Blimunda # 38 - julho de 2015

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BlIMUNDA JOSÉ SaRaMaGo É MEXICANO EXPLOITATION MADE IN PORTUGAL SaNdRa LeE BeCkEtT CuMbE: A HiStÓRiA NÃO É De OnTeM M ENSAL N. º 38 J ULHO 2015 F UNDAÇÃO J OSÉ S ARAMAGO

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A edição de julho da Blimunda dá destaque ao congresso sobre direitos/deveres humanos realizado na Cidade do México. Além de uma crónica sobre o encontro - que partiu de uma ideia de José Saramago - e dos discursos de Pilar del Río e do reitor da Universidade Autónoma do México (co-organizadora do congresso), a Blimunda publica um texto de Anabela Mota Ribeiro. A jornalista portuguesa andou pela capital do país, percorreu ruas e praças, recuperou histórias e encontrou Saramago em cada canto, concluindo que “José é mexicano”. A banda desenhada também merece espaço neste número 38 da publicação. O brasileiro Marcelo D’Salete conversou com Sara Figueiredo Costa sobre o seu processo de criação e as principais características do seu trabalho.Na secção dedicada ao cinema, o conceito de exploitation aplicado à produção cinematográfica portuguesa é analisado na primeira parte de um texto de autoria de João Monteiro.Nesta edição de julho, a Blimunda publica a entrevista realizada por Andreia Brites à canadiana Sandra Lee Beckett. Criadora do termo crossover, a escritora falou sobre a ruptura das etiquetas literárias e de como um livro pode ser uma ponte que liga adultos e crianças. Boas leituras. Até agosto. E Gracias, México!

Transcript of Blimunda # 38 - julho de 2015

  • BlIMUNDA JOSS a R a M a G o MEXICANOEXPLOITATION MADE IN PORTUGALSaNdRa LeE BeCkEtTCuMbE: A HiStRiA NO De OnTeM

    BlIMUNDA JOSM E N S A L N . 3 8 J U L H O 2 0 1 5 F U N DA O J O S S A R A M A G O

  • A experincia pessoal e as leituras s valem o que

    a memria tiver retido delas. Quem tenha lido com

    alguma ateno os meus livros sabe que, para alm

    das histrias que eles vo contando, o que ali h

    um contnuo trabalho sobre os materiais da memria,

    ou, para diz-lo com mais preciso, sobre a memria

    que vou tendo daquilo que, no passado, j foi memria

    sucessivamente acrescentada e reorganizada, procura

    de uma coerncia prpria em cada momento seu e meu.

    Talvez essa desejada coerncia s comece a desenhar

    um sentido quando nos aproximamos do fim da vida e

    a memria se nos apresenta como um continente a

    redescobrir. (Caderno de Lanzarote, Dirio III)

  • 0441 5166

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    Gracias, Mxico Editorial

    A Histria no de ontem

    Sara Figueiredo Costa

    Exploitation made in Portugal

    Joo Monteiro

    Sandra Lee BeckettAndreia Brites

    Leiturasdo ms

    Sara Figueiredo Costa

    DicionrioAndr Letria

    Margarida Botelho

    Espelho MeuAndreia Brites

    Notas de RodapAndreia Brites

    Mxico: o dever de cumprir os

    nossos deveresPilar Del Ro

    Jos Saramago mexicanoAnabela Mota Ribeiro

    EstanteAndreia Brites

    Sara Figueiredo Costa

    Agenda

    No Mxico por um Mundo um pouco melhor

    Ricardo Viel

    Transformar uma iluso em

    realidadeJos Narro Robles

    Exploitationmade in Portugal

    Exploitationmade in Portugal

    Exploitation

  • Ao longo da sua vida, Jos Saramago estabeleceu com o Mxico uma relao de afecto ntima e intensa. As vrias

    participaes na Feira Internacional do Livro de Guadalajara, as muitas apresentaes de livros na Cidade do Mxico,

    as viagens a Chiapas e a outros Estados, os artigos publicados no peridico La Jornada e em diversas revistas, a presena em manifestaes cvicas, tudo isso ajudou a forjar a privilegiada amizade entre o escritor e os mexicanos.

    Certa vez, num dos encontros literrios em que participou, Jos Saramago foi apresentado como escritor portugus

    e mexicano pelo amigo Carlos Fuentes. Tambm foi no Mxico que Saramago disse ter ganho um novo nome

    histrias que a jornalista Anabela Mota Ribeiro conta nas seguintes pginas deste nmero da Blimunda. Nem depois da sua morte esse carinho diminuiu: realizaram-se dezenas de homenagens a

    Jos Saramago, os seus livros pstumos continuaram a ser apresentados no Mxico com

    o mesmo interesse que os anteriores, para alm da permanente evocao e presena das

    suas ideias.

    No passado ms de junho mais um captulo dessa histria de amor entre Jos Saramago

    e o Mxico foi escrito. Durante dois dias, na capital do pas, centenas de pessoas entre

    pensadores, juristas, economistas, activistas sociais, jornalistas, escritores e estudantes reuniram-se para debater a

    criao de uma Carta de Deveres Humanos, a partir de uma ideia manifestada pelo escritor portugus no discurso de

    recepo do Nobel de Literatura, em 1998. Aps esse encontro, um grupo de especialistas dar incio ao trabalho de

    redigir a proposta de documento, que ser encaminhado s Naes Unidas num futuro prximo. Graas ao empenho e

    carinho dos mexicanos, os valores defendidos por Jos Saramago perpetuam-se.

    Resta-nos agradecer a todos os que colaboraram para o sucesso destes dois dias, em especial UNAM e ao seu

    reitor que tornaram possvel a realizao deste encontro e que se empenham em transformar esta proposta em algo

    concreto. O enorme carinho e respeito com que trataram Jos Saramago e hoje tratam a Fundao que leva o seu

    nome enche-nos de alegria e d-nos fora para continuarmos o trabalho dirio.

    Segura e afortunadamente sero ainda muitos os encontros entre Jos Saramago e os mexicanos. Ainda teremos

    outras oportunidades de dizer, pessoalmente: Gracias, Mxico.

    Gracias, Mxico

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  • 5Blimunda 38

    julho 2015

    diretor

    Srgio Machado Letria

    edio e redao

    Andreia Brites

    Ricardo Viel

    Sara Figueiredo Costa

    reviso

    Rita Pais

    design

    Jorge Silva/silvadesigners

    Casa dos Bicos

    Rua dos Bacalhoeiros, 10

    1100-135 Lisboa Portugal

    [email protected]

    www.josesaramago.org

    N. registo na ERC 126 238

    Os textos assinados

    so da responsabilidade

    dos respetivos autores.

    Os contedos desta publicao

    podem ser reproduzidos

    ao abrigo da Licena

    Creative Commons

    Granea

    fundao

    jos saramago

    The jos

    saramago

    foundaTion

    casa dos

    bicos

    Onde estamOs Where tO find usrua dos Bacalhoeiros, Lisboatel: ( 351) 218 802 [email protected]

    Como Chegar

    getting here

    metro Subway terreiro do Pao

    (Linha azul Blue Line)

    autocarros Buses 25e, 206, 210,

    711, 728, 735, 746, 759, 774,

    781, 782, 783, 794

    Segunda a Sbad

    o

    Monday to Satu

    rday

    10 s 18 horas

    10 am to 6 pm

  • Prmio Cames Dedicado Grcia

    Hlia Correia foi distinguida com o Prmio Cames deste ano, o mais alto galardo atribudo a um escritor de lngua portuguesa. Na entrega do prmio, que decorreu no passado dia 7 de julho, a autora de Lilias Fraser leu um texto que o Pblico disponibilizou e onde, para alm dos agradecimentos, sobressai uma preocupao atenta s coisas da cidadania, o reconhecimento da memria e dos sculos de escrita que antecederam este momento, a chamada de ateno para os tempos conturbados que atravessamos, na Europa como no mundo. Um excerto: Como num pesadelo, no sabemos por que meio fomos dar a esta nova era de horror e de destruio. Umas so nossas velhas conhecidas, outras indecifrveis, por ausncia de modelos anteriores. No lhes antecipmos a chegada. Na Idade Mdia que nos ameaa no h cancioneiros nem reis-poetas. Na ditadura da economia, a palavra esmagada pelo nmero. A matemtica,

    que comeou nobre, aviltou-se, tornando-se lacaia. Se a literatura salva? No, no salva. Mas se ela se extinguir, extingue-se tudo. A fechar a sesso, Hlia Correia fez questo de dedicar o Prmio Cames Grcia, a que legou ao mundo o patrimnio que nos acompanha desde a Antiguidade, a que luta pela sobrevivncia entre a crise econmica e uma dvida imposta pelas regras econmicas que vo gerindo o planeta: Eu dedico este prmio a uma entidade que para mim pessoalssima, Grcia, cuja voz ainda paira sobre as nossas mais preciosas palavras, entre as quais, quase intacta, a poesia. Dedico Grcia, sem a qual no teramos aprendido a beleza, sem a qual no teramos nada ou, no dizer da Doutora Maria Helena da Rocha Pereira, no seramos nada. ? , zoun Ellda, viva a Grcia.

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    ChileUm novo boom?

    Muitos anos depois do to falado boom da literatura latino-americana, um grupo de escritores chilenos parece reunir as caractersticas para se confi gurar enquanto gerao. Quem o diz Ricardo de Querol, no suplemento Babelia, do El Pas, atravs das leituras e das declaraes que recolheu para a reportagem que dedicou a estes novos escritores, fi lhos da represso e da ditadura chilena, elo de ligao a um passado que muitos preferem esquecer, mas sempre com os olhos postos num futuro que j outra coisa. Um excerto: Sergio Parra, veterano y muy respetado librero y editor que dirige Metales Pesados, sostiene que desde el boom no apareca en Amrica Latina una generacin de narradores tan reconocible como esta. Comparten lo mismo: escuchan igual msica, ven pelculas, hacen guiones, programas de humor. Tienen infl uencia de lo multimedia, de la performance. No tienen

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    LEITURAS DO MS/ S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

    H L I A C O R R E I A

  • miedo a escribir. Y no necesitan ser autores de una gran novela". Su obra, repartida a menudo en libros de pocas pginas, se lee cmo un puzle. Estn lejos de la grandilocuencia. Autores como Alia Trabucco, Nona Fernndez, Rafael Gumucio, Alejandra Costamagna ou Alejandro Zambra so alguns nomes que se destacam neste novo flego da literatura chilena. Sem que se vislumbre um programa ou um estilo rgido, as caractersticas que os unem, para alm das biogrfi cas, so notrias: Es una sea de identidad de esta generacin: entienden la memoria de la infancia como algo reconstruido, por uno mismo y por la familia, a lo largo de la vida. Poco fi able. ateno de editores e livreiros de ambos os lados do Atlntico.

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    ColmbiaCarta a una SombraAcaba de chegar s salas de cinema colombianas o documentrio Carta a una sombra, realizado por Miguel Salazar e Daniela Abad a partir do livro El olvido que seremos/ Somos o Esquecimento que Seremos, do escritor colombiano Hctor Abad Faciolince. Na revista El Malpensante, Mario Jursich Durn assina uma crtica sobre o fi lme, sublinhando as diferenas notrias entre ambos os objetos livro e documentrio e destacando a qualidade desta passagem de um texto para o cr: En El olvido que seremos, Hctor Abad Faciolince nos cuenta la vida de su padre, Hctor Abad Gmez, y mezcla esa historia en minscula, domstica, de entrecasa, con la historia en maysculas, que en este caso viene a ser el convulsionado periplo de Colombia en la segunda mitad del siglo XX. Y aunque de vez en cuando acude a documentos, a materiales de archivo, su

    principal fuente es la memoria familiar: lo que recuerdan su madre, sus hermanas, los amigos de su padre y l mismo respecto a esos acontecimientos. En Carta a una sombra, sin desdear los testimonios familiares, el procedimiento es el inverso: no hay prcticamente un solo pasaje del documental que no est respaldado por una fotografa, un fragmento de noticiero, un recorte de peridico o una entrevista, es decir, los materiales que constituyen la piedra miliar de la historia en maysculas.

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    LEITURAS DO MS/ S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

    A L I A T R A B U C C O

  • GalizaNova banda desenhadaA Galiza da primeira dcada do sculo XXI viu crescer um movimento sem precedentes associado banda desenhada. Coletivos como Polaqua ou BD Banda, fanzines, festivais e uma edio regular de livros e revistas colocou os autores galegos no centro de uma ateno meditica sobre o tema, criando novos leitores e novos canais de divulgao e distribuio. Alguns desses autores tornaram-se reconhecidos internacionalmente, como o caso de David Rubn, e a maioria continuou ligada banda desenhada, mesmo depois de terminada essa dcada, a que se seguiu um perodo de acalmia. Na verdade, a acalmia foi ilusria, porque nem os autores deixaram de trabalhar, nem o pblico deixou de os acompanhar, pese embora uma diminuio do nmero de ttulos editados. No site Cultura Galega, publica-se um dossier dedicado mais recente gerao da banda

    desenhada galega, bem como continuidade desse grupo de autores, editores e divulgadores que continuou a batalhar para que a BD fosse um meio conhecido, divulgado e passvel de novas experincias. Xrman Hermida, um dos autores do dossier, explica: Atopmonos pois nun panorama en crecente mellora, cando menos no que respecta creacin. Ao traballo dos autores que xa estaban en ativo na dcada pasada est a se sumar unha prometedora canteira que conta, por vez primeira, con opcins de formacin especfi ca no campo da novena arte. Se ben as opcins editoriais no noso pas continan a ser escasas e moitos creadores lamentan unha maior atencin por parte dos medios e da administracin, as perspetivas son altamente positivas. O futuro dir se este potencial se concreta nun tecido editorial con pblico, atividades e presenza na cultura do pas. Autores, novos coletivos, feiras de autoedio e festivais recentes podem ser conhecidos neste dossier.

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    LEITURAS DO MS/ S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

  • A crnica aquele gnero disforme, onde cabe tudo e um pouco de nada, que umas vezes jornalstico outras nem tanto, que pode ser palco para exibir estilo, boa prosa e recursos prova de bala ou arruinar quem pensava que bastava uma ideia para fazer brilhar um texto. Entre os maiores cultores da lngua portuguesa, neste espao nada homogneo a que uns quantos chamam lusofonia, esto alguns cronistas, confirmando que nem s de volumosos romances ou picos poemas se faz a iluso de imortalidade: Carlos Drummond de Andrade, Fernando Assis Pacheco, Nlson Rodrigues integram justamente esse panteo dos que salvaram a prosa do destino certo de todos os peridicos e a viram chegar, pela mo de editores certeiros, ao formato do livro que ainda aquele que melhor serve esta ideia de posteridade. Comparar gente de geraes, contextos e geografias to diferentes no comporta grande justia para nenhum dos termos, mas digamos

    que Abel Barros Baptista pode juntar-se a esta trade, e a mais uns quantos nomes - no tantos quanto a proliferao de crnicas na imprensa quer dar a entender com firmeza. Quem acompanha as pginas da revista Ler nos ltimos anos sabe do que aqui se fala. Como acontece com os bons cronistas, Abel Barros Baptista no precisa de temas solenes para lapidar uma prosa irrepreensvel. O assunto pode ser uma notcia daquelas que compem o mundo inslito do Jornal de Notcias, as perguntas idiotas de um jornalista dito cultural a um escritor, a austeridade que nos come os dias e os impostos e tudo. O tema pouco importa, porque o que o autor se dedica a fazer ao melhor estilo de quem parece no estar a ter trabalho nenhum a alinhar palavras desmontar ideias-feitas (como a de o futebol uma boa metfora da vida, em O futebol como metfora), desorganizar raciocnios que qualquer autocarro da Carris podia balbuciar em coro, arruinar

    os nossos sossegos mentais com exerccios disfarados de crnica. Talvez seja defeito de profisso, j que Abel Barros Baptista professor universitrio (e dos bons, acrescente-se), mas o efeito primeiro destas crnicas o de uma mo irritada que vai pressionando o crebro do leitor como quem diz toma l uma bofetada e pensa outra vez, e ainda outra, nessa ideia abstrusa com que j te habituaste a conviver pensando que inteligente. O golpe de mestre est em conseguir fazer isto sem que o leitor se sinta ofendido e queira ripostar. No fim, o leitor perdoa tudo, porque o jogo da lgica e da sintaxe se constri de modo a fazer acender nas meninges a luzinha que parecia fundida (esta frase, por exemplo, podia ser escavacada em trs linhas pelo cronista, mas agora deixemos passar) e a deixar l plantada a ideia clarividente que grita como que no pensei nisto antes e exactamente desta maneira?.

    LEITURAS DO MS/ R I C A R D O V I E L

    Abel Barros BaptistaE Assim SucessivamenteTinta da China

    Ginsio para as meninges

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  • A S B S

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    OrpheuVVAATinta da ChinaUma edio excecional para celebrar os 100 anos da publicao do primeiro nmero da revista Orpheu. Na caixa, fac-smiles cuidadosamente elaborados dos dois nmeros que saram, a que se juntam a edio fac-similada das provas tipogrficas do terceiro nmero, nunca publicado, e ilustraes de Amadeo de Souza-Cardoso que teriam como destino esse nmero 3. Tudo devidamente enquadrado por um texto de Steffen Dix, o editor responsvel.

    E tu, vs o que eu vejo?Ed EmberleyBrua A Brua regressa edio de livros-jogo com este ttulo singular do reconhecido ilustrador americano, que assim se estreia em Portugal. Atravs de um dilogo de cores (azul e rosa), contando com as suas fronteiras e sobreposies, e recorrendo a um conjunto mnimo de trs formas geomtricas, criam-se desafios visuais ao leitor. Este deve, na incompletude da imagem, antecipar a figura que se lhe apresentar definida contra a luz. Depois, mais do que a confirmao, o espanto advm dos novos elementos que compem a figura.

    Hlio Oiticica: Qual o Parangol? e outros escritosWaly SalomoCompanhia das Letras Um percurso pela obra e pela vida de Hlio Oiticica, um dos mais relevantes artistas de vanguarda do sculo XX, inventor do Parangol que d ttulo ao livro (objeto com mltiplas utilizaes, do vesturio ao movimento) e responsvel pelo abano que colocou as artes plsticas, poticas e de performance no primeiro plano da cultura brasileira. O facto de ser Waly Salomo, poeta e amigo de Oiticica, a assinar o livro um dos aspetos que faz desta edio um trabalho imprescindvel.

    Crimenes EjemplaresMax Aub e Liniers Libros del Zorro RojoNova edio de um quase clssico. Depois de vrias edies ilustradas, os textos de Max Aub, argumentrio justificativo para a realizao de uma variada lista de crimes, veem-se agora em dilogo com o trabalho de Liniers, ilustrador e autor de banda desenhada argentino cujo trao combina harmoniosamente com o sarcasmo, o humor negro e a violncia inteligentemente construda de Aub.

    S A R A F I G U E I R E D O C O S T A / A N D R E I A B R I T E S

    ESTANTE

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    A sereia e os gigantesCatarina SobralOrfeu negroCom este lbum, fruto do Prmio Internacional de Ilustrao SM, Catarina Sobral assume-se cada vez mais como dupla autora, de imagem mas tambm de texto. Apesar de ser uma adaptao da lenda sobre a origem da praia da Rocha, no Algarve, as solues encontradas conferem ao texto a simplicidade necessria para darem aos padres e aos efeitos de movimento da ilustrao um novo espao de leitura. s marcas identitrias, a autora acresce sempre algo surpreendente, em resposta identidade especfica de cada obra.

    Parem as Mqui-nas! Glrias, peri- pcias e embustes do jornalismo portugusGonalo Pereira RosaParsifalUma coleo de histrias do jornalismo portugus, onde se desmontam embustes, se partilham episdios equvocos e se iluminam notcias que, com o passar do tempo, perderam a sua urgncia. O autor, tambm jornalista, recupera estas histrias com o rigor que a comunicao exige, contextualizando-as, completando-as com outras informaes e sabendo sempre destacar o seu lado pitoresco, singular e por vezes surpreendente.

    Maga Coleo de ensaios sobre Banda Desenhada e afinsVVAAClube do InfernoMaga pretende ser a primeira de muitas edies dedicadas reflexo sobre a banda desenhada. Na estreia, conta com textos de Ana Matilde Sousa, Joo Machado, Joo Sobral e Marcos Farrajota, para alm de ilustraes de Gato Mariano e uma entrevista com Tiago Baptista. Num meio onde se escreve pouco nesta linha crtica e ensastica, resta esperar que o primeiro Maga tenha continuidade por muitos anos.

    Gatinho e as FriasJoel Franz Rosell e Constance v. KitzingKalandrakaO terceiro volume desta dupla mantm, relativamente aos anteriores, a mesma candura mas acresce-lhes um discurso um pouco mais complexo. As frias so o tpico e o pretexto para apresentar ao pequeno leitor diversos modelos e experincias familiares. imagem dos lbuns anteriores, que versam a partilha e o respeito pela diferena, tambm aqui os valores so o grande tema, sem recurso a nada mais que a narrativa do quotidiano. Como deve ser.

    ESTANTE

    S A R A F I G U E I R E D O C O S T A / A N D R E I A B R I T E S

  • A S B S

    TEXTOS

    Bruno Vieira Amaral, Rui ngelo Arajo, Joana Brtholo,Cludia Clemente, Jonathan Franzen, Paulo Varela Gomes,Howard Jacobson, Pedro Mexia, Herta Mller,Jacinto Lucas Pires, Simon Schama, Gore VidalENSAIO FOTOGRFICOPatrcia Almeida e David-Alexandre GuniotILUSTRAES Catarina SobralCAPA

    Jorge Colombo

    Falhar melhor. O temperamento de cada um ditarse h na expresso de Beckett pessimismo, optimismoou resignao. Ela de tal modo poderosa, que correo risco de vir a banalizar-se. Talvez j esteja beirado lugar-comum. D bons ttulos. [...] O desafio lanado aos autores que fazem este nmero est contido na brecha aberta entre o optimismo e o pessimismo, entre a ideia de falhar e a perspectivade aperfeioamento. Um salto sem rede. CVM

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  • A S B SA S B S

  • 15m e l h o r

    u m p o u c o

    porum Mundo

    No Mxico,RICARDO VIEL

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  • 16V ou mudar o mundo. Veja bem, ele no disse que vamos mudar o mundo. disse: eu vou mudar o mundo. no maravi-lhoso?, dizia o empresrio julio milln a um grupo de pessoas no final do encontro Prospectiva del mundo, realizado no mxico nos dia 24 e 25 de junho. Citava as palavras de um dos alunos da unam (universidade autnoma do mxico) que, ao lado de pensadores, escritores, juristas, engenheiros, historiado-res, economistas e cientistas, interveio no congresso cujo ob-jetivo era debater a criao de uma proposta de Carta dos de-veres Humanos a ser entregue s naes unidas. o encontro partia de uma ideia de jos Saramago que, ao receber o Pr-mio nobel de Literatura, defendeu a necessidade de os cida-dos reivindicarem, tambm, o dever dos nossos deveres. ao exigir o cumprimento dos deveres poderamos sonhar em fazer do mundo um lugar um pouco melhor, dizia o escritor.

    Foram dois extensos dias de dilogos, de propostas, de exposio de pontos de vista e de intercmbio de ideias que tiveram incio com as palavras de jos narro robles, reitor da unam. o acadmico advogou pela necessidade de uma mudana de enfoques e perspetivas e pela rutura de clichs para que seja possvel imaginar um mundo distinto e criar novas utopias. Claro que devemos sonhar com um mundo melhor, afirmou. (leia a seguir na ntegra o discurso do rei-tor).

    jos Saramago acreditava, firmemente, na capacidade dos seres humanos, destacou Pilar del ro na conferncia de abertura do congresso. a jornalista e presidenta da Fundao jos Saramago centrou a sua interveno numa conferncia do escritor na qual defendeu a necessidade de se discutir a or-ganizao da sociedade. deixemos de considerar a democra-cia um dado adquirido, disse Saramago, e recordou-o Pilar del ro. discutir a democracia para reinvent-la, era o que de-fendia o autor de Ensaio sobre a Lucidez. e a sua companheira recuperou as palavras do humanista compassivo para de-safiar os participantes do encontro no mxico a trabalharem

    N O M X I C O , P O R U M M U N D O U M P O U C O M E L H O R

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    Com Gael Garca Bernal, Jos Saramago apresenta As Intermitncias da Morte na 20. edio da Feira Internacional do Livro de Guadalajara. 29/11/2006.

    FIL guadalajara/Michel Amado Carpio

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    pela criao de uma Carta que faa dos cidado os atores da mudana. o que mais preocupava jos Saramago no mundo eram as pessoas que no se preocupam, disse Pilar. os que estavam reunidos na Cidade do mxico pertenciam aos que se preocupam, e isso ficou claro nas mesas que se seguiram.

    U ma daS interVeneS maiS aguardadas foi a do espanhol Bal-tazar Garzn, conhecido ativista dos direitos humanos. Para o ex--juiz, a cidadania tem como obri-gao exigir que as autoridades cumpram plenamente a lei. a impunidade e a corrupo amea-am o estado de direito, um dever dos cidados combat--las, apontou no seu discurso. Garzn afirmou que o comba-te ao terrorismo e ao crime organizado no pode significar o atropelo aos direitos dos cidados e no pode ser realizado a qualquer preo. o jurista falou tambm das obrigaes de quem exerce a justia (o nico dono do Poder judicial o povo) e da importncia do direito verdade, justia e repa-

    rao. um dever exigir a defesa das vtimas. temos o dever de no permanecermos indiferentes, concluiu.

    jos antnio Pinto ribeiro, ex-ministro da Cultura de Por-tugal, participou na mesma mesa que Garzn e centrou a sua interveno na necessidade da participao efetiva dos indi-vduos no Poder judicial. Participar na justia um direito fundamental, apontou, defendendo a necessidade de cria-o de uma cidadania global. jos Saramago sentia que a cidadania s pode ser defendida com mais cidadania.

    numa das mesas em que se debateu a educao, o jorna-lista e socilogo ignacio ramonet abordou a questo da mer-cantilizao do ensino e o impacto das tecnologias na apren-dizagem. a internet multiplicou a fora cerebral humana. uma mudana profunda e imparvel, disse. Para o espa-nhol, a escola do futuro ser muito diferente da atual, mas os professores continuaro a ser indispensveis. o papel fundamental da educao criar seres autnomos, defen-deu ramonet.

    N O M X I C O , P O R U M M U N D O U M P O U C O M E L H O R

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    F ranCiSCo Lou, ProFeSSor e poltico portugus, participou tambm no Congresso. na mesa que tinha como tema Fronteira e migraes, o eco-nomista centrou a sua interveno no dever de proteo aos refugiados. ne-nhum ser humano ilegal em nenhuma parte, e existe um dever de hospitalida-de para com todos os migrantes, anotou. o mediterrneo , hoje em dia, a sepultura da humanidade, afirmou em re-ferncia s centenas de pessoas que morrem na tentativa de chegar europa, concluindo que as migraes so fundado-ras das culturas.

    meio ambiente, educao, alimentao, desenvolvimento, sade, cultura, alimentao, democracia e igualdade, foram alguns dos assuntos abordados durante os dois dias do con-

    gresso organizado pela unam. o passo seguinte ser compi-lar todas as propostas apresentadas e redigir uma proposta de Carta a ser apresentada s naes unidas. esse trabalho ficar a cargo de um comit de personalidades e especialis-tas que ser nomeado pela universidade mexicana. tudo o que comea tem um final, mas hoje no um final deste pro-jeto, disse, no seu discurso de encerramento, julio milln, presidente do captulo mexicano da World Future Society entidade co-organizadora do encontro juntamente com a Fundao jos Saramago. H ainda muito trabalho a ser fei-to, o mundo ainda no foi mudado. mas no falta vontade. Sabemos muito mais do que julgamos, podemos muito mais do que imaginamos, disse certa vez jos Saramago. essas palavras, recordadas por Pilar del ro, ecoaram na Cidade do mxico no passado ms de junho.

    N O M X I C O , P O R U M M U N D O U M P O U C O M E L H O R

  • 20d e v e r e so s no s s o s

    o de ve rde c ump r i r

    Mx i c o :

    PILAR DEL RO

    20

  • 21

    U m dia, h vrios sculos, um cam-pons de uma aldeia de Florena subiu ao campanrio da igreja e tocou a finados. Sobressaltados, j que no havia notcia de que houvesse algum doente terminal entre eles, os vizinhos acercaram--se da igreja perguntando quem era o morto: a justia: a justia morreu, disse perentrio o campons desde o alto da torre, e continuou com toques las-timosos. a justia havia morrido porque, contra toda a lgica, o juiz acabava de dar razo a um poderoso contra um fraco. mas isso acontece muitas vezes poderiam ter respondido ao indignado campons, constatando assim uma evidncia universal, para a qual tinha j uma resposta clara e contun-dente: Sim, mas eu no me resigno.

    a lucidez do campons que assume e apregoa o seu prota-gonismo respondendo a juzes, elites e, sobretudo, ao fatalis-mo de aceitar as coisas como nos dizem que so, parece-me um bom ponto de partida para abordar o repto que jos Sara-

    mago lanou h 17 anos em estocolmo, depois de ter recebido o Prmio nobel de Literatura, que alguns disseram poder ter sido tambm o da Paz. naquele 10 de dezembro cumpriam-se cinquenta anos da assinatura da declarao universal dos direitos Humanos e com toda a justia jos Saramago per-guntou-se pelo estado de sade do mundo, uma vez que se ti-nham identificado de forma to clara as causas da infelicida-de, que se haviam enunciado os direitos imprescindveis para que os seres humanos, todos, pudssemos habitar o planeta em harmonia. Perguntou jos Saramago naquela ocasio so-lene, sem retrica, ainda que com dor, que havia acontecido nesses cinquenta anos depois de proclamados os melhores princpios. estas foram as suas palavras:

    Nestes cinquenta anos no parece que os Governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando no por fora da lei, estavam obrigados. As injustias multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ig-norncia cresce, a misria alastra. A mesma esquizofrnica humanidade que capaz de enviar instrumentos a um planeta

    M X I C O : O D E V E R D E C U M P R I R O S N O S S O S D E V E R E S

    INTERVENO DE P I LAR DEL R O, CONFERNCIA DE ABERTURA DO CONGRESSO ProsPectiva del Mundo Mxico 2015

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    para estudar a composio das suas rochas, assiste indiferente morte de milhes de pessoas pela fome. Chega-se mais facil-mente a Marte neste tempo do que ao nosso prprio semelhante.

    Algum no anda a cumprir o seu dever. No andam a cumpri-lo os Governos, seja porque no sabem, seja porque no podem, seja porque no querem. Ou porque no lho permitem os que efetivamente governam, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente no democrtico, reduziu a uma casca sem contedo o que ainda restava de ideal de democracia.

    um intelectual no um profeta, j o sabemos, nem um visionrio, ainda que possa exercer a capacidade antecipa-tria dos que analisam com o rigor da atenta observao. assim, jos Saramago continuou o seu discurso, j no falando dos governos, tantas vezes refns de interesses alheios democracia, mas de ns, dos cidados que somos:

    Mas tambm no esto a cumprir o seu dever os cidados que somos. Foi-nos proposta uma Declarao Universal de Di-reitos Humanos, e com isso julgmos ter tudo, sem repararmos

    que nenhuns direitos podero subsistir sem a simetria dos de-veres que lhes correspondem, o primeiro dos quais ser exigir que esses direitos sejam no s reconhecidos, mas tambm res-peitados e satisfeitos. No de esperar que os Governos faam nos prximos cinquenta anos o que no fizeram nestes que co-memoramos. Tomemos ento, ns, cidados comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemncia e a mesma fora com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos tambm o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa comear a tornar-se um pouco melhor.

    Esta declarao no um ato de volunta-rismo: jos Saramago acreditava firme-mente na capacidade dos seres humanos, a quem atribua a condio de superpo-tncias porque, dizia, sabemos mais do que cremos, podemos mais do que imagi-namos, embora a tarefa do bem comum nunca se tenha apresentado como fcil.muito antes de que lhe fosse concedido o Prmio nobel,

    e que, portanto, tivesse lido o discurso de que vos citei uns

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    Jos Saramago se reuni numa reunio com mais de mil jovens na 18. Feira Internacional do Livro de Guadalajara. 27/11/2004. FIL guadalajara/bernardo de Niz

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    pargrafos, jos Saramago pronunciou uma conferncia em Sevilha, em que expressou preocupaes prprias de quem quando observa um edifcio v para l da fachada, e no ape-nas as aparncias. ou, dito de outra forma, a forma de ver de quem sabe que o brilho da lua, ou os poemas escritos sobre a beleza que certas noites mostram e nos impressionam, no podem fazer-nos esquecer o seu lado oculto, talvez mais mo-tivador e menos explorado, que nos espera.

    disse assim jos Saramago observando o nosso tempo a partir de valores civilizacionais que pensvamos serem da-dos adquiridos:

    Embora tendo presente o risco de generalizaes abusivas a que as extrapolaes de tempo e de lugar sempre nos podem le-var, irresistvel que me interrogue sobre se os imprios econ-micos e financeiros dos nossos dias, multinacionais e pluriconti-nentais, no estaro, eles tambm, fiis exclusiva e implacvel lgica dos interesses, a trabalhar, fria e deliberadamente, para a eliminao progressiva de uma possibilidade democrtica que, cada vez mais afastada temporalmente das suas indecisas ex-

    presses de origem, vai a caminho de um rpido estiolamento, por enquanto ainda mantida nas suas formas exteriores, mas profundamente desvirtuada na sua essncia. Pergunto-me at que ponto podero dar-nos garantias de uma ao realmente democrtica as diversas instncias do poder poltico quando, aproveitando-se da legitimidade institucional que lhes adveio da eleio popular, tentam desviar a nossa ateno da evidn-cia palmar de que no mesmssimo processo da votao j se en-contravam presentes, e em conflito, por um lado, a expresso de uma opo poltica representada materialmente pelo voto e, por outro lado, a demonstrao involuntria de uma abdicao c-vica na maior parte dos casos sem conscincia de si mesma? Por outras palavras: no ser verdade que, no mesmo exato instan-te em que o seu voto foi introduzido na urna, o eleitor transferiu para outras mos, na prtica e sem mais contrapartidas que as promessas que lhe haviam sido feitas durante a campanha eleitoral, a parcela de poder poltico que at esse momento lhe pertencera de legtimo direito como membro da comunidade de cidados?

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    Acreditem se vos digo que o fenmeno expresso por jos Saramago nestas linhas, o da aparente contradio votar delegar desistir que encerra o pilar da de-mocracia, o momento elei-toral, no era consequncia de uma preocupao episdica, e sim fruto da observao de comportamentos sociais que mostram a distncia entre os votantes e os seus representantes, sejam estes partidos his-tricos ou recentes, associaes cvicas ou indivduos com capacidade de intervir, que se apresentam para gerir a coisa pblica e acabam sendo adversrios dos cidados por obra e graa da corrupo administrativa, poltica, moral. o aumen-to da averso poltica que tanto preocupa nestes momentos, estende-se pelo mundo precisamente quando a possibilida-de de sufrgio chega a pases que no gozavam desse direi-to e, inclusivamente, quando em algumas partes do mundo aumenta a percentagem de votos expressos. apesar do voto,

    cresce a averso, e nem sequer se sobe ao campanrio para tocar a defuntos.

    Como evitar a privatizao da democracia? Lakoff dizia que para pensar de modo diferente h que falar de modo dife-rente, mas ns somos sujeitos construdos por palavras, mol-dados por palavras, dirigidos por palavras que no nos con-duzem sabedoria e sim para uma resignao supostamente estoica que poderia definir-se tambm como servil. Por ve-zes, o pensamento correto, essas palavras que nos medem, conduzem-nos diretamente a um estado de indiferena social que j sabemos ser o paraso do poder, o lugar em que este faz e desfaz, feliz, em benefcio dos seus interesses, de si mesmo.

    Continuemos a ouvir jos Saramago:

    Ao afirmar que o ato de votar, sendo obviamente expresso de uma vontade poltica determinada, tambm, em simult-neo, um ato de renncia ao exerccio dessa mesma vontade, implicitamente manifestado na delegao operada pelo po-der prprio do votante, ao afirm-lo, repito, coloquei-me to somente no primeiro limiar da questo, sem considerar ento

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    outros prolongamentos e outras consequncias do ato eleitoral, quer do ponto vista institucional, quer do ponto de vista dos diversos estratos polticos e sociais em que decorre a vida da comunidade de cidados. Observando agora as coisas mais de perto, creio poder concluir que sendo o ato de votar, objetiva-mente, pelo menos em grande parte da populao de um pas, uma forma de renncia temporal ao poltica que deveria ser-lhe natural e permanente, mas que se v adiada e posta em surdina at s eleies seguintes, altura em que os mecanismos delegatrios recomearo do princpio para da mesma maneira virem a terminar, ela, essa renncia, poder ser, no menos ob-jetivamente, para a minoria dos eleitos, o primeiro passo de um processo que, estando democraticamente justificado pelos vo-tos, no raras vezes prossegue, contra as baldadas esperanas dos iludidos votantes, objetivos que de democrticos nada tm e que podero at, na sua concretizao, chegar a ofender fron-talmente a lei. Em princpio, a nenhuma comunidade mental-mente s lhe passaria pela cabea a ideia de eleger traficantes de armas e de drogas ou, em geral, indivduos corruptos e cor-ruptores para seus representantes nos parlamentos ou nos go-

    vernos, porm, a amarga experincia de todos os dias mostra--nos que o exerccio de amplas reas do poder, tanto em mbitos nacionais como internacionais, se encontra nas mos desses e de outros criminosos, ou dos seus mandatrios polticos diretos e indiretos. Nenhum escrutnio, nenhum exame microscpico dos votos lanados numa urna seria capaz de tornar visveis, por exemplo, os sinais denunciadores das relaes de concubi-nato entre a maioria dos Estados e grupos econmicos e finan-ceiros internacionais cujas aes delituosas, incluindo aqui as blicas, esto a levar catstrofe o planeta em que vivemos.

    e continua jos Saramago:

    Aprendemos dos livros, e as lies da vida o confirmam, que, por mais equilibradas que se apresentem as suas estruturas institucionais e respetivo funcionamento, de pouco nos servir uma democracia poltica que no tenha sido constituda como raiz e razo de uma efetiva e concreta democracia econmica e de uma no menos concreta e efetiva democracia cultural. Diz-lo nos dias de hoje h de parecer, mais que uma banali-

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    Com os amigos Carlos Fuentes, Gabriel Garca Mrquez, Carlos Monsivis e Nadine Sordimer em Guadalajara, 2006 FIL guadalajara

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    dade, um exausto lugar-comum herdado de certas inquietaes ideolgicas do passado, mas seria o mesmo que fechar os olhos realidade das ideias no reconhecer que aquela trindade de-mocrtica a poltica, a econmica, a cultural , cada uma delas complementar das outras, representou, no tempo da sua prosperidade como projeto de futuro, uma das mais congrega-doras bandeiras cvicas que alguma vez, na histria recente, foram capazes de comover coraes, abalar conscincias e mo-bilizar vontades. Hoje, pelo contrrio, desprezadas e atiradas para a lixeira das frmulas que o uso, como a um sapato velho, cansou e deformou, a ideia de uma democracia econmica, por muito relativizada que tivesse de ser, deu lugar a um mercado obscenamente triunfante, e a ideia de uma democracia cultu-ral foi substituda por uma no menos obscena massificao industrial das culturas, esse falso melting-pot com que se pre-tende disfarar o predomnio absoluto de uma delas. Cremos haver avanado, mas, de facto, retrocedemos. E cada vez se ir tornando mais absurdo falar de democracia se persistirmos no equvoco de identific-la com as suas expresses quantitativas e mecnicas, essas que se chamam partidos, parlamentos e go-

    vernos, sem proceder antes a um exame srio e conclusivo do modo como eles utilizam o voto que os colocou no lugar que ocu-pam.

    Uma democracia que no se auto-observe, que no se auto--examine, que no se autocritique, estar fatalmente condena-da a anquilosar-se.

    O militante de base de um partido que era jos Saramago, que queria parlamentos inteligentes e gover-nos morais e eficazes, preocupado com as pessoas que no se preocu-pavam, que detestava o puritanis-mo autoritrio de considerar que h assuntos que no devem tocar--se nem com a ptala de uma rosa, como este de que estamos a falar, o estado de sade do que chamamos de democracia, que no convida os cidados a comprometer-se para alm dos im-postos que pagam e as leis que devem cumprir, se que no conseguem contorn-las com artifcios legais, este escritor

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    que dizia que a sociedade tem de estar alarmada porque essa a forma de estar viva e talvez vencer o sistema de mentiras organizadas e entrelaadas em que nos movemos, este escri-tor negava-se a pactuar com rodas de moinhos:

    (...) apenas me recuso a admitir que s seja possvel governar e desejar ser governado de acordo com os modelos democrti-cos em uso, a meu ver incompletos e incoerentes, esses modelos que, numa espcie de assustada fuga para a frente, pretendemos tornar universais, como se, no fundo, s quisssemos fugir dos nossos prprios fantasmas, em vez de os reconhecer como o que so e trabalhar para venc-los. Chamei incompletos e incoe-rentes aos modelos democrticos em uso porque realmente no vejo como se possa design-los de outra maneira.

    Uma democracia bem entendida, inteira, redonda, ir-radiante, como um sol que por igual a todos ilumine dever, em nome da pura lgica, comear por aquilo que temos mais mo, isto , o pas onde nascemos, a sociedade em que vive-mos, a rua onde moramos. Se esta condio primria no for observada, e a experincia de todos os os dias diz-nos que no

    o , todos os raciocnios e prticas anteriores, quer dizer, a fun-damentao terica e o funcionamento experimental do siste-ma, estaro, desde o incio, viciados e corrompidos. De nada adiantar limpar as guas do rio sua passagem pela cidade se o foco contaminador estiver na nascente. Vimos j como se tornou obsoleto, fora de moda, e at mesmo ridculo, invocar os objetivos humanistas de uma democracia econmica e de uma democracia cultural, sem os quais o que designamos por democracia poltica ficou limitado fragilidade de uma casca, acaso brilhante e colorida de bandeiras, cartazes e palavras de ordem, mas vazia de contedo civicamente nutritivo. Querem, porm, as circunstncias da vida atual que at mesmo essa del-gada e quebradia casca das aparncias democrticas, ainda preservadas pelo impenitente conservadorismo do esprito hu-mano, ao qual costumam bastar as formas exteriores, os smbo-los e os rituais para continuar a acreditar na existncia de uma materialidade j carecida de coeso ou de uma transcendncia que deixou perdidos pelo caminho o sentido e o nome querem as circunstncias da vida atual, repito, que as cintilaes e as cores que at agora tm adornado, diante dos nossos resignados

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    olhos, as desgastadas formas da democracia poltica, se estejam a tornar rapidamente baas, sombrias, inquietantes, quando no impiedosamente grotescas como a caricatura de uma de-cadncia que se vai arrastando entre chufas de desprezo e uns ltimos aplausos irnicos ou de interessada convenincia.

    Por sua prpria natureza e definio, o poder democrtico ser sempre provisrio e conjuntural, depender da instabili-dade do voto, da flutuao das ideologias e dos interesses das classes, e, como tal, pode at ser visto como uma espcie de ba-rmetro orgnico que vai registando as variaes da vontade poltica da sociedade. Mas, ontem como hoje, e hoje com uma amplitude cada vez maior, abundam os casos de alteraes po-lticas aparentemente radicais que tiveram como efeito radicais alteraes de governo, mas a que no se seguiram as alteraes sociais, econmicas e culturais igualmente radicais que o resul-tado do sufrgio havia prometido.

    Efetivamente, dizer hoje governo socialista, ou social-de-mocrata, ou democrata-cristo, ou conservador, ou libe-ral, e chamar-lhe poder, como uma operao de cosmti-ca, pretender nomear algo que no se encontra onde se nos

    quer fazer crer, mas sim em outro e inalcanvel lugar o do poder econmico , esse cujos contornos podemos perceber em filigrana por trs das tramas e das malhas institucionais, mas que invariavelmente se nos escapa quando tentamos chegar-lhe mais perto e que inevitavelmente contra-atacar se alguma vez tivermos a louca veleidade de reduzir ou disciplinar o seu domnio, subordinando-o s pautas reguladoras do interesse geral. Por outras e mais claras palavras, afirmo que os povos no elegeram os seus governos para que eles os levassem ao mercado, e que o mercado que condiciona por todos os modos os governos para que lhe levem os povos.

    E, se assim falo do Mercado (agora com maiscula), por ser ele, nos tempos modernos, o instrumento por excelncia do autntico, nico e insofismvel poder realmente digno des-se nome que existe no mundo, o poder econmico e financeiro transnacional e pluricontinental, esse que no democrtico porque no o elegeu o povo, que no democrtico porque no regido pelo povo, que finalmente no democrtico porque no visa a felicidade do povo.

    No faltaro sensibilidades delicadas para considerarem

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    Jos Saramago com um grupo de jovens no mbito da 18. Feira Internacional do Livro de Guadalajara. 27/11/2004. FIL guadalajara/Mayra kitroser

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    escandaloso e gratuitamente provocador o que acabo de dizer, mesmo que tenham de reconhecer que no fiz mais que enunciar algumas verdades transparentes e elementares, uns quantos dados correntes da experincia de todos ns, simples observa-es do senso comum. Sobre essas e outras no menos claras ob-viedades, porm, tm imposto as estratgias polticas de todos os rostos e cores um prudente silncio a fim de que no ouse al-gum insinuar que, conhecendo a verdade, andamos a cultivar a mentira ou dela aceitamos ser cmplices.

    Enfrentemos, portanto, os factos. O sistema de organizao social que at aqui temos designado como democrtico tornou--se cada vez mais numa plutocracia (governo dos ricos) e cada vez menos uma democracia (governo do povo). impossvel negar que a massa ocenica dos pobres deste mundo, sendo ge-ralmente chamada a eleger, no nunca chamada a governar (os pobres nunca votariam num partido de pobres porque um partido de pobres no teria nada para prometer-lhes). impos-svel negar que, na mais do que problemtica hiptese de que os pobres formassem governo e governassem politicamente em

    maioria, como a Aristteles no repugnou admitir na Poltica, ainda assim no disporiam dos meios para alterar a organiza-o do universo plutocrtico que os cobre, vigia e no raramen-te afoga. impossvel no nos apercebermos de que a chamada democracia ocidental entrou em um processo de transformao retrgrada que totalmente incapaz de parar e inverter, e cujo resultado tudo faz prever que seja a sua prpria negao. No preciso que algum assuma a tremenda responsabilidade de liquidar a democracia, ela j se vai suicidando todos os dias.

    E apesar de escrever isto, jos Saramago no se resignou, claudicar no formava parte do seu dicionrio pessoal e acre-ditava que to-pouco deveria estar no dos seres humanos que somos, pobres diabos todos, encerrados nas nossas vi-das pessoais, humilhados tantas vezes, outras obrigados a ser otimistas num mundo pssimo em que o mundo se imps esperana. e no entanto, no se pode desistir. o discurso de jos Saramago

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    que utilizei como alma e corpo desta interveno, porque a in-terveno cvica de jos Saramago a razo da minha presen-a, terminava expressando um desejo, que oxal pudessemos assumir e que nos fizesse avanar para a Carta de deveres que salve os nossos direitos. acabo, pois, com as suas pala-vras, o humanista compassivo que era jos Saramago coloca o ponto final perguntando-se, como fazem os sbios, diante da dimenso da tarefa que temos pela frente:

    Que fazer, ento? Reform-la?Demasiado sabemos que reformar algo, como escreveu o au-

    tor de Il Gattopardo, no mais que mudar o suficiente para que tudo se mantenha igual.

    Regener-la? A qual viso suficientemente democrtica do passado valeria a pena regressar para, a partir dela, recons-truir com novos materiais o que hoje est em vias de se perder? da Grcia antiga? das cidades e repblicas mercantis da Idade Mdia? do liberalismo ingls do sculo XVII? do enciclopedismo francs do sculo XVIII? As respostas seriam com certeza to fteis quanto j o foram as perguntas... Que

    fazer, ento? Deixar de considerar a democracia como um dado adquirido, definido de uma vez e para sempre intocvel. Num mundo que se habituou a discutir tudo, uma s coisa no se discute, precisamente a democracia. Melfluo e monacal, como era seu estilo retrico, Salazar, o ditador que governou o meu pas durante mais de quarenta anos, pontificava: No discuti-mos Deus, no discutimos a Ptria, no discutimos a Famlia. Hoje discutimos Deus, discutimos a ptria, e s no discutimos a famlia porque ela prpria se est a discutir a si mesma. Mas no discutimos a democracia. Pois eu digo: discutamo-la, meus senhores, discutamo-la a todas as horas, discutamo-la em todos os foros, porque, se no o fizermos a tempo, se no descobrirmos a maneira de a reinventar, sim, de a re-inventar, no ser s a democracia que se perder, tambm se perder a esperana de ver um dia respeitados neste infeliz planeta os direitos humanos.

    muito obrigada.

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    r ea l i dadeJOs NARRO

    RObLEs

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    emilusouma

    Transformar

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    Em nome da universidade nacional au-tnoma do mxico dou-vos as mais cor-diais boas-vindas a este colquio orga-nizado conjuntamente com o captulo mexicano da World Future Society. Se-jam todos muito bem-vindos a este espa-o aberto pluralidade, ao debate infor-mado e criatividade.Cientistas, intelectuais, acadmicos, artistas, jornalistas e

    jovens estudantes discutiro e analisaro, durante os prxi-mos dias, assuntos fundamentais para a elaborao de uma Carta dos deveres do ser humano.

    Sero abordados alguns dos grandes problemas da huma-nidade, que podem ser crticos nos prximos anos se no fi-zermos uma paragem para refletir e tomar medidas globais em benefcio de todos. So temas fundamentais para o desen-volvimento do ser humano e da sua insero nas sociedades como educao, cultura, sade, alimentao e a vigncia do estado de direito.

    mas so, tambm, assuntos que tm a ver com os efeitos

    que os modelos de desenvolvimento provocaram e cuja con-sequncia a grande desigualdade econmica e social que prevalece, em diversos graus, em todo o mundo; que mantm na misria centenas e centenas de milhes de pessoas, algu-mas inclusivamente em carncia dos nutrientes indispens-veis para subsistir.

    as assimetrias do nosso mundo atual no tm compara-o. as diferenas so to grandes que resulta pouco provvel a sua existncia, nesta magnitude, noutra etapa da histria da humanidade. a desigualdade que o mundo agora vive fruto do abandono do social na ao dos governos e da concentra-o da riqueza na mo de pouqussimos indivduos. tambm produto do culto aos mercados, da preocupao pelo mate-rial, da deteriorao dos valores laicos, entre muitas outras coisas.

    neste encontro sero motivo de discusso os esquemas de desenvolvimento e seu financiamento, que no se tm preo-cupado com o uso dos recursos naturais, que atentam contra a vida, a diversidade e que prejudicam o clima.

    tambm sero examinados, numa perspetiva de futuro,

    T R A N S F O R M A R U M A I L U S O E M R E A L I D A D E

    PALAVRAS DO REITOR DA UNAM, JOS NARRO ROBLES, NA INAUGURAO DO ENCONTRO ProsPectiva del Mundo Mxico 2015

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    Chiapas Arquivo Pessoal

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    questes recentes como os alcance e efeitos das redes sociais, a biotica, o direito privacidade e a necessidade de fortale-cer os valores que do coeso sociedade.

    o que se debater aqui tem a ver com o porvir da humani-dade, o futuro que requer deixar de lado as vises individua-listas e materialistas para pensar no planeta, nos seres que o habitam e no esprito do ser humano.

    Precisamos de mudar de enfoque e perspetiva, romper clichs para imaginar um mundo diferente, para nos atrevermos a propor uma nova utopia. imaginar um mundo onde a fome, a ignorncia e as mortes pre-visveis no tenham lugar; onde no exista excluso por motivos raciais, religiosos, de gnero ou econmicos; onde o planeta terra e os seus recurso sejam utilizados de maneira racional e res-peitados; onde ningum fique excludo dos benefcios que os grandes avanos cientficos e tecnolgicos proporcionam.

    um desses enfoques o sugerido por jos Saramago. no dia 10 de dezembro de 1998 - data do cinquentenrio da pro-mulgao da declarao universal dos direitos Humanos -, durante a celebrao pelo Prmio nobel de Literatura, Sara-mago recordou o aniversrio da carta dos direitos humanos e apontou: Com a mesma veemncia e a mesma fora com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos tambm o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa comear a tornar-se um pouco melhor.

    o apelo de Saramago continua vigente hoje em dia. a neces-sidade de formular um documento ou Carta dos deveres do ser humano est presente. a sua proposta deve tornar-nos cons-cientes de que o conceito de cidadania deve ser discutido e reela-borado para avanar at ao que a uneSCo denomina de Cida-dania Mundial. um mundo global requer uma cidadania global.

    a cidadania, na sua conceo original, requer que se per-tena a uma comunidade referindo-se, com frequncia, a um estado nacional. esta aceo dilui-se quando pensamos no mundo atual, na aldeia global. Ser cidado significa ter um conjunto de direitos, mas tambm de obrigaes como mem-

    T R A N S F O R M A R U M A I L U S O E M R E A L I D A D E

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    bro de uma coletividade. Ser cidado do mundo implica estar comprometido com tudo o que significa o ser humano, muito alm das fronteiras nacionais.

    avanmos muito na definio dos direitos das pessoas e das coletividades, apesar de no termos avanado na plena aplicao desses direitos. Falta agora, como propunha Sara-mago, avanar com uma declarao das obrigaes do ser hu-mano. isso implica o entendimento de que os indivduos no pertencem s a uma etnia, a um grupo, comunidade ou povo, no unicamente a um pas, seno ao mundo inteiro.

    o desafio de redigir uma Carta dessa natureza grande, porque implica a considerao de assuntos complexos que devem responder a perguntas como estas: Quais podem ser, em concreto, os compromissos do indivduo no mundo? Qual pode ser a definio legal que enquadre esses compromissos e que, ao mesmo tempo, respeite as soberanias nacionais? Quais seriam as nossas obrigaes num mundo onde as fron-teiras se diluem para favorecer o comrcio de mercadorias ou o movimento de capitais, mas que se fecha para no permitir o trnsito de pessoas de um pas para outro?

    Q uais podem ser os deveres do ser humano diante do facto de que todos os estados nacionais esto subordinados aos interesses dos grandes fundos de investimento que operam pelo mundo? Quais as responsabilidades diante do crescimento da desigualdade, consequncia de polticas econmicas a mando dos merca-dos? Qual a nossa incumbncia quando prevalece a falta de oportunidade laboral e educativa para milhes de jovens? Quais so as obrigaes quando uma percentagem significa-tiva de indivduos no mundo padece dos efeitos da ignorn-cia, abandono e excluso?

    no h respostas simples, menos ainda quando se leva em considerao a diversidade de vises, crenas, valores e ideologias. o certo que no podemos continuar sem fazer nada num mundo onde, como dizia Saramago, as injustias se multiplicam, as desigualdades se agravam, a ignorncia cresce, a misria se expande.

    T R A N S F O R M A R U M A I L U S O E M R E A L I D A D E

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    Chiapas Arquivo Pessoal

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    Creio que parte das respostas a essas perguntas e aos problemas que en-frentamos est na educao. Sem d-vida, na globalizao necessitamos de educao para a cidadania mun-dial. educao que exige o reforo de valores laicos, o respeito pelos direi-tos humanos, a conscincia de que muitas pessoas precisam de ajuda e que, por isso, as polticas dos estados para a educao, sade, habitao e alimentao devem ser prioritrias. educao para que a diversidade seja respeitada e aceite, para que os valores da democracia sejam revistos. na minha opinio, a solidariedade entre os indiv-duos e entre naes, o valor da tolerncia e o respeito pela pluralidade no podem faltar numa Carta dos deveres do ser humanos.

    Claro que devemos sonhar com a possibilidade de ter um mundo melhor, onde os direitos polticos, sociais e humanos deixam de ser s uma aspirao. Porque preciso dizer com clareza: direitos que s esto no papel na verdade no so di-reitos.

    Fico feliz porque neste encontro teremos pessoas que pen-saram e estudaram esses assuntos. desejo que tenhamos xi-to neste encontro e que, no final, disponhamos dos elementos necessrios para redigir o documento a que aspiramos[...] um especial obrigado a todos os participantes, de vocs de-pende a matria que nutrir a Carta. muito obrigado por transformarem uma iluso em realidade.

    Fica inaugurado o nosso encontro.

    muito obrigado.

    T R A N S F O R M A R U M A I L U S O E M R E A L I D A D E

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    NO DE AHISTRIA

    ONTEM41

    MARCELO DsALEtE EM ENtREVIstA

    A sARA FIguEIREDO

    COstA

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    E ditado em Portugal pela primeira vez, marce-lo dSalete est longe de ser um estreante no campo da banda desenhada. antes de Cumbe, que saiu no Brasil em 2014 e foi recentemen-te publicado pela editora portuguesa Polvo, o autor j contava com dois livros e uma longa experincia no campo da autoedio, dos fanzines e da distribuio di-reta. no passado ms de maio, marcelo dSalete esteve em Lisboa para participar num painel do programa Prximo Futuro, da Fundao Calouste Gulbenkian, juntamente com Posy Simmonds (do reino unido) e anton Kanne-meyer (da frica do Sul). antes do painel, conversou com a Blimunda sobre Cumbe e sobre o seu trabalho.

    dono de um trao simultaneamente reconhecvel e heterogneo, marcelo dSalete trabalha no registo a pre-to e branco, s aparentemente mais simples, tirando das duas cores e das suas mltiplas gradaes as formas e to-nalidades que asseguram a matria-prima das suas hist-rias. o meu trao tem muito a ver com a minha trajetria, que a de desenhar desde muito cedo e depois fazer o cur-so de artes Plsticas. acabei por escolher trabalhar sobre-tudo a preto e branco, que uma tcnica que ainda estou aprendendo. e vou aprendendo cada vez mais, medida

    que vou trabalhando. esta forma de trabalhar com man-chas, e mesmo com a caneta, acho que tem muito de alguns quadrinistas europeus que eu admiro e de alguns outros artistas tambm, como Flavio Colin, andr Kitagawa, o pai e o filho Breccia [alberto e enrique] e o [jos antonio] muoz. So artistas que eu admiro muito, que trabalham muito bem no preto e branco, dando uma dimenso muito forte da cena e s vezes conseguindo tambm sugerir algo quase abstrato, como acontece com muoz e com Breccia. ento, acabei escolhendo essa tcnica porque era onde o meu desenho mais se desenvolvia. a escolha comeou por aparecer em histrias curtas, circulando nos espaos habituais da pequena edio, e chegou ao primeiro livro, Noite Luz, publicado em 2008: nesse primeiro livro, o Noi-te Luz, ainda estava aprendendo, editando, desenvolvendo diversas formas de trao, desde a caneta nanquim at ao pincel, portanto h uma grande variedade de formas de traado nessas seis histrias. j em Encruzilhada, acho que foi onde consegui desenvolver um desenho, um contorno e um trabalho com manchas mais homogneo. acho que esse trao tambm tem muito a ver com a minha forma de ver a cidade, sobretudo nos dois primeiros livros. Sempre gostei muito de desenho de observao. esse tipo de trao,

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    acho que algo que se aproxima um pouco dessa forma de fazer desenho de observao, e tambm de registar a cida-de, grandes metrpoles, no s o centro, a parte vamos dizer economicamente mais importante, mas tambm as periferias, os grupos mais marginalizados da sociedade. acho que esse trao tem um pouco dessa histria.

    num meio editorial margem dos grandes grupos, com recursos limitados e quase sempre dependente da ca-pacidade financeira individual do autor que quer publicar, a escolha do preto e branco muitas vezes definida por essa contingncia. o caso de marcelo dSalete no diferente desses muitos projetos que comeam a editar em pequena escala, mas a escola do preto e branco tem uma motivao que , antes de qualquer outra, de ordem esttica. acho que inicialmente o preto e branco tem que ver muito com a minha forma de desenhar, mas lgico que depois, quan-do comeo a fazer as histrias e a pensar nesses livros com as minhas histrias, comeo a pensar como viabilizar isso financeiramente e publicar, e lgico que o uso do preto e branco facilita ainda mais a publicao. um trabalho com cor tem um custo final muito maior. no o motivo pri-meiro, mas acho que essas duas questes se somam. de-pois h um outro ponto. inicialmente, quando comecei a

    publicar, o que havia era as revistas mix, com histrias de vrios autores e sempre muito curtas, oito pginas no m-ximo, mas a revista onde eu publicava, a Fronte, j tinha a ideia de trabalhar com histrias mais longas. as minhas histrias tm um tempo um pouco dilatado, e isso algo de que eu gosto, o tempo para a descrio de alguns elemen-tos do quotidiano, para a observao... mas nessas publi-caes mix era complicado. ao levar isso para publicaes com histrias apenas minhas, claro que elas ficaram mais extensas e a questo do custo ser mais baixo, por causa do preto e branco, ajudou a viabilizar a publicao no formato que eu desejava.

    O trabalho de marcelo dSalete revela um interesse particular pelo espao, no en-quanto mero cenrio ou pano de fundo, mas antes como categoria que assume um papel essencial na construo das perso-nagens e no desenrolar de tenses, descobertas, conquis-tas. nos dois primeiros livros, Noite Luz e Encruzilhada, a cidade o espao, com as suas reas demarcadas social-mente e com os habitantes equilibrando-se entre o con-vvio e o conflito. Centro e periferia so o contraste mais

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    bvio, mas ambos os livros se afastam do lugar-comum social para explorar os equilbrios possveis a partir da histria de cada habitante. num lugar onde a Histria pa-rece sempre relegada para o passado, seja ele patrimonial ou episdico, dSalete dedica-se com afinco a construir pe-quenas histrias do quotidiano, revelando que cada uma delas ser, j , parte essencial dessa ideia de Histria que a cidade parece nunca assumir para algumas das suas zo-nas geogrficas e para os seus respetivos habitantes. o es-pao e os objetos tm uma importncia muito grande nos meus livros. Gosto de criar os personagens sempre pen-sando a partir dos objetos que eles utilizam, dos smbolos que eles portam. isso muito forte na Encruzilhada, com os logotipos que so smbolos de consumo e se relacionam com a personalidade dos personagens. no Cumbe, tentei trabalhar com smbolos, tambm, e trabalhei no sentido de criar uma identidade a partir dos elementos visuais, usando smbolos de origem banto, um grupo que vem do centro e sul da frica. no caso dos outros livros foram mais os logotipos, a pixao e o grafitti, que so smbolos que definem uma visualidade prpria das grandes cidades e das periferias dessas cidades. acredito que uma forma de uma certa juventude marginalizada se expressar que

    est para alm daquilo que a cidade pode, por vezes, com-preender. Se a gente pensar que o que impera nas grandes cidades a arquitetura, so paredes, grades e propaganda, a pixao e o grafiti saem um pouco dessa lgica, embora hoje o grafitti j esteja um pouco mais domesticado, mas a pixao sai muito dessa lgica. a pixao, ou as tags, sur-ge, ento, como apropriao do espao pblico por parte de quem no lhe tem acesso, ou cujo acesso condicionado por regras que no so iguais para todos os habitantes da cidade, algo que se reflete na banda desenhada de dSalete como no quotidiano das grandes cidades brasileiras: a pixao, no Brasil, um elemento fortemente poltico, que surge com a ditadura, a partir da dcada de sessenta. de-pois so os grupos jovens e marginalizados que comeam a utilizar, muitas vezes se comunicando apenas entre si. e essa tambm uma forma de criar uma identidade com a cidade.

    D e certo modo, este conflito entre pessoas e espaos tambm se percebe em Cum-be, apesar da vertente histrica da obra, ambientada no Brasil colonial do scu-lo XVii. o interesse de marcelo dSalete 45

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    por esta dinmica social e pelo conflito que lhe inerente mais pessoal e contemporneo do que a datao histri-ca da ao de Cumbe deixa adivinhar. eu sou da periferia de So Paulo. Passei a infncia em So mateus, um bairro bem afastado, e depois na zona leste de So Paulo, que uma zona um pouco mais pobre. trabalhei como office boy, ajudante de marceneiro, vrias coisas. o local onde eu cir-culava na cidade passava muito por esses espaos e percebi que nas histrias em quadrinhos que eu lia no tinha mui-tas referncias histria ou cultura do negro. s vezes apareciam como personagens secundrios, ou folclricos, ou figuras da media, como o Pel. mas havia uma ausncia desse tipo de representao e dos conflitos que acontecem nessas zonas, e isso era algo de que eu queria falar. isso acontece no Noite Luz e no Encruzilhada, com personagens marginalizados, geralmente negros, mostrando uma pers-petiva sobre a cidade. no Cumbe, o tempo histrico muda, passamos para o Brasil colonial do sculo XVii, mas a minha preocupao de falar a partir desse ponto de vista continua, ento falei do perodo colonial, mas no a par-tir dos registos coloniais, dos registos de brasileiros e por-tugueses do poder colonial. eu queria falar dessa poca a partir dos outros registos, e esses so poucos. Foram 350

    anos de escravido, mas os relatos dos prprios escravos so muito pouco conhecidos. H alguns textos recentes que referem relatos de africanos escravizados que saram do Brasil e foram, depois, para os estados unidos, e a con-taram a sua histria. mas temos alguns casos, sobretudo nos sculos XViii e XiX, de escravizados que, com proble-mas com senhores ou outro tipo de casos, foram parar na justia. a temos registos policiais, muitas vezes dando essa viso do quotidiano, das histrias pessoais, dos escra-vizados, coisa que no temos nos registos oficiais. a partir da surgiram algumas das histrias do Cumbe. Claro que no me limitei a representar as histrias que encontrei. o meu interesse era trabalhar com fico, criando narrativas que fossem interessantes de serem lidas hoje.

    P ercebe-se, ento, que a matria histrica no ponto de partida para uma recons-truo do passado, mas para uma reflexo sobre o presente enquanto resultado de um continuum histrico, sempre a partir da fico. o facto histrico, ele foi um motivo inicial im-portante, mas a partir da a histria tem outros desdobra-mentos. e esses registos tm, por vezes, detalhes do quoti-

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    diano desses escravizados, dos modos de relacionamento entre eles, mas no tem muito sobre o imaginrio e a cul-tura desses escravizados, e isso tentei reconstituir a partir de pesquisas sobre os escravizados de origem banto, pelo menos para alguns personagens. outros j assimilaram a cultura branca, crist, e isso tambm acontecia, claro, at porque isso permitia acesso a outras condies de vida nessa sociedade, e por isso a personagem que usa o cruci-fixo, numa das histrias, vive e trabalha na casa grande.

    C aracterstica comum de um certo discurso sobre o perodo colonial e da escravatura, sobretudo por parte de alguma historiogra-fia portuguesa, a ideia se uma certa su-avidade da ao dos colonizadores, como se a dominao portuguesa tivesse sido mais branda do que outras. e do lado brasileiro, como esse discurso? no Brasil existe o mito da democracia racial, de harmonia so-cial, que algo que no acontece na prtica. na prtica a gente tem grupos muito bem marcados, socialmente fa-lando, e a populao negra est na base dessa pirmide. a grande maioria dos mais pobres so negros e pouqussi-mos estaro entre os mais ricos. apesar disso, a sociedade

    brasileira ainda continua a alimentar uma ideia de demo-cracia racial e social. no Encruzilhada, a ltima histria sobre um homem negro, segurana de uma universidade, que tinha um carro de boa marca. Foi fazer uma compra com a famlia num supermercado Carrefour e ficou no es-tacionamento, ao lado do carro, enquanto a famlia ia s compras. apareceu um grupo de homens e prenderam--no, acusando-o de estar a roubar o prprio carro. Prende-ram-no num quartinho, bateram-lhe, ficou sem uma srie de dentes. ouvi o relato dele e resolvi transform-lo numa histria. o que acontece que falar desses casos de discri-minao e racismo tentar ir contra essa lgica que tenta contar uma histria do Brasil que no factual. Claro que h racismo, e muito mais eficiente do que noutras socieda-des, porque sempre aconteceu de uma forma velada, sem ser explicitado, e ento, permanece. a proposta era falar um pouco sobre isso no Encruzilhada, e tambm no Cumbe, sobre esse conflito no Brasil colonial, e falar no de uma posio de aceitao, mas mostrando como esse sistema se alimentava da violncia e da imposio. Para dSalete, a reflexo sobre o perodo colonial e a escravatura no ape-nas algo que se impe enquanto viso crtica da Histria, mas antes como uma urgncia relativamente ao presente.

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    trabalhei um tempo num museu que h em So Paulo, o museu afroBrasil, dedicado cultura negra. num dos es-paos do museu, fala-se sobre escravido e h um conjunto grande de objetos de castigo. uma das alas mais visitadas do museu. mas o que que esses objetos de castigo tinham que me parece interessante para refletir? as escolas que visitam o museu vo sempre muito focadas em cristalizar aquela viso do negro como vtima, como aquele que so-freu, e olha o que eles faziam na poca, deixando as coisas no passado e no no presente. mas esses objetos mostram que em todos os engenhos eles existiam, e existiam porque tinha resistncia, tinha fuga, tinha gente que no se aco-modava quele sistema. o que eu quis com Cumbe foi no falar dos escravos como vtimas, aqueles que foram sub-jugados, mas como aqueles que tambm resistiram, que lutaram.

    S e a fico no tem de alimentar-se de uma ideia de Histria enquanto reproduo de factos documentais, tambm no tem por que demitir-se do papel que pode assumir nesse olhar para o passado a partir, inevita-velmente, do presente que habitamos. Como a gente tem

    esses relatos histricos somente a partir do poder colonial, acho que a partir da fico onde a gente consegue cons-truir uma outra perspetiva sobre aquele momento hist-rico. a est a importncia da fico. a partir dela a gente tenta reconstruir uma leitura, a partir do presente, sobre o que pode ter acontecido. Sempre tento pensar nas minhas histrias no como uma viso definitiva sobre o assunto, mas como uma viso mais, uma perspetiva sobre este ou aquele assunto. a fico tem um papel fundamental, sem ela no h como a gente criar esse tipo de perspetiva. e s com a fico a gente tenta criar isso de uma forma em que voc lide com sentimentos, com empatia, com outras habi-lidades, outros recursos para alm da questo mais lgica, quantitativa, sobre determinado facto. Se h lio a tirar de Cumbe, essa antes de qualquer outra.

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    Entre finais de 60 e incios de 70, a hegemonia norte-americana na distribuio dos seus filmes na Europa, merc do Plano Marshall, foi posta em causa por um movimento cinematogrfico conhecido atualmente como Eurocult,

    que define a vaga de filmes exploitation europeia, oriundos principalmente do eixo Itlia-Frana-Espanha. H muitos

    livros e documentrios dedicados a este fenmeno e sua influncia no cinema contemporneo, principalmente no

    norte-americano. Este um dos casos em que Portugal no foi um pas neutro, teve tambm uma breve mas singular

    vaga de filmes exploitation, em coprodues ou mesmo em produes 100% made in Portugal.

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    Para Quem no eSt Fami-liarizado com a nomenclatura, a exploitation abrange todos os gneros cinematogrficos e aquilo que a distingue essencialmente a preferncia por uma aproximao mais sensacionalista, assente no enfse dado ao sexo e violncia gratuitos. em muitos casos, o sucesso do filme no dependia da qualidade do seu contedo mas da forma como se desta-cava o assunto a ser explorado. apesar de colocar o mrito artstico em segundo plano, a exploitation mudou completa-mente a maneira de Hollywood fazer filmes, principalmente atravs de uma das suas mais importantes figuras, o produ-tor independente roger Corman. a sua autobiografia, inti-tulada How I Made a Hundred Movies in Hollywood and Never Lost a Dime, demonstra como este produtor conseguiu criar uma unidade de produo e distribuio muito eficiente que ps trmino ao j decadente sistema de estdios. o que dis-tinguia os seus filmes exploitation era a sua atualidade e rele-vncia, a sua aprimorada tcnica de fabrico rpido permitia a Corman imbu-los de uma conscincia social rara neste tipo de produtos. a sua preponderncia esfumou-se quan-

    do Hollywood se rendeu e comeou a produzir filmes ex-ploitation com grandes oramentos como Jaws ou Star Wars, impossibilitando a concorrncia dos produtores indepen-dentes.

    essa contaminao do cinema pela sua poca histrica tambm se verificou na europa. o clima poltico e social dos anos 60 mudou tambm o prprio gosto do pblico que agora procurava filmes mais adultos e mais engajados. os pioneiros desta atitude na europa foram os italianos, acaba-dos de sair do neorrealismo, a corrente esttica que predo-minou naquele pas a seguir 2. Guerra mundial. a itlia conseguiu criar uma indstria que evoluiu atravs da cpia de modelos norte-americanos; superando-os, numa primei-ra fase, e, a seguir, obrigando Hollywood a provar do seu prprio veneno, ou seja, passando os estdios a copiar o modelo europeu, acabando por suplant-lo em condies tcnicas. durante uma dcada e meia, a europa dominou o mercado exploitation principalmente no campo do inimigo. os eua tinham algo que no existia na europa, isto , um circuito prprio de difuso destes filmes os drive-ins e as grindhouses que permitia aos ttulos europeus, mesmo fa-lhando nos pases de origem, recuperar sempre os seus lu-cros nestes circuitos.

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    Um doS aSPetoS a deStaCar da exploitation europeia o seu esprito multinacional. antes de haver uma unio europeia, estes filmes eram produzidos atravs da participao de vrios pases com diferentes posturas sociais, polticas e at morais. desde a sua idealizao, eram sempre pensados no sentido de chegarem ao maior nmero possvel de espectadores. Por isso, mais do que espanhis, italianos ou franceses, estes filmes eram europeus. A distribuio internacional foi essencial para o su-cesso do Eurocult, sendo hoje em dia muito complicado organizar uma exibio pblica destes ttulos pela dificuldade em descobrir os detentores dos direitos. esta caracterstica surgiu da neces-sidade de tornar este cinema o mais apetecvel possvel para o espetro mais amplo de pblico, de forma a evitar qualquer risco financeiro e garantir (pelo menos) o retorno do inves-timento. um filme Eurocult raramente uma obra acabada e definitiva verses diferentes, com ttulos diferentes, em vrias lnguas, variando os nveis de violncia, nudez e sexu-alidade, tendo em ateno o pas em que exibido. a maioria destes filmes j estavam vendidos antes mesmo de comea-

    rem as rodagens, bastava anunciar-se o tema a ser explorado, juntando-lhe um poster sugestivo e o Eurocult consolidava-se como um fenmeno de pr-vendas. outra caracterstica es-sencial era a dobragem: atores de diferentes nacionalidades cruzavam-se nestes filmes e as cenas eram gravadas original-mente em 4 ou 5 lnguas diferentes, homogeneizadas em es-tdio posteriormente.

    apesar da produo de filmes exploitation em pases como alemanha, Sucia, Blgica ou at Grcia, foi o triunvirato it-lia-Frana-espanha que liderou o contrarrelgio do Eurocult. Foi de itlia que mais sub-gneros emergiram da sua espe-tacular produo em srie destes ttulos durante os anos 60 e 70. o mais abrangente e aquele que conseguiu adquirir um estatuto de cinema srio, de que nunca gozou no seu tem-po, foi o Western Spaghetti com atores norte-americanos como Clint eastwood ou Lee van Cleef em duelos filmados nos de-sertos de almera em espanha. outro sub-gnero clssico o Giallo que viria a tornar-se a maior influncia no slasher film norte-americano. outros, como os zombies no seguimento de Night of the Living Dead ou os infames mondo canibal persegui-dos pela censura de vrios pases deram a conhecer nomes como mario Bava, Sergio Leone, dario argento, umberto Lenzi, Lucio Fulci ou ruggero deodato e marcaram o ltimo

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    perodo de relevncia internacional do cinema transalpino. em Frana, a exploitation concentrou-se mais no erotismo,

    principalmente depois do estrondoso sucesso do filme Ema-nuelle que elevou a holandesa Sylvia Kristel ao estatuto de deusa do erotismo europeu. o nico nome que se especiali-zou neste tipo de filmes foi o de jean rollin atravs da sua mas-siva produo de ttulos que cruzavam o ertico com o terror, mais especificamente no campo das vampiras lsbicas. em es-panha, cuja produo se desenvolveu debaixo do opressivo re-gime de Franco, os filmes tinham impregnado um forte cunho anti-fascista. os trs mais importantes autores espanhis fo-ram jesus Franco, jacinto molina (mais conhecido pelo nome artstico Paul naschy) e amando de ossorio. a sua produo criou uma linhagem que permitiu nos anos 80 o aparecimento de realizadores como Pedro almodvar ou alex de la iglsia que projetaram o cinema espanhol alm-fronteiras. e aqui que comea a breve histria da exploitation lusitana. Como vamos ver mais frente, estes trs cineastas trabalharam em Portugal, e de espanha que se foi buscar a inspirao e o know how tcnico para dar vida possibilidade de criar uma ponte em Portugal para o Eurocult.

    Correr com a sala bala: a lisboa dos espies

    No foi um aviso, foi uma ordem. No gosto de ordens. Fim de Semana com a MorteLeva-o para a cmara de gs. uma morte lenta, mas asseada. 7 Balas para Selma

    AnteS de aVanarmoS para os filmes exploitation produzidos em Portugal, preciso fazer uma ressalva. trata-se de ttulos que nun-ca foram alvo de estudo, nunca existiram em edies VHS ou dVd, e depois da estreia em sala e de uma hipottica tourne pelas ex-colnias nunca mais foram vistos. no h artigos para se consultar na internet, no esto disponveis para download, trata-se de fil-mes mortos e enterrados nos cofres do arquivo nacional de imagens em movimento. importante referir-se isto porque abre um campo especulativo em redor destes filmes. parte de uma anlise crtica contempornea e de uns artigos em publi-

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    caes da poca, pouca informao adicional existe para com-pletar esta crnica. Por isso, no se sabe onde comeou exata-mente a exploitation no cinema portugus apesar de podermos afirmar que existe um pioneiro no tempo do mudo. trata-se de reinaldo Ferreira, vulgo reprter X, ele prprio uma perso-nagem exploitation. Filmes como Txi n. 9297 ou Rita ou Rito?..., ambos de 1927, so obras cuja principal inteno chocar o es-pectador explorando temas sensacionalistas como a toxicode-pendncia, a homossexualidade ou o travestismo.

    DePoiS Vem um LonGo Hiato que termina nos anos 60, uma poca em que as inmeras salas de cinema da capital albergavam todo o tipo de filmes, desde os grandes estdios que tinham as suas prprias salas at aos cinemas de bairro onde imperavam os filmes de gnero de baixo ora-mento, isto , exploitation. est por fazer uma histria da exibio de cinema estrangeiro em Portugal e dos hbitos de consumo nes-ta altura, estudo que traria muitas surpresas sobre o tema.

    durante um breve perodo o mundo inteiro ficou louco por espies. o responsvel foi obviamente o mais famoso de todos, james Bond, cuja notoriedade foi consolidada ao terceiro filme

    da srie, Goldfinger, de 1964. os clones gerados a partir do perso-nagem encarnado por Sean Connery estavam por toda a parte. todos seguiam as diretrizes estabelecidas por ian Fleming: o su-per-agente cool, sempre elegante, irresistvel para as mulheres, perseguido por gnios do mal enquanto bebia cocktails exticos nos melhores bares. Para ter uma ideia do que foi a febre dos agentes secretos, pensemos no que aconteceu ao filme de gan-gsters depois de Pulp Fiction. Portugal no foi exceo e, em 1967, estrearam duas produes totalmente nacionais e uma copro-duo. Comecemos por esta ltima, cujo responsvel ir ter um grande destaque neste artigo. trata-se do nico e verdadeiro gal do cinema nacional, antnio Vilar (1912-1994), cujo auge da car-reira em territrio luso deu-se com Cames, de Leito de Barros. o declnio da produo cinematogrfica em Portugal, levou-o a prosseguir carreira por outros mercados, nomeadamente espa-nha, onde se tornou num gal do cinema espanhol fazendo a transio de Vilar para Villar. em espanha, protagonizou ttu-los como Don Juan ou El Judas, tornando-se por direito prprio num membro do star system espanhol e no mais internacional dos atores portugueses da poca.

    no se conhecem as suas verdadeiras intenes mas Vilar, j a caminho dos 60 anos, resolveu usar a sua popularidade para promover coprodues entre os dois pases vizinhos no sentido de desenvolver algum tipo de produo industrial em

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    Portugal. a primeira tentativa chamou-se Fim de Semana com a Morte, onde encontramos tcnicos e artistas de 5 nacionali-dades. realizado pelo espanhol julio Coll e interpretado, para alm de Vilar, pelo alemo Peter van Heyck (que havia trabalha-do com Fritz Lang ou Henri-Georges Clouzot) e a italiana Let-cia roman com experincia em Hollywood. a sinopse oficial: um cientista, que descobriu a frmula dum ao poderosssi-mo, raptado por um grupo de espies a soldo de potncias es-trangeiras. os cartazes prometiam Violncia e Suspense de cortar a respirao e anunciavam a estreia simultnea em 42 salas da alemanha ocidental. o filme seria dobrado em 6 ln-guas e por isso mesmo, teve (pelo menos) 6 ttulos diferentes: em espanha chamou-se Comando de Assassinos, na alemanha As Sete Pistolas do Professor Z, nos eua Os Espies esto entre Ns e em itlia Sete Assassinos em busca do Professor Z.

    apesar do aparato, o filme no foi um sucesso em Portugal e muito menos na alemanha (alis, difcil confirmar se o filme estreou efetivamente em 42 salas). Quanto a Fim de Semana com a Morte, para alm da boa fotografia eastmanColor, pouco mais h a destacar sem ser algumas sequncias mirabolantes que os espectadores locais devem ter estranhado: Peter van Heyck a fa-zer pees com um descapotvel enquanto pratica tiro ao alvo no parque de estacionamento do Hotel do Guincho ou o apotetico final no qual uma perseguio de carros termina em exploso no

    tabuleiro da Ponte 25 de abril ainda inacabada (ento Ponte Sa-lazar para ser mais exato). Letcia roman a loira que vai procu-rando motivos para se poder despir, enquanto Vilar e van Heyck (os dois sex-symbols de meia-idade) formam em torno da jovem um bizarro tringulo amoroso. aquilo que verdadeiramente explorado neste filme a cidade de Lisboa e os seus locais mais pitorescos como o estoril ou a Boca do inferno, algo que a crti-ca nacional teve problemas em engolir. Faltava o hbito de ver tais peripcias naqueles stios, o que dificultava a suspenso da descrena, indispensvel para o desfrute deste tipo de filmes. mas a aposta era tambm o mercado internacional, at porque Lisboa era altura uma capital secreta e quase extica espera de ser descoberta pelo Cinema.

    No me Smo mS, e Streou outro filme de espies desta vez 100% portugus, a comdia Ope-rao Dinamite. Comparando este filme com o anterior, compreen-de-se imediatamente que era im-possvel competir com o produto estrangeiro. realizado por Pedro martins, este filme um veculo para algumas vedetas da re-vista como nicolau Breyner, Francisco nicholson ou arman-

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    F i m d e S e m a n a c o m a M o r t e

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    do Cortez. apesar de ter por fundo uma intriga de espiona-gem internacional, o humor nunca se constri a partir dessas caractersticas do gnero mas antes de um anedotrio nacional mais prximo do humor praticado no Parque mayer. Breyner desempenha um agente secreto norte-americano chamado max que vem procura de um dossier secreto e impedir que caia nas mos erradas. junte-se a isto vrias mulheres bonitas em trajes menores, um humor algo boal e alguns curiosos n-meros musicais a cargo do duo ouro negro e Simone de oli-veira. Francisco nicholson escreveu uma crnica num jornal a propsito da estreia quase simultnea de Operao Dinamite e Fim de Semana com a Morte no qual se questiona: mas ser que a mais bela obra-prima do cinema mundial poderia salvar o nosso cinema? ou ser que o nosso cinema s se poderia salvar atravs de uma indstria bem estruturada que assegure uma produo contnua e lucrativa? eis a questo.

    Para fechar o captulo dos agentes secretos, est o melhor destes filmes. trata-se de 7 Balas para Selma, de antnio de ma-cedo. a estranheza deste projeto prende-se com o facto de o seu autor ter sido um dos nomes charneira do Cinema novo portu-gus, juntamente com Paulo rocha e Fernando Lopes. a sua 1. longa-metragem, Domingo Tarde, foi produzida por antnio da Cunha telles e estreada no Festival de Veneza. a falta de pblico para estes filmes fundadores (falta referir Verdes Anos e Belar-

    mino) colocou Cunha telles numa situao financeira delicada e, segundo rezam as crnicas da poca, encomendou a macedo um filme comercial para evitar o colapso da sua produtora. este aceitou e props um filme de aventuras baseado em seriados que via em criana. o filme narra as aventuras do agente secreto Srgio (Sinde Filipe) pela cidade de Lisboa no encalo da sua co-lega Selma (Florbela Queirs) que, quando encarna o seu alter--ego Snia, empresta a sua voz a nmeros musicais com ttulos sugestivos como Correr com a Sala Bala com letra escrita pelo poeta alexandre oneill e msica do Quinteto acadmi-co. desta vez, em vez do habitual eastmancolor foi usado outro processo cromtico muito complexo denominado orwocolor a cargo do diretor de fotografia, accio de almeida.

    AQuiLo Que diStinGue 7 Balas para Selma dos seus an-tecessores uma auto-ironia e uma experimentao com as formas que o transforma numa comdia de espies sui generis. macedo diverte-se a imaginar sequncias de ao em stios pblicos de Lisboa como o elevador da Glria, o Caste-lo de So jorge, e pe os seus espies internacionais a darem co-

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    E X P L O I T A T I O N M A D E I N P O R T U G A L P A R T E 1

    mida aos patos num jardim pblico. Se lhe juntarmos uma luta entre uma ventoinha ligada corrente e uma coleo de discos de vinil, a tortura do ricochete ou do beijo no canto da boca, estamos perante algo verdadeiramente inclassificvel. 7 Balas para Sel-ma visto hoje parece uma resposta a Fim de Semana com a Mor-te pela forma como igualmente explora a cidade no contexto de um filme de aventuras. os cenrios repetem-se nos dois filmes, a nica diferena que o estatuto de Fim de Semana com a Morte permite-lhe aceder a filmagens no tabuleiro, j 7 Balas para Sel-ma tem de se contentar em ter a ponte como cenrio de fundo de algumas lutas. trata-se apenas de uma coincidncia porque am-bos os filmes foram produzidos em 1967, com oramentos muito dspares e uma inexperincia total em cinema de ao por parte da produo de macedo, o que conduziu a peripcias dignas da melhor exploitation. o realizador descreve-as em artigos publica-dos em revistas de cinema: tnhamos material de guerra que dava para um pequeno golpe na amrica Latina, fornecido por um quartel da outra banda, e os atores divertiam-se a matar-se uns aos outros com plvora seca, que, julgvamos ns, era ab-solutamente inofensiva. () Pum!! e o figurante ia ficando sem olhos, a cara toda a escorrer sangue () a vtima era retirada em braos do plateau, pressa para no empatar a cena seguinte.

    MaS o FiLme Foi um FLoP, Cunha telles faliu mesmo antes de terminadas as fil-magens e a produtora que terminou o filme exigiu u