Oswald de Andrade Análise teatro

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CONTRAPONTO DE VOZES: A BIOGRAFIA DE O SANTEIRO DO MANGUE, DE OSWALD DE ANDRADE RENATO CORDEIRO GOMES* PARA ARLETE, MARIA EMÍLIA E TÂNIA, CATARINENSES NO RIO O poema-drama O Santeiro do Mangue - mistério gozoso em for- ma de Opera, de Oswald de Andrade, vive ainda nos embates entre sol e sombra. Obra em progresso, este poema-bufo, este trágico canto herói-cômico, que foi submetido a uma fatura lenta, reto- mada e abandonada em cerca de quinze anos, permanece ainda hoje, quase inexplicavelmente, inédita em livro. Com espírito de descoberta, tenta-se buscar trilhas que pos- sam indicar alguns fios orientadores para se penetrar nos "mis- térios" (dolorosos e/ou gozosos e/ou gloriosos) deste edifício textual. Calendário As coisas / Vão e vem / Não em vão. (Oswald de Andrade. Cântico dos cân- ticos para flauta e violão). Um jogo de datas pode ser elucidativo. Labirinto no tempo, em que não se pode perder o fio, este jogo procura uma entrada *Professor de Literatura Brasileira (UERJ) e de Comunicação e Teatro (PUC-RJ). 124

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  • CONTRAPONTO DE VOZES: A BIOGRAFIA DE OSANTEIRO DO MANGUE, DE OSWALD DE ANDRADE

    RENATO CORDEIRO GOMES*

    PARA ARLETE, MARIA EMLIA E TNIA, CATARINENSES NO RIO

    O poema-drama O Santeiro do Mangue - mistrio gozoso em for-ma de Opera, de Oswald de Andrade, vive ainda nos embates entresol e sombra. Obra em progresso, este poema-bufo, este trgicocanto heri-cmico, que foi submetido a uma fatura lenta, reto-mada e abandonada em cerca de quinze anos, permanece ainda hoje,quase inexplicavelmente, indita em livro.

    Com esprito de descoberta, tenta-se buscar trilhas que pos-sam indicar alguns fios orientadores para se penetrar nos "mis-trios" (dolorosos e/ou gozosos e/ou gloriosos) deste edifciotextual.

    Calendrio

    As coisas / Vo e vem / No em vo.(Oswald de Andrade. Cntico dos cn-ticos para flauta e violo).

    Um jogo de datas pode ser elucidativo. Labirinto no tempo,em que no se pode perder o fio, este jogo procura uma entrada

    *Professor de Literatura Brasileira (UERJ) e de Comunicao e Teatro (PUC-RJ).

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  • e uma sada, querendo resgatar do esquecimento, do sepultamen-to empoeirado no silncio e na mudez dos arquivos, o texto os-waldiano. No labirinto da biblioteca, tenta-se encontrar umaAriadne que, oferecendo o fio, permita penetrar em cada veredaque leva ao desconhecido.

    Dois fios iniciais: dois Mrios - da Silva Brito e Chamie -e um passeio por corredores do tempo, com paradas em

    algumascasas-datas, estaes' de um "mistrio".

    Em 1966, Chamie escreve o ensaio "O Santeiro do Mangue ou oMoral do Avesso" 1

    na revista Mirante das Artes (n9 3, So Pau-lo, maio-junho). Era sua inteno publicar o indito, a titulode ilustrao do ensaio. O texto no aparece na revista. Massurge uma edio mimeografada, sem carter editorial. Trata-sede complemento necessrio -quele estudo.

    Vale a pena transcrever alguns dados sobre o manuscrito queo poeta de Prxis fornece no ensaio: "Os originais de O Santei-ro do Mangue so um caderno escolar, de capa preta e com folhasinternas pautadas (...); se abre com o ttulo escrito em mais-culas no centro da pgina. Logo abaixo deparamos com essa datasignificativa: 1935-1950. Logo na pgina seguinte (seria a derosto) do titulo do livro vem sotoposta a expresso: 'desenhoanimado'. (...) Na pgina que seria a primeira do livro, Oswaldescreve o poema Noturno de Mangue, mas no topo registra o lem-brete e a advertncia: 'redao de 11.06.50'. E j do lado Os-wald tenta reescrev-lo, tornando-o fragmento do que seria oCanto I. Insatisfeito, risca e rabisca toda uma parte da novaverso do Noturno do Mangue e deixa mais ou menos intacta aparte maior, cuja leitura dar uma idia clara do desenvolvimen-to posterior da obra. A nova verso toma exatamente quatro p-ginas do caderno. Ao seu trmino, Oswald regista Canto II e otitulo Atracao. Sob esse titulo, o poeta esboa um dilogoentre os personagens Edulia e o Homem da Ferramenta. Depois docurto dilogo, vem a nova anotao Canto III e o titulo corres-pondente So Teso. Esse titulo ficou em branco, nada est es-crito sob ele. Nesse momento, parece que Oswald parou para re-fletir e encontrar melhor o argumento e a estrutura do seu li-vro. Comea, ento, tudo de novo duas pginas adiante. Registraoutra vez e de uma vez por todas no topo da pgina: 'redao

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  • definitiva 11.06.50'. Bota o titulo do livro 'O Santeiro doMangue' e muda a denominao 'desenho animado' para 'ministriogozoso moda de pera', assinalando a data: 1935-1950".

    Envolvendo datas e cadernos escolares, o testemunho de M-rio da Silva Brito oferece alguns reparos substanciais s ob-servaes de Chamie. Em artigo de Cartola de Mgico 2 , pode-seler que Oswald iniciou seu texto em 26.12.36, no Caderno Anjoda Guarda em cuja capa um desenho lindamente kitsch mostra umanjo protegendo inocente criana. "No canto inferior, direi-ta, est escrito: 'Oswald de Andrade - O Santeiro do Mangue -poema para fonola e desenho animado'. Ser, certamente, umadas primeiras redaes a que o poeta submeteu o escrito". Maisadiante, Silva Brito revela a existncia de outra verso termi-nada em 25.02.44, com o titulo Rosrio do Mangue, pantomima re-ligiosa em trinta mistrios, um intermezzo e um epitfio. Datadesta poca, seu conhecimento do poema e ao qual se refere emartigo para o Correio da Manh de 14.12.45: Oswald lhe havialido o poema em sua casa, quando o crtico fora entrevist-lo.

    Avancemos no tempo. Estamos em 1950. Atesta Mrio da SilvaBrito: "Foi em 1950 que Oswald me deu os originais da obra, es-crita num caderno escolar - este de espirais, bem mais modernodo que o do Anjo da Guarda. da marca registrada Camapi. Nacapa, abaixo do titulo, indica o poeta que se trata de 'VersoJefinitiva'. A data: 6.8.50. Quer dizer, entre o texto divulga-co por Mrio Chamie e o que ainda tenho em meu poder, manuscri-to a lpis, h uma distncia de somente um ms e vinte e seisdias. Oswald mantm a a qualificao de mistrio gozoso emforma de pera".

    A cpia que possuo, cedida por Mrio da Silva Brito, trazainda no final: So Paulo, 15 de setembro de 1950, seguida de"confere 25.11.50" - o que mostra ter Oswald submetido seu tex-to reviso ainda mais uma vez. A ver-se por ai a data 11.6.60, atestada por Chamie, no era "de uma vez por todas".

    O texto viria a lume por uma editora de Silva Brito, JosMindlin e Hernani de Campos Seabra, dedicada a obras fora-do-comrcio, que iniciou suas atividades can4a Elegias de Enfiam,de Rilke. "A ltima redao de O Santeiro (...) ia para a ofi-

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  • cina grfica, a fim de ser composta, se a editorinha no tives-se cessado as suas atividades por falta de capital, todo

    eleinvestido, sem qualquer lucro, na publicao das Elegias

    deDuino".

    Quando quis restituir a Oswald o manuscrito, recebeu o cr-tico e amigo a seguinte recomendao: "Voc fica com ele. Comofiel depositrio. (...) E rindo o seu riso aberto, acrescentou:um dia voc publica O Santeiro".

    Esse dia chegou a ser planejado, quando o prprio SilvaBrito organizou e editou para a Civilizao Brasileira as ObrasCompletas de Oswald de Andrade, a partir de 1970. O projeto in-clua O Santeiro, no volume Poesias Reunidas, mas acabou no opublicando. No foi ainda dessa vez que o poema conseguiu sairda sombra para ganhar a luz de uma merecida edio.

    Retocando alguns flashes

    Na descrio que apresenta do poema, a verso do "cadernode capa preta", Chamie arrola os personagens dramticos, entreos quais o estudante marxista, e relaciona as partes constitu-tivas do "mistrio" oswaldiano cujos ttulos aparecem numera-dos pelo prprio autor, a saber: Prlogo no Corcovado; 1.

    No-turno do Mangue; 2. Comcio; 3. Solo de Edulia; 4. Coro dasmulheres de Jerusalm; 5. Responso; 6. Coro; 7. Balada dos Cha-tos (no h texto; vem, apenas, a palavra "censurado", em dia-gonal do centro da pgina); 8. So Teso; 9. Esbarro; 10. Bala-da do Mangue Azul; 11. Looping; 12. Cacto de Saliva; 13. Recal-que ocasionado pelo servio militar; 14. Bicho Carpinteiro; 15.Deolinda sem leite; 16. Horscopo; 17. A embaixatriz do cinco;18. Pscoa das Putas; 19. Gigolo; 20. O Soturno Enlevo; 21. Apolcia pe as calas; 22. Expectativa; 23. Um pai de famliaperdeu a moralidade.

    Antes, porm, de fornecer este quadro, informa que, do Pr-logo no Corcovado at o poema-dilogo de nmero 11, Oswald man-tm a continuidade normal do "livro", na escrita do caderno.Nes-te ponto Oswald, em anotao, orienta para que se virem 30 p-ginas, onde se encontra o poema de nmero 12 e a explicao"con-tinuao do Santeiro". Continua Chamie, acrescentando que entre

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  • os dois poemas citados, existe, no manuscrito, um outro, "Andadepressa Timochenko", com a data de 21.02.44 no inicio e "SoPaulo / 27.10.35 / 14.04.50", na ltima pgina e portanto nofim do poema. Levanta em seguida a possibilidade de se consi-derar ou no esse poema longo como parte integrante de O San-teiro, optando pela negativa pelas seguintes razes: "a) aprimeira pgina do caderno traz a data dupla de 1935-1950; ora,se os poemas tpicos de O Santeiro so de 1950, o poema 'Andadepressa...' deve ter tido inicio em 27.10.35, conforme indicao prprio autor; b) o poema 'Anda depressa...' . quase um pat-tico apelo a Timochenko para que venha ( o problema da aoideolgica) 'nos ajudar a sair / Desta Senzala Transatlntica'que o Mangue, cujo Comendador, alis, 'heri das trinchei-ras noturnas do coito'; c) Oswald costuma inserir em meio a seuslivros textos que chamaramos de 'textos de citao'. o queocorre, por exemplo, com as falas incidentais de Stalin e Ei-senstein, em O homem e o cavalo".

    Estes argumentos, entretanto, no so suficientes para des-cartar o "Anda depressa..." da estrutura de O Santeiro. Se estefoi gastado entre 1935 e 1950, como atesta o prprio Chamie, oque permite afirmar que os poemas tpicos do mistrio oswaldia-no so de 1950? O comentador no explicita tais parmetros. Poroutro lado, na verso de Mrio da Silva Brito, o poema consti-tui a parte intitulada "Orao do Mangue" e traz as datas 07.09.50 / 15.09.50, - o que permite supor o perodo em que Os-wald reviu e passou a limpo o "Anda depressa...", incorporan-do-o redao final de O Santeiro, conferida em 25.11.50.

    H ainda outros dados esclarecedores. improvvel que Os-wald tenha comeado o "Anda depressa..." em 1935. Nessa pocao marechal sovitico ainda no era internacionalmente muito co-nhecido. Seu nome passa a ser mais divulgado a partir de 1940,quando se torna Comissrio da Defesa, e sobretudo quando coman-da as operaes de guerra em diversos fronts, notadamente naUcrnia, em 1943-44: justo a data que Chamie indica estar es-crita no incio desse poema. Alm disso, o cerco de Stalingra-do, mencionado no texto, deu-se durante o inverno de 1942-43.Essas referncias mostram claramente a inviabilidade do anode 1935 para o incio do poema que constitui a "Orao do Man-

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  • gue".

    Outro fato talvez corrobore nessa questo: a entrevistaque o jornalista Justino Martins fez com Oswald, publicada naRevista do Globo (Porto Alegre, 9 out. 1943), tambm intitula-da 'Anda depressa Timochenko".

    A segunda objeo de Chamie refere-se viso ideolgica,co-mo se esta se contradissesse com a configurada nitidamente notom didtico, proselitista e panfletrio de O Santeiro que oprprio Chamie examina em seu artigo.. Esta viso talvez estejaum pouco minimizada na. verso com - que o poeta de Prxis traba-lha. Como ele deixa claro, o poema-teatral osWaldiano encer-ra-se como o ttulo "23. Um pai de famlia perdeu a moralida-de", mas o . texto se alonga (e muito!), com o desenvolvimento daao e falas-comentrios que do maior unidade no texto inter-rompido bruscamente nesse poema de n9 23.

    Mrio da Silva Brito chama a ateno para essas diferenassubstanciais, considerando como "inslita" a ausncia do estu-dante marxista, que aparece apenas no rol dos personagens dra-mticos, mas que some no corpo do poema. Nele no h uma s fa-la desse personagem, - "figura fundamental, no entanto, pois quem interpreta, luz de uma viso ideolgica, o problema daprostituio e suas causas". Interpretao esta que se coadunacom o apelo de "Anda depressa Timochenko" que fecha o poema,suplicando 6 anncio da nova sociedade em que no se necessi-tar da "noite hetaira" do Mangue.

    No terceiro argumento, Chamie denomina "Anda depressa...""texto de citao", fala incidental, como a que ocorre em O ho-mem e o cavalo. Se nesta pea isto acontece, por que no pode-ria tambm estar presente em O Santeiro? A fala incidental se-ria, ento, quase uma excrescncia no texto oswaldiano, ou po-deria ser trao que faz parte de seu sistema de escritura? Ain-da que o poema "Anda depressa Timochenko" no tenha as mesmascaractersticas de "fala incidental" da pea de 1934 dada comoexemplo, o argumento perderia sua validade, uma vez que aque-las "falas" esto articuladasna estrutura em quadros da peaque se organiza como um mistrio medieval. Por outro lado, aobjeo de Chamie cai por terra, tendo em vista o poema comple-

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  • to, que no a verso estudada por ele. Na ltima redao opoema no est deslocado como no "rascunho" do caderno de capapreta: o final que reafirma o seu "propsito desmistificador,crtico e acusatrio de uma dada realidade social", segundo aspalavras de Mrio da Silva Brito.

    Convm notar tambm, com Mrio da Silva Brito, que, emboratenha dado como verso definitiva o texto de agosto de 1950, oautor certamente o teria revisto e reescrito at chegar a umaderradeira fatura literria e estilstica. Na verso a ele con-fiada por Oswald, as partes no so numeradas; desaparecem asde nmero "22. Expectativa" e "23. Um pai de famlia perdeu amoralidade" em relao de Mrio Chamie, que se encerra justa-mente a. Aquela verso prolonga-se com os seguintes ttulos:Bochincho; O suave milagre; O navio do marinheiro atraca noMangue; Mensagem das Mulheres de Jerusalm; Vendeta; Talio;Apo-teose; Palavras do poeta da beira do Mangue; Casa de Pilatos;Estava escrito; Eplogo sobre o Oceano Atlntico; Coro dos an-jos do Corcovado; Coro; Eco; e finaliza com a "Orao do Man-gue" constituda do poema "Anua depressa Timochenko", - partesque do maior organicidade ao texto.

    Escapulrio

    Aqueles que estiverem cansados de convencionalismoliterrio ou de naturalismo de uma arte pornogr-fica ou pantesta ho de saudar nestas pginas danossa mais moderna literatura, uma desforra memo-rvel do Esprito contra a pieguice e a sensuali-dade.

    Tristo de Atai:de. A Desforra do Esprito.

    Acorooado por expectativas, aplausos e quirerascapitalistas, o meu ser literrio atolou diversasvezes na trincheira social reacionria. Logicamen-te tinha que ficar catlico. A graa ilumina sem-pre os esplios fartos. Mas quando j estava ajoe-lhado (com Jean Cocteau) ante a Virgem Maria eprestando ateno na Idade Media de So Toms, umpadre e um arcebispo me bateram a carteira herdada,num meio-dia policiado da So Paulo . afanista. Se-gurei-os a tempo pela batina. Mas humanamente des-cri.

    Oswald de Andrade. Prefcio a Serafim Ponterande.

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  • As dedicatrias que Oswald sarcasticamente faz, nas diver-sas redaes do texto, para depois modificar, rabiscar e, porfim, omitir, evidentemente no so gratuitas. Representam, decerta forma, uma "desforra da carne" opondo-se "desforra doEsprito". No so, em princpio, oferecimento com afeto, afei-o profunda ou venerao; significam por oposio, por revelaro avesso das intenes de quem contemplado com a homenagem -irreverncia.

    Deste modo, constituem entidades parte e ambiguamente noo so. Se, esto fora do livro, ou ficaram fora do livro

    na

    "redao definitiva" (a verso de Mrio da Silva Brito) guar-

    dam, porm, relaes com o texto e funcionam como elemento derelao entre ele e o contexto; tornam-se um dos indicadoresculturais da obra, uma espcie de suplemento significativo doseu universo semntico.

    So as dedicatrias um discurso paralelo ao corpo do textoa que servem de prembulo. So um dos protocolos do texto, umrecurso retrico extremamente econmico, um adiantamento de umafala cujos significados se atualizaro na estrutura do prpriotexto.

    Na verso do "caderno Anjo da Guarda", de 26.12.36, segun-do Silva Brito, a obra era oferecida "a Murilo Mendes e Jorgede Lima, no tempo e na eternidade". "Na eternidade"

    apareceriscado. A dedicatria se estende "s Senhoras Catlicas,

    ao

    Exrcito da Salvao e aos mio/ls na eternidade".

    Essa dedicatria ganha contornos mais ntidos, se cotejadacom as intenes e com a oferta daqueles dois poetas em Tempoe Eternidade (1935), livro de poemas de converso ao catolicis-mo em que conclamavam: "Restauremos a poesia em Cristo". Para-digmaticamente s avessas, em tom parodstico Oswald dedica-lhes um poema fora de Cristo, sem Cristo, contra Cristo, antiCristo, no tempo e no na eternidade. Oswald instaura uma poe-sia que se direciona para o homem histrico, fora do contextocsmico que abole o tempo para cair no eterno do logos divino.Interessa-lhe o aqui e o agora da realidade de Mangue e no "osvos fora do mundo"; no quer "a Graa do Senhor, a Musa doSenhor, a Poesia do Senhor / (que) so alm do espao, alm dotempo"; no cr "nas mgicas de Deus".

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  • Assim, o texto oswaldiano, de alto teor iconoclstico

    e

    carnavalizada contestao religiosa, oferecido ironicamenteaos dois poetas catlicos "no tempo", porm no no tempo "ante-cedente e posterior a tudo". Sem a palavra "eternidade" que foiriscada, a locuo "no tempo" adquire outro significado.

    Avida que nomeia a daqui, cujo gosto no concedido pela Gra-a: Deus indiferente ao sofrimento do homem em suas conti-gincias histricas. como se quisesse engajar Murilo Mendes eJorge de Lima na luta contra essa realidade.

    A dedicatria oswaldiana aponta tambm para a de Tempo eEternidade que reza: "A/Ismael Neri/Na Eternidade". O nome dofamoso pintor recm-falecido e responsvel pela converso dosdois poetas, substitudo por "michs" que, na eternidade, nomais exploram as prostitutas do Mangue. A, o mich Cristo, a religio catlica, o Santo - cegos e surdos realidadesocial do submundo da prostituio, produto do regime burgus--capitalista. A dedicatria ganha mais contundncia irnica quan-do se estende s Senhoras Catlicas e ao Exrcito da Salvaoque falam, ambos, em Nome do Pai, das Tbuas da Lei, da Eterni-dade. A essas mesmas senhoras catlicas Oswald tinha-se referi-do, ferina e sarcasticamente, numa crnica" de 1935. Chama-asde "nervosas abandonadas, fauna desbriada de hospcio, rcuapastosa de viragos e 'soubrettes', ilustres borbulhas do -ban-deirismo, matronas histricas dos bairros ilustres" que fize-ram a corte de Alceu de Amoroso Lima, quando visitou So Pauloquela poca.

    Deste modo, Oswald pretende colocar n mesmo paradigma to-dos os elementos citados, fornecendo, como uma antecipao,fiosque se tramaro no corpo textual para contestar o juzo de Tris-to de Atade a respeito de Tempo e Eternidade: "no h maisalta inspirao para a arte do que o verdadeiro cristianismocatlico".

    Na verso terminada em 25.02.44, intitulada Rosrio do Man-gue - pantomima religiosa em trinta mistrios, um intermezzo eum epitfio, a dedicatria restringe-se apenas a Murilo Mendese Jorge de Lima "no tempo e na eternidade", conservando o mesmoalvo de combate, o mesmo esprito anti-religioso, agora coadju-vado sarcasticamente pelo rosrio do ttulo, que remete a um

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  • poema sem teologia.

    Enquanto, na verso definitiva de Silva Brito, Oswald eli-mina qualquer dedicatria, na outra descoberta por Mrio Cha-mie, ela se amplia, estendendo o seu raio de ironia:

    Aos poetas

    Wolfgang Goethe

    de Weimar

    Paul Claudel

    de Paris

    Murilo Mendes e Jorge de Lima

    do Rio de Janeiro

    Aos amigos

    Domingos Carvalho da Silva

    Hernani de Campos Seabra

    Jos Tavares de Miranda

    Mrio da Silva Brito e

    Geraldo Vidigal.

    Percebe-se uma diviso entre os poetas e os amigos, clara-mente separados em dois paradigmas que se opem. Qual o traoque permite estabelecer esses paradigmas? O segundo a amizadee o fato de serem jovens poetas paulistas da "gerao de 45", edimensiona a dedicatria no sentido prprio de oferecimento comafeto, consagrao. primeiro, na linha da primeira verso,mar-ca-se pelo antagonismo aos poetas compromissados com o pensa-mento cristo, com a poesia em Cristo, com "as mgicas que aGraa do Senhor", com a Graa redentora, com a "desforra doEsprito" - que Oswald contesta. Da a "homenagem" s avessas,aanti-homenagem.

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  • A tica pela qual so enfocados os dois poetas brasileiros,estende-se a Paul Claudel, o poeta e dramaturgo catlico, apo-logista da ordem e da Contra Reforma, que, inspirado pela filo-sofia tomista, celebra em sua obra a grande unidade do

    mundonatural e sobrenatural. O essencial para o poeta francs noseria a relao do homem com o homem, fonte de dilogo, masa relao do homem com o Universo e com Deus: os conflitos hu-manos perdem importncia neste contexto em que "todos os dua-lismos terrenos se anulam ante a transcendncia da ordem csmi-ca e o plano divino da redeno final".

    A este teocentrismo, Oswald, maneira de Brecht, ope osociocentrismo. Informado pela filosofia marxista, v a reli-gio como pio do povo, motivo de alienao e instrumento paramanter imutvel uma ordem social injusta, de privilgios, com-prometida com a sociedade capitalista, burguesa e crist.

    Dir Oswald que "Claudel no s a Idade Wdia leprosa emilagreira daquele horrendo Annonce falt Maile (...). Claudel sobretudo a catolicidade, uma sombra intelectual de Louren-o - o magnifico"7

    O catolicismo, pera Claudel, deve trazer alma repousoe certeza; cabe-lhe ser sedAtivo e no motivo de drama. O cris-to sente-se em concordancia com o universo; a ordem csmicaimutvel no lhe pode inspirar angstia ou desespero.

    Nisso,segundo_Rosenfeld i a obra de Claudel se assemelha aomistrio goethiano do Fausto. Para ambos, o mal tem seu lugarna harmonia csmica. A obra teatral de Claudel como uma vastailustrao da palavra de Goethe de que o universo um rgotocado por Deus, enquanto o diabo move os foles.

    "O luminoso, o estatal Goethe, de Weimar, que desencadeiaasforas subterrneas e as foras celestiais no embate encarnia-do pela alma do homem tornado livre" 8 (como a ele se refere Os-wald), insere-se, por esta via, no trao invariante que agenciaos poetas em dedicatria.

    Creio ser por esta clave pela qual o homem, objeto de for-as teolgicas, v negada a sua liberdade, que Oswald l oFausto de Goethe - o Goethe chanceler, j distanciado de seuromantismo juvenil, lutando para impor a seu poema dramtico a

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  • unidade, que, na sua fase clssica, se lhe afigurava de novoimportante; - o Goethe, de Weimar, acusado tantas vezes de con-servador e aristocrtico (estatal e luminoso, no dizer de Os- .wald).

    Nosso poeta antropofgico parece encontrar no Fausto o mes-mo papel que a Graa divina desempenha nos outros poetas cita-dos. O personagem de Goethe salvo por esta Graa e pela in-terveno do amor transformado em smbolo mstico do Eterno-Fe-minino

    Chorus Mysticus

    O perecvel

    O apenas smile.

    O imperfectvel

    Perfaz-se enfim.

    O no-dizvel

    Culmina aqui.

    O Eterno Feminino

    Acena, cu-acima.

    Ente imbudo de centelha divina, cuja essncia " anseio, e-terno impulso de ir alm de si mesmo, mas, ainda assim, profun-damente cativo das foras telricas e demonacas, Fausto re-tOrna.fonte primitiva da divindade: o smbolo de Um proces-so eterno. Tudo que ' perecvel smbolo de imperecvel. As-sim, ^0 drama de Fausto emoldurado por uma viso csmica emcuja amplitude o protagonista se encontra integrado. O poemainicia-se com o "Prlogo no Cu" em que Deus e Mefisto selam unaaposta pela alma de Fausto. O Senhor, porm, numa fala aos An-jos, aponta para o desenlace da pea:

    Todavia, vs, legtimos filhos de Deus, alegrai-voscom as belezas da criao sempre renovada! A potn-cia criadora que a7e e vive eternamente vos retmnas barreiras propicias do amor, fortaleceu compensamentos duradouros o que adiante de vs se agi-ta em vacilantes aparies"10.

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  • A cena final, que se passa de novo na esfera celeste, mos-tra o Fausto liberto das mos de Mefisto, sendo levado Eter-nidade pelos Anjos:

    Anjos (Vagando na suma atmosfera, levando o eidos imortalde Fausto).

    Salvo, este espirito nobre

    Do Mal que o quis capturar,

    Quem sempre a lutar se esforce,

    A ns dado livrar.

    Se nele alguma partilha

    Tem Amor, que do alto desce,

    Acolhe-o com alegria

    Sincera a legio celestell.

    Todo o drama de Fausto desenvolve-se, portanto, dentro damoldura deste mistrio religioso que, embora revestido de fei-es crists, no tem nenhuma definio no sentido de qualquerreligio positiva. O cristianismo , dentro dessa concepo,apenas um elemento entre outros, conforme observa Rosenfeld.Acrescenta ainda esse crtico serem o pecado (o lado terreno ee mefistoflico) e o arrependimento os mobilizadores da graadivina. O prprio Mefisto tem a sua funo dentro da ordem uni-versal: sua ao resulta em bem, embora vise ao mal; faz parteda hierarquia divina e elemento de uma ordem superior que in-clui o caos como fermento interno. a paradoxia de Fausto ques atravs do Diabo pode chegar a Deus. No anseio fustico fun-dem-se os movimentos divinos e diablicos12.

    Por outro lado, Haroldo de Campos v a projeo do "cu ca-tlico" sobre a cena final do Fausto, no como uma reconcilia-o confessional, que operasse no sentido de favorecer a purga-o do pecado, a instncia humana, e a sua sublimao na ins-tncia celeste, mas, antes de tudo, uma humanizao do cu; noum paraso teolgico, mas a "encarnao" do cu13.'

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  • Walter Benjamin, citado por Haroldo de Campos em seu Deuse o Diabo no Fausto de Goethe, l a introduo do cu catlicocomo uma "intima necessidade poltica dessa poesia". "Trata-sede um regresso utpico ao absolutismo, uma cauo tranqilizado-ra para o poeta, concebida em termos da estrutura do poder du-cal protestante do sculo XVIII. Atravs dessa utopia regressi-va, cuja frmula seria 'poderio feudal sobre a propriedade a-grcola administrada maneira burguesa', Goethe conciliaria oabsolutismo poltico com a agrotcnica (a colnia resgatada aomar, a obra do homem dominando a natureza, sonhada por Faustomoribundo), anulando assim a realidade das lutas sociais do seutempo e passando ao largo delas'''.

    O estudo do critico brasileiro amplia-se ainda com o cotejode outras leituras da cena culminante do Segundo Fausto, masinteressa-nos aqui, particularmente, a interpretao sugeridapelo prprio juzo de Oswald lj citada), que provocaria a in-cluso do poeta de Weimar no paradigma da dedicatria. Tal ju-zo dimensiona-se justamente pela posio de Oswald que, em OSanteiro do Mangue, v o homem determinado por condies so-ciais que devem ser ultrapassadas, e no como objeto de disputaentre Deus e o Diabo. O poema sem teologia, s avessas do queBenjamim v no Fausto, parece sugerir, como hiptese de solu-o, uma "utopia progressiva" (poder-se-ia ver aqui a marchadas utopias para o matriarcado de Pindorama?), sem a interven-o do "cu catlico", sem a instncia reconciliadora da Graa,instrumento da redeno do Espirito. Oswald espera a redenosocial e poltica do homem que pede pressa a Timochenko

    paraanunciar o mundo que est "prestes" a chegar:

    Vem nos ajudar a sair destas senzalasAtlnticasPara que seja eterna a glriaDos que tombaram em defesa da liberdadeE da ptriaDe todos os trabalhadores do mundo.

    A mesma paixo sectria que renega a restaurao da poesiaem Cristo, articula na dedicatria os poetas que cantam a"desforra do Espirito". E por isso mesmo, Oswald elege como umdos suportes de seu "mistrio" o pensamento catlico. Na tessi-

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  • tura textual, efetua-se um jogo de foras: a questo religio-sa permanece como um substrato que borra a superfcie do texto,como num jogo dramtico entre coadjuvante e protagonista.

    NOTAS

    Este trabalho um excerto, com algumas modificaes, dadissertao apresentada para obteno do grau de Mestre(Pon-tificia Universidade Catlica do Rio de Janeiro) com o t-tulo "PLURAL DE VOZES NA BESTA (?) DO MANGUE - Uma leiturade O Santeiro do Mangue, de Oswald de Andrade", orientadapelo Prof. Affonso Romano de Sant'Anna e argida pelos Pro-fessores Dirce COrtes Riedel e Silviano Santiago, em

    se-

    .tembro de 1985.

    'As informaes de Mrio Chamie aqui recolhidas foram tomadasnos seus seguintes trabalhos:-

    "O Santeiro do Mangue. Informaes sobre um texto indito"., In: Suplemento Literrio Estado de So Paulo, 899, 20 out.

    74. Nmero dedicado a Oswald de Andrade.- "O Santeiro do Mangue ou a moral do avesso. In: A linguagemvirtual. So Paulo, Quron, 1976. p.5-15.

    'As informaes de Mrio da Silva Brito foram colhidas em seuartigo includo em:- Cartola de mgico. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira,

    1976.'Of. os poemas "Distribuio da Poesia" que abre o livro Tempoe Eternidade, de Jorge de Lima e Murilo Mendes, e "Os vos za,ra fora do tempo', que o fecha. In: LIMA, Jorge de. Poekascompletas. V.II. Rio de Janeiro, Aguillar/Braslia, INL, 1974.

    4ANDRADE, Oswald de. "S para homens". In: Telefonemas; crni-cas e polmica. 2.ed. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira,1976.Esta crnica, publicada no jornal A Manh, do Rio de Janeiro,em 19.05.35, comenta "o envolvimento orgaco, a patetice ca-rola" da visita de Tristo de Atade a So Paulo. Oswald im-prime a a mesma posio anticatlica que direcionou a linhaadotada em O Santeiro, desde as dedicatrias, - texto que co-meou a ser escrito nesse mesmo ano - 1935.

    s ATAIDE, Tristo. A Desforra do Esprito. In: LIMA, Jorge de.Op.cit.,p.17.

    6ROSENFELD, Anatol. O teatro pico. So Paulo, Ed. So Paulo,1965. p.133.'ANDRADE, Oswald de. Do teatro, que bom... In: Ponta de lan-a. 3.ed. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1972. p.90.

    . 8 Idem, ibidem, p.91.

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  • g GOETHE, J.W. Traduo de Haroldo de Campos. Deus e o Diabono Fausto de Goethe. So Paulo, Perspecti .sm, 1981. p.65.

    "GOETHE, J.W. Fausto/Trad. Antenor Nascente e Jos Jlio F.de Souza. Rio de Janeiro, Letras e Artes, 1964. p.16.

    11 GOET-- ,te; J.W. In: CAMPOS, Haroldo de. Op.cit., p.45.12ROSENFELD, Anatol. Teatro alemo. So Paulo, Brasiliense,1968. p.52-53.

    13CAMPOS, Haroldo de. Op.cit., p.169.14Idem, ibidem.

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