Biblioteca Incorporada Às Práticas Pedagógicas

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Abrir-se ao novo sem, por isso, prescindir da tradição. Em essência, é mais ou menos isto que defende a professora e escritora Cecilia Bajour no que diz respeito às bibliotecas e seu papel na instituição escolar. Ex-coordenadora da área de capacitação sobre bibliotecas escolares da Escola de Capacitação Cepa, ligada ao órgão dirigente da educação da cidade de Buenos Aires, e mestre em literatura infanto-juvenil pela Universidade de San Martín, Cecilia defende que a biblioteca pode ajudar a fazer com que a leitura ganhe uma dimensão maior que aquela instrumental. Nascida em Cuba e radicada em Buenos Aires, a autora de Oír entre líneas, el valor de la escucha en las prácticas de lectura (Ouvir entre linhas, o valor da escuta nas práticas de leitura, Asolectura, Colômbia, 2009) diz que o essencial é que aqueles que trabalham em bibliotecas conheçam a fundo o universo dos livros e que a imagem não constitui ameaça para a palavra. "Necessitamos das palavras para podermos falar das imagens." Leia, a seguir, a entrevista concedida ao editor Rubem Barros.

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  • Agosto/2011Entrevista - Cecilia Bajour

    Abertura para o novo

    Professora e escritora argentina define a escolha dos acervos como fundamental para que a biblioteca escolar dialogue com diversos pblicos e linguagens

    Abrir-se ao novo sem, por isso, prescindir da tradio. Em essncia, mais ou menos isto que defende a professora e escritora Cecilia Bajour no que diz respeito s bibliotecas e seu papel na instituio escolar. Ex-coordenadora da rea de capacitao sobre bibliotecas escolares da Escola de Capacitao Cepa, ligada ao rgo dirigente da educao da cidade de Buenos Aires, e mestre em literatura infanto-juvenil pela Universidade de San Martn, Cecilia defende que a biblioteca pode ajudar a fazer com que a leitura ganhe uma dimenso maior que aquela instrumental. Nascida em Cuba e radicada em Buenos Aires, a autora de Or entre lneas, el valor de la escucha en las prcticas de lectura (Ouvir entre linhas, o valor da escuta nas prticas de leitura, Asolectura, Colmbia, 2009) diz que o essencial que aqueles que trabalham em bibliotecas conheam a fundo o universo dos livros e que a imagem no constituiameaa para a palavra. "Necessitamos das palavras para podermos falar das imagens." Leia, aseguir, a entrevista concedida ao editor Rubem Barros.

    Qual a questo fundamental para que a biblioteca seja incorporada s prticas pedaggicas?

    Para que os professores e os bibliotecrios se sintam como parte integrante do espao da biblioteca escolar, importante que sejam valorizados pela escola como leitores. Dessa maneira, tambm podero valorizar seus alunos como leitores. Esse dilogo entre leitores adultos e infantis ou juvenis ou de outras idades torna-se ento possvel. Mas apenas na medida em que a biblioteca se volte a uma necessidade da prtica cotidiana do trabalho dos professores, em conjunto com os bibliotecrios. Essa ideia de trabalhar numa espcie de par pedaggico muito nutritiva para que os professores possam sentir a biblioteca como um motor das propostas de ensino e aprendizagem.

  • H uma pergunta-chave que seja o ponto de partida desse trabalho?

    Algo que qualquer docente seguramente deve perguntar o que h na biblioteca. uma pergunta muito simples, mas vital, pois o tema do acervo de uma biblioteca no patrimnio somente do bibliotecrio. Tem de ser uma pergunta do conjunto dos professores da uma escola. Quando digo que a biblioteca um assunto de todos, penso tambm no que constitui essa biblioteca, no material, que deve ser decidido por todos. O bibliotecrio pode potencializar a escolha desse material, mas os professores tm um papel fundamental.

    H outras questes que derivam desta?

    Como consequncia, h "o que fao com esse material?". E a creio que se apresentam perguntas como "que concepes de leitura tenho?", para que a biblioteca seja um espao enriquecedor para minhas prticas de aula. Essa me parece ser outra pergunta central, pois a biblioteca no se contrape - pelo contrrio - aula. Apenas tem um modo de funcionar diferente, porque as prticas de leitura no se avaliam - pelo menos no do mesmo modo que ocorre em sala de aula. Ento, supe uma relao diferente com os livros e com a leitura.

    No Brasil, muitas pesquisas mostram que professores no leem ou leem apenas livros de autoajuda ou religiosos. Como fazer para que eles valorizem a biblioteca?

    Todos lemos. Descreio sobre essas afirmaes sobre a no leitura e os no leitores. Esses professores que se dizem no leitores criam uma representao de si prprios e da leitura na qual as suas leituras - pois seguramente as tm - so consideradas pouco prestigiosas ou no cannicas, ao menos no em relao ao que valorizado na escola e pela "alta cultura". Todostm a possibilidade de crescer como leitores. Se so desvalorizados, se os colocamos em uma posio deficitria e que os subestima, isso se torna mais difcil. Ento, eu no partiria dessa valorao, inclusive de pensar que os livros de autoajuda ou de religio no so leituras, porque so. verdade que desejamos que no fiquem apenas nesse universo pequeno, que possam ter acesso a outros universos simblicos. H investigaes muito interessantes, como

  • na Frana, por exemplo, de socilogos como [Jolle] Balhoul [autor de Lectures Prcaires. tude sociologique sur les faibles lecteurs, BPI, 1987] que estudaram essas categorias de leitores fracos, justamente vendo que essas representaes esto dadas muitas vezes por essa dicotomia entre alta e baixa cultura.

    Tempos atrs, os cnones eram os constituintes naturais do acervo de uma biblioteca. Hoje, a situao diversa. Como constitu-los, e a partir de que critrios?

    Para poder abrir os diversos mundos aos leitores, preciso estar informado sobre a produo atual, mas no somente em relao a ela, e sim tambm em relao aos clssicos. Caso contrrio, corre-se o risco de pensar que somente o novo bom. Na medida em que se conhece a produo e se acrescentam os seus conhecimentos sobre essa produo, possvel ter uma abertura maior, no ficar somente nos universos consagrados. Assim se podem buscar outras formas, inclusive aquelas que transgridem os cnones mais convencionais sobre o que deveria haver em uma biblioteca. Falo de livros que desafiam, no caso da literatura infantil e juvenil, a ideia do que simples, do que prximo para as crianas,livros que rompem com as estticas mais conhecidas, que exploram as vanguardas, tanto na arte da palavra como na arte da imagem.

    preciso que a escola oferea possibilidades de ler melhor as imagens?

    Creio muitssimo nisso, que a escola um lugar em que se pode crescer muito como leitor de imagens, principalmente as crianas. Elas naturalmente so leitoras de imagens, os adultos que tm mais preconceitos, pensando muitas vezes de forma apocalptica, que a imagem degreda a palavra, ou que a palavra corre riscos ante a proliferao das imagens. O conhecimento das imagens e o que se pode fazer com elas permite fortalecer muito tambm o universo das palavras. As imagens esto absolutamente relacionadas com as palavras, necessitamos das palavras para poder falar das imagens.

  • Voc escreve que, hoje em dia, no possvel que uma biblioteca exista apenas com a preocupao de catalogar e organizar. Como fazer para que essas prticas, ainda necessrias, se unam a uma nova dimenso de espao de leitura?

    Obviamente, as atividades de catalogao e organizao so vitais para que as bibliotecas funcionem. O problema quando a representao do trabalho da biblioteca se reduz apenas a essas tarefas. Se elas esto relacionadas com a leitura, se so ferramentas poderosas para potenciar e fortalecer a possibilidade de fazer crescer os leitores, ento essas tarefas se nutrem de outras caractersticas e deixam de ser eminentemente tcnicas ou burocrticas e passam a ser tarefas educativas.

    Que lugar ocupa a biblioteca no imaginrio educacional argentino?

    Um lugar que est crescendo. H dois anos, aprovamos uma lei nacional que exige que existam bibliotecas nas instituies escolares. uma lei necessria, mas somente com a edio de leis no se vai resolver o problema. Porm, a partir dela, que uma letra fundamental, possvel fazer crescer esse imaginrio sobre as bibliotecas como uma realidadepossvel, que passe de uma imagem nacional realidade. Por isso, digo que esse imaginrio est em um estado de crescimento, mas neste momento ainda h muito a fazer, pois a realidade na Argentina bastante desigual em relao existncia de bibliotecas escolares e de bibliotecrios que se responsabilizem por essas bibliotecas.

    Quais os elementos centrais que devem permear a formao dos professores bibliotecrios?

    A premissa principal que eles tm de se formar como leitores. Tm de conhecer muito sobre concepes acerca da leitura e sobre livros, e sobre como so feitos esses livros. No me refiroapenas face tcnica de construo dos livros, de sua produo, mas sobre como se constroem os livros de fico e de no fico, sobre os gneros. Um bibliotecrio tem de conhecer a permeabilidade dos gneros, os limites difusos que eles tm, caso contrrio corre-se o risco de classific-los de forma esquemtica.

  • No caso das prticas de leitura conjunta entre docentes e alunos, voc defende uma interveno dos primeiros - a leitura interrompida - como tcnica para refletir sobre o texto literrio. Quais so os princpios bsicos para o uso dessa estratgia?

    Antes de tudo, intuio e um timo conhecimento dos textos e dos leitores. Caso contrrio, pode se transformar em uma metodologia como outra qualquer. O que tem de haver uma escuta muito delicada, precisa, do que acontece em uma determinada situao social de leiturapara habilitar as possveis entradas de significaes mltiplas que vo surgindo. Interromper a leitura como fazer uma dramatizao, colocar em cena aquilo que fazemos todos ns, leitores, quando lemos. Quando lemos, nossa leitura est permanentemente sendo interrompida por diversas associaes, mltiplos cruzamentos com outros livros ou outras imagens. E permitir que isto acontea em voz alta durante a conversao sobre textos literrios algo parecido com o que faz o leitor quando l isoladamente.

    H uma forma de a escola enquanto instituio utilizar os registros dos docentes relacionados a suas prticas como argamassa para um trabalho conjunto? H relatos sobre isso?

    Na realidade, no se trata de uma prtica to disseminada [a dos registros docentes]. Nos ltimos anos, cresceu bastante o trabalho com as narrativas docentes voltadas reflexo sobreas prprias prticas. Isso supe tempos e formas de organizao institucional que nem sempre so garantidas em uma vida escolar bastante complexa. Encontrar tempo para escrever e escutar os seus pares, suas reflexes sobre suas prticas, nem sempre possvel no cotidianoda escola, a no ser que haja uma deciso orgnica para isso acontecer. Em minha palestra [feita para docentes brasileiros e colombianos em um intercmbio realizado em Bogot], falei sobretudo de uma experincia de formao em que demos um grande relevo ao tema dos registros como modo de reflexo e de comunicao com outros docentes sobre a prtica. O desejvel que isso se incorpore cada vez mais a espaos concretos de formao docente no trabalho escolar, no tempo da escola.

  • Se no houver uma escuta institucional, esses registros tendem a se perder, no?

    Claro. H esse risco do efmero, de que as ocorrncias, achados e reflexes docentes, que ocorrem o tempo todo, se no forem organizadas ou sistematizadas, transformadas em escritos, se percam. Nesse sentido, importante criar alguns espaos - e que eles no se burocratizem, pois esse outro risco - para que esses escritos revitalizem a qualidade escolar e a reflexo sobre o que se faz no cotidiano da escola.

    Ao que parece, sua proposta nos leva quase a um pensar filosfico da leitura. isso?

    Creio que h uma filosofia da leitura. Quando falamos de registros, no falamos de qualquer registro. No somente uma radiografia da prtica, mas sim da possibilidade de ir mais fundo, refletir sobre quem somos como leitores, como fazemos para que os leitores se ajudem a construir a si prprios, em contato com os outros. Isso supe conceitualizar sobre o que se faz. E me parece muito importante a tarefa docente de deter-se a pensar. Ento, se filosofar deter-se para pensar, estamos de acordo.