AS MEMÓRIAS ANTROPOFÁGICAS DE OSWALD DE ANDRADE · SILVANA APARECIDA TEIXEIRA AS MEMÓRIAS...
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SILVANA APARECIDA TEIXEIRA
AS MEMÓRIAS ANTROPOFÁGICAS
DE OSWALD DE ANDRADE
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT
Instituto de Linguagens – IL
Cuiabá
2011
SILVANA APARECIDA TEIXEIRA
AS MEMÓRIAS ANTROPOFÁGICAS
DE OSWALD DE ANDRADE
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado emEstudos de Linguagem, do Instituto de Linguagens daUniversidade Federal de Mato Grosso, como requisitopara obtenção do título de Mestre em Estudos deLinguagem.
Área de concentração: Estudos Literários – Literatura eRealidade Social.
Orientadora: Profª Drª Sheila Dias Maciel
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT
Instituto de Linguagens – IL
Cuiabá
2010
iii
DEDICATÓRIA
Ao matriarcado que me envolve:
Benedita Vieira Teixeira e Enodina PedrosoDuarte: Avós.
Davina Cláudia Duarte: Mãe.
Alcione Bom Despacho, Mônica Benedita,Danielle Regina e Flávia Manuela: Irmãs.
Paula Taici Teixeira Neves e Annelis TeixeiraAlves Dias: Filhas.
Mayara Gabrielle Mazzonneto Zanutto, CecíliaDias Teixeira de Arruda e Anna Clara DiasCoelho: Netas.
Ao meu pai, Alceu Ribeiro Teixeira.
Professo Amor, que me ensinou que mil anos
de idéia não valem um minuto azul do
sentimento estampado em seus olhos.
Ao meu filho Bruno Raphael Zanutto e meus
irmãos Adilson Espírito Santo Ribeiro Teixeira
e Alceu Ribeiro Teixeira Filho.
A Elizé Antonio Dias, grande amigo.
iv
AGRADECIMENTOS
À Dra. Sheila Dias Maciel, orientadora quetem trilhado ao meu lado os senderos por
onde passo.
À Dra. Rhina Landos Martinez André, amigaque há mais de uma década estimula e
acompanha minha evolução acadêmica.
À Dra. Cláudia Graziano e à sua equipe doMestrado de Estudos em
Linguagem/IL/UFMT, em especial àssecretárias que incansavelmente nos têm
auxiliado.
Aos mestrandos que comigo estiveramdurante o primeiro ano, em especial: Gisley,
Leandro e Lucy.
Aos professores e funcionários da Escola doLegislativo, da Assembléia Legislativa de
Mato Grosso, em especial: Professor AtaídePereira e Professor José Walter Zacarias.
Aos irmãos visíveis e invisíveis da AssociaçãoEspírita Wantuil de Freitas.
v
Muito de arte entrará nestes temperos, arte e
paradoxo que fraternalmente se misturarão para
formar, no ambiente colorido e musical deste
retiro, o cardápio perfeito para o banquete da vida.
(ANDRADE, 2002: 162.)
vi
TEIXEIRA, Silvana Aparecida. As memórias antropofágicas de Oswald deAndrade. Universidade Federal de Mato Grosso, 2010.
RESUMO: Sendo proposta lançar um novo olhar sobre Um homem semprofissão. Memórias e Confissões. Sob as ordens de mamãe (1954), deOswald de Andrade, obra que faz parte de uma parcela pouco comentada daprodução de um autor de reconhecida importância, busca-se investigar comoocorre a configuração das memórias no texto oswaldiano, bem como refletirsobre o lugar dessa obra dentro das escritas memorialísticas contidas noconjunto da literatura brasileira. Imbricando a antropofagia literária lançada poraquele escritor com teores de cunho autobiográfico, são dois os principaisrecortes para investigação: o trato da narrativa temporal, analisado à luz deDiscurso da Narrativa (1979) de Genette, e associado posteriormente àconfiguração do processo memorialista propriamente dito, presente na obra. Osegundo aspecto trata-se da explícita devoração da personagem pelo autor,fato transgressor do pacto autobiográfico. Para tanto, utiliza-se como aparatoteórico os conceitos de memória apresentados por Lejeune (1994), Todorov(2000), Caballé (1995), Olmi (2006) e Halbwachs (2006).
RESUMEN: Haciendo propuesta de echar nueva mirada sobre Um homem semprofissão. Memórias e Confissões. Sob as ordens de mamãe (1954), deOswald de Andrade, obra que forma parte de una fracción poco comentada dela producción de un autor de reconocible importancia, la búsqueda es deinvestigar cómo ocurre la configuración de las memorias en el textooswaldiano, además de reflexionar sobre el lugar de dicha obra dentro de lasescrituras memoristas contenidas en el conjunto de la literatura brasileña.Sobreponiendo la antropofagia literaria lanzada por aquel escritor con teores decuño autobiográfico, dos son los principales recortes para investigación: el tratode la narrativa temporal, estimado a la luz de Discurso da Narrativa (1979) deGenette y correlacionado posteriormente al proceso memorista propiamentedicho presente en la obra. El segundo aspecto se trata de la explícitadevoración del personaje por el autor, hecho transgresor del pactoautobiográfico. Para ello, se utiliza como aparato teórico los conceptos dememoria presentados por Lejeune (1994), Todorov (2000), Caballé (1995),Olmi (2006) e Halbwachs (2006).
PALAVRAS-CHAVE: Literatura Confessional. Memórias. Oswald de Andrade.
vii
SUMÁRIO
Introdução ....................................................................................................... ..8
1. A DEVORAÇÃO CRÍTICA.....................................................................16
2. A DEVORAÇÃO DO TEMPO.................................................................48
2.1 Uma leitura do tempo: a teoria de Genette....................................... 48
2.2 Em diálogo: Genette e os teóricos da confissão.............................. .74
3. A DEVORAÇÃO DA PERSONAGEM PELO AUTOR..........................101
CONCLUSÃO.................................................................. ................................134
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................139
8
INTRODUÇÃO
“Só a Antropofagia nos une: Socialmente.Economicamente. Filosoficamente.”
Oswald de Andrade
Uma das linhas de pesquisa do Mestrado em Letras da UFMT, campus de
Cuiabá, diz respeito ao estudo sistemático das tendências críticas que
discutem a literatura no século XX em diferentes tradições literárias. Neste
contexto, um dos objetivos da linha “Literatura e Realidade Social” é examinar
o imbricamento do real histórico com o ficcional em textos deste período. Além
disso, desenvolvem-se trabalhos reflexivos, nesta linha, sobre o modus
operandi de escritores novecentistas em face à produção literária de seu
entorno.
Neste âmbito há ainda muito por ser feito dentro do panorama dos
estudos literários no Brasil, já que a reflexão sobre a produção literária do
século XX nunca está acabada e merece ser retomada a luz de novos
conceitos e teorias. Uma das obras, publicada sob a égide da memória, que
merece ser revista é Um homem sem profissão. Memórias e Confissões. Sob
as Ordens de Mamãe, de Oswald de Andrade (1890-1954).
O escritor publicou Um homem sem profissão pouco antes de morrer, em
1954, atendendo a um pedido do crítico Antonio Candido, que lhe aconselhara
a escrever suas memórias. Após ouvir o conselho, redige, então, o primeiro
volume, que dá conta de sua infância, adolescência e primeiros anos de
juventude e formação intelectual. Outros estavam planejados, mas a morte
interrompeu o trabalho, que certamente acabaria se tornando peça chave para
a compreensão da cultura e da política brasileiras da primeira metade do
século XX.
Dessa forma Um homem sem profissão é o único volume de memórias de
Oswald de Andrade que chegou ao público leitor. Autor de mais de 20 obras,
9
seu nome é central para compreender o transcurso do Modernismo no Brasil.
Neste âmbito, revisitar seu único volume de memórias deve ser visto como
uma tarefa da crítica e da academia.
Sabe-se, pela variedade de estudos sobre Oswald de Andrade dentro do
Movimento Modernista, que há um estigma sobre a imagem deste escritor, seja
pelas atitudes (anti) sociais, seja pela sua criação literária. Estigma este que
poderia constituir de per si um trabalho específico que trataria dos inúmeros
adjetivos que lhe foram dados: subversivo, irreverente, conquistador, imoral,
decadente, oportunista, sarcástico, irresponsável, entre tantos.
Ao lado de Mário de Andrade, o paulistano irreverente falou e escreveu
com a singularidade que o fez destacar e, por muitas vezes, ser atacado e
atacar. Para Gimenes, 2000:135, a escrita de Andrade visa a “contestar os
limites existentes do campo de relações sociais no qual se situa. Ela afronta a
Gramática, já que não admite normatizações”. De igual forma, investindo contra
os principais agentes da opressão e controle - como o Estado, a Igreja
Católica, o Liberalismo e a Academia-, praticou uma escrita contestatória dos
tabus fixados por esses poderes.
Ainda em Gimenes, 2000:139, tem-se
Para compreendermos a posição histórica ocupada pelaenunciação de Oswald, é importante repensarmos o estatutode seus escritos quando do momento de sua produção [...] sequisermos entender o potencial crítico da época de seusescritos, é preciso revisitar seu caráter histórico de literaturamenor.
A título de ilustração, em 1922 o romance Os condenados já estava em
circulação, assim como Memórias Sentimentais de João Miramar, em 1924,
sem, contudo, serem vistos como autênticas representações do nacionalismo
literário brasileiro. Por outro lado, Juca Mulato (1917), de Menotti Del Picchia, e
A cinza das horas (1917), de Manuel Bandeira, eram aceitas como obras
prometedoras de êxito junto ao público.
Lessa, 2008:250, apresenta-nos justificativa plausível para o êxito de
determinadas criações literárias em detrimento de outras:
Para a construção nacional, a principal descoberta consiste emperceber o povo [...] o novo olhar inspira uma explosão de
10
literatura regional e um esforço por tipificar e ilustrar umavariedade de tipos populares e regionais do Brasil.
Sendo consideradas como literatura menor, as obras oswaldianas
estavam fadadas ao esquecimento, ao descrédito e à marginalização. A
literatura menor abrangia tudo que estava fora dos cânones, ou, como
esclarece Gimenes, 2000:139, “uma série de textos que, por algum motivo,
não está colocada na primeira linha de obras-primas” (grifo nosso).
A insubordinação literária do escritor visou destituir o poder
homogeneizante, em todos os seus sentidos, o mote inovador. Antonio
Candido, em Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade, ao comentar
sobre a atitude de ‘devoração e mobilidade’ deste escritor paulista, afirma que
De um homem assim, pode-se dizer que a existência é tãoimportante quanto à obra. Pelo menos a nós isto pareciaevidente, porque o víamos intervir, vituperar, louvar até asnuvens, xingar até o inferno, aclamar e depois destruir,remexendo sempre com uma paixão em brasa pela literatura.(Candido, 1977:75)
Referendar as próprias ações e composições literárias no escritor de Os
condenados significou constantes resistência e insistência. Resiste-se a quê?
Esse escritor resistiu à interpretação simplista imposta, de que a literatura
brasileira deveria configurar um ‘espelho’ da nação, ou seja, servir de veículo
representativo de uma estrita visão sociológica do povo brasileiro, como aponta
Velloso, 1998:1:
Ao longo de nossa historia político-intelectual, as maisdiferentes correntes de pensamento tenderam a conceituar aliteratura enquanto instancia portadora e/ou refletora do mundosocial.
Ante o exposto, indagamos: - Em quê insiste Oswald de Andrade?
Insiste em não admitir a Literatura apenas como veículo comunicativo do
estado social de uma nação. Insiste em discursar e agir a favor da imanência
constituinte da própria arte literária, ainda que se admita ser uma de suas
funções abranger o aspecto sociológico. Insiste em contrapor-se àquela
concepção ingênua que, segundo Velloso, 1998:1, apresenta a obra literária
como “mero testemunho da sociedade, como uma espécie de documento
11
destinado exclusivamente ao registro dos fatos”. Insiste em afirmar o
Movimento Modernista como acertada vanguarda literária para aquele
momento.
Esse posicionamento insubordinado oswaldiano, e próprio de todos os
modernistas, dadas as mudanças sociais, econômicas e políticas, e as
transformações literárias iminentes, compõem o quadro que antevê o quanto
os escritores deste movimento:
Não vão concordar com a rígida simetria que se pretendeestabelecer entre literatura e nação [...] O tom dos escritosmodernistas é muito mais de perplexidade do que deconstatação e testemunho. (Velloso, 1998:8.)
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A
contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos , diz o
blague em Pau Brasil (1924). Nota-se aqui uma preocupação sobremaneira
literária, estética em sua forma e conteúdo, e que desvia o foco da importância
sociológica para aquela de composição desta arte. Esse deslocamento de
visão da função e do fazer literários insubordina-se à imposição do regime
político (ditatorial, diga-se) vigente no Brasil daquela década. Imposição que,
para Velloso, 1998:8, objetivava a unicidade das múltiplas manifestações
artísticas, planejava manter uma continuidade através de ‘aparente ruptura’, ou,
como afirma a autora, ter a “literatura como espelho da nação”.
Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas.Os futuristas e os outros. Uma única luta – a luta pelo caminho.Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, deexportação. (Andrade, 1996)
Dito de outra forma, o que se pretendia ao homogeneizar ou inculcar
uma identidade literária nacional era combater, via controle, a alteridade e a
heterogeneidade literária. Em Velloso, 1998:9, vê-se que o discurso daquele
momento de poder político instituído pelo regime “exige uma ruptura com a
estética e a subjetividade, vistas como falsas porque incapazes de apreender a
nacionalidade”. Nesse sentido, a vanguarda modernista sempre representará
uma ruptura com moldes antigos, uma renovação de algo em desuso ou
insatisfatório às necessidades de determinada época, ou dinâmica destruição
que reconstrói ou reinventa.
12
Em quê constitui a insubordinação literária de Oswald de Andrade? Em
valorizar, pela criação literária, mais do que pelos discursos ideológicos e
políticos, o brasileiro em sua manifestação ímpar, em sua capacidade de
absorver, ‘degustar e digerir’ e, como artista autenticamente do Brasil, de
miscigenação de raças e de diversidades culturais, de dar a sua interpretação
genuína, de transformação, daquilo tudo que vê, sente, pensa e que lhe dá
movimento. “Elementos desprezados da poesia nacional”, como bem o disse.
Nas muitas literaturas oswaldianas mais se destacam: o uso de vícios
condenados pelos cânones, os neologismos, a fusão de vocábulos e de falas,
inclusive reveladoras da diversidade estrangeira habitante do Brasil, enfim,
uma renovação estética que facilita ao autor de A estrela de absinto (1927) ir
mais além com sua ironia:
É claro que um intelectual metrificado que anda de bonde comos bluffs do Anatole France na cabeça não pode enxergar aemoção bem-humorada que existe neste [...] Como esses, osoutros procuram somente fixar com simplicidade, semcomentário, sem erudição, sem reminiscência, os fatospoéticos de nossa nacionalidade, pareça ela tosca, primitiva,humorística ou guindada. Isto é o que quero eu. Vida de Far-West e de preguiça colonial – estética helênica e renascentistaeis o que querem os outros. (Andrade, 2009:35-36)
Se Pau-Brasil foi o começo declarado de uma insubordinação literária
oswaldiana, com o Manifesto Antropófago (1928) percebemos o
amadurecimento da insistência de Oswald de Andrade em direção a uma
genuína forma de pensar a literatura brasileira e o ato criador do escritor. Ser
antropófago, para ele, é rebelar-se “contra todas as catequeses. E ir contra a
mãe dos Gracos”, é insubordinar-se “contra todos os importadores de
consciência enlatada” e buscar uma comunhão entre espírito e corpo,
antropomórfica, “em comunicação com o solo”. (Andrade, 1996:22)
Assim configurada, a Antropofagia, que exalta a transformação dos
tabus em totens, em síntese,
É o culto à estética instintiva da Terra Nova. Outra: É a reduçãoa cacarecos, dos ídolos importados, para a ascensão dostotens raciais. Mais outra: É a própria terra da América, opróprio limo fecundo, filtrando e se expressando através dostemperamentos vassalos de seus artistas. (Andrade, 2009: 65.)
13
Pelas evidências expostas, percebemos que há uma coerência
discursiva que permeou o pensamento (ou mesmo o desejo) de Oswald de
Andrade. Ainda que para alguns o movimento literário oswaldiano estivesse
plasmado ou enfocado em suas atitudes pessoais, do homem em seu meio
social, repleto de impulsividades, inconsequências e inconstâncias, como
aquelas próprias a todos os simples mortais, pode-se afirmar que é justamente
pela sua produção literária e pelas suas revelações verbais sobre o movimento
modernista que aquele escritor demonstrou a significância e o valor da sua
manifestação, enquanto artista escritor brasileiro de visão universal.
Andrade percebeu e sentiu o fluxo ou movimento contínuo do fazer
literário daquele início do século XX seguindo sempre um dado curso. Em
convergência, criou uma nova maneira de (re) interpretar tal criação, sendo o
influxo provocador de efeitos distintos no modo de se pensar a Literatura
Brasileira. Por suposto, como conseqüência, sentiu o refluxo de seus atos.
Divergências que, supomos, foram evidenciadas nesta reflexão e que
seguramente demonstram o valor da insubordinação literária do escritor aqui
estudado.
Se ele se insubordinou “Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem
coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano,
fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.” (Andrade,
1996:20). A questão que merece ser tratada nesse momento, após longa
explanação sobre a trajetória do escritor paulistano, diz respeito à sua última
obra, nosso objeto de análise: também estarão as Memórias do autor
impregnadas dessa insubordinação? Poderão ser consideradas como
antropofágicas, as memórias contidas em Um Homem Sem Profissão, obra
escrita em um momento bem posterior à disseminação do conceito de
Antropofagia?
A obra trata da história da família de Oswald de Andrade, mas também
da vida urbana que viria a transcorrer na cidade de São Paulo da belle époque,
ou seja, entre o final do século XIX e os primeiros decênios entre 1900 e 1920.
Além de tudo que foi escrito, Um homem sem profissão é um texto que
merece ser revisto por ocupar um lugar importante no panorama da escrita de
memórias no Brasil. Publicada antes da sacralização da memória a que se
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reporta Todorov em Los Abusos de la Memoria (2000), esta obra inaugura uma
nova concepção de texto memorialista no país. As memórias de Andrade foram
produzidas após as Memórias, de Visconde de Taunay, e Minha formação, de
Joaquim Nabuco, mas não seguem o legado positivista de crença na verdade
que inicia a produção das memórias em terras brasileiras.
Os dois textos oitocentistas mencionados (Taunay e Nabuco) foram
escritos sob a égide de uma concepção de memória como ciência, ou melhor,
como fruto de um trabalho que crê na verdade e no fato como forma de
descrever a realidade. Já Um homem sem profissão parece representar um
momento especial na história da escrita das memórias no Brasil, momento em
que as memórias, no esteio de um modernismo revisor do passado nacional,
por meio de uma linguagem criativa e recriadora, e assumir seu papel de
literatura e de invenção. Hipótese que deverá ser perquirida neste trabalho.
Trazer à tona hoje a obra implica tanto reavaliar seu lugar no panorama
da escrita de memórias no conjunto da literatura brasileira quanto compreender
como ocorre a configuração das memórias no texto oswaldiano.
Justificamos esta investigação com amparo na proposta de um novo olhar
sobre uma obra novecentista, publicada em 1954 e reeditada em 2002 (cf. na
bibliografia), que faz parte de uma parcela pouco comentada da produção de
um autor de reconhecida importância. Pretendemos avaliar, neste título
selecionado, tanto as características da forma narrativa compreendida como
memória quanto o lugar deste texto na história da escrita memorialística no
Brasil, por meio da compreensão de sua singularidade.
Nesta perspectiva de recuperação de sentido, avaliar a obra
selecionada, escrita antes da sacralização da memória como produto de
exposição, mas inserida no universo de desvelamento do eu e da auto-escrita,
é nosso objetivo geral. Igualmente, na busca de compreender as dimensões
dessa insistência de Oswald de Andrade, cuja evidência recai sobre as
memórias e confissões, buscamos amparo em teorias memorialistas,
principalmente naquelas que dialogam com vertentes transgressoras do
memorialismo positivista, e, em paralelo, na própria antropofagia literária
oswaldiana como forma de conceber este discurso.
A escolha centra-se na hipótese de que, ao insistir em corroborar
constantemente sua própria concepção de literatura e de vida, Oswald de
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Andrade ocupe lugar ímpar, já que nessa ‘matinada’ (a frase “Este livro é uma
matinada” consta da página 19 da obra em questão) reside, explícita ou
implicitamente, a constância discursiva desse autor em defesa da Antropofagia
Literária, ou, seguindo o título desta dissertação, das Memórias Antropofágicas.
Os objetivos específicos da pesquisa podem ser definidos em quatro
itens:
1. Levantar a fortuna crítica sobre a obra em questão.
2. Compreender a singularidade da obra Um homem sem profissão,
avaliando sua forma narrativa e linguagem, por meio de
investigação crítica.
3. Validar um conceito de memória e de compreensão do tempo,
dentre os posicionamentos de teóricos diversos, compatíveis com a
leitura da obra base.
4. Reavaliar, segundo os resultados desta leitura crítica, o lugar de Um
homem sem profissão na linhagem das memórias do Brasil: texto
genuíno, escrito no esteio das obras escritas até então, ou
composição que já traz no seu bojo a utilização da forma das
memórias como suporte da ficção, empréstimo que as novas eras
literárias utilizarão em larga escala.
A aquisição deste conjunto de informações teórico-críticas sobre uma
obra representativa de literatura de língua portuguesa e que diz respeito,
também, à identidade do nosso Modernismo, compõe os objetivos da pesquisa,
a qual será apresentada em quatro partes ou capítulos.
O primeiro capítulo, A Devoração Crítica”, versa sobre as críticas
recebidas pela obra em questão, ou seja, trata da fortuna crítica que gravita em
torno de Um homem sem profissão para podermos iniciar um caminho crítico
específico.
Em um segundo momento, propomos uma leitura sobre a singularidade
temporal da obra em A Devoração do Tempo”visto que é o tempo um suporte
da narrativa de extrema importância para compreendermos a escrita das
memórias e, sobretudo, das memórias oswaldianas. Como aparato teórico,
evocamos Genette (1979) em diálogo com Lejeune (1994); Olmi (2006);
Halbwachs (2006); Caballé (1995) e Todorov (2000).
16
Em seguida, o terceiro capítulo, intitulado A Devoração da Personagem
pelo Autor apontará a relação entre o narrador, sujeito gramatical preenchido
por informações referenciais, e a personagem João Miramar, das Memórias
Sentimentais de João Miramar, obra clássica do Modernismo brasileiro.
Ademais, dissertamos sobre a consequência desse ato devorador cujo efeito
nos permite rever o valor e lugar de Um Homem sem Profissão no palco da
historiografia literária nacional, a partir do diálogo entre o antropofagismo
literário e a escrita memorialista.
Assim exposto, à Conclusão reservamos a intenção de reavaliar,
segundo os resultados obtidos desta leitura crítica, o lugar de UHSP dentro da
linhagem das memórias do Brasil, através de novo olhar sobre esta obra
novecentista, publicada em 1954 e reeditada em 2002.
1. A DEVORAÇÃO CRÍTICA
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei doantropófago. (Manifesto Antropófago, 1928.)
Este presente capítulo mostrará de que maneira se dá a devoração, por
parte da crítica, da obra Um Homem Sem Profissão. Memórias e Confissões.
Sob as Ordens de Mamãe (2002), doravante UHSP.
Cabe ressaltar que são as vozes críticas de Gimenes (2000); Candido
(2004); Velloso (1998); Fonseca (2008); Natália Silva (2008); Farias Silva
(2003) e Rezende (2003) que, apresentadas, ajudam tecer a fortuna. Além
delas, somaremos a voz do próprio escritor recuperada pelas várias entrevistas
concedidas e posteriormente publicadas na obra Os Dentes do Dragão (2009)
bem como devidos comentários nossos sobre as críticas arroladas.
No ensaio Oswald de Andrade: Literatura como política, de Renato
Aloizio de Oliveira Gimenes, consta uma declaração desse crítico que nos
chama a atenção no sentido de decidir por onde iniciar. Diz ele:
É comum atribuir os “acontecimentos de fundo” das histórias deOswald à sua biografia. Entretanto, se é verdade que há umanotável semelhança entre o enredo de Memórias
17
Sentimentais de João Miramar, Serafim Ponte Grande e UmHomem sem Profissão, fundados todos sob um narrador quesempre conta suas memórias a partir da infância à vida adulta,torna-se necessário perguntar: por que, então, essa insistênciada escrita em recontar diferentemente os acontecimentos,refazer sempre o mesmo? (Rago; Gimenes, 2000:146. Grifosnossos)
De fato, as obras oswaldianas supracitadas trazem essa constância
memorialista que ‘salta aos olhos’, característica considerada principal por
muitos críticos, ainda que alguns deles tenham optado por um recorte de
perspectiva histórica, ou psicológica, ou político-social, ao estudar a última obra
de Oswald de Andrade. Entretanto, é essa ‘insistência’ que perseguimos como
possível caminho para compreensão do porquê implícito que configura as
intenções literárias do escritor em evidência.
Ainda em Gimenes, 2000: 139, podemos constatar o fato de que, para a
época de produção literária brasileira em que Andrade escreveu suas obras,
estas não tinham “o peso da consagração, ou aquele engessamento advindo
da notoriedade”. Assim, a literatura oswaldiana foi tida como literatura menor
ou, em acordo com Gimenes, como aquela que “não está colocada na primeira
linha de obras-primas”.
As narrativas do tipo memórias e confissões também foram (ou ainda
têm sido) consideradas como Literatura Menor. Literatura do Eu, este gênero
tem despertado interesses diferentes do daquele passadista em que o leitor
buscava somente saber sobre a vida de alguém através de sua autobiografia
ou de uma biografia. Para Olmi, 2006:09,
Nas duas últimas décadas, o projeto autobiográfico veioabsorvendo uma surpreendente variedade de interesses,demonstrando que a leitura de uma autobiografia, associada aoescrutínio crítico do contexto no qual foi produzida, podefornecer uma visão ampla não somente do autobiógrafo, mastambém das condições sociais, culturais, políticas epsicológicas que gravitam ao redor de quem escreve a seurespeito.
UHSP, essa obra da Literatura Menor, tem sido estudada para detectar
aspectos como os de literatura ficcional, crítica sociopolítica, construção de
identidade, marcas psicológicas ou de registro histórico, entre outros. Mas,
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aqueles estudos que se detenham em tentar explicá-la a partir de teorias sobre
o autobiográfico, as confissões e memórias, ainda carecem de maiores
dedicação e interesse.
Em Gimenes, a crítica centra-se na constituição do eu autobiográfico de
Andrade como núcleo fundamental de sua política, tão importante quanto as
denúncia e crítica sociais. Para melhor compreender as vias desta fala,
necessária se faz a explicitação do crítico, que observa ter esse tipo de
literatura de atitude política (obviamente pertinente em Oswald de Andrade)
algumas características peculiares. Nesse sentido, Gimenes, 2000:146,
destaca do estudo de Deleuze e Guattari, intitulado Kafka: por uma literatura
menor, como principais os fatos de a literatura menor ser aquela que uma
minoria faz em uma língua maior e aquele resultado de que aí tudo é político e
adquire um valor coletivo.
Em comparação com o exposto, para o ensaísta, ademais da evidente
marginalização da escritura oswaldiana e da evidência de reafirmação da
inovação da linguagem, sobretudo em UHSP, soma-se uma abordagem
edipiana de profunda crise metafísica, já que “a morte da mãe é vivenciada
como uma experiência dilacerante de ruptura com a fé”, diz Gimenes,
2000:148, sendo este o ponto de partida para a criação literária oswaldiana,
segundo consta. Contudo, ao relacionar as obras UHSP, Memórias
sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, Gimenes (2000:155-
156.) assim esclarece:
Quero dizer, com isso, que o traço autobiográfico bde seusescritos é base para se pensar em experiências históricascoletivas, processos que atingem coletivamente pessoas declasses e etnias distintas.
Dentro da supracitada miscelânea de abordagens, o crítico em questão
conduz seu ensaio não se restringindo estritamente à obra UHSP, mas
equiparando-a com outras obras escritas anteriormente pelo escritor de O rei
da vela (1937). Sua proposta é a de uma leitura crítica que considere os
valores questionados por ele através de suas obras, a saber, o estético e o
ético. Ainda em Gimenes, 2000:165, a crítica oswaldiana ao parnasianismo
além de fazer emergir o valor e a finalidade política do texto, consiste numa
19
contestação da ordem literária e também da ordem política, o que evidencia a
interdependência de ambos, como enfatiza:
Não consiste apenas em contestação estética, mas numcombate a toda ética implícita à forma com que as elitesintelectuais pensavam os problemas sociais de seu tempo.
Por outro lado, ainda que se utilize igualmente de estudo comparativo
entre obras de Oswald de Andrade, o crítico Antonio Candido registra sua
impressão sobre UHSP no ensaio Digressão Sentimental sobre Oswald de
Andrade (2004), olhando-a sob outro prisma. Amigo íntimo e autor de Prefácio
Inútil escrito àquela obra supracitada, Candido revela o fato, que talvez tenha
sido explorado por muitos críticos de forma equivocada e sensacionalista, de
que Oswald de Andrade morreu depois “de um sofrimento comprido e
pavoroso”.
Viés que muitos exploram negativamente, como se a personalidade e o
comportamento do autor condenassem antecipadamente suas realizações
literárias. Mas, felizmente, a argúcia da digressão de Candido ultrapassa tais
limitações sobre nosso escritor paulistano e sua criação literária, ao rememorar
sinteticamente o ensaio Estouro e Libertação, de 1945, escrito e considerado
por Candido, 2004:33, como a “primeira e até então a mais longa tentativa de
analisar o conjunto da ficção de Oswald”.
Em Digressão Sentimental, dois aspectos são apontados por Candido
como comuns à personalidade humana e literária de Andrade: devoração emobilidade (grifo nosso). Visto desde esta perspectiva o conjunto oferece-nos
amparo para conduzir todas as hipóteses levantadas na introdução de que,
contrariamente ao que pensam alguns, o filho de José Oswald escreveu UHSP
com intuito de ratificar o seu projeto manifestadamente Antropófago, seja como
projeto de vida ou de fazer literário, algo corroborado pela seguinte declaração
de Candido, 2004:44-5:
Nos últimos anos se desinteressou da ficção, voltando-se parao ensaio filosófico e a redação das memórias, que infelizmentenão pôde acabar. [...] A partir de 1945 tornou-se cada vez maisum estudioso, preparando-se para desenvolver o tema da criseda filosofia ligada ao patriarcalismo, que foi para ele a praga dahistória do Ocidente.
20
Convivência e cumplicidade entre eles servem de fonte segura para
afirmar que os dois foram devoradores de obras sobre antropologia, história da
cultura e filosofia (sobretudo fenomenológica e existencialista), psicologia,
política e religião, entre muitas. Diz Candido que Andrade escreveu UHSP
quase à mesma época de A crise da filosofia messiânica (1950) e A marcha
das utopias (1953) Constata-se por essa afirmativa que o idealizador de O
Pirralho (1911) levou pouco mais de dois anos (começou em 1952) para
concluir suas memórias e confissões não sendo, portanto, uma obra escrita
sem prévia concepção e elaboração, ou como pensam alguns, escrita com
pouca inspiração já que o autor estava ‘no corredor da morte’.
Daí resulta simplista reduzir a literatura oswaldiana à única intenção de
retratar o social a partir da correlação entre estético e ético, como afirmado por
Gimenes. Há que se visualizar algo mais subliminar como, por exemplo, os
traços perfilados por Candido, 2004:50, fisionômico e comportamental, que
corroboram o desejo e a concepção oswaldianos de devoração:
Fome de mundo e de gente, de idéias e acontecimentos. Daí asua devoração não ser destruidora, em sentido definitivo, poistalvez fosse antes uma estratégia para construir não apenas asua visão, mas um outro mundo, o das utopias que sonhoucom base no matriarcado.
A crítica dialética de Candido discute ainda sobre a mobilidade oscilante
de Oswald de Andrade, que transita entre o berço católico e burguês e a
experimentação do anarquismo e da vida boêmia, extremos opostos que
formam parte da vida e da obra do escritor de Marco Zero.
Para Candido, tal mobilidade pode constituir a “síntese devoradora”
oswaldiana, advinda do choque de dois momentos culturais distintos: o do
mundo primitivo e do mundo cosmopolita; algo que é representado através de
estruturas móveis em sua literatura, presente também na obra UHSP, e que
Candido elogia, igualmente àquelas Memórias de João Miramar, dizendo-as
“boas”:
Quando é boa, a sua composição é muitas vezes uma buscade estruturas móveis, pela desarticulação rápida e inesperadados segmentos, apoiados numa mobilização extraordinária do
21
estilo. É o que explica a sua escrita fragmentária, tendendo acertas formas de obra aberta, na medida em que usa a elipse,a alusão, o corte, o espaço branco, o choque do absurdo,pressupondo tanto o elemento ausente, quanto o presente,tanto o implícito quanto ao explícito, obrigando a nossa leitura auma espécie de cinematismo descontínuo, que se opõe aofluxo da composição tradicional. (Candido, 2004:51.)
Visualizamos em UHSP essas características, também. Ainda que
Digressão Sentimental pouco explicite a respeito dessa obra, já que Candido
delimita o estudo no jogo par/ímpar que compõe a coleção de obras de
Andrade, considerando seus escritos como redações ora contínua ora
descontínua. Ainda assim, situamos a obra dentro desse ‘jogo’. Assim, o par
descontínuo se forma através de Memórias Sentimentais de João Miramar e
Serafim Ponte Grande; a trilogia constante de Marco Zero representa a escrita
contínua, segundo aquele crítico. Incluímos no primeiro par, portanto, a obra
UHSP, que viria a constituir nova trilogia.
Assim caracterizado, destacamos a valiosa contribuição de dito ensaio
que corrobora a hipótese de que as memórias e confissões oswaldianas, ainda
que Candido se refira em específico a Serafim Ponte Grande e Memórias
Sentimentais de João Miramar, pois demonstra mais e mais a insistência de
Oswald de Andrade em um largo projeto antropofágico de literatura. É o que
vemos implícito no excerto abaixo, onde Candido dá importância à perspectiva
temporal para a construção do juízo crítico sobre uma obra literária, sobretudo
esta aqui estudada segundo vemos:Naquele tempo, Miramar parecia melhor porque aindafazíamos crítica de olhos postos numa concepção tradicionalda unidade de composição, o princípio estabelecido porAristóteles como condição de escrita válida. Mas o que veiodepois fez ver mais claramente o caráter avançado de Oswaldcomo agressor deste princípio e precursor de formas aindamais drásticas de descontinuidade estilística. (Candido,2004:57)
No segundo capítulo intentamos estudo mais aprofundado sobre a
descontinuidade existente em UHSP, através de análise temporal que
considera o fator tempo como imprescindível para se observar o par formado
entre presente e passado, ou, quiçá, entre presente e futuro. Candido (In:
Andrade, 2002:12.) confirma a existência dessa descontinuidade, através de
crítica preliminar em Prefácio Inútil, escrito em 1954 para a obra em questão,
22
quando afirma que não se deve procurar nas memórias oswaldianas um retrato
do tempo, ou um traçado coerente do próprio eu, e
Nem tampouco ordenar as impressões relativas a fatos epessoas num sistema frio de observação. Aqui tudo se mistura;o eu e o mundo fundem-se num ritmo de impressão pessoalmuito peculiar, em que se perde, por assim dizer, aindependência de ambos.
Há que se salientar, com antecipação, o paradoxo existente em UHSP:
Se por um lado se evidenciam explicitamente forma e conteúdo literários
descontínuos, por outro ratifica subliminarmente contínuo projeto antropofágico
de Andrade, já que reafirma e evolui a concepção estética e estilística realizada
em períodos anteriores. Candido (In: Andrade, 2002:15), em seu prefácio, diz
que na obra “tudo isto ocorre, na verdade, porque este livro é feito sob o signo
da devoração”.
Inspiramo-nos em muito nessa afirmativa e no conselho dado por
Candido ao tratar sobre Oswald de Andrade de que: a melhor maneira de
compreender a sua vida, a sua obra e as estas Memórias é considerá-las em
conjunto, indissociáveis.
Assim, Prefácio Inútil registra que na técnica literária de UHSP coexiste
a solidariedade da obra e da vida através de certa dualidade que comprova a
existência da descontinuidade. Na primeira parte parece haver mais coesão
entre conteúdos, “organizando os dados da memória num sistema evocativo
mais inteiriço”, no dizer de Candido.
Entretanto, a partir de certa altura da obra, como veremos no próximo
capítulo, a proximidade da narrativa com o tempo real de existência do escritor
(Anos 50) acaba por diluir aquelas primeiras impressões em favor do
surgimento de novas impressões, dadas por ‘fantasmas’ que habitam o
discurso coletivo da segunda parte ou, como preferimos, que habitam na
memória coletiva do autor. Oswald de Andrade, de há muito, contrapõe-se à lei
e à ordem, sendo esta característica considerada por Candido
Uma das raízes da sua Antropofagia, a sua cosmovisão queassimila o mundo e os valores segundo um ritmo profundo,triturando-os, para que sobre, como bagaço, a peia do costumepetrificador. (Andrade, 2002:15)
23
¿Qué sentido tiene que nos ofrezcan el relato de una vida desarticulada,
compartimentada, descuartizada? Esta indagação da crítica espanhola Anna
Caballé, presente em Narcisos de Tinta (1995) faz-se nossa também.
Perguntamos, ainda: - O ato de elaborar um texto literário que explore o
recordar, o revisitar o passado, funciona por esse mesmo viés?
Esta investigação, em busca de compreensão das memórias e
confissões, considerando a própria visão do autor em questão, transforma-nos
em críticos antropófagos a indagar: - O que é uma fortuna crítica literária,
senão a devoração de tudo que já foi escrito e editado sobre determinado
aspecto de específica obra de um autor?
Conhecer a crítica do outro, observá-la, absorvê-la, digeri-la e (re)
interpretá-la sob outra ótica não seria, acaso, uma tarefa antropofágica de
deglutição de tudo que se nos possa surgir à frente? Oportunamente seria,
acaso, o intuito de alimentar-nos de tais fontes para daí tomar posição no
mundo da crítica segundo nossa visão das coisas? Tudo se (trans)forma, bem
foi dito. Assim, ainda sentimos fome e, parece-nos que, alguns temperos de
alguns pratos são principais para esta nossa farta ceia. Note-se que esta
devoração começa-se pelo geral, o afortunado prato de entrada, para a seu
tempo deglutir o específico do prato principal oswaldiano.
Nesse rito, de tentativa de transformação do tabu em totem,
continuamos pedindo mais entradas, convidando Fonseca a falar algo sobre
Por que ler Oswald de Andrade (2008). Livro este que se divide em capítulos
onde a autora apresenta, inicialmente, uma biografia sucinta sobre dito escritor,
seguida de cronologia e de uma sessão intitulada Ensaio de Leitura que traz,
sinteticamente, crítica sobre suas principais obras.
Entre Aspas é o penúltimo capítulo cujo teor contém trechos de algumas
obras e, de Estante constam publicações em vida do autor, assim como
entrevistas, edições em jornais de trechos de obras, edições póstumas,
volumes e textos esparsos, traduções; e, por fim, apresenta um leque de opção
para se compor qualquer Fortuna Crítica sobre obras de Oswald de Andrade,
sob a forma de indicações de livros, ensaios, dissertações e teses, autores e
títulos que o influenciaram, entre outros.
24
Para o leitor iniciante, é obra que se faz imprescindível por oferecer uma
visão de tudo que Oswald de Andrade compôs e, ainda, apresenta estudos
existentes sobre ele. Nesse sentido, quero registrar que foi através de Por que
ler que obtivemos informações sobre a tese de doutorado de Neide Luzia de
Rezende, da Universidade de São Paulo, cujo teor vem exposto adiante.
Ainda que somente duas ou três páginas tenham sido dedicadas à
crítica sobre UHSP, nelas Maria Augusta Fonseca registra sob o título Entre
Aspas um trecho do Livro de Convalescença (1954), escrito em caderno
espiral, em que o nosso escritor revela sua intenção quando da composição de
suas memórias, e aí diz que Fonseca, 2008:133, que “Trazem elas um sentido
edipiano, particularmente o primeiro volume que se intitula Sob as ordens de
mamãe”. A autora, entretanto, delimita sua investigação em crítica sumária
sobre as memórias oswaldianas, dizendo ser:
Um misto de memória, confissão e diário [...] Há nas páginasde Um homem sem profissão pegadas significativas dasimportantes transformações da vida social brasileira e dasmudanças que Oswald de Andrade operou no campo dalinguagem literária, aliada ao sumo de sua personalidadeexuberante.
Fonseca propõe um olhar sobre o hibridismo da literatura confessional
oswaldiana, evidente avanço. A proposta de edição coordenada por Rinaldo
Gama sob a Coleção por que ler da Editora Globo é muito pertinente. Daí
passando quase imperceptível o equívoco da página 146 sobre o ano de
edição de UHSP, pois daí consta que foi em 1945 quando em verdade trata-se
do ano de 1954.
Sobre as críticas tecidas por Fonseca, as que afirmam tratar-se UHSP
de “um relato de vida ou, antes, de uma análise fecunda de sua meninice e da
vida de um jovem”, Candido já advertira em Prefácio Inútil que:
Nas presentes memórias de Oswald de Andrade, não se deveprocurar auto-análise nem retrato do tempo [...] O leitor verá,por exemplo, que os fatos e os homens aparecem, aqui, nãocomo depoimentos ou estudos, mas como modos desensibilidade [...] onde as pessoas tornam-se personagens,imperceptivelmente, e, quando menos esperamos, o real secompõe segundo as tintas da fantasia. (Andrade, 2002:12-13.)
25
Outro ponto que nos chama a atenção é a indicação feita por Fonseca
de que ao ler UHSP o leitor pode aí comprovar pela leitura como, o que e quem
foi seu autor. Ledo engano bem advertido por Candido, como se observa
acima. Em busca de oferecer aos sentidos do leitor mais opções para a sua
construção critica, fazemos parêntesis neste estudo para mencionar o artigo
escrito por Natália Silva, 2008:4, sob o título A memória de Miramar:
decompondo e recompondo a memória ficcional. Ainda que dele conste apenas
um registro sobre UHSP, sua importância se faz pelo trato dado ao universo
das escritas confessionais oswaldianas em geral. Nesse sentido, a autora nos
diz que:
Nas Memórias Sentimentais, encontramos não apenas aconstrução ficcional dos processos da memória, mas tambémuma paródia a essa construção, na qual o autor se apropria deelementos próprios do gênero das memórias a fim de subvertê-los.
Tecendo uma crítica contrária àquela apresentada por Fonseca, Silva
delimita três eixos norteadores das memórias literárias, sobretudo daquelas
constantes de Memórias Sentimentais. Diz que são eles: a memória da
banalidade, a memória como paródia e a memória em estilhaços. Sobre a
primeira, apresenta-a como uma pista falsa sobre fatos da vida e afirma, sobre
a segunda, que esta é paródia porque não temos nas Memórias uma
destruição em estilhaços porque toma a parte pelo todo.
E, em salvaguardando o fato de não estarem estilhaçadas as confissões
de Miramar, comparativamente, tem-se tais processos facilmente detectados
igualmente em UHSP, salvo o fato de ser estas memórias imagéticas de
tempos e lugares diversos, representativos do histórico-social, político, religioso
multifacéticos.
Uma possível relação entre UHSP e Memórias Sentimentais, segundo
citação de Silva sobre estudos de Schwartz, pode acontecer se observada a
seguinte insistência:
Sabemos que o tema da viagem é uma constante na obraoswaldiana: há, inclusive, diversos paralelos entre as viagensde Oswald e as de João Miramar (Oswald conhece Landa,Miramar conhece Rolah, ambos hospedam-se no mesmoalbergue parisiense; ficam órfãos de mãe na viagem de
26
retorno). O próprio Oswald reitera, em suas memórias (Umhomem sem profissão. Sob as ordens de mamãe), que seunome é Miramar (Cf. ANDRADE, 1990b, p.112), deixando claroque em sua criação há o “aproveitamento, submetido a umaelaboração ficcional, fragmentadora, de muito de suaexperiência vivida. (Schwartz, 1983: 81. In: Silva, 2008:5)
A atenção que a autora dá ao trato da escrita memorialista conduz o
discurso para o universo do próprio gênero, embora reconheça que apenas
“alguns traços característicos do gênero memorialista são mantidos, como a
narração em primeira pessoa e o panorama da época” (Silva, 2008:14).
Em 2003, Rodrigo Pereira Lopes de Faria e Silva defendeu Mosaico das
memórias de Um Homem sem Profissão, dissertação cujo teor está recheado
de aspectos que intentam relacionar o gênero memorialista com a ficção. Para
tanto, notamos que este estudioso se ocupa de um viés explicitamente
linguístico e histórico já que apresenta:
Um mapeando da cidade já modificada de Oswald (1890 –1919) e de expressões e vocábulos, dos quais muitos já seencontram em desuso (1954 – ano de publicação dasmemórias. E por fim a obra também rastreia a presença dosparentes do autor procurando assim um tecido que abranja ofamiliar e o coletivo, a cidade com seus usos e costumes e ohomem e o artista que caminha por suas ruas. (Silva, 2003:03)
Explorando a frase inicial Este livro é uma matinada, constante da
página 19, levanta hipóteses significativas sobre a possibilidade de exploração
do vocábulo matinada por parte de Oswald de Andrade, considerando que
nessa terminologia pode residir seu núcleo importante. Tais significações serão
retomadas quando da Conclusão desta dissertativa.
Antecipando as várias acepções para matinada, sinteticamente, o
estudioso começa por relacioná-la com o caráter religioso, ou com livro das
orações matinais que seria o canto do sentimento órfico explicitado pelo
escritor Andrade. Ação de madrugar é outra possibilidade que Silva relaciona
com a festa antes da noite, equiparando tal matinada com o advento das
mortes da mãe, de Daisy, do pai e do próprio escritor paulistano, sendo esta
última tida como prenúncio.
27
Matinada também pode ser tomada como estrondo, ruído, confusão –
algo que Silva remete à vida amorosa tumultuada e ao temperamento impulsivo
de Andrade. Há ainda um sentido que se aproxima da idéia de vozerio,
falatório, sempre segundo Silva, que representaria por extensão as inúmeras
vozes evocadas pelo autor para referendar sua narrativa; assim como a idéia
de tentar convencer, persuadir, utilizada pelo subversivo escritor Andrade como
sua versão ante os fatos.
Por último, apresenta a correlação com o uso popular em São Paulo
dado ao termo, que se equivale ao ato de mentir, ou ao “mentiroso [...] que
corrobora muito a idéia de que neste relato memorialista também se
entretecem confissão e ficção.” (Silva, 008: 8) As inúmeras possibilidades de
interpretação do termo são muito oportunas, daí defendermos também que sua
presença no livro tem propósito bem pensado pelo rei do blague, algo que
trataremos posteriormente, conforme exposto.
Outro ponto que resguardamos para comentários posteriores, e que foi
evidenciado por Silva, encontra-se na ausência do subtítulo Sob as ordens de
mamãe na edição do ano 2002. Subtítulo este que denominaria o primeiro
volume dos quatro pretendidos por Oswald de Andrade. A supressão deu-se
talvez porque “o organizador pensou ter o conjunto concretizado do projeto Um
homem sem profissão e que nesta edição (de 2002) valeria a supressão do
subtítulo”. (Silva: 2008:16)
Ainda em Silva, observamos extensa explicação comparativa das
publicações de UHSP dadas em 1954, 1976, 1990 e 2002, com comentários
sobre formato das edições, capas e contracapas, da qual ele constata:
Ao cotejá-las percebo que não houve nenhuma mudança derelevo, apenas as alterações na ortografia e na acentuação porforça de atualização ortográfica de padrão ocorrido na LínguaPortuguesa, como o do acento diferencial de timbre [...] Outrasmudanças são de caráter tipográfico, como títulos de obras ede periódicos que na primeira edição são apresentadas entreaspas e passam para o itálico na última; ou a substituiçãointerna de maiúsculas por minúsculas em alguns destes títulos[...] No mais foram algumas correções como a supressão deuma vírgula ali e a correção de uma palavra lá, que nãopassam de cinco ou seis no livro todo e que estão mais paracorreções tipográficas do que para alteração de carátersignificativo ou imprescindível como afirma Jorge Schwartz, oorganizador da obra, em nota introdutória. (SILVA, 2003:15)
28
Após tais observações, Silva, 2008:19, explora a estrutura narrativa de
UHSP descrevendo alguns fatos como a morte da mãe de Andrade, e o
casamento in-extremis dele com Miss Daisy, insinuando-nos que Andrade
avança no tempo narrado, de uma estrutura fragmentária, conjugando assim
estilo do narrador com o estilo de vida da personagem no momento abordado.
Conclui o crítico que em UHSP a narrativa “torna o passado remoto mais
objetivo em sua estrutura realista e ficcionaliza na estilização o passado
próximo” (Silva, 2008:.22), evidenciando ausência de construção organizada do
passado enquanto documento de época, em acordo com suas próprias
palavras, algo que para ele representa proposta modernista de ruptura lúdica e
revolta lúcida frente aos cânones autoritários do realismo vigente, como forma
de preservação da identidade artística de Oswald de Andrade.
Outro aspecto reside na confluência de gêneros registrada em UHSP,
caracterizadora da estética oswaldiana, já que para o estudioso:
Tanto a obra ficcional quanto aquela de cunho confessional ememorialista representam um movimento de oscilação entre oreal e o inventado, entre a lembrança e a fantasia deste eu.(Silva, 2003:32)
De fato, torna-se inviável criar limites entre o ficcional e o factual em
UHSP, pois nesta obra o lugar da imaginação está entredito, num espaço que
não é exatamente passado nem precisamente o presente narrado, como expõe
dizendo que:
Tais gêneros são aqui entendidos enquanto formas discursivascom claras diferenciações: o ficcional apresenta a imaginaçãocomo fonte primária dentro de uma complexa construçãotextual; e o memorialista necessariamente se vale daexperiência no lugar da imaginação, embora muitas vezes sejasecundada por ela. (Silva, 2003:33)
Visando explicar dito hibridismo de gêneros em UHSP, indaga onde está
o factual e onde está a ficção em UHSP, apontando para evidente presença de
personagens outras de obras de Oswald de Andrade, como aquelas de
Memórias Sentimentais de João Miramar, Serafim Ponte Grande e do diário O
Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo, e sobre isto afirma:
29
Assim como o romancista povoava seu universo de ficção depersonagens arrancadas da vida ao seu redor, no caso meparece que leva um pouco de fantasia e ficção aospersonagens de suas memórias, dando-lhes uma dimensãoliterária muito superior e mais agradável do que a dimensãoconcreta pretendida no ato de lembrar. (Silva, 2003:37)
Como resultante desse entrelaçar de gêneros, Silva supõe intencional
paralelismo dado por Andrade em UHSP, entre o mundo das verdades
pessoais e o mundo das verdades históricas, equilibrado dentro da instância
narradora. Nesse sentido, para aquele estudioso existe uma predisposição do
leitor em confundir o narrador com o autor empírico da narrativa em primeira
pessoa, justificando que “a autobiografia é também uma auto-interpretação,
fazendo desse autor empírico uma espécie de personagem de ficção de si
mesmo e é justamente isso que assistimos em UHSP”. (Silva, 2003:39)
Dessa observação advêm comparações que diferenciam os papéis
desempenhados por Andrade em UHSP: ora escritor, ora narrador, ora
personagem central ou mesmo secundário. Disso resulta que Silva elenca
diversas passagens que na obra demonstram tal oscilação, dizendo-as de
acordo com a intenção do momento narrado, e vendo-as como resultantes do
ato de lembrar, como imagens que espocam quais flashes alheatórios.
Evidência aposta no seguinte registro:
Se por um lado é o estilo e o ritmo narrativo de Oswald queenriquecem seu texto memorialista e confessional, também ométodo adotado por ele em UHSP é importante, revelandosuas próprias obras como documentos de pesquisa, e alémdelas as reminiscências que acabam sendo regidas pela‘memória involuntária’ [...] Trata-se de um dado concreto naconstrução de um relato memorialista, pois dos fatoslembrados surgem outros fatos associados, sensações esentimentos, bem como invenções desenvolvidas com asinterferências do tempo. (Silva, 2003:46)
Daí que, para o crítico em evidência, as multifaces da memória
constituem ápice de sua crítica sobre UHSP, pois as percebe fragmentadas,
em tempos e em espaços, entremeadas de confissões. Como exemplo, quando
Oswald de Andrade fala sobre a cidade de São Paulo é a própria maneira de
sentir a vida social dessa metrópole, com acurado senso do processo histórico
por ele vivenciado o que, ainda segundo Silva, denota associação do progresso
30
modernista nos seus aspectos sociais, comportamentais e políticos, entre
alguns.
Outros aspectos ressaltados relacionam-se à vida educacional, ao
universo feminino presente através das figuras da mãe, tias, professoras e
mulheres com quem se relacionou, assim como a presença do diário coletivo
desenvolvido na garçonnière, já mencionado anteriormente.
Ainda consta da obra de Silva o capítulo Para ler UHSP que apresenta
vocábulos, expressões e construções oswaldianas e referências onomásticas,
matéria que ocupa mais de trinta páginas sem menção ao ‘objetivo’ do capítulo
em questão. Porém, da introdução consta que o intuito reside em registrar tais
fatos linguísticos como forma de colaborar para o entendimento maior da obra.
Algo alcançado de fato, principalmente pela presença de expressões
pertencentes ao universo linguístico em moda naquela época.
Seguidamente, o quarto capítulo traz a memória toponímica de São
Paulo entre 1890 e 1919, com extensa relação dos nomes de cidades, bairros,
ruas e praças, entre outros locais supostamente freqüentados e na obra
utilizados pelo escritor Andrade para composição da sua narrativa.
Valemo-nos ademais do extenso e supracitado estudo para observar o
propósito de Oswald de Andrade de se apropriar da hagiologia que nomeia
ruas, avenidas e outros espaços paulistanos. Isto configura um chamamento
especial para a influência católica exercida sobre dito escritor e sobre o povo
brasileiro daqueles anos. É a tradição do catolicismo forçando correlação com
o sentimento órfico oswaldiano; sentimento exacerbado no instante em que o
filho de Dona Inês sentiu o dissídio com Deus, quando da morte da sua
genitora e também por ocasião de cada decepção que a vida se lhe impunha.
Silva, no quinto capítulo, faz referências à família Andrade,
apresentando possível esboço da árvore genealógica do nosso escritor. Parte
aquele estudioso das próprias indicações constantes em UHSP e a partir daí
registra dados sobre local e data de nascimento de alguns deles. Entretanto,
faz-se importante registrar que em Mosaico das memórias de Um Homem sem
Profissão, os capítulos subseqüentes ao primeiro parecem moldar outro recorte
investigativo já que não se apresentam conectados àquele inicial, passando a
31
funcionar como listas de dados históricos mais bem que aquele de cunho
literário proposto inicialmente pelo acadêmico.
No sexto e último capítulo tece comentário sobre a fortuna crítica por ele
levantada, com alusões sobre artigos, resenhas, obras, recorte de jornais,
ensaios, enfim, todos os materiais a que teve acesso. Dentre estes destaco o
Livro da Convalescença, datado de 27-3-54, que foi transcrito na dissertação a
partir do caderno manuscrito que se encontra no IEL (Instituto de Estudos de
Linguagem) – CEDAE (Centro de Estudos e Documentação Alexandre Eulalio)
da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas).
Dividido o Livro em três partes, como aponta o estudioso, a última trata
de uma comunicação para Encontros de Intelectuais. A segunda parte traz o
texto intitulado Do órfico e mais cogitações, cujo teor trata de impressões da
influência religiosa religião sobre a criança ou o período infantil de Oswald de
Andrade. Da primeira parte do Livro constam informações sobre UHSP,
tratando principalmente daquele sentimento órfico. Na revelação acima exposta
o filho de Dona Inês ratifica sua descrença ou ausência de profissão de fé no
patriarcalismo estatal, através da seguinte afirmativa registrada com palavras
quase idênticas àquelas existentes em UHSP:
Adotei de há muito um completo ceticismo em face dacivilização ocidental que nos domou. Acredito que ela está nosseus últimos dias, vindo à tona uma concepção oposta – a dohomem primitivo, que o Brasil podia adotar como filosofia [...] Oocidente nos mandou com o messianismo todas as ilusões queescravizam [...] As minhas memórias como documento marcama maior das transições [...] O sentimento órfico que levantavapara o alto as mãos de minha mãe explicaria o milagre de euestar vivo, convalescente e esperar ainda. Sem nenhumcompromisso confessional. Não adoto nenhuma religião massei que a religião é uma dimensão do homem. (Silva,2003:126-7.)
Aprofundando nossa investigação sobre a fortuna crítica de UHSP,
fazemos referência à menção que faz ao texto de Décio Pignatari, intitulado
Tempo: Invenção e Inversão. (In: Andrade, 2002:23-7.) que foi analisado por
Silva, 2003:120, como prescindível, “apesar de se tratar do texto que
acompanha a obra desde sua terceira edição, não faz referência direta às
memórias de Oswald”, restringindo-se em comentar sobre a figura humana,
social e literária de Andrade.
32
Entretanto, salientamos que dito artigo de Pignatari destaca
precisamente o valor do tempo para a composição das memórias do pai de
Nonê, Rudá e Antonieta. Anacronicamente, através das inversões dadas por
prolepses e analepses, como veremos no capítulo seguinte, tem-se o singular
modo de invenção característico de Andrade: o kodakar, o ready-made, a
colagem – processos constituintes do processo de revisitar o passado ou das
memórias e confissões oswaldianas, enfatizados Pignatari em:
Da arte, Oswald derivou o pensamento antropofágico, propostacultural para os velhos povos das nações novas. Osantropólogos brasileiros não são melhores, nem piores, do queos sociólogos e historiadores. Sentimental, desbocado edebochado, virou o indianismo romântico-nacionalista peloavesso das tripas, centrando-o no comer como signo e nosigno como comer, le plaisir de la dévoration. Devoração: aoração da dívida e do comer cômico! (In: Andrade, 2002:25.)
Outro estudo, com viés mais literário, trata-se de Percursos da narrativa
de Oswald de Andrade: Estudo dos Romances e das Memórias (2003), tese de
doutorado de Neide Luzia de Rezende. Nela, é investigada a maneira como
nosso autor se apropriou dos gêneros confessionais – memória, autobiografia e
diário –, para instaurar em UHSP novos padrões para a prosa literária do seu
tempo, segundo palavras dessa crítica. Para tanto, o estudo contempla as
obras A estrela de Absinto, Memórias Sentimentais de João Miramar e UHSP.
Seu objetivo é, conforme explicita, o de alargar as perspectivas acerca
das possibilidades teóricas e práticas do uso de (auto) biografias na formação
de professores e nos estudos educacionais, o que deixa antever a imensa
contribuição que investigações advindas da área de Educação possam dar
para alargar o campo da crítica literária, ainda que os objetivos finais sejam
diversos (ou adversos, às vezes).
A abordagem escolhida tem por base a teoria de Mikhail Bakhtin
constante de Estética da Criação Verbal (2003), sobretudo da unidade
biográfica axiológica eu-para-si e eu-para-mim, ou na relação dialógica eu-
outro. Interessa-nos expor dita opção porque, ainda que se bifurquem nossas
opções teóricas do trato do objeto literário em questão, a investigação
corrobora indiretamente a hipótese de que Oswald de Andrade devora em
UHSP a concepção individualista do ser dando-se mais e mais àquela
33
perspectiva coletivista de mundo e de discurso. Algo que trataremos com mais
afinco quando do aprofundamento neste estudo.
Percorrendo os caminhos observados, Em Estrela de Absinto a autora
encontra duas dimensões: uma pertencente a Victor Brecheret (aquela
explícita, sociocultural), e outra referente ao próprio Oswald de Andrade (sua
psique, sua vida amorosa). Esta segunda dimensão está mais explorada em
Memórias Sentimentais, em UHSP e em Perfeito cozinheiro das almas deste
mundo, como explicita.
Para realizar estudo comparativo entre as obras supracitadas, discorre
sobre a paródia contida em Memórias Sentimentais, por exemplo, que ela diz
funcionar como deslocamento do texto de seu plano primeiro, isto é, para um
outro plano, um segundo, que parece ser o seu contrário. Ainda sobre essa
obra, comenta a quebra da linearidade realizada através do fragmento e da
justaposição, e da mistura de Memórias com o Diário da Garçonnière. Para
Rezende, tais processos de adição:
Emprestam à narrativa a impressão de uma existênciapermeada de eventualidades, de verdades miniaturizadas, semexpectativa de totalidade ou coerência, acentuando, assim, aidéia do fragmentarismo. (Rezende, 2003:10)
Explicando esse fenômeno, ocupa-se da perspectiva do ready-made
bastante explorada pela estética experimental dadaísta, e que para a estudiosa
significa a refuncionalização do fragmento retirado de outro contexto. O
vanguardista separa o material da totalidade da vida, isolando-o e
fragmentando-o, algo que em Miramar funciona como reinserção de um
fragmento no novo contexto, estabelecendo novas relações, mas sem deixar
ecoar o contexto original, segundo explicita Rezende.
Observamos mais ainda, que ela não se limita à discussão de
abordagens, conceitos e procedimentos da crítica literária, acolhendo o sentido
das questões relativas à passagem da exterioridade para a interioridade, do
figurativismo para o subjetivismo e relativismo, cuja fonte advém da Literatura
Confessional. Assim, segundo a autora, sua análise tem o intuito de “Propiciar
aproximações entre os domínios das artes, em especial a literatura, das
ciências humanas e dentre elas a história, a psicologia e a antropologia”.
(Rezende, 2003:1)
34
Dentre os aspectos acima, destacamos a ênfase dada Rezende à
interpretação de fatos históricos presentes na obra em questão:
O recorte do mundo narrado tinha como critério o própriomundo do escritor, o que revela uma determinada visão dehistória [...] Nesse sentido, Oswald se viu como sujeito dahistória e nela, na sua particular e na de seu grupo, via inscritaa história mais geral – essa é a sua matéria, a matéria vivida etransposta para a ficção como interpretação do mundo.(Rezende: 2003,12)
Segundo sua perspectiva, em UHSP o escritor interpreta a história como
sua matéria, a matéria vivida e transposta para a ficção como interpretação de
mundo. De forma iterativa e interacional se assomam tais interpretações
oswaldianas de mundo. Interpretamos esse dado plagiando a Candido quando
os denomina modos de sensibilidade, onde o real se compõe segundo as tintas
da fantasia.
De outra maneira, ainda em reinterpretação de Candido, o fazer literário
se ocupa da matéria histórica como conteúdo que, a priori, vai ladeado por um
forma ou delineamento (literário). Disto fazemos constructo que nos ocupa,
buscando compreender a antropofagia literária de Oswald de Andrade, que nas
impressões de Candido é o “Menino inconsolável em face do mundo, onde não
cresceu segundo a dimensão do imaginário. De um imaginário que fosse o
modelo real das coisas”. (In: Andrade, 2000:13)
Assentimos igualmente que nosso autor expõe em UHSP múltiplos
conteúdos sob mais variadas formas, quiçá detendo-se mais e mais na forma
metaliterária. Assim, com efeito, vemos relativa aquela interpretação histórica,
porque prioriza mais a literária, acima de qualquer outra. Ratificando, Andrade
teve por matéria o próprio fazer literário, utilizando-se das mais diversas áreas
possíveis de absorção, ou de devoração, assim interpretada por Candido:
O menino que aqui vemos crescer na casa paterna vaidescobrindo o mundo como todos os meninos; mas,diversamente deles, guarda pela vida afora, no seuequipamento psíquico, as técnicas iniciais com que odescobriu. Impulso, emoção, fantasia, simplismo, birraspermanecem na textura do adulto, cuja formaçãopresenciamos. (Andrade, 2000: 12)
35
O homem e o autor se amalgamam através de diversas personagens,
em que acontecimentos históricos servem de cenário para ações entrelaçadas
com a intenção literária de criação de UHSP. Diz Candido que aí vemos que
elas esclarecem não apenas o homem Oswald de Andrade, mas também a sua
obra. E ambas nos aparecem agora solidárias, inseparáveis. (Andrade,
2000:14)
Ante as premissas, indagamos ao leitor: - O que é antropofagia literária
senão o alimentar-se daquilo que possa ser absorvido em cor, massa, textura,
sabor, ritmo, sentimentos, forma e conteúdo, enfim, do que possa ser digerido
como estratégia de absorção do próprio mundo?
Em Rezende, o estudo sobre UHSP aparece subjacente àquelas obras
já mencionadas anteriormente, talvez por que explicitamente mais fictícias ou,
talvez, porque à autora as memórias e confissões ocupem espaço de
recuperação de fatos e sentimentos explicitados nos romances anteriores. Algo
sugerido pela evidência dada no seguinte trecho:
No livro de memórias, Um homem sem profissão (Andrade,2002), onde o pacto autobiográfico se explicita, encontram-sefatos e sentimentos recorrentes nos romances, sendo quemuitas vezes é o próprio autor quem chama a atenção para assemelhanças, evidenciando para o leitor o “espaçoautobiográfico” não só do acontecimento mas também dossentimentos, dos estados de espírito que o levaram arecuperá-los na literatura. (Rezende, 2003:13. - Grifo nosso.)
Considerando a visão de Lejeune, 1994:126, que diz ser o pesquisador
aquele finaliza a construção de um objeto que na realidade era somente um
dos objetos possíveis a construir, observamos que traz Rezende, no capítulo
intitulado O ficcionista no memorialista, para o primeiro plano não o
memorialista da escritura literária confessional, mas, aquele que registra sua
história e a dos outros:
Só a partir das memórias tout court, ou seja, do “pactobiográfico” (Lejeune, 1975) firmado, é que em principio se podeter acesso às informações verídicas sobre o escritor e sua vidapara reconhecer na obra o “espaço autobiográfico”, que seria,segundo Philippe Lejeune, a presença de elementosautobiográficos disseminados na ficção. (Rezende, 2003:1)
36
Assim, configura o pacto autobiográfico como via de estabelecimento de
veracidade às memórias e confissões, considerando a primeira definição
lejeuniana dada como “Relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz
de sua própria existência, dando ênfase em sua vida individual e, em particular,
na história de sua personalidade”. (Lejeune, 1994:125 – Tradução nossa. )
Entretanto em Bis o autor francês explicita que sua definição para o
Pacto tem aparência dogmática, de um caráter teórico bastante duvidoso(grifo e tradução nossos), pois mescla hipótese teórica e asserção normativa, o
que tem causado confusões porque esse precursor percebeu que, ainda que
se estabeleça um pacto com a pessoa da qual fala e de o autobiógrafo incitar
ao leitor, este pode adotar formas de leitura diferentes daquela a ele sugerida.
Quando em 1986 foi publicado El pacto autobiográfico (Bis), Lejeune
falou que o Pacto tem valor de hipóteses e de instrumento de trabalho que ele
próprio remodela e busca dar devido valor, conforme observamos em:
Qualquer pessoa que pronuncia um discurso sobre a“autobiografia” (ou sobre qualquer outro gênero) está obrigadaa enfrentar o problema da definição, ainda que somente naprática, escolhendo aquilo sobre o que fala. (Lejeune, 1994:126– Tradução nossa)
De modo mais contundente, ainda que se esboce ou se pretenda
configurar um pacto autobiográfico que evidencie o memorialista em UHSP,
essa obra não se restringe apenas a acontecimentos, sentimentos, estados de
espírito recuperados na literatura, como indica Rezende mas, sobretudo,
veicula via escrita literária a concepção singular de literatura, sob a ótica de
Oswald de Andrade, configurando primeiramente o ficcionista, o escritor de
livros literários em si ou, de outra forma, expõe discurso metaliterário ainda que
subjacente.
Observamos, assim, que a superficialidade no trato das bases teóricas
confessionais à análise de UHSP é solucionada pela estudiosa através do
subtítulo O livro de memórias, propriamente, entre as páginas 201 e 219,
espaço em que realiza crítica voltada para a composição do texto em si,
afirmando sobre o fazer literário oswaldiano que “a multiplicidade de prismas
observados na obra e dos caminhos de vida palmilhados é a marca não só da
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fisionomia estética, mas de sua fisionomia intelectual e ideológica”. (Rezende:
2003, 214)
Esse posicionamento de crítica aberta, sem fechamento final disto ou
daquilo, está em consonância com as advertências de Antonio Candido, o que
leva Rezende, 2003:215, a corroborá-lo quando afirma que “em se tratando de
Oswald de Andrade e de modernidade, a questão continua em aberto, e o
escritor com seu modo de ser e de atuar na arte, continua passando rasteiras
nos críticos”. Para a autora o ponto central em UHSP é a negação do sentido
único e totalitário posto que seu autor atua em:
Um processo antropofágico de devoração contínuo, “naremoção do entulho da ancestralidade”, a crosta de recalques epreconceitos atávicos do homem, e do qual ao longo da vidaprecisa se livrar. Essa crosta que ele figurou na mentalidadeburguesa, ainda que não formulado antes da antropofagia,sempre orientou a sua apreensão da matéria para a literatura.(Rezende, 2003:215)
No autor de Ponta de Lança (1944), a insistência no projeto
antropofágico como forma de remoção do entulho, nas palavras de Rezende,
requer também constante movimento na reelaboração do passado para
atualizá-lo, como o faz quando retoma a matéria de outros romances colocando
“o indivíduo do quadro representado em relação com outros que não
dependem de uma visão central, todos mantém sua própria particularidade e
autonomia”. (Rezende, 2003: 216-7) O tempo, para a autora, torna-se matéria
de maior densidade analítica visto que em Andrade:
O tempo não constitui uma solução dialética para ascontradições, em que uma fase se segue como resposta aanterior e a suplanta. Há planos que se sobrepõem e que,adormecidos por um tempo, em seguida voltam e sãonovamente iluminados, e acabam por orientar o trabalhoestético.
Tal simultaneidade temporal existente nas diferentes obras oswaldianas
para essa crítica constitui dificuldade maior de análise posto que
A história que Oswald funcionaliza no trabalho criador éprocesso contínuo de atualização; não existe enquantomemória passiva, existe enquanto memória viva e interlocução
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com o presente, jogo dialógico de intenções, incorporandoversões díspares. (Rezende, 2003:217)
Seguidamente, ainda que justifique ser o objetivo de sua tese estudar a
intervenção de Oswald de Andrade no gênero, ela outra vez mais busca
enquadrar UHSP nas bakhtinianas inexistindo diálogo com teorias que falem
das confissões e da memória coletiva. Isto se evidencia quando essa crítica
tece o seguinte comentário:
Nas suas memórias, a imagem de si mesmo, a exemplo dosprotagonistas de seus romances “baixos”, estruturados parcialou totalmente com os gêneros confessionais, “não se trata deuma memória heroicizante, nela há um elemento deautomatismo e de anotação (não monumental). É a memóriaindividual sem referência, limitada pela fronteira de vidapessoal (não a dos ancestrais e das gerações)”. Essa citação éde Bakhtin, sobre as memórias e autobiografias da tradiçãopopular, que cabe para Oswald, o que mais uma vez vemindicar um tipo de filiação narrativa, como uma fonte para opróprio romance. (Rezende, 2003:218)
Discordamos quando Rezende diz que UHSP tem narrativa que se filia
nas “memórias e autobiografias da tradição popular”, pois visivelmente o que
se tem em mãos é um livro de memórias dessacralizador, irreverente, de
ruptura com moldes anteriores, como reconhece a própria Rezende ao admitir
sua preocupação em legitimar a primeira parte da obra, como se a presença do
par “moderno” já estivesse por si legitimada.
Deixamos para análise final material sobre falas diversas do próprio
Oswald de Andrade constantes da obra Os Dentes do Dragão, segunda edição
lançada pela Editora Globo em 2009. Nessa obra estão divulgadas entrevistas
dadas pelo nosso escritor paulistano a diversos periódicos brasileiros, sobre
mais variados temas, num período que vai de 1924 até a última entrevista
realizada poucos dias antes do falecimento do poeta, segundo a prefaciadora
Maria Eugenia Boaventura. Para esta, faz-se oportuno observar os artistas e
as correntes sobre os quais Andrade teceu suas considerações posto que
Privilegiou os blocos estéticos de um ângulo muito pessoal,listando apenas os artistas europeus mais próximos [...]Destacou naquele momento quatro correntes dentro damodernidade parisiense e [...] reconhecia nesses grupos ainspiração da onda nacionalizante que eclodiu junto com o
39
nosso Modernismo [...] constante também a resistência doentrevistado à nova literatura nordestina. [...] No campo dasreconhecidas matrizes do Modernismo, Machado de Assis eEuclides da Cunha foram aclamados por terem introduzido naliteratura a “aventura íntima e a pesquisa da terra”.(Boaventura, IN: Andrade, 2009: 12-13)
Sem dúvida as influências literárias tornam-se importante matéria para
comentários, principalmente porque UHSP está toda perpassada por
indicações de tais influências, como na confissão em que o autor narrador diz: -
“O meu complexo de rebeldia se alenta com o conto social Crainquebille” ,
referindo-se ao romance do existencialista Anatole France (Andrade, 2002:89),
uma entre as muitas obras mencionadas em suas memórias.
A título de esclarecimento, elaboramos anteriormente artigo intitulado A
insubordinação literária de Oswald de Andrade, tratando especificamente sobre
o engajamento literário desse escritor. Aqui, contudo, escolhemos entrevistas
que estritamente dizem respeito ao seu livro de memórias, começando pela
Conversa com Oswald de Andrade, entrevista dada a Aurasil Brandão Joly
para Trópico, em 02/05/1950.
Dessa, consta idéia que parece ser central para se compreender o título
UHSP: Por ocasião de seu 60º aniversário, Andrade comenta a tremenda
importância na sua escritura advinda dos revoltados Nietzsche, Mirbeau, Fialho
de Almeida e Dostoievski. Usando de flashes, discorre Andrade sobre a
Montanha mágica de Mann, a Energia de Gladkov e o Ulisses de Joice para em
seguida, nas palavras de Joly “falar sobre as dificuldades da vida de quem
escreve”:O escritor no Brasil é um pobre-diabo, pois não há ainda umclima propício que o receba. As dificuldades são tremendas: ouele tem de se vender, se isolar ou sorrir... Infelizmente, pelomenos aqui no Brasil, o escritor tem que ser um cidadão comooutro qualquer, isto é, para viver vê-se obrigado a se atirar aocomércio ou à política, indo trabalhar como corretor de imóveis,investigador ou numa bomba de gasolina... (Andrade,2009:281.)
De fato, sabe-se que nosso escritor, pese a classe burguesa a que
pertenceu, passou por crises financeiras que o levaram a financiar por conta
própria muitas de suas próprias obras, como exemplo Marco Zero (A revolução
melancólica, 1943). Paralelamente à sua dedicação literária, foi jornalista e
atuou em partidos políticos. Também a família de Andrade via com restrição a
40
profissão de escritor, referendada posteriormente após incentivo do seu tio
Inglês de Souza, personagem cujos “enormes encargos profissionais e sociais
não permitiram que se dedicasse somente à literatura”, segundo o próprio
sobrinho. (Andrade, 2002:41) Ora, sabe-se que Herculano Inglês de Souza foi
advogado, autor do primeiro Código Comercial e também político, tendo
pertencido à bancada federal do Pará.
Em outra ocasião, ao ser entrevistado em 1951 pelo periódico carioca
Jornal de Letras, Oswald de Andrade revela sob o título Perguntas Pessoais
que fez tudo que pode para ser um bom poeta, revelando como planos
literários futuros:
O Antropófago – Uma Filosofia do Primitivo Tecnizado” que jácomecei a redigir. “Diário confessional” (minhas memórias) quevendi ao Jornal de Letras; os volumes finais de Marco zero, umpoema intitulado “Santeiro do Mangue”, ilustrado por Flávio deCarvalho, já no prelo. (Andrade, 2009:299.)
De entre as obras mencionadas, sabe-se que O santeiro do Mangue, de
1950, teve versão publicada por Mário Chamie em 1967, e que A Crise da
Filosofia Messiânica (1950) acabou sendo o título definitivo daquela primeira
obra mencionada, bem como UHSP (1954) constitui suas memórias. Sobre
esta última obra, há quatro entrevistas que até o presente momento nos
parecem muito pouco exploradas por pesquisadores das confissões e
memórias oswaldianas.
Essas entrevistas contêm elementos imprescindíveis para se
compreender concomitantemente obra e autor. Adiantamo-nos, começando
pela última entrevista, do Diário de São Paulo, dada a Homero Silveira em
21.11.1954. Nela pode-se observar que ratifica a idéia de que o escritor
brasileiro não tem profissão, começando por falar sobre sua intenção literária:
O que eu fiz, e os imbecis não compreenderam, forampesquisas das mais sérias não só no terreno literário como nosocial e no estético. Toda a minha vida tem sido uma constantededicação à literatura. Sou escritor desde que me conheço porgente e nunca fui leviano. O que desconcertava meusadversários é que minha literatura fugia ao padrão cretinoentão dominante. E chamavam a isso de “piada”... (Andrade,2009:398)
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Superando a restrita visão canônica da literatura vigente no Brasil
daquela época, percebemos que a confissão acima se choca com certas
afirmativas acadêmicas de que Andrade, no caso de UHSP, escreveu suas
memórias somente para satisfazer o pedido feito por Antonio Candido. Sua
posição se choca também com a idéia de que o resultado de suas memórias é
um livro que mostra um escritor cansado que sai da escritura linear e embute
textos de outras obras já publicadas, pois esse discurso desconsidera o fato de
que Andrade levou mais de dois anos para concluir UHSP.
Tendo rompido com padrões obsoletos de “importação literária” do
modelo europeu, havendo atuado em movimentos de engajamento com
drásticas rupturas nas mais diversas áreas, revela o próprio Andrade,
2009:400, que “há sempre os que estão vigilantes para apontar em cada gesto
menos medido, em cada declaração menos ponderada, um sintoma de
demência senil”.
São os mesmos que ignoraram e ainda ignoram a disposição do escritor
jovem e irreverente que foi. Contrariando discursos que o viam como derrotado.
Andrade – pese todas as vicissitudes – insistiu e resistiu com muito humor,
como se percebe na declaração de abaixo, dada à pergunta sobre o que a
literatura lhe havia proporcionado, se mais amarguras ou mais alegrias:
Mais alegrias. A gente é escritor porque assim nasce. Aprodução literária é sempre uma satisfação íntima. Não tenhonenhuma ilusão de glória nem de fortuna. Literatura não dánada disso no Brasil. Mas a consciência do dever cumpridosatisfaz amplamente. (Andrade, 2009: 401)
Como mencionado anteriormente, ele vivenciou a época de literatura
anêmica do começo do século e a ótica de sua família sobre o literato retratava
este não como um profissional, de acordo com Andrade, pois: “Ser literato não
constituía, portanto, no seio de minha gente, vergonha nenhuma nem
compromisso algum com a existência em carne viva que tem fatalmente que
ser a de quem escreve”. (Andrade, 2002:41)
Contrariando essa visão aristocrata, foi escritor comprometido com a
renovação literária. Em se tratando de UHSP, de fato as restrições físicas
advindas da enfermidade que o abateu podaram-lhe o desejo de dar
continuidade ao projeto inicial, elaborado para vir à tona em quatro volumes,
42
mas ainda assim continuou resistente. Em reportagem anterior de Frederico
Branco para o Correio Paulistano (de 24/10/1954) intitulada O último combate
de Oswald de Andrade e que traz por subtítulo A vez do touro o entrevistador
metonimicamente atribui personificação de touro à morte que se aproxima,
comparando Andrade a um velho e corajoso toureiro, que morreu numa sexta-
feira. O toureiro que realizou verônicas em forma de blague assim desabafa:
Não posso sair por aí a afirmar que sou o homem que toureia amorte, mas a verdade é essa. A cada crise do velho coração euestou outra vez na arena, um pouco mais cansado que noúltimo combate, o corpo menos flexível, as pernas maispesadas, a capa bicolor já rasgada pelos chifres do bicho. Etudo se repete. O coração cansado ameaça parar, o touronegro, cada vez mais cheio de manhas novas, ladino emalicioso, investe outra vez. Até agora, para profundo desgostodo pessoal da arquibancada, tenho vencido. Ele só me acenade leve, de raspão, e para um velho toureiro como eu isso nãoé nada. (Andrade, 2009:391)
Evidente está que se fazem implícitos aí ataques e contra ataques
verbais que acompanharam a longa carreira literária do nosso sex-appeal-
genário. Outra revelação faz-se instigante, porque nela encontramos amparo
para defender que se equivocam aqueles que têm UHSP como projeto
impensado, ou como se o escritor Andrade já tivesse desistido de dar-lhe a
devida continuidade. Ao despedir-se do repórter, antes de volver-se para o
repouso absoluto cuidado por sua esposa Dona Antonieta, diz nosso
antropófago:
Até logo, voltem, voltem, venham almoçar outra vez. Apareçamsempre. Da próxima vez vamos tratar da turma daarquibancada, dos “amigos do touro”, homens e mulheres,velhos e moços, nacionais e estrangeiros. (Andrade, 2009:393)
Ainda que a idéia não esteja exposta, sabe-se que a intenção de
Andrade para com os outros volumes de UHSP residia em tratar sobre o
movimento modernista, a Semana de Arte Moderna, o Movimento
Antropofágico, o ciclo áureo do café e suas experiências políticas, daí que para
bom entendedor o “toureiro” continuava combatente a despeito de muitos!
43
E segundo confessa o entrevistador, nos olhos de Oswald de Andrade
ao morrer “Só nos olhos – o repórter não viu mas contaram – havia a mesma
flama azul” (Andrade, 2009:394). Disposição espiritual que permeia UHSP,
como se constata nas duas entrevistas de abaixo, reveladoras de seu desejo
para com a obra aqui em evidência.
Outras entrevistas, constantes também de Os Dentes do Dragão: A
primeira delas intitulada Sob as ordens de mamãe foi publicada no periódico O
tempo, tendo por entrevistador Marcos Rey, em 19.9.1954. Este pergunta
sobre as Memórias, se estas fazem parte da obra de intelectual e ficcionista ou
se são coisa à parte. Teve por resposta o seguinte:
- Decerto que fazem parte de minha obra – respondeu o autorde Serafim Ponte Grande. A vida e a obra de um escritor são amesma coisa. Principalmente quando ele é sincero. Quandonada esconde. (Andrade, 2009:372)
E continua o autor de Memórias Sentimentais de João Miramar:
A perda do colo materno deflagrou em mim o escritor e ohomem – esclarece Oswald. – Minhas Memórias são um livroedipiano. Tudo nelas explica os meus livros anteriores: minhaprosa e minha poesia. (Andrade, 2009: 373)
Dois fortes argumentos podem ser observados nos excertos acima. Do
primeiro tem-se que Andrade declarava o fazer literário indissociável das
experiências do escritor, como se houvesse desejo mútuo de devoração, algo
que contraria discursos que concebem a escritura literária como restrita à
composição ficcional ou que vê a crítica literária como análise imanente do
objeto literário em detrimento da vida do autor.
Depois, há aquele sentido edipiano confessado por ele que remete à sua
própria teoria da revivescência do matriarcado (de Pindorama, de resgate do
primitivo) como forma de combate ao domínio patriarcal representado pelo
Estado e pela Igreja, então vigentes e dominantes.
Noutra entrevista, baixo o subtítulo “As raízes da árvore”, revela as
bases sustentadoras das suas memórias postas em romancistas e pensadores
diversos. Diz o repórter que:
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Nietzsche e Dostoiévski fizeram-lhe muito bem. Isso, é claro,depois de ter passado por Anatole. Leu muito Octave Mirbeau[...] Quanto às letras brasileiras possuem três autoresfundamentais: Machado, Euclides e Mário de Andrade.(Andrade, 2009:377-78)
Dessas influências destacamos duas que são recorrentes em UHSP. A
primeira vem do jornalista e romancista francês Octave Henri Marie Mirbeau
com seu Le Jardin de Supplices, publicado pela Charpentier-Fasquelle em
junho de 1899. Em UHSP - na página 89 - Andrade ratifica essa influência
confessando sobre Le Jardin des Supplices: - “Essa crônica da China
antropofágica me obceca”.
Sobre Mirbeau, ardente dreyfusista comprometido com os assuntos
públicos de sua época, desmistificou as instituições que alienam e oprimem.
Assim, Jardin des Supplices é um livro composto de textos distintos que
Mirbeau escrevera anteriormente e nele existe uma narrativa marcada pelas
atrocidades cometidas contra prisioneiros que viviam trancafiados em
ambientes quase surreais, ao fundo de um belo jardim, e a eles lhes davam
restos mortais de outros prisioneiros por alimentação, evidenciando uma
degradação dos chineses tanto física quanto moralmente.
E era o público visitante daquele cárcere infernal que comprava, à
entrada da prisão, as vísceras e outras partes do corpo humano em putrefação
para dá-las aos encarcerados como regalos ofertados pelo espetáculo
assistido, mas para os condenados o prazer de comer era uma tortura porque
levava ao sofrimento. Havia terrível cheiro de morte causada pela dor
psicológica, pela ansiedade e pelo sofrimento físico.
Antropofagicamente o literato Oswald de Andrade transforma sua
obsessão em devoração. Se transferida tal visão para o processo narrativo
escolhido por ele em UHSP não teríamos, acaso, uma metáfora – talvez uma
alegoria – sobre esse livro? Fragmentar as suas memórias e oferecê-las como
partes desconectadas e ao mesmo tempo compositoras do todo que é a
escritura literária oswaldiana, não seria estar dentro de um jardim repleto de
suplícios camuflados pelas cores e sabores e aromas que oferecem UHSP ao
leitor? Ademais, são semelhantes escolhas de Mirbeau e de Andrade para o
processo de composição das obras em destaque pois ambos as constituíram a
partir de seus escritos anteriores.
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Outra obra já mencionada e que retomamos é Crainquebille,(1903) de
Anatole François Thibault, ou Anatole France, jornalista e romancista francês
existencialista que junto a Emile Zola teve atuação decisiva no Caso Dreyfus.
Conhecido também por sua ironia e ceticismo, em Crainquebille Anatole France
conta a história de um mascate que vendia produtos nas ruas de Paris e foi
acusado e preso injustamente. Obviamente há alguma semelhança entre esse
personagem e Alfed Dreyfus, capitão acusado erradamente de espionagem a
favor da Alemanha, em 1894. O Caso Dreyfus tomou dimensão em 1898, com
intervenção de Zola e a publicação do Eu acuso, de Clemenceau. Pelo
romance de France podemos observar a aproximação entre literatura e política.
Oswald de Andrade seguiu a corrente do Existencialismo mui de cerca.
E foi influenciado por essa tendência intelectual de antepor-se ao regime
armado, ao autoritarismo fascista, quando posteriormente, já adulto aderiu-se
ao movimento comunista. Antecipando os fatos, pode-se comprovar essa
tendência no episódio político do cenário brasileiro que, aparentemente parece
irrelevante, mas registra a Revolta da Chibata, ocorrida no Brasil em 1910. O
Caso Dreyfus, resguardadas as proporções, teve semelhantes impactos sobre
o autor; este que presenciou no Rio de Janeiro aquela revolta, ele que foi
atuante comunista e que em UHSP confessa:
Revolução? Coisa assombrosa para a sede de emoção econhecimento de minha mocidade. Indaguei como se passavao caso e apontaram-me o mar. Apressei-me em alcançar ocomeço da Avenida Central, hoje Rio Branco, no local onde seabre a Praça Paris. Aproximei-me do cais e, entre sinais verdese vermelhos, escutei um prolongado soluço de sereia. Aquelegrito lúgubre no mar escuro me dava a exata medida dasubversão. Que seria? [...] E vi imediatamente na baía, frente amim, navios de guerra, todos em aço, que se dirigiam em filapara a saída do porto [...] E todos ostentavam, numa verga domastro dianteiro, uma pequenina bandeira triangular vermelha.Eu estava diante da revolução. Seria toda revolução umaaurora? (Andrade, 2009:93-94)
Apenas a título de curiosidade, apresentamos abaixo breve trecho sobre
a Revolta da Chibata, relatado por Nelson Piletti em História do Brasil (1996):
Os castigos corporais na Marinha, que haviam sido abolidosum dia após a proclamação da república, foram novamentelegalizados um ano depois [...] A revolta dos marinheiros
46
brasileiros contra castigos físicos e outros aspectos aviltantesde sua condição desenvolveu-se no Rio de Janeiro, a partir danoite de 22 de novembro de 1910. (Piletti, 1996:234)
Pode-se perceber o processo antropofágico sendo desvendado através
de paralelismo entre enredos histórico-sociais internacional e brasileiro, muito
próximos temporalmente. De alguma forma Oswald de Andrade deixaria em
suas memórias a influência tremenda que Mirbeau e Anatole tiveram em sua
vida e em sua literatura, absorvendo-lhes as idéias e reconfigurando-as a partir
da sua vivência do contexto nacional. Não parece ao leitor uma genuína
devoração literária oswaldiana?
Por último, explanamos sobre a entrevista intitulada Estou
profundamente abatido: meu chamado não teve resposta, realizada por Radhá
Abramo da Tribuna da Imprensa, em 25-26/09/1954, também inserida na obra
Os Dentes do Dragão, já referenciada. Em forma de mosaico, como muitas das
entrevistas anteriormente apresentadas, explora diversos assuntos como o
Movimento de 22, a Literatura do Nordeste, Getúlio Vargas e, claro, as
memórias de UHSP. Assim escreve Abramo:
Fala em reeditar seus livros, esgotados; falará da criseeconômica, da literatura e da poesia; dos gregórios. O homemnão mudou. Oswald de Andrade, sem O final [...] Continua umliterato. È ainda, e seguramente, o mais combatido dosescritores brasileiros destas duas últimas gerações [...] Perdeuvinte quilos. Ganhou alguns anos, está com 65. (Andrade,2009:381)
A entrevista acima foi realizada menos de um mês antes da morte de
Andrade, ocorrida em 22/10/1954. Ou seja, foi última concedida a Radhá
Abramo e televisada pela TV Record, posteriormente veiculada pela imprensa.
Nela, quando nosso autor diz “Estou cansado e doente” parece emitir o mesmo
tom dado à página final de UHSP quando confessa: “Fui cortado, guilhotinado e
tenho medo” (Andrade, 2002:194) Esse pesar se confirma com outra afirmação
mais contundente:
- Estou – prossegue Oswald – profundamente abatido,desiludido, porque meu chamado não teve resposta. Omovimento de 1922 que iniciamos tão bem com Mário de
47
Andrade sofreu um retrocesso com a literatura linear e primáriado Nordeste. (Andrade, 2009:382)
Registramos na íntegra essa critica negativa de Oswald de Andrade à
literatura nordestina, ainda que nossa opinião tome outro rumo, principalmente
porque buscamos evidenciar sua opinião a respeito das manifestações nesse
sentido. Na entrevista dada a Marcos Rey, acima referida, quando esse
entrevistador pergunta-lhe sobre seus autores preferidos entre os atuais, além
de citar Gilberto Freyre, Drummond de Andrade, Rubem Braga, Jorge Amado,
acrescenta Andrade: “- Está bem, ponha Graciliano.” A esse comentário Rey
acrescenta:
Não me admira nem um pouco que Oswald não seja fãardoroso de Graciliano. Assim como estou certo de queGraciliano não admirava Oswald. Pois não é evidente, ladiesand gentlemen? Graciliano sempre foi o escritor do cárcere,onde escreveu sua obra mais discutida. No cárcere, umhomem como Oswald de Andrade morreria, interessado comoé na vida com todas as suas libertações. A obra de Gracilianoreflete a uniformidade árida do deserto. A de Oswald deAndrade, a irregularidade “glamourosa” da metrópole.(Andrade, 2009:378)
Imaginamos que o ressentimento acima advém do não reconhecimento
do leitor e do cânone literário brasileiro da época para com os esforços dos
Modernistas, já que naqueles anos se acirravam as discussões entre os
medium sertão ou litoral, prevalecendo o primeiro. Contudo, deixando não de
todo à margem deste estudo os debates sobre literatura e região, quando
Oswald de Andrade fala especificamente sobre suas memórias constata-se o
seguinte: Abramo lhe pergunta o porquê de haver adotado o gênero das
memórias e se em UHSP estão contidas todas as confissões sem omissão,
recebendo por resposta que:
- Não. – diz Oswald. – Faço omissões. Escrevo somente aquiloque teve importância na minha formação intelectual. Escrevotudo aquilo que vem explicar a minha filosofia. Filosofia deantropófago. Os outros volumes das Memórias virão pouco apouco confirmar a minha tese de antropofagista. O segundovolume chamar-se-á O salão e a selva; trata do Modernismo noBrasil; o terceiro, Solo das catacumbas, no qual analiso aslutas políticas; e o quarto, Para lá do trapézio sem rede,
48
condensará toda a minha dura vida de homem transigente.(Andrade, 2009:385.)
O que deixamos aqui registrado por fortuna está composto por raros
temperos originados da confissão de Oswald de Andrade, de que sempre se
importou mais com aquilo que teve importância na sua formação intelectual.
Trocando em miúdos, o que o inspirou em cozer na mesma panela das
memórias vários ingredientes que dão inusitado sabor ao perfeito cozinheiro
das almas deste mundo: o do escritor em seu tempo.
2. A DEVORAÇÃO DO TEMPO
Neste capítulo, em um primeiro momento, propomos uma leitura de
UHSP dialogando com a teoria de Geràrd Genette sobre o tempo. Em
segundo, colocamos em diálogo essa matéria advinda da análise via Genette,
com teorias de Lejeune (1994), contidas no ensaio El orden del relato en Les
Mots, de Sartre; com as de Caballé (1992) presentes em Semiología del
recuerdo, que demonstra o papel central do tempo na configuração de toda
escritura memorialista e com Halbswachs (2006) que trata do tema da memória
individual e coletiva.
2.1 Uma leitura do tempo: a teoria de Genette
A hipótese deste estudo foi delimitada naquilo que considere,
prioritariamente, a narrativa enquanto discurso e não a narrativa enquanto
história, tendo por base teórica a articulação temporal estudada por Genette,
sobretudo no tocante aos aspectos de ordenação que conceba a percepção do
sentido dado pelos encadeamentos narrativos.
Em Discurso da narrativa. Ensaio de método, de Gèrard Genette,
1979:14-15, segundo introdução de Maria Alzira Seixo, encontra-se trabalho
que foi apresentado em parte no Seminário da École Pratique dês Hautes
Etudes em 1970-71 e decorre basicamente da consideração do segmento
narrativo em A la Recherche du temps perdu, em que há o estudo do tempo na
narrativa, não enquanto procedimento de organização lógico-temporal
49
(diegese), mas enquanto elemento de uma alteração qualquer na sequência do
dito e do não-dito e das suas implicações múltiplas.
Por outras palavras: o tempo, nesse estudo de Genette o tempo é
encarado como efeitos de ordem (definitivamente adquiridos em teoria da
literatura como analepses e prolepses) incessantemente recalcado ou adiado,
como o ritmo. Considerando que o discurso narrativo é o único que se oferece
directamente à análise textual, busca-se a análise propriamente dita das
relações temporais em UHSP, nos aspectos de ordem, duração e frequência
sugeridos por Genette para este tipo de análise.
Esta elaboração intencionalmente traz lacuna que suponho poderá ser
preenchida por posteriores estudos sobre o que Genette denomina de níveis
de definição da narrativa, já que neste recorte explanamos sobre o nível tempo,
sendo suprimidos aqueles definidores de nível de modo e de nível de voz, dada
a complexidade que resultaria tal labor.
Prefácio Inútil, escrito por Antonio Candido para UHSP, traz a sutil
advertência considerada ao largo deste estudo crítico de que “nas presentes
memórias de Oswald de Andrade, não se deve procurar auto-análise nem
retrato do tempo” (Andrade, 2002:12). UHSP, ainda que em superficial leitura,
deixa ao leitor a clara percepção de que é um traçado diferente sobre o próprio
eu e, também, de que inexiste uma ordenação de fatos e pessoas nas
impressões do escritor Andrade, conforme explicita Candido.
Isto antecipa o caráter inovador desta obra literária, assunto a ser
tratado posteriormente. Comparada com outras memórias e autobiografias
existentes no circuito literário brasileiro, a obra se mostra como um jogo
subversor dos convencionalismos memorialísticos que são notados nas
Memórias (2004) de Visconde de Taunay, por exemplo. Por outro lado, pode-se
antecipar um paradoxo, já que nas primeiras páginas de UHSP existe muito do
molde daquela obra de Taunay; inclusive podendo-se dizer que alguns traços
sintagmáticos foram explicitamente devorados por Oswald, como se pode
observar nos excertos:
A esse tio chamávamos, eu e minha irma Adelaide, em criança,tonton Bodó, contração infantil de bigode, e desta denominação familiarusei sempre, pois ele se aborrecia quando, mais tarde, queríamosempregar outra mais respeitosa e adequada. (Taunay, 2004:29.)
50
E em Oswald,
Tio Chico, a quem chamávamos o captain, era o chefe da tribo. Intervinha emtudo com sua enérgica autoridade [...] aparecia a sua figura imponente, de bigodescurtos [...] (Andrade, 2002:34)
Apesar das diferenças entre essas memórias, notamos o mesmo padrão
de referência à figura familiar. Contudo, seria primário afirmar ser esta a
intenção última de Oswald de Andrade; antes é melhor alcunhá-la, como diz
Candido (In: Andrade, 2002:14), de técnica literária repleta de dualidade, de
“solidariedade da obra e da vida, bem como à soberania da impressão sobre a
construção”.
De imediato pode-se observar o recorte diacrônico preferido pelo autor
para o primeiro volume, não significando, porém, uma ordem do relato, dado
que conta ‘sua vida’ de forma distinta: rompe com os jogos cronológicos de
relação entre o presente da escritura e o passado contado por essa mesma
escritura, realizando uma composição mais complexa de narrativa do gênero
autobiográfico:Daí que, quer no que respeita à caracterização da ficção, querno que toca à reflexão produzida pelos próprios criadores, querainda em embrionárias mas lucidíssimas tentativas de distinçãode gêneros, a relação do texto escrito com a categoria dotempo se coloque e adquira mesmo uma emergência central eirradiante. (Genette, 1979:14)
Pode-se dizer que o aspecto tempo é um dos caracterizadores da
invenção confessional oswaldiana? Que valores da literatura íntima sofrem
inversões na ótica memorialista de Andrade?
É o tempo no discurso de sua narrativa que interessa, e, estudá-lo em
consonância com teorias de Genette, 1979:25, possibilita observar bem de
perto as relações, “por um lado entre esse discurso e os acontecimentos que
relata, por outro lado, entre esse mesmo discurso e o ato que o produz
realmente”, traçadas pela exploração do fator tempo enquanto elemento
51
imprescindível ao trato de memórias. Não se trata, aqui, de encaixar UHSP
dentro de teorias, mas, de intentar o caminho contrário, de observar como
podem ser aplicados tais conteúdos no trilhar dos possíveis caminhos
percorridos por Oswald de Andrade à composição supramencionada.
De antemão, também, há uma profunda consciência de que não se trata
de apontar este ou aquele fato que evidencie a vida real do autor; nem
tampouco de buscar veracidade entre o narrado e a história, ainda que o
conteúdo narrado possua relação com a vida do autor. Mas, trata-se antes de
perquirir como se dá a dualidade temporal na obra UHSP, sob a ótica
genettiana, já que para Genette, 1979:31, “A narrativa é uma sequência duas
vezes temporal...: há o tempo da coisa-contada e o tempo da narrativa (tempo
do significado e tempo do significante)” e que uma das suas funções é cambiar
um tempo num outro tempo.
Assim, faz-se necessário pontuar que no estudo da macroestrutura de
UHSP buscamos primeiramente as relações entre o tempo da história e o
pseudo-tempo da narrativa, sendo tais relações determinadas pelas relações
entre a ordem temporal de sucessão dos acontecimentos na diegese e a ordem
pseudo-temporal da sua disposição na narrativa.
Rastreando a ordem apresentada pelo autor tem-se a possibilidade de
evidenciar possíveis usos de anacronia, acronia e anisocronia, todas
relacionadas àquele fator. O segundo passo marca o estudo das relações
entre duração variável dos acontecimentos nos segmentos diegéticos e a
pseudo-duração da sua relação na narrativa, ou na velocidade aplicada à
extensão do texto. Por terceiro estudamos as relações de frequência ou no
dizer de Genette, 1979:33, entre “as capacidades de repetição da história e as
da narrativa”.
“Antonio Candido diz que uma literatura só adquire maioridade com
memórias, cartas e documentos pessoais e me fez jurar que tentarei escrever
já este diário confessional” (In: Andrade, 2002:36), confessa Oswald de
Andrade sobre UHSP.
Nessa obra sem divisões de capítulos, os espaços em branco dividem
as descrições de ambientes, costumes e culturas, as reminiscências sobre a
52
infância e a adolescência. A partir da página 144 de UHSP, Oswald de Andrade
utiliza três asteriscos para caracterizar o corte temporal entre um parágrafo e
outro (e, também, implicitamente separa escrita memorialista de diário).
A partir dessa página até o final da obra, ele insere passagens da obra O
perfeito cozinheiro das almas deste mundo, diário coletivo criado a partir de 30
de maio de 1918, que registra várias presenças literárias, dentre elas:
Guilherme de Almeida, Léo Vaz, Monteiro Lobato, Pedro Rodrigues de
Almeida, Ignácio da Costa Ferreira, Edmundo Amaral e Maria de Lourdes
Castro Dolzani, a Miss Cyclone ou Deisi (Daisy). (Andrade, 2002:224)
O resultado desse conjunto é uma mescla entre o factual e o fictício que
entrelaça o tempo da história e o tempo da narrativa e constitui a essência das
memórias oswaldianas, como se pode ver a partir de então, via análise
temporal de seu discurso narrativo.
Para Genette a denominação da categoria tempo é aquela “onde se
exprime a relação entre o tempo da história e o do discurso”, o que serviu de
ponto de partida para que aquele crítico formulara sua teoria sobre o discurso
da narrativa e mostrara sua forma de abordagem.
Observando tal relação entre diegese e narrativa, começamos pelas
relações entre tempo da história e pseudotempo da narrativa em UHSP. Em
Genett, 1979:33, pseudotempo é aquele “falso tempo que vale por um
verdadeiro (com reserva e aquiescência)”. Iniciamos, então, pelas anacronias
existentes na obra ora estudada. Faz-se necessária prévia definição do termo
“anacronismo” que, segundo Koogan & Houaiss, 1993:49, refere-se à “falta
contra a cronologia, erro nas datas dos acontecimentos” e que em Genette é
um dos recursos tradicionais da narração literária:
A localização e a medida dessas anacronias narrativas (comochamarei aqui às diferentes formas de discordância entre aordem da história e a da narrativa) postulam implicitamente aexistência de uma espécie de grau zero, que seria um estadode perfeita concordância temporal entre narrativa e história.(Genette, 1979:34)
53
O grau zero de concordância temporal entre narrativa e história em
UHSP é algo que parece inexistir porque não há coincidência entre os tempos
dados ao começo e àquele dado ao final da obra, como veremos. Entretanto,
há várias anacronias que serão observadas na micro e na macro-estrutura do
texto, sendo que a intenção aqui se delimita, dentro do estudo da micro-
estrutura, em mostrar algumas dessas anacronias.
A obra UHSP está elaborada em vários segmentos, alguns longos,
outros curtos, inexistindo a especificação de capítulos divisórios entre eles.
Assim, no primeiro segmento (ou parágrafo) temos uma primeira anacronia,
marcada por uma analepse que será detalhada mais adiante e que ilustra as
microrrupturas narrativas.
O narrador começa dizendo: “Este livro é uma matinada. Apesar de ser o
meu livro da orfandade” (Andrade, 2002:33). É uma clara indicação da sua
posição no presente da narrativa, corroborada por “e assim foi durante largo
período, até murcharem uma a uma as pétalas da esperança que a coragem, a
idade e a saúde faziam vicejar”. Mas, no meio deste mesmo segmento a
narrativa retrocede aproximadamente quatro décadas: “Em 1912, chegando de
minha primeira viagem à Europa, e encontrando morta minha mãe, nos
mudamos logo de moradia, eu e meu pai.” (Andrade, 2002: 33.)
Depois, o autor-narrador recua ainda mais, indo à sua infância e
adolescência, confessando: “Vi um cuidado previdente zelar por cima todas as
cabeças da nossa gente e tutelá-las nas aflições e nas dores”. E, então,
introduz largo trecho que apresenta os avós e tios maternos para, em seguida,
avançar à adolescência mostrando os sinais dos tempos, contrapondo a
tradição aos progressos dos jovens, época em que, para Andrade a nossa
geração integrara-se na consciência capitalista que gelara os velhos
sentimentos da gente brasileira.
A partir desse preâmbulo é que aparece o que poderia ser uma ordem
convencional da narrativa memorialista, ou seja, partindo do instante presente
se inicia o retrocesso através da rememoração do passado:
Como e por onde começar minhas memórias? Hesito. Devocomeçá-las pelo início de minha existência? Ou pelo fim, peloatual, quando, em 1952, os pés inchados me impossibilitam deandar no pequeno apartamento que habitamos em São Paulo,à Rua Ricardo Batista, 18, no 5º. Andar. (Andrade, 2002:35)
54
Dando continuidade a esse segmento aparece na narrativa data de 15
de Agosto (de 1952) como o dia em que Antonio Candido visitou o autor e
sugeriu-lhe a escrita de suas memórias. Novo retrocesso confessado pelo autor
se dá ao adentrar na “mais longínqua lembrança que tenho de vida pessoal”.
As exposições acima são breves demonstrações daquilo que perfaz toda
a obra, ou seja, da complexidade do movimento temporal de um segmento a
outro e, principalmente, dentro de um único segmento. Se a opção fosse seguir
rigorosamente os estudos genettianos forçosamente pararia esta análise no
primeiro segmento, detalhando os objetos nele contidos, para buscar uma
ordem da narrativa e, posteriormente, intentaria reagrupá-las em consonância
com as posições cronológicas correspondentes.
A título de exemplo, os trechos acima recortados de apenas uma página
da obra, seriam denominados de objetos A, B, C, D e E. Respectivamente: A =
o primeiro objeto narrativo que é o próprio fazer literário, o livro que é o mote de
toda a narrativa; B = o retorno do autor ao Brasil e a constatação da morte da
mãe; C = a reverencia e despedida do ambiente onde a mãe vivera; D = o
paradoxo entre dor e alegria habitantes do íntimo do autor; e, E = os anos finais
da sua vida.
Genette, 1979:36, denomina-os de “elementos constitutivos da abertura”.
Reorganizando tais elementos em uma possível sequência cronológica
teríamos uma correspondência inversa pois seriam, respectivamente 2, 3, 5, 4
e 1. Assim, ao refazer o percurso cronológico de memórias tem-se que: 1 = o
autor está idoso; 2 = o autor escreve um livro; 3 = o autor relembra a chegada
ao Brasil e a morte da mãe; 4 = o autor relembra o conflito entre luto e vontade
de viver, próprio do adolescente e 5 = o autor relembra como se despediu da
casa onde morou com a mãe.
De fato, seria um trabalho minucioso optar pelo modelo de análise acima
exposto, de maneira que a escolha recai por mostrar de forma mais sintética
como tais percursos são traçados para dar à narrativa o efeito de ziguezague
ou composição por quadros. Até porque, conforme Genette, 1979:37, “o
simples levantamento das posições não esgota a análise temporal, ainda que
reduzida às questões de ordem”; mais ainda, sugere que se devem definir as
relações que unem os segmentos entre si.
55
Volvendo às anacronias tem-se que em UHSP este recurso é
vastamente explorado pelas prolepses e analepses, o que configura o próprio
movimento cognitivo de relembrar, de trabalhar com a memória num constante
vaivém entre o agora, o antes e o depois. Os termos prolepse e analepse são
definidos, sendo o primeiro como “toda a manobra narrativa consistindo em
contar ou evocar de antemão um acontecimento ulterior”, e o segundo como
“toda a ulterior evocação de um acontecimento anterior ao ponto da história em
que se está”, segundo Genette, 1979:38.
Aplicado o esquema da micro-estrutura à macro-estrutura alcança-se
uma ampliação da visão sobre as grandes articulações da estrutura temporal
de UHSP. Disto resulta que nela se pode apreciar analepses externas e
internas. As externas abrangem um campo cuja amplitude total permanece
exterior à narrativa primeira, o que em UHSP representa o retorno à origem da
composição da família de Oswald de Andrade, como no trecho em que dá a
conhecer os nomes dos tios e tias, onde moravam, quem se casou e quem
ficou solteiro, ou em outros segmentos dentre os quais destaco, como aquele
que apresenta o mineiro avô paterno, de origem feudal, chamado Hipólito José
de Andrade, também registrado posteriormente na seguinte passagem:
Meu bisavô conseguira afazendar-se ali com bastante gado efazia comércio entre Belém e o interior. Menino de 14 anos,meu avô fora incumbido de ir buscar mercadoria na capital doPará, numa grande barca, levando consigo trinta contos emouro. (Andrade, 2002:55)
Estas passagens remontam a épocas em que o autor-narrador nem
havia nascido, ficando, portanto, à margem da narrativa primeira, não
interferindo nesta, sendo externas já que o alcance e a amplitude são
anteriores à velhice e à infância de Andrade, não adentrando nesses períodos.
Contudo, são as analepses internas aquelas que ocupam maior espaço
dentro de UHSP. Genette, 1979:48, caracteriza este tipo como aquelas em que
o campo temporal “está compreendido no da narrativa primeira, e que
apresentam um risco evidente de redundância ou de colisão” denominando-as
também de heterodiegéticas.
Pode-se observar que em UHSP a linha principal da história
compreende o período entre 1890 e 1919, e que a narrativa primeira é o ato de
56
revisitar o passado através da autobiografia, o que significa que há um
conteúdo diegético diferente da narrativa primeira que nesta não interfere
(ainda) até o presente instante da análise.
Contrariamente, pode-se detectar a escassa existência de analepses
repetitivas ou rappels, aquelas “que se referem à mesma linha de ação que a
narrativa primeira” (Genette, 1979:49), pois esta primeira (o presente vivido na
velhice pelo escritor) é devorada pelas evocações passadas, chegando mesmo
a desaparecer ainda no começo da obra quando o autor, aludindo à
emergência de escrever suas memórias, anuncia que “Se é preciso começar,
comecemos pelo começo” (Andrade, 2002:36).
O sexagenário Andrade retorna somente em pequeno trecho final, nas
página 193 e 194, mesclado ao personagem Miramar, confessando: - “Sinto-
me só, perdido numa imensa noite de orfandade”, antecipado por elipse que
marca o retorno ao período da primeira mocidade: “Faço enterrar Daisy no
túmulo familiar da Consolação, vestida de branco”.
Inúmeras são as analepses internas, havendo inclusive analepses
externas ou internas dentro de analepses, como no segmento acima referido
em que fala do seu bisavô. Abaixo um exemplo de analepse externa contida
em outra interna:
Havíamos dobrado a esquina de um século. Estávamos em1900. Eu tinha dez anos, e morava, como disse, no alto daLadeira de Santo Antonio. Lembro-me de que esperei acordadoa entrado do ano e do século, acreditando que, à meia-noite,qualquer coisa como um sinal metafísico se descobrisse nocéu, pelo menos a data de 1900. Mas nada vi e fiqueicabeceando de sono, entre mamãe e as comadres. (Andrade,2002:53)
A maior parte das analepses traz referências cronológicas por meio de
muitos marcadores de data, de idade e de período escolar, como explicitado
mais abaixo, recheadas de outras analepses marcadas por elipses ou
verdadeiras lacunas diegéticas.
Exemplos de marcadores de data são: “A data de 1896” (p.40);
“Estávamos em 1900” (p.53), “Fui em 1903” (p.76),” Nos primeiros meses de
1909 fui admitido, a pedido de meu pai, na redação do Diário Popular” (p.89),
57
“A revolta de 1910” (p.95), “O meu dissídio com Deus produziu-se no dia 13 de
Setembro de 1912” (p.118), “14 de janeiro de 1914” – nasce Nonê (p.121), “A
1º de Junho” (p.163), “A 14 de Julho” (p.170), “Datada de 3 de Agosto de 18
(não estávamos em 17? Nem sei!)” (p.173), “Estamos a 6 de Agosto de 18. “É
de 18 mesmo.” (p.174), ‘Um pedaço de 1917” (p. 176), “Cravinhos 24 – Agosto
– 1918” (p.177), “Ao atravessar da meia-noite que separa os anos de 18-19” –
o réveillon (p.187), “Mas na madrugada do primeiro dia de Fevereiro, meu pai”
– a morte do pai (p.187), “A 1º. De Março” (p.190), “Em junho, ela me diz que
está grávida.” (p.192), “O casamento se realizou a 11 de Agosto” (p.193)
Também destacamos alguns marcadores de idades: “Que idade teria?
Três ou quatro anos no máximo” (p. 370), “Menino de 14 anos” (p.55), “Com a
proximidade dos quinze anos” (p.59), “Fui em 1903, com treze anos,
matriculado no Ginásio de São Bento” (p.76), “Aos 20 anos” (p.97), “Fala-se na
idade dele. Fez 73 anos” (p.188).
E outros que se referem ao período escolar: “Quando aluno do Ginásio
de São Bento” (p.57), ”No quarto ano” (p.77), “A minha turma inicial, a que
entrara em 1903 no segundo ano, pulou para adiante” (p.80), “Nesse bom ano
de 1906, quando, reprovado em mais de uma cadeira, fui obrigado a repetir o
4º.” (p.79), “Em 1918, estou, como disse, no 4º. Ano da Faculdade de Direito”
(p.186).
A princípio, como se pode observar parece existir uma sequência
cronológica, entretanto são constatadas algumas analepses completivas,
renvois para Genette, 1979:49, como estas abaixo, evidenciadoras da intenção
de reenvio, constante em dois trechos de páginas diferentes:
Trecho 1:
Nesse momento vejo a aflição de Léo Vaz que não encontraemprego. Eu tenho dois, o do Jornal do Commercio, edição deSão Paulo, onde faço “Sociais” e que me dá 250 mil-réismensais, e o da Gazeta, donde retiro mais cem mil-réis. Semhesitar, ofereço o da Gazeta a Léo, que aceita e passa a serjornalista, sob as ordens de Cásper Líbero. (Andrade, 2002:174 – Grifo nosso)
Trecho 2:
58
Em 1918, estou, como disse, no 4º. ano da Faculdade deDireito, ao lado de Jairo de Góis, e no Jornal do Commercio,onde faço o salário de 250 mil-réis. Trabalho também naGazeta de Cásper Líbero que me paga cem mil-réis. VendoLéo Vaz recém-chegado, sem emprego, desfaço-me, comoreferi, do da Gazeta, onde ele me substitui. (Andrade, 2002:186 – Gripo nosso)
O trecho dois preenche uma lacuna anterior da narrativa, mostrando
uma necessidade do autor-narrador de correlacionar o trabalho de jornalismo
com a vida acadêmica, o que leva a crer que optou por uma omissão provisória
de tal correlação para posteriormente fazer a reparação. Genette, 1979:49,
explicita que este tipo de reenvio segue “Uma lógica narrativa parcialmente
independente da passagem do tempo. Tais lacunas anteriores podem ser
elipses puras e simples, ou seja, falhas na continuidade temporal”.
As predestinações ou prolepses são menos frequentes em UHSP,
contudo aponto duas abaixo, por tratar-se de uma narrativa autobiográfica, de
cunho memorialista e confessional. Este gênero literário é considerado pelo
francês, 1979:66, propício para qualquer antecipação porque “autoriza o
narrador a alusões ao futuro, e particularmente à situação presente, que de
alguma maneira fazem parte do seu papel”.
Temos que o primeiro episódio está no segmento que data de 1909, ano
em que Andrade se matriculou na Faculdade de Direito e se decepcionou com
esta devido ao trote sofrido e aí antecipa fatos do ano de 1931. E no segundo,
sendo a narrativa próxima do ano 1915, o autor antevê a continuidade política
que se daria no Brasil durante longo tempo:
Episódio 1:
Daí talvez se originasse minha briga com os estudantes,quando redigi O homem do Povo, em 1931. Apesar de todas asoficiais reconciliações e palinódias, guardo um íntimo horrorpela mentalidade da nossa escola de Direito. (Andrade,2002:90)
Episódio 2:
Uma só corrente, um só partido, uma só posição era opanorama do Brasil e mesmo da progressista São Paulo. Eisso durou até a revolução de 30. (Andrade, 2002:123)
59
Outro trecho significativo de antecipação ou anúncio de curto alcance
pertence já ao diário da garçonnière e que, de forma ambígua, remete também
ao presente em que já está idoso. Nota-se que dentro da analepse (de 1917) o
narrador realiza uma prolepse interna que remete a um período muito próximo
(entre 1918 e 1919) e faz, ainda, outra prolepse externa que remete ao instante
presente da escritura da narrativa (ano de 1952), sendo que esta última deixa
ao leitor a suposição de que o primeiro filho de Oswald, Nonê, já está adulto e
guarda suas anotações literárias:
Alugo uma garçonnière, à Rua Líbero Badaró, nos fundos deum terceiro andar. Estamos no ano de 17. Dessa época, doano de 18 e até 19, componho com os frequentadores dagarçonnière e com Daisy, que se tornou minha amante, umcaderno enorme que Nonê conserva. (Andrade, 2002:160)
Anacronias complexas estas que interpolam analepses e prolepses,
registradas através de estruturas ambíguas, que perturbam as noções de
retrospecção e de antecipação, semelhante à ambiguidade entre os dois
personagens narradores Oswald de Andrade e João Miramar. Eles são duas
personalidades oriundas por cissiparidade do herói primitivo, têm a mesma
identidade que revela uma confrontação, via passado, entre o presente
tencionado na narrativa e o presente real.
Assim, o escritor Andrade empresta a Miramar pensamentos análogos
quanto à sua vida com Cyclone. Curiosamente, a devoração que Miramar faz
de Andrade coincide com a diegese de 1919, ano em que o escritor paulistano
publica os três capítulos primeiros de suas Memórias Sentimentais (no dia 14
de julho), casa-se com Daisy (no dia 15 de agosto) e esta falece no dia 25
deste último mês.
Direcionando agora tais análises ao estudo da frequência e da duração,
temos em conta que medir a duração de uma narrativa, confrontando-a com a
duração da história – em consonância com Genette (1979:85-6) - é “uma
operação mais escabrosa, pela simples razão de que por nada se pode medir a
duração de uma narrativa”.
Para esse autor, no estudo da ordem há um ponto de referência
denominado grau zero, onde coincidem a sucessão diegética e a sucessão
60
narrativa; algo que seguramente não ocorre em UHSP. Inexistindo esse grau
zero, ou a narrativa isócrona, torna-se uma coincidência inacessível, “porque
inverificável a igualdade de duração entre narrativa e história”, e o caminho
possível de verificação é a verificação da constante de velocidade que é:
Relação entre uma medida temporal e uma medida espacial(tantos metros por segundo, tantos segundos por metro): avelocidade da narrativa pela relação entre uma duração, a dahistória, medida em segundos, minutos, horas, dias, meses eanos, e uma extensão: o do texto, medido em linhas e empáginas. (Genette, 1979:87)
Para Genette,1979:87, inexiste narrativa com constância entre duração
da história e extensão da narrativa, devendo a análise partir das anisocronias
ou dos efeitos de ritmo. E, observar como ocorre o efeito de ritmo em UHSP
necessita, primeiramente, em consonância com a teoria genettiana,
“Determinar aquilo que se considerará como grandes articulações narrativas, e
dispor seguidamente, para a medida do seu tempo de história, de uma
cronologia interna aproximativamente clara e coerente”.
A obra UHSP não traz divisão em partes e capítulos providos de títulos e de
números, de forma que se faz importante a ruptura temporal causada pela
notícia da morte da mãe do autor-narrador, assim narrada:
O meu dissídio com Deus produziu-se no dia 13 de Setembrode 1912 [...] A maneira por que um grupo de amigos efamiliares me rodeou e abraçou me fez perceber que algumacoisa muito grave se tinha passado. De fato, minha mãe nãoexistia mais. Tinha falecido apenas alguns dias antes. Seisdias. Sem poder ao menos esperar o meu regresso. (Andrade,2002:118)
Este indicativo serve como para estabelecer os seguintes cortes,
efetuados seguindo idealização advinda dos estudos de Genette:
1. Pp. 33-52: Excetuando-se as analepses de composição da
genealogia materna e paterna, trecho dedicado à infância passada
entre São Paulo e Minas Gerais (Entre 1890 e 1896);
2. Pp.53-75: Recordações do convívio familiar, dos parentes, da vida
religiosa, da profissão do pai. Aqui também ocorrem analepses de
composição genealógica (Entre 1896 e 1903);
61
3. Pp. 76-88: Composição da vida escolar e da primeira mocidade,
quando do primeiro contato com literatos (Entre 1903 e 1909):
4. Pp. 89-118: Fatos sobre o primeiro emprego no jornal, a faculdade de
Direito, a primeira viagem de trem ao Rio de Janeiro sozinho, a
Revolta de 1910, a iniciação sexual, o Pirralho, mortes de parentes, a
primeira viagem à Europa: Itália e França. A paixão pela francesa
Kamiá (a primeira esposa) e o contato com as vanguardas artísticas
(Entre 1909 e 1912);
5. Pp. 118-121: O luto, o conflito religioso, a tristeza do pai, o retorno
ao jornal O Pirralho, o nascimento do filho Nonê (Entre 1912 e 1914);
6. Pp. 122- 130: Os amigos do jornal e do meio literário, os jornais O
Estado de São Paulo e Diário Popular (Entre 1914 e 1915);
7. Pp. 130 - 156: Landa chega da Europa, o romance entre ela e
Oswald de Andrade, os problemas financeiros da família do
paulistano, a crise familiar causada pela presença de Landa, o
progresso paulista, a amizade com Isadora Duncan, o Jornal do
Commercio, o retorno à Faculdade de Direito, a renúncia à Landa
(Entre 1916 e 1917);
8. Pp. 157 – 163: Inicia o episódio de Deisi (Cyclone), o primeiro contato
com Mario de Andrade, a Garçonnière, os literatos, o Diário “Perfeito
cozinheiro das almas deste mundo” (Entre 1918 e 1919);
9. Pp. 164 - 185: Surge Miramar, Miramar e Cyclone, Landa se torna
freira. Os amigos Ferrignac, Guy e Pedro de Albuquerque. Miss
Cyclone contrai tuberculose. Viagens a Tiperári e Tijucópolis. A
política. “Miramar ficou” (Entre 1918 e 1919);
10.Pp. 186 - 194: Narra Oswald de Andrade sobre a Faculdade de
Direito, a morte de seu pai e o inventário. Cyclone engravida e
aborta, tendo complicações físicas. O casamento in extremis entre
Oswald de Andrade e Deisi. A solidão de Oswald. A Garçonnière
vazia. Toiô: a japonesa (Em 1919).
Todos esses indicativos estão marcados por rupturas temporais elípticas
com espaços em branco entre um e outro segmento. Vale ressaltar que da
contagem das páginas foram descontadas aquelas introdutórias à obra,
62
dedicadas ao prefácio. A cronologia acima é apenas indicativa (encontra-se
entre parêntesis) ou hipotética, visto que algumas datas estão evidentes e
outras não o que dificulta delineá-las com clareza e coerência. Relacionando
esta indicação de cronologia com a extensão narrativa atribuída a cada período
observamos que foram aplicadas aproximadamente:
1. 19 páginas para cerca de 6 anos (Entre 1890 e 1896)
2. 22 páginas para 7 anos (Entre 1896 e 1903)
3. 12 páginas para cerca de 6 anos (Entre 1903 e 1909)
4. 29 páginas para uns 3 anos (Entre 1909 e 1912)
5. 04 páginas para cerca de 3 anos (Entre 1912 e 1914)
6. 08 páginas uns 2 anos (Anos de 1914 e 1915)
7. 26 páginas cerca de 2 anos. (Anos de 1916 e 1917)
8. 06 páginas para uns 2 anos (Anos de 1918 e 1919)
9. 21 páginas para cerca de 2 anos (Anos de 1918 e 1919)
10.08 páginas para 1 ano (Ano 1919)
Deste incipiente levantamento observamos que aproximadamente um
terço do total de páginas foi dedicado ao período compreendido entre a infância
e a puberdade e, à medida que o autor-personagem adentra no mundo
profissional e no círculo literário há uma diminuição do tempo e maior
quantidade de páginas dedicadas a anos específicos.
O período dado entre 6, 7 e 8 (acima) foi hipotético, já que não está
explicito na narrativa, e compreende cerca de seis anos, entre 1914 e 1919.
Ao observar os episódios ocorridos entre esses anos, vemos que esta elipse de
tempo é representativa do período mais intenso da vida do narrador, quando
ele começa a se dedicar ao jornalismo, passa pela crise do seu casamento
com Kamiá, pelo nascimento de seu filho e pelas conturbações emocionais do
romance com Landa.
Curiosamente os segmentos 8, 9 e 10 são dedicados, somando 35
páginas, aos dois anos do episódio Cyclone-Miramar e à escrita do diário O
Perfeito cozinheiro das almas deste mundo. A última parte, restrita ao
específico ano de 1919, traz a fatalidade do aborto de Cyclone e, por
63
consequência sua morte; a quantidade de páginas é reduzida, intensificando
mais ainda o ritmo à medida que avança para o final.
Comparando o número de páginas dedicadas a cada período diegético
com os vários episódios da narrativa percebe-se que, para o tempo histórico de
29 anos (Entre 1890 e 1919) houve uma redução da narrativa em sumários
cujo efeito é a síntese, entrecortada por uma longa cena dedicada
especialmente ao episódio Landa-Oswald de Andrade e outra, mais intensa
ainda, ao romance entre Daisy e sse escritor.
Ambos oscilam, ora apresentando-se como dramas, ora como
verdadeiras tragédias. Está bastante perceptível o jogo cênico reiterado por
comparativas com trechos das tragédias shakespearianas Hamlet, Macbeth e
Otelo, o mouro de Veneza, como se vê nos trechos a seguir. Os episódios
trágicos abaixo registrados se passam com uma intensidade veloz de ritmo, em
duas ou três páginas alternadas, o que se contrapõe ao arrastar da demorada
narrativa inicial de diversas cenas típicas familiares.
Essa contraposição da velocidade temporal deixa fortes indícios de que
as memórias referentes àquele período vivido no seio familiar são mais
estáveis emocionalmente, advindos da segurança e amparo encontrados
principalmente na mãe Dona Inês, tornando-se conturbadas quando Oswald de
Andrade se lança às relações amorosas, como se no instante do recordar
viessem à tona aos borbotões, havendo maior interferência do estado
emocional presente do autor sobre o elenco de emoções suscitadas. Vejamos:
“O Otelo de Grasso entusiasmou não só a mim mas a própria crítica
londrina. Era,de fato, uma maravilha passional e moura.” (Andrade, 2002: 112);
“O carro de Laio atravanca a minha estrada.” (Id., p. 134); “E Laio quem fere.
Joga a contrapartida raivosa do zelo. O enigma reflui. Quem é Jocasta?
Desdobram-se as ciladas do incesto.” (Id., p.135); “E o impacto do ciúme ele o
atira sobre Landa Kosbach que é mamãe Macbeth nas roupagens carnais de
Ofélia.” (Id., ibidem); “O amor que falha me traz o frio de Otelo no peito. As
pernas queimam. Há uma sensação física de cicatriz aberta no coração.
Lágrimas sobem, brutalidades estrangulam-se nos pulsos.” (Id., Ibidem.) ; “-
Amo um, amo outro, não sei...sou artista. – Sai da minha vida! Lágrimas e
beijos. A reconquista se consolida.” (Id, p.136); “Estou mudo como Otelo na
expectativa. No correr do trem, a lua amarela muda de forma e de lugar. Tenho
64
sono, Landa! Não façamos o amor triste.” (Id., p. 144); “Fui batido, humilhado e
ofendido no coração e no brio pela mais bela e mais infame das mulheres.
Penso em me destruir.” (Id., p.145)
Constatamos, assim, oposição entre narrativa sumária e cena detalhada,
o que nos leva a admitir que há, conforme Genette, 1979:110, “Uma oposição
de conteúdo entre dramático e não dramático, coincidindo os tempos fortes da
ação com os momentos mais intensos da narrativa”.
A concatenação entre cenas típicas e cenas dramáticas na narrativa
memorialista oswaldiana funciona como força centrípeta em direção às últimas.
A exacerbação precoce da curiosidade sexual, no menino, parece justificar seu
comportamento posterior da primeira juventude. Fato que configura
agrupamento de sentimentos e sensações.
Na seqüência, penetramos na laboriosa busca de relações de frequência
entre narrativa e diegese em UHSP, formalizada pelas repetições temáticas.
Sendo essencial da temporalidade narrativa, tal repetição
É, na realidade, uma construção do espírito, que elimina decada ocorrência tudo o que lhe pertence em específico, para sóconservar aquilo que partilha com todas as outras da mesmaclasse, e que é uma abstracção. (Genette, 1979: 114)
Repetir ou não, na narrativa, um assunto ou determinado fato histórico
mostra que a escolha de certas frequências tem intenção franca de corroborar
a importância discursiva de alguns acontecimentos. Assim, observamos que a
insistência oswaldiana em determinado tema em detrimento de outros
configura uma forma do autor em optar por eleger aqueles que lhes são mais
significativos ou determinantes para compor UHSP.
Quando inexiste tal repetição diz-se que a narrativa é singulativa, ou
seja, é aquela onde se conta “uma vez aquilo que se passou uma vez”
(Genette, 1979:114), como se pode observar nesta passagem:
Um dos fatos que minha mãe apontava como documento daexistência de Deus deu-se quando, solteira e filha de viúvo, foisolicitada para casamento por um rapaz do interior. (Andrade,2002:70)
Igualmente, alguns acontecimentos narrados se mostram singulares em
relação aos enunciados narrativos, principalmente aqueles episódios que,
65
semelhantes a flashes, espocam aqui e ali, variando os assuntos abordados e
que são significativos da abstração narrativa do autor, que os relata de forma
às vezes poética, noutras irônica ou filosófica; ou, antiteticamente hilária e
constrangedora – evidenciada no trecho abaixo. Nele, o narrador revela a
presença de uma criança em momento sexual infimamente vivenciado com
Guiomar, mulher casada. Assim o confessa:
Colocou a criança aos pés do leito e deitou-se abrindo aspernas redondas e alvas, por sobre as quais me deitei. Foi umsegundo maravilhoso. Ela exclamou: - Parece um galo!(Andrade, 2002:98)
Oswald de Andrade em suas confissões revela também alguns
insucessos que teve, sem que lhe representem motivos para desistências ou
desânimos, enfatizando a repetição (que intensifica tais lembranças) como que
para confessar suas humanas limitações perante desafios, como se observa
nos seguintes trechos:
“Talvez porque eu repetisse, tornei-me um dos melhores da pequenina
classe que, se não me engano, tinha apenas nove alunos.” (p. 80) “Diversas
representações se sucederam no palquinho do porão, perante boa assistência,
que entusiasmava os artistas com aplausos. Eu ficava de fora, bastante
despeitado.” (p. 58); “Também não sabia dançar, o que tornava extremamente
fastidiosos os saraus do Grêmio Guarani [...] Dulce gostava de dançar. Eu
detestava. Arrastava-se bocejante pelas cadeiras vazias do sarau.’’ (p. 58);
“Uma experiência de teatro, tentada nas festas de fim de ano, constitui um
novo fracasso e me fez compreender que devia abandonar qualquer pretensão
de palco.” (p. 87) e em “Sinto às vezes acabrunhamentos incríveis. “Mas volto à
tona com uma tremenda tenacidade”. (p.158)
Há passagens singulativas em que “contar n vezes aquilo que se passou
n vezes” é explorado iconicamente, o que significa que as repetições dos
enunciados narrativos intensificam a importância do acontecimento narrado. É
como se esses funcionassem como insistentes revisitações da memória às
lembranças que marcaram a vida do autor-narrador. Koogan & Houaiss,
1993:447, traz por acepção do termo “ícone” que este representa “nas igrejas
russa e grega, imagem sagrada”.
66
E toda a narrativa iconográfica oswaldiana destaca-se, sobretudo, pela
frequência com que Oswald de Andrade narra, gradualmente ligação,
desligamento e re-ligação por ele vivenciados ante as experiências religiosas.
Fazemos breve parêntesis para ressaltar que, ainda que destaquemos
determinada temática para análise sobre UHSP, admitimos que as repetições
singulativas aplicam-se também – ademais do trato da religiosidade -, a outras
temáticas de igual importância para o autor e para o progresso desta
dissertação. Vemos, por exemplo, a constância do escritor em tratar sobre
áreas da Arte (tais como música, dança, teatro, artes plásticas), sobre Política
e sobre movimentos literários. Abordaremos essas singulações no Capítulo 3
ao tratarmos sobre A devoração da personagem pelo autor.
A freqüente insistência evidencia a latência e a importância que tal
relação significa no universo das suas relações familiares, amorosas, sociais e
(por que não?) literárias. Simbolicamente, essa repetição de costumes e
tradições constitui a constante presença das ordens de mamãe obedecidas
segundo parâmetros da sociedade patriarcal criticada por Andrade.
Transformar tabu em totem consideramos como opção de ser, de modo de
posicionar-se no mundo, tornando-se assim eixo condutor dos comportamentos
e ações que permearam sua vida em inúmeras situações.
São várias as passagens que demonstram a frequência dessa relação
religiosa. Isolando em UHSP somente passagens que tratam desse tema,
observamos que o valor atribuído com intensidade à vida católica, na infância,
vai se amenizando como imagens borradas de um passado distante.
Abalo da fé? Negação da profissão de fé? O profano avança e devora o
religioso? No final, o primitivo matriarcado de Pindorama ressurge entre
escombros. Diz Oswald de Andrade: “Estou só e a vida vai custar a reflorir.
Estou só.” (Andrade, 2002:194) Mas, antes dessa constatação, o autor
antecipa sua visão crítica sobre o tema, registrando sua característica maior
que é o sarcasmo, a ironia e a irreverência, conforme observamos nos trechos
abaixo:
Trecho 1:
Acontece terem as crianças ereção no primeiro mês de vida einiciarem um inútil período de masturbação, enquanto homens
67
de quarenta anos e menos perdem estupidamente a potenciapara viver dezenas de anos como cadáveres. Obra de Deus –querem os padres e as comadres. O limite, o tabu dosprimitivos. (Andrade, 2002:37)
Trecho 2:Aureolada de litografias de santos de todos os feitios, onde sedestacava, além do insípido São José, uma ternuraencaracolada de São João menino, como um cordeirinho nosbraços, a minha cama ressuscitava o circo na penumbravacilante, onde uma lamparina votiva se acendia ante o austerooratório da família. Minha mãe tinha permanecido ali horas,conversando com a custódia de prata, onde, no centro,faiscava o Espírito Santo, que era uma pombinha de ouro.(Andrade, 2002:38)
Trecho 3:Fui criado evidentemente para uma vida terrena que erasimples trânsito, devendo, logo que Deus quisesse, incorporar-me às suas teorias de anjos ou às suas coortes de santos.(Andrade, 2002:39)
Descartamos a possibilidade, ante tais evidências, de que se trata de
contar n vezes aquilo que só se passou uma vez porque a singularidade
narrada reside no fato de que o autor insiste em evidenciar seu contato com as
manifestações religiosas sem que a mesma represente uma constante em sua
vida.
Contrariamente, observamos uma graduação que parte do simples para
o complexo. Parte do mundo dado para o mundo vivido. Do particular que é o
contato familiar para o universal das experiências sociais. Isto parece claro pela
condução ou trato da narrativa que revela, primeiramente, como as primeiras
impressões do narrador sobre a crença (ou não) em Deus, religião e coisas
afins, vão se diluindo.
Aquelas imposições familiares são devoradas e delas ressurgem a
própria convicção do autor-narrador que confessa: “Daí a força das religiões
que se contradizem, se batem entre si, mas dominam o mundo humano,
totemizando a seu modo o tabu imenso que é o limite adverso – Deus.”
(Andrade, 2002:142)
Ainda que se sobressaiam esses conflitos existenciais e de relação com
a fé ou religião, permanece a singularidade de “contar n vezes aquilo que se
68
passou n vezes”, embora de forma diferenciada. Esquadrinhar a obra toda
seria uma matéria interessante de estudo, pois, através desse processo,
percebe-se que UHSP solidifica-se completamente no registro insistente de
episódios narrados sob a égide da iconografia católica.
Por exemplo, nomes de ruas, de espaços públicos, de eventos, de
pessoas, enfim, muitos registros remetem à constante re-ligação ao universo
religioso, sobretudo o católico, como se pode observar abaixo:
“Sinais dos tempos. A nossa geração integrara-se na consciência
capitalista que gelara os velhos sentimentos da gente brasileira” (Andrade,
2002:35); “São Paulo era uma cidade pequena e terrosa” (p. 42); “E Sebastião
José de Carvalho teria respondido:” (p. 54); “Quando aluno do Ginásio de São
Bento” (p. 57); “Agora, na Rua de Santo Antonio” (p. 63); “Por esse tempo
criou-se em São Paulo o Ginásio de Nossa Senhora do Carmo” (p. 63);
“Hospedei-me no palacete da Rua São Clemente” (p. 92); “Vou a Santos” (p.
142); “Em São Vicente” (p. 143); “Janto no Hotel Moderne em Santa Teresa” (p.
146); “Levo-a à Estação da Luz” (p. 153); “Os dois carros dirigem-se para
Santana” (p. 156); “Vou à Rua São Luis, ao Palácio do Arcebispo Dom Duarte”
(p. 157); “Se ela for para o Asilo do Bom Pastor” (p. 157); “[...] pela velha
Faculdade do Largo de São Francisco.” (p. 161); “Coloco-a morando com a avó
numa casa da Rua Santa Madalena, no Paraíso.” (p. 190); “Ela atravessa a
Praça Antonio Prado, desce a Avenida São Joâo, envereda pela Rua
Anhangabaú por debaixo do Viaduto Santa Ifigênia” (p.192).
Sobre esse aspecto, Faria e Silva relata com pormenores a memória
toponímica presente em UHSP de Oswald de Andrade e, segundo o estudioso,
esses espaços geográficos de fato existiram ou ainda existem na capital. A
escolha pelas denominações religiosas por parte do escritor Oswald de
Andrade chama-nos a atenção para o título Um homem sem profissão, já que
esta nomenclatura derivada do verbo professar admite duas interpretações,
segundo Koogan & Houaiss.
Professar é sinônimo de confessar ou reconhecer publicamente algo,
mas também é “fazer votos, entrando para uma ordem religiosa” segundo
Koogan & Houaiss, 1993:680, aspecto que muito agradaria aos progenitores de
Andrade. Outro viés, aquele que exploraremos no próximo capítulo com mais
69
profundidade, trata-se do preconizar, ter a convicção: de professar idéias
socialistas.
Seguramente Oswald de Andrade professou sua convicção. Porém, ante
o subtítulo Sob as ordens de mamãe, indagamos: - Quem é mamãe? Seria
Dona Inês? A Literatura? As mulheres? A religião? A sociedade? Quem é ela?
Quem é essa que dá ordens para que escreva Oswald de Andrade? A
Antropofagia?
Enfim, dando continuidade, notamos outras temáticas singulativas,
repetidas n vezes, porque se passaram diversas vezes ainda que sob formas
variadas. Uma dessas constantes é a menção aos parentes (tios, avós) que, à
medida que o autor-narrador avança na narrativa, vão adoecendo e morrendo.
São signos da memória social que se transforma através do nascimento e da
morte. Esta última é acontecimento singular, se vista na individualidade do
evento, que se repete como que registrando o falecimento daquele passado de
dependência e convívio familiar.
Junto a essa temática, outra que é singular, mas está sempre se
repetindo é o fato de mudar constantemente de residência. De igual forma o
autor enfatiza as inúmeras viagens que ele fez, com a família ou sozinho, pelo
Brasil e pela Europa. Tais instantes singulativos acabam por se contraporem, já
que a morte é representativa da imobilidade e os dois últimos remetem a
movimentos constantes de cambio ou de contato com o novo, o desconhecido.
Sobre a literatura e seus movimentos, há a repetição de diversos
instantes singulativos. Desde o princípio da obra, ainda na narrativa da
infância, Andrade registra a constância da literatura em sua vida. Começa pela
audição de contos e causos que sua mãe lhe relatava. O enigmático filho de
Dona Inês bipolariza: “Lenda ou fato? Não importa. Há entre ambos a diferença
que vai da verdade à realidade”. (Andrade, 2002:54)
Destacamos outras duas passagens, embora tenhamos deixado o trato
específico do tema para o Capítulo 3:
70
Trecho 1:
Dos livros que conheci na mais afastada infância, lembro-mede As espumas flutuantes de Castro Alves, que meu pai medeu. Não entendi nada mas gostei. Já na Rua de SantoAntonio, minhas preocupações foram outras. Li deslumbradoCarlos Magno e os doze pares de Franca, que fiz questão deemprestar a todo mundo, cozinheiras, amigos da família.(Andrade, 2002:65)
Trecho 2:
Fui em 1903, com treze anos, matriculado no Ginásio de SãoBento, onde passei a estudar todas as disciplinas, entregues aprofessores civis, entre os quais figuravam o peralta BatistaPereira, genro de Rui Barbosa, e o dr. Afonso d’EscragnoleTaunay, filho do Visconde de Taunay, autor de Inocência, tãohorrivelzinha e tão célebre. (Andrade, 2002:76)
Evidenciamos aí o contraponto entre leituras efetuadas na infância e
aquele contato imediato com literatos brasileiros freqüentadores do círculo
social burguês a que pertenceu Andrade. Espumas Flutuantes (1870), de
Castro Alves (1847 – 1871), consta como primeira publicação literária desse
jurista e literato baiano. Amigo de Machado de Assis e José de Alencar, a
tendência literária de Alves “representa um traço de união entre o Romantismo
agonizante e o Parnasianismo emergente”, segundo Massaud Moisés,
1981:188. Observemos a acidez da crítica oswaldiana quando confessa “não
entendi nada, mas gostei”. Evidentemente, poderiam ser verdadeiro enigma
para qualquer menino o rebuscamento das estruturas estéticas românticas.
Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843 – 1899), outro romântico de vertente
realista, criticado por Oswald de Andrade através da horrivelzinha obra
Inocência, é personagem que evidencia a aversão oswaldiana àquela literatura
importada. Essa obra retrata a mulher brasileira de forma caricatural, protótipo
da sertaneja sem noção, diriam os contemporâneos. E também traz a
esperpêntica figura de Cirino, um anão bom brasileiro, todos evidentemente
dentro dos moldes românticos de descrição do sertão brasileiro.
Mais do que apenas elucidar ao leitor a importância das figuras literárias
acima elencadas, o que temos de elemento óbvio é esse tenro contato de
Oswald de Andrade com escrituras que possibilitam traçar percurso diegético
71
dos conhecimentos e informações devorados por ele, ainda que esse percurso
tenha na narrativa aparência de seleção aleatória.
E, ainda, confessa a admiração pela literatura européia, fato que lhe
motivou a crítica contida em seu Manifesto Antropófago (1928), contra os
Conservatórios e o tédio especulativo, contra a Memória fonte do costume. A
experiência pessoal renovada, disse Andrade. Entre idas e vindas à Europa,
ele pode conhecer as mais tenras tendências literárias da época, o que
fortaleceu o desejo de novos rumos à literatura brasileira, como se percebe em:
Paro para perguntar: - Por que gostava eu mais da Europa doque do Brasil? Os meus ideais de escritor entraramgrandemente nessa precoce tomada de posição. Tinha-seaberto um novo front em minha vida. Nunca fui com a nossaliteratura vigente. A não ser Machado de Assis e Euclides daCunha, nada nela me interessava. (Andrade, 2002: 113)
Há também outra manifestação de frequência temporal, cuja explicitação
abaixo é dada por Genette, 1979:116, chamada de repetitiva ou iterativa, ou
aquela em que se pode contar uma única vez (ou antes: numa única vez)
aquilo que se passou n vezes. O estudioso assim a coloca:
Pensemos também (o que não é tão estranho como se possapensar à função da literatura) que as crianças gostam que lhescontem várias vezes – ou até várias vezes seguidas, a mesmahistória, ou reler o mesmo livro, e que esse gosto não é emabsoluto o privilégio da infância. [...] Chamarei, evidentemente,a este tipo de narrativa, onde as recorrências do enunciado nãocorrespondem a qualquer recorrência de acontecimentos,narrativa repetitiva.
Genette, 1979:117, explana que na narrativa clássica “os segmentos
iterativos estão quase sempre em estado de subordinação funcional em
relação às cenas singulativas” e registra que foi Flaubert em Madame Bovary
quem intentou a emancipação dessa dependência. Em UHSP há uma
predominância de passagens singulativas.
Mas, por outro lado, muitos segmentos iterativos volvem-se importantes
pela repetição regular das sensações e sentimentos do autor-narrador que
estão registrados através dessa repetitividade que chega a ser filosófica, às
vezes, como quando diz “ainda acredito que Deus não me abandonou” (grifo
72
nosso) ou quando, falando da sua certeza órfica e sobre a fé que move
montanhas, revela a constância do religioso no mundo: “Daí a força das
religiões que se contradizem, se batem entre si, mas dominam o mundo
humano, totemizando a seu modo o tabu imenso que é o limite adverso –
Deus.” (Andrade, 2002:142)
Outra marca de iteratividade enfoca a vida social paulistana, no
momento de migrações e imigrações; um encontro entre culturas e costumes já
que “anda por São Paulo uma porção de gente estranha, escritores, artistas
[...]”. Noutras passagens o autor-narrador revela seu estado de espírito ante as
vicissitudes da vida, como nos trechos abaixo com grifos nossos: “O totemismo
e a autoflagelação campeiam no cenário desolado de minha existência semmorte.” (Andrade, 2002:129); “Sinto às vezes acabrunhamentos incríveis. Mas
volto à tona com uma tremenda tenacidade.” e “Tenho horas de profundo
abatimento, de luta e de desespero, de consciência da derrota.”
O primeiro trecho acima exposto difere dos dois últimos já que a duração
temporal transcende o cenário narrativo, tendo, portanto, uma duração exterior
chamada de iteração generalizante; nos outros, contrariamente, há uma
singularidade na duração que é oscilante ou, às vezes, muito breve,
denominada iteração sintetizante ou interna. Ambos os tipos de iterações, ou
silepses, ocorrem alternadamente ao longo de toda a narrativa, com
predomínio, já mencionado anteriormente, de cenas singulativas sobre estas
iterativas externas e internas.
Outro tipo relaciona-se com a pseudo-iteração, ou àquilo que Genette,
1979:121, explica ser um momento em que “nenhum leitor possa seriamente
crer que elas se verificaram e reverificaram, várias vezes, sem qualquer
variação”. Tal como em “O colibri ainda esteve muito tempo ali, pousado,
soturno e quedo como um colibri de museu, enquanto eu, humilhado, não
achava conforto que lhe dissesse.” (Andrade, 2002:171 – grifo nosso)
Trata-se, nas palavras de Genette, 1979:122, de convenções literárias,
ou de uma liberdade narrativa, como se diz liberdade poética, constituinte do
próprio pseudo-iterativo que constitui tipicamente, na narrativa clássica, uma
figura de retórica narrativa, que não exige ser tomada à letra pelo leitor.
Determinação, especificação e extensão para Genette, 1979:127, são
traços marcadores da narrativa iterativa. Para esse teórico, uma série iterativa
73
pode ser composta por certo número de unidades singulares. Observemos o
trecho a seguir:
Os valores estáveis da mais atrasada literatura do mundoimpediam qualquer renovação. Bilac e Coelho Neto, CoelhoNeto e Bilac. Houvera um surto de Simbolismo com Cruz eSouza e Alphonsus de Guimaraens mas a literatura oficialabafava tudo. Bilac e Coelho Neto, Coelho Neto e Bilac.(Andrade, 2002:125 – grifo nosso)
A série supracitada está definida por uma diacronia literária realista (o
Realismo, começado em 1881 e em declínio a partir de 1902). Melhor dito, por
uma determinação temporal. Mas também explicita uma especificação dessa
mesma diegese, pois marca através da menção aos escritores Olavo Bilac e
Coelho Neto o ritmo das recorrências unitárias do meio literário da época. Por
outro lado, o trecho evidenciado revela uma determinada extensão à amplitude
diacrônica, cuja duração sintética engloba todo o período do Realismo literário,
marcando os limites exteriores desta série iterativa.
Nota-se, por exemplo, que está no início desse período o lir ismo de
Olavo Bilac (Poesias, de 1888), cuja poesia parnasiana caracteriza-se por um
anti-sentimentalismo, e a prosa realista de Coelho Neto (Sertão, de 1896) se
encontra em fase de franca decadência desse movimento literário brasileiro. A
série iterativa literatura, acima, contrapõem-se à outra, de fase diacrônica real
posterior – a do Modernismo, cuja confissão em imperfeito assoma como ironia
do autor para com o ‘modelo’ poético realista, marcando transformações
irreversíveis:
Eu nunca conseguira versejar. A métrica fora sempre paramim uma couraça entorpecente. Fizera esforços grotescospara traduzir as “perfeições” da Herédia [...] Só assim vim asaber que se tratava, enfim, de desterrar do verso a métrica e arima, obsoletos recursos do passado. (Andrade, 2002:125 –grifo nosso)
Observamos então que a relação entre a diacronia interna (dada pela
unidade sintética de contraposição entre realistas e modernistas) e a diacronia
externa (de fato, entre o Realismo e o Modernismo houve o Simbolismo literário
brasileiro), cuja progressão antitética suprime o período simbolista e o fluxo
temporal, esboça um paralelo que aproxima os episódios acima recortados.
74
Para Genette, 1979:143, este tipo de fenômeno registra dois momentos ao
mesmo tempo, e disto resulta quase sempre em “identificá-los e confundi-los:
essa estranha equação é a lei própria do iterativo”. UHSP traz muitos
segmentos sintéticos ou iterativos com aqueles singulativos, alternadamente.
Oswald de Andrade em UHSP explora na narrativa os elementos
temporais de ordem, duração e frequência, inventando condensações
temporais que oscilam entre a invocação do real, do ‘vivido’, com aquelas
reminiscências que dão, às suas memórias e confissões, o caráter ficcional.
Assim, interpola segmentos singulativos e iterativos de maneira que o
anacronismo resulta em um jogo literário entre a sua própria existência e a
invenção, através da recordação, de outro eu que se manifesta através de
Miramar.
O leitor consegue visualizar claramente as instâncias temporais
interpostas pelo autor paulistano, começadas pela revelação de fatos
acontecidos em sua vida e intensificadas com a auto-devoração que faz
quando se ‘esquece’ de todo o passado pueril vivido e, na adolescência,
rememora por meio de Miramar toda a sua juventude. Esse caminho ou
percurso temporal pode ser inicialmente aclarado pela teoria genettiana. Cabe
agora entrecruzar a leitura com o apoio dos teóricos que tratam de literatura
dita confessional.
2.2 Em Diálogo: Genette e os Teóricos da Confissão
É no tempo, no tempo que é o de um determinado grupo queele procura encontrar ou reconstituir a lembrança, e é no tempoque se apóia. (Halbwachs, 2006:146)
Teorias que tratam da escrita confessional, em diálogo com a de
Genette, tem por intuito observar, compreender e expor criticamente a
correlação entre o trato do tempo narrativo e o jogo paradoxal entre discurso
verídico e obra de arte memorialista e confessional. Tato que permeia a obra
UHSP, e que está implícito em toda escritura sob a égide da memória,
sobretudo em autobiografias, memórias e confissões configuradoras da
literatura íntima.
75
Começamos fazendo alusão à indagação de Philippe Lejeune, realizada
quando de seus estudos sobre a ordem do relato em Les Mots (1963), de Jean
Paul Sartre: “¿Qué orden seguir para contar la vida de uno?” Esta pergunta,
embora elaborada de outra maneira, consta também das investigações de
Genette sobre À la Recherche Du Temps Perdu (1955), de Marcel Proust.
Ambos evidenciam haver duas ordens aplicáveis à análise temporal do
discurso narrativo, diferenciando-se, entretanto, as nomenclaturas que um e
outro usam. De um lado, Genette delimita os conceitos intitulando-os de ordem
temporal (diegética ou histórica) e ordem pseudo temporal (ou da narrativa).
Lejeune, por outro, denomina-os de tempo cronológico e de tempo dialético ou
de sentido.
Em comum ambos abordam as relações entre tempo da história e tempo
da narrativa e a possibilidade de inversão ou mesmo subversão de tais ordens,
como explicitam:
¿Y no es perfectamente posible que un texto, una vez que se refiere en
última instancia al orden cronológico de la biografía clásica, sea construido
siguiendo otro orden? (Lejeune, 1994:196.) Ao mesmo tempo constituem
sequências de imagens, logo, exigindo uma leitura sucessiva e diacrônica,
igualmente se prestam, e, mesmo, “convidam a uma espécie de olhar global e
sincrônico ou, pelo menos, um olhar cujo percurso não é já comandado pela
sucessão de imagens”. (Genette, 1979: 32)
Narrar, na ótica de Olmi, 2006: 31, serve justamente para construir a
realidade. Em Memórias e Memórias, essa crítica explana sobre o crescente
interesse pela autobiografia, sendo que o resultado revitaliza as literaturas
consideradas marginais ou periféricas, já que problematizar a questão do
gênero é;
Passível de uma ampla abordagem, literária e feminista, social epolítica, cognitiva e psicológica, histórica e filosófica, com o intuito deaprofundar esses dualismos, buscando a interpretação do fato autobiográficomuito além da questão do gênero. (Olmi, 2006:10)
Em busca de aclarações, percorremos caminhos já trilhados pelo teórico
Halbwachs, registrados em A memória coletiva (2006), sobretudo na busca de
relação entre dita memória e o tempo, anteriormente explanado, e a
76
contraposição entre o individual e o coletivo memorialístico, com vistas a
compreender a importância das narrativas singulativas e as narrativas
iterativas, constantes de UHSP. De que maneira podem-se relacionar tais
aspectos temporais com o jogo da (re)memoração? Ademais, amparo a
investigação deste capítulo em Narcisos de Tinta (1995), de Anna Caballé, por
supor que as indagações acima podem ser elucidadas através do
entendimento da oposição entre memória e antimemória, consolidada através
de invenções, silêncios e mascaramentos, segundo esta autora.
Principiamos com citação de Olmi, 2006:31, sobre os estudos de Bruner
que “examina os atos mentais que se inscrevem na criação imaginativa de
mundos possíveis”. Para Bruner,
O pensamento narrativo, isto é, aquele pensamento queconstrói infinitos mundos possíveis com a linguagem, com asimagens, com as invenções e, sobretudo, com a memóriaautobiográfica, é a essência de nossa própria natureza. (In:Olmi, 2006:31)
Viver é estar dentro de uma constante narrativa, porque viver é história e
“nossas vidas estão incessantemente entrelaçadas com outras narrativas”, no
dizer de Olmi, 2006:32, e tal qual se coloca, o ato de narrar representa “outro
modo de ser e de pensar” que permite nova maturidade, nova perspectiva de
visão da relação consigo mesmo e com os outros, principalmente quando
representado
Pela poesia, pela autobiografia, pelas confissões, cartas ediários, ou pelo romance de formação, gêneros que se pautampelo exercício da memória realizado por campos diversos.(Olmi, 2006:35)
Nesse sentido, UHSP – ainda que pareça ser a intenção primeira de seu
autor-, torna-se um exercício da memória realizado desde o ponto de vista da
interação entre memória e história, entre memória como fato pessoal e
memória ligada às implicações sociais, sendo esta última característica
primordial da escritura íntima, pois retrata o pertencimento que liga o ser ao
mundo social. Para Olmi, 2006:36:
77
Recordar é, ao mesmo tempo, uma das formas maisimportantes com as quais declaramos nossa proximidadeafetiva nas relações íntimas com familiares e amigos, mastambém nas cerimônias públicas nas quais consolidamos afidelidade aos nossos grupos sociais. O que está em jogo,portanto, não é somente a compreensão do passado, mas,sobretudo, a interpretação do presente e da maneira pela qualnossa vivencia pessoal se insere na história da coletividade àqual pertencemos.
Anteriormente evidenciamos que muitos segmentos de UHSP foram
dedicados à narrativa das relações íntimas de Oswald de Andrade. Mas,
sobretudo, o trato da matéria literária, os labores jornalísticos e o contato com
diversas áreas artísticas como o circo, a dança, o teatro e a música, assim
como as impressões sobre a religião católica foram uma constante dentro
daquela obra. Nela, durante a narrativa primeira, quando ele se confessa
debilitado fisicamente, temos o presente vivenciado que lhe permite uma
revisitação do passado, factual ou não.
Entretanto, há que se ter em mente que Andrade é um escritor e como
tal se nos apresenta, de maneira que seria ingenuidade pensar que UHSP foi
escrita no correr livre das lembranças. Contrariamente, ele realiza uma
“epifania” - termo utilizado para explicar que:
Entre memórias e texto escrito há uma enorme ruptura, porqueesses escritores utilizaram sua auto-representação parasolidificar o passado, mas também para criar um presentesignificativo e conseguir um novo sentido de verdade, umaverdade que só o agora, o presente da escritura, foi capaz detrazer à tona, numa revelação que tem sabor de “epifania”.(Olmi, 2006:37)
Dito de outra maneira, UHSP constitui o espaço utilizado para registrar a
concepção oswaldiana sobre literatura íntima, algo que se lhe apresenta como
memória em transformação, já que lembrar e esquecer imbricam naquilo que,
para Roncato e Zucco (In: Olmi, 2006:38), resulta em organizar os eventos da
memória por meio da estabilidade e da mudança. A estabilidade na narrativa
confessional está na constância do pensamento antropofágico que lhe foi caro
e que permeou todo trabalho literário que produziu no passado (suas diversas
obras) e no presente (da escritura das memórias).
78
A mudança, contudo, é mais profunda, pois nela se insere a proposta de
ruptura com as convenções canônicas da literatura do eu vigente no Brasil,
diferenciando a escritura memorialista existente no passado daquela que
Oswald de Andrade quer fazer presente no cenário literário brasileiro.
Mnemósine, a deusa grega da memória e mãe das Musas, é evocada
por ele para que possa difundir conhecimentos essenciais, pois através da
revisitação do passado transmite valores perenes, não apenas como
comprovação de que soube armazenar dados, mas, principalmente, como
veiculação dos artifícios da memória, por meio metafórico (de associação por
semelhança ou diferença) e por meio metonímico (de associação por
contigüidade). A memória, nos dizeres de Olmi, 2006:30:
É a única que pode religar-nos a um passado ao qualpertencemos e do qual derivam nossas atitudes, nossascrenças e descrenças, nossos mitos, nossa capacidade derecriar mundos possíveis nos quais já habitamos no passado, enossa capacidade de narrar.
Em UHSP, como mencionamos, Andrade relembra o passado como se o
revivesse em fragmentos, o que implica dizer que reviver é tornar-se
novamente presente nos meios sociais, e disto resulta que as lembranças
nunca seriam individuais, senão um espaço comum, ainda que se trate de
eventos individuais, pois segundo Halbwachs, 2006:32, “temos de trazer uma
espécie de semente da rememoração a este conjunto de testemunhos
exteriores a nós para que ele vire uma consistente massa de lembranças”.
Para Halbwachs a memória individual, diante da memória coletiva, não
chega a ser uma condição necessária e suficiente da recordação e do
reconhecimento da lembrança, pois se esquecemos um episódio do passado,
isso significa que as pessoas que dele participaram também foram esquecidas,
como se não fizéramos mais “parte do grupo na memória do qual ela se
mantinha”, de maneira que
Para que a nossa memória se aproveite da memória dosoutros, não basta que estes nos apresentem seustestemunhos: também é preciso que ela não tenha deixado deconcordar com as memórias deles e que existam muitos pontosde contato entre uma e outras para que a lembrança que nosfazem recordar venha a ser reconstruída sobre uma basecomum. (Halbwachs, 2006:39)
79
Em UHSP isto se dá quando o autor se apropria da memória de
Miramar, tornando-se ele o próprio João, ou vice-versa, pois o ponto de contato
entre ambos está em que Miramar, para ser criado pelo autor, devorou a
história de vida de Andrade, fazendo-a sua. Por sua vez, nestas memórias e
confissões, o autor re-devora essa mesma história que foi dada à personagem
das Memórias Sentimentais.
A base comum entre os dois se solidifica nas relações amorosas, nas
vivências dos meios artísticos, sobretudo daqueles literários e na renovação,
através da invenção e da inversão, do fazer literário memorialístico. Halbwachs,
2006:39, defende que isto somente é possível “se tiverem feito parte e
continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo” ao
qual acrescentaríamos: de um mesmo corpo.
É coletiva a memória de UHSP que evoca sentimentos e pensamentos
originados dos meios e circunstâncias sociais definidos, no dizer de
Halbwachs, 2006:42, que salienta, por outro lado:
Talvez seja possível admitir que um número enorme delembranças reapareça porque os outros nos fazem recordá-las;também se há de convir que, mesmo não estando esses outrosmaterialmente presentes, se pode falar de memória coletivaquando evocamos um fato que tivesse um lugar na vida denosso grupo e que víamos, que vemos ainda agora nomomento em que o recordamos, do ponto de vista dessegrupo. Temos o direito de pedir que este segundo aspecto sejaadmitido, pois este tipo de atitude mental só existe em alguémque faça ou tenha feito parte de um grupo e porque, pelomenos à distancia, essa pessoa ainda recebe sua influencia.
Miramar, então, torna-se simbolicamente representante de toda
influência modernista exercida sobre Andrade. Não somente ele. Percebemos
outras ‘devorações’, principalmente em relação aos personagens Ferrignac, ou
Ignácio da Costa Ferreira, e Pedro Rodrigues de Almeida que em vida foram
grandes amigos e partícipes do movimento modernista junto com Oswald de
Andrade. Em UHSP estes dois escritores falam coisas que parecem ter saído
da boca do nosso escritor. É como se este tivera absorvido seus sentimentos e
pensamentos. Algo a ser melhor detalhado no capítulo seguinte.
80
O diário coletivo escrito por eles, Perfeito cozinheiro das almas deste
mundo, foi inserido nas memórias e confissões oswaldianas como veículo
dessa expressividade antropofágica. Ferrignac, também alcunhado Costignac e
Ventania, foi cúmplice e companheiro de Andrade nos momentos mais difíceis.
Através dele, insere em suas confissões muito de seu próprio sarcasmo e
ironia, como em:
Ferrignac escreve: “Minueto de Bocherini. Como rola triste avida no covil de Miramar! Encontrei discos novos, indícios muivivos de grossas transações de terras. Cerqueira César, aSion, a Meca, as terras trigueiras de Canaã de todos nós!”(Andrade, 2002:166)
Boccherini (esta é a grafia correta, segundo Koogan & Houaiss,
1971:1011) é um compositor italiano que compôs, entre sonatas e sinfonias,
alguns minuetos que no século XVII enchiam os salões com danças compostas
de evoluções e reverencias. A metáfora de Ferrignac anuncia que o ritmo da
vida de Miramar, ou de Andrade, começa a complicar-se ante as exigências da
avó de Landa (a amante), as exigências do pai e de Kamiá - a esposa - e do
prenúncio da derrocada financeira dos Andrade, obrigados a vender os
terrenos que possuíam na Vila Cerqueira César, em São Paulo.
Mais ainda: tece ironia à terra prometida Canaã (1902), obra literária de
Graça Aranha, onde as personagens Milkau e Lentz travam longo debate
acerca da terra que elegeram para segunda pátria, segundo Moisés, 1981:325.
Todo o trecho acima recortado contém marcas da escritura literária do próprio
Oswald de Andrade que conhece a saga de seus avós paterno e materno,
latifundiários do interior brasileiro. Ademais, a Vila Cerqueira César foi último
patrimônio vendido pelo seu pai, quando das dificuldades financeiras da
família.
Através de Ferrignac ele começa a representar a sua dança da vida:
“Ainda Ferrignac: “’Momento Musical de Schubert”. (Andrade, 2002:166).
Compositor austríaco de inspiração espontânea e profunda, passa a simbolizar
a densidade daquele momento de dificuldades financeiras da vida de Andrade.
Líricas são as palavras com as quais ele se despede do amigo Ignácio
da Costa Ferreira. Registramos abaixo duas entre essas passagens poéticas:
81
Trecho 1:Ao cair da última noite, envolvido na força do idílio, Costignacesqueceu-se ao piano em cantares de velha alma Coimbra.Obrigado, Costignac, murmurou recolhidamente Miramar. Tu,como Tijucópolis, cumpriste o teu destino na minha vidasensacional! [...[ De ti, Costignac, que me deste vigílias deassassinato entre braços adorados, levo a melhor saudade.(Andrade, 2002:185)
Trecho 2:E veio a madrugada da partida. E pela grande largura sinuosados campos mal plantados, o céu idílico, o sol idílico, a vidaidílica! Estamos no fim do Perfeito cozinheiro das almas destemundo. (Andrade, 2002:185)
Observamos que a partida do amigo, acima poetizada, prenuncia o
acabamento da inserção do diário da garçonnière em UHSP, como se todas as
homenagens rendidas aos grandes personagens fossem se despedindo dos
mesmos. Assim, Pedro Rodrigues de Almeida, outra personagem ‘devorada’
pelas memórias, por outro lado, é a voz de Andrade anunciando o seu próprio
fazer literário, exercendo verdadeira “matinada” na imaginação do leitor, como
vemos no segundo trecho abaixo.
No trecho 1, a descrição da figura de Almeida chega a confundir-nos
como se ali houvesse muito da personalidade de Andrade. Vitalidade em um
académicien, um curioso contraste forma o seu perfil, segundo o autor:
Trecho 1:Era o oposto do marginal, comunicativo e sedutor, semnenhuma marca de talento agreste ou solitário, antesescrevendo o médio do bom gosto, cultuando atitudes católicase tradicionalistas, relacionadíssimo em seu meio, tudo indicavaa facilidade de altos postos para suas razoabilíssimaspretensões. Nada disso, no entanto, aconteceu. (Andrade,2002: 162)
Trecho 2:
Pedro Rodrigues de Almeida escreve do começo ao fim dodiário: “Muito de arte entrará nestes temperos, arte e paradoxoque fraternalmente se misturarão para formar, no ambientecolorido e musical deste retiro, o cardápio perfeito para obanquete da vida”. (Andrade, 2002:162 – grifo nosso)
82
Hiperbólico o sentido dado por escreve do começo ao fim do diário;
também representativo da iteratividade temporal desejada por Andrade, uma
extensão metafórica dos temperos artísticos bem mexidos e retemperados sob
a ótica oswaldiana. Tais temperos podem ser interpretados pela coletividade da
escritura que registra formas diversas de ver o mundo. Sendo o Diário um feito
coletivo, resultam paradoxais os assuntos ali tratados, bem como o é sua
inserção dentro das memórias e confissões.
Polifônica, plurifacética, polissêmica. UHSP está confeccionada em
quadros oscilantes entre o singular e o repetitivo, entre o individual e o coletivo.
Disto se pode aferir que, uma vez mais, a ótica escolhida é multidimensional,
algo ímpar dentro dos registros das memórias literárias escritas no Brasil posto
que o modelo então vigente à época enfocou tão somente o desejo de
perpetuar, através de uma obra autobiográfica, a história de vida de
determinado autor.
Se, como diz Halbwachs, 2006:42, “não há lembranças que reaparecem
sem que de alguma forma seja possível relacioná-las a um grupo” em UHSP
tais lembranças emergem da vivência no seio do grupo modernista e acabam
sendo como de autoria de Oswald de Andrade. Através de Charles Blondel
amparamos a assertiva anterior, pois este adverte que:
Para que não confundíssemos a reconstituição do nossopróprio passado com a que possamos fazer do passado denosso vizinho, para que empírica, lógica e socialmente essepassado nos pareça identificar-se com nosso passado real, épreciso que pelo menos em algumas de suas partes exista algoalém de uma reconstituição feita com matérias tomadas deempréstimo. (Revue Philosophique, 1925, p.296. In:Halbwachs, 2006:43)
Andrade ao reconstruir a imagem dos amigos Ferrignac e Pedro não
evitou o resíduo emocional das lembranças que manteve, mas se utilizou
principalmente da técnica literária antropofágica para revisitar em deglutição a
presença e a importância dos mesmos em sua vida.
De igual trato, embora mais complexas, as passagens sobre a infância
delineiam um coletivo representativo dos costumes e comportamentos sociais
da São Paulo finissecular. A memória da sua primeira infância (entre os anos
83
de 1890 e 1900) foi reinventada. O autor-narrador diz que se lembra da
sensação físico sexual da mais tenra idade: “[...] senti um prazer estranho que
vinha das virilhas. Que idade teria? Três ou quatro anos no máximo” (Andrade,
2002:37) Essa reminiscência prenuncia que ao largo da obra será iterativa a
presença da virilidade oswaldiana, assim como o jogo relacional entre mãe e
filho, ligados aos tabus impostos pela religião adotada pela sua família.
“Não nos lembramos de nossa primeira infância porque nossas
impressões não se ligam a nenhuma base enquanto ainda não nos tornamos
um ser social”, diz Halbwachs, 2006:43. Assim posto, as recordações da
infância em UHSP são imagens situadas no quadro de referências da família.
“A família é o grupo do qual a criança participa mais intimamente nessa época
de sua vida e está sempre à sua volta”, endossa Halbwachs, 2006:45, e a
constante presença da mãe de em sua vida serviu-lhe de subtítulo, não ao
acaso, à obra: Sob as ordens de mamãe.
Alegoricamente é como se todo o universo feminino estivesse
representado na figura de dona Inês Henriqueta de Souza Andrade, essa
amazonense que introduziu o filho na cultura popular do Norte do Brasil e que o
esperava nas noites de vigília enquanto sua juventude lhe levava a mil e uma
peripécias:
Minha mãe trazia do Norte o comunicativo, o animoso e afestividade que faziam juntar em casa e nas romarias todo uminexpressivo séquito feudal, incapaz, habituado e vivido nafrieza paulista, de fazer ecoar aquele coração amazônico [...]Era de Pernambuco, de Recife mesmo, que mamãe trazia seuscostumes festivos [...] recordava-se muito bem dessa época emesmo se lembrava do longínquo Amazonas, onde nascera nopequeno porto de Óbidos. Aí, ela, que trazia no sangue oaventurismo da estirpe portuguesa, aprendera a nadar criançanas águas do Amazonas. Contava preciosas histórias em queaparecia mergulhando sob os grandes barcos encostados,tendo, certa vez, topado na margem com a figura severa dopai, que fora avisado. (Andrade, 2002:48)
Dela - Dona Inês – concordamos que Oswald de Andrade herdou “o
comunicativo, o animoso e a festividade” que desenharam seu perfil social.
Mas, voltando às memórias da infância, reafirmamos que são as imagens
ficadas que se destacam mais do que a presença do ambiente doméstico. Por
84
que, indagamos, teria o autor conservada a memória íntima de suas primeiras
sensações sexuais, se delas não participaram os familiares? Justamente nesse
tipo de conservação reside a explicação para o afloramento dessas memórias,
já que “não se pode ver como um contexto tão geral como a família pudesse
reproduzir um fato neste particular aspecto”. (Halbwachs, 2006:46)
Muitos dos sentimentos infantis evocados na obra se assemelham a um
paradoxo entre uma lembrança de criança e uma lembrança de adulto. No
trecho em que descreve as sensações físicas, no trecho acima explicitado, são
contrapostas as vivencias do individual e do coletivo. Nesse momento, Andrade
é a criança que vê o mundo com olhos adultos. Educado dentro de tabus
religiosos tais sensações servem como meio de liberdade, de criação do seu
próprio mundo contraposto a toda autoridade familiar.
Não apoiada em uma memória coletiva, esse singulativo tempo
simboliza que aquela imagem existe apenas nas reminiscências de Andrade,
como se através dela pudesse se auto-explicar já que toda a sua intensa vida
sexual se entrecruza com esse momento iniciático da infância. Revisitar o
passado para compreender o presente, seria o caso. Diz Halbwachs, sobre tal
possibilidade, que:
Os pontos em que essas influências se encontram e se cruzamtalvez correspondam, no quadro de seu passado, a imagensmais distintas, porque um objeto que iluminamos dos doislados e com duas luzes nos desvenda mais detalhes e seimpõe mais à nossa atenção. (Halbswachs, 2006:49)
Assim, o leit motiv seria o matriarcado de Pindorama, representado pela
figura materna como também pela presença de outras mulheres. Mas, esses
resíduos da memória viril oswaldiana constituem um segundo plano da sua
narrativa temporal, já que está toda imbricada aos eventos e as experiências
que dizem respeito ao coletivo, simbolizado pela figura da mãe que bifurca o
tempo narrativo em um antes e um depois da sua existência.
Através das percepções advindas da relação com a mãe é que Oswald
de Andrade evoca o seu passado, intentando encontrar as lembranças,
percorrendo ou refazendo o caminho já trilhado. A lembrança viva de sua mãe
traz de volta muitas percepções resultantes da posição ocupada por ela no
85
espaço da sua vida. Há uma idealização da figura materna - modelo do Século
XIX que é pródigo na exaltação-, explicada assim por Caballé:
Se diría que la afirmación de la identidad del autobiógrafo pasapor la necesidad de exaltar sus orígenes que, obviamente,reposan en la figura de la madre, impermeable a los vaivenespsicológicos e intelectuales propios de toda evolución personal.(Caballé, 1995:100)
A imagem da mãe se liga assim a outras que com ela formam conjunto,
ou quadro da infância e da juventude, ligados pelos pensamentos e
sentimentos que se fizeram constantes ao escritor. Assim, Miramar também se
torna um membro desse grupo, já que é uma espécie de espelho personalístico
de Andrade. Revisitar a sua imagem significa “aproximar, reunir, fundir com as
outras as inúmeras lembranças parciais, incompletas e esquemáticas que
guardamos”. (Halbwachs, 2006:56)
A influência do movimento modernista nas memórias de UHSP é muito
intensa ainda em sua velhice, como se não houvesse distância entre o antes e
o depois, o que fortalece o compromisso literário deste escritor para com a sua
visão antropofágica da literatura. Essa postura ou estado narrativo, reendossa
todo esforço exercido anteriormente pelo escritor em defesa de uma liberdade
literária. Para Halbwachs, 2006:58:
Um estado se torna então uma espécie de ponto deperspectiva sobre todos os outros, como se deles e somentedeles extraísse toda a sua substancia. Será que agora amemória evoca uma ou muitas partes desta série e essesestados reaparecem apenas por serem evocados por outrosestados que foram e continuaram ligados a eles em nossoespírito? Somente a ligação interna ou subjetiva, como dizemos filósofos, interviria nesse momento.
Dar a UHSP uma estética antropofágica, na qual personagens são
devorados por outros e, ainda, onde o subgênero confessional “autobiografia” é
devorado pelo subgênero “diário”, é seguir a intuição sensível, cuja definição se
encontra em Halbwachs, 2006:58:
Quando muitas correntes sociais se cruzam e se chocam emnossa consciência, surgem esses estados que chamamos deintuições sensíveis e que tomam a forma de estados individuaisporque não estão ligados inteiramente a um e a outro
86
ambiente, e então os relacionamos a nós mesmos [...] toda anossa atenção se concentra nos estados em si, no contrasteentre sua vivacidade e a banalidade de impressões oupensamentos anteriores, na riqueza que eles subitamentedesvendam em nosso eu, porque representam umacombinação original de elementos de origens variadas.
Essa combinação advém, todavia, do encontro com correntes de
realidade objetiva, como se ao estetizar a narrativa de UHSP com miscelânea
de outras estéticas confessionais fora um fato objetivo, de intermitentes
associações entre o passado e o presente. Essa intuição sensível, em verdade,
repousa em uma realidade virtual, no passado, e é evocada através das
influências exteriores presentes, sendo estas as mais relevantes para se
compreender a narrativa das memórias, onde Oswald de Andrade insiste em
fazer sempre presente a força exercida pela antropofagia literária em sua vida.
Ocorre com ele um fenômeno memorialístico que em Halbwachs, 2006:59, é
assim explicado:
Em alguma parte de nós mesmos permanecemos em contatocom as forças que a produziram, ainda que estas já nãoestejam materialmente presentes e sentimos que nos seriapossível, fazendo o necessário esforço, remontando osuficiente nessa ou naquela corrente de pensamento coletivoem que ainda estamos envolvidos.
A intuição sensível encontra-se no presente e só pode ser recriada por
uma ordem de sucessão de fatos e fenômenos naturais, ainda que esta ordem
seja transgredida com a inserção interposta de vários estados precedentes ou
não, pois estão em si ligados e dão uma lógica espacial onde se apóia a
memória das percepções cuja coesão se explica pela coerência das próprias
lembranças evocadas, “como devem ser os fenômenos (objetivos) fora de nós”,
diz Halbwachs, 2006:61.
As lembranças marcadoras das relações com a religião, por exemplo,
são narradas de maneira que o leitor, presente ou conhecedor sobre os
costumes e tabus daquela época, perceba a narrativa, mesmo originária da
perspectiva do autor-narrador, ou da sua unidade, as memórias ali contidas
como coletivas. A presença narrativa de santos, procissões, quermesses e
87
rezas ao dormir, tornam-se reminiscências pertencentes a muitos daqueles que
viveram naquele meio social, naquela época.
Assim, através da memória individual, Oswald de Andrade registra sua
forma de conceber a memória coletiva, segundo o lugar por ele ocupado no
grupo modernista e no social; e, ainda, segundo os câmbios sofridos conforme
os ambientes por ele vivenciados. São as lembranças pessoais aí resultantes
da fusão de muitos elementos diversificados e isolados onde, segundo Olmi, a
unidade se transforma em multiplicidade.
Entretanto, em que implica falar sobre memória coletiva neste trabalho?
Qual a relação entre ela e o tempo? Na sessão anterior deste capítulo, o
estudo da narrativa temporal foi relacionado ao estudo da ordem, da duração e
da freqüência do tempo narrativo em contraste com aquele tempo diegético.
Toda divisão do tempo resulta de convenções e costumes, segundo
Halbwachs, 2006:113, “porque expressam a ordem, inevitável também,
segundo a qual se sucedem as diversas fases da vida social”.
Para este autor o tempo é dividido da mesma maneira para todos os
mesmos da sociedade, sendo que muitas vezes as pessoas se opõem a essa
homogeneidade, manifestando uma oposição entre um tempo social e aquele
de consciência individual, como explicitado abaixo:
É próprio que as durações individuais tenham um conteúdodiferente, embora a sucessão temporal de seus estados sejamais ou menos rápida, de uma para outra e também, em cadauma, em períodos diferentes. (Halbwachs, 2006:117)
As mudanças e movimentos exteriores permitem que se façam as
divisões do tempo, servindo eles como pontos de referência, dos dizeres de
Halbwachs, aos que sempre estamos retornando periodicamente, através de
percepções e pensamentos que estabelecem certa relação de simultaneidade
para com os outros, impondo-se tais divisões temporais desde fora. Em UHSP
o retorno a pontos de referência comuns, por exemplo, ao grupo antropofágico,
demonstra que nele seus participantes tiveram atitudes ‘idênticas’ diante do
mesmo movimento, pois todos lutavam por uma nova concepção literária para
o Brasil.
E, Oswald de Andrade, ao revisitar esses pontos evidencia que são
descontínuos, porque comum a todos, liga todas as durações individuais uma à
88
outra. Assim, as percepções e sentimentos pertencem a um todo sócio-literário,
como se tempo universal, que, para Halbwachs se resumiria em sequência
descontínua de momentos. Ao destacar a estética modernista como meio de
escritura de suas memórias e confissões, implicitamente destaca também que
há um antes e um depois desse ponto de referência, recortando numa
sequência de duração temporal longa (o fazer literário brasileiro) o específico
antropofagismo por ele idealizado.
Inserindo o tempo de outros narradores-personagens em UHSP, o
espaço criado torna-se aquele preenchido por muitos pensamentos individuais,
como se todos esses personagens tomassem consciência simultaneamente da
relação descontínua que os une. O que faz Andrade é (re) unir em dois
momentos – o presente e o passado -, simultaneidades no ponto da linha
temporal marcado pelo contraste entre o antes e o depois do Modernismo
brasileiro.
O jogo utilizado trata de contrastar a consciência individual daquela
coletiva, numa comparação entre o registro existente do fazer confessional já
existente no Brasil, no passado, e fazendo emergir ou aparecer essa nova
estética proposta por Oswald de Andrade para a escritura literária do gênero
memórias e confissões.
Halbwachs, 2006:119, explicita que ao:
Sentir o que é o pensamento interior e pessoal, de início somoslevados a deixar de lado e esquecer tudo o que lembra oespaço e os objetos exteriores [...] A memória (entendida nestesentido) não tem poder sobre os estados passados e não osdevolve a nós em sua realidade de outra, porque não osconfunde entre si nem com outros mais antigos ou maisrecentes, ou seja: ela se baseia nas diferenças.
Em UHSP percebemos formas pelas quais foram realizadas distinções
entre tais estados: separados, portanto, diferentes. Até a página 154 o autor
explora a sua consciência individual, narrando episódios que se relacionam
com sua vida familiar, os primeiros anos escolares, os primeiros amigos, entre
outros, utilizando-se do convencionalismo estético da autobiografia existente no
meio literário brasileiro. Até aí, comparando sua escritura com Memórias
(2004), escrita entre 1890 e 1899 por Taunay, temos que Andrade explora o
89
mesmo viés clássico de memorizar sua vida passada, feita pela narrativa em
primeira pessoa que converge autor, narrador e personagem na mesma figura.
Entretanto, a partir da página supracitada, outra narrativa toma conta da
obra. Saindo da homogeneidade existente dentro do gênero confessional,
nosso autor adentra em estados de consciência que não mais somente o seu
criando, através da abstração espaço e tempo comuns, uma descontinuidade
narrativa.
Diríamos então que o espaço narrativo de UHSP, até a página 154, é
homogêneo porque devora na íntegra a feitura literária vigente tornando-se
assim um processo semelhante e contínuo de consciência individual. No
tocante à segunda parte – do Diário, esta é ocupada por narradores-
personagens diferentes cujos pensamentos exacerbam a própria consciência
de cada um. Fenômeno que para Halbwachs, 2006:121:
Pode-se dizer que o que rompe a continuidade de minha vidaconsciente e individual, é a ação que sobre mim exerce, defora, uma outra consciência, que me impõe uma representaçãoem que está contida [...] Isto implica em que a qualquermomento sou capaz de me colocar diante de um objeto aomesmo tempo em meu ponto de vista e no de outro, e,representado para mim, pelo menos como possíveis, muitasconsciências, e a possibilidade de entrarem elas em relação,eu represente para mim também ma duração que lhes écomum.
A força advinda da presença de Miramar cria uma consciência coletiva
dentro daquela consciência individual de Andrade, o que não significa que essa
última tenha sido modificada, mas o que faz é lançar um olhar sob o ponto de
vista dele mesmo e de outros como Ferrignac, Pedro Almeida e Miss Cyclone,
como forma de representação de muitas consciências em relação dentro de
uma mesma duração temporal. É a percepção sensível saindo do circulo da
consciência individual para que se possa ver
O objeto estando ao mesmo tempo representado ou podendoser representado a qualquer momento em uma ou muitasconsciências. Isto pressupõe que já estivéssemosrepresentando uma “sociedade de consciências” [...] Se com asdurações individuais podemos reconstituir uma duração maisampla e impessoal em que estão contidas, é porque elasmesmas se destacam sobre o fundo de um tempo coletivo a
90
que tomam emprestada sua substância. (Halbwachs,2006:122-23)
Nessa segunda parte de UHSP há uma correspondência entre os
tempos familiar e do círculo de amizades de Andrade. Quanto mais próximo da
convivência familiar, maior a duração temporal das experiências dele; à medida
que o menino vai crescendo essa duração vai se prolongando, tornando-se
mais esparsa, e essa consciência do grupo familiar passa a um segundo plano,
já que a convivência grupal ocupa a juventude. Para Halbwachs, 2006:138-39:
Há uma correspondência bastante exata entre todos essestempos, embora não possamos dizer que eles se adaptaramuns aos outros por uma convenção estabelecida entre osgrupos. De modo geral, todos dividem o tempo da mesmamaneira, porque todos herdaram a mesma tradição [...] Aquestão agora é saber se esses grupos estão realmenteseparados.
Quando Oswald de Andrade insiste, por exemplo, em narrar sobre o
poder exercido pela religião católica sobre a sociedade paulistana da época,
ainda que confesse sua resistência à devoção, observamos a interpenetração
ou contaminação advinda da convivência do meio religioso impregnante da
família, da escola ou dos grupos de amigos que também procediam de famílias
católicas.
Esse ponto de referência religioso, refutado pela teoria do “sentimento
órfico” pregada por ele, determina a época de sua duração, evidenciando que
suas confissões tecem ironias contra a influência do Catolicismo no meio
social, já que esse impunha as normas e tabus que deveriam ser acatados por
todos.
Para Halbwachs, qualquer delimitação de um ponto de referência é
arbitrária e resulta em um contato entre o antes e o depois que justifica os
motivos para separá-los. O grupo literário do Diário existente em UHSP é
apresentado como contracorrente libertária da autoridade religiosa imposta,
pois os personagens desse trecho se aproximam e se unem em uma
91
representação comum. Diversos trechos demonstram essa constatação, dentre
eles destacamos:
Indalécio me levou para a primeira crise religiosa que conheci.Me deu para ler A relíquia de Eça de Queirós e breve estavacomendo com ele bons e sangrentos bifes num restauranteitaliano, em plena Sexta-Feira Santa. Crise de catolicismo maisdo que de religião, pois, tendo da Igreja a pior idéia, nuncadeixei de manter em mim um profundo sentimento religioso, deque nunca tentei me libertar. A isso chamo eu hoje sentimentoórfico [...] A religião existe como sentimento inato que atravésdo tempo e do local toma essa ou aquela orientação, este ouaquele compromisso ideológico e confessional, podendotambém não assumir nenhum e transferir-se numa operaçãofreudiana. (Andrade, 2002: 85)
Antropofagicamente, Oswald de Andrade viabiliza pela narrativa uma
fusão entre duas formas de pensar a religião. Dessa devoração surge seu
sentimento órfico, ou a percepção de que se encontra em estado onde não
consegue desvincular-se totalmente dos preceitos recebidos – mantendo a fé –
sobretudo pela influência da devoção de sua mãe.
E, por outro lado, desacredita que os símbolos católicos (santos,
rosários, missas e etc.) sejam aqueles responsáveis pela manutenção dessa
fé, já que em suas convivências diárias experimentou momentos de decepção
ante os tabus e os comportamentos originários das figuras católicas, como
padres e professores, por exemplo. Em casos como este, diz Halbwachs, surge
uma nova consciência, cuja extensão e conteúdo já não serão os mesmos de
antes.
O tempo em si, ou seja, o contexto temporal em UHSP abrange
momentos que aparecem e desaparecem segundo o pensamento propriamente
dito ou a memória externada pela narrativa, e sua origem reside no
pensamento de diversos grupos, colocado em primeiro plano. É através da
memória coletiva que o autor narra sua subsistência, existência, e toma
consciência de si mesmo, retrocedendo no fluxo do tempo e repassando
ininterruptamente os vestígios que deixou de si em si mesmo, imobilizando o
tempo à sua maneira.
Através da distância do tempo transcorrido, Andrade lança um olhar
sobre as linhas centrais de sua trama vital, começando por recompor sua
92
memória às origens remotas, narrando inclusive sobre as lutas cívicas pela
moralidade e pelas causas liberais travadas pelo seu avô materno.
Anna Caballé, 1995:70, retrata o gênero memorialista como se fora um
jogo de duplos espelhos onde alguien quiere verse a sí mismo. Revisitar o
passado seria, então, uma maneira de se ver em outro momento qualquer da
vida passada e, pelo reflexo perceber-se no instante presente também. Sendo
reflexo isto implica dizer que a memória não é homogênea e totalizadora, de
maneira que as recordações não trazem de volta a totalidade do ser vivido.
É, então, por meio dos traços ou rastros deixados em outros que
podemos reconstruir o que fomos, diz Caballé. Uma ficção de voz, afirma a
autora espanhola, interpelada pelo autor e pela memória, tendo em vista que
El autobiógrafo se vuelve hacia ella (la voz), interpelándola,esto es, interpelando a quien interpela: de nuevo hallamos ladoble especularidad, una suerte de especularidad circular quepon de manifiesto la posibilidad de un ejercicio imposible.(Caballé, 1995:87.)
Narcisos de Tinta dá exemplo de uma possibilidade interpeladora,
aquela existente na Autobiografía de Federico Sánchez (1977) de Jorge
Semprún. Nela, Semprún adota uma dupla personalidade voluntariamente
assumida: uma é o próprio Semprún e a outra é Federico, surgido ante a
ditadura do regime franquista. Vendo-os como protagonistas de uma mesma
obra, Caballé diz que esse tipo de recurso possibilita o distanciamento do
alterego. Tal recurso também pode ser observado na narrativa de UHSP: o
autor-narrador Oswald de Andrade interpela a Miramar que por sua vez
interpela a Andrade.
Situando Miramar no passado da vida literária de Oswald de Andrade e
este em seu presente narrativo, percebemos que a fusão entre ambos é uma
representação daquilo que viria a ser um futuro. Uma nova consciência,
conforme disse Halbwachs, cuja extensão e conteúdo não são os de antes. Ou,
citando Caballé, uma dilatação do presente em duas direções:
Hacia el pasado y hacia el futuro, llegando a modificarsustancialmente la visión que teníamos del primero o bien
93
repitiéndose con la misma intensidad y frescura en sussucesivas representaciones inmediatas, sobreponiéndose,incluso anulando percepciones posteriores. (Caballé, 1995:88)
Através da percepção de sentimentos e do propósito de relatar sua vida
singular, o autor extrai componentes comuns ao grupo com o qual conviveu.
Contrariamente à linhagem das memórias literárias existente no Brasil, que
mais se parece com um tratado ou modelo sobre a condição humana, Oswald
de Andrade vincula as idéias de várias outras pessoas em UHSP, tornando-se
difícil separar tal associação.
Alberto Cousté (In: Caballé, 1995:91) ao comentar sobre a autobiografia
escrita por Semprún, manifesta que “un escritor tiene derecho a hacer lo que le
dé la gana con su experiencia y su memoria” o que implica aceitar a liberdade
estética plantada. Para Caballé, 1995:92, se o escritor seguir um determinado
modelo, “¿Dónde reside la libertad del escritor? ¿Tal vez en el orden, en el
tratamiento de dichas figuras? ¿En su capacidad de subvertirlas? ¿Cabe hablar
de una evolución del género?”
Ainda em Narcisos de Tinta, temos comentários sobre os estudos
de Vercier que defende existir uma série de dados sempre constantes em toda
autobiografia, baseada em dados narrativos como: a infância, a primeira
escola, a religião, a família, entre outros. De fato, essa série - diz Caballé,
1995:96, foi seguida com rigorosa fidelidade nos relatos autobiográficos
escritos por literatos no século passado, “concediendo, por ejemplo, una gran
importancia al mundo de la lectura y el despertar de la vocación literaria”; isto
porque as informações pertinentes à vida ‘profissional’ de um autor parecem ter
grande relevância na narrativa autobiográfica convencional.
Assim como nesses relatos, em UHSP Andrade também se ocupa de
seguir tal série, na primeira parte da obra, como se de fato fora seguir o modelo
dado. Entretanto, ele subverte a concepção dada, principalmente através do
próprio título dado à obra: UHSP, enquanto título, sugere que o autor embute
em seu discurso uma contracorrente que achata dentro de uma continuidade o
tempo e a consciência individual.
Halbwachs, 2006:114, esclarece que ao homem é bastante comum a
acomodação às divisões do tempo, pois são tradicionais, já que “o tempo é
94
dividido da mesma maneira para todos os membros da sociedade”. Nesse
sentido, continua o autor, “A divisão do trabalho social arrasta o conjunto dos
homens num mesmo encadeamento mecânico das atividades. Quanto mais
avança, mais ela nos obriga a ser exatos.”
Ora, não existindo uma profissão o homem está desobrigado de moldar-
se nesse tempo exterior, ainda que se manifeste pela memória coletiva, porque
não mais se vê forçado “a considerar a vida e os acontecimentos que a
preenchem sob o aspecto da medida”. (Halbwachs, 2006:115) Assim, suas
memórias e confissões não se prendem à obrigação de retratar via
reminiscências tudo o que foi ou fez Oswald de Andrade. Isto seria um tédio,
igual àquele de trabalhar no mesmo lugar dia após dia:
Mais tarde seremos obrigados a regular nosso trabalho peloque já foi realizado, pelo qual temos responsabilidade e aomesmo tempo orgulho, devemos nos alinhar com os edifíciosvizinhos, levar em conta exigências e preferências dos quehabitarão a casa, o que nem sempre se consegue prever, e daíos contratempos, o tempo perdido, trabalho a desfazer erefazer. (Halbwachs, 2006:150)
Seguindo a direção contrária, o fundador da Revista de Antropofagia
(1928) faz drama e tragédia de sua própria vida. Expõe na narrativa o mundo
dos sentimentos, seus estados de ânimo e dificuldades, ainda que o faça pela
boca de Miramar ou de outros personagens. “Estou só e a vida vai custar a
reflorir. Estou só”, diz na última página de UHSP, revelando uma
permeabilidade do íntimo no mundo da aparência e dos convencionalismos, o
que diferencia sua escritura memorialista daquelas outras já existentes no
Brasil.
Mais ainda, em momento algum o autor-narrador se revela ingênuo, o
que seria outra característica da subversão da literatura íntima para Caballé.
Opostamente, Oswald de Andrade audaciosamente narra suas muitas
frustrações e medos, como no trecho abaixo, cujo solilóquio refere-se à
insegurança sentida ante o convite de Isadora Duncan para que ele a visitasse
à noite, no hotel, após o espetáculo:
Estou jogado de novo na rua mas, mais do que na rua, sinto-me dentro de um problema terrível. Como? Visitar uma mulherextraordinária a horas mortas num hotel, depois do espetáculo.Isso é o cúmulo da falta de educação, da falta de linha, da
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ausência de escrúpulos. Serei eu por acaso um valdevinos, umpersonagem fescenino de Paulo de Kock? Eu, aquele meninogordinho que saiu virgem das saias maternas aos vinte anos,sobrinho de tio Herculano e ex-redator do Diário Popular?Nunca, mas de modo algum terei a imoral coragem debeneficiar-me de um convite com certeza errado, parasurpreender no íntimo de tais desoras uma celebridadeinconfundível da cena mundial que se acha de passagem porminha cidade [...] O tabu majestático me dissolve. O Taborplástico me anula. Recolhi-me volutuosamente à dimensãonegativa do meu ser. O meu estado de humilde angústia diantedo gênio me faz esquecer a mulher. (Andrade, 2002:140 e151.)
Qual seria o ponto de contato entre o relato dessa história e a verdade?
Para Caballé é insolúvel a distinção entre ficção e autobiografia porque são
parentes e quase coetâneos. Inventar seria, então, uma ação de entremeio
nesse ponto de contato, já que para a autora,
La invención, aunque no lo parezca, es un arte memorativo quetrata de hacer presente algo que podía haber sucedido, quesucedió en la imaginación de quien escribe. (Caballé,1995:108)
Ao acionar as lembranças, todo autor se coloca em contato com o
processo inventivo. Caballé. 1995:108-9, defende entretanto que o processo de
criação de memórias e o de autobiografias é muito distinto, já que este último
enfoca aquela memória individual e toda literatura memorialista é coletiva, não
sendo a história de uma pessoa, nem dessa pessoa e as outras, mas a história
de uma pessoa em todas as outras.
Em suas memórias Oswald de Andrade, ao mesclar o estilo memorialista
com a ficção, cria um espaço antimemorialista, porque romanceia a
recordação, através da inserção da narrativa miramarina, não cristalizando tais
recordações dentro de sua única visão, mas apresentado versão de sua mais
exitosa personagem: João Miramar. Não mais o leitor se vê ante um escritor
preocupado em moldar convencionalmente as suas memórias, senão ante o
próprio Miramar.
A intenção narrativa, cuja mescla entre o convencional e o antropófago,
entre a estética tradicional e a modernista, entre autobiografia e diário, dá conta
da intenção de refutar qualquer apologia à memória como fonte suprema da
96
recordação, ou de escrito intimista. Bastante atual essa crítica subliminar
tecida no texto e contexto dado por UHSP.
Outro aspecto relativo à memória que merece ser abordado, diz respeito
à sua sacralização. Vivemos em um estado de constante exacerbação da
memória, seja através de lançamentos de inúmeros livros de autobiografias,
seja pela incessante inauguração de museus e casas “da memória” de um
povo, de uma cultura, de um país, seja enfim, a manifestação latente de que
‘devemos’ manter viva a memória viva de algo ou de alguém. Dessacralizar a
memória (o uso e o abuso do tempo) tem amparo nos estudos de Tzevtan
Todorov, intitulado justamente Los abusos de la memória, 2000:49:
En este fin de milenio, los europeos, y en particular losfranceses, están obsesionados por un nuevo culto, a lamemoria. Como si estuviesen embargados por la nostalgia deun pasado que se aleja inevitablemente, se entregan con fervora ritos de conjuración con la intención de conservarlo vivo.
Todorov defende que é necessária essa busca do passado, desde que
se tenha claro objetivo desejado já que, para este autor, mais importa uma
seleção de valores que a investigação da verdade, porque essa seleção
elucida os benefícios pretendidos através da utilização particular do passado.
Nesse sentido, endossa os estudos de Halbwachs dizendo que ‘ la
representación del pasado es constitutiva no solo de la identidad individual sino
también de la identidad colectiva’ (Todorov, 2000:51), mas que se deve
observar o imenso interesse pela homogeinização social, através da circulação
de informações, o que traria por conseqüências o culto à memória como
condição de destruição de identidades tradicionais e da necessidade de uma
identidade coletiva.
Utilizar recurso do passado para reivindicar pela primeira vez a
pertinência a um grupo é tido como útil, diz Todorov, quando vai numa
contracorrente. E UHSP se insere nesse âmbito de reivindicação de um novo
olhar sobre a escritura memorialista brasileira, fazendo-se, portanto, uma obra
inédita e contundente, assunto que trataremos no próximo capítulo.
“Esclarecimento” é a posição tomada por Oswald de Andrade ante os
escritos confessionais já existentes. Antes mesmo daquela busca tão somente
97
Assim, ninguém pode afirmar que são factuais as narrativas de UHSP, antes
nela reside uma visão confluente e irisada da memória coletiva, ou, em outras
palavras:
Los recuerdos no son de fiar, pero, en cambio, sí puede serlo elmodo en que dichos recuerdos acuden a nuestra imaginación,confundidos pues con pensamientos, ideas, sensaciones […]ligadas a otros recuerdos y otras sensaciones. (Caballé,1995:109)
Andrade não evoca Miramar, senão é o próprio Miramar que se faz
presente, assumindo a narrativa, como que dialogando com o autor já que é
parte dele e de sua história. Há um plurimorfismo narrativo em UHSP que
desemboca em Miramar sendo o alterego de Andrade. São, em verdade, dois
tempos memorialísticos narrados, completamente antitéticos: o idoso em
oposição ao jovem. Sobre o primeiro pesa todo princípio de autoridade familiar
ao passo que o segundo é regido pela liberdade expressiva.
Se aquele teve profunda ligação amorosa com sua mãe, este outro vive
a orfandade. Um é signo da morte e o outro da própria vida. A fusão, ou
devoração de um sobre o outro, resulta em significação de nova e melhor
humanidade, onde as identidades se completam pelas diferenças, pela
alteridade. Assim, conhecer-se a si mesmo depende exclusivamente dos
outros.
Para Caballé, desse processo resultam as ironias muito úteis à
composição dos livros de memórias. A memória não é uma estrutura mental
inerte e repetitiva que devolve imaculadas as impressões recebidas, diz a
autora. Disso resulta que muito de inventivo entra na sua constituição,
sobretudo pelo efeito que o tempo causa sobre as imagens, cambiando-as ou
desfigurando-as.
Oswald de Andrade, em UHSP, paradoxalmente, joga com a pretensão
da transparência referencial narrativa de sua infância (pertinente aos
segmentos da primeira parte da narrativa), via discurso aparentemente
verídico, mas também com a busca estética antropofágica que constitui sua
arte do “eu”.
98
À medida que a narrativa avança na cronologia do relato aumenta a
força da invenção de maneira que aquela transparência referencial vai cedendo
terreno à pura criação literária que lhe serve como desmascaramento, meio de
enfrentamento e de lembrança. Não se trata de um ser cindido em Andrade e
Miramar, mas de um ser conjunto, representativo da consciência coletiva.
Ainda segundo Caballé, 1995:120:
No todos los autobiógrafos encuentran la valentía para evocarlos aspectos más secretos de la existencia y siempre resultarámás sencillo hablar de la esfera pública que de la privada,retratar a los otros que retratarse uno mismo (aunque estoúltimo siempre se haga), descubrir una realidad ya constituida yajena que bucear en el laberinto del espacio interior.
Ao intitular o capítulo de A Devoração do Tempo, percebemos que
elaborar análise da narrativa temporal (ainda que pareça superficial)
possibilitaria observar e compreender o ziguezague traçado por Oswald de
Andrade, em UHSP, tendo esse movimento como próprio fruir da escrita
memorialista, fazendo contato mais intimista com as relações de ordem,
duração e frequência na narrativa, baseada nos estudos de Genette.
Com isso, vimos que as anacronias, acronias e anisocronias constituem
a estética oswaldiana às suas memórias e confissões, utilizadas não em um
segmento estanque de uma ordem histórica dos fatos de sua vida, mas,
contrariamente, seguindo um propósito discursivo de mascaramento do
implícito que reside no desejo de reafirmar sua defesa do movimento
modernista e antropofágico, como sempre o fez.
Nesse sentido, não bastaria deter nossa crítica interpretativa na
superficialidade do texto, buscando minúcias sobre as questões sintáticas e
lexicais. Nem tampouco de desviar o foco para o registro histórico ali contido.
Mais do que isso, buscamos trazer à tona a criticidade que acreditamos sempre
existir no fazer literário de Oswald de Andrade. De modo que percebemos
analepses e prolepses como estados de regularização do seu discurso.
Cabe mencionar a importância do ensaio Memória e Produção
Discursiva do Sentido, de Pierre Achard, porque ali encontramos
esclarecimentos sobre o que seria essa “regularização”. Para o autor francês é
99
na regularização que residem os implícitos, sob a forma de remissões,
retomadas e de efeitos de paráfrase:
O implícito trabalha então sobre a base de um imaginário que orepresenta como memorizado, enquanto cada discurso, aopressupô-lo vai fazer apelo a sua (re) construção, sob arestrição ‘no vazio’ de que eles respeitem as formas quepermitam sua inserção por paráfrase. (Achard. In: Nunes, 2007:13)
UHSP está repleta de regularizações, porque repleta de repetições e
remissões. São estas que amparam a regularização, através do
reconhecimento. Temos por exemplo o fato de repetir segmentos ou datas que
narram sua trajetória escolar e de vida acadêmica na Faculdade de Direito,
períodos de reprovações, desistências e reingressos que exacerbam força
antagônica entre o desejo individual de rebeldia e o desejo coletivo de
obediência, conflitantes em Oswald de Andrade.
Ainda em Achard (In: Nunes, 2007:16), qualquer jogo de força produz
um fechamento dado na retomada dos discursos e constitui uma questão
social. No exemplo acima mencionado, ele cria uma regularidade discursiva
que implicitamente demonstra sua criticidade à educação, sobretudo a
acadêmica que o decepcionou tanto. Andrade estudou muitas vezes em
escolas católicas e na faculdade sofreu forte trote acadêmico que – àquela
preparação anterior – não correspondia com o comportamento por ele
esperado dentro de uma instituição superior. Esse fenômeno é assim
explicado:
Se situarmos a memória do lado, não da repetição, mas daregularização, então ela se situará em uma oscilação entre ohistórico e o lingüístico, na sua suspensão em vista de um jogode força de fechamento que o ator social ou o analista vemexercer sobre discursos em circulação. (Achard. In: Nunes,2004: 16)
Mas a regularização vem da soma das repetições narrativas, neste caso.
Sendo a palavra sua unidade simbólica identificadora, elas acontecem por co-
ocorrência, ainda em Achard. Pensar que cada co-ocorrência leva sempre à
repetição é assentir que a narrativa é sempre linear. O que nos ensina que na
100
narrativa surgem sempre novas co-ocorrências, apresentando novos contextos
que constroem o sentido dessa unidade repetitiva. Assim, repetições de
contextos religiosos, políticos, festivos, artísticos, entre outros, no conjunto
revelam a criticidade oswaldiana. Não são apenas formas sintagmáticas que se
repetem, mas conteúdos narrativos também, regularizando o discurso contido
em UHSP como aquele antropofágico, de deglutição da percepção e do
pensamento do outro.
Ao utilizar a estética antropofágica na construção de suas memórias e
confissões, como aquela em que Andrade ironiza o molde educativo positivista,
provoca implicitamente o ruir de qualquer modelo canônico, principalmente
aquele do fazer autobiográfico brasileiro. Ademais, interpor acontecimentos do
tempo de seus avós (algo não vivido por ele) com outros mais verossímeis à
atuação de Oswald de Andrade causa verdadeiro impacto sobre o leitor. Isto
ocorre porque, segundo Achard, qualquer novo acontecimento discursivo:
Vem perturbar a memória: a memória tende a absorver oacontecimento [...] mas o acontecimento discursivo,provocando interrupção, pode desmanchar essa ‘regularização’e produzir retrospectivamente uma outra série sob a primeira,desmascarar o aparecimento de uma nova série que nãoestava constituída enquanto tal e que é assim o produto doacontecimento; o acontecimento, no caso, desloca e desregulaos implícitos associados ao sistema de regularização anterior.(Achard. In: Nunes, 2007: 52)
UHSP se mostra antes como antimemória, pois regulariza o discurso
autobiográfico convencional nas primeiras páginas, e desregula-o com a
apresentação das confissões sob outra estética, já conhecida dos leitores
oswaldianos, que é o cinematismo ou a perspectivização sobre múltiplas
formas e vários ângulos de percepção. São flashes que se espocam segundo a
disposição do enquadramento da imagem, ou melhor, são seleções
propositadas entre o que lembrar e o que esquecer.
O fato de estar, naquele presente da escritura, escrevendo suas
memórias, algo que exige reenlaçar vivido e experimentado, é exacerbado
através da narrativa como se fora um choque tal acontecimento; choque que
exerce um jogo de força da memória e a faz oscilar, ora narrando Andrade e
ora narrando Miramar, ambos em primeira pessoa.
101
Recorrer a esse choque de acontecimento, termo utilizado por Michel
Pêcheux no ensaio Papel da Memória, resulta na cisão da identidade num jogo
de metáfora, “como outra possibilidade de articulação discursiva [...] em que a
própria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase”.
(Pêcheux, In: Nunes, 2007: 53). O choque que percebemos em UHSP está no
conflito entre as fortes reminiscências latentes no presente da escritura e a
urgência que estado presente cobra do autor em escrever tais lembranças.
Esse choque é registrado por Oswald de Andrade através da descontinuidade
narrativa, sendo o “vazio” aquele espaçamento do devir, de algo que escapa e
que o autor pretensamente apreende pelas peripécias aí apresentadas.
Descentralizar e fragmentar são ações exercidas na narrativa de UHSP.
Não mais interessa ao leitor saber detalhes (factuais ou ficcionais) sobre quem,
porque ou o que foi o autor. Todo contrário, na obra a descontinuidade articula
tempos de vida em redes flexíveis e inesgotáveis e que, alçada pelo dispositivo
complexo:
Coloca em jogo a nível crucial uma passagem do visível aonomeado, na qual a imagem seria um operador de memóriasocial, comportando no interior dela mesma um programa deleitura, um percurso escrito discursivamente em outro lugar:tocamos aqui o efeito de representação de um mito. (Pena,2006:.51)
O que Oswald de Andrade, de fato, quis representar em UHSP? As
memórias e confissões? O próprio Oswald de Andrade ou João Miramar? Ou a
literatura antropofágica? Questões que trataremos a seguir.
3. DEVORAÇÃO DA PERSONAGEM PELO AUTOR
De Willian James a Voronoff. A transfiguração do Tabu emtotem. Antropofagia. (Andrade. Manifesto Antropófago.1996:24)
102
Temos utilizado até aqui de maneira bastante enfática o termo
devoração como sinônimo da Antropofagia literária oswaldiana. Entretanto, há
que pontuar que existe dupla denominação, aplicada ao ato de devoração da
carne humana – antropofagia e canibalismo, no dizer de Maria Cândida
Ferreira de Almeida, constante no ensaio Tornar-se outro: o topos canibal na
literatura brasileira (1999). Para a autora, 1999:37, alguns teóricos fazem
distinção conceitual entre essas palavras, “considerando canibalismo própria
para o ato de se alimentar de carne humana, enquanto o uso da palavra
antropofagia ligaria o ato a um ritual”, sendo esta última relacionada com uma
visão européia de um povo dito bárbaro, selvagem e ainda primitivo, que se
situa a uma distância espacial ou temporal em relação ao enunciador, segundo
consta. Sobre essa distinção, ainda em Almeida, 1999:37, vemos que na
cultura brasileira Oswald de Andrade:
Reverte essa ordem, ao se apresentar como antropófago,propondo a antropofagia como gesto relacional próprio dacultura brasileira, na qual, muitas vezes, as diversidades seapresentam como inconciliáveis e o outro, como uma distinção,uma alteridade, pode ser interno ou externo.
Quando, em UHSP, Oswald de Andrade fala em transformar o tabu em
totem, numa clara exposição da influência da leitura de Totem e Tabu (1974)
de Sigmund Freud, propõe uma forma ritual de apropriar-se não somente das
qualidades do objeto tal qual proposto pelo psicanalista, mas, recorrente à idéia
de alto e baixo canibalismo, presente na obra do padre Antônio Vieira, no dizer
de Almeida. Baixo canibalismo seria a destruição indiscriminada dos habitantes
do Novo Mundo, e alto canibalismo aquele ritualístico de comunhão.
Ultrapassando a concepção freudiana de devoração de objetos com
qualidades desejáveis – o que remete ao equívoco de prévia seleção apenas
de “bravos guerreiros”, ainda em Almeida, 1999:18, Oswald de Andrade vai
denominar “alto canibalismo o seu gesto inaugural de pensar a cultura
brasileira a partir da devoração de toda alteridade” (grifo nosso), ainda nas
palavras da autora: “o gesto produtor do devir, da diferença, da multiplicidade,
da incorporação do alto canibalismo”.
103
Essa antropofagia ritual faz-se cada vez mais evidente dentro da obra
UHSP. Se no capítulo anterior deixamos rastros de como se deu a devoração
do tempo, aqui pretendemos trazer à tona discussões sobre o ritual de
devoração das personagens sob a ótica de Oswald de Andrade. Devorador de
teorias, paradigmas, conceitos, filosofias, discursos, enfim, dos Galli Mathias
que surgissem à sua frente, obviamente a esse escritor a figura do eu,
enquanto representativa da subjetividade do escritor, traz carga de
significações e sentidos quando da apropriação de personagens que compõe a
obra em questão.
Assim posto, concebemos por antropofagia esse processo escritural
que, como veremos abaixo, está repleto de hibridismo de gêneros literários
(confessionais, principalmente) e que se utiliza de técnicas de devoração de
personagens como maneira de configurar o próprio discurso oswaldiano sobre
o fazer memorialista, cuja subjetivação reside na multiplicidade de pessoas
evocadas à memória, em ampla exploração da garantia do exercício da
possibilidade, como preconizou Andrade já no Manifesto Antropófago.
A exploração dessas possibilidades leva-nos a observar que o processo
criativo de escolha das memórias personalísticas em UHSP se dá pela
deglutição de dois recursos bem perceptíveis: o primeiro é o que denominamos
de intertextualidade iniciática à antropofagia literária e o outro, de antropofagia
literária propriamente dita.
Cientes de que certa polêmica pode ser ventilada pela apropriação de tal
possibilidade intertextual emprestamos o termo intertexto de Adam (1999:85.
In: Charaudeau; Maingueneau, 2006:286) que o concebe como “os ecos livres
de um (ou de vários) texto (s) em outro texto, independente de gênero”. De
fato, em UHSP podemos enumerar e escutar precisos ecos de intertextualidade
imbricados ao largo de toda a obra, exposto mais abaixo. Entretanto, vamos
além da evidência de intertextualidade, indagando o porquê dessa insistência
oswaldiana de registrar em UHSP o máximo de autores, personalidades e
obras de diversos períodos literários (uma das facetas entre outras
apresentadas) do cenário nacional e do internacional.
104
Vemos esse fato como marca registrada da literatura oswaldiana, que
concebe a antropofagia como ritual de busca de toda alteridade. A título de
ilustração, ao isolarmos a mencionada recorrência intertextual podemos
visualizar – no plano metaliterário - que Oswald de Andrade absorveu vasto
conhecimento sobre a literatura e o seu fazer, e fez questão de evidenciar isso
em UHSP deixando implícito que a antropofagia se faz também pela
reverberação de conhecimentos e informações devoradas e posteriormente
ruminadas.
Pese todo hermetismo existente na obra, o leitor que de fato se interesse
por investigar as inúmeras intertextualidades presentes terá ao final
abocanhado grande fatia de um sandwich de possibilidades de compor para si
também um prato cheio de conhecimentos e informações que lhe servirá de
entrada ao antropofagismo. Algo que consideramos, não casualmente, uma
técnica de iniciação à antropofagia literária.
Seguindo esse fio condutor, observamos que Oswald de Andrade
começa a devorar intertextualmente manifestações literárias que, em conjunto,
lembram a trajetória da literatura memorialista brasileira. Ademais, acaba por
confessar sua percepção do fazer literário geral. Quando inicia, por exemplo, a
narrativa dando amplo espaço ao narrador, nas páginas iniciais,
subliminarmente nos deixa entrever o predomínio dentro desse gênero
existente àquela época. Mostra-nos que aquela subjetividade amparada na
interioridade e na introspecção era a forma então existente, a mesma a que se
propõe subverter ao largo de UHSP.
A trajetória feita pelo autor evoca as primeiras lembranças do fazer
memorialista através da intertextualidade com períodos frasais quase idênticos
às memórias de Taunay, como explicitamos no capítulo anterior. Em seguida,
ou antes mesmo desse fato, o blague nos faz lembrar a Machado de Assis,
escritor que admirou muito, quando intertextualiza suas memórias com aquelas
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), em clara exposição de que sua
antropofagia sofreu forte influência das inovações literárias machadianas, e de
que transgredirá aquele modelo canônico dado, como podemos observar
abaixo:
105
Trecho 1:
Como e por onde começar minhas memórias? Hesito. Devocomeçá-las pelo início de minha existência? Ou pelo fim, peloatual, quando, em 1952, os pés inchados me impossibilitam deandar no pequeno apartamento que habitamos em São Paulo,à Rua Ricardo Batista, 18, no 5º andar. (Andrade, 2002:35)
Trecho 2:
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias peloprincípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meunascimento ou minha morte. Suposto o uso vulgar sejacomeçar pelo nascimento, duas considerações me levaram aadotar diferente método [...] (Assis, 200223)
A pena da galhofa usada por Brás Cubas parece ter sido emprestada a
Oswald de Andrade para que este pudesse em UHSP deixar sua matinada
apesar de ser o seu livro da orfandade numa tentativa de rememorar na velhice
sua infância e adolescência. A mesma tentativa confessada por Dom Casmurro
(1899) quando revela-nos: “O meu fim evidente era atar as duas pontas da
vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui
recompor o que foi nem o que fui”. (Assis, 1998:14) Sendo esse o leitmotiv,
ambos, Dom Casmurro e Oswald de Andrade sentiram igual necessidade de
explicar ao leitor os motivos que lhes colocaram a pena na mão, a diferença de
que em Andrade essa necessidade partiu do pedido feito pelo amigo Antonio
Candido.
Outra forma de intertextualidade explorada em UHSP repercute a
tendência dramatúrgica que influi na escritura literária de nosso autor.
Confessando que em tenra idade não tinha vocações para o palco, sabemos
que escreveu algumas peças teatrais, duas delas em francês e em parceria
com Guilherme de Almeida – Mon coeur balance e Leur âme, ambas de 1916 -,
ademais de O homem e o Cavalo (1934) e O rei da vela (1937), esta concebida
“na dura criação de um enjeitado – o teatro nacional”. Execrada pela crítica
devido ao conteúdo revolucionário, O rei da vela expressa desejo oswaldiano
de aproximação entre teatro e público, evidenciado na afirmativa de que o
106
teatro intelectualista é “uma degenerescência da própria arte teatral, da própria
finalidade do teatro que tem a sua grande linha dos gregos a Goldoni, à
Commedia dell”arte, e ao teatro de Molière e Shakespeare”. (Andrade, 2005:
p.21)
Em UHSP a intertextualidade com a dramaturgia shakespeariana é
enfaticamente corroborada pela quantidade e pela qualidade das referências a
que Oswald de Andrade lançou mão para compor as memórias de sua
“tragédia” amorosa. Vale destacar que a influência de William Shakespeare
(1564 – 1616) deve-se sobremaneira àquele segundo período em que este
autor marcado pelas decepções políticas compõem suas tragédias, tais que:
Hamlet (1600), Otelo e Macbeth (1605) e Rei Lear (1608). Vale ressaltar
também que a marca shakespeariana reside em escrever para um público
londrino composto de homens do povo e aristocratas, com ampla variedade e
vigor de estilo, com profusão de personagens e diversidade social e
psicológica, ademais, pela valiosa construção dramática.
Daí, quando faz referência ao “Otelo do diretor teatral italiano Giovanni
Grasso”, confessando que “entusiasmou não só a mim mas à própria crítica
londrina” (Andrade, 2002:112), começa a enunciar o corte pensado entre
àquela narrativa anterior dita convencional – não sem antes registrar a morte
de inúmeros parentes seus -, e anuncia entremear o gênero dramático nas
suas memórias como confissão da sua tendência antropofágica textual. Dessa
narração em diante começam a se fazer mais presentes as referências às
tragédias já citadas, correlacionadas com a duração e a intensidade dos
acontecimentos adversos que permearam a própria vida do autor Oswald de
Andrade.
Essa transgressão é avisada ao leitor, também, pela referência ao
escritor francês Maupassant, considerando louco e cujo nome remete à
lembrança de au passant, jogada audaciosa no tabuleiro do xadrez de inversão
de estratégia de ataque ao passar pelo adversário. Morta a mãe, Oswald de
Andrade lança mão de novas maneiras de expressar sua antropofagia literária
confessando que chegou às convicções que mantém: “Como conquista
espiritual da Antropofagia, de que Deus existe como o adversário do homem,
107
idéia que encontrei formulada em dois escritores que considero ambos
teólogos – Kirkegaard e Proudhon”. (Andrade, 2002:119)
E é à luz dessa evocação que começa a mostrar que aquelas
convicções memorialistas anteriores começam a se abalar: “Em quem confiar
se nem minha mãe existia mais?” (Andrade, 2002:124), diz Andrade
completando com cáustica crítica à literatura vigente no Brasil, considerando
que a “mais atrasada literatura do mundo impediam qualquer renovação” e
confessando que “a métrica fora sempre para mim uma couraça entorpecente”.
Tal incerteza dos rumos literários brasileiros parece justificar a posterior
intertextualidade com Shakespeare, que ocorre precisamente quando da
chegada de Landa Kosbach da Europa, esta que lhe foi amor muito caro do
ponto de vista da exposição social de sua figura.
Marcado pela perseguição de sua atual mulher Kamiá, e pelo seu
Andrade (o pai) defensor da figura da esposa dedicada ao lar, Oswald de
Andrade é pressionado a renunciar à ninfeta Landa; e à medida que a trama de
sua vida começa a complicar-se e que sua mãe lhe faltara “nessa hora terrível”
(Andrade, 2002:132) confessa que “naquele ambiente de confiança instalara-se
o dissídio”. Preciso instante em que revela: “O carro de Laio atravanca a minha
estrada” (p. 134), numa implícita alusão de que o tabu imposto pelo Estado e
pela Igreja interpõe-se como obstáculo ao desfrute daquela relação
extraconjugal. Ante as exposições de ciúmes e interposições paternas,
confessa: “É Laio quem fere. Joga a contrapartida raivosa do zelo. O enigma
reflui. Quem é Jocasta?” (p.135), obviamente aludindo ao texto dramático de
Sófocles, intitulado Édipo Rei (430 a.C).
Matriarcado de Pindorama e Patriarcado Social contrapõe-se nesse
tabuleiro oswaldiano. Melhor dizendo, esse jogo coloca em movimento – nas
coxias – o conflito claramente instituído entre fazer literário vigente no período
e aquele proposto por Oswald de Andrade, via Modernismo. Mais ainda, jogo
trágico (assim observamos) com movimentos que levam ao xeque mate
daquelas forças literárias confessionais antagônicas.
“E o impacto do ciúme ele o atira sobre Landa Kosbach que é mamãe
Macbeth nas roupagens carnais de Ofélia” (Andrade, 2002:135) e “O amor que
108
falha me traz o frio de Otelo no peito” são duas passagens de intensidade
ímpar já que nesses precisos momentos a personagem, que supomos ainda
coincidir com a figura do autor-narrador, a carga de subjetividade relembrada
parece fazer oscilar na memória do escritor as sensações advindas dos fatos
que supostamente inspiraram-no nesse trecho de UHSP.
Ora, Landa nas roupagens de Ofélia representa aquela jovem sedutora
que usando de argúcias tramou sedutoramente o enleio de Andrade ao deixar
cair a toalha que a revelou completamente nua. É Ofélia acatando o conselho
de Polônio (sua avó, o pai de Oswald) para expor-se e interpelar Hamlet na
confissão de intenção matrimonial. Mas, aquela aparente inocência de
Landa/Ofélia é tida por Oswald/Hamlet como verdadeira traição se comparada
àquela executada por Lady Macbeth que mata a seu esposo.
Na ótica do narrador, Landa Kosbach assassina ao amor que sentia e se
entrega à religião católica, convertendo-se em freira. Felizmente, para o autor-
narrador-protagonista “Chega o Carnaval” (Andrade, 2002:136) e novas
estratégias memorialistas são enunciadas pelo implícito, e explicitadas por
“Chego ao fim da dor” (p. 143) que traz novo corte nessa representatividade
das confissões e memórias oswaldianas.
O ritual de passagem da dor para a sua carnavalização dá-se pela
intertextualidade, outra vez mais, com a psicanálise freudiana: “É a
transformação do tabu em totem”, revela Oswald de Andrade, 2002:142. A
partir da “descoberta das vacilações naturais de Landa, aumentada pelos meus
preconceitos e pela minha formação patriarcal”, diz ele que todo sofrimento é
desgastado “em cabarés e pensões de mulheres” até que se encontra (outro
intertexto, na página 153) com a figura de Isadora Duncan, ícone internacional
da dança que estreava na São Paulo daqueles anos, revelando que ela
“apresentava uma visão do mundo completamente diversa da usual”.
Essa passagem começa a evidenciar a proposta até então espocada em
flashes dentro de UHSP: a intertextualidade com diversas áreas artísticas
revelada pela interposição de literatura, dança, teatro, artes plásticas, música, e
filosofia, ademais de construir a narrativa em forma de cenas cinematográficas
109
com cortes e avanços temporais, como mencionamos anteriormente. Nossa
afirmativa assenta-se na seguinte imagem:
O pano se levantou e eu vi a Grécia, não a Grécia livresca dossonetões de Bilac que toda uma subliteratura ocidentalvazava para a colônia inerme. Eu vi de fato a Grécia. E aGrécia era uma criança seminua que colhia pedrinhas nosatalhos, conchas nas praias e com elas dançava. O cenáriounido duma só cor abria-se para vinte e cinco séculos de mar,montanhas e de céu. E, do fundo duma perspectiva irreal, assombras da caverna platônica tomaram a carne virginal deIfigênia para ressuscitar a realidade única. A voz do pianoarquiteturava Gluck. Essa mulher é alga, sacerdotisa,paisagem. (Andrade, 2002:150. Grifo nosso)
Quadro que nos dá a imagem de Oswald de Andrade seduzindo seus
leitores através do encantamento que a arte narrativa de suas memórias
provoca, como clara referência a Orfeu, aedo que cantava e tocava a lira com
tal perfeição que até as feras se aquietavam e vinham deitar-se a seus pés. A
ele também foi atribuída a invenção da lira e dos rituais mágicos e divinatórios
da qual originaram seitas místicas e a denominação orfismo.
A pista deixada encontra-se em Gluck, ou Christoph Willibald Gluck,
compositor alemão, autor de Orfeu (1774) que “reformou a ópera nos moldes
franceses e, afastando-se dos padrões convencionais italianos, procurou o
natural, o simples e a emoção exata”, segundo Koogan & Houaiss, 1993:1210.
Mas, Orfeu também é drama lírico composto em três atos, além de representar
possível intertextualidade com o movimento modernista português, dado pela
revista literária Orfeu editada em Lisboa, em 1915, dirigida por Luis Montalvor,
Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e pelo brasileiro e amigo íntimo de
Andrade, Ronald de Carvalho.
Daí resulta que o sentimento órfico a que faz menção constantemente
em UHSP remete ao próprio Modernismo e àquela literatura poética e filosófica
ligada à personalidade de Orfeu, ou ao fazer artístico inovador, repleto de
invenções e inversões, como bem o disse Décio Pignatari. Novos ares, novos
exercícios do direito da possibilidade, confessada por Oswald de Andrade,
2002:87, quando diz: “Como sempre, eu iniciava a mudança, cheio do meu
sentimento órfico”. Esse mesmo fazer que dentro da literatura antropofágica
oswaldiana configura um corte epistemológico, também, com a aceitação
110
passiva de ouvir e repetir canto da flauta católica ecoado dentro do lar de seus
pais, como observamos em:
A quantidade e a qualidade do órfico católico que meofereceram foram fracas e sobretudo mal escudadas pelaapologética cristã e por sua absurda e hipócrita moral. Desdecedo me entrou pelos olhos a incapacidade de transformaçãodo homem pelo cristianismo ou de sua ação regeneradora. Onúmero de rezadores pecaminosos e de padres sujos erademasiado para poder iludir mesmo minha desprevenidaadolescência. (Andrade, 2002:.86)
É assim que vemos essa transformação do tabu em totem, onde ao
declarar o fim da dor os efeitos recaem diretamente na expressão da angústia
que nosso escritor carrega, como se toda essa intertextualidade falasse
alegoricamente da própria literatura e de seu fazer, e como se a carga da
responsabilidade atribuída ao seu papel lhe representasse verdadeira tragédia,
de renascimento através da morte, e cuja intensidade nos é confessada
quando desabafa: “Quem era eu para suportar aquele sopro de tempestade
shakespeariana!” (Andrade, 2002:150) Ao lermos os trechos abaixo, atribuídos
ao desespero de Andrade ante a expectativa de encontrar-se a só com Isadora
Duncan, fica-nos implícita certa alegoria que faz recair sobre a mulher a figura
da Literatura. Observemos:
Trecho 1:
Aquela deusa tinha me mandado dizer que viesse vê-la. Mascomo? Ousaria a temerosa empresa? Quem era eu diante dadeidade boêmia e esvoaçante que, em plena decadênciabailárica, restaurava a dança e abrira para o seu século oprenúncio de um renascimento patético da plástica e do ritmo?(Andrade, 2002:150)
Trecho 2:
Quem era eu, o menino que vivia das sopas de CerqueiraCésar, para afrontar de perto, sozinho e a horas mortas, ogênio andejo da mulher despida que levara o escândalo de seuespírito e o fascínio de sua carne às cinco partes do mundo?(Andrade, 2002:150)
111
Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.
Assim dizia seu Manifesto e assim vemos todas as intertextualidades acima
comentadas como representativas de um modo, não exclusivo, de apreciarmos
esse processo devorativo oswaldiano que dá temperos ao cozinheiro “das
almas deste mundo” e que faz com que muito de arte e paradoxo se misturem
para formar o ambiente colorido e musical deste seu retiro, já citados
anteriormente.
Esse cardápio intertextual é mais adiante reforçado pela interseção que
Oswald de Andrade realiza entre a música enquanto influenciadora de seu
fazer literário e a aparição do fenômeno antropofágico propriamente dito,
explicitado pela deglutição da personagem João Miramar, este que adentra
como “mediador” na passagem do fim da dor do amor impossível para aquele
que lhe levará a uma tragédia pessoal; ou seja, Landa Kosbach passa a formar
parte dos “preconceitos patriarcais que se eriçam na direção da renúncia”
(Andrade, 2002:155) quando pede que se acostume com a decisão por ela
tomada de ser freira.
Então, Oswald de Andrade conhece Deisi, ou Daysi, ou Miss Cyclone, e
a convida cinicamente a amar-me, direcionando a narrativa para um novo
recomeço cuja tensão se conclui tragicamente. Mas é essa jovem ninfeta,
esquelética, com uma mecha de cabelos na testa, a representação da
intensidade litero-musical na vida do autor.
Observamos assim que há um ritmo que oscila crescentemente, indo do
drama Landa para a tragédia Cyclone, e que é enunciado através de
sentimentos musicais. Antes de explorarmos essa faceta, contudo, outra
intertextualidade se faz quando, à altura da página 164, diz: “O meu nome é
Miramar”, deglutição comentada mais abaixo, pois aqui sentimos a
necessidade de mencionar o fato de que essa frase nos soa conhecida,
advinda precisamente da absorção de declaração feita pelo grande escritor
francês Gustave Flaubert (1821 – 1880): - “Madame Bovary sou eu”, em alusão
à personagem do romance homônimo. Miramar assume essa relação com
Cyclone e não Oswald de Andrade.
112
Convém fazermos breve parêntesis para destacar que, desde as
primeiras páginas, vemos como o escritor registra esse contacto com a música,
a começar pela referência aos cantos litúrgicos e ao ritmo cantado das
ladainhas, às bandas municipais nos coretos, à assistência à soirée onde
conheceu e escutou o primeiro fonógrafo - “uma coisa roda e a gente escuta
tudo!” -, o canto dos alunos nas escolas católicas cantando a liberdade, à
filarmônica tocando a marcha fúnebre, às fanfarras e a banda a tocar Chopin.
Os vários movimentos, ritmos, duração e harmonia encantaram-lhe.
Principalmente o foxtrot e o jazz, como se todas essas manifestações
servissem de coro para o seu canto literário: “Como poucos, eu conheci as
lutas e as tempestades. Como poucos, eu amei a palavra Liberdade e por ela
briguei” (Andrade, 2002:52) E é com essa liberdade que dedica precisas quatro
páginas de UHSP à musica, de maneira mais explícita.
Havendo já se instalado na garconnière, ali reúne seus vários amigos
literatos e coletivamente começam a escrever o diário O perfeito cozinheiro das
almas deste mundo e o narrador dá ao leitor as coordenadas sobre aquele
movimento, narrando os vários registros escritos ali deixados. Ele mesmo
declara que “Se a Cyclone estivesse entre os ventos da tempestade clássica
de Virgílio, Enéas não escapava” (Andrade, 2002:164), comparando-a a
Eneida, como forma de demonstrar o poder sedutor dessa jovem esfinge do
deserto do Brás, como declarou.
Essa nova presença feminina de amor sensual faz-lhe registrar no diário
que “positivamente amanhece a vida” (Andrade, 2002:165), repleta de
musicalidade dada pela fonola que “convida à dança pela magia persuasiva de
Karl Maria Weber”, compositor alemão de O franco atirador (do ano de 1821). E
a audição segue-se com Rubistein, pianista russo a interpretar a melancolia
patriótica de Chopin. “Sem isso também, que seria a vida?”, pergunta Miramar
e não mais Andrade.
Então, entre as páginas 166 e 169, a música passa a significar a
intensidade e a profundidade da relação Miramar – Cyclone. Outra mulher,
outro amor, que parece remeter à relação escritor e literatura. Confessa
Ferrignac que enquanto escuta
113
Minueto de Bocherini. Como rola triste a vida no covil deMiramar! Encontrei discos novos, indícios mui vivos de grossastransações de terras. Cerqueira César, a Sion, a Meca, asterras trigueiras de Canaã de todos nós!
Obviamente descartamos a possibilidade de que essa tristeza refira-se à
Cyclone e, sim, ao processo metonímico de dizer o todo pelas partes, e
metafórico de atribuir à referência às terras prometidas àquele desejo de que
nestas terras brasileiras a alegria seja a prova dos nove. Ademais, destacamos
o conflito financeiro que permeou o período, já que a derrocada da família
Andrade lhes exigiu transação imobiliária daqueles terrenos que tinham na Vila
Cerqueira César.
Essa última possibilidade se confirma no parágrafo seguinte quando
Ferrinac escreve sobre “Momento musical de Schubert [...] Indícios mui vivos
de magras transações de terras” (Andrade, 2002:166). E nas noites de ronda
daquele grupo fazem-se presentes Kubelick, Beethoven e “à trompa profética
de Lohengrin”, personagem heróico da lenda germânica que compõe a ópera
de Wagner sobre a cavalaria do Santo Graal.
Mais à frente, o narrador atribui à Ferrignac o pseudônimo de Ventania e
este escreve que ao ouvirem os choros e lamentos de uma mulher no andar
superior recordam “doloridamente os versos de Samain”, poeta romântico
interposto aqui com a transgressão musical da ópera dada por Wagner,
compositor de Tristão e Isolda e de O anel de Nibelungo que vincula música à
poesia e à dança, obedecendo à exploração sistemática de idéias musicais
repletas de símbolos.
Vale registrar que para todos os episódios acima Cyclone começa a
esgueirar-se e a desaparecer da garçonnière causando suspeitas em Miramar
que desfere sua decepção e raiva através de Ferrignac, outra vez, que registra
no diário:
Nas volutas azuis dos acordes abemolados, atrás da poalhad’oiro das evocações, passam o dr. Fausto, Lutero, FredericoII, ventrudos bebedores de cerveja, sábios solenes de imensosóculos, regimentos inteiros ao passo ridículo de ganso...”(Andrade, 2002:169)
114
Começamos por Fausto, personagem do drama de Goethe que defende
a salvação do homem pela ação e, também, herói da literatura, da música e de
pinturas que vende sua alma a Mefistófeles em troca de bens terrenos. Toda a
narrativa leva-nos a pensar que, em verdade, essa “terra prometida” está
repleta de tabus já que anteriormente “Ferrignac faz literatura” sobre a
“Alemanha de Margarida na fria névoa das cidades góticas” (Andrade,
2002:168). Prenúncio de tragédia: Margarida é personagem de Goethe que,
abandonada por Fausto mata seu filho e é perdoada pelo Céu. A citação a
Lutero e Frederico II demonstra que, apesar deles serem inicialmente contra a
igreja católica, circularam no âmbito das igrejas ou da fé aceita pelo Estado.
Uma vez mais o Estado aparece como o carro de Laios atravancando o
caminho, desta vez de Miramar.
Richard Wagner (1813 – 1883) é compositor alemão cuja densa
composição musical se relaciona com o trágico, o insólito, com vibrações
pesadas e notas graves, o que nos leva outra vez mais a pensar que Cyclone,
na vida de Miramar, é “Um cher parfum qui s’évapore...” (Andrade, 2002:169) e
essa fuga essencial se confirma nas páginas seguintes, quando ela perde sua
vida através de infecção generalizada advinda de aborto mal feito.
Durante esses acontecimentos o narrador registra ditos episódios
através das personagens Ferrignac, Ventania (pseudônimo de Ferrignac),
Pedro e Edmundo Amaral, dando ao leitor a impressão de que se trata de
pessoas diferentes. No entanto, à página 170 há registro muito importante para
compreendermos esse processo de devoração propriamente dito, a ser
abordado a seguir, constante do seguinte registro:
Edmundo Amaral escreve: “Cyclone passou como um tufão,transformando o Garoa em tempestade, o Ventania em brisado Arquipélago”. O Garoa sou eu, Ventania, Ferrignac.(Andrade, 2002:170 – grifo nosso)
Não se trata então de único autor-narrador-personagem, a partir da
inserção do Diário em UHSP, mas da garantia do exercício de possibilidades
devorativas dadas pela deglutição inicial da personagem João Miramar por
parte de Oswald de Andrade. Processo premeditado pelo escitor e anunciado
anteriormente ao leitor na página 145, quando a força das emoções
115
exacerbadas parecem não dar saída àquele primeiro narrador-personagem,
Andrade, fazendo-se revelar: “-Penso em me destruir”.
A confissão acima parece uma ingênua revelação de uma entre as
tantas aventuras e decepções amorosas vividas pelo autor, mas é exatamente
aquela que nos chama a atenção. Trata-se de uma antecipação de
acontecimentos sucedâneos dentro da obra, reveladores do propósito
transgressor da escritura memorialista realizada por Oswald de Andrade. A
partir daqui começamos a tratar especificamente daquilo que denominamos
anteriormente de antropofagia propriamente dita.
Assim, partindo da posição do leitor, que não trata da interioridade de
um autor nem de estabelecer os cânones de um gênero literário, em
consonância com Lejeune, 1975:50, buscamos evidenciar em UHSP como se
dá a transgressão do pacto autobiográfico que consolida toda escritura
confessional. Principalmente, no que diz respeito à convergência de papéis
assumidos pelo escritor deste tipo de literatura, ou seja, aquele de autor-
narrador-personagem, claramente subvertido na obra.
Começamos por explicitar que Philippe Lejeune, em El Pacto
Autobiográfico (1975), oferece princípios que sustentam pesquisas no campo
da Literatura Confessional afirmando que existem elementos pertencentes a
quatro categorias diferentes que servem de condições para afirmar se uma
obra é ou não autobiográfica. A primeira delas se refere à forma de linguagem
utilizada que é a narrativa em prosa; a segunda, sobre o tema tratado, ou seja,
a vida individual ou a história de uma personalidade.
Em seguida, noutra categoria a situação do autor, cujo nome reenvia a
uma pessoa real, convergindo identidade do autor com a do narrador; e, por
último, a posição do narrador que coincide com a personagem principal e que
trabalha sobre uma perspectiva retrospectiva da narração. Todos esses
elementos evidentes da escritura autobiográfica estão presentes na obra
UHSP, a exceção do “tema tratado” que se aproxima mais da história coletiva
do movimento literário modernista vivido em São Paulo. Todos os elementos
nos permitem antecipar que se trata de escritura de memórias que foi
transgredida.
Queremos advertir ao leitor de que, ao usarmos o termo autobiografia,
temos em mente a advertência de Caballé, 1995:40, que diz ser adjetivo
116
geralmente utilizado para qualificar não somente a uma das mais genuínas
manifestações da Literatura do Eu, ou seja, a autobiografia,
Sino que, debido a la transparencia semántica del vocablo ypor extensión, sirva para referirse a cualquiera de las restantesorientaciones tipológicas (autobiografías, autorretratos,memorias, diarios íntimos y epistolarios).
É muito tênue a fronteira entre autobiografia e memórias, diferentes
apenas na questão do tema tratado. Aqui ambos termos são utilizados com
mesmo sentido por remeterem à definição de autobiografia dada por Lejeune,
1975:50, resguardadas as proporções anteriormente explicadas: “Relato
retrospectivo en prosa que una persona real hace de su propia existencia,
poniendo énfasis en su vida individual y, en particular en la historia de su
personalidad”.
Dadas estas premissas, cabe discorrer de maneira mais detalhada a
questão da identidade do narrador e da personagem principal, que se dá na
maior parte dos casos, conforme estudos de Lejeune, pelo uso da primeira
pessoa, ou seja, pela narração “autodiegética”. Algo evidente em grande parte
da obra UHSP: O narrador se apresenta com o nome do autor e narra em
primeira pessoa a infância e adolescência como sendo a personagem principal.
Na obra percebemos que até certa altura há o cumprimento daquilo que
Lejeune denomina de Pacto Autobiográfico, pois o escritor Oswald de Andrade
assume a responsabilidade de uma pessoa real que fala em nome próprio,
criando identidade entre o nome do autor, inscrito na capa do livro, do narrador
e da personagem de quem fala: “Este livro é uma matinada. Apesar de ser o
meu livro da orfandade”. (Andrade, 2002:33)
A narrativa acima remete a um tempo presente, o ano de 1952, em que
Oswald de Andrade tem exatos sessenta e dois anos, posto ter nascido em
1890. Essa voz é a autoridade do escritor ante a elaboração da sua obra e que,
à medida que as recordações vão se desfilando, ora avançam para o período
da sua adolescência, ora retrocedem novamente à infância, alternando
períodos e acontecimentos, dando o efeito de que os fatos narrados parecem
surgir aleatoriamente na memória do escritor.
Mas, ao assumir que O Garoa sou eu, Ventania, Ferrignac e, sobretudo,
O meu nome é Miramar, outro fenômeno confessional faz-se evidente. Há uma
117
devoração primeira das figuras recordadas dos amigos Pedro de Albuquerque
e Ignácio Ferreira de Almeida; e, depois, de Miramar que é personagem da
obra Memórias Sentimentais de João Miramar (1924). O que se percebe, de
antemão, é que tanto em Memórias Sentimentais de João Miramar como em
UHSP, Andrade é Miramar e vice-versa. Entretanto, não podemos afirmar
tratar-se de personagens criados em situações factuais, ainda que na última
obra escrita por Oswald de Andrade pareça sobressair o tom de confissões
reais.
Trata-se antes de criações literárias. Assim, deve UHSP ser estudada
com bases teóricas que sustentem qualquer afirmação sobre as supostas
intenções do autor, cuja maior característica de escritura literária reside na
defesa de sua antropofágica, esta que é tida em Lúcia Helena, 1983: 91e 93,
como:
O sentido anárquico-utópico do “matriarcado de pindorama”idealizado por Oswald de Andrade para questionar o rastrodeixado pela cultura do colonizador [...] neste choque entre acultura “estabelecida” e a atitude vanguardista, a avant-garderevela-se como uma cultura de negação, uma “art d’exception”,e o artista tende a manifestar-se num libelo destruidor voltadocontra a intelligentsia da classe dominante.
Sendo um dos maiores articuladores do Modernismo no Brasil, Oswald
de Andrade insistiu em, ao que parece até a última obra, transgredir o modelo
dado de subjetivação literária, apresentando novos rumos à literatura brasileira,
seja através de inovações de forma e conteúdo, seja na sua posição discursiva
sobre o fazer literário. Nesse sentido, o intercalar de vozes ou o duplicar-se na
obra UHSP dá o tom de subversão do cânone confessional existente à época,
calcado na narração em primeira pessoa feita por um autor-narrador-
personagem e, geralmente, com narrativa contínua.
Contrariamente UHSP deixa a indagação: Quem é o eu narrador que
finaliza a obra: Andrade ou Miramar? Ademais, muitos episódios são comuns
às duas obras supracitadas, escritas em anos diferentes e com largo intervalo
de tempo. Anna Caballé, 1995:33, ao perguntar se ¿Es posible hablar de
sinceridad en un texto literario, por más autobiográfico que se pretenda?
118
introduz a problemática residente na questão da sinceridade que se difere
daquela real pois no âmbito literário a mesma se desenvolve
Mediante el esfuerzo creativo y este esfuerzo opera, además,dentro de unas convenciones o categorías estéticas cuyafunción es liberar el deseo o la necesidad de expresar ideas oemociones transformándolas en algo superior e imperecedero.En este sentido, la relación del lector con la obra no se dará entérminos de veracidad (imposible) sino de verosimilitud, o sea,de apariencia de verdad. (Caballé, 1995:33)
Ou seja, as personagens são fictícias com aparência de verdade, e
reconstroem as memórias de Oswald de Andrade não como documento ou
registro fiel, mas metamorfoseando-a em episódios nos quais se intercalam
ficção e realidade, recriando esta última por meio de contextos diferentes e da
inserção de personagens imaginários ou da deglutição de personagens sociais
como o caso de Pedro de Albuquerque e Ignácio Ferreira, seus amigos.
Há, contudo, uma constância sobre a qual insiste o escritor, e que incide
na evidência de que em seus romances anteriores, Memórias sentimentais de
João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933), os protagonistas foram
inspirados na história de vida do próprio Andrade, como demonstram os dois
excertos abaixo, o primeiro extraído de Memórias Sentimentais e o segundo de
UHSP:
Trecho 1:
Entrei para a escola mista de D. Matilde. Ela me deu um livrocom cem figuras para contar à mamãe a história do rei CarlosMagno. (Andrade, 2004:75)
Trecho 2:
Estudaria em casa. Improvisei em professora uma senhoraidosa que se chamava D. Matilde Rebouças [...] Lideslumbrado Carlos Magno e os doze pares de França, que fizquestão de emprestar a todo mundo, cozinheiras, amigos defamília. (Andrade, 2002:65)
119
UHSP está repleta de reelaborações e reinserções de episódios de
outras obras de Andrade, havendo uma fusão entre ficção e memorialismo que
configura um “binômio solidário” entre o si mesmo e a criação ficcional. (OLMI,
2006:107.) Este tipo de escritura, alcunhada também de romance do eu ou
autofiction, se dá pela transformação da narrativa da existência em romance,
penetrando na fábula. Característica que marcou também a escrita do francês
Blaise Cendrars, amigo íntimo de Oswald de Andrade que veio ao Brasil em
1924, e é tida por Philippe Forest como:
Nada mais é do que a autobiografia sob suspeita, isto é,submetida ao questionamento por parte da consciência crítica.(Forest. In: Olmi, 2006:109)
Uma invenção do eu, explica Alba Olmi, 2006:107-8, cuja fundição
escritural estrutura “os eus como ficções, e se escrevem as histórias como uma
forma de preservar essa ficção”. No caso de UHSP percebemos que Oswald
de Andrade pretende preservar na memória coletiva a ficção antropofágica
engenhosamente fundindo o eu e o outro, o escritor e as personagens, a obra
literária e a existência humana. E ao fazer da própria vida um romance, sua
identidade é interceptada “apenas como miragem, quimera e mentira”, no dizer
de Olmi, 2006:110.
Essa fusão entre suposto eu real que remete à figura do escritor e
evidente eu imaginário que remete à personagem João Miramar, contrapõe-se
ao modelo confessional em que o uso do eu tem por base a historicização ou a
garantia da existência real. Nesse último, a especificidade do gênero
autobiográfico está fora do texto, no mundo material e a subjetividade tem por
base a profunda interiorização e introspecção, calcada no individualismo. Esse
adentrar no mundo privado era tido como forma de olhar para dentro de si, a
fim de decifrar o próprio ser. Ainda nele, a escrita de autobiografias se dava
dentro de eixos temporal e espacial levados pelo olhar retrospectivo, como se
as memórias pudessem ser suscitadas tal e qual vivenciadas no passado e
congeladas para serem “ressuscitadas”.
O passado, nessa busca subjetiva repleta de intimismo, segundo
Benjamin, reside na:
120
Cumplicidade entre o modelo dito objetivo do historicismo, nósdiremos hoje o paradigma positivista, e um certo discursonivelador, pretensamente universal, que se vangloria de ser ahistória verdadeira e, portanto, a única certa e, em certoscasos, a única possível. (Benjamin. In: Gagnebin, 2006:40)
Na contracorrente, Ricoeur revela que a ruptura com a configuração
memorialista tradicional, repleta de uma estética da interioridade e da harmonia
consoante com as práticas artísticas burguesas, propõe
Substituir a idéia de referência por aquela, mais ampla, derefiguração e de desdobrar essa noção: a ficção remodelandoa experiência do leitor pelos únicos meios de sua irrealidade, ahistória o fazendo em favor de uma reconstrução do passadosobre a base de rastros deixados por ele. (Ricoeur. In:Gagnebin, 2006:43)
Importa desviar o foco do rastro enquanto presença que não existe mais
e centrá-lo no liame entre rastro e memória. O novo olhar lançado por Andrade
à literatura memorialista configura corte, ruptura no trato da tensão entre
presença e ausência, bem como a fragilidade da memória que permite a
ruptura essencial com a narração tradicional. Assim, esboça “narração nas
ruínas da narrativa, uma transmissão entre os casos de uma tradição em
migalhas”; o narrador que assim procede é por Benjamin adjetivado de
“sucateiro”, ou aquele que:
Não tem por alvo recolher os grandes feitos. Deve muito maisapanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que nãotem significação, algo que parece não ter nem importância nemsentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer.(Benjamin. In: Gagnebin, 2006:54)
Ao devorar a personagem Miramar em suas memórias e confissões,
Oswald de Andrade insiste na defesa e manutenção do movimento
antropofágico, como forma de resistência à reconstrução da história pessoal
como espécie de esqueleto ou arqueologia do eu. Insiste em fazer permanecer
viva a antropofagia literária, mais do que fazer deixar permanecer sua vida de
121
escritor na memória do leitor, como alguém que renuncia a si mesmo em prol
de uma subjetividade coletiva, ou de:
Aquilo que não tem nome, aquele que não tem nome, oanônimo, aquilo que não deixa nenhum rastro, aquilo que foitão bem apagado que mesmo a memória de sua existência nãosubsiste [...] que transmite aquilo que a tradição, oficial oudominante, justamente não recorda [...] tarefa paradoxal:transmissão do inenarrável, numa fidelidade ao passado e aosmortos. (Gagnebin, 2006:54)
O leitor que espere encontrar em UHSP tão somente a descrição
pormenorizada da vida do escritor Oswald de Andrade se decepciona, porque
ao invés de constatar aí momentos de comemoração depara-se com o seu
oposto: a rememoração. Gagnebin, 2006: 55, adverte que a comemoração
desliza perigosamente para o religioso ou para as celebrações de Estado e
esclarece que, contrariamente, a rememoração:
Invés de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos,aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, comhesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda nãoteve direito nem à lembrança nem às palavras [...] significatambém uma atenção precisa ao presente, em particular aestas estranhas ressurgências do passado no presente, poisnão se trata somente de não se esquecer do passado, mastambém de agir sobre o presente.
No Manifesto, Oswald de Andrade, 2002:25, escreve que “é preciso
partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus” e assim fez das
lembranças de sua vida um ingrediente transgrediente, possível à construção
estética de suas memórias, vendo-se desde o exterior. Sendo a subjetividade
modo de ser e estar no mundo, em UHSP parte da narrativa memorialista
habitual que impregnou a sensibilidade burguesa de finais do século XIX,
configurada pelas páginas iniciais, saindo daquela interioridade para uma
exterioridade que começa a ver o outro como signo de alteridade,
transgredindo ou deslocando o conceito de sujeito que se supunha repleto de
importância interior, voltado para si mesmo para aquele que se ampara e
depende da relação exterior.
122
Bakhtin, 2006:XIX, postula que essa nova ótica configura relação
assimétrica de exterioridade e de superioridade indispensável à criação
artística, algo que exige a presença de elementos que denomina
transgredientes. Precisamente, observamos que Andrade dá a personagem
“tanto peso quanto ao autor, ou inversamente, abala a posição do autor até
torná-la semelhante à de uma personagem”. Temos que, ao criar campos
intertextuais e devorar algumas personagens, Oswald de Andrade cria em
UHSP um tipo de arte que:
Tem acesso a um terceiro estado, acima do verdadeiro e dofalso, do bem e do mal [...] cada idéia é a idéia de alguém,situa-se em relação a uma voz que a carrega e a um horizontea que visa. No lugar do absoluto encontramos umamultiplicidade de pontos de vista: os das personagens e o doautor que lhes é assimilado; e eles não conhecem privilégiosnem hierarquia.
Ao invés de utilizar-se das memórias e confissões como dispositivo de
poder, de manipulação da veracidade, João Miramar e Oswald de Andrade
(ademais daqueles já evidenciados) co-habitam o mesmo espaço sem
nenhuma vantagem de um sobre o outro, têm os mesmo direitos. Tem-se,
então, que nas confissões oswaldianas há um Eu que é o Outro. A escrita
confessional em si remete à inexistência de fronteiras entre os eus do autor, do
narrador e da personagem.
Esse outro é aquele ativo nas lembranças habituais oswaldianas,
representado pelo movimento literário antropófago, passado que não lhe é
conflitivo com o eu-para-mim, na versão bakhtiniana. E a esse outro lhe é dada
autoridade justo porque foi inventado em defesa da intensidade que dito
movimento significou para Oswald de Andrade, uma força que ocupou largos
tempo e espaço de sua vida.
Temos aí um entrelaçamento de personagens a se fundirem em figura
única, metaliterariamente sígnica da antropofagia que ora tratamos. Isto
demonstra a intenção de deslocar a figura do herói que relata sua própria vida
para aquela de coadjuvante que toma parte nela, que se coloca na condição de
personagem, abrange a si mesmo com sua narração e também abrange a vida
de outras personagens. Personagens se tornam narradores desta maneira.
123
A primeira pessoa narradora, então, é uma e são muitas. Genette
assinala que na literatura confessional pode haver narração em primeira
pessoa ”sin que el narrador sea la misma persona que el personaje principal,
como pasa en la narración homodiegética” (In: Lejeune, 1994:52), desde que
se utilize de critérios que distingam “la persona gramatical y el de la identidad
de los individuos a los que nos reenvía la persona gramatical” posto que a
palavra pessoa é polissêmica. (Lejeune, 1994:53)
Nos estudos de Lejeune, tem-se por “pessoa gramatical” aquela utilizada
de modo privilegiado em toda a narração. O “eu” do escritor que na narração
memorialista oswaldiana existe em não oposição explícita ao tu (Pedro,
Ferrignac, Ventania, Miramar). Elucidaremos, então, o problema da pessoa
gramatical e da identidade, porque temos em UHSP o uso da pessoa
gramatical “eu” para identidades distintas.
A primeira registrada na maior parte do livro coincide com a identidade
de Oswald de Andrade, autor-narrador- personagem principal que caracteriza a
narração autodiegética. Mas, a certa altura da narração, como temos
explicitado, aparece também o uso da pessoa gramatical eu para aquelas
personagens cujas identidades não coincidem com aquela do autor,
caracterizando a narração homodiegética.
Em inventiva inédita de escritura confessional, o autor opta por mesclar
esses “eus”, subvertendo a teoria do Pacto Autobiográfico e consolidando a
devoração dos mesmos feita pelo escritor. Esta é a origem de nova concepção
da criação literária memorialista que cria espaço de convivência paralela entre
pacto autobiográfico e pacto novelesco, cada qual configurando propostas
distintas de escritura confessional, com propósito claro de invenção de
memorialismo literário onde coexistem autobiografia e romance autobiográfico.
Sabemos do registro de muitas autobiografias anteriores a esse feito de
Oswald de Andrade, como as Memórias de Visconde de Taunay e Minha
Formação de Joaquim Nabuco, entre outras. Sabemos, também, que este
último quis dar à sua autobiografia esse caráter novelesco, ainda que
timidamente. Por outro lado, temos consciência da existência de muitos
romances autobiográficos, como o são Dom Casmurro e Memórias Póstumas
de Brás Cubas, de Machado de Assis, por exemplo. Mas, a evidente proposta
124
de fazer coexistir no mesmo espaço narrativo, num estreitar de fronteiras entre
ambas, parece-nos algo inédito.
Desse modo, ao romper as tênues linhas separatistas, o blague Andrade
joga com a possibilidade de articular suas memórias em dois planos: no
primeiro temos a referência do “eu” na figura real do autor. Mas, no plano do
enunciado esse mesmo “eu” se biparte em sujeito da enunciação (Oswald de
Andrade) e sujeito do enunciado (personagens narradoras). O sujeito da
enunciação é o escritor que se encontra implícito, mas aquele do enunciado
ora é um ora outro.
A soma dos discursos dados pela narrativa de todos eles, autores-
narradores-persongens reforça a intenção discursiva de manutenção da
antropofagia literária. Sendo Miramar a primeira pessoa do segundo discurso,
ele nos remete à enunciação enunciada no primeiro discurso por Andrade,
fenômeno este analisado há muito por Benveniste. (In: Lejeune, 1994:57)
É o caso de pensarmos na representação teatral que cumpre a função
de “espetáculo entre aspas”, segundo Lejeune. Pelas inúmeras referências ao
teatro expostas em UHSP inferimos que o uso da dramatização também é
recurso usado para reinvenção da escrita confessional: “Roteiros. Roteiros.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. O instinto Caraíba.”, diz o Manifesto.
Recíproca devoração entre Teatro e Cinema, também.
Mas, é no nome próprio que a pessoa e o discurso se articulam, antes
mesmo de se articular na forma gramatical de primeira pessoa. Diz Lejeune,
1994:60, que é aí que se situam os problemas da autobiografia. Para o autor,
nos textos:
Toda la enunciación está a cargo de una persona que tiene porcostumbre colocar su nombre en la portada del libro y en lapágina del título, encima o debajo del título da obra. En esenombre se resume toda la existencia de lo que llamamos elautor: única señal en el texto de una realidad extratextualindudable, que envía a una persona real, la cual exige de esamanera que se le atribuya, en última instancia, laresponsabilidad de la enunciación de todo el texto escrito […] ellugar asignado a ese nombre es de importancia capital, puesese lugar va unido, por una convención social, a la toma deresponsabilidad de una persona real.
125
Em UHSP, ainda que difiram os narradores-personagens, afirmamos
que a identidade do autor é única: Oswald de Andrade que se reveste
antropofagicamente de Miramar, este que é concomitantemente personagem
de romance homônimo daquele autor e, também, pseudônimo por ele utilizado
nas rodas literárias. Heterônimo em forma de pseudônimo? Talvez. Dadas
circunstâncias transgressoras peculiares à antropofagia literária oswaldiana.
Para Lejeune, 1994:62, o pseudônimo é um segundo nome que é tão
quanto o primeiro. Significa que o pseudônimo Miramar, coincidente com a
personagem João Miramar, é “simplemente una diferenciación, un
desdoblamiento del nombre, que no cambia en absoluto la identidad”.
Algo facilmente verificável durante a leitura da obra ao observarmos que,
ainda que mude o “eu” narrador-personagem, de Andrade para Miramar, a
narração conta peripécias relacionadas com a vida vivida pelo autor e pela
personagem, como apenas uma pessoa ficcional. Miramar, nome fictício
atribuído dentro ao narrador-personagem do livro não é o autor do livro.
Temos, então, em primeiro plano, uma identidade assumida pela
personagem Andrade na enunciação, e de maneira secundária seu parecido
produzido no enunciado do outro, Miramar. Para Lejeune, 1994:63, quando
existe um “parecido” surge o que ele designa de “novela autobiográfica”
pertinente a “Los textos de ficción en los cuales el lector puede tener razones
para sospechar, a partir de parecidos que cree percibir, que se da una
identidad entre el autor y el personaje”.
Não se trata mais de buscar uma via de encaixe dentro do gênero
literário autobiográfico para enquadrar UHSP, mas, antes, de se pensar porque
o autor escolheu esta via confessional para representar sua antropofagia
literária, devorativa tanto de texto como de contexto, tanto de conteúdo como
de forma, cuja supressão e conservação de elementos nos é singular.
O ato de elaboração do passado aí se faz pela defesa da
dessacralização da memória. Pautada antes na vida do autor e aqui se orientan
do em direção à obra literária como imanente e explicitamente hermética.
Assim, recuperação e reinvenção do passado ao invés de ser fim específico
passam a ser meio de, no presente, reger os destinos pretendidos para a
literatura autobiográfica brasileira.
126
O presente confessado nas páginas iniciais de UHSP revela não apenas
o homem debilitado, ou o escritor marginalizado e sem profissão; tampouco
somente o dragão modernista domado pelo tempo, mas, sobretudo, aquele
instante presente em que todo o ardor do próprio movimento vanguardista
brasileiro parecia fadado ao esquecimento nas memórias do escritor, já que na
segunda fase do Modernismo eclodiram tendências literárias novas, algumas
retomadas do passado, exaltadas em detrimento daquela tendência
antropofágica defendida pelo escritor de Marco Zero.
O eu que narra inicialmente e se constrói nos moldes das memórias
tradicionais, em UHSP, revigora-se através de Outro eu endossante do
discurso do autor. Outro eu que ratifica a concepção literária defendida nos
embates empreendidos por Oswald de Andrade. Outro eu que cenicamente
partilha do papel de personagem protagonista, antes dado apenas ao autor-
narrador da escrita confessional e que, ao se expor assim, expõe também uma
nova concepção de criação literária intimista, considerando que:
La identidad actual y personal del sujeto está construida por lasimágenes que éste posee del pasado. El yo presente es unaescena en la cual intervienen como personajes activos un yoarcaico, apenas consciente, formado en la primera infancia, yun yo reflexivo, imagen de la imagen que los demás tienen denosotros. (Todorov, 2000: 26)
- “Penso em me destruir”-, disse o antropófago Andrade. Ou será que foi
Miramar, também devorador? Alguém ou algo foi destruído. Quem? O quê? As
linhas anteriores parecem evidenciar as respostas. De fato, houve em UHSP o
ato narrativo de destruir. Destruir não apenas por destruir, mas destruir para
(re) construir. Construir ou criar possibilidades no leitor de revisitar e repensar o
gênero confessional tecendo subtextual ao uso sacralizador da memória.
Destruir a intenção historicizadora de elaboração do passado que se ampara
na hipertrofia da figura do autor e que desloca a obra para um segundo plano.
No auge do romance como gênero literário por excelência a figura do
autor esteve entredita, mas ainda havia grande interesse pela literatura
ficcional. No início do século XX, houve deslocamento que possibilitou ser
essencial a vida do autor para compreensão da obra. Era o fazer da vida uma
127
obra de arte que muitos modernistas, a exemplo o próprio Oswald de Andrade,
extremou alimentando a tendência.
Mas o que eles não conseguiram e não puderam antever é que, ao
causar infiltrações nessa outrora autônoma e supostamente desinteressada
Arte, influenciaram o surgimento contemporâneo de ícones da arte que fazem
de seus nomes verdadeiras logomarcas, desandando a ceia artística para o
sucesso atual das obras de arte, que se expõem e vendem “como ações de
bolsas estéticas”, um real Show do Eu, critica Paula Sibilia, 2008:169.
Vontade, consentimento, racionamento, criação e liberdade, princípios
orientadores da escritura confessional oswaldiana. Pluralidade e diversidade de
esferas, termos estes usados por Todorov, 2000:20, em “Los abusos de la
memoria”, cujas recuperações do passado podem se dar de duas maneiras: a
literal e a exemplar.
Em UHSP ditos passados se contrapõem. Se a obra se realizasse toda
em narrativa literal correria o risco de ser extremista e até cair no descrédito do
leitor já que o processo memorialista nunca recupera fidedignamente o
acontecido. Assim, a matinada pensada por Oswald de Andrade desloca tal
narrativa literal para aquela exemplar, um de exemplo da literatura
antropofágica que resulta profundamente libertador porque “Permite utilizar el
pasado con vistas al presente, aprovechar las lecciones de las injusticias
sufridas para luchar contra las que se producen hoy día, y separarse del yo
para ir hacia el otro”. (Todorov, 2000:32)
Queremos defender ante o exposto que o autor de UHSP nos propõe a
dessacralização da memória literária como forma libertadora, haja vista que em
parte recupera seu passado – às vezes pela forma intertextual-, mas por outro
lado não apresenta razões para erigir culto à memória pela memória, inserindo
trechos do Diário, já conhecido do público leitor de Oswald de Andrade.
Parafraseando Todorov indagamos: - Para quê pode servir o culto à memória?
- Com que fim?
Especificamente, o autor de UHSP não trata de comparar passado e
presente buscando semelhanças e diferenças, com o intuito de atuar em
função da recordação. Inversamente, propõe nova intenção para o presente (e
para o futuro), justaposta no reconhecimento de características comuns
passíveis de exploração dentro do gênero memorialista, mas com
128
deslocamento pensado onde o coletivo e a alteridade se aproveitam de toda
experiência individual com intuito de dar formas antropofágicas à escritura
memorialista que é espaço coletivo, do Eu com o Outro.
Em qualquer estudo biográfico sobre o escritor Oswald de Andrade
podemos constatar sua intensa atividade nos meios social, político e,
sobretudo, literário, através de diversos papéis representativos desses
segmentos, seja como jornalista, escritor ou militante político.
Oswald de Andrade reelabora e reinsere episódios de seus vários
romances na escritura de suas memórias, em caminho contrário àquele feito
por Virgínia Woolf, segundo Olmi, 2006:104, que retira de suas memórias
episódios que, posteriormente, são descritos em seus romances. Uma inversão
de trajetória que talvez se justifique pelo fato de que a última criação literária
oswaldiana seja precisamente a obra confessional UHSP. Há de se convir,
entretanto, que em ambos os escritores há fusão entre ficção e memorialismo
que configura binômio solidário entre o si mesmo e a criação ficcional.
Em UHSP temos a reinvenção da imagem que o autor faz de si mesmo,
espelhando-se em seus personagens e mostrando que seus personagens são
seus espelhos, engenhosamente fundindo eu e outro, exercendo a
possibilidade de “fazer da própria vida um romance, mas se trata de um
romance dentro do qual a identidade do escritor é interceptada apenas como
miragem, quimera e mentira”. (Forest. In: Olmi, 2006:110)
A epígrafe constante deste Capítulo espelha a posição de Oswald de
Andrade ante a concepção literária, sendo por ele considerada a
“transfiguração do Tabu em totem”. Se considerarmos que há implícito
metaliterário em UHSP podemos traçar paralelo onde o tabu se relacione com
a padronização da escrita memorialista baseada na realidade, a ficcionalização
da vida cotidiana do escritor que introduz efeitos do real nos relatos produzidos
pelo fluxo de consciência predominante no final do século XIX e inícios do
século XX.
Já o totem proposto por Oswald de Andrade é efeito transformador cujo
recuo no tempo na ficção desvia-se do mergulho na introspecção e na narração
retrospectiva plasmada em densos fluxos de consciência, no dizer de Sibilia,
2008:204, deslocando o foco da espetacularização da intimidade como
exacerbação do eu.
129
Assim, De Willian James a Voronoff menciona implicitamente a
possibilidade de transformação pela devoração, ainda que intertextual, de
muitas personagens reais ou fictícias. É o caso de pensarmos na aplicação
prática, através da escritura confessional, do Pragmatismo que o próprio Willian
James (1842 – 1910) foi um dos fundadores. Essa doutrina toma por critério da
verdade o valor prático onde tudo que pode ser feito com êxito é verdadeiro,
não existindo, portanto, verdade absoluta.
Analisando percurso narrativo em UHSP vemos que sua forma começa
por aquela narração que apresenta um todo estilhaçado cujas fragmentações
parecem soltas, não costuradas. Em segundo momento, o Diário ali inserido
está repleto de coleções de instantâneos representativos de muitas
personagens, “como pílulas de momentos presentes expostos um após o
outro”. (Sibilia, 2008:216) Essa autora retrata bem esses dois instantes falando
da metáfora de Roma e Pompéia, estudada por Sigmund Freud, como
processos formativos de imagens memorialistas. A metáfora de Roma evoca a
cidade “como um território em ruínas, onde uma infinidade de cacos constitui
estilhaços do passado, todos dispersos desordenadamente em diversas
camadas históricas”; já Pompéia:
É a outra metáfora arqueológica tendente a esclarecer osmecanismos das lembranças no aparelho psíquico. A alusão àcidade petrificada evoca a preservação intacta de umaimagem: um instantâneo eternizado, genuína lembrançafotográfica de um momento único. (Sibilia, 2008: 118-19)
No primeiro caso temos em UHSP uma multiplicidade de camadas com
acúmulo temporal cuja fragmentação se propaga em ondas, constituintes de
diversos roteiros cinematográficos. A segunda técnica, entretanto, traz um
bloco de espaço-tempo congelado, representativo daquele espaço-tempo da
garçonnière, cuja totalidade é signo de momento singular repleto de captura,
cortes, de instantes integralizados, de registros individuais que formam o todo
coletivo daquele específico instante-movimento.
Para Sibilia, existe certa oscilação entre tais modalidades de
recordações, sendo que o processo de junção é algo mais laborioso e difícil já
que se torna quase impossível atualizar simultaneamente todas essas
virtualidades. No caso de UHSP o que temos é uma tentativa de fusão,
130
apresentada ao menos sob duas formas distintas, onde observamos uma
sucessividade em que o primeiro instante é devorado pelo segundo.
Curiosamente, nos dois casos multiplicam-se em UHSP as imagens,
como bricolagem ou painéis montados com recursos de ready-made,
flashbacks, cortes abruptos, zoom ou deslocamento de foco, entre tantas
possibilidades oferecidas pela técnica cinematográfica e de fotografia bem
parecidas com as que atualmente percebemos nos diários virtuais (blogs,
websites, fotologs, webcams, Orkut, YouTube e etc.) salvaguardando as
devidas proporções comparativas.
Em 1898, Willian James escreveu o romance A volta do Parafuso, onde
usou com maestria o processo de recuo no tempo, também usado em UHSP.
Ademais de sugerir o pragmatismo na feitura de sua obra, Oswald de Andrade
reinterpreta esse feito, já que no romance de James há uma exaltação ao
romance realista de cunho psicológico que transforma a vida privada em
realidade ficcionalizada pela técnica de recuo temporal. Contrariamente, as
memórias oswaldianas fogem do realismo psicológico concentrando-se mais na
vida pública ou coletiva que parecem latentes no presente vivido pelo autor.
Como se desse uma nova volta ao parafuso temos em UHSP uma
volatilização do real, perdendo aquela técnica sua antiga preeminência.
Técnica essa que atualmente é retomada através do grande interesse midiático
pelo show do eu, ainda segundo Sibilia, 2008:197, começado pelo “realismo
que tomou assalto o cinema, a literatura, a fotografia, as artes plásticas, a
televisão e a internet no final do século XX e início do século XXI”.
Assim, “de Willian James a Voronoff” enuncia a técnica antropofágica
pregada no Manifesto e que posteriormente foi (re) utilizada por Andrade em
UHSP. Cortes e recortes aí realizados, semelhantes a enxertos e transplantes,
remetem à técnica do cientista russo Sergei Abramovich Voronoff (1866 -
1951), admirado por uns e odiado por outros, cuja audácia naqueles anos
levou-o, em junho de 1920, a realizar o primeiro xenotransplante de tecido
testicular de chimpanzé num escroto humano.
Suas pesquisas e práticas consistiam em buscar uma técnica de
rejuvenescimento glandular, pois esse biólogo acreditava que a atrofia ou o
desgaste das mesmas relacionavam-se com o desgaste físico. Além de
devorar essa técnica voronoffiana, Andrade realizou em UHSP verdadeiros
131
transplantes de uma personagem para outra, intertextualizando-as e
reconstituindo-as como forma de fazê-las sempre jovens na imaginação e na
memória do leitor.
Ante o quadro acima apresentado, afirmamos que o uso de novas
estratégias narrativas de suas memórias e confissões, além de denotar vínculo
entre real e ficção, tendendo mais para esta última, afasta-se dos códigos
realistas propostos no século XIX pelas descrições naturalistas, passa pelo
processo de fluxo de consciência do século XX quando narra – por exemplo –
sobre as origens de seus antepassados e avança (algo audacioso àquela
época) em direção à visão futurista que viria a servir de rumo para a Literatura
Confessional no Brasil.
Oswald de Andrade foi precursor dessa hibridização memorialista que se
alastra pelos meios virtuais e enche livrarias com inúmeras obras biográficas e
autobiográficas ávidas por saciar a intensa fome de realidade. Em UHSP temos
a mescla de autobiografia com o diário, o pacto autobiográfico e o pacto
novelesco, a devoração de outras personagens. Hoje, de acordo com Sibilia,
2008:203, tendemos para:
Um misto de autobiografia e auto-ajuda, mistura de diárioíntimo com reality show, blog confesional em formato impresso,ghost-writer (escritor por encomenda).
Mas a posição discursiva do escritor Oswald de Andrade permanece
como de Vanguarda neste tempo atual. Sua proposta foi a de ruptura com o
pacto autobiográfico e hibridismo com o pacto novelesco, provocando
discussões sobre o papel do autor-narrador-personagem. Ele, em verdade,
transgrediu essa regra que hoje é revivificada com uma intensidade
assustadora. O pacto de leitura atual traz de volta a valorização da coincidência
de identidade entre autor, narrador e protagonista sendo, portanto,
“manifestações renovadas dos velhos gêneros autobiográficos”, aquelas onde -
segundo Sibilia, 2008:30:
O eu que fala e se mostra incansavelmente na web costumaser tríplice: é ao mesmo tempo autor, narrador e personagem.Além disso, porém, não deixa de ser uma ficção; pois, apesarde sua contundente auto-evidência, é sempre frágil o estatutodo eu.
132
A posição vanguardista atual de Oswald de Andrade reside, ademais, na
escritura de uma obra de ficção literária cuja leitura declina-se atualmente do
proveito da criação e curiosidade leitora do eu real. Em existindo toda uma
técnica narrativa antropofágica, como evidenciamos, há evidente Arte literária
em UHSP; contrariamente, constatamos que a enxurrada de registros
confessionais atual em sua maioria é carente de qualidade e, sobretudo, torna-
se inviável afirmá-la como sendo literária. Isso reflete a crítica abaixo,
realizada por Síbilia, 2008:50:
Um detalhe importante acompanha o trânsito do segredo e dopudor que necessariamente envolviam aquelas experiências deoutrora, em direção ao exibicionismo triunfante que irradiamestas novas versões. Ao passar do clássico suporte do papel etinta para a tela eletrônica, não é apenas o meio que muda:transforma-se também a subjetividade que se constrói nessesgêneros autobiográficos. Muda precisamente aquele eu quenarra, assina e protagoniza os relatos de si. Muda o narrador,muda o autor, muda o personagem.
O foco contemporâneo centra-se na personagem que se chama Eu. Em
UHSP, contrariamente, o protagonismo é dado à própria técnica antropofágica
de escritura confessional, enquanto Arte literária, deslocando-se claramente os
holofotes da figura única do escritor. A proposta transgressora de Oswald de
Andrade desloca a idéia da intimidade, da reserva do espaço privado inventada
pela burguesia. Ao propor espaço e tempo coletivos (públicos), do eu
interagindo com o outro, rompe com a instituição da família como núcleo
burguês. Por isso temos em suas memórias uma antimemória onde a morte da
mãe, Dona Inês, significa ruptura com a tradição passadista de valorização dos
estados emocionais subjetivos, centrados naquilo que se é, e focaliza como
essencial o que se faz: literatura.
Sugestivamente, o subtítulo “um homem sem profissão” antevê a crise
atual em que o escritor parece fadado ao esquecimento. Dizemos “parece”,
pois há controvérsias. Sibilia, 2008:69, nos esclarece que:
Não é preciso remontar muito fundo no passado para notar queos relatos autobiográficos, especialmente as diversas formasde diário íntimo, tiveram sua morte anunciada e confirmada
133
efusivamente nas últimas décadas do século XX, sem queninguém previsse seu repentino renascer nos ambientesglobais das redes eletrônicas.
Inspirando-se no propósito de ser “um homem sem profissão” Oswald de
Andrade antecipou sua crítica à tendência de “vivermos em uma época na qual
o passado parece ter perdido boa parte de seu sentido como causa do
presente”. Não há mais passado: essa é a tendência contemporânea. Sendo o
tempo uma categoria sociocultural, suas características mudam ao sabor da
história e de suas diversas perspectivas, diz Sibilia, 2008:122.
Nesse quadro, ser sem profissão é assumir primeiramente que, no caso
do gênero autobiográfico, a função-autor opera de forma singular já que é
também narrador e protagonista que cria um mundo dentro de sua obra.
Falando sobre a suposta morte do autor, Michel Foucault (In: Sibilia, 2008:156)
diz que “a função-autor ainda opera com todo seu vigor nas obras literárias e
artísticas; pelo menos, naquelas consagradas pela mídia e pelo mercado”. O
que muda é que a vontade de ser escritor está acima da vontade de escrever,
nos dizeres de Sibilia, 2008:163, que endossa dizendo:
A expressão “morte do autor” ganha ressonâncias cada vezmais inesperadas, bem como sua pomposa ressurreição nosprimórdios do século XXI [...] Está se deslocando a aura daobra de arte para a figura do artista.
Essa previsão foi aventada por Andrade na entrevista intitulada Caem os
dentes do dragão, concedida a Frederico Branco do Correio Paulistano, em
7.6.1953, com o subtítulo O futuro do livro no Brasil, abaixo reproduzido
pequeno trecho:
A esperança reside unicamente no rádio, no cinema e natelevisão, que, precisamente por permanecerem numassombroso grau de primarismo e falta de gosto, forçarão oseditores a só porem na rua literatura que preste. O Livro, comoderivativo para os que não encontram outra forma deexpressão à altura, terá por força que melhorar, para nãomorrer. (Andrade, 2009:341)
Neste espaço nos compete direcionar a dissertativa à avaliação inerente
às memórias e confissões oswaldianas, entretanto parece-nos relevante incluir
essa ponte com as discussões sobre os rumos do escritor, pois verificamos que
está implícito no subtítulo da obra ora investigada. Assim, ser sem profissão
134
provoca discussões sobre que espaço ocupa atualmente o escritor de literatura
autobiográfica e de literatura em geral. Se antes se constituía no fortalecimento
da identidade (e que hoje é retomado com força) a proposta oswaldiana foi a
de fortalecer a alteridade, ou a multiplicidade de eus existentes em nós a partir
do e com o outro.
Então, as memórias e confissões ao se fazerem coletivas em UHSP
assenta-se no paradoxo formado por um lado pelo não esquecimento do fazer
literário antropofágico e, por outro, pelo esquecimento que combate a
hipertrofia sacralizadora da memória. Imaginamos qual seria a reação de
Oswald de Andrade ante o quadro atual, em que recursos e táticas da indústria
cultural, alimentadores da engrenagem capitalista, “deram à luz os primeiros
artistas-ícones que souberam fazer de seus rostos e nomes verdadeiras
logomarcas”. (Sibilia, 2008:168)
Nestes tempos, o autor se destaca mais pela atitude história do que pelo
seu valor estritamente estético. Do culto à obra para o culto ao autor.
Pensamos, ainda, qual seria a posição de Andrade ante a seguinte assertiva de
Sibi, 2008:182:Com a desculpa de enriquecer os sentidos da obra eaprofundar sua compreensão, supõe-se que essesmecanismos extra-literários – que glamorizam a figura de umautor com revelações e conjecturas sobre sua vida privada –podem contribuir para aumentar as vendas dos livros por elesescritos.
Ele lutaria talvez contra o mercado capaz de tudo devorar para convertê-lo em lixo. Talvez.
CONCLUSÃO
POR DENTRO, EU TE DEVORO.
Teus sinais me confundem da cabeça aos pésMas por dentro eu te devoro.
Teu olhar não me diz exato quem tu ésMesmo assim eu te devoro.
Te devoraria a qualquer preço,Por que te devoro te conheço [...]
Eu quero mesmo é viver pra esperar,Esperar devorar você.
(Eu te devoro, Djavan)
135
Sabíamos, de antemão, do enorme desafio que se nos acercava ao
escolher investigar, dentro da linha Literatura e Realidade Social, a escritura
literária memorialista de Oswald de Andrade. No primeiro contato com a obra
Um homem sem profissão. Memórias e Confissões. Sob as ordens de mamãe
percebemos que, de fato, aquela incipiente leitura inicial provocava
inseguranças já que todos os “sinais” nos confundiam e turvavam os contornos
do caminho a ser escolhido e percorrido. Reconhecemos a necessidade de ir
devagar ante o hermetismo que obra se nos apresentava, ainda que a intenção
dele fosse de dar acesso à massa.
À medida, porém, que líamos e relíamos enfocando ora conteúdo ora
forma foi-se tornando latente a convicção de que dois fenômenos mereciam
especial atenção: a configuração do tempo e das personagens, assim como
situar a obra dentro do âmbito literário confessional brasileiro. A elaboração
repleta de diacronias temporais torna seu conteúdo mais universalizado. As
personagens sendo devoradas pelo autor que dá contorno de polifonia vital,
onde o escritor se faz vários ao mesmo tempo. Somando-os, surge como ponto
de partida admitir possíveis rastros da influência das vanguardas européias na
composição de UHSP.
Facilmente comprovamos tal hipótese, dado que na terceira página
Oswald de Andrade, o autor-narrador-personagem ao rememorar o acervo
pessoal de pinturas e gravuras expostas nas paredes do living, entre as quais
Chirico, Tarsila, Cícero Dias, Di Cavalcanti, Nonê e Rudá (estes últimos seus
filhos), confessa que são suas altivas bandeiras a contar que nunca abdicou na
luta feroz dos seus dias, verificável pela trajetória que mescla pessoa literária e
pessoa política de clara posição ideológica.
Desprezando a lógica e investindo contra os padrões estabelecidos à
Literatura Confessional, nosso autor investe na devoração do Surrealismo
(1924) de André Breton dando livre fluir à memória, como movimento
espontâneo e quase irracional. Faz prevalecer o instinto e o desejo, inspirando-
se na psicanálise constante de Totem e tabu, de Sigmund Freud, como
desrecalque do self burguês.
Conteúdo, forma e hibridismo de gêneros à obra foram traçados tendo
por inspiração, à moda do blague, a miscelânea dessas técnicas, cujo
136
resultado delineia sua concepção literária evidentemente antropofágica.
Pareceu-nos explícita ratificação das idéias expostas anteriormente em Pau
Brasil (1924, p.13), quando declarou sua postura contrária ao Naturalismo, ao
Romantismo e toda forma de mimese literária, evidenciando o gosto por:
síntese, equilíbrio geômetra, acabamento técnico, invenção e surpresa.
As memórias e confissões contemplam os elementos acima elencados,
reendossando a inovação estética defendida pelos modernistas, agora
aplicadas na escritura confessional em que nosso autor inventa, prenunciando
as tendências confessionais contemporâneas, híbrida configuração de
conteúdo e forma dados à UHSP.
No plano de conteúdos, apresenta-nos um divertido jogo com o sistema
dialético, partindo de uma narrativa refletora da sustentação da tese, do eu
histórico que se estende pelas páginas iniciais, cuja rememoração daquilo que
foi ou fez na infância distorce a certeza do leitor, usando recurso de desfocar
as primeiras impressões de cunho naturalista, já que a pouco e pouco
abandona esse trato e assume incertezas, ou a antítese, que rompe com o
pacto autobiográfico e insere outro narrador personagem como co-autor,
mesclando aí o pacto novelesco. A base de gêneros híbridos, superposição de
memórias, confissões e diários, dá-nos a fisionomia de seu último romance.
Miramar é embrião da representação literária oswaldiana. Miramar
significa o não-ser, talvez a crítica à proposição sou escritor, defendida por
muitos em autobiografias de pretensão literária, funcionando como personagem
que instala o caos dentro do cânone autobiográfico então existente no Brasil
daqueles anos. Contra a posse ou propriedade. Significa também relativa
renúncia do eu que se propõe ir ao encontro do outro lhe dando o mesmo valor
de voz e discurso, processo magistralmente usado por Jorge Semprún nos
testemunhos da dupla personalidade Semprún/Sánchez e constantes da
Autobiografía de Federico Sánchez, cujos comentários constam do segundo
capítulo.
A síntese originada desses dois instantes anteriores traz-nos a surpresa
de que ao persistir, e até perseguir, a garantia do exercício da possibilidade,
aquela do Manifesto, Oswald de Andrade anteviu (ou previu?) o vir-a-ser que
hoje podemos constatar sobre o fazer autobiográfico: basta-nos com clicar
aleatoriamente um entre os inúmeros veículos confessionais virtuais existentes
137
para verificarmos, por exemplo, a quase inexistência de fronteiras entre autor e
leitor, entre eu ficcional e eu factual, salvas as restrições guardadas.
Defensor da aplicação de técnicas literárias, contrariando a importação
da consciência enlatada, na derradeira UHSP Oswald de Andrade, blague
como sempre o foi, percorre caminho iniciado “Da equação eu parte do
Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu” (Andrade, 1996:22). Seguramente,
afirmamos que o eu oswaldiano é uma casa cujas janelas e portas foram
destruídas e reconstruídas pela coexistência polifacética, polifônica e
pluridimensional do eu com o outro.
Em UHSP, o acabamento técnico é dado pelo esfacelamento das
memórias, representadas simultaneamente em diversas formas e aspectos,
como figuras geométricas coloridas, sonoras e repletas de movimentos. Essa
invenção é causa de surpresa no leitor, já que inverte todo valor atribuído à
forma canônica de fazer confessional. O contrapeso da originalidade nativa
para inutilizar a adesão acadêmica, disse Oswald de Andrade.
A técnica de colagem, de cinematismo, de fotografia que remete ao
Cubismo (1906 – 1908), dá-nos memórias e confissões estilhaçadas como
vitrais, exacerbando tudo que venha à memória, nos mais variados assuntos e
aspectos. Resulta disso uma obra à moda dadaísta, repleta de ready-mades
cujos fragmentos de Memórias Sentimentais de João Miramar, Serafim Ponte
Grande e Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo são recortados e
reinseridos em Um Homem sem Profissão para contestar os meios de
expressão tradicionais.
Dadas as premissas, compreendemos, afinal, o propósito do escritor
paulistano quando advertiu, ao início da obra: “Este livro é uma matinada”.
Aplicando as acepções possíveis para matinada, temos por primeiro seu uso
para o trato do caráter religioso. Ao considerarmos junto a esse termo o título
Um homem sem profissão, dentro dos ritos católicos, professar a fé é
reconfirmá-la através dos sacramentos. Sem profissão é, então, sem fé
católica, no sentido de descrença para com a igreja apostólica romana
presente em suas memórias pela litografia, cânticos, procissões, rezas e tudo o
mais. Há um esburacamento nas memórias que lhe possibilita nova trajetória
partindo dos tabus para a habilitação do totem, depois de dizer: Fui cortado,
guilhotinado e tenho medo, segundo consta.
138
Matinada é também ação de despertar (pela manhã), como se as
memórias fossem acordadas através do jogo lembrar e esquecer, daí
derivando outro sentido, o de pensar demoradamente, matutar ou ruminar, ou
elaborar através de técnica antropofágica a configuração memorialista de
UHSP.
Estrondo, ruído, confusão. A matinada oswaldiana tem esse sentido
também, deixando-nos antever que o processo memorialista se dá aos
borbotões, as lembranças vêem confusas, mescladas umas às outras com
relativa força de sentimentos e sensações que cada qual provoca. É ruído que
desestrutura a harmonia sonora do cânone literário confessional brasileiro e
incomoda por causar desequilíbrio nessa orquestração de há muito. É estrondo
porque confessadamente está repleta de juventude amorosa tumultuada e do
temperamento impulsivo do autor narrador personagem.
UHSP, de fato, é uma matinada de vozerio a ressurgir na lembrança,
revivificando a presença daquelas personagens que lhe foram mais caras.
Inúmeras vozes evocadas para ratificar a alteridade proposta pelo escritor. É
multiplicidade de vozes sem hierarquia. O processo cumulativo de
procedimentos técnicos é o canto do passaredo ao amanhecer, com diversas
melodias, ritmos, timbres, velocidades. É falatório que articula qualidade
estética e ideologia em relação à arte, a cultura e a política. É falatório, dado
que não podemos ignorar a crítica tecida por alguns que avaliaram
negativamente essa obra. Ademais, dá-nos este espaço para construirmos
nosso falatório, também.
Matinada equivale ao ato de mentir. Nesse sentido, corrobora a
intenção ficcional dada a UHSP. É ação de madrugar, e nessa matinada
percebemos que Oswald de Andrade se despertou muito cedo, daí o ineditismo
da obra se considerado que pertence a meados do século XX, e sua posição
ideológica literária abriu portas para uma multiplicidade de interpretações e
para penetração cultural que hoje extrapola o campo estritamente literário.
Disse Baudelaire, 1964:165, em A aurora espiritual: “Quando nos
debochados branca e vermelha a aurora faz sociedade com o Ideal devorador,
opera então o seu mistério vingador”. Evidentemente nosso blague não
deixaria de troçar ao juntar numa só obra a marginalidade dada à Antropofagia
e à Literatura Confessional. Tidas como literatura menor, da mescla surge
139
proposta de reabilitação do matriarcado de Pindorama. A terra mãe. A
invenção. É algazarra, e no monstro dormido há um anjo que acorda, diria o
autor de As flores do mal.
É despertar-se no “entre-lugar” primitivo que permanece vanguarda
provocadora de reflexões e debates, um projeto futurista, diríamos. É criação
de lugar sem estabilidade dado como espaço de expressão do eu e do outro,
contra a centralização discursiva de voz literária única, monopolizadora. Essa
que a cada dia parece-nos paradoxalmente bifurcar-se em dois caminhos,
atualmente sendo mais percorrido aquele em que a figura do autor está em
maior evidência em detrimento do valor de sua obra. UHSP é representativa da
vanguarda contemporânea, das ditas minorias, de toda alteridade opositora do
patriarcado, ainda que sua penetração tenha se dado numa esfera hermética,
distanciando-se da proposta de aceder a um público mais amplo de leitores.
Disse Érico Veríssimo em Solo de Clarineta que deixou nas suas
memórias elementos que possam ajudar o leitor a encontrar resposta sobre
que espécie de homem é ele. Modelo de obra autobiográfica bastante
semelhante àquelas centenas existentes no mercado literário nestes dias,
repleto do eu, eu, eu. Mas podemos encontrar nas estantes outras obras
confessionais que parecem deglutir a idéia antropofágica proposta em UHSP. É
o caso de Quase-memória: quase-romance, de Carlos Heitor Cony, onde a
lembrança somada a outras nunca forma a memória daquilo que ele foi ou do
que foram os outros para ele. Parafraseando a esse autor, finalizamos dizendo
que Um homem sem profissão é um quase-quase que nunca se materializa em
coisa real já que Miramar ficou e estamos no fim do perfeito cozinheiro das
almas deste mundo, como disse Oswald de Andrade.
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