com seu conhecimento tcnico e acervosimblico cultural, na construo dos edifcios arquitetnicos coloniais,militares e eclesiticos. Entre os construtores religiosos, muitos vieram,primeiro, com os jesutas (os missionrios das Grandes Navegaesportuguesas), depois os beneditinos (com seus mosteiros) e franciscanos(igrejas com um grande cruzeiro na frente). Tirapeli (2006, p.20) o dizclaramente: o estilo chegou ao Brasil por meio dos artistas das ordensreligiosas, principalmente os jesutas, franciscanos e beneditinos.

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    Vale citar que Antonio de SantAnna Galvo, ou Frei Galvo (1739-1822), foi um franciscano, nascido em Guaratinguet (SP), exemplo destatradio: projetou o Mosteiro da Luz, em So Paulo. Por esta razo opadroeiro dos arquitetos e construtores.

    As primeiras igrejas construdas no Brasil possuem fachada simples,no chamado estilo cho, ou maneirista. Traz do Renascimento tardio apreferncia por linhas geomtricas simples, e o estilo maneirista, de visoprtica, simplifica as formas. Conforme Tirapeli (2006, p.7),

    [...] as construes do sculo 16 e incio do 17, denominadasmaneiristas, possuem uma arquitetura simples, que se torna maiscomplexa no sculo 18, quando apresentam fachadas curvas feitasem pedra, e interiores ricamente decorados com objetos de arte.

    No livro Histria da Arte (2008, p.11), est assinalado que aarquitetura maneirista, como cumpre um propsito mais estritamentefuncional, existe uma possibilidade menor de se permitir caprichosestticos.

    Ou ainda, nas palavras de Argan (2005, p.136), o Maneirismo otriunfo da prtica sobre a teoria, mas a prtica que, no mbito religioso,comeava a ser revalorizada como geradora de espiritualidade.

    A importncia das capelas e igrejas coloniais repousa, sobremaneira,do seu simbolismo. Como assinalam Tenrio, Almeida e Dantas (2006,p.13), elas eram o lugar de refgios, mais que as fortificaes.

    A decorao maneirista espartana e a predominncia de linhasquadrangulares e retas. H presena de azulejos. Mas, em essncia,trata-se de ser funcional e econmico, pois se tratava de comunidadesincipientes, num territrio novo, ainda no explorado, e sujeito a invases.Neste contexto de instabilidade e insegurana, no havia condies paraostentao de riqueza. H algumas igrejas deste estilo quinhentista noNordeste brasileiro, como em Porto Seguro (Igreja da Misericrdia),Igreja de So Cosme e Damio (Igarassu), Igreja da Graa (Olinda),alm da Capela de Santa Luzia (Vitria), extremamente modesta emseu exterior.

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    Tenrio, Almeida e Dantas (2006, p.73) explicam como se escolhiao stio para erguer as igrejas:

    Por uma questo estratgica, de visibilidade de poder e de defesa,o lugar escolhido para a construo da igreja costumava ser umaedificao natural e ampla, com espao largo para a formao deuma praa na frente do Templo, que facilitasse as prticasreligiosas e garantisse a expanso do ncleo em seu entorno. Apraa logo se constitua reunindo tambm a Casa da Cmara, emuma aproximao institucional que bem representava a convivnciado poder eclesistico com o poder poltico.

    J os conventos, em sua grande parte em estilo barroco, e dentrodo esprito de seu tempo histrico, retomaram ideais medievais queinfluenciaram tambm sua arquitetura, mediante paredes reforadas eclaustros proibidos para no religiosos, ou seja, no iniciados.

    Sabe-se que o barroco o movimento artstico da Contra-ReformaCatlica, da sua suntuosidade e rebuscamento. Era a Igreja de Romaexpressando sinais de poder atravs de signos visuais e catequticos. Muitoouro para provar a realeza e poder temporal; riqueza de detalhes paramostrar a inteligncia e conhecimento; escalas gigantescas para demonstrarligao com o divino; contrastes de luz e sombra com funo pedaggica,reafirmando a efemeridade da existncia terrena. Para Campos (2006,p.7) o Barroco no foi apenas um estilo artstico, mas uma viso demundo envolvendo formas de pensar, sentir, representar, comportar-se,acreditar, criar, viver e morrer.

    Tirapeli (2006, p.20/22) lembra que

    [...] como tudo no Brasil estava por construir e Portugal veiotambm para catequizar, a Igreja teve um papel importante naformao da cultura colonial. [...] As igrejas ficavam sempre muitovisveis, e os conventos ficavam nas sadas das cidades ou estasse desenvolviam ao seu redor. [...] Era um local onde se respiravaa cultura e o sentido de construo de uma nova nao longe daCoroa. As figuras de Deus e do rei se confundiam, pois a este seatribua um poder considerado como recebido diretamente deDeus.

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    No claustro, os religiosos se protegem das tentaes e podem seconcentrar na orao, estudos e trabalho em ritmo monstico. As paredese muros os defendem da influncia secular, ao mesmo tempo em queconstituem um santurio tambm para os fieis. na Igreja que podiam serefugiar em dias de ataque inimigo ou tempestades, pois a Igreja o smboloda solidez e perenidade, seja em seus atributos simblicos, seja na suaarquitetura de defesa.

    De uma certa forma, os dois estilos coloniais fazem memria aosdois estilos medievais guardadas as devidas diferenas, claro. Na AltaIdade Mdia (sculos V-XI), o estilo romnico fez das igrejas verdadeirasfortalezas: janelas que se parecem seteiras e paredes de pedra queparecem que jamais cairo. No interior, a Igreja era escura. No exterior,eram tempos de escurido; tempos de invases brbaras. J na BaixaIdade Mdia, o estilo gtico encontrou uma Europa cristianizada e estvel.O avano do conhecimento arquitetnico possibilitou ento a construode grandes janelas com vitrais. Ou seja, agora a luz entrava vontade.Os tempos de escurido haviam passado.

    Tirapeli (2006, p.22) descreve a organizao espacial urbana emque as igrejas se inseriam:

    As igrejas foram construdas voltadas para a praa principal, e nasua fachada, na maioria das vezes, existem duas torres. Entre elasfica o corpo central, que apresenta no alto uma estruturadenominada tringulo fronto, que pode ser curvo ou reto.

    No Brasil, o estilo maneirista, num contexto histrico deReforma, era prtico e funcional. O importante era demarcar o espaocatlico da colnia incipiente. Depois, num territrio com soberaniaportuguesa e catlica consolidada, o barroco teve espao para seprojetar livremente. De um lado, exibiu grandeza e ostentao. Mas,de outro, no deixava de advertir sobre o constante perigo dastentaes do mundo material, das heresias de povos protestantes, dafugacidade da vida terrena e das promessas de salvao para o espritovigilante e fiel.

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    Sobre o florescimento do estilo, Campos (2006, p.7) aponta quenas monarquias absolutistas catlicas, nas quais se inclui Portugal, o barrocoencontrou as melhores condies para se desenvolver, ganhandomagnificncia, monumentalidade e requinte, suscitando nos sditos edevotos emoo e verdadeiro deslumbramento. Este estilo, claro, chegouao Brasil. Tirapeli (2006, p.16) confirma, referindo-se arquiteturareligiosa: Vrias ordens religiosas vieram para o Brasil no perodo coloniale construram igrejas e conventos em pedra semelhantes aos que existiamem Portugal.

    Quanto s construes militares, tambm parecem se assemelhar,em alguns aspectos, com a histria medieval das fortificaes. O Forte deSo Tiago (Bertioga/SP), por exemplo o primeiro em solo brasileiro comeou com uma paliada de madeira, tal como os castelos europeusda Alta Idade Mdia. Muros e paredes e alvenaria vieram depois. Ovos eleo de baleia eram alguns dos materiais usados para dar liga e resistncias grossas paredes.

    Tirapeli (2006, p.39) destaca a Fortaleza da capital potiguar:

    [...] a Fortaleza dos Reis Magos a mais conservada e completaconstruo militar brasileira do perodo colonial. Fica em Natal(RN) e comeou a ser construda ainda no sculo 16, em 1598. Oprojeto semelhante ao do Forte de Jesus de Mombaa, emPortugal, e revela as mais avanadas tcnicas de defesa da poca.A Fortaleza dos Reis Magos tem valor simblico desde que foiconstruda, pois mostrava o poderio da Coroa luso-espanhola.Em 1631, caiu em poder dos holandeses e passou a se chamarCastelo Ceulen, sendo retomada em 1654. Atualmente a fortalezaabriga o Museu de Arte popular do Rio Grande do Norte, FundaoJos Augusto.

    Os fortes foram construdos em formatos quadrangulares oupoligonais (estrela). s vezes, o relevo do local forava uma adaptao efuga do formato regular, gerando curiosidades. O Forte de Cinco Pontasde Recife, por exemplo, tem apenas quatro intercorrncias da construo.As guaritas com seteira so tpicas da arquitetura defensiva portuguesa.

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    No faltavam a capela, os portais, o paiol, os alojamentos, as aberturaspara canhes e, eventualmente, elementos como fosso, poo, cisterna esistema de captao de gua de chuva.

    Quase todos os fortes ficam em solo firme, mas uma exceo deveser apontada: o Forte de So Marcelo, na Baa de Todos os Santos, acerca de 300 metros da praia. do sculo XVII e o nico em formatocircular em todo o Brasil, tendo sido inspirado, afirmam alguns, na Torredo Bugio (foz do rio Tejo, Portugal).

    Cabe ainda mencionar outras construes militares com algumelemento peculiar e distintivo. O Real Forte Prncipe da Beira, em Rondnia, a fortaleza mais ao interior, longe do oceano, localizada na fronteira coma Bolvia, margem direita do rio Guapor. Tambm na Amaznia, h aFortaleza de So Jos de Macap, margem esquerda do rio Amazonas,numa rea total de 84 mil metros quadrados. Ambos possuem formato deestrela com quatro pontas, mas no so to antigos, datando da segundametade do sculo XVIII. A Fortaleza de Santa Cruz, em Niteri, assemelha-se a uma pequena cidade: possui escadas, tneis, celas e calabouos,capela e at ruas e vielas, quase formando um labirinto (ou uma pequenavila medieval). Por fim, vale observar que todas as regies do Brasilpossuem fortificaes, embora nem todas visitadas ou conhecidas. Sno foram citadas at aqui exemplos no Centro-Oeste, mas os dois estadosde Mato Grosso possuem as suas. S que no so to antigas.

    Um olhar claustrfilo

    Os monumentos histricos brasileiros mencionados neste artigo jforam fotografados incontveis vezes, e basta digitar seus nomes numprograma de busca de imagens e l estaro eles, nos mais variados ngulos,enquadramentos, detalhes e, para o bem ou para o mal, nveis de qualidadefotogrfica.

    Apesar da importncia da competncia tcnica, aqui maisimportante o olhar gerador de sentidos; a traduo que a fotografia faz do

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    olhar daquele que a tirou. No caso, um olhar claustrfilo, em busca deuma imagem que reforce a arquitetura de defesa e o imaginrio medievalda qual ela se origina. Trata-se da busca de signos de solidez, fora eperenidade. Alguns ngulos ou detalhes nem permitem identificar facilmentea construo a que se refere, e necessria a legenda. Mas ilustram compropriedade a reflexo sobre o estilo arquitetnico e sua funo deproteo e defesa.

    A figura 1 mostra parte do Convento da Penha, de Vila Velha (ES),num ngulo de contra-mergulho. a perspectiva do ser humano, pequenoe inferior, que sobe o morro para adentrar seus espaos seguros eprotegidos. Erguido sobre rocha slida, assemelha-se a uma construomilitar, a uma fortaleza medieval, pois, deste ngulo, no exibe nenhumacruz, nenhum signo cristo. S se v paredes e muros slidos.

    Figura 1 - Convento da Penha Vila Velha (ES)

    Fotografia: Jos de Arimathia C. Custdio (maro de 2002)Fonte: Acervo pessoal do fotgrafo

    A figura 2 traz um detalhe do claustro do Convento de So Francisco,em Olinda (PE). O enquadramento e as linhas da imagem reforam a ideiade restrio espacial. Parece a viso de uma janela. As paredesenegrecidas e as sombras nos dois pisos acentuam a sensao de estarnum lugar antigo e apertado, sem sada a no ser para o alto. Faz parte da

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    doutrina religiosa: o nico lugar a se aspirar o Cu, mas apenas com aalma. A Terra pedra e p, que deteriora. Como no h nenhuma pessoana fotografia, o leitor se sente ainda mais sozinho em sua contemplao daimagem. O alto da torre exibe detalhes que mostram a influncia mouriscana arquitetura colonial portuguesa.

    Figura 2 - Claustro do Convento de S. Francisco (Olinda-PE)

    Fotografia: Jos de Arimathia C. Custdio (julho de 2000)Fonte: Acervo pessoal do fotgrafo

    A figura 3 um flagrante de alguns turistas numa das vielas daFortaleza de Santa Cruz, em Niteri (RJ). Um passeio guiado por ummilitar, que serve na Fortaleza, mostra alguns dos principais pontos dafortificao. Parte da rea reservada, mas os visitantes podem andarpor corredores, escadas, tneis, e conhecer a capela de Santa Brbara(padroeira dos artilheiros), as baterias com os canhes, o cantinho dasexecues por fuzilamento (onde uma mina dgua de origem inexplicada

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    lavava o sangue dos mortos) e a Cova da Ona, um pequeno cmododestinado a suplcios de prisioneiros, que gemiam e, de longe, pareciamuivos de ona.

    Figura 3 - Fortaleza de Santa Cruz (Niteri-RJ)

    Fotografia: Jos de Arimathia C. Custdio (fevereiro de 2001)Fonte: Acervo pessoal do fotgrafo

    Na imagem, percebe-se a construo em linhas retas equadrangulares, ou seja, simples e prticas. Muita parede e poucas janelas,todas altas. A guarita um exemplo ilustrativo do estilo militar das fortalezasportuguesas coloniais. As paredes so altas e a viela estreita e em aclive,uma organizao que dificulta a ao de invasores e favorece a defesa dolocal. As vielas e becos no obedecem a um traado geomtrico regular,de forma que, sem o guia, um visitante tem grandes chances de tomar ocaminho errado e at andar em crculos mais um mecanismo de defesa.O branco indica o pertencimento ao Exrcito.

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    A figura 4 lembra a imagem da figura 2, e de fato se trata de umoutro convento franciscano. Mas, desta vez, o Convento de SantoAntnio, na capital paraibana. A ideia, porm, foi a mesma: fazer umaimagem do claustro que reforasse a sensao de lugar fechado, isoladodo mundo exterior. Os nicos signos perceptveis levam religio. Estol novamente a influncia mourisca nas torres e os arcos caractersticosdos claustros ibricos. O arco escuro, esquerda, moldura parte da imageme refora a noo de limitao do espao terreno. Mais uma vez, h umjogo de luz e sombra, na tentativa de deixar a imagem mais barroca eprovocar as mesmas sensaes que o estilo artstico contra-reformadorcatlico. No h cores vivas e quentes na fotografia, mas tambm nodeixa de haver beleza na simetria e formas. E onde a beleza percebida,a existncia de vida intuda mesmo que, no caso, seja uma vida terrenaperegrina com vistas a uma vida eterna e plena no reino espiritual.

    Figura 4 - Convento de Santo Antnio (Joo Pessoa- PB)

    Fotografia: Jos de Arimathia C. Custdio (julho de 2000)Fonte: Acervo pessoal do fotgrafo

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    A figura 5 traz uma imagem de uma das guaritas da Fortaleza daIlha de Ratones, em Santa Catarina. Pode-se ver, pelo contraste, queh uma pequena janela (seteira), pela qual o vigia pode ver aaproximao de embarcaes, pelo mar. Dentro da guarita, o vigia nopode ser visto nem atingido, salvo por tiro de canho, que alertaria atodos. As guaritas eram dispostas de modo que de uma se avista outra,estabelecendo um permetro de observao em todas as direes, sempontos cegos.

    Figura 5 - Guarita da Fortaleza de Ratones (Florianpolis- SC)

    Fotografia: Jos de Arimathia C. Custdio (dezembro de 2004)Fonte: Acervo pessoal do fotgrafo

    A figura 6 um exemplo da arquitetura das primeiras igrejas noBrasil, de linhas mais simples e funcionais. A fotografia da Igreja daMisericrdia, no conjunto histrico antigo de Porto Seguro (BA). Umadas mais antigas do Brasil, a igreja tem uma nica entrada na frente eno tem janelas laterais, o que indica que tambm serve para proteo edefesa no caso de uma invaso, pois se torna um espao defensvel.Alm disso, embora a imagem no mostre, a igreja se situa num planoelevado, vrios metros acima do nvel do mar, num mirante natural.

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    A figura 7 mostra um detalhe da fachada externa do Forte de SoDiogo, em Salvador. Localizado na ponta da Baa de Todos os Santos,em posio diametralmente oposta ao Farol da Barra, o pequeno Forte cercado por uma praa verde. A imagem captada valoriza o conjuntode defesa, com a muralha e a guarita com finas seteiras em primeiroplano. fcil perceber que, para um inimigo que se aproxima, impossvelsaber se h um vigia, assim como incapacit-lo. Mas, ao contrrio, uminvasor pode ser facilmente atingido por um guarda l dentro posicionado.Mais altas ainda, as janelas do edifcio interior possibilitam uma vistamelhor ainda. Nota-se uma abertura esquerda, mas qualquer entradasempre foi fortemente guarnecida e defendida. Hoje, em tempos de paz,o Forte uma atrao turstica, portanto as portas permanecem abertasvrias horas ao dia.

    A fotografia esconde o tamanho da fortificao, que na realidadeno ocupa uma grande rea. O que imagem transmite a ideia deintransponibilidade para quem est de fora. Este sempre foi o objetivo daarquitetura de defesa.

    Figura 6 - Igreja da Misercrdia (Porto Seguro - BA)

    Fotografia: Jos de Arimathia C. Custdio (abril de 2003)Fonte: Acervo pessoal do fotgrafo

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    Figura 7 - Detalhe do Forte de So Diogo (Salvador - BA)

    O interior da Igreja do Mosteiro de So Bento de Salvador aimagem da figura 8. Apesar de a fotografia no ter som, a visualizao daimagem torna difcil imaginar que no seja um lugar de absoluto silncio,especialmente considerando que a fotografia mostra muito poucas pessoasem seu interior, pois no era horrio de missa ou outro ofcio. De dimensesgrandiosas, a Igreja se projeta realmente como um outro mundo, fora dotempo e do espao seculares. Estar entre suas paredes estar protegidodo mundo exterior, e tudo o que se v volta so signos religiosos, bblicos,voltados contemplao e salvao da alma.

    Na figura 9, nota-se a amplido do espao interno do Forte Orange,em Itamarac (PE). A entrada por um corredor em que se v partes emrunas, at que se chega ao enorme ptio interior. Na imagem, direita,percebe-se uma rampa. Existem quatro no Forte, e cada uma leva aonvel superior, mais alto que os telhados vista, e s guaritas remanescentes.Logo atrs dos coqueiros vistos na fotografia, est o mar. No fundo, estolojinhas e uma espcie de sala de informaes tursticas. Mais uma vez, fcil sentir um isolamento do mundo exterior. Do nvel superior, possvel

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    Fotografia: Jos de Arimathia C. Custdio (janeiro de 2005)Fonte: Acervo pessoal do fotgrafo

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    vigiar. No ptio interno, h espao para tudo: exerccios militares, prticasesportivas, festejos religiosos e populares, ou simplesmente uma fuga dobarulho de fora.

    Figura 9 - Ptio interno do Forte Orange (Ilha de Itamarac - PE)

    Fotografia: Jos de Arimathia C. Custdio (julho 2000)Fonte: Acervo pessoal do fotgrafo

    Figura 8 - Igreja do Mosteiro de So Bento (Salvador BA)

    Fotografia: Jos de Arimathia C. Custdio (janeiro de 2005)Fonte: Acervo pessoal do fotgrafo

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    Consideraes finais

    O Brasil no teve Idade Mdia. Mas os primeiros colonizadoresportugueses que chegaram aqui traziam forte herana cultural do medievo.Esta herana ainda est viva nos festejos religiosos populares do interiordo pas. Mas, nos primeiros sculos de ocupao do territrio dePindorama, a arquitetura tambm foi uma expresso desta herana.Preocupados com a defesa das novas terras, os portugueses construramuma srie de fortificaes ao longo da costa atlntica e tambm no interior,em pontos estratgicos, como o rio Amazonas e a fronteira com a Bolvia.Era o poder imperial ostentando seu poder diante dos outrosconquistadores de terras europeias. Um poder poltico, territorialista emercantilista.

    Ao mesmo tempo, e igualmente, as construes coloniais religiosasforam erguidas na Terra de Santa Cruz para demarcar a soberania daIgreja Catlica. E assim como as fortalezas militares defenderiam o territriode invasores gananciosos, as igrejas e conventos seriam uma fortalezacontra pagos e hereges, e em defesa da f catlica. Tanto a arquiteturamilitar quanto eclesistica se voltaram, no perodo colonial sobretudonos dois primeiros sculos de ocupao para a defesa da civilizaoluso-catlica. No por acaso os jesutas estavam entre os primeirosreligiosos a desembarcar nas terras alcanadas pelos portugueses. AOrdem foi fundada em 1540 pelo espanhol Incio de Loyola, que eramilitar, e os membros desta Ordem eram considerados Soldados de Cristo,num iderio que recuperava os princpios cruzadistas de sculos anteriores.

    Uma visita atenta a estas construes histricas, tombadas peloPatrimnio Histrico e Artstico Nacional, capaz de fazer visualizar algica arquitetnica dos dois tipos de edificaes militares na estratgia,espirituais na simbologia. Pois, para os colonizadores portugueses,defender sua casa era defender sua f, e vice-versa. por isso que, tantonum mosteiro em Salvador (j cercado pela cidade) quanto numa fortalezaem Niteri, o visitante se sente isolado do espao e do presente, paraviver ao menos temporariamente, atravs dos signos ainda vivos um

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    outro tempo e lugar. Esta a mensagem que os signos arquitetnicoscoloniais brasileiros transmitem. Esta a histria que eles testemunharame contam a cada um que passa diante de seus slidos muros.

    Referncias

    ARGAN, Giulio Carlo. Histria da arte como histria da cidade.So Paulo: Martins Fontes, 2005.

    BAETA, Rodrigo Espinha. O barroco, a arquitetura e a cidade nossculos XVII e XVIII. Salvador: EDUFBA, 2010.

    CAMPOS, Adalgisa Arantes. Introduo ao barroco mineiro.Belo Horizonte: Crislida, 2006.

    HISTRIA da Arte: Maneirismo, barroco e rococ. Barcelona:Folio, 2008.

    TENRIO, Douglas Apratto; ALMEIDA, Leda Maria de; DANTAS,Crmem Lcia. Arte sacra em Alagoas: um tesouro da memria.Braslia: Senado Federal, 2006.

    TIRAPELI, Percival. Arte colonial: barroco e rococ. So Paulo:Companhia Editora Nacional, 2006. (Coleo Arte Brasileira).

    discursos fotogrficos, Londrina, v.7, n.10, p.173-194, jan./jun. 2011