ASSOBIANDO À VONTADE

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ASSOBIANDO À VONTADE   Àquela hora o trânsito complicava-se. As lojas, os escritórios, algumas oficinas, atiravam para a rua centenas de pessoas. E as ruas, as praças, as paragens dos elétricos, que tinham sido planeadas quando no havia nas lojas, nos escritórios e nas oficinas tanta gente, ficavam reple tas dum moment o para o ou tro . !os largos pass ei os da s gr andes praças havia encontr"es. As pessoas de aprumo tinham de fechar os olhos #quele desacato e no viam remédio seno rece$er e dar encontr"es tam$ém e praguejar algumas ve%es. &s elétricos apinhavam-se na linha # frente uns dos outros. 'eguiam morosamente, carregados até aos estri$os e por fora dos estri$os, atr(s, no salva-vidas, com as tais centenas de pessoas que saltavam #quela hora apressadamente das lojas, dos escritórios, das oficinas. Além disso, nos dias $onitos como aquele, as ruas da )ai*a enchiam-se de elegantes que iam dar a sua volta, #s cinco horas, pelas lojas de novidades e pelas casas de ch(, para matar o tempo de qualquer maneira, ver caras conhecidas, cumprimentar e ser cumprimentadas, e só voltavam a casa # hora do jantar.  A multido propunha uma confraterni%aço # força. Era preciso pedir desculpa ao marçano que se aca$ava de pisar, implorar #s pessoas penduradas no elétrico que se apertassem um pouco mais para se poder arrumar um pé, nada mais que um pé, num cantinho do estri$o, muitas ve%es sorrir para gente que nunca se tinha visto antes e apetecia insultar. &s elegantes e as elegantes achavam naturalmente tudo isto muito a$orrecido. 'o$retudo a necessidade a$soluta de seguir naquelas plataformas repletas em que no viajavam só cavalheiros, mas muitos homen%inhos pouco corretos e onde esses mesmos homen%inhos e mulheres vulgares deitavam um cheiro insuport(vel. +ue fa%er, no entanto, seno atirar-se uma pessoa tam$ém para aquele mar de gente que empurrava, furava, pisava e $arafustava até ch eg ar ao carro +ue fa%er sen o empurrar, furar, pi sa r e $arafu st ar tam$ém & carro seguia morosamente e repleto como os outros. eli%mente, ainda havia alguns homens corretos na cidade e algumas mulhere%inhas que conheciam o seu lugar. 'ó graças a isso as senhoras que tinham arriscado os seus sapatos e os seus chapéus naquela refrega e alguns cavalheiros respeit(veis conseguiam sentar-se. !os primeiros momentos de viagem, as pessoas voltavam-se nos $ancos, preocupadas, ten- tando ver se o marido, uma amiga, um filho, no teriam ficado em terra. &s que seguiam de pé ousavam dar um passo no interior do carro, a ver se teria ficado algum lugar vago por acaso. avia logo protestos na plataforma. /epois as pessoas acomodavam-se o melhor que podiam, punham os $raços no ar para livrar os em$rulhos do aperto, fechavam $em os casacos e as malas onde levavam o dinheiro, o condutor pu*ava energicamente o cordo da ca mp ainh a muitas ve%es, lota ç o compl et a, e o carro arrast av a-se em sil0ncio. &s senhores respeit(veis, com compreens1vel e muda %anga dos companheiros do lado, começavam a desdo$rar os jornais da tarde e a ler as not1cias por alto. As senhoras, visivelmente mal dispostas, compunham os chapéus e as golas dos casacos. 2iravam os espelhinhos da mala e passavam tudo em revista3 o chapéu, os ca$elos, os olhos, os l($ios. Era incr1vel. 4ma tinha ficado com o chapéu completamente de $anda, outra perdera uma luva na confuso. /epois guardavam os espelhos, acomodavam-se melhor, percorriam com os dedos os anéis duma mo e da outra, para ver se estavam no lugar, se estavam todos. &lhavam umas para as outras, muito sérias, como quem no repara em nada. 5ecuperavam pouco a pouco a dignidade que aquele despropósito da su$ida para o carro evaporara. !as curvas, as rodas chiavam nas calhas, de$ai*o do grande peso. 'il0ncio enfim 6 em$ora de ve% em quando cortado pela campainha, quando alguém tinha a triste ideia de querer descer, pelo desdo$rar dos jornais, pela vo% dos populares, encai*ados na plataforma da frente. 2udo voltar a # normalidade. A marcha do carro, a co$r ança dos $ilhetes, a sepa raç o entre

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ASSOBIANDO VONTADE

quela hora o trnsito complicava-se. As lojas, os escritrios, algumas oficinas, atiravam para a rua centenas de pessoas. E as ruas, as praas, as paragens dos eltricos, que tinham sido planeadas quando no havia nas lojas, nos escritrios e nas oficinas tanta gente, ficavam repletas dum momento para o outro. Nos largos passeios das grandes praas havia encontres. As pessoas de aprumo tinham de fechar os olhos quele desacato e no viam remdio seno receber e dar encontres tambm e praguejar algumas vezes. Os eltricos apinhavam-se na linha frente uns dos outros. Seguiam morosamente, carregados at aos estribos e por fora dos estribos, atrs, no salva-vidas, com as tais centenas de pessoas que saltavam quela hora apressadamente das lojas, dos escritrios, das oficinas. Alm disso, nos dias bonitos como aquele, as ruas da Baixa enchiam-se de elegantes que iam dar a sua volta, s cinco horas, pelas lojas de novidades e pelas casas de ch, para matar o tempo de qualquer maneira, ver caras conhecidas, cumprimentar e ser cumprimentadas, e s voltavam a casa hora do jantar.

A multido propunha uma confraternizao fora. Era preciso pedir desculpa ao marano que se acabava de pisar, implorar s pessoas penduradas no eltrico que se apertassem um pouco mais para se poder arrumar um p, nada mais que um p, num cantinho do estribo, muitas vezes sorrir para gente que nunca se tinha visto antes e apetecia insultar. Os elegantes e as elegantes achavam naturalmente tudo isto muito aborrecido. Sobretudo a necessidade absoluta de seguir naquelas plataformas repletas em que no viajavam s cavalheiros, mas muitos homenzinhos pouco corretos e onde esses mesmos homenzinhos e mulheres vulgares deitavam um cheiro insuportvel. Que fazer, no entanto, seno atirar-se uma pessoa tambm para aquele mar de gente que empurrava, furava, pisava e barafustava at chegar ao carro? Que fazer seno empurrar, furar, pisar e barafustar tambm?O carro seguia morosamente e repleto como os outros. Felizmente, ainda havia alguns homens corretos na cidade e algumas mulherezinhas que conheciam o seu lugar. S graas a isso as senhoras que tinham arriscado os seus sapatos e os seus chapus naquela refrega e alguns cavalheiros respeitveis conseguiam sentar-se.

Nos primeiros momentos de viagem, as pessoas voltavam-se nos bancos, preocupadas, tentando ver se o marido, uma amiga, um filho, no teriam ficado em terra. Os que seguiam de p ousavam dar um passo no interior do carro, a ver se teria ficado algum lugar vago por acaso. Havia logo protestos na plataforma. Depois as pessoas acomodavam-se o melhor que podiam, punham os braos no ar para livrar os embrulhos do aperto, fechavam bem os casacos e as malas onde levavam o dinheiro, o condutor puxava energicamente o cordo da campainha muitas vezes, lotao completa, e o carro arrastava-se em silncio.Os senhores respeitveis, com compreensvel e muda zanga dos companheiros do lado, comeavam a desdobrar os jornais da tarde e a ler as notcias por alto. As senhoras, visivelmente mal dispostas, compunham os chapus e as golas dos casacos. Tiravam os espelhinhos da mala e passavam tudo em revista: o chapu, os cabelos, os olhos, os lbios. Era incrvel. Uma tinha ficado com o chapu completamente de banda, outra perdera uma luva na confuso. Depois guardavam os espelhos, acomodavam-se melhor, percorriam com os dedos os anis duma mo e da outra, para ver se estavam no lugar, se estavam todos. Olhavam umas para as outras, muito srias, como quem no repara em nada. Recuperavam pouco a pouco a dignidade que aquele despropsito da subida para o carro evaporara.Nas curvas, as rodas chiavam nas calhas, debaixo do grande peso. Silncio enfim embora de vez em quando cortado pela campainha, quando algum tinha a triste ideia de querer descer, pelo desdobrar dos jornais, pela voz dos populares, encaixados na plataforma da frente.Tudo voltara normalidade. A marcha do carro, a cobrana dos bilhetes, a separao entre as pessoas, que rigorosamente no conseguiam separar-se umas das outras um centmetro que fosse. E, assim, morosamente, por curvas e retas, por ruas e praas, aquele carro cumpria o seu destino de acarretar gente e ser insultado, numa das vrias linhas que ligavam o centro da cidade aos bairros relativamente novos, onde a separao entre a chamada classe mdia e as camadas mais baixas da populao no fora ainda convenientemente estabelecida.Em dada altura, porm, na plataforma de trs levantou-se burburinho. Protestos. Indignao. Cabeas voltaram-se no interior do carro. E viu--se um homenzinho a empurrar toda a gente e a dizer que havia lugares frente, que o deixassem passar. Em vo lhe asseguravam que no havia lugar nenhum, que no podia passar, que no fosse bruto. O homem empurrava e teimava que havia lugares frente. Tanto empurrou que furou. Tanto furou que conseguiu entrar no interior do eltrico, avanou e foi sentar-se num lugar de lado que estava efetivamente vago l frente, ao lado duma senhora por sinal opulenta.Foi um espanto geral e silencioso. Ningum tinha reparado no lugar. E menos que ningum, como fcil de compreender, a prpria senhora opulenta. Todos os atrevidos tm sorte.O homem, que usava um chapu coado e um sobretudo castanho bastante lustroso nas bandas, no se sentou propriamente. Enterrou-se no lugar, com as mos enfiadas pelas algibeiras dentro. Que sujeito! Devia ser mais novo do que parecia por causa do cabelo grisalho e da barba por fazer. A senhora opulenta franziu a testa e remexeu-se no lugar, se assim se pode dizer, como quem procura ocupar menos espao. Na verdade, apenas se instalou melhor. A sua inteno era fazer o homenzinho reparar na inconvenincia da atitude que tomara. Mas ele no viu nada disso ou fingiu que no viu. Olhou vagamente as pessoas que tinha na frente, estendeu os lbios e comeou a assobiar. A assobiar muito vontade no interior do carro!

Primeiro, foi um assobio baixinho, pouco seguro, impercetvel quase. Depois, a pouco e pouco, o sujeitinho entusiasmou-se. E o assobio aumentou de intensidade. Ouvia-se j em todo o eltrico. Os passageiros, que tinham recuperado com tanto custo a sua dignidade, fingiam que no davam pelo homem nem pelo assobio. E sossegaram quando o condutor se dirigiu ao recm-vindo. Ia aconselh-lo a calar-se, com certeza. Mas qual! Com o mao dos bilhetes na mo e de alicate espetado, limitou-se a dizer: O senhor? O passageiro tirou a mo da algibeira e, sem deixar de assobiar, estendeu-a com a palma voltada para cima. Esperou que lhe levassem a moeda, recebeu o bilhete e tornou a enfiar a mo pela algibeira dentro. Toda a gente seguia a cena, interessada. Mas, quando o homem olhou as pessoas, ao acaso, voltaram todas os olhos como se ele afinal no existisse.O assobio, umas vezes, era baixo, mal se ouvia, outras vezes, alto, muito alto, com trinados ridculos e irritantes. Ningum sabia o que ele assobiava. E o homem tambm no. Qualquer coisa que lhe apetecia que fosse assim mesmo. s vezes repetia os sons como um estribilho. Outras vezes, porm, a maior parte das vezes, passava a novas combinaes, ora brandas, ora violentas, sem querer saber para nada das que ficavam para trs.As pessoas comeavam a olhar umas para as outras socapa. J se tinha visto coisa assim?

Um ou outro cavalheiro levantava os olhos do jornal, franzia a testa, fitava com dureza o homem do chapu coado e sobretudo castanho, na esperana de que ele, envergonhado, parasse com aquilo. A senhora opulenta, no auge do espanto, nem se atrevia a olhar para lado nenhum, vexadssima porque, sem ter culpa nenhuma, se encontrava em plena zona do escndalo. A que uma pessoa est sujeita!

E, no silncio do carro, o assobio aumentava de volume. Talvez, no fundo, aquele gorjeio ridculo no fosse desagradvel de todo. Simplesmente, um eltrico no o local mais prprio para exibies daquelas. Porque no interferiria o condutor? O condutor era a autoridade do carro. Porque no interferiria? Estava-se a ver. Era to bom como ele. A verdade, porm, que no se conhecia nenhum regulamento que impedisse os passageiros de assobiar. Colados aos vidros do eltrico, havia papis que proibiam fumar, cuspir no carro. Era proibido abrir as janelas durante os meses de Inverno. Mas nem uma palavra a respeito de assobios.De repente, uma criana que ia sentada junto duma janela e j se sentia enfastiada de olhar para a rua interessou-se pelo homem. Achava-lhe tanta graa, com o seu chapu coado, o seu sobretudo castanho, o seu assobio... Era uma criana muito plida, de cabelos louros e encaracolados, vestida de azul. Interessou-se tanto pelo homem que comeou a bater palmas. Mas uma senhora nova e bonita, que ia ao lado dela, segurou-lhe as mos com gentileza e afastou-lhas. Devia ir calada e quietinha. Era muito feio fazer barulho no eltrico. Uma menina bonita no fazia barulho. Que disse eu minha filha? No entanto, a senhora nova e bonita no antipatizava com o homem. Olhava os embrulhos de papel vistoso que trazia nos joelhos e pensava: se no pudesse mais e comeasse tambm a assobiar? No fundo, admirava a sem-cerimnia do homem do chapu coado. No seria adorvel ela prpria, uma senhora casada e me duma garota de cinco anos, comear a assobiar num eltrico se lhe apetecesse? Quando era da idade da filha, a senhora bonita ia muitas vezes ao campo vestida com coisas velhas para poder atirar-se para a relva vontade. Tinha uma voz muito suave e muito fresca, gostava de fazer precisamente aquilo que uma menina bonita no deve fazer. Os amigos do pai pegavam-lhe ao colo, atiravam-na ao ar. E ela ria, ria, ria at ficar sufocada. A me dizia: Pronto, pronto, vamos a ter juzo, no se ri assim dessa maneira. E, quanto mais lho diziam, mais lhe apetecia rir, rir, rir.De vez em quando, um passageiro saa. A plataforma do carro ia-se esvaziando. E, pouco a pouco, os que ficavam foram-se habituando quele estpido assobio. Os cavalheiros tinham esquecido os jornais. Algumas senhoras sorriam. J se vira um disparate assim? Principalmente a senhora opulenta no podia mais. Apertava os lbios. Sentada num banco de lado, encontrava os olhos de toda a gente. Era irresistvel. E a senhora bonita pensava em ar livre e nos tempos da infncia. Na escola aprendera a assobiar e a lanar o pio. Havia vozes que tinham ficado dentro dela: Uma menina a assobiar, Nini?Em dada altura, o homem, sem deixar de assobiar, levantou-se e puxou o cordo da campainha. Era um homenzinho insignificante, ainda novo e j de cabelos grisalhos, chapu coado, sobretudo castanho muito lustroso nas bandas. Mas havia nele uma indiferena soberana pelo eltrico inteiro. Toda a gente o olhava. Com desprezo? Com ironia? Com inveja? Abriu a porta, fechou-a e saltou com o carro ainda em andamento.As pessoas voltaram-se ento umas para as outras, no resistiram mais e riram mesmo. Que homenzinho patusco! Desculpavam-se, explicavam-se sem palavras. Entendiam-se. Um minuto de simplicidade e simpatia iluminou-as. A criana que batera palmas limpou com a mo o vidro embaciado da janela procura do estranho passageiro. Viu-o atravessar a rua, seguir pelo passeio agarrado s casas, desaparecer.

S ento a senhora nova e bonita, que era a me da criana, abriu os olhos. Ningum hoje lhe chamava Nini. Nini era a filha. Ela agora que dizia filha: Uma menina a assobiar, Nini! Uma menina bonita no faz barulho.

Ficara nos lbios e nos olhos de todos um sorriso de bondosa ingenuidade. Depois esse sorriso foi-se apagando. Morreu. As pessoas tomaram conscincia da sua momentnea quebra de compostura. Lembraram-se dos seus embrulhos, dos seus anis, dos seus jornais. Que patetice! No havia outra palavra para aquilo. Que patetice! Os cavalheiros recomearam a ler os ttulos das notcias. As senhoras deram um toque nas golas dos casacos. A criana tornou a olhar para a rua.

Tudo voltou, pesadamente, a encher-se de silncio e dignidade.

Mrio Dionsio

inO Dia Cinzento e Outros Contos