As relacoes entre corpo e palavra nos processos artisticos - a l i n e b e r n a r d i - 2012.pdf
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Faculdade Angel Vianna
Dana, Licenciatura Plena
As relaes entre corpo e palavra em processos artsticos
Por a l i n e b e r n a r d i
Rio de Janeiro
2012
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As relaes entre corpo e palavra em processos artsticos
Por a l i n e b e r n a r d i
Monografia apresentada como requisito para a Concluso de Curso de Graduao em Dana, Licenciatura Plena, pela Faculdade de Dana Angel Vianna.
Orientador: Jorge de Albuquerque Vieira
Rio de Janeiro
Dezembro / 2012
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Dedico essa monografia a minha me Gloria Maria Bernardi que com sua fora guerreira me estimula, me ensina e me permite viver e acreditar na minha luta e ao meu pai Filippo Bernardi que imprimiu em mim a dignidade e que ao tirar a prpria vida me revelou a coragem e a fragilidade que constitui a autonomia de um ser humano.
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(A G R A D E C I M E N T O S)
Ao meu pai Filippo pela ausncia viva e cheia de memrias e minha me Glria pela presena incentivadora e recheada de amor.
Ao meu tio Luca e minha tia Maga, pela presena fsica, mgica e espiritual em minha vida, pela conexo no astral e por tantas e tantas compreenses e
aprendizados.
Ao Jorge Vieira de Albuquerque, meu orientador, que muito me ensinou em suas aulas e me permitiu cavalgar com firmeza e confiana nos trilhos que movem meu
desejo; por me incentivar e me orientar em relao s pedras encontradas pelo caminho, por ser to presente e invisvel ao mesmo tempo.
Isabela Carpena que com seu amor e sua amizade me conforta, me renova, me alegra e me acompanha.
casa de Araras, pela energia e alegria.
Ao Leandro Floresta, por nossa parceria potica em constante espao de vivacidade e permissividade ao encontro, por nossa amizade em vida, por nosso amor.
Isabella Duvivier, Lgia Tourinho e a todos do Ncleo do Invisvel de Pesquisa Corpo pelo terreno frtil de criao que nos propomos a pesquisar e instaurar.
todos os artistas participantes dos Encontros Corpo Palavra, pela presena e disponibilidade para fazer acontecer encontros horizontais, pela vontade e entrega
no fazer Arte.
Soraya Jorge por tantos encontros e descobertas.
Nayana Carvalho, pelo carinho, pelo cuidado e pela ateno nos momentos de pr parto monogrfico.
Ao Encontros Sutis por mover em mim a sustentao e a fora que o coletivo proporciona.
Faculdade Angel Vianna, Andra Chiesorin e Valria Peixoto pelo apoio minha pesquisa.
mestra Angel Vianna por tanta inspirao e aprendizado ao longo do meu percurso.
Eliane Carvalho, pelas trocas e questionamentos dentro da pesquisa.
Ao Joo Aleixo, por suas presenas e ausncias, pelos encontros e pelos desencontros, pelas palavras e pelos silncios, pelas alegrias e pelas dores.
Ao Tlio Rosa, pela amizade, parceria artstica, incentivo e escuta.
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minha irm de astral Maria Eduarda Freyre, Dudinha, por nosso encontro em vida e na graduao em dana na Faculdade Angel Vianna.
Ao Andr de Vasconcelos Barbosa pelo incentivo, escuta e carinho nos primrdios dessa monografia.
ngela Salgado, pela ajuda pontual e carinho especial nos momentos finais.
Ao Dudu, pela escuta atenta e colaborao pontual nesse processo.
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(R E S U M O)
BERNARDI, Aline: As Relaes entre corpo e palavra em processos
artsticos. Orientador: Jorge de Albuquerque Vieira. Monografia de finalizao
de curso em Dana, Licenciatura Plena. Rio de Janeiro: Faculdade Angel
Vianna, 2012, segundo semestre. (96 pginas).
Esse estudo pretende fomentar e promover questionamentos sob a
tica do processo artstico e realizar a prtica do encontro como um espao
potente e necessrio para construir conhecimento dentro do saber da Arte.
Atravs de uma metodologia prtica-terica, a realizao da Srie de
Encontros - Corpo Palavra, criamos um territrio para dar voz pro artista falar
da prpria criao e de como os trnsitos entre o corpo e a palavra
acontecem durante o processo. Perguntas como: O que uma dramaturgia
do corpo? Que tipo de dana se cria da palavra? Qual a palavra que surge
quando o corpo est em dana? Que sentido nasce dessa relao Dana
Palavra? Como inaugurar novos sentidos? motivaram a estruturao desta
Srie de Encontros. Acreditamos que esse tipo de metodologia, com foco na
viabilizao do encontro, colabora para oferecer campo de atuao e de ao
do artista-pesquisador. O nosso interesse foi o de adentrar o universo de cada
artista, para que a partir da vivncia e da prtica do fazer artstico
pudssemos caminhar pelas possibilidades de relaes entre o corpo e a
palavra que podem surgir dentro de um processo criativo. Defendemos o
processo artstico como parte integrante da obra, em prol de reivindicar por
polticas pblicas que abracem esse elemento fundamental da Arte.
Convocamos o artista a ser cartgrafo no dilogo com o desejo de criao,
abrindo horizontes de relaes com a autonomia e autoria artstica na obra-
processo.
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(S u m a r i o)
I - Introduo ........................................................................................................................... 9
II Captulo Primeiro: Processos Artsticos ................................................................ 13
II.1 Ato criador enquanto ao poitica .................................................................. 14
II.2 Cruzamentos de Temporalidades ..................................................................... 16
II.3 Olhares Desviantes ou rede de captao sensorial ...................................... 17
II.4 Vazios criativos do ato de criao .................................................................... 19
II.5 Caoticidades e organizaes ou acasos que rumam para o inesperado .. 20
II.6 Prazer no ato criativo .......................................................................................... 22
II.7 Dana enquanto ato potico : por uma filosofia potica do movimento ..... 23
III - CAPITULO SEGUNDO : CORPO PALAVRA ....................................................... 26
III.1 Encontro Primeiro : pedro moraes e isabella duvivier .................................. 28
III.2 Encontro Segundo: alan castelo branco e gustavo santanna .................... 35
III.3 Encontro Terceiro: ivan maia e leandro floresta ........................................... 43
III.4 Encontro Quarto : mrcia rubin e camila caputti ........................................... 49
III.5 Encontro Quinto : soraya jorge e frederico paredes ..................................... 55
III.6 Encontro Sexto: ana paula bouzas e eliane carvalho .................................. 63
III.7 Encontro Stimo : a l i n e b e r n a r d i ....................................................... 70
IV - CONSIDERACOES FINAIS : P o e m e s e : por um corpo que faz nascer
palavras e pela palavra que evoca um corpo .............................................................. 77
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BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................... 83
A N E X O S ............................................................................................................................ 86
Anexo I Artistas, Perguntas e Fotos da Srie de Encontros Corpo Palavra na
Faculdade Angel Vianna .................................................................................................... 86
Anexo II : Poesias de a l i n e b e r n a r d i citadas ao longo do trabalho ....... 98
Anexo IV ............................................................................................................................... 100
Anexo V : Projeto Manoelesco em Residncia Artstica na Eco Vila Terra Uma
................................................................................................................................................ 101
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I - INTRODUAO
Deus disse : Vou ajeitar voc a um dom:
Vou pertencer voc para uma rvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das guas tem sotaque azul.
Sei botar clio nos silncios.
Para encontrar o azul eu uso pssaros.
S no desejo cair em sensatez.
No quero a boa razo das coisas.
Quero o feitio das palavras.
(BARROS, 2010, p. 369-370)
Com pedaos de mim eu monto um ser atnito. (BARROS, 2010, p.337)
Comear parte de uma necessidade, torna-se um pulso e sustenta
uma energia prpria no ato da continuidade... ser incio, estabelecer um fim e
viver o meio. 1 O desejo que nos motivou realizao deste trabalho
monogrfico foi um desejo de valorizao do encontro. Um desejo de
fomentar e promover questionamentos sobre e dentro da tica dos processos
artsticos e das relaes que se do entre corpo e palavra durante o ato
criativo. Um desejo em tocar mais intimamente o gesto impetuoso e
inacabado da criao e as inquietaes que nele se atravessam.
Para convidar leitura a esse texto a partir de um olhar processual,
resolvemos adotar uma postura de cartgrafo no prprio ato de feitura desta
1 Work in Progress da performance a i n d a sem nome, de autoria de a l i n e b e r n a r d i, e orientao de
Ana Vitria, que foi apresentada na Mostra da Faculdade Angel Vianna, no Teatro Cacilda Becker, no primeiro
semestre de 2011, e que pode ser vista no link : https://vimeo.com/40050710.
https://vimeo.com/40050710
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monografia. Aqui, utilizamos o conceito de cartgrafo defendido por Suely
Rolnik:
Pouco importam as referncias tericas do cartgrafo. O que importa que, para ele, teoria sempre cartografia (...). Para isso, o cartgrafo absorve matrias de qualquer procedncia. (...) Tudo o que der lngua para os movimentos do desejo, tudo o que servir para cunhar matria de expresso e criar sentido, para ele bem-vindo. (ROLNIK, 2007, p.65)
Da mesma maneira que o trnsito entre corpo e palavra atravessa
constantemente o nosso processo artstico, nos interessa saber de que forma
essas travessias se do em outros processos e por isso resolvemos criar uma
metodologia para ser cho dos questionamentos que desejamos levantar e
no termos apenas um nico prisma processual como reflexo.
Essa metodologia foi a criao e a realizao de uma Srie de
Encontros Corpo Palavra que aconteceu na Faculdade Angel Vianna entre
os meses de maio e novembro de 2012. A proposta do Encontro Corpo
Palavra foi promover conversas com artistas de vrias linguagens que
exploram em seus processos artsticos as relaes criativas entre o corpo e a
palavra. Perguntas como: O que uma dramaturgia do corpo? Que tipo de
dana se cria da palavra? Qual a palavra que surge quando o corpo est em
dana? Que sentido nasce dessa relao Dana Palavra? Como inaugurar
novos sentidos? foram motivaes iniciais para a estruturao desta Srie de
Encontros.
Cada encontro foi composto pela presena de dois artistas convidados
com o intuito de ouvir como essa relao corpo palavra se estabelece no
processo artstico de cada um. A escolha de termos dois artistas em cada
encontro tambm revela o nosso desejo de cruzar os processos artsticos e
de promover um dilogo, para que a RELAO fosse a base do ambiente
proposto. Previamente, provocamos cada artista, 2 ou 3 dias antes do
encontro, com 3 perguntas2, e essas perguntas foram postas como
motivaes e inspiraes para a fala de cada convidado; de maneira alguma
eram perguntas com necessidade de resposta diretamente a partir delas, e
2 Vide Anexo I.
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sim perguntas como um convite ao tema e um tapete para o cho de nossas
curiosidades.
P a L a v r a
P que Lavra
Lavoura
Que tece a vida
E a comunicao entre o manifesto
E o no-manifesto3
O primeiro encontro foi realizado em maio e contamos com a presena
do cantor e compositor Pedro Moraes e da bailarina e diretora Isabella
Duvivier; em junho, nosso segundo encontro foi composto pelo ator e diretor
Alan Castelo Branco e pelo compositor, poeta e jornalista Gustavo SantAnna.
No ms de agosto, o encontro teve a presena do filsofo e poeta Ivan Maia e
do cantor e compositor Leandro Floresta. No nosso quarto encontro, realizado
em setembro, tivemos a presena da coregrafa e diretora de movimento
Mrcia Rubin e da atriz, bailarina e cantora Camila Caputti. O quinto encontro
realizado em outubro foi composto pela especialista em movimento Soraya
Jorge e pelo bailarino e coregrafo Frederico Paredes. O ltimo encontro da
Srie, realizado em novembro, trouxe a presena das bailarinas e coregrafas
Ana Paula Bouzas e Eliane Carvalho.
At que ponto podemos ter liberdade de criao na escrita de uma tese
monogrfica dentro de uma perspectiva artstica? At que ponto podemos
danar ao escrever? Como podemos dialogar estilo dentro da Academia?
Onde est inserido o artista/pesquisador? Essas perguntas nos levaram a
adotar uma tentativa de postura de escrita monogrfica inspirada pelo desejo
de mover-se enquanto cartgrafo, utilizando a Srie de Encontros Corpo
Palavra como tapete do texto e deixando aparecer em cima desse tapete tudo
que fosse motivo de cruzamento para montar o nosso mosaico que aqui se
3 Poesia de a l i n e b e r n a r d i.
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constitui com poetas como Haroldo de Campos, Ferreira Gullar, Manoel de
Barros, Arnaldo Antunes; com filmes e episdios vistos na internet, com o livro
Gesto Inacabado de Ceclia Almeida Salles, com letras de msicas, com
obras de artistas plsticos, com a Potica do Espao de Gaston Bachelard,
com residncia artstica numa Eco Vila, com a Traduo Intersemitica de
Julio Plaza, com professores que nos inspiram e tudo mais que os encontros
foram nos provocando e que nos serviram de materialidade neste processo
de escrever sobre algumas possibilidades de relao do corpo e da palavra
dentro dos processos artsticos.
O problema, para o cartgrafo, no o do falso-ou-verdadeiro, nem o do terico-ou-emprico, mas sim o do vitalizante-ou-destrutivo, ativo-ou-reativo. O que ele quer participar, embarcar na constituio de territrios existenciais, constituio de realidade. Implicitamente, bvio que, pelo menos em seus momentos mais felizes, ele no teme o movimento. Deixa seu corpo vibrar todas as freqncias possveis, e fica inventando posies a partir das quais essas vibraes encontrem sons, canais de passagem, carona para a existencializao. Ele aceita a vida e se entrega. De corpo-e-lngua. (ROLNIK, 2007, p.66)
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II - CAPITULO PRIMEIRO : Processos Artsticos
Vida por mim vivida
h de vir a ir
o dia
em que passe a ser
idia
por mim tida
que possa ser
dita
e s por isso
acontec
ida
(ANTUNES, 2007, p. 9)4
O ato criativo na sua dimenso processual, englobando nele o ir e vir
da mo do criador, nos faz enxergar e observar a arte sob o prisma do gesto
e do trabalho, e no apenas v-lo como um resultado; nos permite tocar no
processo artstico enquanto um conjunto de aes que nos revela o quanto
impossvel dar conta dos percursos das conexes criativas, mas que
podemos cheirar e degustar rastros dessa trajetria para aguar nossa
sensibilidade e para vivenciar o contato com uma obra de maneira mais
aprofundada, pois como nos revela Ceclia Almeida Salles um artefato
artstico surge ao longo de um processo complexo de apropriaes,
transformaes e ajustes (Salles, 1998, p.13)
Na nsia por resultados, o que vejo normalmente so cascas sem inspirao no h espao para o caos, pois no se suporta o no construdo. As formataes rpidas do pouco espao para o sentir, h uma insuportabilidade em relao ao que se desconstri, as transformaes so
4 Essa poesia foi disposta no texto de forma centralizada, saindo das regras da ABNT, para respeitar a escrita
potica do artista, que tem uma escolha espacial bem definida na sua criao potica.
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bruscas e o processo no percebido. No h apropriao de percurso. E, no entanto, de acordo com Angel Vianna: no h forma sem percurso.(JORGE, 2009, p.30)
Acreditamos ser o processo artstico um processo cclico, que
comporta fases e que vasculha constantemente os buracos que desejam
ganhar visibilidade e as intensidades que almejam por contorno. O processo
em sua ciclagem adentra e se disponibiliza para a experincia, que o canal
que permite ao criador vestir-se de si mesmo e de sua relao com o mundo
social, poltico e cultural ao qual est inserido. Enfatizar e esmiuar o
processo com lentes de aumento no causa detrimento obra, pelo contrrio,
s a torna mais rica e esclarece seus detalhes.
Defendemos aqui o processo artstico como parte integrante da obra,
em prol de reivindicar por polticas pblicas que abracem esse elemento
fundamental da Arte, pois toda obra artstica parte de uma necessidade do
criador de querer comunicar algo e se desdobra na sua relao com o Tempo,
de acordo com os estabelecimentos de vnculos com elementos, idias,
pessoas, formas e percepes das escolhas que vo sendo feitas. Devido a
esse fator inevitvel da relao temporal que a obra suscita, nos parece mais
do que urgente termos uma poltica que valorize realmente o processo
artstico, pois como nos coloca Mrcia Rubin em sua fala: O difcil de
escrever um projeto voc sentar e antecipar um fato 5.
II.1 Ato criador enquanto ao poitica
O artista dedica sua vida ao que ainda no real, mas que reside dentro da matria
6
Acreditamos ser o ato criador um impulso da necessidade de uma
tendncia do desejo desdobrar-se em trajetrias. O ato criador em
manifestao artstica uma voz em busca de suas qualidades de fala, um
corpo em suas gradaes de movimento, uma busca por aes que possam
5 Vide DVD em anexo, Quarto Encontro Corpo Palavra
6 Frase retirada do filme episdio O Mundo de Sofia, que pode ser assistido na ntegra no link:
http://www.youtube.com/watch?v=tVeCiWA3I20
http://www.youtube.com/watch?v=tVeCiWA3I20
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corresponder s inquietaes de um criador. Por querer e necessitar
comunicar algo, o artista se lana com comprometimento ao grande campo
que a nossa faculdade de imaginar e se prope criar, inventar e construir
realidades para alm do que vivemos no mbito do senso comum e da
vigncia social, no mpeto de querer deixar visvel aos olhos do mundo algo
que a sua sensao desperta.
Mrcia Rubin pontua claramente a sua motivao de gerar ao a partir
de suas inquietaes, a sua motivao para entrar num processo artstico: o
que me faz criar uma situao na qual eu me encontro (...) muito gostoso
poder sentir que o que me moveu foi tudo que eu vivi, uma necessidade de
falar sobre essa condio de estar aqui, de presena, de afirmao.7
A fonte da criatividade artstica, assim como de qualquer experincia criativa, o prprio viver. Todos os contedos expressivos na arte (...) so contedos essencialmente vivenciais e existenciais. (OSTROWER, 1990, p. 7)
Todo artista portanto, a nosso ver, um cartgrafo de sua auto-poisis
que se constri a cada passo do movimento de sua ateno perante as
informaes que lhe chegam de sua experincia no mundo; o artista tem a
capacidade de i n v e n t a r i a r8, ou seja, de captar sensaes e criar
inventrios das suas experincias para assim selecionar e categorizar seus
desejos e ento transform-los em ao no mundo, deslocando uma
percepo j construda pelo senso-comum para um outro ngulo de
observao.
O ato criador enquanto ao poitica evoca um permanente impulso da
imaginao de busca por sentido e ferramenta principal de instaurao de
novas e possveis realidades que abraa as diferenas de subjetividade;
oferecendo um terreno frtil para o surgimento da imagem potica, defendida
por Gaston Bachelard como (...) rupturas de significao, de sensao, de
sentimentalidade, (...) a imagem potica est sob o signo de um novo ser.
(Bachelard, 2008, p.13)
7 Trecho da fala de Mrcia Rubin no Quarto Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo.
8 Palavra inventada pela autora para unir em uma s inteno o ato de criar e inventar.
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O corpo quer, com sua vontade de potncia, no apenas sobreviver, conservar-se, preservar sua vitalidade na relao com o prprio corpo, mas principalmente, segundo Nietzsche, expandir sua potncia, a partir do corpo prprio, na relao com outros corpos e com o meio. Isso significa que o corpo busca, por um lado, atravs do cuidado de si, manter-se ativo, saudvel, e por outro lado, atravs da relao com uma alteridade, intensificar sua potncia, particularmente nas relaes que geram prazer, o que nos leva a considerar duas tendncias principais da experincia da corporeidade: a dos instintos de preservao de si e dos que lhe so familiares, assim como a dos impulsos de prazer voltados para a relao com uma alteridade subjetiva (que no deveria ser empobrecida de vitalidade ou reduzida em sua complexidade, embora frequentemente assim seja na experincia contempornea). (MELLO, 2012, p.111)
II.2 Cruzamentos de Temporalidades
O tempo no serve de medida ser artista no significa calcular e contar, mas sim amadurecer como a rvore que no apressa a sua seiva. Aprendo diariamente: a pacincia tudo. (RILKE, 1980, p.82 apud SALLES, 1998, p.84)
A relao temporal de um processo artstico nos inspira ser um
constante convite a reflexes e aprendizados. O fazer artstico nos instaura a
percepo de toda a complexidade que existe entre as relaes individuais do
artista e suas inseres nas esferas sociais, polticas, econmicas e culturais.
Os atravessamentos que constituem um processo criativo um amlgama de
temporalidades: as atividades cotidianas que incluem as relaes amorosas,
de amizade e familiares junto s rotinas de atividades como acordar, cozinhar,
caminhar ou pegar um transporte, se somam e se entrecruzam com as
imaginaes, com os pensamentos e as escolhas que vo sendo tocadas e
retocadas pela motivao de um tema ou um assunto que o artista deseja
desenvolver e fazer nascer alguma forma de expresso.
Isso significa que a proposta de auto-educao inerente possibilidade de autocriao do corpo criador passa pela abertura existencial a uma grande experimentao heterogentica, produtora, como pensam Deleuze e Guattari, de processos diferenciados de subjetivao, que atravessam os diversos universos de referncia que constituem os territrios da subjetividade, seguindo a linha de fuga de um pensamento nmade, marcado pela transversalidade do desejo de aprender a potencializar os impulsos vitais. (MELLO, 2012, p.12)
O artista , em sua linha temporal de vida, um potente cartgrafo
guiado pelo seu desejo, um nmade com sede de novas paredes para a sua
casa, que o seu prprio Ser em constantes ciclos de mutaes; e nesse
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sentido nos arriscamos a afirmar que o artista antes de tudo, um auto-
educador e um auto-criador de seu prprio tempo de existncia, e atravs
de seu processo criativo que ele se inventa e se reinventa para ir construindo
suas possibilidades de relao com o mundo; e no seu fazer artstico que o
artista pode vislumbrar a construo de sua autonomia. O tempo para o
artista a nosso ver o tempo da vitalidade de uma criao.
E esse tipo de avaliao temporal no pode e nem consegue ser
calculada matematicamente, pois o que est em jogo para o artista-cartgrafo
a sua prpria vida e a maneira que ele se questiona e se provoca para dar
movimento e forma s suas inquietaes: o cartgrafo, em nome da vida,
pode e deve ser absolutamente impiedoso (Rolnik, 2007, p. 69). O artista-
cartgrafo vive sua arte e sua necessidade de express-la na investigao
fronteiria de suas demandas temporais, de seus atravessamentos, e pode e
deve ser fiel s intensidades de cada instante de sua criao, fazendo dessa
escuta o elemento basal para conhecer seus prprios limiares temporais que
podem servir de guia para a construo de seu caminho, de seu prprio
territrio de existncia criativa.
O cartgrafo sabe que sempre em nome da vida, e de sua defesa, que se inventam estratgias, por mais estapafrdias que sejam. Ele nunca esquece que h um limite do quanto se suporta, a cada momento, a intimidade com o finito ilimitado, base de seu critrio: um limite de tolerncia para a desorientao e a reorientao dos afetos, um limiar de desterritorializaao (ROLNIK, 2007, p. 68)
II.3 Olhares Desviantes ou rede de captao sensorial
Acreditamos que todo processo de criao movido pela necessidade
que o artista tem de criar sentidos e dar voz e visibilidade quilo que ele capta
atravs de sua sensibilidade, quilo que o artista deseja transmutar e
transcriar no mundo, e para isso ele se vale da capacidade que o ser humano
tem de criar signos, constituindo furos e abrindo horizontes dentro do que j
estabelecido no senso-comum:
O homem, para sobreviver, comea a transmutar o mundo em signos, em palavras e imagens, tomando posicionamentos e delineando as fronteiras
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da realidade em nosso entendimento. Ao representar, o homem esquematiza o real e materializa seu pensamento em signos os quais so pensados por outros signos em srie infinita, pois o prprio homem signo. Essa atividade de cristalizao em signos (a partir de possibilidade e sentimentos), em formas significativas e simblicas o que caracteriza a formao social e humana. Contudo, as relaes do real (que signo) e a linguagem que tambm real tecem uma tessitura ou malha fina de conexes. O real uma espcie de conjunto polifnico de mensagens parciais que realizam um contraponto, determinando a inteligentibilidade maior ou menor do sinal de conjunto. Perceber j selecionar e categorizar o real, extrair informaes que interessam num momento determinado para algum propsito. Muito mais do que o real, o que os nossos sentidos captam o choque das foras fsicas com os receptores sensoriais. (PLAZA, 2010, p.46)
Essa qualidade da percepo de selecionar e categorizar o real o que
defendemos como um conjunto de desvios do olhar do artista para a
possibilidade de materializar a informao captada pelos sentidos do corpo
(principalmente os sentidos ttil, auditivo e visual). Intumos ser esse olhar do
artista um olhar que deseja, ao mesmo tempo, ter focos de ateno
unidirecionais, para afinar e esculpir aquilo que a ele chega de informao
sensorial, juntamente com a potencialidade da qualidade de ateno do foco
difuso, que seria a possibilidade do campo de percepes estar
constantemente disponvel e aberto para a chegada dos momentos criativos
de grande resoluo de sentido, as portas do que costumamos chamar de
insight.
O olhar do artista, a nosso ver, um olhar sempre aberto
receptividade dos desvios, para que a sua expresso e sua capacidade de
criar signos sejam processadoras da grande rede sensorial, que o seu
prprio corpo; para que sua necessidade de criar outras configuraes do
real, atravs das suas obras e a partir da faculdade da imaginao, possam
ser a traduo dos desdobramentos de seus prprios pensamentos,
sensaes e funcionalidades.
O processo artstico carregado de rastros e possibilidades de
caminhos, so muitas gavetas e muitos cofres que acompanham um fazer
artstico. E esses lugares muitas vezes possuem acessos ocultos e revelam
toda uma rede de imagens a ser capturada pela sensibilidade do artista-
cartgrafo, que vai se revelando na composio artstica: o que Bachelard
vai chamar de fenmeno do oculto. Imaginar os elementos que esto contidos
-
19
nessas zonas ocultas o fio condutor da motivao do fazer artstico e ao
mesmo tempo so rastros e caminhos que vo sendo trilhados no ato criativo.
O mundo um ninho; um imenso poder guarda os seres do mundo nesse ninho. (BACHELARD, 2008, p. 116)
II.4 Vazios criativos do ato de criao
Escrever o que no acontece tarefa da poesia (BARROS, 2010, p.31)
O vazio como uma perda de coerncia, como um lapso do processo no
tempo, pode se instaurar em diversas fases do fazer artstico e ora pode se
anunciar como ponto de partida de um ciclo criativo, outras vezes pode ser
ponto de chegada e muitas vezes ressurge como ponto de virada no meio de
um processo criativo. Durante a rotina de feitura de um ciclo artstico algumas
perguntas so reincidentes: O que fazer? Por onde comear ou por onde
continuar? De que maneira construir e como conduzir um pensamento?
Muitas vezes esses vazios so bloqueados e/ou negados dentro do processo
de criao; a percepo da fadiga em algum momento do ciclo criativo e a
permisso existncia de um v a z i o criativo como parte integrante do
processo de criao uma perspectiva de renovao para que novos
espaos sejam acessados e para que a espiral criativa no estagne, a
possibilidade da recuperao de flego.
O nosso prprio processo de escrever essa monografia, e nosso
interesse nessa viva inter-relao do corpo e da palavra, nos faz visitar essas
possibilidades de perdas de sentido, nos instaura v a z i o s criativos, os quais
costumamos omitir dentro desses processos com objetivos mais conceituais.
Por estarmos adotando uma tentativa de escrita cartogrfica e por estarmos
nos colocando como artista-cartgrafo no prprio processo de criao desta
monografia, resolvemos assumir esses vacolos e consideramos interessante
pontuar esses cortes processuais como uma indicao estilstica no texto,
para convidar o leitor a ter uma viso concreta desses momentos no ato de
criao.
-
20
... ... ... aqui, nesse exato momento, vivemos um ... ... ... v a z i o ... ... ...
criativo e paramos para respirar e cozinhar ... ... ...
A imagem do vazio a princpio pode nos remeter a algo que no existe,
que no acontece, que no se materializa; no entanto, defendemos que o
vazio bastante concreto em sua existncia e consideramos importante a
abertura de espao dentro do processo artstico para a atuao do cio e do
vazio, que muitas vezes, ao serem vivenciados, mostram possibilidades de
olhares que antes no estavam em voga, e se revelam potencialidades para a
continuidade do processo em curso.
Esse espao do vazio, esses vacolos, so o que conhecemos como
zona do desconhecido, e que muitas vezes refutado por serem zonas que
apresentam dificuldades e angstias muito intensas. Essa zona de silncio e
do no direcionamento do movimento abre linhas da experincia que (...) ao
ser vivido, atravessado, movido, provoca a criao de muitas outras maneiras
de existncia (Jorge, 2009, p. 11)
O problema no mais fazer que as pessoas se exprimam, mas arranjar-lhes vacolos de solido a partir da qual elas teriam enfim algo a dizer (DELEUZE, 1990, p. 177 apud JORGE, 2009, p. 11)
II.5 Caoticidades e organizaes ou acasos que rumam para o inesperado
Algum vem, com efeito, s vezes, tocar conosco (...) o nosso querido acaso: guia-nos as mos fortuitamente, e a mais sbia providncia no poderia imaginar mais bela msica do que esta que nasce ento sob a nossa louca mo. (NIETZSCHE, 2004, p. 144)
Criar estruturas no processo de criao e caotizar as estruturas que
vo nascendo do fazer artstico um exerccio estimulante e um pulso vital de
toda necessidade de criao.
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21
Ao nos perguntar como os refgios efmeros e os abrigos ocasionais
recebem por vezes, de nossos devaneios ntimos, valores que no tem a
menor base objetiva? (Bachelard, 2008, p.20), Bachelard est nos
convidando a adentrar o terreno do caos criativo e todo acaso que a ele se
atravessa durante seu percurso. Um percurso que constantemente vai se
alimentando de imagens que so construdas no caminho de pisar no prprio
percurso.
Tatear e disponibilizar-se para esse momento catico permite que cada
acaso que aparea torna-se um potencial de composio do processo que se
faz fazendo; essa aventura do ato criativo, que de caos em caos, e sacudido
pelos acasos, vai deixando nascer estruturas. Estruturas que ficam visveis e
que expem a maneira como cada artista constri imagens. O artista um ser
que cria imagens pela necessidade de criar espaos de sustentaes dos
seus processos caticos, cria imagens para servirem de cho s suas
inquietaes, e para dar oportunidade de continuidade ao complexo processo
que se desdobrar na relao vida e arte.
Esses acasos que interferem nas escolhas e nos caminhos do ato
criativo so, na viso da filsofa Fayga Ostrower, uma espcie de
catalisadores potencializando a criatividade, questionando o sentido de nosso
fazer e imediatamente redimensionando-o. (...). No captaramos, nesses
estranhos acasos, ecos de nosso prprio ser sensvel? (Ostrower, 1990, p.1)
Nesse sentido, no h como prever a imagem (considerada aqui como
um fruto dos processos das possveis e das mais variadas relaes do corpo
com a palavra, da palavra com o corpo), pois um nascimento advindo da
imaginao tem o carter do inesperado: Bachelard novamente nos indaga
sobre:
Como esse acontecimento singular e efmero que o aparecimento de uma imagem potica singular pode reagir sem nenhuma preparao em outras almas, em outros coraes, apesar de todos os pensamentos sensatos, felizes em sua imobilidade? (BACHELARD, 2008, p.3)
O corpo do artista um sistema em dilogo aberto com o mundo,
recebendo e ofertando informaes num ciclo de ativaes e proposies. As
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22
imagens poticas so variacionais na defesa de Bachelard, no admitindo o
conceito constitutivo dessa imagem. Aqui entramos em consonncia com o
filsofo e anunciamos entender o surgimento da imagem potica como reflexo
do prprio processo artstico em curso, em desdobramento.
II.6 Prazer no ato criativo
A palavra p r a z e r nos remete a algo bom, ao agrado, e o artista
aquele que faz algo pra dar a si um sentido na vida, o artista cria para
construir sentidos de prazeres. O artista passa por angstias, por dvidas, por
dificuldades e em algum momento chega num ponto de seu processo artstico
em que ele v e sente que algo se formou, e que aquele pedao formado tem
um grande sentido pra ele, e isso o retorna numa grandssima satisfao e o
faz valorar seu prprio suor e sua predisposio a passar por todas as fases
da criao pra chegar ali, naquele momento que o faz sorrir na alma.
... ... ... outro v a z i o criativo chegou e paramos para fumar um cigarro e
tomar um taa de vinho ... ... ..
O processo artstico tem em si mesmo uma busca pela continuidade, e
se realiza num entrelaamento de momentos vividos; o artista cria e criado
a partir das experincias de sua vida e questiona incessantemente os
espaos de prazer de suas vontades, ao mesmo tempo se alimenta e se
disponibiliza quilo que a vida o oferta. Ivan Maia compartilha o momento
impar e a intensa experincia corporal de fazer o parto de seu filho em casa:
A vida j comea muito intensa tanto no sentido da dor quando do prazer, essas duas coisas comeam juntas, misturadas, de uma forma que no se separam, e da que vem a compreenso de que a gente precisa saber compreender como elas esto entrelaadas e como ns podemos buscar o tempo inteiro extrair tambm prazer em meio dor, buscar alcanar prazer
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23
em meio as dores, aos sofrimentos que a gente vive e transmutar sofrimento tambm em sentidos vrios, em vitria, em conquistas.
9
Buscar o prazer dentro do processo artstico mastigar cada instante
rumo realizao da vida e ganhar avanos no desejo do artista em dar
sentido sua criao; acreditamos que pra isso necessrio viver o prazer
de criar gradativamente e respirar em cada instante da criao, o prazer de
vincular-se relao com o processo artstico em seus gradientes de
intensidades, como uma fonte incessante de qualidades para a continuidade
da criao.
A virtude o comportamento mais distante dos extremos de comportamento possveis em uma situao dada. A virtude no pode ser encontrada nos extremos: tanto o homem que voluntariamente no come como o comilo causam danos a sua sade. (...) Ocorre o mesmo com as virtudes morais (...) a virtude estaria em alguma parte do meio termo. Seria necessrio respeitar os interesses da famlia, mas tambm os do Estado. O homem que se entrega a todos os prazeres um libertino, mas o que foge de todos os prazeres um insensvel. O que foge de todos os perigos um covarde mas o que enfrenta todos os perigos um temerrio. (BOAL, 1975, p.20)
II.7 Dana enquanto ato potico : por uma filosofia potica do movimento
A filosofia da poesia deve reconhecer que o ato potico no tem passado, pelo menos um passado prximo ao longo do qual pudssemos acompanhar sua preparao e seu advento (BACHELARD, 1989, p.1)
A dana um ato potico no que podemos intuir de uma filosofia da
poesia. A dana aparece enquanto realce sbito de uma presena do corpo
no espao que se prope a receber essa dana. O corpo se escreve no
espao enquanto surgimento de uma ao potica. O corpo da dana um
nascer e renascer de um verso dominante, o corpo da dana um ato potico
de uma imagem potica, de acordo com o olhar de Gaston Bachelard para o
que a imagem potica:
necessrio estar presente, presente imagem no minuto da imagem: se h uma filosofia da poesia, ela deve nascer e renascer por ocasio de um verso dominante, na adeso total a uma imagem isolada, muito precisamente no prprio xtase da novidade da imagem. A imagem potica um sbito realce do psiquismo (BACHELARD, 1989, p. 1).
9 Trecho da fala de Ivan Maia no Terceiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo.
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24
A imagem para Bachelard uma ontologia direta que tem seu prprio
dinamismo, ontologia que reflete na dana uma explorao do espao-tempo
em qualidades estticas e dessa dana enquanto ontologia dela mesma no
seu momento de exploso, no seu aparecimento, que desejamos trabalhar,
que desejamos praticar enquanto ato potico. nesse estar sendo no minuto
de seu surgimento que desejamos p-la no espao da cena. Uma ontologia
direta da dana que fruto do seu processo em constante revisitamento e
burilamento, no fruto de um passado, mas fruto de um vivaciado10, estado de
estar vivo nessa dana enquanto atitude.
Bachelard evoca o poeta como aquele que fala no limiar do ser, e
assim que desejamos evocar o bailarino, como aquele que dana no limiar do
ser. O bailarino como poeta de seu prprio corpo e poeta do espao, aquele
que dana em repercusso e no por causalidade. Aquele que repercute, que
repete enquanto manifestao. A repercusso um ato manifesto. uma
manifestcita11. uma festana do estar presente na dana que recebe e ao
mesmo tempo recebida pelo espao. Uma manifestao no se faz sem a
sentir. Para viver a dana enquanto ato potico necessrio sentir sua
manifestao em ao no espao que essa dana se prope a viver.
O poeta no me confere o passado de sua imagem, e no entanto ela se enraza imediatamente em mim. A comunicabilidade de uma imagem singular um fato de grande significao ontolgica (BACHELARD, 1989, p.2)
Assim como pedido por Bachelard que no devemos encarar a
imagem potica como objeto, a dana como ato potico tambm no deve ser
recebida enquanto tal, como algo que est restrita a um campo de
significaes prvias. A dana enquanto ato potico deseja ser um gesto de
explorao do corpo na prpria experincia do danar enquanto se dana;
uma experincia do escrever essa dana no espao cnico (teatro, rua,
galerias...) como o poeta que escreve palavras no espao do papel. A dana
10
Conceito criado por BERNARDI : avidez de estar revisitando o vivo dessa dana vivaciado seria tomar
conscincia da transformao pessoal que ocorre quando estamos fazendo algo enquanto vivenciado tomar
conscincia do que foi feito. 11
Manifestcita : com este termo, criado pela autora na sua experincia com a palavra potica (vide poesia da
autora no anexo II), pretendemos falar de uma manifestao tcita e no discursiva, e desejamos trazer neste
conceito a dana enquanto uma manifestao potica como um acontecimento e o bailarino como um poeta do
corpo.
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25
enquanto ato potico vislumbra uma realidade especfica em si e no pode
assim ser capturada e aprisionada enquanto objeto; pede para ser livre no
intuito de continuar sendo real e viva na experincia do ato de danar.
Em suma, quando se torna autnoma, uma arte assume um novo ponto de partida. interessante ento considerar esse incio na mente de uma fenomenologia. Por princpio, a fenomenologia liquida um passado e encara a novidade (BACHELARD: 1998, p. 16)
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26
III - CAPITULO SEGUNDO : CORPO PALAVRA
Constncia no trabalho, constncia na ateno12
Hoje em dia vemos que o campo das artes est com mais aberturas
para receber as expressividades, e esse foi um espao conquistado nas
ltimas dcadas. Consideramos essa abertura um ganho importante para a
Arte, mas nos provocamos diante de uma questo que a nosso ver fica mais
latente nesse panorama: qual o papel do artista no mundo de hoje? Que
corpo-palavra esse que o artista instaura como Arte? Quais so os
desdobramentos que as relaes entre o corpo e a palavra esto suscitando e
pedindo espao de expresso?
No nos interessa aqui definir qual corpo e qual palavra desejamos que
se estabelea enquanto ao poitica, e sim escutar a voz processual da
experincia de cada artista na sua relao com a criao, e nos posicionar
tambm em como essa relao atravessa o nosso processo criativo. O que
nos interessa aqui dar visibilidade a alguns possveis dessa relao corpo-
palavra atravs de algumas provocaes, com o desejo de fazer nascer
novos questionamentos e novos encontros do artista com o mundo, do artista
com a Arte.
A Arte hoje em dia no pode ser mais somente esttico-contemplativa,
ela deve estar enlaada e comprometida no dilogo com aquilo que nos
provoca afeces.13 Hlio Oiticica j anunciou isso em 1965, mas tornar a arte
uma prtica de um modo de vida ainda um aprendizado que est nos seus
primeiros passos:
A arte muda sim, mas fao questo de frisar que no concebo uma nova esttica, mas justamente o contrrio: elaborar, definir o que conceituo como antiarte. Para mim os conceitos de arte como uma atitude fixa, contemplativa, acabaram no podemos mais conceber estticas, mas
12
Frase que est escrita na forma de um bilhete, num papel vermelho, dentro do armrio vermelho, da sala
vermelha, da obra Desvio para o Vermelho, do artista Cildo Meireles. 13
Vide fala de Camila Caputti no sub-capitulo Encontro Quarto, dentro do capitulo II, que cita o que Espinosa
fala da diferena de afeto e afeco.
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27
sim um modus vivendi do qual se ergueram novos valores ainda nebulosos. O precrio, o ato, o fazer-se, tomam sentido como valores a considerar: mas o principal a no formulao de leis para a arte ou algo assim. A poca do racionalismo dominante chega a seu trmino: daqui por diante o intelecto aparece como parte de uma concepo de uma totalidade da vida e do mundo, na qual aparece a arte como impulso criador latente da vida. No se trata pois da arte como objeto supremo, intocvel, mas de uma criao para a vida que seria como que uma volta ao mito, que passa aqui a ocupar um lugar proeminente nessa totalidade. Esse mito seria regido por estados criativos em sucesso no indivduo e na coletividade no se quer o objeto de arte, mas um estado, uma predisposio s vivncias criativas; um incentivo vida. Logicamente tambm estariam desacreditadas todas as supostas novas morais em oposio s antigas, tendendo a uma antimoral. (OITICICA, 2009, p. 37)
Qual palavra-corpo e qual corpo-palavra que est sendo posto em ao
no mundo? Esse questionamento nos remete ao maior grau de
responsabilidade que sentimos ter o artista e suas aes no mundo de hoje,
um mundo onde mais difcil se colocar omisso ou esconder seus atos e, a
nosso ver, todo processo artstico deve ter como base de sua criao o
trabalho de afinamento e burilamento da presena no ato de criar e da
ateno s responsabilidades que cada ao est propondo no mbito social,
poltico, educacional e cultural.
Devolver ao corpo as sensaes que intensificam vida e despertam
motivaes para a continuidade do caminhar, utilizar as palavras como um
terreno frtil de criao de questionamentos para impulsionar o corpo que
deseja vibrar aquilo que inspira sentido: nesses cruzamentos entre corpo e
palavra que acreditamos ser possvel a instaurao de novos padres de
percepo e interao social que so corporificadas na experincia de um
processo artstico. O msico Leandro Floresta nos provoca o pensamento ao
dizer que a pergunta na msica o que faz musicar, a tenso na msica
aquilo que torna o movimento musical, (...) a pergunta muito mais vital do
que a resposta, a resposta um acontecimento que acontece quando j est
movida a pergunta14.
Aqui desejamos reconhecer e evocar o artista como aquele que se
provoca e se questiona incessantemente na sua relao com o mundo, e no
somente algum que desenvolve uma linguagem artstica, como a msica ou
14
Trecho da fala de Leandro Floresta no Terceiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo.
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28
a dana; o artista-cartgrafo aqui defendido e evocado aquele que
disponibiliza seu corpo para os atravessamentos da sua relao com a
natureza e com as outras pessoas, da sua relao com a cidade e os
modelos scio-polticos vigentes; o artista-cartgrafo aquele que se move
na fronteira do que sente e deseja expressar e o que ele reconhece estar
instaurado social e politicamente no mundo, o artista-cartgrafo aquele que
abre furos e horizontes nas possibilidades e nos desejos de comunicao.
Neste capitulo convidamos a nossa curiosidade a entrar e a tocar na
intimidade do processo artstico de cada artista que participou da Srie de
Encontros Corpo Palavra, e ao encontro que a autora desse estudo faz com o
seu prprio processo de criao. Ao final de cada encontro, como parte da
metodologia, adotamos como um jogo a ao de cada artista fazer uma
pergunta para o outro artista que no deveria ter resposta, com o intuito de
deixar a espiral do desejo do encontro se desdobrando em outras motivaes
e inquietaes para o futuro.
As pedras so muito mais lentas do que os animais. As plantas exalam mais cheiro quando a chuva cai. As andorinhas quando chega o inverno voam at o vero. (...) Os dedos dos ps evitam que se caia. Os sbios ficam em silncio quando os outros falam. As mquinas de fazer nada no esto quebradas. (...) as pginas foram escritas para serem lidas. As rvores podem viver mais tempo que as pessoas. Os elefantes e golfinhos tm boa memria. Palavras podem ser usadas de muitas maneiras. Os fsforos s podem ser usados uma vez. (...) Crianas gostam de fazer perguntas sobre tudo. Nem todas as respostas cabem num adulto. (ANTUNES, 2007, p. 39)
III.1 Encontro Primeiro : pedro moraes e isabella duvivier
Meus andaimes, os andaimes da construo.
O corpo e a palavra so as duas coisas mais trabalhosas que eu j experimentei na minha
vida.15
Pedro Moraes, cantor e compositor, iniciou sua trajetria em 2002
quando decidiu estudar canto pra valer com a professora Glria Calvente,
com interesse em buscar compreenses das dinmicas da voz, a partir do
15
Frases de Pedro Moraes, no Primeiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo.
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29
entendimento de transformar os elementos impalpveis da msica em corpo:
musculaturas especficas de sustentao da voz, a frma de cada slaba
cantada, o mapeamento e a descoberta dos lugares afetivos alojados no
corpo como modos dinmicos para a amplitude do ser intrprete. Estudou
tambm com o professor Henrique Schuller que o fez pesquisar o movimento
que se torna som e o som que se transforma em movimento e que o ajudou a
conscientizar a conexo entre o p e o cho como fonte de vivacidade do
corpo.
Durante alguns anos, Pedro foi performer e msico do Coletivo
LiquidaAo, que tem uma pesquisa com o elemento gua realizando
intervenes urbanas dentro de piscinas, em chafarizes secos e aes com
baldes que transportam gua pela cidade; essa experincia retornou e
marcou no trabalho do cantor o seu desejo de desenvolvimento do corpo na
cena e ampliou a sua relao com a escuta da ao em coletivo e da
composio em tempo real, retornando-o em provocaes como: qual o
CORPO que sustenta o corpo pblico? Como que o CORPO imprime
experincia?
Na relao com o pblico, a afetao e a permeabilidade ao olhar do
outro, os atravessamentos que interferem na presena cnica, so pontos de
interesse e pesquisa do cantor que relata aprendizados da sua vivncia nas
intervenes urbanas:
E a rua e aquela loucura, aquela barulheira e aquilo me emprenha de uma potncia, de uma energia, de um lugar alterado de conscincia; e um cho alterado, muito fsico de onde eu atuo; sou eu, no um personagem, mas sou um eu numa outra roupagem.
16
O seu lado compositor revela em sua fala uma busca constante e
atenta na relao do corpo com a palavra, para que a criao no se
transforme numa sensao de dvida e/ou frustrao; e cita Bjork e Thom
Yorke como referncias pra ele de artistas que alcanam a conexo da
palavra e do corpo no nvel dos rgos, reconhecendo o rduo e permanente
trabalho que pesquisar essa conexo: eu olho pra mim e olho pro Himalaia
16
Trecho da fala de Pedro Moraes, no Primeiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo.
-
30
a se subir, e eu vejo que o Himalaia a se subir tem essa cara sabe? Tem a
cara de uma conexo desses universos e uma conexo de muito trabalho,
uma conexo que precisa de ajuda17
Para Pedro, a msica portadora de sentidos no mapeveis, uma
fuso de tempos, atua detrs do olhar, colorindo a possibilidade do olhar, ela
tanto algo que se olha quanto algo que contamina a possibilidade da
viso18. E essa potncia s possvel, na viso do artista, justo porque ela
uma linguagem, e a possibilidade de simpatia ou vibrao anloga enquanto
contgio tem a ver com a caracterstica estrutural que a msica tem como
base de sua linguagem. A transio para o sc. XX fez surgir novas narrativas
e buscou dissolver o ambiente da harmonia musical; na viso do compositor :
Hoje n vivemos um ambiente em que a idia da libertao das potncias das verdades inconscientes chegou ao mximo, chegou a um paroxismo, chegou a uma exploso, que tem duas conseqncias: ou o ambiente da linguagem completamente dissoluta, que uma linguagem pra iniciados, a pessoa tem que entender um contexto muito peculiar pra saber de que se trata uma instalao de um artista plstico contemporneo; ou aquilo que produz e comunica e consome de uma maneira mais ampla, trabalha com a dieta mais restrita possvel de linguagem, de manuseio de smbolo, traz a coisa pro mais simplrio, pro mais linear.
19
Esse territrio mais simplrio como representante do que seria o pop,
o mais comercial, funciona na viso do artista na lgica do gozo, que utiliza
elementos simples que se organizam para gerar uma alegria sinestsica.
Pedro nos questiona sobre as possibilidades de se criar dentro das Formas,
dentro das estruturas, percebendo onde est o tensionamento de cada
momento. Na sua experincia com a criao20, o compositor manuseia as
sensaes como uma possibilidade de idia para ser encaixada numa
formalidade estrutural; e esse desconforto o leva a explodir um determinado
sentido inesperadamente e ao mesmo tempo permite o aparecimento de
outros sentidos: interessa ao artista conviver cotidianamente com a tradio e
se dispor a uma forma para perceber o que dela vai explodir e/ou se revelar.
17
Trecho da fala de Pedro Moraes, no Primeiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo. 18
Trecho da fala de Pedro Moraes, no Primeiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo. 19
Trecho da fala de Pedro Moraes, no Primeiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo. 20
http://www.youtube.com/watch?v=yJopYGD8UPA: nesse link podemos degustar um pouco do trabalho do
artista Pedro Moraes.
http://www.youtube.com/watch?v=yJopYGD8UPA
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31
Foras invisveis seriam um atravessamento de afetos sem fim tanto na fala como no corpo.
Eu quero ser cavalo daqueles afetos.21
Isabella Duvivier, diretora e coordenadora do Ncleo do Invisvel de
Pesquisa Corpo22, coletivo que pesquisa a arte do movimento, do teatro e da
instalao, iniciou sua fala traando seu percurso que comeou na TV PINEL,
dentro do Hospital Psiquitrico Philippe Pinel, no Rio de Janeiro, que tem
mais de 15 anos de trabalho com interveno de cultura na sade mental e
que utiliza a produo delirante e o discurso da loucura para formatar arte:
Foi uma reviravolta na minha vida, entrei l me achando super sem preconceitos, super bem resolvida, super democrtica, super super e descobri que o buraco era muito mais embaixo. (...) visualmente artesanal, mas profundamente tocante. (...) como se conversa com pessoas que aparentemente no conversam dentro da nossa linguagem? Como criar relao e esttica com essas pessoas?
23
Depois de 4 anos na TvPinel, Isabella atuou no IPUB (Instituto de
Psiquiatria/UFRJ) com crianas psicticas e autistas e decidiu se aprofundar
na clinica, na questo da escuta analtica e cursar Psicologia. Essas
experincias afetaram a artista numa intensidade corporal tal que a sua
necessidade de produzir algo para alm da clnica a fez perceber que seu
desejo era pesquisar estticas de realidades e atuar no fenmeno da psicose,
a partir do que o ambiente psiquitrico a revelou: a existncia de foras que
ela nomeou de foras invisveis: foras espaciais que so barradas pelo
processo simblico dentro da sociedade que se reconhece na normalidade.
21
Frases de Isabella Duvivier no Primeiro Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo. 22
O Ncleo do Invisvel de Pesquisa Corpo um grupo de Corpo-Instalao, formado pelas pesquisadoras
Isabella Duvivier, Ligia Tourinho e Aline Bernardi com a direo de Isabella Duvivier. A
pesquisa do Ncleo consiste em "Como me transformo em instrumento do espao? Buscamos a ativao do
estado que chamamos de Corpo Verbo, corpo este que inscreve (im)expresses no espao/tempo, ativo de
estrias, materiais imaginrios, recheado de tenses. Perseguimos, atravs de nossas experincias em
laboratrios, encorpar as aes do desejo, nos fazendo de instrumentos; instaurar as repercusses desse
fenmeno em ns e no alm de ns. A nfase est nas foras invisveis do sensvel se corporificando em estados
afetivos. Somos brincantes do inconsciente e isto nos tira qualquer responsabilidade, estamos juntas por simples
diverso de nos misturarmos, simplesmente porque no d mais para viver de outra forma, agimos como em uma
montagem desordenada, onde uma cadeia se ramifica em vrias possibilidades sendo o estado criador acalanto
para esta transferncia. Nos transferimos de uma para outra, de paisagem para corpo, de vida para no vivas. No
mais arte. pura brincadeira. Uma antropologia sobre o reflexo, no h absolutamente nada na frente do
espelho: www.nucleodoinvisivel.com 23
Trecho da fala de Isabella Duvivier no Primeiro Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo.
http://www.nucleodoinvisivel.com/
-
32
A motivao de sua investigao comeou a mapear a percepo de
zonas de intensidade dentro da escuta vibrtil, zonas onde a sensibilidade se
torna mais pulsante, e a conduziu para uma pesquisa de anotaes dessas
percepes, onde a palavra pode existir numa zona carregada das foras de
afeto, onde a palavra afetada. Os afetos nas zonas de delrio e alucinao
tornam-se esttica. Nessa pesquisa o que tocou a artista primeiramente foi o
afeto da fala e depois o afeto do corpo. Sua orientadora Esther Delgado uma
vez lhe disse que a psicose tem um cheiro e tem um gosto e esse um
espao to difcil de ser falado que s possvel ser sentido, como a exemplo
da obra do artista Bispo do Rosrio.
Ao entrar na Faculdade Angel Vianna, a diretora inicia todo um outro
percurso de trabalho com o corpo e a conscincia corporal, adentrando um
outro universo de pesquisa da relao espacial do corpo; e toda a sua
vontade de ser canal corporal das zonas de afeto do inconsciente entra em
conflito com a organizao proposta na construo da conscincia corporal,
pautada principalmente no direcionamento dos ossos do corpo. E nesse
embate nasce uma pergunta que vai guiar a formulao do que Isabella
chama de Corpo Verbo:
Que corpo este que estaria disponvel a atuar na fronteira hbrida entre a fala e o gesto? (...) A este contemporneo Corpo cnico chamei Corpo Verbo. o defino como uma mquina desejante de atuar capaz de manifestar estados afetivos, no atravs da representao nem das tcnicas codificadas do corpo maniquesta, mas por meio de uma incorporao de instncias e foras do invisvel. (DUVIVIER, 2011, p. 2)
E na prtica de experimentao dentro do Ncleo do Invisvel que a
diretora prope uma metodologia para abrir os poros do corpo e permitir a
entrada dessas foras de afeto. Numa comparao entre a clinica falada e a
escuta vibrtil do corpo, Isabella enxerga que o corpo no tem as barreiras
que a linguagem tem (...), ele produz discursos num outro lugar24. E nesse fio
sua pesquisa busca dialogar com o corpo - devir de Deleuze e Guattari, com o
corpo sem rgos de Artaud, com um corpo do paradoxo: posso olhar pra
24
Trecho da fala de Isabella Duvivier no Primeiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo.
-
33
voc e eu sei o que estou sentindo, mas eu no sei te dizer se no for atravs
de uma afetao25
A inteno da experimentao preparar o corpo do ator-bailarino para o contato com um espao recheado de tenses, memrias e subjetividade e estimular neste encontro um efeito de criao de um ambiente de inveno no normativo onde o significante cnico pode deslizar inmeras vezes e de diversas formas produzindo gestos potentes de afeto. (DUVIVIER, 2011, pg 4)
A explorao desse corpo sem rgos o que vai preparar o corpo do
ator-bailarino para se tornar um corpo-depoimento, e uma das condies
primordiais pra encenar e compor esse depoimento ter que abrir mo
radicalmente do significado para desvelar as camadas de Sinestesia na qual o
corpo age diretamente atravs dos afetos. E na composio da esttica do
bricoleur, da colagem, que a diretora encaminha a encenao, permitindo que
os sentidos se somem a partir daquilo que afeta e afetado, sem que exija
um significado a priori. Nessa investigao nasce o BRICOLAGE26, projeto de
montagem cnica que inaugura a metodologia do Ncleo do Invisvel, a partir
de cartografias pessoais.
Na corporificao dos estados afetivos, as atrizes-bailarinas cartografam inspiradas no mtodo de Deleuze e Guattari - temas ligados ao fenmeno da existncia humana - a que move o ser humano quando ele tocado de angstia, amor, fragilidade, medo, entre outras qualidades. (...). Usamos o mtodo como uma linha de montagem de territorializao e desterritorializao, sempre seguindo a lgica da colagem, do bricoleur, que no respeita as fronteiras arbitrrias das linguagens e rompe com a lgica do drama, do eu e do outro e, conseqentemente, com a representao. (DUVIVIER, 2011, pg 4)
Alexandre Mendes, um dos participantes deste encontro, questiona a
relao da inconscincia com a palavra do corpo e com o corpo da palavra e
pontua que nessa desnecessidade de ocupar o territrio do significado, a
palavra possa talvez deixar de ESTAR e passar a INSTAR, ou seja, a ser
instante. A diretora Isabella Duvivier revela seus primeiros lampejos na
pesquisa com o espao do inconsciente:
25
Trecho da fala de Isabella Duvivier no Primeiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo.
26 Projeto de montagem BRICOLAGE, contemplado pelo Edital FADA 2012 da Secretaria Municipal de
Cultural do Rio de Janeiro e com estria prevista para outubro de 2013.
-
34
O inconsciente corpo, (...) e a gente faz muito esforo pra domesticar nossos instintos, a gente faz muito esforo pra fazer xixi na privada quando a gente nenm, sabe? Ento, uma conteno muito forte de energia, um caminho s vezes muito rduo at a chegada da linguagem. (...) isso que vibra o inconsciente.
27
Pedro acredita que esse outro poder, que poderamos chamar de
inconsciente, evocao explosiva de potncias humanas, que transcendem a
compreenso; esse poder tem a ver com hbito, com educao, com cultura,
com linguagem28. Traa-nos um percurso da msica a partir do sc. 17 e 18
que viveu um momento vertiginoso com a questo do indivduo se
instaurando como centro pulsante da subjetividade; at o momento que as
possibilidades dos subterrneos desse indivduo no seu encontro com o
desconhecido foram gerando o desmantelamento e a queda do sistema de
expectativas no incio do sc. XX. Por isso o cantor enxerga que o projeto
das rupturas com as estruturas de linguagem foi desgraadamente vitorioso, a
contracultura formou uma outra cultura29. Pedro defende e deseja na sua
relao com a criao o resgate de fios de linguagem que esto em nosso
tempo, mas que esto tambm em qualquer outro tempo: esto no tempo em
que permite tempo suficiente pra os sentidos emergirem30.
O corpo sem rgos se ope menos aos rgos do que organizao dos rgos que se chama organismo. um corpo intenso, intensivo. (...) A sensao vibrao. (DELEUZE : 2007, p.51)
Perguntas sem respostas:
Pedro para Isabella: Existe um lugar na sua fala de um anseio por uma
libertao, na transcendncia do recalque e na imanncia do corpo, uma
coisa meio mstica e ao mesmo tempo tem uma vontade de comunicao de
algo significativo: qual a relao dessa questo com a contracultura?
27
Trecho da fala de Isabella Duvivier no Primeiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo. 28
Trecho da fala de Pedro Moraes no Primeiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo. 29
Trecho da fala de Pedro Moraes no Primeiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo. 30
Trecho da fala de Pedro Moraes no Primeiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo.
-
35
Isabella para Pedro: (Isabella pe as mos sobre os olhos de Pedro e convida
pessoas do encontro a vir beijar a bochecha do artista) - quais as pessoas
que te beijaram?
III.2 Encontro Segundo: alan castelo branco e gustavo santanna
-Por que voc ta chorando? Uma rvore to linda, eu vou levar pra outras cidades essas fotos, a foto dessa rvore, da sua cidade.
-No, a questo que eu passei muito tempo da minha infncia debaixo dessa rvore, ento tem muitas memrias da minha me, passei muitos perodos debaixo dessa rvore refletindo sobre a vida.
31
Alan Castelo Branco Xavier iniciou o encontro nos contando sobre as
origens de seus sobrenomes para avivar a sua percepo sobre o como
nosso pas continental e o quanto isso a raiz da sua grande motivao
que viajar. E que o levou a elaborar um projeto, que est sendo
desenvolvido desde 2010, chamado Theatro de um Homem S que consiste
num teatro, numa apresentao teatral, uma performance teatral, solitrio,
como o nome j diz, mas que visa ampliar as possibilidades do prprio
teatro.32 E o projeto de inaugurao dessa proposta se chama Theatro de um
Homem S em Estado de Cultura Rio de Janeiro33 e um percurso por
todos os 92 municpios do Estado do Rio de Janeiro para a realizao de uma
performance em cada cidade, numa espcie de dirio de bordo da viagem.
Para estruturar e montar a performance, Alan passa um dia em cada
cidade fotografando, filmando, entrevistando pessoas, pesquisando estrias
locais, tanto de situaes histricas quanto de situaes do cotidiano daquele
lugar e considera um ponto muito interessante a inverso que seu projeto tem
na relao com o pblico, o fato de ele ir em cada cidade o coloca indo na
31
Trecho da fala de Alan Castelo Branco Xavier, no Segundo Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo, que
relata um momento de uma das performances do projeto Theatro de um Homem S em Estado de Cultura Rio
de Janeiro. 32
Trecho da fala de Alan Castelo Branco Xavier, no Segundo Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo. 33
http://theatrodeumhomemso.blogspot.com/: Blog do Projeto realizado no Estado do Rio de Janeiro nos anos de
2011 e 2012.
http://theatrodeumhomemso.blogspot.com/
-
36
direo do pblico, ao invs de estar montando uma pea para entrar em
cartaz no circuito da capital:
uma inverso do jogo e no qual consiste em eu chegar na cidade e descobrir se na cidade tem um teatro, porque muitas cidades no tem; tiveram situaes que eu me apresentei em quadras de esporte, sei l, em auditrio de escola e teve um mximo que foi numa Cmara de Vereadores, me deram a opo entre a Cmara de Vereadores e o auditrio de uma escola e eu falei : no, imagina, pode ser na Cmara de Vereadores.
34
A questo do espao determinante na construo de cada
performance, pois o influencia em como se comportar em cena e na seleo
das estrias para cada cidade. Alan no constri um personagem, ele se
coloca como um cidado que deseja reconhecer o pblico e suas condies
de vida, com o desejo de perceber e refletir sobre que tipo de ferramentas e
estruturas culturais aquelas pessoas tem em suas cidades. Essa postura do
artista determina sua prpria fala e seu prprio estar cnico durante cada
apresentao.
A performance j ento, nesse sentido, a prpria presena do artista
em cada cidade e a sua curiosidade em ao no cotidiano da cidade desde o
momento em que ele vai comprar um po, tomar um caf, descobrir o hotel
que vai se hospedar, ler as informaes dos sites da prefeitura, os textos e os
jornais da biblioteca de cada cidade. Os depoimentos do pblico durante as
apresentaes so fatores surpreendentes e no previsveis para Alan, que
se deixa atravessar por essas interferncias e as utiliza durante a
performance. da vivncia que o artista se alimenta e se inspira para
construir a dramaturgia.
... ... aqui vivemos um novo ... ... ... v a z i o ... ... ... criativo e paramos para
arrumar a casa, dar um mergulho na piscina e escutar msica ... ...
34
Trecho da fala de Alan Castelo Branco Xavier, no Segundo Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo
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37
Buscando relacionar seu projeto com a provocao de como o corpo
pode alterar a palavra em cena, o artista diz que no Theatro de um Homem
S, por estar em cena como ele mesmo, todos os recursos e temperamentos
de sua prpria personalidade ficam disponveis em seu corpo para ele
escolher de acordo com cada pblico e situao; ele revela que o pblico
nesse caso determina a sua presena e que para construir um roteiro de
repertrio de estrias de cada performance, em cada cidade, ele lana mo
da memria das pesquisas prvias junto s memrias de sua vivncia na
cidade, e acredita que esse exerccio de memria estabelece uma qualidade
da palavra na cena.
No Theatro de um Homem S, eu no sou o ator desse teatro, eu sou o nico que assiste a esse teatro que eu resolvi enxergar, na verdade eu estou no centro de tudo pra ver as pessoas, pra ver as cidades, pra ver como elas se comportam e como espectador reagir de alguma forma.
35
Como ator, Alan integrou a Cia. Fodidos e Privilegiados, e como diretor
e dramaturgo fundou a Resistncia Cia. de Theatro e o Theatro Pi, e em sua
percepo existe 4 possibilidades de fonte da relao corpo palavra para
ele assistir como diretor no ator: a palavra vinda de um improviso a partir de
um tema, o ator que autor do que est falando, a experincia de um ator
falando a palavra de um outro autor, e o ator falando o texto do diretor que
nesse caso o dramaturgo tambm. E cada proposta de origem da palavra
exige da direo recursos e posturas diferentes perante a relao texto-ator.
Enquanto diretor-dramaturgo, Alan sempre se sentiu mais a vontade
em trabalhar com adaptaes em cima de textos de outros autores, buscando
se apropriar do texto que escolhe dirigir e/ou adaptar; e para isso ele costuma
tensionar o texto, rasurar, cortar e inserir outras situaes, com o objetivo de
contextualizar o texto para o grupo de atores que est dirigindo, sendo
essencial para o processo que essa dramaturgia seja feita junto com o ator:
sempre enxerguei a palavra nesse encontro com o ator na questo da
dramaturgia, muito voltada pra essa apropriao do prprio ator pra falar
aquele texto36. importante, na sua viso, que todos trabalhem na dilatao
35
Trecho da fala de Alan Castelo Branco Xavier, no Segundo Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo. 36
Trecho da fala de Alan Castelo Branco Xavier , no Segundo Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo.
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38
da dramaturgia juntos, durante os ensaios, atravs do espao de liberdade de
experimentao que o diretor oferece ao ator para este encontrar no prprio
corpo essa palavra dita com verossimilhana, pois importante que o ator
esteja seguro na sua fala e com o que est falando.
Como ator, Alan diz que o tipo de teatro que lhe interessa foi
aproximando seu desejo de estar em cena da arte da performance, com
espaos dramatrgicos autorais, mesmo que em dilogo com grandes
autores. Para ele, o seu atual projeto Theatro de um Homem S rene muito
de seus interesses e dissolve tudo: eu sou o diretor, produtor, dramaturgo,
ator, figurinista, contraregra, ou seja eu no sou nada, tudo e nada37.
Dissolver as funes um lugar que lhe instiga no momento e at mesmo
dissolver o personagem: estar em cena, ter o compromisso de comunicar, ter
algo a dizer e no ter necessariamente um personagem (...) um tipo de
disposio que radicaliza de um jeito o teatro que me coloca em lugares mais
interessantes38. nessa pesquisa que, atualmente, o artista se sente mais
vivo na sua busca de se comunicar atravs da arte.
Eu estou usando a palavra pra relaxar o meu corpo e mais, quando eu fao isso, no meu modo de ver a palavra, eu estou usando o meu corpo pra relaxar o corpo, eu no vejo a palavra falada como uma coisa que est fora do corpo, na verdade eu acho que quando voc fala, voc j est usando o seu corpo; ento assim, a palavra escrita at pode ter esse distanciamento, mas a palavra falada nunca.
O olho da cano e a mo da cano o ouvido. 39
Para Gustavo, ao cantar uma cano, ao falar alguma coisa ou emitir
um som j se ativa o espao do corpo, a garganta e as cordas vocais. Ao ser
convidado para este encontro, ele diz ter aceitado na hora, depois de ter
assistido o primeiro Encontro Corpo Palavra, pois a temtica suscita questes
que o movem muito e que lhe desperta a curiosidade de saber como outros
artistas da sua linguagem, a msica, e artistas de outras linguagens lidam
com a relao corpo palavra em suas criaes.
37
Trecho da fala de Alan Castelo Branco Xavier , no Segundo Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo. 38
Trecho da fala de Alan Castelo Branco Xavier , no Segundo Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo. 39
Frases de Gustavo SantAnna , no Segundo Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo.
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39
Na sua relao com a criao, a cano ganha corpo no processo de
feitura, no trabalho com seus elementos: a melodia, a harmonia, a entoao;
mas na sua percepo, ela tambm j corpo mesmo que ainda sendo
apenas um sentimento ou uma idia, sendo neste caso um estgio
adormecido ou uma atuao no plano da inconscincia, mas j corpo
porque a inquietao atua nesses espectros. Quando um sentimento ou
uma intuio, ela potncia a ser desenvolvida no processo de
enfrentamento com a realidade, e esse o ponto em que agem os processos
de escolhas de caminho a seguir.
A questo que mais emociona e envolve o compositor nessa
investigao dentro do processo de criao no a questo da origem da
inspirao, mas sim a transformao corporal que a msica sofre durante seu
processo de feitura e nascimento:
Quando voc pensa que voc faz a cano do corpo do compositor, essa cano sai de um corpo, ela perde um certo corpo e muda pra outro que um corpo sonoro e esse corpo sonoro que teoricamente no tem corpo, porque um corpo que voc no toca e que voc no v, quando ele bate no outro [corpo] ele provoca emoes no corpo do ouvinte, isso pra mim um verdadeiro milagre, quer dizer , quando a cano perde o corpo fsico, ela vira onda, no mais matria, ela vai bater no corpo do cara e vai criar emoo, vai criar choro, riso, vai criar sensao ou vai criar at rejeio (...) e isso acontece em qualquer tipo de msica, no tem a ver se voc est fazendo msica contempornea europia, ou se voc esta fazendo partido alto.
40
Para pensar a relao da poesia com a composio, Gustavo nos
convida a refletir sobre uma pergunta: Qual a diferena entre poesia e letra de
msica? E acredita que a letra de msica uma categoria de poesia, ou seja,
a poesia pode ser uma letra de msica ou no. O compositor faz uma
analogia com o cinema: existe a fotografia, a msica, o roteiro e nada disso
o filme, o filme seria, na sua concepo, tudo isso e a maneira como esses
elementos interagem, e considera que a msica no cinema nem precisa ter
uma musicalidade com elaborao complexa, a exemplo do diretor Stanley
Kubrick, que gosta de utilizar notas nicas repetidas para criar tenso:
A letra de msica na verdade um elemento dentro da cano, ela um elemento que serve a um corpo todo, (...) e a essa letra de msica pode ser
40
Trecho da fala de Gustavo Sant`Anna , no Segundo Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo.
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40
mais prxima do que a gente tem conveno de chamar de poesia, que a letra no papel, ou no. (...) o mais interessante que o que vai dizer se uma msica boa, no se a poesia boa, e nem se aquela letra de msica poesia, o que vai dizer se a cano boa, se a cano boa, como o filme; se a interao daqueles elementos produz uma coisa que atinge seus objetivos, que pode ser o mais alto objetivo ou pode ser o mais baixo, pode ser uma marcha de guerra, pode ser a msica pra tocar o corao das pessoas, pode ser uma msica pra despertar sentidos transcendentais, pode ser extremamente cerebral, pode ser quase matemtico, tem gente que compe em mtodos matemticos (...) ou voc pode ter uma msica, por exemplo, como a do Jorge Bem Jor, que na minha opinio uma msica com um fluxo contnuo, no tem uma poesia, (...) Xica da Silva uma sinopse, (...) um fluxo contnuo que junto com aquela cano, funciona no corpo.
41
No ensaio para a Rdio Batuta42, do Instituto Moreira Salles, Gustavo
faz uma comparao entre a gravao de Jorge Ben Jor e do Trio Mocot
para a msica Que nega essa?; ele considera as duas gravaes timas,
mas o grande mistrio na sua viso como a gravao do Ben Jor d a
sensao de curiosidade no corpo de quem ouve pra saber que nega
realmente essa: Jorge Ben Jor fala de uma nega atravs de adjetivos muito
comuns, mas a potncia de juno dos elementos de sua msica transmite
todo o teso metafsico e o sentimento vivo por essa nega.
A letra de msica parte de um todo que a cano, como a msica
no cinema parte de um todo que o filme, e a poesia no papel tem uma
existncia prpria43. A poesia no papel tambm se diferencia da letra que por
sua vez se diferencia da poesia falada, pois a oralidade traz uma srie de
segredos e tcnicas que foram pouco estudadas em nosso pas, devido a um
reflexo da colonizao europia, que valoriza mais o que escrito do que o
que falado; estudiosos e pesquisadores da cultura africana e at os
estudiosos da cultura brasileira de raiz sabem que a oralidade uma chave
muito delicada da expresso.
Ao ser convidado a refletir sobre Qual a palavra do corpo e qual o
corpo da palavra?, uma provocao feita pelo prprio Gustavo quando estava
de ouvinte/participante no primeiro Encontro Corpo Palavra e devolvida a ele
agora como artista/convidado, ele nos afirma que todas as palavras so do
41
Trecho da fala de Gustavo Sant`Anna , no Segundo Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo. 42
http://ims.uol.com.br/Radio/D1006: link do ensaio A cano no microscpio que Gustavo SantAnna fez
para a Rdio Batuta, do Instituto Moreira Salles. 43
Trecho da fala de Gustavo Sant`Anna, no Segundo Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo.
http://ims.uol.com.br/Radio/D1006
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41
corpo, pois toda palavra j em si garganta, cordas vocais, rins. Toda palavra
corpo; j o corpo da palavra, o faz perceber que toda palavra tem peso,
volume, densidade, cor, toda palavra tem uma potncia em seu corpo:
quando eu vou compor uma cano eu presto muita ateno no corpo da
palavra44. Em DOIS, segundo cd do DUOPAR45, o artista revela ter
procurado fazer com que as palavras soassem muito afetivas e este foi o fio
motor de seu processo com as canes desse disco.
Outro alimento de seu processo artstico a relao com a escrita
terica; ao expor que sempre volto mais esperto pra composio depois de
escrever sobre [msica]46, o compositor e jornalista pontua sua relao direta
entre o domnio racional e o domnio artesanal do fazer canes e diz que
sente, depois de elaborar algum assunto no enfoque racional, como se outra
parte do seu corpo fosse liberada para a intuio. No entanto, na concepo
do artista, o mais importante o prprio fazer artstico, o prprio se
disponibilizar para mexer com os elementos da arte que se prope a
construir, que no caso de Gustavo so canes, e cita o cineasta [Akira]
Kurosawa: toda pessoa sonhando um gnio47.
Isabel Barreto, no momento de abertura para perguntas e conversas,
provoca a reflexo sobre a inteno das artes contemporneas, que s vezes
estabelece um afastamento de questes prprias do corpo e considera
interessante essa ao do projeto de Alan no desejo de despir o personagem
e a sua busca pelo pblico; acredita que tem a uma questo existencial, a
gente vem criando muitos meios de se sutilizar, criar novas tecnologias e
como que a gente fica nisso n? (...) em que a gente se encontra? (...)
ento esse movimento de ir buscar eu acho que faz uma desconstruo do
que seria esse popular, um outro olhar.48
44
Trecho da fala de Gustavo Sant`Anna , no Segundo Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo. 45
http://duopar.com.br/: site do duo Gustavo SantAnna e Nanda Marinho. 46
Trecho da fala de Gustavo Sant`Anna , no Segundo Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo. 47
Trecho da fala de Gustavo Sant`Anna, no Segundo Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo. 48
Trecho da fala de Isabel Barreto, participante/ouvinte do Segundo Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em
anexo.
http://duopar.com.br/
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42
Alan concorda que um tesouro esse contato com as pessoas e que a
pesquisa dele depende do encontro com as pessoas pra continuar, mas
relembra que o sentido da palavra Theatro, na Grcia, remete tanto arte do
fazer teatral quanto ao espao fsico da cena, e considera importante reunir e
concentrar as pessoas no teatro (espao cnico) para viver uma experincia
junto. Isabel se refere tambm ao momento que Gustavo compartilhou seu
desejo de tratar as msicas de seu segundo disco do DUOPAR como se
fossem envolvidas por um grande envoltrio de afetos, dizendo ter sido muito
afetada com esse desejo de cuidado do artista ao compor: pensar em como
vai chegar pra quem escuta, ento voc est cuidando do corpo de quem vai
receber isso (...) o belo aqui afetivamente humano49. Essas colocaes de
Isabel revelam e confirmam a grande necessidade de Gustavo e Alan em
construir e lapidar a comunicao. E Gustavo completa: o ato de comunicar
um ato de humanidade, de generosidade.50
A relao entre o artista e o pblico um processo bilateral. Ao permanecer fiel a si prprio e independente das temticas de interesse imediato, o artista cria novas formas de percepo e eleva o nvel de compreenso das pessoas. Por sua vez, a conscincia cada vez maior da sociedade acumula um suprimento de energia que provoca subsequentemente o surgimento de um novo artista. (TARKOVSKI, 1998, p.200)
Perguntas sem respostas:
Alan para Gustavo: aquele que surdo, no sente a msica?
Gustavo para Alan: quando voc chega em cada cidade, o corpo da cidade
(cheiro, arquitetura, sons...) pode fazer voc ter uma relao diferente com o
corpo das pessoas?
49
Trecho da fala de Isabel Barreto, participante/ouvinte do Segundo Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em
anexo. 50
Frase de Gustavo Sant`Anna, no Segundo Encontro Corpo Palavra, vide DVD em anexo.
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43
III.3 Encontro Terceiro: ivan maia e leandro floresta
Tudo nasce do corpo.51
O cantor e compositor Leandro Floresta abriu nosso terceiro Encontro
Corpo Palavra nos convidando a pensar que toda expresso artstica fruto
de uma experincia direta com o corpo e a relao que cada um tem com as
sensaes que habitam e atravessam seu prprio corpo; ele expe que sua
relao com a composio de msicas motivada pela necessidade de pr
uma sensao em forma de msica e que essa criao traz em si a evidncia
do corpo na ao de criar e de tocar uma msica, ele diz gostar de:
Cantar da forma que eu dano, sabe assim? Da forma que o meu corpo age, atua quando eu estou me expressando: assim como quando eu falo e movo, quando eu ando, eu estou trazendo meu corpo de uma certa forma, a msica eu tambm vejo ela como se fosse esse gesto, esse corpo gestual.
52
O ato de compor a expresso de uma verdade que revela na criao
algo que foi vivido pelo artista; a melodia para Floresta uma forma de dizer
uma palavra que est pedindo para se tornar ntida, que est clamando para ir
ao mundo, de transformar uma sensao em uma verdade tangvel na
expresso, a ela ganha forma e [ganha] gesto (...) no necessariamente um
gesto de mos, mas o corpo que produz a palavra e produz o som, ento
um gesto do corpo53. E para a msica ser msica, para que esse corpo
gestual em forma de msica seja experimentado, necessrio p-lo no
mundo, p-lo em cena; e para Leandro, tudo cena, no apenas a situao
de estar num palco, mas esse colocar sua expresso no mundo, compartilhar
sua criao um `Estado de Cena`. Para o artista se outra pessoa cantar a
minha msica eu vou ter outras idias com essa minha prpria msica,
engraado, s vezes eu fico um pouco cego com a prpria forma de ver
minha msica54; por isso que as mesmas palavras, uma mesma msica, na
boca e no corpo de outra pessoa, podem dizer novas coisas.
51
Frase de Leandro Floresta, no Terceiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo. 52
Trecho da fala de Leandro Floresta, no Terceiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo. 53
Trecho da fala de Leandro Floresta, no Terceiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo. 54
Trecho da fala de Leandro Floresta, no Terceiro Encontro Corpo Palavra, vide Dvd em anexo.
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44
Esse `Estado de Cena` para Floresta55 um estado de vitalidade;
compartilhar uma expresso artstica com algum rever a prpria atitude do
que pr algo em cena, um encontro nas qualidades de ateno, como se
a ateno da pessoa que v e/ou escuta algo fosse naquele instante da cena
a mesma qualidade de ateno de quem est expressando algo, como se
pblico e artista entrassem na mesma freqncia naquele momento da cena
em ao: o outro ao me ver como eu sendo (...), quando acontece aquela
ateno que ajudada muito quando tem o outro: seja aquele a quem voc
fez a msica e est mostrando, ou seja o pblico, ou seja at um ensaio
compartilhado56. Isso nos faz lembrar o que a diretora de teatro Ariane
Mnouchkine responde sobre o que para ela o pblico deseja sem saber:
O que nos torna realmente humanos? A emoo que sentimos frente a outro humano. (...) o teatro no uma loja, nem um escritrio, nem uma usina. um ateli de encontro, de compartilhamento. Um templo da reflexo, do conhecimento, da sensibilidade. Uma casa onde a gente deve se sent