Biosemiótica: Thomas A. Sebeok leitor de Jakob von Uexküll e Charles Sanders Peirce

12
Biosemiótica: Thomas A. Sebeok leitor de Jakob von Uexküll e Charles Sanders Peirce «Não há uma via rápida filosófica na ciência, com placas (de trânsito) epistemológicas. Não, estamos numa selva, e encontramos nosso caminho por tentativa e erro, construindo nossas estradas atrás de nós conforme prosseguimos. De fato, não encontramos placas na encruzilhada, porém nossos próprios escoteiros as erguem, para ajudar os outros» 1 Max Born, 1943 Procuramos reconstruir o percurso que eleva a biosemiótica ao âmbito de uma ciência com a finalidade de «explicar o uso dos processos do signo e as relações entre signos, tanto entre quanto dentro dos organismos». 2 A biosemiótica busca engendrar um vocabulário útil e uma estrutura conceitual para apreender os diversos níveis que os processos de signos como signos aparecem na natureza. Enquanto a física nos diz que o átomo ou uma molécula pode ser autonomizada e estudada sem relação com qualquer outra substância do ambiente, sabemos que, de fato, uma molécula de odor está para, ou seja, significa a existência de uma substância que pode ser um alimento, um veneno, etc. Apesar das relações semióticas serem onipresentes no mundo biológico, a espécie Homo sapiens é dotada de uma habilidade cognitiva única: a linguagem nos leva a um cenário de abstrações, impossibilidades e contradições, que funda um horizonte totalmente virtual e auto-reflexivo. Cabe-nos ter em mente, que a grande contribuição da biosemiótica será dada no sentido de apreender conceitualmente quais as possibilidades biológicas e semióticas de tal capacidade humana que evoluiu a partir de condições adversas do meio e do próprio cérebro humano. Entender a conexão que o mecanismo da linguagem tem com os processos semióticos onipresentes em todas as espécies da natureza, esse é o fundamento da biosemiótica. Em outras palavras: «Biologicamente, somos apenas mais um símio. Mentalmente, somos um novo filo de organismos. Nesses dois fatos aparentemente incomensuráveis repousa um problema que deve ser resolvido antes de termos uma explicação adequada do que significa ser humano.» 3 Como procuraremos mostrar, a questão da significação é complexa, porque cada 1 Essential Reading in Biosemiotics, p. 4. 2 Idem Ibidem, p. V. 3 Idem Ibidem, p. 555.

description

Biosemiotcs, Jakob von Uexküll, Charles Sanders Peirce and Thomas A. Sebeok

Transcript of Biosemiótica: Thomas A. Sebeok leitor de Jakob von Uexküll e Charles Sanders Peirce

Page 1: Biosemiótica: Thomas A. Sebeok leitor de Jakob von Uexküll e Charles Sanders Peirce

Biosemiótica: Thomas A. Sebeok leitor de Jakob von Uexküll e Charles Sanders Peirce

«Não há uma via rápida filosófica na ciência, com placas (de trânsito) epistemológicas.

Não, estamos numa selva, e encontramos nosso caminho por tentativa e erro, construindo

nossas estradas atrás de nós conforme prosseguimos. De fato, não encontramos placas na

encruzilhada, porém nossos próprios escoteiros as erguem, para ajudar os outros»1

Max Born, 1943

Procuramos reconstruir o percurso que eleva a biosemiótica ao âmbito de uma ciência

com a finalidade de «explicar o uso dos processos do signo e as relações entre signos, tanto

entre quanto dentro dos organismos».2 A biosemiótica busca engendrar um vocabulário útil e

uma estrutura conceitual para apreender os diversos níveis que os processos de signos como

signos aparecem na natureza. Enquanto a física nos diz que o átomo ou uma molécula pode ser

autonomizada e estudada sem relação com qualquer outra substância do ambiente, sabemos que,

de fato, uma molécula de odor está para, ou seja, significa a existência de uma substância que

pode ser um alimento, um veneno, etc.

Apesar das relações semióticas serem onipresentes no mundo biológico, a espécie

Homo sapiens é dotada de uma habilidade cognitiva única: a linguagem nos leva a um cenário

de abstrações, impossibilidades e contradições, que funda um horizonte totalmente virtual e

auto-reflexivo. Cabe-nos ter em mente, que a grande contribuição da biosemiótica será dada

no sentido de apreender conceitualmente quais as possibilidades biológicas e semióticas de tal

capacidade humana que evoluiu a partir de condições adversas do meio e do próprio cérebro

humano. Entender a conexão que o mecanismo da linguagem tem com os processos semióticos

onipresentes em todas as espécies da natureza, esse é o fundamento da biosemiótica. Em outras

palavras: «Biologicamente, somos apenas mais um símio. Mentalmente, somos um novo filo de

organismos. Nesses dois fatos aparentemente incomensuráveis repousa um problema que deve

ser resolvido antes de termos uma explicação adequada do que significa ser humano.»3

Como procuraremos mostrar, a questão da significação é complexa, porque cada

1 Essential Reading in Biosemiotics, p. 4.2 Idem Ibidem, p. V.3 Idem Ibidem, p. 555.

Page 2: Biosemiótica: Thomas A. Sebeok leitor de Jakob von Uexküll e Charles Sanders Peirce

organismo responde da sua própria maneira ao mundo que o cerca. O primeiro impasse é

encontrado neste ponto: deve-se prosseguir o estudo da significação no âmbito de um indivíduo

que gera o sistema de conhecimento e respostas ao meio, ou, por outro lado, a subjetividade deve

ser posta de lado em nome da objetividade da ciência?

Unindo a Ciência do Signo com a Ciência da Vida: Thomas A. Sebeok

A característica fundamental e sui generis da pesquisa de Thomas A. Sebeok é a busca

da integração entre vários âmbitos de pesquisas até então independentes: processamento da

informação, comunicação intercelular, psicologia comportamental, neurologia, ecologia,

etologia, etc. Essa interdisciplinaridade formou o núcleo para se compreender a biosemiótica,

que tem no seu escopo científico as áreas de zoosemiótica, endosemiótica, fitosemióticas, etc.

Nesse sentido, a semiótica está para além do horizonte linguístico imprimido por Ferdinand de

Saussure: “science qui étude la vie des signes au sein de la vie sociale”4, para englobar questões

significantes no âmbito do estudo dos animais. Em vez de somente explicar e descrever os

signos, o que se busca, também, é perguntar pela condição de possibilidade da significação,

numa perspectiva quase kantiana.

Um conceito fundamental que permeará a biosemiótica é o de modelo. A capacidade de

modelar o mundo a sua volta e sofrer reação desse mundo, é observado em todas as espécies

animais. O modelo tem algo do a priori kantiano e se dá através de relações entre signos. Nesse

prisma a linguagem surge como um dispositivo modelador, só encontrada na espécie Homo

sapiens. Sebeok distingue entre a linguagem, que possibilitou a criação de mundos internos nas

espécies hominídeas e a fala, esta muito mais recente do que aquela na evolução da espécie,

constituindo um modelo de segunda ordem surgida de uma exaptação5.

A capacidade de Sebeok em congregar programas teóricos distintos é o grande legado

de seu vasto trabalho. A semiótica, como é pensada pelo professor estadunidense, favorece a

descoberta de novas perspectivas, conexões interdisciplinares e práticas interpretativas, novos

4 Ferdinand de Sausurre, Cours de linguistique générale, p. 33.5 “Exaptação é uma adaptação biológica que não evoluiu dirigida principalmente por pressões seletivas relacionadas à sua função atual. Em vez disso evoluiu por pressões seletivas diferentes relacionadas a uma adaptação para outras funções, até que eventualmente chegou a um estado ou construção em que veio a ser utilizada para uma nova função.”

Page 3: Biosemiótica: Thomas A. Sebeok leitor de Jakob von Uexküll e Charles Sanders Peirce

horizontes cognitivos e linguagens, que interagem continuamente. Por exemplo, seus contatos

com Juri Lotman, semioticista russo ligado a famosa Escola de Tartu, no auge da Guerra Fria,

marcou de forma decisiva a união de paradigmas conceituais sensivelmente distintos. Lotman

atribuiu a Sebeok a tarefa da tradução de seu livro, On the Semiosphere, para o Ocidente. Para

Lotman, a biosfera é o reino onde os seres vivos interagem, é o palco autopoiético de onde

nascem os “sistemas modeladores” como a linguagem, a cultura, etc.

A questão fundamental subjacente a obra de Sebeok é: como se organizam e operam

os sistemas de signos nos animais, e como a espécie Homo sapiens se distingue de todos os

outros animais, mesmo que apresente características de continuidade com os sistemas desses.

A dimensão da pergunta é tão abrangente que envolve questões complexas: Como a linguagem

se desenvolveu? Como os sistemas de signos se originaram? Como os sistemas biológicos se

originaram?

Além da influência recebida da obra de Charles Morris e Roman Jakobson veremos

como, em busca de um sincretismo entre os estudos sobre os símbolos e a significação de

um lado, e as ciências da vida, por outro, vão levar Sebeok a uma reinterpretação e uso das

teorias do filósofo e cientista norte-americano Charles S. Peirce (1839-1914) e do biólogo

da Estônia, Jakob von Uexküll (1864-1944). A semiótica precisará da biologia e vice-versa,

porque: «deve-se mostrar como uma semiótica fenomenológica evolui da biosemiótica, e como

as relações basilares da biosemiótica emergem de seus - termodinâmicos, morfodinâmicos (por

exemplo: auto-organização) e teleodinâmicos (por exemplo: funcional) níveis de organização

constitutivos.»6

A Ciência da Vida: Jakob von Uexküll

A obra de Jakob von Uexküll, desde sua primeira publicação, em 1909, Umwelt

und Innenwelt der Tiere, até sua morte, em 1944, é permeada pela observação e busca de

discernimento dos mundos fenomenais, ou universos subjetivos dos animais. Através da

observação precisa das relações organismo-mundo, Uexküll pôde contrariar a interpretação

mecanicista da biologia de sua época, que basicamente pensava o animal como um sistema

maquínico que se dava num processo de inputs/outputs.

6 Essential Reading in Biosemiotics, p. 546.

Page 4: Biosemiótica: Thomas A. Sebeok leitor de Jakob von Uexküll e Charles Sanders Peirce

Em poucas palavras, as teorias do biólogo da Estônia, mostram a conexão totalmente

naturalística entre o mundo humano dos signos e o mundo animal dos signos. Pela inserção

do termo Umwelt (meio-ambiente), Uexküll pretendia abarcar as relações entre a unidade

interativa de um organismo e, ao mesmo tempo, o mundo que o envolve. Outro termo que surge

dos estudos práticos de Uexküll sobre o sistema de feedback nos animais é o de Funktionkreis

(círculo funcional), conceito fundamental para o ulterior desenvolvimento da Cibernética, da

Teoria dos Sistemas de Ludwig von Bertalanffy, das Neurociências, etc.

A tensão existente na biologia, que opunha uma visão teleológica, herdeira de Aristóteles,

a uma com teor mecanicista, herdeira de Newton e Descartes, é o grande impasse teórico

que chega até o então jovem estudante de biologia, Jakob von Uexküll. Kant representa o

entrelaçamento teórico entre essas duas visões, daí ter influenciado muito a obra de Uexküll.

De fato, o debate entre uma teleologia e o mecanicismo vai opor Karl Ernst von Baer e Charles

Darwin, respectivamente. Baer estudou as formas embrionárias e viu que as diferenciações

ocorriam conforme a um determinado plano. Por outro lado, Darwin, com a noção de seleção

natural, se alinha entre os mecanicistas, porque a vida seria uma acidental continuidade de

algumas espécies em detrimento a outras. Cenário este em que não se pode vislumbrar qualquer

plano pré-configurado.

Ao longo de sua obra, Uexküll dá cada vez mais importância ao processo de significação.

Este processo, porém, faz referência a um plano que a vida parece obedecer. Leitor atento

de Kant, Uexküll espalha os a priori da razão humana para todo o reino animal. Em Kant é

vedado o acesso a uma realidade subjacente às percepções subjetivas, a coisa-em-si permanece

incognoscível. Uexküll levará esse insight fundamental para o estudo das relações animal e

meio-ambiente. O que está em causa é que só há acesso ao mundo através da percepção.

Em seu criticismo contra as tendências mecanicistas da biologia de sua época, Uexküll

cunhou o conceito de arquitetura centrífuga do organismo. Enquanto qualquer máquina necessita

de uma força externa que atue internamente num tipo de arquitetura centrípeta, os organismos

agem de dentro para fora, num tipo de arquitetura centrífuga. A morfologia da cada organismo é

o centro de comando que auto-regula a vida, o que não impede que agentes externos interfiram

no processo. «A força de dentro [...] é contrabalançada pelos fatores ambientais»7

Essa teoria de arquitetura centrífuga revela que Uexküll recusa-se a aceitar que os seres

7 Onto-Ethologies, The Animal Environments of Uexküll, Heidegger, Merleau-Ponty and Deleuze, p.14.

Page 5: Biosemiótica: Thomas A. Sebeok leitor de Jakob von Uexküll e Charles Sanders Peirce

vivos respondem a sistemas de leis físicas e macânicas de forma passiva. Os organismos vivos

são dotados de poder de engendrarem suas próprias leis e determinações, por regras autônomas.

Em vez de um mundo de leis físicas naturais eternas, Uexküll faz-nos ver que o sujeito, humano

e animal, é, de fato, o legislador do seu mundo. Para além das leis da física que regulam o

mundo “lá fora” deve-se relevar as leis subjetivas de cada organismo que seguem um plano. E é

precisamente a junção desses dois domínios que Uexküll denomina de Umwelt.

Uexküll recebe com desconfiança a teoria da evolução das espécies de Charles Darwin.

Com várias referências à música em sua obra, Uexküll pensou numa organização harmônica do

mundo, num plano (Planmässigkeit). Cada organismo seria um tom que ecoa sobre o ambiente

e os outros organismos. Daí Uexküll “descobrir” que a geração e a comunicação de signos, no

mundo animal, pode ocorrer numa base puramente instintual. Apesar de Uexküll apresentar certa

resistência em face às teorias de Charles Darwin, uma teoria da evolução parecia ser fundamental

para a compreensão do conceito de Umwelt. Em vez da teoria da evolução de Darwin, Uexküll

preferiu atribuir um plano autônomo à Natureza, que garantisse a constituição única de cada

organismo. Exatamente a esse plano da natureza que Sebeok buscará explicações sofisticadas

em seu estudo interdisciplinar da biosemiótica, que estabelece pontes entre os estudos da

significação e a biologia: um «projeto que tem como objetivo nada menos que uma explicação

de como a experiência subjetiva do organismo, entendido diferentemente pela constituição

biológica particular de cada espécie - jogará um papel causal na atual co-organização da

natureza».8

Ao defender o microcósmos que cada organismo detém, Uexküll está contrariando a

antiga interpretação mecânica que tomava um ser vivo como um aparato técnico com fins de se

perpetuar. Em vez disso, Uexküll entende os organismos como a reunião de um aparato sensitivo

e um motor, que a todo momento percebe, ao mesmo tempo que age no mundo. Estes “dois

mundos” que qualquer organismo está imerso, que é o mesmo mundo porém ora como percebido

(Merken) ora como aquele que o organismo age sobre (Wirken), é o que Uexküll chamará

Umwelt.

Analisando a noção de Umwelt mais detidamente, vemos que o conceito já aparece

no título de uma monografia de Uexküll datada de 1909, Umwelt und Innenwelt der Tiere

(aproximadamente: O meio-ambiente e o mundo de dentro dos animais), em que podemos notar

8 Essential Reading in Biosemiotics, p. 43.

Page 6: Biosemiótica: Thomas A. Sebeok leitor de Jakob von Uexküll e Charles Sanders Peirce

que a noção de Umwelt fazia menção a uma série de relações causais biológicas entre meio e

agente, relações estas não redutíveis nem à organização interna do sujeito nem à organização do

meio, porém sempre a um produto da interação entre ambos. Além disso, Uexküll argumenta

pela possibilidade de conhecimento científico das experiências subjetivas. Essa monografia de

Uexküll não obteve notoriedade entre a comunidade científica da época, principalmente por

rechaçar os modelos mecanicistas herdeiros da tradição cartesiana. Com a publicação, em 1920,

de Theoretische Biologie Uexküll já alcança um acabamento conceitual vasto aos seus estudos

empíricos com cães, polvos, anêmonas, etc, empreendidos durante longos anos.

Na obra Theoretische Biologie, Uexküll argumenta pela reintrodução da subjetividade

do organismo autônomo como o foco da biologia e seu objeto. Ao se perguntar pela constituição

de um animal, Uexküll vê que é justamente no meio de inserção de tal animal que estão contidas

as respostas. Tal compreensão permitirá a semioticistas como Jesper Hoffmeyer concluirem

que: «a experiência subjetiva dos organismos [...] (é) um princípio organizacional no progressivo

co-desenvolvimento, co-evolução e co-manutenção de sistemas vivos interdependentes: uma

máquina geradora e recursiva de ambas, estabilidade evolucionária e mudança.»9

Ao analisar o passado da ciência moderna, Uexküll constata no mínimo três paradigmas

bem definidos: o primeiro o de Kepler, que intuiu uma harmonia cósmica. Em segundo lugar,

Newton, que legou suas leis que tornam o universo um sistema mecânico. Em terceiro lugar,

Darwin, que nos legou a seleção natural que, aos olhos de Uexküll é um mecanismo aleatório,

acidental, de um mundo onde não há planos. Sobre o darwinismo, Uexküll esboça uma crítica

dupla: a teoria de Darwin atribui um papel fundamental à casualidade, a aleatoreidade da

história e, em segundo lugar, se mantém extremamente materialista ao atribuir somente aos

genes herdados as características da espécie futura. Os seja, as teorias de Darwin são, ao mesmo

tempo: «a liberdade caótica e o materialismo determinista»10, o que soa como um disparate a

Uexküll.

Uexküll pensa em regras e planos que os organismos de alguma forma obedecem,

porém não num sentido teleológico. Para o biólogo, a teleologia fazia sentido num horizonte

teórico em que se buscava atingir a coisa-em-si por trás das contingências individuais de cada

organismo. De fato, a noção de Umwelt busca dar conta, num sentido holístico, das relações

9 Idem Ibidem, p. 104.10 Onto-Ethologies, The Animal Environments of Uexküll, Heidegger, Merleau-Ponty and Deleuze, p.19.

Page 7: Biosemiótica: Thomas A. Sebeok leitor de Jakob von Uexküll e Charles Sanders Peirce

entre o organismo e o mundo. Podemos pensar, aqui, na noção de ser-no-mundo de Heidegger

como um conceito análogo. Em Merleau-Ponty há vários conceitos irmanados ao Umwelt de

Uexküll: estrutura do comportamento, carne, etc.

Um exemplo que Uexküll nos fornece para intuirmos a complexidade dos Umwelts

é o de uma simples flor. Suas funções na natureza dependem do tipo de animal que interage

diretamente com ela. Para um ser humano a flor pode ser um adorno. Para um inseto, fonte

de água e néctar, e assim por diante. Cada organismo configura um novo mundo, uma nova

bolha de sabão que delimita suas possibilidades no mundo. Essa bolha impede o olhar direto do

cientista humano sobre o animal, daí a necessidade de se observar o comportamento do animal

dentro dessa bolha.

Sobre a comparação com a bolha de sabão: «O espaço peculiar a cada animal, em

qualquer lugar que ele possa estar, pode ser comparado a uma bolha de sabão [Seifenblase]

que envolve completamente a criatura numa distância maior ou menor. Essa bolha de sabão

estendida, constitui o limite do que é finito para o animal, e, por isso, é o limite do seu mundo; o

que há para além da bolha está escondido no infinito»11. O que está dentro dos limites da bolha é

possível de significação sobre, o que está fora é insignificante, permanece velado.

Um exemplo do esquema que o Umwelt configura, que encontramos em Uexküll, é suas

observações de um carrapato (Ixodus rhitinis) que se posiciona numa vegetação e simplesmente

espera pelo momento em que ele percebe o ácido butírico, presente no suor dos mamíferos,

momento em que o carrapato salta em busca de se alimentar e finalmente se reproduzir.

A “espera” do fator significante (a presença do ácido butírico) que dispara sua ação pode durar

até 18 anos. Nesse intervalo, cego e surdo, o carrapato não considera significantes quase nenhum

fator ambiental que o rodeia. Vemos aqui, surpreendentemente, que a rede que interliga os

Umwelts não envolvem propriamente indivíduos e sim relações de significações elementares.

O carrapato não percebe o mamífero por inteiro, percebe a substância química. E cada etapa

desse processo: percepção do ácido butírico, salto, alimentação, reprodução e morte, só ocorrem

sequencialmente se a etapa anterior for bem sucessida. A seguir retomaremos esse exemplo à luz

do conceito de Funktionkreis.

Ao lado do conceito de Umwelt, também vemos em Uexküll a comparação da vida com

a harmonia musical. A célula teria um tom que possibiltaria a comunicação intracelular através

11 Streifzüge durch die Umwelten von Tieren und Menschen, p. 5.

Page 8: Biosemiótica: Thomas A. Sebeok leitor de Jakob von Uexküll e Charles Sanders Peirce

de ritmos e melodias. Assim também os órgãos que uniformizam as melodias celulares. O

organismo seria uma permanente sinfonia de melodias de órgãos e ritmos celulares. O próximo

estágio seria a de uma harmonia entre dois ou mais organismos, como pode-se ver, por exemplo,

numa colmeia. Em último lugar está a composição musical de toda a natureza, que teria uma

harmonia interna. Daí vemos a fundamentação do que viemos chamando de plano da natureza.

Perceber por um lado e agir no mundo por outro, como característica fundamental de

todos os animais, levou Uexküll a descrição de círculos funcionais (Funktionkreis) que tinham

como base uma relação entre signos recebidos pelo organismo e signos enviados por este, através

de sua ação sobre o mundo. Segundo Uexküll esse esquema deve ajudar a compreender todas as

capacidades do sistema nervoso central e o comportamento instintivo dos animais. Esse esquema

também cumpre a função de um modelo, que, como vimos, é central para o atual estágio da

biosemiótica:

Funktionkreis, Theoretische Biologie, 1920 (Neuer Kreis: feedback, mundo interno)

(Merkzeichen, Wirkzeichen, Merkorgane, Wirkorgane, Merkmal, Wirkmal)

Vemos emergir dessa teoria um modelo intersubjetivo da natureza. Perguntar pelo mundo

biológico é considerar as complexas relações entre os Umwelts dos animais. Ainda mais, em

Uexküll, um organismo que percebe e age no mundo necessita de um “dueto”, de outro ser vivo

que o complemente. Por isso o interesse em significação ser fundamental nas obras tardias de

Uexküll, o que o coloca como o principal arquiteto do que é hoje conhecido como biosemiótica.

A biologia assume então a função de descrever como o significado é gerado através

de interações entre diversos animais e seus respectivos mundos. Nesse ponto cabe a seguinte

observação: Uexküll conheceu pessoalmente Ernst Cassirer, que pode ter exercido considerável

Page 9: Biosemiótica: Thomas A. Sebeok leitor de Jakob von Uexküll e Charles Sanders Peirce

influência sobre a questão dos signos. Os organismos são sistemas interpretantes e geradores de

signos e a natureza revela a intrincada rede de relações que daí surgem. No exemplo que demos

do carrapato, o mamífero aparece como um signo, que é interpretado, resultando de uma ação

específica. Os tons de ambos os animais se complementam, gerando significação num dueto.

Podemos vislumbrar a ontologia que se cria como pano de fundo a todas essas análises.

Um exemplo interessantíssimo para concluir nossa aproximação a Uexküll. Num livro

tardio chamado Teoria do Significado, Uexküll toma em consideração uma aranha que está

fazendo sua teia. De alguma forma, diz Uexküll, a aranha prevê o voo de algo, e, como algo que

voa ela também, constrói seu aparato de caça. Captando de alguma forma a melodia do voo, a

aranha antecipa-o. A aranha adaptou-se, instintivamente, a um signo presente em seu Umwelt e,

por isso, é bem-sucessida na previsão do voo. A estrutura do corpo da aranha é capaz de predizer

a aparição de um significante. Há algum tipo de intencionalidade em ação no animal? Sem

dúvida, no mínimo ao nível do movimento do corpo. Nesse cenário, as substâncias inorgânicas

também são relevadas na constituição de cada Umwelt, não somente materialmente falando, mas,

também, como forças: a temperatura, barulhos, etc.

A Ciência do Signo: Charles Sanders Peirce

Charles Sanders Peirce foi um químico, astrônomo, matemático e lógico que influenciou

decisivamente a história da ciência contemporânea. As relações de “signos” para Peierce

são: «uma espécie de gênero alargado de relações as quais a potencialidade se torna atualizada,

e o atualizado interage com outras “atualidades” da mesma forma, de forma que um padrão

é gerado.»12 Peirce buscou incessantemente assegurar uma teoria da ciência e uma teoria

da racionalidade, daí a necessidade de uma teoria dos signos, com primazia sobre qualquer

estabelecimento de uma lógica formal. Peirce legou-nos uma obra imensa, com mais de 80.000

páginas escritas, em vários domínios do conhecimento. O que levaremos a cabo aqui, como é

12 Essential Reading in Biosemiotics, p. 40.

Page 10: Biosemiótica: Thomas A. Sebeok leitor de Jakob von Uexküll e Charles Sanders Peirce

óbvio, é apenas um recorte teórico muito esquemático para os fins que nos propusemos.

Uma das observações fundamentais para a compreensão da semiótica é, e Peirce viu

isso com muita lucidez, que a transmissão dos signos é o processo final da significação, ou

seja, o processo de emergência do signo só faz sentido porque há a comunicação destes signos

engendrados.

A primeira trinca de conceitos de Peirce que devemos ter em conta, e que foram

utilizados ostensivamente por Sebeok são: ícone, index e símbolo. Peirce os circunscreveu dentro

das relações entre a significação, de um lado, e aquelas do objeto representado, por outro. Mais

especificamente: «ícones são mediados por uma similaridade entre signo e objeto, índices são

mediados por conexões físicas ou temporais entre signo e objeto, e símbolos são mediados por

alguma conexão formal ou convencional não-correspondentes a quaisquer características físicas

do signo ou do objeto»13

Nesse sentido, podemos interpretar os conceitos de primeiridade (firstness), segundidade

(secondness) e terceiridade (thirdness) de Peirce, correlativos aos conceitos de ícone, index

e símbolo, respectivamente, como a possibilidade, a existência atualizada e a lei. Em outras

palavras, o ícone e a primeiridade fazem referência a uma possível similaridade na relação signo-

objeto representado, por exemplo, um quadro de natureza morta. Em segundo lugar, o index e

a segundidade fazem referência a uma correlação ou contiguidade entre a díade signo-objeto

representado, por exemplo, um termômetro ou os ponteiros de um relógio. Em terceiro lugar, o

símbolo e a terceiridade fazem referência a uma lei, uma causalidade evidente ou uma convenção

estabelecida entre a díade signo-objeto representado, por exemplo, um anel de casamento.

Podemos acompanhar nessa citação, de um autor relacionado com a fitosemiótica

chamado Martin Krampen, a influência das teorias de Peirce: «Há três níveis de ciclos

significantes correspondendo à predominância da indexicalidade, iconicidade, e simbolicidade,

cada processo superior incluindo também o inferior. Indexicalidade, num nível vegetativo,

corresponde às sensações e regulações, num ciclo de feedback, de estimulação significante

diretamente contígua à forma da planta. A iconicidade, num nível animal, é produzida pelo

ciclo funcional, com atividades receptoras e efectoras representando, num sistema nervoso,

a "imagem" dos objetos. A simbolicidade, a um nível humano, é produzida pela percepção e ação

13 Idem Ibidem, p. 549.

Page 11: Biosemiótica: Thomas A. Sebeok leitor de Jakob von Uexküll e Charles Sanders Peirce

na sociedade humana.»14

É fundamental, ao nível de uma teoria da significação, compreender os processos

de transição entre a primeiridade, que configura uma rede de sensações e percepções de um

indivíduo em forma bruta, ou seja, como possibilidades incertas, para a organização alcançada

na segundidade, que informa as sensações e percepções com um conteúdo determinado, por

exemplo, o ter frio, fome, etc. E, num outro nível, o que eram sensações e percepções podem

ser interpretadas numa rede de relações, como signos convencionais, por exemplo, as partituras

musicais, as fórmulas matemáticas, etc. Assim, a terceiridade mostra as convenções acessíveis

pelos organismos vivos numa certa compreensão simbólica. A fundação desse terceiro nível,

apenas encontrado nos seres humanos, levou Sebeok à pesquisa sobre como isso foi possível,

já que o homem parece ter um vínculo com os outros animais. Daí Sebeok ter-se voltado para a

biologia e para os mecanismos do comportamento dos sinais nos animais.

BIBLIOGRAFIA

FAVAREAU, Donald. Essential Reading in Biosemiotics, Vol. 3 - Anthology and Commentary,

Springer Dordrecht Heidelberg, 2010.

BUCHANAN, Brett. Onto-Ethologies - The Animal Environments of Uexküll, Heidegger,

Merleau-Ponty and Deleuze, Suny Press, 2008.

UEXKÜLL, J. von (1920/28): Theoretische Biologie. 1. Aufl. Berlin, Gbr. Paetel/ 2. gänzl. neu

bearb. Aufl. Berlin: J. Springer.

14 Idem Ibidem, p. 257.

Page 12: Biosemiótica: Thomas A. Sebeok leitor de Jakob von Uexküll e Charles Sanders Peirce

_____________ Umwelt und Innenwelt der Tiere, 1909, Berlin: J. Springer.

_____________ Bedeutungslehre. Leibzig: Verlag von J. A. Barth, 1940. (“The theory

of meaning,” Semiotica 42, 1 (1982))

_____________ Streifzüge durch die Umwelten von Tieren und Menschen (with Georg

Kriszat). Geibungsyoin Verlag, 1934.