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Concretagem da primeira casa de força das obras da usina hidrelétrica Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia São Paulo, de 15 a 21 de julho de 2010 www.brasildefato.com.br Ano 8 • Número 385 Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 ISSN 1978-5134 Trabalhadores são superexplorados na construção de usina no rio Madeira Os funcionários do Consórcio Santo Antônio Civil (CSAC), comandado pela empreiteira Odebrecht, denunciaram ao Brasil de Fato um cotidiano repleto de acidentes, abuso e intimidação na construção da usina de Santo Antônio. Tal situação provocou violentos protestos e uma greve, desencadeada no dia 17 de junho. A hidrelétrica, orçada em R$ 13,5 bilhões, compõe, ao lado da usina de Jirau (que custará R$ 10 bilhões), o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira. Trata-se da obra mais cara do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Págs. 4 e 5 Trabalhadores são superexplorados na construção de usina no rio Madeira O assassinato da jovem Eliza Samúdio ganhou a mídia e o status de crime mais chocante do ano por conta dos requintes de crueldade e pelo fato de o principal suspeito de tê-lo arquitetado ser o goleiro Bruno, do Flamengo. Para especialistas, a Lei Maria da Penha, se tivesse sido usada, poderia ter evitado a morte da vítima, já que esta Caso Bruno retrata a violência cotidiana contra a mulher havia pedido proteção an- teriormente, após receber ameaças do goleiro. Pelo apelo midiático em torno do caso, crimes como este parecem ser únicos. Mas não é o que ocorre. Entre 1997 e 2007, mais de 40 mil mulheres foram assas- sinadas, ou seja, mais de 10 mortes por dia. Os dados são do Sistema Único de Saúde (SUS). Págs. 2 e 6 Uma das exigências ine- gociáveis dos movimentos palestinos é a efetivação do direito de retorno dos refugiados, bem como a reparação material de suas perdas. A maior parte dos refugiados é oriunda da Nakba, palavra árabe que significa “catástrofe” e é usada pelos palestinos para descrever a ocupação de 1948. Hoje, calcula-se que Refugiados palestinos lutam pelo direito de retornar a suas terras 67% de todos os palestinos do mundo sejam refugia- dos. Um dos símbolos da luta é o personagem Han- dala (ao lado), criado pelo cartunista refugiado Naji al-Ali: o menino de dez anos – a idade que al-Ali ti- nha quando expulso – está sempre de costas, olhando para a Palestina, e se recu- sa a crescer enquanto não voltar a sua terra. Pág. 9 Pela primeira vez desde a redemocratiza- ção do país, a esquerda irá enfrentar uma eleição em que Lula não será candidato. Desde 1989, a eleição desse petista tem sido um fator de unidade da esquerda, sobretudo antes de 2002. Em entrevista, Ivan Valente (foto) avalia que a uni- dade das forças populares é uma questão vital no pro- cesso de luta de classes. Mas acredita que a saída de Lula do cenário políti- co, com todo seu carisma e simbologia, deixa mais nítidas as propostas em jogo. Pág. 7 “A saída de Lula do cenário político deixa mais nítidas as propostas em jogo” Pesquisadores e movimentos sociais aler- tam para a duplicação dos índices de uso de agrotóxicos no Brasil entre 2008 e 2009, quando 713 milhões de toneladas desses produtos foram comercializadas. O país é o campeão mundial do uso de defensivos agrícolas, sendo que, em média, o brasilei- ro ingeriu 3,7 kg de veneno durante o ano passado. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), 15% dos ali- mentos pesquisados pelo órgão apresentam taxa de resíduos de agrotóxicos em um nível prejudicial à saúde. Arroz, milho, tomate, batata e hortaliças são produtos do dia a dia que passaram a ter alto índice de toxi- cidade. Pág. 3 Brasil duplica consumo de agrotóxicos entre os anos de 2008 e 2009 Murais bolivianos Págs. 10 e 11 Os funcionários do Consórcio Santo Antônio Civil (CSAC), comandado pela empreiteira Odebrecht, denunciaram ao Brasil de Fato um cotidiano repleto de acidentes, abuso e intimidação na construção da usina de Santo Antônio. Tal situação provocou violentos protestos e uma greve, desencadeada no dia 17 de junho. A hidrelétrica, orçada em R$ 13,5 bilhões, compõe, ao lado da usina de Jirau (que custará R$ 10 bilhões), o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira. Trata-se da obra mais cara do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Págs. 4 e 5 Marcello Casal JR/ABr Reprodução Brizza Cavalcante/Agência Câmara Reprodução Mauricio Acevedo

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São Paulo, de 15 a 21 de julho de 2010 www.brasildefato.com.brAno8•Número385 Os funcionários do Consórcio Santo Antônio Civil (CSAC), comandado pela empreiteira Odebrecht, denunciaram ao Brasil de Fato um cotidiano repleto de acidentes, abuso e intimidação na construção da usina de Santo Antônio. Tal situação provocou violentos protestos e uma greve, Págs. 10 e 11 Concretagem da primeira casa de força das obras da usina hidrelétrica Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia

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Concretagem da primeira casa de força das obras da usina hidrelétrica Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia

São Paulo, de 15 a 21 de julho de 2010 www.brasildefato.com.brAno 8 • Número 385

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

ISSN 1978-5134

Trabalhadores são superexplorados na construção de usina no rio MadeiraOs funcionários do Consórcio Santo Antônio Civil (CSAC), comandado pela empreiteira Odebrecht, denunciaram ao Brasil de Fato um cotidiano repleto de acidentes, abuso e intimidação na construção da usina de Santo Antônio. Tal situação provocou violentos protestos e uma greve,

desencadeada no dia 17 de junho. A hidrelétrica, orçada em R$ 13,5 bilhões, compõe, ao lado da usina de Jirau (que custará R$ 10 bilhões), o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira. Trata-se da obra mais cara do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Págs. 4 e 5

Trabalhadores são superexplorados na construção de usina no rio Madeira

O assassinato da jovem Eliza Samúdio ganhou a mídia e o status de crime mais chocante do ano por conta dos requintes de crueldade e pelo fato de o principal suspeito de tê-lo arquitetado ser o goleiro Bruno, do Flamengo. Para especialistas, a Lei Maria da Penha, se tivesse sido usada, poderia ter evitado a morte da vítima, já que esta

Caso Bruno retrata a violênciacotidiana contra a mulher

havia pedido proteção an-teriormente, após receber ameaças do goleiro. Pelo apelo midiático em torno do caso, crimes como este parecem ser únicos. Mas não é o que ocorre. Entre 1997 e 2007, mais de 40 mil mulheres foram assas-sinadas, ou seja, mais de 10 mortes por dia. Os dados são do Sistema Único de Saúde (SUS). Págs. 2 e 6

Uma das exigências ine-gociáveis dos movimentos palestinos é a efetivação do direito de retorno dos refugiados, bem como a reparação material de suas perdas. A maior parte dos refugiados é oriunda da Nakba, palavra árabe que significa “catástrofe” e é usada pelos palestinos para descrever a ocupação de 1948. Hoje, calcula-se que

Refugiados palestinos lutam pelodireito de retornar a suas terras

67% de todos os palestinos do mundo sejam refugia-dos. Um dos símbolos da luta é o personagem Han-dala (ao lado), criado pelo cartunista refugiado Naji al-Ali: o menino de dez anos – a idade que al-Ali ti-nha quando expulso – está sempre de costas, olhando para a Palestina, e se recu-sa a crescer enquanto não voltar a sua terra. Pág. 9

Pela primeira vez desde a redemocratiza-ção do país, a esquerda irá enfrentar uma

eleição em que Lula não será candidato. Desde 1989, a eleição desse petista tem sido um fator de unidade da esquerda,

sobretudo antes de 2002. Em entrevista, Ivan Valente (foto) avalia que a uni-

dade das forças populares é uma questão vital no pro-

cesso de luta de classes. Mas acredita que a saída de Lula do cenário políti-co, com todo seu carisma

e simbologia, deixa mais nítidas as

propostas em jogo. Pág. 7

“A saída de Lula do cenário político deixa mais nítidas

as propostas em jogo”Pesquisadores e movimentos sociais aler-

tam para a duplicação dos índices de uso de agrotóxicos no Brasil entre 2008 e 2009, quando 713 milhões de toneladas desses produtos foram comercializadas. O país é o campeão mundial do uso de defensivos agrícolas, sendo que, em média, o brasilei-ro ingeriu 3,7 kg de veneno durante o ano passado. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), 15% dos ali-mentos pesquisados pelo órgão apresentam taxa de resíduos de agrotóxicos em um nível prejudicial à saúde. Arroz, milho, tomate, batata e hortaliças são produtos do dia a dia que passaram a ter alto índice de toxi-cidade. Pág. 3

Brasil duplica consumode agrotóxicos entre osanos de 2008 e 2009

Murais bolivianos Págs. 10 e 11

Os funcionários do Consórcio Santo Antônio Civil (CSAC), comandado pela empreiteira Odebrecht, denunciaram ao Brasil de Fato um cotidiano repleto de acidentes, abuso e intimidação na construção da usina de Santo Antônio. Tal situação provocou violentos protestos e uma greve,

desencadeada no dia 17 de junho. A hidrelétrica, orçada em R$ 13,5 bilhões, compõe, ao lado da usina de Jirau (que custará R$ 10 bilhões), o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira. Trata-se da obra mais cara do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Págs. 4 e 5

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Casas destruídas pela enchente do Rio Mundaú no município de Branquinha, Alagoas

A violência contra as mulheres é consequência da sociedade

machista e capitalista

NAS VÉSPERAS da festa de São João, festa da colheita do milho no Nordeste brasileiro, assistimos com muita tristeza as enchentes na Zona da Mata Sul de Pernambuco e Zona da Mata Norte de Alagoas. Foram vidas ceifadas, casas destruídas, escolas e hospitais sem condições de funcionamento, pontes levadas pela força das águas, um verdadeiro cenário de guerra. As estimativas falam em 57 mortes, sendo 39 em Alagoas e 20 em Pernambuco. No estado alagoano, passa de 26 mil o número de desabrigados e de 47 mil o de pessoas desalojadas. Já em Per-nambuco, são mais 26 mil desabri-gados e mais de 55 mil desalojados. Mas, como todo cenário de guerra tem sempre inimigo e culpados, es-colheram desta vez a natureza como responsável.

Não podemos negar que existem fatores climáticos por trás da tra-gédia. Durante quatro dias choveu mais de 400 mm³ nas regiões afe-tadas. Precipitação esta provocada, segundo os especialistas, pelo aque-cimento do Atlântico. No entanto, é preciso ter um olhar mais profundo do ocorrido. As regiões atingidas pelas enchentes são marcadas pela concentração da terra, pelo mo-nocultivo exportador da cana-de-açúcar, pelo trabalho precarizado e análogo ao trabalho escravo e pela degradação ambiental. Municípios da Zona da Mata pernambucana, por exemplo, possuem índices Gi-ni de concentração de terras que chegam a 0,9 (pelo índice de Gini, quanto mais próximo do número 1, maior é a concentração de terras).

O modelo de desenvolvimento, historicamente e geografi camente implementado no Brasil e, em espe-cial no Nordeste, tem sacrifi cado o meio ambiente e empurrado popu-lações empobrecidas para lugares menos propícios para a ocupação humana. Na Zona da Mata de Per-nambuco, nos últimos 30 anos, mais de 150 mil trabalhadores perderam seus trabalhos no setor canavieiro, e estima-se que mais de 40 mil sítios foram destruídos durante os primei-

ros anos do Pró-álcool (1975) - um dos maiores períodos de expansão da cana no estado e no Brasil. As matas foram “dando” espaço à cana, e as populações, sem trabalho, pri-vadas das terras e sem alternativa econômica foram sendo empurradas para as periferias das cidades, para as chamadas áreas de risco e “pon-tas de ruas”, nome dado por eles.

As cidades da região canavieira, como é chamada por muitos, se transformaram em um verdadei-ro confi namento de populações empobrecidas e privadas dos seus direitos. Pernambuco aparece com o quinto pior Índice de desenvol-vimento Humano (IDH) do país, e é justamente na região da Zona da Mata que se concentra um dos pio-res IDH do Estado e um dos piores índices de saneamento e água em rede domiciliar. As populações das cidades dessa região vivem com saneamento básico precário, sem abastecimento de água potável re-gular, sem assistência médica que atenda as necessidades das pessoas; ou seja, sem uma mínima infraes-trutura social efi caz.

Foi justamente nessa região que os usineiros cometeram um dos piores crimes ambientais da huma-nidade. Da mata atlântica original, resta apenas menos de 3%. Em 2008, depois de muitas denúncias de movimentos sociais no estado, o Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Iba-ma) autuou as 24 usinas pernambu-canas por crime ambiental: por elas

não terem os 20% de reserva legal e as matas ciliares estarem quase que dizimadas em todas as usinas fi sca-lizadas pelo instituto. Não há matas nos topos de morros e nas encostas para facilitar a infi ltração das águas no solo e diminuir o escoamento superfi cial das águas de chuvas. Não existem mais matas ciliares, que servem, entre outras coisas, para proteger os rios e servir de “barrei-ras” para a contenção dos grandes volumes de águas.

A Mãe Terra não merece e não de-ve ser culpada pelas consequências dessa catástrofe, que é muito mais de responsabilidade do modelo de desenvolvimento do que de uma ação incontrolável da natureza.

Vale apena lembrar Josué de Cas-tro, no livro Geografi a da Fome, que denuncia a Zona da Mata de Pernambuco como a região de maior pobreza e fome no Estado. O “cida-dão do mundo” denunciava também a concentração de terra e o sistema do monocultivo da cana como um dos principais elementos da fome e da pobreza na região. A combinação de fatores climáticos com as ilhas de pobreza no “mar” de cana, que é a Zona da Mata de Pernambuco, tor-nou vulnerável as cidades da região às catástrofes ditas “naturais”. A Mãe Terra é quem nos culpa.

Plácido Junior é geógrafo e agente da CPT NE2.

Renata Albuquerque é jornalista e do setor de

comunicação da CPT NE2.

debate Plácido Junior e Renata Albuquerque

A Mãe Terra é quem nos culpacrônica Frei Betto

A SOCIEDADE brasileira está per-plexa diante de dois assassinatos brutais, bárbaros. As vítimas são duas jovens, com menos de 30 anos: a modelo Eliza Samudio e a advogada Mércia Nakashima. Os casos estão tendo ampla repercus-são na grande imprensa e na socie-dade, pela perversidade dos planos macabros, pela condição social das vítimas e pelos atores envolvidos na tragédia. E por terem também ocor-rido nos maiores centros do país: Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo. Milhares de outros casos não recebem tamanha atenção da imprensa, pois não venderiam tanta audiência... e seguem no anonima-to. Mas esperamos que pelo menos os lamentáveis episódios sirvam para refl exão de toda sociedade so-bre a violência que as mulheres vêm sofrendo sistematicamente.

Dados de entidades de direitos humanos revelam que, nos últimos dez anos, foram assassinadas na-da menos do que 41 mil mulheres brasileiras. Na maioria dos casos, as vítimas conheciam ou conviviam com o agressor. Uma média de 4.100 mulheres por ano, uma verda-deira tragédia, um genocídio! Pior, um genocídio desconhecido e aceito passivamente pelos familiares, pela comunidade e omitido pela impren-sa burguesa.

A ministra da Secretaria Especial de Política para as Mulheres, Nilcéa Freire, participou neste mês de uma conferência internacional sobre a violência da mulher e demonstrou revolta diante da insegurança na qual se encontram as mulheres. Segundo a ministra, elas recebem agressões cotidianas, dos mais dife-rentes níveis, sem direito a proteção e sofrendo também com a impuni-dade, pois seus agressores não são devidamente penalizados. A insta-lação das delegacias de polícia para cuidar dos casos de violações dos direitos das mulheres e a criação de um Ministério de políticas públicas para as mulheres são insufi cientes diante da gravidade do problema.

A sociedade brasileira padece de desvios históricos, não só de ma-chismo e prepotência contra as mu-lheres, mas enfrenta os problemas cotidianos de uma sociedade extre-

mamente desigual, injusta e explo-radora dos mais pobres e humildes.

Todos os dias temos estatísticas divulgadas das diferenças salariais entre homens e mulheres. Diaria-mente temos exemplos de em quan-tas áreas profi ssionais as mulheres ainda são discriminadas ou impe-didas de participar, ou ainda são minoria.

A maior categoria de brasileiros são os 16 milhões de trabalhadores rurais. Nessa categoria, a imensa maioria das mulheres camponesas sequer possui alguma renda. Daí o sucesso que fez o programa Bolsa Família, quando destinou a respon-sabilidade pelo recebimento para as mulheres.

A segunda maior categoria de trabalhadores é a de emprega-dos domésticos, da qual 90% são mulheres. Procurem observar e refl etir sobre o tratamento que os

trabalhadores domésticos recebem nas residências ou escritórios de seus patrões. Imaginem porque apenas 26% dos empregados do-mésticos possuem carteira assi-nada e, portanto, direito a INSS, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, férias e 13º salário, ainda que haja uma lei determinando que todo trabalhador de serviços domésticos tem direito a carteira assinada, garantindo os direitos sociais. Mas a maioria da classe média e rica não a cumpre.

A ministra tem toda razão. A vio-lência contra as mulheres é cotidia-na, e não se resume a casos bárbaros de assassinatos, mas vitimiza mi-lhões de trabalhadoras todos os dias.

A sociedade brasileira, que há duas décadas vem sendo hege-monizada pelas ideias burguesas neoliberais, que exaltam apenas o individualismo, o sucesso pessoal,

o consumismo e o egoísmo, cria um clima propenso permanente de ex-clusão, discriminação e humilhação dos diferentes, dos mais pobres e das mulheres.

Por isso, de certa forma, esses casos de bárbaros assassinatos por pessoas “bem formadas” são con-sequência desse ambiente perverso criado pela ideologia burguesa, que transforma as pessoas em merca-dorias e transforma os detentores de dinheiro em “todo-poderosos”, como se pudessem ser proprietá-rios de tudo. Inclusive da vida das pessoas. E mais: como têm dinhei-ro e podem contratar bons advo-gados, consideram-se impunes. Perguntem-se quantos dias de pri-são teve o editor do Estadão, que há alguns anos assassinou estupi-damente sua colega de trabalho e ex-namorada apenas por ciúmes? Nenhum. Está solto, gozando das brechas que a lei permite aos en-dinheirados. Imaginem quando a violência é cometida contra mulhe-res ainda mais pobres.

É mais do que urgente debater es-ses problemas em todos os espaços, a fi m de gerando uma nova mentali-dade sobre a necessidade de urgen-tes mudanças sociais, não apenas na garantia de direitos, mas sobretudo no contexto socioeconômico que es-tá gerando todas essas injustiças.

de 15 a 21 de julho de 20102

editorial

Antônio Cruz/Abr

Feiras do livroPARTICIPEI, NOS últimos meses, de várias ferias do livro e outros eventos literários, como o Programa TIM Grandes Escritores. Entre outubro e novembro passados, estive nas feiras de Gravataí (RS), Caxias do Sul (RS), Belém (PA) e no Fórum das Letras, em Ouro Preto (MG). Em todos esses even-tos constatei o empenho dos promotores em promover o livro, despertar o interesse pela literatura e facilitar o contato entre leitores e escritores.

Ler é percorrer todos os períodos da história, penetrar co-nhecimentos científi cos e técnicos, dar asas à imaginação, sem sair do lugar. Basta abrir o livro. É conhecer qualquer tema, da fabricação de vinhos à vida dos papas, bastando decifrar o código alfabético em folhas de papel ou no monitor de um equipamento eletrônico. Ler é sonhar, poetar, divagar, expan-dir a fantasia e cultivar a sensibilidade.

A diferença entre ler e ver TV é que, no primeiro caso, o leitor escolhe o que lhe interessa. Com a vantagem de não se submeter à avalanche publicitária e adequar a programação – no caso, a leitura – ao ritmo de sua conveniência. E, consi-derando a baixa qualidade de conteúdo na TV brasileira, ler é absorver cultura.

No Brasil, o consumo de livros ainda é ínfi mo: 2,7 por habitante/ano. Na Argentina, 6. Há em nosso país cerca de 3 mil livrarias, 50% no estado de São Paulo. Aqui, o livro sofre o efeito Tostines: é caro porque vende pouco e vende pouco porque é caro. O governo, excetuando a compra de livros didáticos, não incentiva a produção e circulação de livros. Ra-ros são os municípios com bibliotecas públicas, e as poucas existentes nem sempre primam pela conservação das insta-lações e atualização do acervo. A informatização ainda enga-tinha, e o leitor enfrenta, por vezes, barreiras “burrocráticas” para ter acesso ao livro.

Assim, não é de se estranhar que alunos da 8ª série não consigam redigir uma simples carta sem cometer graves erros de concordância e sintaxe. A situação piora quando se trata de interpretar um texto. Lê-se o período sem conseguir en-tendê-lo...

O amor aos livros nasce na infância. Criança que jamais viu os pais lerem ou vive numa casa desprovida de livros terá, com certeza, difi culdade de adquirir gosto pela lite-ratura. Hoje em dia recomenda-se ler histórias para os bebês, de modo a favorecer as sinapses cerebrais e a elabo-ração de sínteses cognitivas. Ao ler ou contar uma história para crianças é normal ouvi-las recriarem em cima do que escutam. A imaginação entra em diálogo com o texto. A fantasia afl ora.

Já a TV não propicia essa interação, apenas impõe à crian-ça o conteúdo de sua programação. E, de certo modo, anula a fantasia infantil, como se a TV fosse capaz de substituir o saudável exercício de dar asas à imaginação.

Outrora, as feiras do livro tinham a característica de bara-tear o produto. Hoje, isso se torna cada vez mais raro. Ape-sar de o governo Lula ter desonerado tributos de editoras, tudo indica que o benefício não se estendeu aos leitores.

Felizmente há, pelo Brasil afora, bibliotecas montadas por iniciativas voluntárias, cujos acervos dependem de doações. Na capital paulista, é possível tomar emprestado um livro nas estações de metrô. E o índice de não devolução é míni-mo – o que consola nossa autoestima ética nessa nação de tantos políticos corruptos. Em Brasília, um açougue dispõe livros em pontos de ônibus. Na Baixada Fluminense, uma dona de casa transformou seu quintal em biblioteca pública.

Tomara que o propósito de o poder público instalar uma bi-blioteca em cada município brasileiro torne-se realidade. O Brasil estará a salvo no dia em que as novas gerações forem viciadas em livros.

Frei Betto é escritor, autor de A arte de semear estrelas (Rocco), entre outros livros.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

As regiões atingidas pelas enchentes são marcadas pela concentração da terra, pelo monocultivo exportador da cana-de-açúcar, pelo trabalho precarizado e análogo ao trabalho escravo e pela degradação ambiental

O Brasil estará a salvo no dia em que as novas gerações forem viciadas em livros

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de 15 a 21 de julho de 2010 3

brasil

O agricultor Eder Laureano Martins e sua plantação orgânica

Pedro Carrano

Pedro Carranode Curitiba (PR)

O BRASILEIRO ingeriu, em média, 3,7 quilos de agrotó-xicos em 2009. Trata-se de uma massa de cerca de 713 milhões de toneladas de pro-dutos comercializadas no pa-ís por cerca de seis corpora-ções transnacionais. Essas empresas controlam toda a cadeia produtiva, da semen-te ao agroquímico ligado a ela. Uma condição que pressiona o agricultor familiar, refém da compra do “pacote tecnológi-co” gerador da dependência na produção. O capital dessas companhias do ramo é maior que o produto interno bruto (PIB) da maioria dos países da Organização das Nações Uni-das (ONU). Só no Brasil lucra-ram 6,8 bilhões de dólares em 2009.

Para tanto, o país ergueu a taça de campeão mundial em uso de agrotóxicos e bateu ou-tro recorde: duplicou o consu-mo em relação a 2008. Rela-tórios recentes da Agência Na-cional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que vem sendo criti-cada pelo lobby do agronegó-cio, apontam que 15% dos ali-mentos pesquisados pelo ór-gão apresentaram taxa de re-síduos de veneno em um ní-vel prejudicial à saúde. Cana-de-açúcar, soja, arroz, milho, tabaco, tomate, batata, horta-liças (veja tabela) são produ-tos do dia a dia que passaram a ter alto índice de toxicidade.

Agroquímico, semente, ter-ra e mercado fazem parte da mesma cadeia produtiva sob controle dos monopólios. La-rissa Parker, advogada da Ter-ra de Direitos, aponta uma re-lação direta entre a concentra-

ção do mercado de sementes e de agrotóxicos. A transna-cional Monsanto controla de 85 a 87% do mercado de se-mentes. No caso do transgêni-co Milho BT (da empresa es-tadunidense), de acordo com a advogada, o próprio cereal é desenvolvido com uma toxi-na contra determinado tipo de praga. Ainda assim, agriculto-res no Rio Grande do Sul pre-cisaram realizar mais de duas aplicações de agrotóxicos na lavoura. Os insetos mostra-ram-se resistentes à substân-cia tóxica. Na Argentina, as corporações cobram patentes apenas dos agrotóxicos e não das sementes, já que o seu uso está atrelado a elas.

Apesar de surgir como a “salvação da lavoura”, pro-metendo aumento de produ-tividade, a introdução do quí-mico ligado à semente trans-

gênica incentivou o aumen-to do uso de tóxicos. O culti-vo da soja teve uma variação negativa em sua área planta-da (-2,55%) e, contraditoria-mente, uma variação positi-va de 31,27% no consumo de agrotóxicos entre os anos de 2004 a 2008, como explicam os professores Fernando Fer-reira Carneiro e Vicente So-ares e Almeida, do Departa-mento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências da Saú-de da Universidade de Brasí-lia (UnB).

Além disso, produtos que foram barrados no exterior são usados em diferentes cul-tivos brasileiros. Entre deze-nas de substâncias perigo-sas, o endosulfan, por exem-plo, é um inseticida cance-rígeno, proibido há 20 anos na União Europeia, Índia, Burkina Fasso, Cabo Verde, Nigéria, Senegal e Paraguai. Mas não é proibido no Brasil, onde é muito usado na soja e no milho.

Outro exemplo de um ce-nário absurdo: grandes pro-dutores de cítricos não têm usado determinada substân-cia tóxica, não por consci-ência ecológica, mas porque países importadores não a aceitam. De acordo com in-formações da página da An-visa, “todos os citricultores que exportam suco de la-ranja já não utilizam mais a cihexatina, pois nenhum pa-ís importador, como Cana-dá, Estados Unidos, Japão e União Europeia, aceita re-síduos dessa substância nos alimentos”.

Cultura internalizadaO Censo Agropecuário de

2006, divulgado pelo Insti-tuto Brasileiro de Geografi a

Relação de alimentos contaminadosNúmero de amostras analisadas por cultura e os resultados insatisfatórios do PARA 2009,

subdivididos em resultados que apresentaram ingredientes ativos não autorizados (NA), autorizados (>LMR) e com as duas situações anteriores na mesma amostra.

ProdutoNº de

amostrasanalisadas

NA(1)

> LMR (2)

>LMR e NA (3)

Total deinsatisfatórios

(1+2+3)

Nº % Nº % Nº % Nº %

Abacaxi 145 41 28,3% 15 10,3% 8 5,5% 64 44,1%

Alface 138 52 37,7% 0 0% 1 0,7% 53 38,4%

Arroz 162 43 26,5% 0 0% 1 0,6% 44 27,2%

Banana 170 3 1,8% 3 1,8% 0 0% 6 3,5%

Batata 165 2 1,2% 0 0% 0 0% 2 1,2%

Beterraba 172 55 32% 0 0% 0 0% 55 32%

Cebola 160 26 16,3% 0 0% 0 0% 26 16,3%

Cenoura 165 41 24,8% 0 0% 0 0% 41 24,8%

Couve 129 42 32,6% 8 6,2% 7 5,4% 57 44,2%

Feijão 164 3 1,8% 2 1,2% 0 0% 5 3%

Laranja 146 14 9,6% 1 0,7% 0 0% 15 10,3%

Maçã 170 6 3,5% 3 1,8% 0 0% 9 5,3%

Mamão 170 36 21,2% 22 12,9% 8 4,7% 66 38,8%

Manga 160 12 7,5% 1 0,6% 0 0% 13 8,1%

Morango 128 49 38,3% 11 8,6% 5 3,9% 65 50,8%

Pepino 146 75 51,4% 3 2,1% 2 1,4% 80 54,8%

Pimentão 165 107 64,8% 5 3% 20 12,1% 132 80%

Repolho 166 34 20,5% 0 0% 0 0% 34 20,5%

Tomate 144 45 31,3% 0 0% 2 1,4% 47 32,6%

Uva 165 58 35,2% 14 8,5% 21 12,7% 93 56,4%

Total 3130 744 23,8% 88 2,8% 75 2,4% 908 29%

(1) NA = Não autorizado para a cultura;

(2) > LMR = Acima do limite máximo de resíduo;

(3) >LMR e NA = Acima do LMR e Não autorizado para a cultura;

(1+2+3) = Somatório de todos os resultados insatisfatórios

Fonte: Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, da Anvisa.

de Mandirituba (PR)

Na Grande Curitiba, os agri-cultores familiares Eder Lau-reano Martins e o pai, Mario Antonio, há quase dez anos usaram pela última vez agro-tóxicos na propriedade de se-te hectares. Hoje, produzem, no município de Mandiritu-ba (PR), mais de 20 varieda-des de hortaliças e começam a avançar na plantação de mo-rango orgânico – cultivo que, de acordo com dados da An-visa, entre amostras de su-permercado, apresenta 43,6% com agrotóxico acima do re-comendável. “Muitos produ-tores deixam uma parte sele-cionada para a família e ven-dem o resto. Não querem aquele veneno que estão plan-tando”, critica Eder.

Sua produção passou por análise da Universidade Fe-deral do Paraná (UFPR) e ne-nhum defensivo foi encontra-do. É uma exceção na vizi-nhança onde produzem. Ao redor estão as culturas de so-ja, milho e feijão tradicio-nais. A região de Mandirituba é marcada também por gran-des plantações de camomila para a produção de chás, mas que não dispensam o uso de defensivos. Pinus e eucalipto

também fazem parte da paisa-gem do entorno.

Eder defi ne por agroecolo-gia a superação do monocul-tivo para não desgastar o solo, o policultivo em rotação para evitar a produção de doenças e a preservação das nascentes, por meio do uso racionalizado de água e da técnica do “gote-jo”. Nesta técnica, até metade é economizada em compara-ção com a técnica convencio-nal de irrigação. Embora o so-lo tenha a aparência de estar seco à primeira vista, na reali-dade o local do cultivo perma-nece úmido na quantidade su-fi ciente. Uma faixa de vegeta-ção é deixada ao redor dos cul-tivos – o que protege a mata ciliar. Isso não os impede de participar de feiras da capital e encontrar mercados. Eder lamenta a falta de cooperativa orgânica, apesar de na região terem contato com ao menos outros 20 produtores, mas poucos se associam a partir da técnica alternativa.

Livres de transgênicosLarissa Parker, da Terra de

Direitos, analisa que decisão

recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) coloca a pos-sibilidade de aplicação de lei municipal para proibição do cultivo de transgênicos para não prejudicar o plantio local. Isso pode ser uma ferramenta de pressão por “áreas livres de transgênicos”, como explica. Há a possibilidade, de acordo com ela, de pressão sobre os municípios para avaliação dos impactos dos transgênicos e dos agrotóxicos utilizados em cada local. O Brasil apresen-ta cerca de quatro precedentes jurídicos nesse sentido.

“Cercamento tecnológico” é a expressão usada pela advo-gada da Terra de Direitos pa-ra falar da situação em que pequenos agricultores são do-nos do território, mas o “paco-te tecnológico” os submete ao risco de contaminação da la-voura pelas sementes transgê-nicas, como no caso do milho, e do uso do agrotóxico, por necessidade do mercado. Esse cenário torna difícil a coexis-tência entre os dois modelos. “A coexistência para o grande é acabar com o pequeno”, de-fi ne Larissa. (PC)

Opção pela água e pela superação do monocultivoMesmo com difi culdades, agricultores familiares demonstram que a agroecologia é viável

A alimentação dos brasileirosestá cada vez mais envenenadaAGRICULTURA Pesquisadores e movimentos sociais alertam sobre a duplicação, em um ano, dos índices de uso de agrotóxicos no Brasil

e Estatística (IBGE), infor-mou que 56% das proprie-dades brasileiras usam ve-nenos sem assistência técni-ca. De acordo com a mesma pesquisa, práticas alternati-vas, como controle biológico, queima de resíduos agrícolas e de restos de cultura, que po-deriam gerar redução no uso de agrotóxicos, também são pouco utilizadas.

Adriano Resemberg, en-genheiro agrônomo do de-partamento de fi scalização da Secretaria de Agricultu-ra e Abastecimento do Pa-raná (Seab), analisa a ques-tão dos agrotóxicos a partir dos seguintes eixos: o pri-meiro é que o uso dos agro-tóxicos produz um impac-to e uma alteração do bioma local. O outro é que a práti-

ca do uso de venenos é des-necessária, mas acaba sendoapontada como a única saídapara o produtor. E vira umacultura. “Muitas boas práti-cas agrícolas, como o mane-jo do solo, têm sido deixadasde lado. O uso do agrotóxi-co é mais fácil, diante da fal-ta de uma saída do serviço deassistência técnica públicado Estado. O que vemos sãoprofi ssionais levando paco-tes [tecnológicos], e não so-luções, um modelo que leva oagricultor a usar o agrotóxicoe não questionar muito isso.Usar um inimigo natural nãosignifi ca menos tecnologia,ao contrário”, analisa.

Apesar de surgir como a “salvação da lavoura”, prometendo aumento de produtividade, a introdução do químico ligado à semente transgênica incentivou o aumento do uso de tóxicos

O Censo Agropecuário de 2006 informou que 56% das propriedades brasileiras usam venenos sem assistência técnica

Rep

rodu

ção

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Bruno e Luiz Henrique Romão são transferidos para complexo penitenciário em Bangu

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brasil

Juiz pede falência da Flaskôe ameaça fábrica ocupada

No dia 1º, o juiz André Gonçalves Fer-nandes decretou a falência da Flaskô, de Sumaré (SP). A indústria foi ocupada pelos trabalhadores em 2003, quando estava a ponto de quebrar. Os postos de trabalho fo-ram salvos, mas a decisão ameaça fechar a fábrica e eliminar os empregos. O magistra-do baseou-se numa dívida da Flaskô com a empresa Fortymil, de R$ 37 mil. Contudo, os trabalhadores garantem que procuraram liquidar o passivo. O juiz Fernandes, po-rém, se recusa a receber o dinheiro dos tra-balhadores, os quais não reconhece, e exige que o pagamento seja feito pela antiga pro-prietária da Flaskô, Cristiane de Marcello, que é foragida da polícia.

Abril torna-se segunda maiorempresa de ensino do Brasil

O Grupo Abril anunciou no dia 12 a compra do sistema Anglo, especializado em cursinhos pré-vestibular e precursores do ensino apostilado no Brasil. A empre-sa, que tem como carro-chefe a revista Veja, tornou-se a segunda maior do setor educacional no Brasil, atrás apenas da Positivo. O Anglo possui 211 mil alunos distribuídos em 484 escolas de 316 mu-nicípios brasileiros, além de outros 38 mil estudantes da rede pública que fazem uso de suas apostilas. Antes do negócio, o Grupo Abril já fornecia conteúdo educa-cional a 26 milhões de alunos em 117 mil escolas do Brasil.

CPMI do MST não identifi canenhum desvio de recurso

A Comissão Parlamentar Mista de In-quérito que investigou a ligação entre en-tidades da reforma agrária e ministérios, conhecida como “CPMI do MST”, não en-controu “um centavo de desvio de recurso público”, nas palavras do relator Jilmar Tatto (PT-SP). Foram investigadas as con-tas de dezenas de cooperativas de agricul-tores. Em entrevista à Radioagência NP, Tatto afi rma que a CPMI foi desnecessária. “São entidades sérias que desenvolvem um trabalho de aperfeiçoamento e de qualifi ca-ção técnica do homem do campo. A oposi-ção estava com uma política de criminalizar o movimento social”, avalia.

Prefeitura de Jerusalémdestrata repórter da Fox News

“Não crie a merda de um caso por uma entrevista. O prefeito não está disponível até agosto” foi a resposta da prefeitura de Jerusalém ao pedido da rede de TV estadunidense Fox News. O canal, conhe-cido como um dos mais conservadores dos EUA, fez uma matéria, no dia 12, que mostra o confi sco de terras de palestinos pelo Estado de Israel, além da prefeitura proibir que árabes comprem terrenos na cidade. O tom da reportagem destoa da tradicional cobertura da emissora, que entrevista um palestino que teve as ter-ras tomadas pela prefeitura. O vídeo, em inglês, pode ser encontrado no site Mon-doweiss.

Governo do Uruguai querreformar setor de comunicação

No dia 22, o governo uruguaio apresen-tará ofi cialmente seu projeto de revisão e reforma da Lei de Radiofusão do país. O documento, que tem como objetivo alterar uma norma herdada da ditadura, defende que a nova legislação “estabeleça medidas efetivas para impedir a formação de mono-pólios e oligopólios, privados ou estatais, na propriedade dos meios de comunica-ção, de modo a promover a diversidade de opiniões e a abertura de concorrência”, diz o texto citado pelo jornal uruguaio El País. A ideia é que o projeto seja apresentado ao Congresso em 2011.

fatos em focoda Redação

Evandro Bezerra Silva, suspeito da morte da advogada Mércia Nakashima

Alexandre Durão/Folhapress

Renato Godoy de Toledoda Redação

O SEQUESTRO seguido de tor-tura e assassinato da jovem Eli-za Samúdio já ganhou o status de crime mais chocante de 2010. Até mesmo o assassinato da ad-vogada Mércia Nakashima, as-sunto mais falado anteriormen-te, perdeu espaço para o cri-me supostamente cometido pe-lo goleiro do Flamengo, Bruno, e mais seis comparsas.

O crime com requintes de crueldade e alta previsibilidade – dada as constantes ameaças e agressões à vítima –, no entanto, não se confi gura como um caso extraordinário. Ao contrário, em um espaço de 10 anos, de 1997 a 2007, 41.523 mulheres, como Mércia e Eliza, foram assassina-das. Ou seja, mais de 10 vítimas por dia. Os dados são do Institu-to Sangari, que se baseou em es-tatísticas do Sistema Único de Saúde (SUS).

Para especialistas, esses cri-mes são cometidos majoritaria-mente por maridos, ex-maridos, namorados e ex-namorados. Muitas das vezes, agem movidos pela inconformidade com o fi m de uma relação que acreditavam controlar. Os números colocam o Brasil em um patamar próxi-mo ao dos recordistas nesse ti-po de crime, África do Sul e Co-lômbia.

Para tentar fechar o cerco à violência contra a mulher, o governo brasileiro sancionou, em 2006, a Lei Maria da Pe-nha, que aumenta o rigor da pena para os agressores. A le-gislação agradou as entidades da sociedade civil que defen-dem os direitos da mulher. Po-rém, a principal crítica que es-tas têm feito é a falta de seu cumprimento.

Negligência Em novembro de 2009,

quando ainda estava grávida, a

estudante Eliza Samúdio pediu proteção à Justiça após ser se-questrada por Bruno e seu ami-go Luiz Henrique Romão. A ví-tima relatou que foi espancada, ameaçada de morte e obrigada a ingerir abortivos.

Ela realizou exames de cor-po de delito e sangue para sa-ber se havia traços de substân-cias abortivas. A Justiça do Rio de Janeiro negou o pedido de proteção a Eliza e os testes só foram concluídos após o caso ganhar notoriedade na mídia – comprovando a presença de abortivos.

A juíza Ana Paula Delduque Migueis Laviola de Freitas, do 3º Juizado de Violência Domés-tica, afi rmou que a vítima “ape-nas fi cou com o agressor e não mantinha qualquer tipo de rela-ção afetiva, familiar ou domés-tica”. E completou que, se aten-desse ao pedido de proteção, es-taria “sob a pena de banalizar a fi nalidade da Lei Maria da Pe-nha” .

A procuradora Luiza Eluf, que participou das reuniões de cria-ção da lei, discorda do pare-cer da Justiça fl uminense. “Dar proteção à mulher ameaçada é uma obrigação da Justiça. Não posso entender a razão para ne-gar a proteção [a Eliza]. O fato de a mulher não ter uma rela-ção afetiva [como alegou a Jus-tiça do RJ] não é motivo para a proteção ser negada. A Lei Ma-ria da Penha não determina is-so”, explica.

Falta de seriedadePara Bernadete Monteiro, da

Coordenação da Marcha Mun-dial de Mulheres, a questão da mulher, muitas vezes, não é le-vada a sério pela Justiça e pe-la polícia. “As mulheres sofrem violência e ameaça e nem sem-pre isso é relevante. A socieda-de toda tem a marca do patriar-cado. No Judiciário, não é dife-rente”, aponta.

Ela lembra um caso ocorrido em Belo Horizonte que ilustra sua tese. “Quando da inaugura-ção da vara [de Justiça] que ava-lia casos da Lei Maria da Penha, o juiz responsável citou o Corão [livro sagrado do islamismo] pa-ra explicar qual é o devido papel da mulher na sociedade”.

Para Bernadete, casos como o da provável morte de Eliza Samúdio revelam parte do co-tidiano de milhares de cidadãs. No entanto, a maneira como o crime é abordado leva a crer que se trata de um caso extra-ordinário, quando, na verdade, é corriqueiro.

“É importante que se explici-te um pouco mais a existência da violência contra a mulher. Mas tem-se tratado isso como se fosse uma coisa excepcional, não como algo do cotidiano femini-no. Muitas vezes, a abordagem de casos como este são levados para o plano do desvio psicoló-gico. Nossa análise é de que isso é um refl exo de como a socieda-de é organizada e que a violência é um instrumento para perpetu-ar essa ordem”, aponta.

Punição A procuradora Luiza Eluf

afi rma que, se punidos, casos co-mo o do goleiro Bruno podem encorajar as mulheres a denun-ciarem as violações. Já Bernade-te Monteiro aponta que, em ca-sos em que a violência é tão ex-plícita, as mulheres podem se intimidar em prestar queixas, diante de uma Justiça conside-rada, via de regra, inefi ciente.

Nos primeiros cinco meses de 2010, o telefone 180 da Central de Atendimento à Mulher rece-beu 95% mais chamadas do que no ano passado. Segundo a Se-cretaria Especial de Políticas pa-ra a Mulher, das mais de 50 mil mulheres que realizaram denún-cias, a maioria é negra, com ida-de entre 20 e 45 anos e escolari-dade de nível médio.

No Brasil, “caso Bruno” faz parte do cotidianoVIOLÊNCIA Entre 1997 e 2007, mais de 10 mulheres por dia foram assassinadas no país, como a ex-amante do goleiro do Flamengo

Em um espaço de 10 anos, de 1997 a 2007, 41.523 mulheres, como Mércia e Eliza, foram assassinadas

“As mulheres sofrem violência e ameaça e nem sempre isso é relevante. A sociedade toda tem a marca do patriarcado. No Judiciário, não é diferente”

Fabio Braga/Folhapress

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de 15 a 21 de julho de 2010 7

brasil

Ivan Valente é deputado federal por São Paulo e líder da bancada do Psol (Partido do Socialismo e Liberdade) na Câmara dos Deputados. É ti-tular da Comissão de Relações Exteriores e suplente da Co-missão de Defesa do Consumi-dor. Integra a CPMI do MST, a Comissão Especial do Código Florestal. Compõe a Direção Nacional do Psol.

Quem é

Favela do Mandela, na zona norte do Rio de Janeiro: é necessário aprofundar o conhecimento de nossa realidade

Vladimir Platonow/ABr

Nilton Vianada Redação

É NECESSÁRIO aprofundar o conhecimento da nossa reali-dade e a relação da esquerda com as mais profundas rei-vindicações do povo brasilei-ro por mudança social. Es-ta é uma das constatações do deputado federal Ivan Valente (Psol-SP). No entanto, segun-do ele, é preciso entender que estamos numa realidade mu-tante, com a rapidez trazida pela globalização e a velocida-de das comunicações.

Em entrevista, Valente de-fende que a falta de um for-te movimento social e a des-mobilização da força social de mudança, que ocorreu neste período – aliadas à fragmen-tação e à ainda pouca expres-são de outras candidaturas de esquerda – realçam o quadro de difi culdades de uma alter-nativa verdadeiramente de es-querda que acumule rapida-mente na direção da transfor-mação social. Para ele, os par-tidos políticos não têm dado conta dessa tarefa, ou por op-ção ou por falta de condições objetivas e também erros de avaliação. E afi rma: a unida-de das forças populares é uma questão vital no processo de luta de classes.

Brasil de Fato – Como parlamentar, você tem acompanhado as proposta de alteração do Código Florestal brasileiro. Quais os interesses em jogo nesse debate?Ivan Valente – Está em cur-so no país uma tentativa peri-gosa que pode reverter mais de cinco décadas de legisla-ção ambiental no Brasil. O re-latório fi nal apresentado pelo deputado federal Aldo Rebe-lo [PCdoB-SP] e aprovado na Comissão Especial do Código Florestal, se passar pelo Ple-nário da Câmara, representa-rá um verdadeiro retrocesso na proteção do meio ambien-te em nome dos interesses dos ruralistas. O texto aprovado comprova a farsa do desma-tamento zero que os ruralistas pretendem fazer crer a popu-lação. Fica explícita a autori-zação para novas derrubadas de árvores, nos mais diferen-tes biomas. O texto também possibilita a anistia comple-ta aos desmatadores que co-meteram infrações antes de 2008. Ou seja, premia aqueles que historicamente desrespei-taram o meio ambiente, além de insinuar que desenvolvi-mento só se faz com destrui-ção da natureza.

As mudanças propostas par-tem de premissas equivocadas para defender uma brutal mu-dança na legislação ambien-tal e colocar o Brasil no rumo do atraso e da devastação. En-tre elas, a necessidade de am-pliar a produção de alimentos para o mercado interno, o que justifi caria a ocupação de to-das as áreas agricultáveis do território nacional – inclusive as de reserva legal e de prote-ção permanente. A verdade é que precisamos de outro pro-jeto de desenvolvimento. Nos-sas fl orestas não são balcões de negócio, são bens de inte-resse comum.

Como você vê o projeto que regulamenta os impostos sobre as grandes fortunas?

O imposto sobre as gran-des fortunas está previsto na Constituição de 1988, mas nunca foi regulamentado. Pe-lo projeto do Psol, aprova-do na Comissão de Constitui-ção e Justiça em junho, o pi-so para a cobrança seria de R$ 2 milhões, defi nindo como pa-tamar de fortuna. As alíquo-tas seriam de 0,3% para pa-trimônios acima de R$ 2 mi-lhões; 0,7% para patrimônios

Os partidos não têm dado conta da tarefa

acima de R$ 10 milhões; e 1% para patrimônios acima de R$ 50 milhões. O objetivo é deso-nerar o consumo de bens pela população mais pobre, como medicamentos e itens da cesta básica, mudando o paradigma brasileiro e atendendo o prin-cípio da capacidade contribu-tiva, ou seja, quem tem mais deve pagar mais.

Segundo o Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Apli-cada], os 10% mais ricos con-centram 75% da riqueza do país. Eles também são os que menos pagam impostos pro-porcionalmente à sua renda. Dados da Receita Federal di-vulgados recentemente mos-tram que a arrecadação do pa-ís cresceu justamente devido aos tributos que incidem so-bre o consumo e a renda do trabalho. Já os tributos inci-dentes sobre a renda do capi-tal caíram R$ 131 milhões. Ou seja, a carga tributária brasi-leira é alta e mal distribuída. É urgente tributar de forma mais forte a riqueza e a pro-priedade, para poder tributar menos o salário e o consumo.

O problema é que, no Con-gresso, o capital é que man-da. Historicamente, os do-nos das grandes fortunas im-pediram que esse imposto en-trasse em vigor. As difi culda-des começaram na Assem-bleia Constituinte, em 1988. Enquanto outros imposto, co-mo o de renda, podem ser re-gulados por lei comum, es-se precisa de uma lei com-plementar, que tem trami-tação especial e precisa ser aprovado em plenário por 2/3 dos deputados. É uma ba-talha, portanto, que está ape-nas começando, mas estraté-gica para o país.

E seu projeto de lei que proíbe o capital estrangeiro nas instituições educacionais?

Nosso projeto de Lei nº 2.138/2003, que proíbe o ca-pital estrangeiro nas institui-ções educacionais brasileiras com fi ns lucrativos, parte de um princípio básico, fundan-te da nossa nação: educação não é mercadoria. A Consti-tuição Federal, em seu artigo 205, afi rma que a educação é um direito de todos e um de-ver do Estado e da família. No entanto, a educação brasilei-ra vem sendo desnacionaliza-da, reforçando e ampliação e a mercantilização do ensino.

Hoje, as empresas que bus-cam entrar nas instituições de ensino querem é fazer negó-cios, não possuem um proje-to educacional e, por isso, não primam pela qualidade do en-sino, só pelo valor das mensa-lidades. Nossas universidades não podem se sujeitar a impo-sições do capital privado es-trangeiro. O capitalismo tem uma ideologia bastante dife-rente, em desacordo com o projeto de nação que quere-mos construir. Daí a impor-tância desse projeto. Por con-ta de manobras de grupos de-tentores do capital, o PL está parado na Comissão de Edu-cação e Cultura, mas vem ga-nhando apoio entre setores da esquerda, e a luta é para apro-vá-lo o quanto antes.

Passada a Copa, é hora do país encarar seus graves problemas. E teremos pela frente eleições para cargos importantíssimos, como o de presidente da República, Congresso Nacional, governos estaduais e assembleias legislativas. Como você avalia o atual quadro eleitoral?

Vemos uma superpolariza-ção pelo alto, entre as can-didaturas do PT e do PSDB. São projetos que não têm di-ferenças essenciais no tocan-te à política econômica e à forma como sustentam a go-

vernabilidade, com alianças heterodoxas, pautadas pe-lo abandono de um projeto de transformação social mais profunda no nosso país. Em-bora haja diferenças entre os dois, particularmente na po-lítica internacional e em al-gumas políticas compensa-tórias. A opção Marina Silva [PV] não consegue ser alter-nativa porque não se propõe, não tem condições nem mo-vimento social por trás pa-ra polarizar essa disputa. Já o Psol, apesar de ser um par-tido em construção, tem uma proposta alternativa de trans-formação social baseada num programa capaz de empolgar grandes setores da população, trabalhando com ética na po-lítica e acreditando na força dos movimentos sociais e da participação popular. Temos demonstrado isso na prática, com nosso programa, condu-ta e esforço organizativo.

Pela primeira vez, desde a redemocratização do país, a esquerda irá enfrentar uma eleição em que Lula não será candidato. E desde 1989, a eleição de Lula tem sido um fator de unidade da esquerda, sobretudo antes de 2002. Como você avalia esse cenário?

A saída de Lula do cenário político, com todo seu carisma e simbologia, deixa mais níti-das as propostas em jogo. As relações do PT com o grande capital – assim como da oposi-ção de direita, capitaneada pe-lo PSDB, que também disputa ser a representação do grande capital e da política econômi-ca neoliberal – mostram que os projetos são semelhantes. Eles continuam comprando a confi ança do mercado a um preço muito alto para a clas-se trabalhadora. Não é à toa que a campanha Dilma coloca Palocci como seu grande arti-culador, e os tucanos tentam exacerbar ainda mais a políti-ca do Estado mínimo. A con-sequência direta dessa opção do governo Lula foi uma parte da esquerda buscar novas saí-das para a efetivação do pro-grama que incendiou corações e mentes ao longo de duas dé-cadas. O Psol é consequência dessa ruptura.

Ao que tudo indica, no atual cenário eleitoral, não há nenhuma perspectiva transformadora, anticapitalista, capaz de enfrentar os grandes

desafi os do ponto de vista da esquerda. A fragmentação da esquerda favorece esse quadro?

Num país como o nosso, de grande concentração de ren-da, terra, riqueza e poder, po-líticas sociais de baixa intensi-dade têm um efeito considerá-vel de conformação social, que dá ao governo o mote continu-ísta. A falta de um forte movi-mento social e a desmobiliza-ção da força social de mudan-ça que ocorreu nesse período– aliadas à fragmentação e à ain-da pouca expressão de outras candidaturas de esquerda – realçam o quadro de difi culda-des de uma alternativa verda-deiramente de esquerda que acumule rapidamente na dire-ção da transformação social. O que não invalida nem desme-rece o esforço necessário que vem sendo feito por vários se-tores da esquerda – particu-larmente do Psol – de tentar resgatar um programa e uma prática transformadora capaz de mobilizar o povo e apontar rumos para o socialismo.

Quais são, na sua avaliação, os principais problemas do povo brasileiro e quais desafi os estão colocados hoje para a esquerda?

Problemas estruturais, co-mo a falta de um sistema na-cional de educação, com um plano nacional e investimento maciço na educação pública, mostram nosso imenso atra-so ainda na questão do ensi-no, no qual os avanços foram ínfi mos. Basta ver o valor do piso nacional dos professores, estabelecido no governo Lu-la, e a manutenção dos vetos ao gasto público de 7% do PIB para o setor, feitos por FHC. Já na saúde, permanece o su-cateamento do SUS, o avan-ço do setor privado, da ter-ceirização e a falta de recursos públicos, além da não regula-mentação da emenda 29.

Outro problema central é a não efetivação da esperada re-forma agrária. O governo Lu-la, pela governabilidade, ce-de sempre ao agronegócio e aos ruralistas. Enquanto isso, 36% do orçamento da União em 2009 foram gastos no pa-gamento de juros e amorti-zações da dívida pública, en-quanto a educação recebeu menos de 3%; a saúde, me-nos de 5%; e a reforma agrá-ria, menos de 0,1%. Inverter prioridades e favorecer de fa-to a área social, que garante direitos, e a infraestrutura do país, que gera emprego e dis-tribui renda, é um dos maio-res desafi os da esquerda.

O PT construiu, em 1986, o Programa Democrático Popular. Você considera esse programa atual?

O Programa Democráti-co Popular é um patrimônio da esquerda brasileira. Uma proposta que defende refor-ma agrária; democratização radical dos meios de comu-nicação de massa; direitos so-ciais dos trabalhadores; dis-tribuição de renda como ala-

vanca de outro projeto de de-senvolvimento, para romper a dependência; suspensão do pagamento da dívida públi-ca, com auditoria para inver-ter a lógica de predomínio do mercado sobre a vida dos ci-dadãos; defesa da soberania nacional e política anti-im-perialista, controle de setores estratégicos pelo Estado; de-senvolvimento sustentável e política ambiental, visando o futuro, e não as necessidades imediatas do sistema agríco-la e agrário de exportação de commodities; promoção e ga-rantia dos direitos humanos e da diversidade cultural do pa-ís; e combate a todas as for-mas de opressão. Tem uma imensa radicalidade para ata-car as bases do atual sistema, organizar e mobilizar o povo e abrir portas para a superação defi nitiva das iniquidades ca-pitalistas, rumo a uma socie-dade com justiça e igualda-de social. A América Latina, com exemplos sobretudo da Bolívia, Venezuela, Equador e Paraguai, tem demonstra-do a imensa atualidade des-se programa.

A esquerda brasileira tem o conhecimento verdadeiro da realidade social do país?

Grandes estudiosos, pen-sadores partidários e intelec-tuais orgânicos como Flores-tan Fernandes, Celso Furta-do, Caio Prado Junior, Pau-lo Freire, Antonio Candido e Darcy Ribeiro nos forneceram bases e contribuições impor-tantes para o conhecimento da realidade brasileira. Alia-do às experiências e história de luta da classe trabalhadora e às lutas de resistência do po-vo brasileiro, esse conjunto de ideias são um excelente ponto de partida para a esquerda. É preciso entender, no entanto, que estamos numa realidade mutante, com a rapidez trazi-da pela globalização e a velo-cidade das comunicações. Is-so reforça a necessidade de aprofundar o conhecimento da nossa realidade e a rela-ção da esquerda com as mais profundas reivindicações do povo brasileiro por mudan-ça social.

A seu ver, os instrumentos políticos da esquerda brasileira hoje, principalmente partidos políticos, têm sido capazes de fazer frente à atual realidade brasileira?

Apesar da dura realidade das condições de vida da maioria do povo brasileiro, não há um processo de in-dignação organizada em mar-cha. Os partidos políticos não têm dado conta dessa tare-fa, ou por opção ou por falta de condições objetivas e tam-bém erros de avaliação. É pre-ciso levar em conta o nível de organização e consciência re-al dos trabalhadores, se enga-jar nas lutas que movimentam o povo em torno de direitos e, num processo pedagógico de luta, mobilização e organiza-ção, atingirmos um patamar

de pressão social capaz de via-bilizar mudanças sociais sem-pre prometidas e nunca reali-zadas em nosso país.

E como você vê a atuação dos movimentos sociais no Brasil frente a esse cenário?

O Brasil viveu, nos anos de 1980, um momento importan-tíssimo de ascenso dos movi-mentos populares e sociais e da sua organização, com a for-mação da CUT e do próprio PT. Foi um momento signifi -cativo de acumulação de cons-ciência e força social. Poste-riormente, vivemos um perí-odo de declínio, e hoje o que existe de fato, no geral, é uma baixa dos movimentos sociais – apesar de signifi cativos mo-mentos de resistência, seja na luta pela reforma agrária, con-tra a lógica do Estado mínimo, com greves e mobilizações, na luta por garantia de direitos e contra a discriminação, ainda insufi cientes para uma arran-cada rumo a transformações sociais mais profundas. Isso só reforça o papel dos setores de vanguarda e dos movimen-tos sociais na construção des-se processo.

Como avançar na unidade das forças populares?

A unidade das forças po-pulares é uma questão vitalno processo de luta de clas-ses. Mas a construção da uni-dade é um processo que devealiar tolerância política, sabe-doria, manutenção de princí-pios, vontade política, acre-ditar na democracia, na to-mada de decisões e consciên-cia de que, com o crescimentodas lutas, a unidade se tornamais imperiosa e aumenta aresponsabilidade de cada for-ça política na construção dosinteresses sociais e nacionais.Os verdadeiros socialistas de-vem perceber que o fato de vi-vermos um momento de des-censo aumenta nossa respon-sabilidade com a construçãode um futuro que interessa atodo o povo brasileiro.

ENTREVISTA Para Ivan Valente, apesar da dura realidade das condições de vida da maioria do povo brasileiro, não há um processo de indignação organizada em marcha

“A saída de Lula do cenário político, com todo seu carisma e simbologia, deixa mais nítidas as propostas em jogo”

Brizza Cavalcante/Agência Câmara

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Agroenergia em debate: investimentos no setor podem prejudicar produção de alimentos

de 15 a 21 de julho de 20108

brasil

45% da energia e 18% dos combustíveis consu-midos no Brasil são reno-váveis

Quanto

Agrocombustíveis já respondem por 10% do mercado de energia

Jorge Américo

Jorge Américoenviado a Caruaru (PE)

DENTRO DE TRÊS anos, a frota brasileira de automóveis movidos a etanol e biodiesel chegará a 15 milhões de uni-dades. Essa projeção, da As-sociação Nacional dos Fabri-cantes de Veículos Automo-tores (Anfavea), aumentou a demanda por fontes renová-veis e colocou a matriz ener-gética brasileira no centro das discussões do governo, inves-tidores e movimentos sociais. Com isso, o Plano Estratégico da Petrobras estabeleceu uma meta de produção anual de 640 milhões de litros de bio-diesel e 3,9 bilhões de litros de etanol para o ano de 2013.

Porém, José Cláudio da Sil-va, integrante da Via Campe-sina, alerta para os riscos de se investir nos agrocombustí-veis sem levar em considera-ção um outro setor estratégi-co: da produção de alimentos. “A discussão dos processos de geração de energia deve estar atrelada, sobretudo, à sobera-nia e à segurança alimentar. A produção da cana e da mamo-na não pode ser mais impor-tante que a do feijão. Da mes-ma maneira, os projetos das grandes hidrelétricas devem pensar naquela população que está ali em volta, nos cam-poneses, na produção agrícola e na biodiversidade. Se não for pensado dessa maneira, conti-nuaremos gerando mais im-pactos sociais”, analisa.

Devido ao alto teor de óleo e à capacidade de se desenvol-ver em regiões secas, a mamo-na é uma das principais maté-rias-primas utilizadas na pro-dução do biodiesel. Uma li-nha de fi nanciamento criada a partir de uma parceria en-tre a Petrobras e o Banco do Brasil destinará recursos para a expansão dessa oleaginosa. A projeção de crescimento da área plantada, feita pelo Mi-nistério do Desenvolvimento Agrário (MDA), é de 21% para este ano. Os repasses se darão por meio do Programa Na-cional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

Mercado mundialOs agrocombustíveis já res-

pondem por 10% do mercado mundial de energia. Anual-mente, são utilizados um vo-lume aproximado de 60 bi-lhões de litros. No Brasil, cer-ca de 45% da energia e 18% dos combustíveis consumidos são renováveis. Os dois princi-pais combustíveis extraídos de

Agrocombustíveis podem abastecerfrota de 15 milhões de automóveisDESENVOLVIMENTO Prioridade para o setor energético pode inviabilizar a produção de alimentos

produtos agrícolas no Brasil são o etanol, da cana-de-açú-car, e o biodiesel, que é produ-zido a partir de óleos vegetais ou de gorduras animais e adi-cionado ao diesel de petróleo. A soja representa 75% da pro-dução voltada para o setor.

Sendo considerado o res-ponsável por muitas das prin-cipais tensões no atual cená-rio geopolítico internacional, o petróleo é encarado como uma fonte energética que ca-minha para o esgotamento e que precisa ser substituída por alternativas menos preju-diciais ao meio ambiente. Em visita ao Brasil em 2007, o en-tão presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, assi-nou um acordo com o governo brasileiro que prevê a padro-nização da produção de eta-nol, buscando atender parte da demanda mundial.

José Cláudio acredita que a discussão da matriz energé-tica é indissociável do mode-lo de desenvolvimento econô-mico. “A produção de energia a partir de hidrelétricas, por exemplo, é pensada para aten-der às necessidades dos gran-des grupos, como é o caso do Grupo Votorantim na região Norte”, avalia.

Reginaldo Pacheco de Cas-tro, professor de Geografi a da rede estadual de Goiás, acres-centa que o atual modelo de desenvolvimento econômi-co demanda uma capacidade de geração de energia incom-patível com as reservas natu-rais. “O padrão de consumo nas cidades é insustentável. Isso exige uma superexplo-ração, que esgota a capaci-dade produtiva do solo. Pre-cisamos refl etir, também, até que ponto a monocultura vol-tada para a produção de ener-gia pode benefi ciar os agricul-tores”, afi rma.

Agricultura familiarAté 2013, a Petrobras deve-

rá investir 2,4 bilhões de dó-lares na produção de biodie-sel e etanol. A Zona da Mata, na região Nordeste, é um dos principais focos. Apenas em 2009, os negócios envolven-do a comercialização e pro-cessamento da mamona mo-vimentaram R$ 27 milhões. De acordo com o MDA, 41 mil famílias de assentamentos es-tiveram envolvidas na produ-ção. Uma área de 155 mil hec-tares foi destinada para as la-vouras de oleaginosas na safra 2009/2010.

Para José Cláudio, os pro-dutores da agricultura fami-liar devem assumir uma outra posição e sair da condição de fornecedores. “No Nordeste, a produção de mamona é volta-da para empresas como a Bra-sil Ecodiesel. É incompatível você pensar em produzir ma-mona apenas para uma gran-de esmagadora, uma gran-de processadora. Poderíamos pensar em unidades de bene-fi ciamento menores, que pos-sibilitassem a utilização do combustível em máquinas do meio rural, como tratores, for-rageiras e em casas de produ-ção de farinha.”

O integrante da direção na-cional do Movimento dos Tra-balhadores Rurais Sem Ter-ra (MST) Francisnaldo Alves acredita que a produção agrí-cola com foco na energia deve ser pautada pela sustentabili-dade. Para ele, existe uma re-lação entre a ação predatória do latifúndio com os desastres naturais, cada vez mais fre-quentes e intensos. “Antes, era Zona da Mata. Hoje, é zo-na canavieira. A busca insana por fontes de energia provo-cou grandes impactos sociais e ambientais, como o êxodo rural e a ocupação dos ma-nanciais de importantes rios. O resultado está aí: desastres ambientais, como as enchen-tes que destruíram cidades in-teiras no Nordeste brasileiro”, elucida.

Brasil de Fatoe Petrobrasrealizam ciclode debates

O Brasil de Fato e a Pe-trobras realizam uma série de cinco debates envolven-do a produção e o consumo de agroenergia. Com o tema “Matriz energética brasilei-ra: suas potencialidades e desafi os”, as discussões re-únem especialistas, repre-sentantes de movimentos sociais e da Petrobras, além de agricultores ligados a cooperativas. Nesta pági-na, confi ra reportagem so-bre a etapa do dia 6 de ju-lho, realizada na cidade de Caruaru (PE). Também es-tão na programação das ci-dades que sediam os deba-tes Fortaleza (CE), Maceió (AL), Montes Claros (MG) e Brasília (DF).

do enviado a Caruaru (PE)

Em 2009, mais de 1.900 trabalhadores do setor ca-navieiro foram liberta-dos de condições análogas à escravidão pelo Minis-tério Público do Trabalho (MTE) nas regiões Sudes-te e Centro-Oeste, além do estado de Pernambuco. Es-tudos desenvolvidos pela Comissão Pastoral da Ter-ra (CPT) apontam que em 2007 e 2008, dos 11.230 trabalhadores libertados de situações degradantes, 5.593 eram empregados nas lavouras de cana-de-açúcar.

Muitas das empresas au-tuadas pela utilização de trabalho escravo recebem fi nanciamento de bancos estatais. Elas submetem os trabalhadores a jorna-das exaustivas, desrespei-tam a legislação trabalhista e instalam os funcionários em alojamentos precários, sem água potável e banhei-ro disponíveis.

Presença internacionalO ano de 2008 marca o

momento em que o etanol passou a ser consumido nos mesmos níveis que a gasolina no Brasil. O índice

é resultado de um progra-ma apresentado na década de 1970, como uma medi-da alternativa para os altos preços do petróleo. Criado pelo governo brasileiro por meio de um decreto, o pro-grama recebeu o nome de Pró-álcool. Junto ao bio-diesel, o etanol tem grande aceitação por emitir menos compostos químicos na at-mosfera do que os deriva-dos de petróleo.

No Brasil, o etanol é pro-duzido, exclusivamente, a partir da cana-de-açúcar. A expansão do mercado tem se tornado um grande atrativo para investidores internacionais. Em ape-nas uma década, subiu de 1% para 10% o número de usinas controladas por es-trangeiros.

Com o impressionan-te consumo de etanol re-gistrado em 2008, a safra de cana-de-açúcar ocupou 8,5 milhões de hectares de terras no Brasil. Em 2009, houve um aumento de 7,1%. Existem cerca de 450 usinas no país, controladas por 160

empresas nacionais e es-trangeiras.

Fontes alternativasSegundo José Cláudio da

Silva, da Via Campesina, “se tivéssemos um modelo de desenvolvimento econômi-co compatível com as me-lhorias sociais e com a pre-servação dos recursos na-turais, certamente a matriz energética seria outra”. Pa-ra tanto, ele aponta a ne-cessidade de se investir em transporte coletivo e infra-estrutura para meios alter-nativos. “O Brasil pode ser cortado de ponta a ponta por ferrovias. Temos ain-da um grande potencial pa-ra o desenvolvimento de hi-drovias, mas ainda não fo-ram feitos os investimentos e pesquisas necessários nes-sa área”, diz.

A consolidação de uma matriz energética sustentá-vel do ponto de vista eco-nômico, social e ambien-tal não dispensa as fontes já disponíveis. A sugestão de José Cláudio é que elas sejam remodeladas. “Pode-mos investir em usinas me-nores. Temos milhares de quilômetros de costa ma-rítima, com potencial pa-ra duas fontes de energia: a eólica, que aproveita a for-ça dos ventos, e a hidráuli-ca, gerada a partir das on-das do mar. Se essas alter-nativas forem somadas ao que temos disponível, pos-sivelmente não precisare-mos criar novas barragens nem destinar grande par-te da área de produção de alimentos para a produção de combustíveis de origem agrícola”. (JA)

“O Brasil pode ser cortado de ponta a ponta por ferrovias. Temos ainda um grande potencial para o desenvolvimento de hidrovias”

Trabalho escravo cresce no mesmo ritmo do etanol

Presença internacional no setor canavieiro subiu de 1% para 10% em apenas uma década

“O padrão de consumo nas cidades é insustentável. Isso exige uma superexploração, que esgota a capacidade produtiva do solo”

“Antes, era Zona da Mata. Hoje, é zona canavieira. A busca insana por fontes de energia provocou grandes impactos sociais e ambientais, como o êxodo rural e a ocupação dos mananciais de importantes rios”

Jorge Américo

Jorge Américo

Usina do Parque Eólico de Praias de Parajuru, no Ceará

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de 15 a 21 de julho de 2010 9

internacional

Vista do campo de refugiados de Jalazon, ao norte da cidade de Ramallah, na Cisjordânia

Dafne Melo

Dafne Meloda enviada a Haifa e

Ramallah (Palestina)

“As colônias judias foram construídas nos lugares das

vilas árabes. Você sequer sabe o nome dessas cidades, e não te culpo, pois livros de

Geografi a [daquela época] não existem mais. Não só os livros, mas as próprias

vilas. Nahlal foi feita no lugar de Mahlul; Kibbutz

Gvat, no lugar de Jibta; Kibbutz Sarid, no lugar de

Huneifi s; e Kefar Yehushu’a, no lugar de Tal al-Shuman.

Não há um único lugar neste país que não tenha

sido construído em cima de onde haviam árabes antes”

Moshe Dayan, combatente sionista em 1948.

Quase duas décadas depois, como ministro da Defesa,

comandou a Guerra dos Seis Dias (1967). Declaração ao

jornal israelense Haaretz, em abril de 1969.

HATEM HMEDAT nasceu no mesmo ano em que Israel fez sua primeira ocupação na Pa-lestina. As primeiras imagens que guarda na memória são as do frio, dos barracos e do odor do banheiro. “Eram uns bura-cos no chão e tinham um chei-ro horrível”, relembra o mora-dor do campo de refugiados de Jalazon, ao norte da cidade de Ramallah, na Cisjordânia, na Palestina ocupada.

O que sabe da Nakba (“ca-tástrofe” em árabe, como os palestinos se referem à ocu-pação de 1948) vem dos rela-tos de seus pais. A cidade onde morava, Abbasiyah, próxima a Jaffa, era uma das mais popu-losas, com pouco mais de 5 mil habitantes. Foi totalmen-te destruída, e o local, usado por Israel para a construção da colônia judia de Or Yehu-da. “Minha mãe estava grávi-da de mim, e havia muitas no-tícias de que, quando eles che-gavam às vilas, buscavam es-pecialmente as grávidas para matar. Fomos de vila em vi-la, caminhando, até que che-gamos aqui”, conta, evocan-do uma imagem contada por quase todas as testemunhas da Nakba: a de famílias intei-ras caminhando pelas estra-das, sem rumo, parando em diversos vilarejos antes de se fi xar em algum lugar.

Quando perguntado sobre a primeira imagem que tem da Nakba, Dahoud Badr descreve uma cena parecida. Hoje mi-litante de uma associação que luta pelos direitos dos pales-tinos expulsos de suas terras nos territórios ocupados em 1948 por Israel, ele tinha ape-nas seis anos de idade quando os exércitos sionistas invadi-ram a vila de Ghabisyah, pró-xima a Acre. “Andávamos eu e minha família, sempre para lá [aponta o Norte]. Uma ho-ra, não aguentei mais; meu tio, então, colocou-me nos ombros, até que chegamos a uma vila. Depois, paramos em mais umas três até chegarmos quase no Líbano”. Minutos depois, Badr se corrige. “Na verdade, a primeira imagem que eu lembro, logo após a in-vasão, é da minha mãe com as mãos na cabeça”.

Tentativa de voltarDe acordo com dados do re-

latório 2008/2009 da Badil, organização que se dedica aos direitos dos refugiados pales-tinos, a Organização das Na-ções Unidas (ONU) registrou pouco mais de 900 mil pales-tinos que se tornaram refu-giados entre 1947 e 1950. Es-tima-se que a esse número se somem outros 300 mil não re-gistrados. Muitos foram para países próximos, como Arábia Saudita, Síria, Jordânia, Egito e Líbano. “A maioria vive, até hoje, em um raio de 100 km das fronteiras de Israel ou da

Faixa de Gaza e Cisjordânia, onde eram seus lugares de ori-gem em 1948 ou 1967”, expli-ca Ingrid Jaradat Gassner, di-retora da Badil.

O motivo dessa proximida-de é que muitos acreditavam que seria possível voltar a su-as terras em pouco tempo. Ba-dr conta que, após pensar em se refugiar no Líbano, sua fa-mília voltou à vila de origem. “Uma hora, minha mãe afi r-mou que não ia cruzar a fron-teira, que, se todos quisessem seguir, podiam deixá-la ali, pois estava decidida a morrer na Palestina. Boa parte da mi-nha família decidiu fi car”.

Quando voltaram a Gha-bisyah, a vila não estava to-talmente vazia, pois outros já haviam voltado. Dois anos de-pois, as Forças Armadas israe-lenses voltaram e pediram pa-ra que saíssem em 72 horas. Os moradores entraram com uma ação na Justiça e a pró-pria Suprema Corte de Isra-el autorizou o retorno dos pa-lestinos.

Pouco tempo depois, uma nova ordem de despejo foi da-da. David Ben-Gurion, então primeiro-ministro de Israel, declarou que a área era de in-teresse militar e, por isso, de-veria ser evacuada. Até hoje, a vila se encontra abandonada. Arames farpados e placas de metal foram postos ao redor da mesquita, as oliveiras cen-tenárias foram arrancadas, tendo pinheiros plantados no lugar. “São árvores que estra-gam a terra. Como era uma vi-la que sobrevivia da agricul-tura, foi uma forma de fazer com que a gente não voltasse mais”, explica Badr.

Números Hoje, há cerca de 7,1 mi-

lhões de refugiados palestinos em todo o mundo, o que re-presenta 67% de toda a popu-lação palestina (10,6 milhões). Desses, apenas 427 mil conti-nuam no interior da “Palesti-na histórica”, ou seja, o que hoje é Israel, Faixa de Gaza e Cisjordânia. O maior grupo de refugiados tem origem na Nakba – cerca de 5,7 milhões, englobando os expulsos e seus descendentes.

Samir Abed-Rabbo é um de-les. Sua família vivia na vila de Yasour, próxima à cidade portuária de Asdud, onde ho-je está a colônia judia de Ha-zor Ashdod. “Foram expulsos em 1948 e passaram por 11 ci-dades antes de chegarem a um campo de refugiados no norte de Jerusalém. No começo, vi-viam em barracos. Depois, a ONU construiu pequenos quartos e, aos poucos, conse-guiram construir uma casa”, conta.

A maior parte dos campos de refugiados palestinos, de-vido às seis décadas de ocupa-ção e não solução da questão, converteu-se em cidades. Boa parte das famílias conseguiu construir casas. As condições de vida, porém, são precárias e os índices de desemprego, altíssimos. Por isso, somente 20% dos refugiados hoje vi-vem nos 58 campos da ONU, espalhados pela Faixa de Ga-za, Cisjordânia, Jordânia, Lí-bano e Síria.

Samir sequer teve a chan-ce de continuar junto com os pais no campo em Jerusalém. “Em 1974, tive a oportunida-de de ir aos EUA para estudar. Depois, tentei voltar e Israel não permitiu”. Como se fi xou nos EUA e possui passapor-te estadunidense, ele conse-gue fi car na Palestina por ape-nas três meses, com um visto de turista.

Hoje, além de professor uni-versitário, Samir milita em uma organização que luta pe-lo direito de retorno dos pa-lestinos a seu território, a al-Awda. “E não é só de voltar, do direito de viver em nosso próprio país que estamos fa-lando, mas também de ter as-segurado nosso direito à au-

todeterminação, à soberania, de sermos compensados pelas perdas materiais e de se criar a possibilidade de termos um Estado democrático, com nos-sas próprias instituições polí-ticas”, defi ne.

A volta dos refugiados pa-lestinos, porém, é um dos te-mas mais evitados por Isra-el. Uma das maiores preocu-

De todos os palestinos no mundo, dois terços são refugiadosPALESTINA Ocupação israelense impossibilita a volta de mais de 7 milhões de pessoas a seu próprio território

pações dos sionistas, quan-do ainda programavam a ocupação, era a de garantir o que chamavam de “equi-líbrio populacional”, ou se-ja, fazer com que o número de árabes fosse o menor pos-sível e sempre mantido sob controle. A volta dos refugia-dos, nesse sentido, seria um pesadelo.

da enviada a Haifa e Ramallah (Palestina)

Na língua iídiche, falada por judeus na Alemanha, o Holocausto é chamado de shoá, palavra que signifi ca “calamidade”. Para os ára-bes, a ocupação israelense de 1948 é chamada de nak-ba, que, em árabe, possui signifi cado similar: catás-trofe. Tal como a shoá para os judeus, a Nakba é o maior trauma para os palestinos.

Mais do que o assassina-to de mais de 15 mil pessoas em massacres, a destruição de 521 vilas árabes e o des-locamento de cerca de 800 mil pessoas (números ofi -ciais da ONU relativos ape-nas a 1948), a Nakba foi uma limpeza étnica que, de acordo com as Nações Uni-das, é defi nida pela transfe-rência massiva de uma po-pulação de forma sistemá-tica, coerciva e delibera-da, com o objetivo de alte-rar a composição demográ-fi ca de uma região e, parti-cularmente, quando há por trás uma ideologia que jus-tifi que a dominação de um grupo sobre o outro.

Para Ingrid Jaradat, da organização Badil, a ocupa-

Ingrid Jaradat chama a atenção para o fato de que a Nakba segue ocorrendo na Palestina. A política de expulsão sistemática da população palestina continua na ordem do dia

Al-Nakba, a shoá palestinaAções israelenses contra a população árabe preenchem todos os requisitos que confi guram, segundo a ONU, uma limpeza étnica

colônias e dispensar o uso da mão-de-obra palestina.

“Desde 1948, Israel apro-va leis para assegurar o di-reito de retorno dos judeus [Lei do Retorno de 1950]. Ou seja, apenas judeus têm direito a estar nessa terra que eles chamam de ‘Gran-de Israel’ e ao Estado que eles defi nem como ‘judaico e democrático’. De acordo com as leis israelenses, en-tretanto, os palestinos não podem se tornar cidadãos desse país simplesmente porque não são judeus”, protesta Ingrid.

De acordo com ela, os ára-bes que fi caram em Isra-el após 1952 foram trans-formados em “cidadãos de segunda classe”, de acordo com as Leis de Cidadania. “Essa mesma lei proibiu o retorno dos palestinos, e os refugiados se transforma-ram em pessoas sem Esta-do; mais uma vez, prova da violação das leis internacio-nais por parte de Israel”, fi -naliza. (DM)

ção israelense preencheu – e continua preenchendo – to-dos esses requisitos. “Desde 1948, Israel usa essa política para impedir os palestinos de efetivarem seu direito de autodeterminação. Israel os expulsa de suas terras e im-pede seu retorno com o pro-pósito de colonizar e estabe-lecer uma maioria judia no território”, defende.

Expulsão permanenteEla ainda chama a aten-

ção para o fato de que a Nakba segue ocorrendo na Palestina. A política de ex-pulsão sistemática da po-pulação palestina continua na ordem do dia. Além do

bloqueio à Faixa de Gaza, os palestinos na Cisjordâ-nia convivem diariamente com o confi sco de terras, a demolição de casas (mais de 25 mil desde 1967), o con-trole sobre a água, estradas e fronteiras e o estabeleci-mento de checkpoints (blo-queios militares) em todo o território.

Ao mesmo tempo, o Esta-do de Israel segue estimu-lando a imigração judia. No entanto, como esta tem sido cada vez menor, o governo israelense incentiva a vin-da de não judeus de países do Leste europeu, Rússia e América Latina, para seguir com a política de criação de

Problemas e soluçõesIngrid Jaradat explica que,

até hoje, só houve duas tenta-tivas de se resolver a questão dos refugiados. Uma primei-ra rodada de negociações foi feita ainda entre 1949 e 1952, com base na resolução 194 da ONU, que afi rma o direito de retorno. Ao longo dos anos, Israel sempre alegou questões de segurança para descumprir a determinação.

Uma segunda rodada foi re-alizada entre 1991 e 2000, du-rante os chamados Acordos de Oslo. Ambas tentativas falha-ram, “em grande parte, devido ao fato de que Israel rejeita o retorno como uma medida de salvaguardar uma maioria ju-dia dentro de seu território e para não abrir mão de toda a terra confi scada que pertence a esses refugiados”, explica In-grid, que também considera a

falta de vontade política da co-munidade internacional – em particular a União Europeia e os EUA – decisiva para que a questão não seja resolvida.

Para ela, na atual situação em que se encontra o confl ito Israel-Palestina, é impossível encontrar uma solução para os refugiados. “A raiz da ques-tão é o sistema racista institu-cionalizado, ou seja, o apar-theid imposto por Israel, que não permite esse retorno e a restituição de terras. Somen-te com o fi m do apartheid sio-nista é que isso se resolverá. E isso não é um assunto de di-plomacias, mas de luta con-tra a ocupação, colonização e apartheid israelenses”.

Samir concorda: “O sio-nismo é uma ideologia colo-nial, racista e violenta que de-ve ser combatida assim co-mo o apartheid na África do Sul, que foi o resultado, igual-mente, de uma ideologia colo-nial, racista e violenta. As mu-danças só puderam ocorrer na África do Sul quando ele foi eliminado, o direito dos ne-gros restaurado e uma repú-blica para todos os cidadãos da África do Sul estabelecida. Isso é exatamente o que preci-samos aqui”.

O professor universitário explica ainda que essa solu-ção não tem como premissa a expulsão dos judeus. “Não estamos dizendo que os ju-deus ou israelenses devem ser privados de sua naciona-lidade ou cidadania, mas es-tamos dizendo: vamos escre-ver uma nova página e seguir em frente. Os israelenses po-dem manter suas cidadanias em uma nova república, mas os palestinos também deve-rão ter os mesmos direitos”, conclui.

Reprodução

Rep

rodu

ção

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américa latina

O governo do Estado busca justifi car uma militarização do território para poder acabar com a experiência autônoma

Giovanna Gasparello

Matteo Deanda Cidade do México

VIVER EM San Juan Copala, hoje, “é estar morrendo em vi-da. Há um verdadeiro estado de sítio organizado pelos pa-ramilitares, que rodeiam a co-munidade e a está matando pouco a pouco”. Segundo Mar-cos Albino, membro da dele-gação do povo triqui presente na Cidade do México para pro-mover a causa do município autônomo, a situação que vi-ve San Juan Copala, no estado de Oaxaca, desde novembro do ano passado, “é uma crise humanitária” para a qual é ur-gente voltar a atenção.

David Venegas, do coleti-vo Vozes Oaxaquenhas Cons-truindo Autonomia e Liber-dade (Vocal), concorda: “O atentado de 27 de abril [con-tra uma caravana de observa-ção de direitos humanos, dei-xando duas pessoas mortas] chamou muito a atenção dos meios de comunicação e da opinião pública”. No entanto, “essa atenção pouco se con-centrou na crise humanitária de grandes proporções vivida no município autônomo”. Tal situação, segundo o ativista oaxaquenho, não acabou em 27 de abril. Do contrário, “for-taleceu-se após o atentado”.

O isolamentoEntrevistado sob as lonas da

barraca que os integrantes do município autônomo de San Juan Copala mantêm no Zó-calo, na Cidade do México, Marcos Albino explica a longa campanha de difusão que em-preendem desde novembro do ano passado: “São seis meses que estamos fora de nossa co-munidade, tentando fazer com que nossa situação fi que co-nhecida”. Nesse longo perío-do, relata, “não voltei a pisar na minha comunidade”.

San Juan está completa-mente cercado pelos gru-pos paramilitares da Unida-de de Bem-Estar Social da Re-gião Triqui (UBISORT), afi lia-dos ao Partido Revolucionário Institucional (PRI) e, em par-ticular, ao atual governador do estado de Oaxaca, Ulises Ruiz Ortíz. Albino explica que “não podemos transitar, não há co-municação com os compa-nheiros de lá”.

Para chegar ao município, descreve, é preciso passar por uma trilha na fl oresta para evitar os paramilitares. “Mas, ainda assim, às vezes os en-contramos”, esclarece. Des-de novembro, não há luz nem água potável nas comunidades do município. A isso, agrega-se a falta de condições para se comprar víveres em zonas co-merciais da região. Além dis-so, Albino denuncia que as crianças “não estão tendo edu-cação e não existem centros de saúde que nos atendam”.

Acerca da campanha nos meios de comunicação que o governo do estado orquestrou contra San Juan Copala, Al-bino destaca que o Executivo “tenta criar confusão, acusan-do o município de querer criar autoatentados”. O objetivo das caravanas de direitos huma-nos, então, é levar víveres e romper o cerco, mas, também, “documentar a situação para que o mundo veja a realidade através da voz das pessoas da comunidade, e não apenas por meu testemunho”.

A mesma preocupação é ex-pressada por Venegas, do Vo-cal, que diz que o estado de Oaxaca é o que está por trás

“Estão nos matando pouco a pouco”MÉXICO Município autônomo indígena de Oaxaca sofre com assassinatos de suas lideranças e cerco paramilitar

da violência paramilitar e que este já encontrou uma explica-ção e uma estratégia comuni-cativa para se defender em ní-vel internacional: dizer que é o próprio município que busca ser mártir e organiza a violên-cia contra o governo. Tais ar-gumentos, para Venegas, ser-vem “para justifi car uma pos-sível militarização do territó-rio para poder acabar com a experiência autônoma”.

Mais violênciaEle alerta ainda que a vio-

lência depois do atentado de 27 de abril contra a carava-na de observação de direi-tos humanos não diminuiu, e sim aumentou. Provas disso são os ataques que os indíge-nas de San Juan Copala sofre-ram no mês de maio. Marcos Albino detalha também o se-questro de “11 companheiras que tentavam chegar à cabe-ceira municipal de Juxtlahua-ca para comprar víveres”. Foi em 15 de maio, quando 35 mu-lheres triquis de San Juan Co-apala tentaram romper o cerco ao município autônomo, “pois não é mais possível viver nes-sas condições”.

Ao chegar ao local, duas in-tegrantes do grupo foram ro-deadas por homens armados e levadas às instalações do mu-nicípio para que o dirigente da UBISORT, Rufi no Juárez, as recebesse. Ali, depois de se-rem ameaçadas de morte e re-ceberem a advertência de que não voltassem porque pode-riam sofrer alguma embosca-

da, as duas conseguiram esca-par e se reunir com suas com-panheiras. Então, conta Al-bino, as mulheres consegui-ram entrar em contato com as autoridades do de San Ju-an, que, imediatamente, exi-giram proteção a elas ao se-cretário de Governo do esta-do de Oaxaca, Evencio Nico-lás Martínez.

A proteção chegou no dia se-guinte, sob a forma de uma co-missão de direitos humanos do estado e alguns policiais. Segundo o testemunho de Al-bino, estes levaram as indíge-nas triquis apenas até a comu-nidade de Yosoyusi, afi rman-do: “elas já estão em seu ter-ritório, agora, a responsabili-dade é de vocês”. A situação se complicou muito, pois as mu-lheres queriam se reunir com as famílias e fi lhos deixados três dias antes em suas casas. No entanto, não havia meios para transportá-las.

Premeditação Finalmente, o grupo deci-

diu caminhar pela rodovia fe-deral rumo a sua comunida-de de origem, a quase uma ho-ra de distância em automóvel. Albino não esconde sua revol-ta: “Eles sabiam onde as esta-vam deixando, sabiam perfei-tamente que entre a localida-de onde as deixaram e suas ca-sas estava La Sabana, a comu-nidade onde ocorreu o atenta-do de 27 de abril”.

Uma provocação, segundo o integrante do município autô-nomo, que surtiu efeito: a lon-

ga marcha das 35 mulheres foi interceptada por um grupo ar-mado da UBISORT, que reteve 12 delas pelo período de pou-co mais de dez horas, amea-çando-as e as mantendo ajoe-lhadas e sob a mira de pistolas nas instalações de um quartel militar abandonado.

Depois da liberação das mu-lheres triquis, a violência não parou. Em 20 de maio, Timo-teo Alejandro Ramírez, diri-gente do município autônomo de San Juan Copala, e sua es-posa, Cleriberta Castro, foram assassinados em sua própria casa “por pistoleiros que as testemunhas oculares identifi -caram como sendo integrantes do Movimento de Unifi cação de Libertação Triqui (MULT), próximo à UBISORT”.

Marcos Albino lembra que “Alejandro Timoteo era um dos maiores impulsionado-res de nossa autonomia”. Sua morte “é algo muito triste pa-ra nós, pois ele era um ponto de referência para quem acre-ditava na justiça e no autogo-verno”, diz, aproveitando pa-ra recordar que, da declara-ção de autonomia de San Ju-an Copala, em 1º de janeiro de 2007, até agora, a experiência autônoma dos triquis de Oaxa-ca já sofreu mais de 30 assas-sinatos.

A autonomiaDavid Venegas, participan-

te da caravana que em 27 de abril foi brutalmente ataca-da por paramilitares da UBI-SORT, explica que, neste mo-mento, em Oaxaca, “onde as feridas de 2006 ainda estão abertas”, a experiência de San Juan Copala é muito impor-tante, porque é produto da in-surreição de 2006; em parte, é resultado da acumulação do povo triqui, que aprendeu que a autonomia é o melhor cami-nho para se viver fora do ca-pitalismo.

“O ataque a San Juan Copa-la”, continua, “é importante para o governo, que não quer que essa experiência se con-verta em um precedente exi-toso, um exemplo para as de-mais comunidades indígenas e organizações populares que o ameacem de perder o controle político sobre o território”.

Para “os autônomos”, diz Marcos Albino, “a autorida-de é a base, através da assem-bleia geral”, que elege seus re-presentantes, o presidente municipal autônomo, seu su-plente etc. “Mas eles não são a autoridade, e sim o povo. É o povo que dá o sim ou o não para que as coisas se façam”. A assembleia se reúne a cada mês ou a cada 15 dias, de acor-do com a necessidade. O car-go máximo é atribuído a uma pessoa. Albino esclarece que, “se essa pessoa não acata as decisões da assembleia, ela é substituída. Esta é, para nós, a autonomia”.

Para ele, autonomia signifi -ca, também, distância dos par-tidos políticos. “Não temos pe-ríodos eleitorais, não nos im-portamos com isso”, insis-te, agregando que, se os par-tidos se interessam pela elei-ção, “que façam o que quise-

rem, mas não em nosso muni-cípio”. Para os autônomos, to-dos os partidos são iguais, pois “tivemos experiências muito amargas com essas coisas pa-ra cairmos nessa outra vez”. No entanto, Albino afi rma que “o que nos interessa mesmo desse processo é o fato de que, por causa das eleições, eles es-tão nos ameaçando, pressio-nando as comunidades triquis e o município autônomo. Isso, sim, nos preocupa”.

Por essa razão, “não impe-dimos que, quem quiser, quese solidarize conosco, mas nãopermitiremos a ninguém levarsuas bandeiras ou símbolos departido: se forem deputadosou senadores, isso não im-porta, mas que não levem su-as bandeiras. Se não quiseremse solidarizar por nossa auto-nomia, que o façam pelas pes-soas que sofrem hoje”.

Acerca das relações entre a base (assembleia geral) e seus representantes, Marcos Albi-no é claro: “Esta é a diferen-ça que temos com o MULT e com a UBISORT: seus líde-res fazem e desfazem segun-do seu próprio gosto, sem con-sultar o povo. Mas o povo não tem culpa. É como no caso do MULT: o povo não tem culpa, a responsabilidade é dos diri-gentes, são eles que estão diri-gindo mal a organização, não a população triqui”.

Ele conclui dizendo que a única coisa que querem é vi-ver livres e em paz. “Não esta-mos tirando-lhes dinheiro ou poder. Não lhes pedimos na-da. Simplesmente queremos que nos respeitem e nos dei-xem nos autogovernar”. E per-gunta: “O que um governador de Oaxaca conhece da vida dos de baixo? Eles agem pelo po-der e pelo dinheiro, coisas que não nos interessam”. (Desin-formémonos)

Tradução: Igor Ojeda

“Essa atenção pouco se concentrou na crise humanitária de grandes proporções vivida no município autônomo”

Desde novembro, não há luz nem água potável nas comunidades do município. A isso, agrega-se a falta de condições para se comprar víveres em zonas comerciais da região

“O que um governador de Oaxaca conhece da vida dos de baixo? Eles agem pelo poder e pelo dinheiro, coisas que não nos interessam”

Rep

rodu

ção

Giovanna Gasparello