Blimunda # 37 - junho de 2015

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José Saramago tinha uma definição muito simples da morte, para ele morrer era não estar. Neste mês de junho completam-se cinco anos desde que lhe dissemos adeus. Mas continuamos a senti-lo tão próximo que, para nós, José Saramago ainda está. É a essa presença que este número da Blimunda dedica grande parte das suas páginas; não só para recordar José Saramago e falar da falta que nos faz, mas também com o intuito de contar como a sua obra continua a ser lida e reinterpretada. Entre os destaques do dossier estão as notas preparatórias para o Ensaio sobre a Lucidez, nunca antes publicadas, os textos do professor Carlos Reis e do jornalista Fernando Berlín, além de depoimentos de vários dos tradutores que trabalharam sobre os textos de José Saramago. Para além destas páginas, a Blimunda de junho traz, para além das suas secções habituais, uma reportagem sobre o Festival Literário da Gardunha e um relato sobre um projeto que coloca crianças a fazer os seus próprios livros infantis.Passados cinco anos da morte de José Saramago entregamos aos leitores, neste número do seu terceiro aniversário, uma Blimunda feita de saudade mas também de alegria. José Saramago está, e estando o nosso trabalho continua a fazer sentido.

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  • M E N S A L N . 3 7 J U N H O 2 0 1 5 F U N DA O J O S S A R A M A G O

    BLIMUNDA NOS 5 ANOS DO

    INDITO: NOTAS PARA ENSAIO SOBRE A LUCIDEZCARLOS REIS/FERNANDO BERLN/A PALAVRA AOS TRADUTORESFestival Literrio da Gardunha/Brincar a srio

    ADEUS A JOS SARAMAGO

  • POR ENQUANTO SAIO, AINDA TENHO UNS OITO MESES PARA

    CIRCULAR VONTADE, EXPLICOU FERNANDO PESSOA, OITO ME-

    SES PORQU, PERGUNTOU RICARDO REIS, E FERNANDO PESSOA

    ESCLARECEU A INFORMAO, CONTAS CERTAS, NO GERAL E EM

    MDIA, SO NOVE MESES, TANTOS QUANTOS OS QUE AND-

    MOS NA BARRIGA DAS NOSSAS MES, ACHO QUE POR UMA

    QUESTO DE EQUILBRIO, ANTES DE NASCERMOS AINDA NO

    NOS PODEM VER MAS TODOS OS DIAS PENSAM EM NS, DE-

    POIS DE MORRERMOS DEIXAM DE PODER VER-NOS E TODOS OS

    DIAS NOS VO ESQUECENDO UM POUCO, SALVO CASOS EXCEP-

    CIONAIS NOVE MESES QUANTO BASTA PARA O TOTAL OLVIDO.

    JOS SARAMAGO, IN O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS

  • 0422

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    3417Uma mo cheia

    de saudades Editorial

    Os construtores da Literatura

    UniversalRicardo Viel

    Escutem, Jos Saramago

    continua a falarHarrie Lemmens

    O escritor como mestre: na morte de Jos Saramago

    Carlos Reis

    Brincar a srioAndreia Brites

    Imaginando uma serra e a gente

    que a habitaSara Figueiredo Costa

    Leiturasdo ms

    Sara Figueiredo CostaRicardo Viel

    Chorando Saramago, sem

    chorarFernando Berlin

    DicionrioAna Pessoa

    Leonor Riscado

    Ensaio sobre a Lucidez:

    as notas do autor

    Espelho MeuAndreia Brites

    Notas de Rodap

    Andreia Brites

    Contar os anos pelos dedos e encontrar uma

    mo cheia

    EstanteAndreia Brites

    Sara Figueiredo Costa

    Agenda

    Pilar, tens um trabalho

    Entrevista a Pilar del Ro

    A Infinita viagem ao lado de Jos

    SaramagoRicardo Viel

  • Aquando da publicao dos Cadernos de Lanzarote Jos Saramago pediu que na contra capa de todos os volumes estivesse a frase: Contar os dias pelos dedos e encontrar a mo cheia. Falava de uma vida repleta, como se lia nesses dirios escritos na ilha que escolheu como casa, e como se veria no documentrio Jos e Pilar. Passados cinco anos sobre a sua morte, a Fundao Jos Saramago parte dessa frase para, com uma pequena adaptao, us-la como mote para estes dias: Contar os anos pelos dedos e encontrar a mo cheia. Porque nestes cinco anos foram muitas as atividades realizadas em Portugal e pelo mundo fora a partir das palavras e das ideias que Jos Saramago nos deixou, a comear pelo publicao de dois romances inditos, Claraboia e

    Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas, alm de conferncias e livros que recuperam palavras ditas por ou sobre o autor de Todos os Nomes. Tambm surgiram dezenas de obras de teatro e de cinema, msicas, ensaios e trabalhos acadmicos, sem contar as muitas homenagens que se fizeram ao Prmio Nobel de Literatura, e as incontveis iniciativas espontneas que acontecem em escolas, universidades, bibliotecas dos quatro cantos do mundo. Jos Saramago continua a falar com os seus leitores. No final deste ms dezenas de pensadores de vrias partes do globo reunir-se-o no Mxico para debater uma ideia de Jos Saramago e redigir uma Declarao Universal dos Deveres Humanos a ser entregue s Naes Unidas. Em Portugal prepara-se mais uma adaptao teatral de uma obra de Jos Saramago. Na Itlia, as palavras do escritor sero

    novamente transformadas em pera. E no Brasil j foram dados os primeiros passos para que se faa uma exposio sobre a obra do Nobel portugus no Museu da Lngua Portuguesa. So apenas algumas das iniciativas que sero levadas a cabo em breve. A voz de Jos Saramago continua a ser escutada. Alguns meses antes de morrer, o escritor disse numa entrevista: A morte uma coisa lixada [...] no s porque nos retira da vida, ou nos empurra brutalmente para fora da vida, que o mais correto, mas tambm porque tem muitssimas vezes outra consequncia: uma outra espcie de morte que se chama esquecimento. Se a primeira morte inevitvel, a segunda, o esquecimento, possvel de enfrentar. Jos Saramago deu-nos a receita quando disse que a nica defesa contra a morte o amor.

    Uma mo cheia de saudades

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  • 5Blimunda 37

    junho 2015

    DIRETOR

    Srgio Machado Letria

    EDIO E REDAO

    Andreia Brites

    Ricardo Viel

    Sara Figueiredo Costa

    REVISO

    Rita Pais

    DESIGN

    Jorge Silva/silvadesigners

    FOTOGRAFIAS

    Joo Francisco Vilhena (capa)

    Cu Guarda

    Marta Morgado

    Casa dos Bicos

    Rua dos Bacalhoeiros, 10

    1100-135 Lisboa Portugal

    [email protected]

    www.josesaramago.org

    N. registo na ERC 126 238

    Os textos assinados

    so da responsabilidade

    dos respetivos autores.

    Os contedos desta publicao

    podem ser reproduzidos

    ao abrigo da Licena

    Creative Commons

    Granea

    FUNDAO

    JOS SARAMAGO

    THE JOS

    SARAMAGO

    FOUNDATION

    CASA DOS

    BICOS

    ONDE ESTAMOS WHERE TO FIND USRua dos Bacalhoeiros, LisboaTel: ( 351) 218 802 [email protected]

    COMO CHEGAR

    GETTING HERE

    Metro Subway Terreiro do Pao

    (Linha azul Blue Line)

    Autocarros Buses 25E, 206, 210,

    711, 728, 735, 746, 759, 774,

    781, 782, 783, 794

    Segunda a Sbad

    o

    Monday to Satur

    day

    10 s 18 horas

    10 am to 6 pm

  • Estado IslmicoEscavar pela liberdadeNos territrios onde se trava a luta contra o avano do autoproclamado Estado Islmico, nas zonas da Sria e no Iraque que correspondem aos primrdios da civilizao como hoje a conhecemos, nem s as balas e os assassinatos brbaros marcam o compasso dos dias. Perto de uma das linhas da frente, um grupo de arquelogos procura descobrir, inventariar e, talvez, salvar os vestgios desse comeo de onde vimos. No Pblico de de 31 de Maio, Alexandra Lucas Coelho assina uma reportagem sobre essa outra luta, a de quem tenta resgatar a memria de entre os escombros anunciados pelos novos brbaros: Porque fi co do Califado, mais que imperialista, apocalptica, no basta arrasar para a frente, conquistar Roma, ser dono do mundo, como proclama o califa Abu Bakr al-Baghdadi. preciso arrasar para trs, destruir a histria que vai do sculo XXI

    ao primeiro islo e a histria anterior a ele at no haver histria, apagar rostos, fi guras, smbolos, templos, e portanto o comeo da escrita, da troca de bens, das cidades.Acompanhando os trabalhos da equipa de arquelogos que escava numa rea junto cidade de Sulaymanyiah, a jornalista do Pblico visita tambm uma das linhas da frente de combate, onde os peshmergas, combatentes curdos, tentam manter distncia o Estado Islmico: E nisto vo todas as tenses desta amlgama militar: curdos sunitas, rabes sunitas desmotivados, xiitas apoiados pelo Iro e fora area de Obama e aliados. Um caldeiro de ex-inimigos que agora tm um fi m em comum, derrubar o Estado Islmico, quando h dois anos, em alguns casos, estavam a ergu-lo, ao armarem rebeldes srios jihadistas contra Assad. H dois anos, nada era pior do que Assad, e hoje nada pior do que o Estado Islmico, esse Frankenstein gerado pela guerra civil dos dois lados de uma fronteira que j no existe,

    a que dividia Sria e Iraque. Se na Sria a guerra era contra Assad, e no Iraque entre sunitas e xiitas, hoje h um estado maior do que a Gr-Bretanha a meio dos dois pases, com uma capital em cada lado (na Sria, Raqqa, no Iraque, Mossul), e volta est tudo partido. No balano das intervenes e contra-intervenes estrangeiras desde 2003, dos Estados Unidos Rssia, da Arbia Saudita ao Iro, difcil imaginar pior.

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    Poesia SelvagemO jornal galego Diario de Ferrol entrevista o escritor Manuel Rivas a propsito do seu mais recente livro de poesia, Poemas de 21 gramos na bscula de Ohio. Com uma carreira literria longa onde sempre marcaram presena as tomadas de posio sobre temas da sociedade e da cultura galegas, Manuel Rivas fala sobre a Semana da Poesa Salvaxe, uma organizao comunitria que envolve poetas, associaes culturais e vrios

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    LEITURAS DO MS/ S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

    Palmira, Sria

  • outros agentes sediados no Ferrol, destacando o seu papel essencial na dinamizao e no reconhecimento da cultura da Galiza:Iniciativas como a Semana da Poesa Salvaxe son as que manteen o ecosistema literario. Son a primeira natureza da literatura e a que derrota a esas voces parvas que din que a literatura, e xa non digamos a galega, e en xeral a cultura, existen por estares subvencionada. Este e outros vxoos como espazos de resistencia e re-existencia, lugares de liberdade. Hai un termo marieiro axeitado, o almeiro, os lugares onde se xunta a vida, a cardume, a vida. O almeiro ademais remite a alma. Por contra est a marca do medo, un lugar sen peixes, esquilmado... A semana de Poesa Salvaxe e outras iniciativas as son un almeiro. Se non existisen o demais sera un gran museo de fsiles. Sendo acadmico, e anda que en modo algn contraditorio e operan en diferentes dimensins, para a vida das palabras

    mis importante que existan iniciativas do tipo da Semana da Poesa Salvaxe que exista unha Academia. Estou a falar dunha iniciativa excntrica, fra do centro do poder, da palabra ofi cial, do discurso, da base da literatura. Estou a falar de cando hai un incendio o primeiro en agromar son esas plantas silvestres que brotan a partir do polen ou da semente que transportan os paxaros. Necesitamos iso.

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    Novo blogPensar as artes performativasUm novo espao dedicado s artes cnicas surgiu recentemente na blogosfera. Sinais em Linha apresenta-se como uma plataforma de crtica e refl exo sobre artes performativas. O projeto nasce pela mo da APCT Associao Portuguesa de Crticos de Teatro e pelo CET Centro de Estudos de Teatro da Faculdade

    de Letras de Lisboa. O primeiro texto em linha dedicado ao espetculo Poemas Para Bocas Pequenas, de Margarida Mestre e Antnio-Pedro, levado cena no Maria Matos Teatro Municipal, no passado dia 23 de maio de 2015. Como se explica na apresentao de Sinais em Linha, os textos sero sempre assinados por crticos de teatro e/ou dana associados da APCT, investigadores do CET e/ou participantes nos Seminrios para Novos Crticos que a APCT vem promovendo desde 2010. Rui Pina Coelho, o crtico que assistiu ao espetculo na companhia dos fi lhos pequenos, diz o seguinte: Pleno de humor e inteligncia, Poemas para Bocas Pequenas habita precisamente o lugar declarado por Margarida Mestre na folha de sala: um local onde se cruza a beleza das coisas com a linguagem que as diz. Ns, c em casa, ainda andamos a falar deste espetculo .

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    LEITURAS DO MS/ S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

    Poemas Para Bocas Pequenas

  • Alex KatzO valor do tempoA propsito de uma exposio do pintor norte-americano Alex Katz em Nova Iorque, Antonio Muoz Molina dedica uma das suas ltimas crnicas do Babelia (El Pas) reflexo sobre a idade e sobre aquilo que o peso dos anos que passaram pode trazer obra de um artista. Diz o autor: En estos viejos tremendos hay una celebracin incondicional del mundo, no la amargura de estar cerca de dejarlo, la mezquindad de esos otros viejos dainos que reniegan de lo que ya no tienen o lo que van a perder y parece que preferiran que fuera destruido. En su silla de ruedas, con su mascarilla de oxgeno y los tubos en la nariz, John Huston se recreaba filmando un banquete de Nochebuena con todos los esplendores de un bodegn holands. A la luz de las lmparas de gas, los comensales tenan los ojos brillantes y los carrillos encendidos de gula. Mayor que John Huston cuando rodaba su ltima pelcula, tan viejo como es ahora Alex Katz, a los 87 aos, Verdi compuso su ltima

    pera, Falstaff, la ms jovial y probablemente la mejor, un fluir de msica tan resplandeciente como de Mozart o de Bach, un tumulto de peripecias tan

    desbordado como el de El hombre tranquilo de John Ford. Numa poca em que a juventude, a pele sem rugas e a despreocupao com o tempo ocupa tanto espao

    nos media, Muoz Molina confirma que ainda h espao para os mais velhos na nossa reflexo comum.

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    LEITURAS DO MS/ S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

  • 9Como todos os grandes escritores, Jaume Cabr parece ter uma predileo pelo tempo. E como s os grandes escritores, o autor catalo faz de cada pgina uma elegia a esse elemento impiedoso, alternando a melancolia com o apaziguamento. J em As Vozes do Rio Pamano havia uma reflexo sobre o modo como a histria tambm se faz de memrias deturpadas, s vezes propositadamente e com malcia revisionista, outras vezes atravs da inevitvel modulao que o tempo traz. Em Eu Confesso, essa reflexo torna-se mais focada na histria pessoal, crescendo medida que o narrador vai compondo a linha da sua biografia a partir de fragmentos, mais ordenados na infncia, mais obscuros medida que o tempo avana.Centrado na Barcelona franquista onde Adri vive a sua infncia, Eu Confesso atravessa as dcadas da biografia do seu narrador ao mesmo tempo que cruza outras eras e lugares, num gesto que convoca a histria da Europa para a pequena histria pessoal que aqui se conta. Desse gesto nasce a matria mais sensvel do

    romance, um modo de clarificar o lugar de cada um no tempo que lhe tocou viver, sabendo que esse tempo sempre herdeiro de outros e que tudo se relaciona, amarga e ternamente, ainda que teimemos - sobretudo se teimarmos - em imaginar a nossa curta histria como uma pequena redoma, logro narcisista ao qual difcil escapar. Cabr faz do passado matria narrativa privilegiada para declinar os equvocos da biografia, ao mesmo tempo que afirma que passado e futuro so fices to encantadoras como aquelas que podemos imaginar sobre a nossa histria. Falhanos emocionais, certezas desfeitas, enganos que aliceraram uma vida at ao momento em que se revelaram com estrondo. Apesar desse exerccio, Eu Confesso deve pouco ao pessimismo ou derrota enquanto modo de confirmar que nada vale a pena. Pelo contrrio, quanto mais o narrador de Cabr perde a memria, baralhando factos, pessoas e tempos, mais a sua histria revela o nervo e a genica de quem quer estar aqui, sabendo que no o far para sempre.

    Escritor com conscincia aguda do tempo, Cabr engendra um narrador que comea por recuar infncia com a leveza de quem vai contar mais uma histria sobre esse perodo to individual como reconhecvel colectivamente, para, medida que os anos passam e o exerccio biogrfico se adensa, revelar a demncia que se vai insinuando na memria e no quotidiano de quem narra. Que o faa recorrendo a uma mudana subtil na linguagem e no modo de a trabalhar, antes ainda de o leitor ter acesso a esse dado, entretanto incontornvel, da demncia, s confirma a enorme qualidade da escrita de Cabr, capaz de narrar atravs do modo como escreve, sem necessidade de apresentar os factos da narrativa arrumados uns a seguir aos outros ou de fingir outros artifcios. Eu Confesso ser a histria imaginada por Adri sobre a sua prpria vida, mas , antes e depois desse exerccio de biografia, um retrato possvel da histria de cada um de ns, se a soubssemos olhar com o mesmo desassombro e a mesma devoo.

    LEITURAS DO MS/ S A R A F I G U E I R E D O C O S T AEu ConfessoJaume CabrTinta da ChinaA biografia como arte do equvoco

  • A S B S

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    Volta: O Segredo do Vale das SombrasAndr Oliveira e Andr CaetanoPolvoPrimeiro volume de uma trilogia em banda desenhada que junta a escrita de um dos argumentistas mais prolficos da recente banda desenhada portuguesa e a arte de um autor que j se confirmou como valor seguro, Volta: Trilogia do Vale das Sombras uma narrativa marcada pelo suspense e pelo peso de uma ameaa que se insinua a cada prancha. A narrativa decorre numa aldeia remota e tem como protagonista um homem que ali aparece por acidente, acabando por descobrir-se mais ligado estranha comunidade alde do que poderia suspeitar.

    A Eterna DemandaPearl S. BuckElsinoreUma nova editora chega s livrarias portuguesas com a traduo (assinada por Margarida Periquito) do ltimo romance de Pearl S. Buck, indito at h dois anos. A autora trabalhou neste A Eterna Demanda nos ltimos anos antes de morrer, mas uma complicao entre herdeiros relativamente aos direitos e ao testamento impediu a publicao do livro. Regressando China que marcou a sua vida e ao tema da identidade e da dispora que ocupam vrios dos seus livros, Pearl S. Buck despediu-se da vida, em 1973, com um romance grandioso, que reflete sobre o que aproxima e afasta Ocidente e Oriente.

    A Cruzada das Crianas Afonso CruzAlfaguaraO gnero literrio no limita a implicao potica e poltica das obras de Afonso Cruz. Comprova-o o texto dramtico que agora se edita: uma apologia da mudana protagonizada por crianas. Sem o mnimo laivo de condescendncia, as protagonistas pem a nu, com a sua lgica paralela, os mecanismos perversos de funcionamento econmico, social e tico do mundo. No seu priplo provocam dilogos desconcertantes com um bibliotecrio, um bancrio, um mdico e um deputado, entre outros. O final ecoa, como um peso na conscincia.

    O Velho e o MarErnest HemingwayLivros do BrasilRecentemente comprada pela Porto Editora, a Livros do Brasil retoma a atividade com a reedio de vrios clssicos da literatura que h muito no se encontravam nas livrarias, todos inseridos na mtica coleo Dois Mundos. O Velho e o Mar um desses clssicos, com o bnus de ser traduzido e prefaciado por Jorge de Sena, mas digresso do pescador cubano pelos abismos e vitrias da coragem e da sua perda juntam-se outros ttulos novamente colocados a circular, tais como Msica Para Camalees, de Truman Capote, A Prola, de John Steinbeck, ou A Condio Humana, de Andr Malraux.

    S A R A F I G U E I R E D O C O S T A / A N D R E I A B R I T E S

    ESTANTE

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    Dicionrio das Palavras SonhadorasAntnio Mota Sebastio Peixoto (ilust.)AsaNeste dicionrio de palavras sonhadoras, trs por cada uma das letras do alfabeto, Antnio Mota faz imperar a metonmia: funo, forma, ao, movimento... Assim se amplia o sentido simblico de cada signo numa direo, que pode ser animizada, sensorial, narrativa. Cumpre o autor a promessa que relata na introduo: fazer sonhar, fazer sorrir. E desafiar o leitor a continuar. Tudo comea com uma motivao, uma promessa e uma viagem de comboio, com um efeito de sinceridade muito caro ao autor.

    Agora aqui Ningum Precisa de SiArnaldo AntunesCompanhia das LetrasCompositor e intrprete que tem assinado vrias letras de canes que asseguraram o seu lugar entre as muitas estrelas da constelao da Msica Popular Brasileira, regressa aos livros com um volume de poemas onde se cruzam as observaes sobre o quotidiano com a reflexo sobre a pequenez humana, sempre marcadas por uma espcie de espanto agradecido pelo privilgio de aqui andarmos, debaixo das estrelas e pisando o mesmo cho que as minsculas formigas. Para alm dos poemas escritos, h fotografias, curtas prosas poticas a alguma poesia visual.

    Afuera y Adentro Mnica Naranjo UribeLaguna Libros e Nmada EdicionesEm 2011, Mnica Naranjo Uribe recebeu uma bolsa atribuda pelo Programa Nacional de Estmulos do Ministrio da Cultura da Colmbia e do Fondo Nacional para la Cultura de las Artes, do Mxico. O resultado dessa bolsa surge agora sob a forma de livro, uma narrativa visual dedicada a Oaxaca e sua Plaza de Santo Domingo. Mais do que um retrato grfico do estado mexicano, Afuera y Adentro um percurso pelos quotidianos dos muitos que cruzam a praa central de Oaxaca e uma reflexo sobre o espao e o modo como interagimos com ele.

    Era Uma Vez EuJos FanhaBooksmileAs memrias de infncia so um caminho possvel para atenuar o abismo entre o pensamento do adulto que escreve e o da criana que l. Nesta reunio de pequenos momentos especiais, pelos desejos, frustraes e sentimentos que implicaram, o autor privilegia as suas emoes e juzos em detrimento de descries prolongadas. Assim garante o pacto de aproximao emptica e um efeito de veracidade que leva o leitor, infantil e adulto, s suas prprias experincias, sejam elas esconderijos, Natais, familiares mais ou menos esquisitos, brincadeiras, perdas e descobertas.

    ESTANTE

    S A R A F I G U E I R E D O C O S T A / A N D R E I A B R I T E S

  • A S B S

    TEXTOSBruno Vieira Amaral, Rui ngelo Arajo, Joana Brtholo,Cludia Clemente, Jonathan Franzen, Paulo Varela Gomes,Howard Jacobson, Pedro Mexia, Herta Mller,Jacinto Lucas Pires, Simon Schama, Gore VidalENSAIO FOTOGRFICOPatrcia Almeida e David-Alexandre GuniotILUSTRAES Catarina SobralCAPAJorge Colombo

    Falhar melhor. O temperamento de cada um ditarse h na expresso de Beckett pessimismo, optimismoou resignao. Ela de tal modo poderosa, que correo risco de vir a banalizar-se. Talvez j esteja beirado lugar-comum. D bons ttulos. [...] O desafio lanado aos autores que fazem este nmero est contido na brecha aberta entre o optimismo e o pessimismo, entre a ideia de falhar e a perspectivade aperfeioamento. Um salto sem rede. CVM

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  • A S B SA S B S

  • pelos dedose encontrara mo cheia

    Contar os anos

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    nos 5 anosda morte de

    Jos Saramago

    18 junho 2015,

  • VIAGEMJOS SARAMAGOAO LADO DE

    A INFINITARICAR

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  • C O N T A R O S A N O S P E L O S D E D O S E E N C O N T R A R A M O C H E I A

    H umas semanas, a propsito da passagem do primeiro aniversrio da morte de Gabriel Garca Mrquez, o escritor nicaraguense Sergio Ramrez citou, num artigo publicado no jornal espanhol El Pas, uma curiosa teoria sobre a morte dos escritores. Segundo ela, um escritor quando morre vai para o Purgatrio e ali permanece um razovel perodo de tem-po at que se decida o seu destino. Se, depois desse tempo, a sua obra continuar a ser lida e o seu nome recordado, ele (ou ela) ir para o Paraso, que a imortalidade literria; caso contrrio, se tiver cado no esquecimento, a sua sorte ser o Inferno. Sabemos que a morte uma chatice, claro, e no caso dos escritores uma dupla chatice. O escritor morre e a sua obra, geralmente, entra numa espcie de nuvem negra, disse Jos Saramago em 2008, numa en-trevista que Pilar del Ro lhe fez para o peridico portugus Expresso. Neste ms de junho completam-se cinco anos sobre a morte do escritor, que faleceu no dia 18 de junho de 2010, em Lanzarote, aos 87 anos. O que tem o futuro reservado para Jos Saramago?

    Saramago permanece uma forte referncia na cultura dos nossos dias. Os seus livros continuam a ser lidos e tradu-zidos no mundo todo, no se perdeu o interesse, diz o escritor e ensasta espanhol Fernando Gmez Aguilera, e autor de Jos Saramago: A Consistncias dos Sonhos Cronobiografia. Para ele, na teoria citada por Ramrez, o Nobel portugus estaria mais prximo da imortalidade do que do esquecimento. Os clssicos formam-se com a perspetiva do tempo. Saramago j um escritor de culto e alguns dos seus livros, como Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, O Evangelho Segundo Jesus Cristo e Ensaio sobre a Cegueira j so clssicos da literatura em lngua portuguesa, e alguns deles da litera-tura mundial.

    O facto de Jos Saramago continuar a ser traduzido, e a sua obra reeditada, um sintoma de que os seus escritos, pas-sados cinco anos sobre a sua morte, continuam a interessar os leitores. Mas mais do que lida, a sua obra est viva, em

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  • C O N T A R O S A N O S P E L O S D E D O S E E N C O N T R A R A M O C H E I A

    constante transformao, como se a partir das suas histrias e ideias brotassem muitas outras. Nos ltimos anos foram realizadas inmeras peas teatrais de companhias amadoras e profissionais, para espaos pequenos ou grandes lugares a partir de ttulos do escritor portugus. S neste ano de 2015, e at ao momento, grupos teatrais de Portugal, Grcia, Ho-landa e Estados Unidos fizeram subir aos palcos obras de Jos Saramago. As suas palavras tambm foram, nestes ltimos anos, transformadas em msica e cinema. Exposies fotogrficas, ensaios, teses e revistas acadmicas, livros publicados a partir de entrevistas e de conferncias e muitas outras iniciativas tm alimentado a memria do Nobel portugus de literatura.

    semelhana da obra literria, a sua constante interveno civil tambm no foi esque-cida. Nestes cinco anos, a voz de Jos Saramago foi recordada inmeras vezes. Quando em Espanha, em 2011, surgiu um movimento que, descontente com a maneira como a democracia caminhava, tomou as ruas, escutou-se: o que diria Jos Saramago sobre isso? Quando se viram imagens de centenas de pessoas navegando em frgeis balsas, arris-cando assim a vida em busca de um futuro melhor na Europa, a pergunta foi: o que diria Jos Saramago sobre isso? E sobre os 43 jovens desaparecidos no Mxico? E sobre o fim do embargo econmico dos Estados Unidos a Cuba? E sobre o novo papa? E sobre o ago-ra chamado Estado Islmico? A resposta um incmodo silncio. Jos Saramago j no est, j no escreve nem fala com aquela lucidez que impressionava. impossvel saber o que pensa, mas sim possvel recordar o que dizia, como pensava. O seu pensamento social e poltico, a sua conscincia crtica, as suas reflexes sobre a democracia, o poder financeiro no democrtico, os oligoplios, o empoderamento do cidado, tudo isso tem hoje mais vigncia do que nunca, diz Fernando Gmez Aguilera. Livros como Ensaio sobre a Lucidez ganham at um certo tom proftico, completa. Sinto muito a falta dele, sobretudo a convivncia, os encontros informais do dia a dia, a sua ausncia humana, mas tambm as suas reaes

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  • C O N T A R O S A N O S P E L O S D E D O S E E N C O N T R A R A M O C H E I A

    e critrios de anlise perante o que acontece no mundo, nestes tempos de violncia financeira e institucional, incerteza, agresses aos mais fracos, mau-estar e desumanizao. A sua voz ajudar-nos-ia a compreender e reagir, diz Aguilera.

    Nestes cinco anos Jos Saramago foi lembrado nos principais encontros literrios realizados por esse mundo fora. Em Washington, So Paulo, Guadalajara, Cidade do Mxico, Madrid, Porto, Sevilha, alm claro das suas Lisboa e Lanzarote, milhares de pessoas participaram em emocionantes sesses evocativas. Mas no s nos ambientes literrios e acadmicos a memria do escritor portugus foi alimentada. Tambm nas ruas, frases em paredes e em cartazes encabeando mani-festaes, as palavras de Jos Saramago continuam a ecoar, repetidamente revisitadas e reinterpretadas.

    N o ltimo captulo de Viagem a Portugal o escritor diz que a viagem no acaba nunca, so s os viajantes que acabam. E ainda assim, podem prolongar-se em memria, lembrana e em narrativa, acrescenta. O fim da viagem apenas o comeo doutra. preciso ver o que no foi visto, ver outra vez o que se viu j, ver na primavera o que se vira no vero, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caa, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui no estava. preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traar caminhos novos ao lado deles. preciso recomear a viagem. Sempre, escreveu Jos Saramago. O mesmo se pode dizer dos seus livros, que no se esgotam, que convidam a uma caminhada infinita. Vale a pena revisitar as suas histrias, viajar novamente ao lado das suas personagens, testemunhar novamente episdios e dilogos. O viajante j no est, mas os seus livros permanecem.

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  • LITERATURAUNIVERSAL

    OS CONSTRUTORESDA

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    T alvez por tambm ter sido tradutor. Talvez porque viu de muito perto o trabalho que a sua compa-nheira Pilar del Ro tinha para traduzir a sua obra. O facto que Jos Saramago valorizava, e mui-to, o ofcio daqueles que possibilitam que os seus livros sejam lidos em outros idiomas. Certa vez disse que os escritores faziam a literatura nacional e os tradutores a literatura universal. Tambm se pronunciou em favor de que esses profissionais, assim como os escritores, recebessem direitos de autor sobre a venda dos livros. Publicado em mais de 70 pases, Jos Saramago acumulou ao longo da vida dezenas de traduto-res. Com alguns deles a relao extrapolou a esfera profissional. o caso, por exemplo, de Pl Fe-renc, que trabalhou em onze ttulos do autor de A Caverna. Conheceram-se em 1982, quando o hngaro esteve em Portugal com uma bolsa de estudante. Nessa poca visitava alguns escritores portugueses em suas casas, os que conseguia conta-tar e que aceitavam receber-me. Assim foi com Jos Saramago, fiz-lhe uma entrevista para uma rdio hngara e tambm a publiquei num jornal. Em 1987 traduziria A Jangada de Pedra, o primeiro livro do Nobel portugus no qual trabalharia, e em 2013 Claraboia at agora o ltimo. Durante esses mais de 20 anos de trabalho viram-se vrias vezes e estabeleceram uma relao de quase amizade, como define Ferenc. Tinha um contato regular com Jos Saramago, inicialmente por correio e depois por e-mail: sempre que no texto dos romances surgia uma palavra ou frase em que eu tinha dificuldade perguntava-lhe e ele ajudava-me a encontrar uma interpretao correta. Mas o contedo das missivas tambm ia alm das questes de trabalho. Falvamos, em primeiro lugar, sobre questes da vida diria, poltica, questes estticas e aquelas questes do futuro da Humanidade que surgem nos seus romances a partir de O Evangelho segundo Jesus Cristo. H uma carta minha, na qual falo sobre as transformaes polticas na Hungria no incio da dcada de 1990, que Saramago publicou em um dos Cadernos de Lanzarote.

    A italiana Rita Desti acompanha Jos Saramago desde 1983, quando traduziu a quatro mos com Carmen Radulet o Memorial do Convento. Nesses muitos anos de convvio, em que praticamente traduziu a obra completa do portugus,

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    encontraram-se em Lisboa, em Lanzarote e tambm em diversas cidades de Itlia. Em todas estas ocasies eu no podia deixar de, brincando, agradecer a Jos por ter eu aprendido, ao traduzir os livros dele, no s a lngua portuguesa mas tambm a lngua italiana e, sobretudo, a pensar! Ele ria, recorda Desti. Para ela, o maior desafio ao traduzir o portugus foi procurar que a musicalidade do texto no se perdesse. A partir do segundo ou terceiro livro que eu traduzi, descobri que a melhor maneira para fazer uma reviso da traduo era ler o meu texto italiano em voz alta, e ouvir minha prpria voz. E continua a ser esse, tambm, o conselho que sempre dou aos leitores amigos que manifestam as suas dificuldades de ler textos to espessos e densos que no permitem a menor distrao na leitura.

    M argaret Jull Costa verteu para ingls 11 romances de Jos Saramago, sendo o primeiro Todos os Nomes e o ltimo Claraboia. Adoro-os todos, mas talvez porque fosse o primei-ro romance dele que traduzi, o meu favorito Todos os Nomes. Tambm porque a prosa to deliciosa, com as descries da chuva e da escurido, e porque o Senhor Jos como todos ns ftil, absurdo e corajoso. Tradutora tambm de Fernando Pessoa e Ea de Queiroz, Jull Costa encontrou no estilo de narrar de Jos Saramago algumas dificulda-des. As frases to largas, a escassa pontuao e os dilogos que formam parte daquelas frases foram uma dificuldade. Tambm gosta muito de trocadilhos e de provrbios, mas encontrar solues em ingls para tais problemas faz parte do prazer de traduzir, conta a premiada tradutora. Embora seja trabalho, traduzir tambm lhe traz prazer e a emociona. Para ser tradutor/a preciso desfrutar da leitura do texto original e desfrutar tambm da sua prpria lngua. Traduzir Saramago um prazer e um privilgio, acho que fiquei emo-cionada com cada um dos livros dele.

    Outro experiente tradutor que trabalhou sobre mais de uma dezena de ttulos de Jos Saramago o holands Harrie Lemmens. Talvez o mais complicado para mim tenha sido o Memorial do Convento, por ser o primeiro. Graas a Deus

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    sou catlico e conhecia muitas das coisas de que ele fala no livro. O facto de ter vivido em Lisboa em 1985 poca em que conheceu Jos Saramago e ser casado com uma portuguesa tambm o ajudaram na tarefa de traduzir. No costu-mo recorrer ao autor. Sei que h tradutores que o fazem. Eu tento resolver os problemas buscando uma equivalncia em holands, e tenho a sorte de ser casado com uma portuguesa, que me ajuda muito. Para Lemmens, at mais importante do que uma consulta pontual a possibilidade de conhecer o autor. Se ele estiver vivo, eu tento sempre conhec-lo, acho importante saber quem , escutar a sua voz. O escritor est dentro do livro e, conhecendo-o, tambm conheo um pouco o esprito dos seus livros, diz.

    A srvia Jasmina Nekovic tambm no tem o costume de recorrer ao autor da obra quan-do traduz. O trabalho do tradutor um trabalho criativo, um certo gnero de arte e, como tal, deve ser pessoal. Por isso, nunca pedi ajuda aos escritores que traduzi. A tra-duo era sempre para mim uma aventura, quase uma peregrinao, que nos leva por caminhos desconhecidos, ora planos e abertos, ora ngremes e sombrios, cheios de pe-rigos, obstculos, emboscadas e maravilhas. Este percurso fao-o sempre sozinha, por-que s assim posso ficar contente quando chegar ao fim. Mas tal como o colega holan-ds, quando teve a oportunidade de conhecer Jos Saramago, no a desperdiou. Foi em 2002, na Feira do Livro de Lisboa. Entrou na fila para os autgrafos e quando chegou a sua vez, disse-lhe: Boa tarde, eu sou a tradutora de Jos Saramago. Conta que o escritor tirou os culos, fitou-a, e com um olhar de curiosidade per-guntou que livro tinha traduzido e para que idioma. Ao ouvir que se tratava de O Ano da Morte de Ricardo Reis, disse-me: Parabns, teve muito trabalho. E eu respondi-lhe: sim, mas menos trabalho do que o senhor, recorda a tradutora.

    Na profisso h quase trs dcadas, a alem Marianne Gareis viu-se perante um obstculo complexo ao traduzir um dos sete ttulos de Jos Saramago: Para mim a maior dificuldade foi traduzir As Intermitncias da Morte, porque em ale-

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    mo o gnero gramatical da morte masculino. A soluo para o problema foi encontrada com a ajuda do autor. Encon-trei um truque, e curiosamente foi o prprio Saramago quem me levou a essa soluo. O romance contm um carta escrita pela morte em que deixa bem claro que ela no a Morte com maiscula, mas simplesmente morte. Tanto que assina: morte. Por isso decidi chamar a minha morte simplesmente de morte ou em alemo tod, como se fosse um nome prprio. Por exemplo: No prximo dia morte foi cidade. Assim foi possvel falar de ela, sua, etc., e criar uma morte feminina.

    J on Alonso, tradutor para o basco, tambm teve muito trabalho para traduzir a Histria do Cerco de Lis-boa. O facto de o euskera ser um idioma sem parentesco lingustico com as restantes lnguas existentes um desafio, explica. A questo fundamental que, sintaticamente, as frases em basco no seguem o padro Sujeito-Verbo-Predicado, seria sobretudo Sujeito-Objeto-Verbo. Alm disso, o basco funciona base de posposies (declinaes) e no preposies. O resultado prtico disso que muitas vezes eu me via obrigado a desmontar a frase original, estudar os seus elementos, traduzi-los e redistribu-los por outra ordem no idioma de chegada.No caso da eslovena Petrovska Miroslava a dificuldade ao traduzir no foi apenas tcnica, mas tam-bm emocional. Acho que a maior dificuldade que tive foi ao traduzir certas partes do Ensaio sobre a Cegueira, porque descreviam situaes realmente muito duras que a dada altura considerei at perversas. Lembro-me que comprei o livro em Lisboa e o li no avio. Foi to duro que tive que interromper a leitura, e por momentos at me interroguei sobre se o autor devia ter posto no romance cenas to brutais. Dez anos depois traduzi o livro, e na altura em que estava trabalhando nele ouvi na rdio que imigrantes albaneses em Itlia formavam grupos nas instalaes a que estavam confinados e ven-diam no mercado negro a comida que recebiam, organizavam a prostituio, assaltavam e roubavam. Ento compreendi a capacidade visionria de Jos Saramago. RV

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    Gostaria de ter traduzido o Ensaio sobre a Cegueira porque, alm de ser o seu livro que mais me faz recordar a Kafka (essa influncia que tanto se menciona ao citar Saramago), o livro que sempre me vem memria quando estou no meio de uma multido. Dos livros que conheo o que mais lucidamente define o que somos como espcie.Jon Alonso, tradutor para o basco

    O livro de Jos Saramago que tive mais gosto em traduzir foi As Intermitncias da Morte, porque uma das histrias de amor mais bonitas que conheo e porque o fim do romance o mais bonito que conheo!Marianne Gareis, tradutora para o alemo

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    A mais emocionada traduo que fiz foi a de O Evangelho segundo Jesus Cristo. Foi um trabalho rpido, trs meses em que convivi com o texto de Saramago, trabalhando 15 horas dirias quase num xtase. O texto de Saramago e da Sagrada Escritura que lia e usava constantemente faziam-me transbordar, e assim saiu um texto potico que tambm cativou o pblico leitor, tendo recebido este romance de Saramago muito elogios por essa imensa carga potica.Pl Ferenc, tradutor para o hngaro

    Para ser tradutor/a preciso desfrutar da leitura do texto original e de desfrutar tambm da sua prpria lngua. Traduzir Saramago um prazer e um privilgio, acho que fiquei emocionada com cada um dos seus livros.Margaret Jull Costa, tradutora para o ingls

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    A leitura dos livros de Jos Saramago no fcil, exige a participao ativa do leitor, mas a recompensa dessa leitura exigente a satisfao por ter obtido uma nova viso do homem, do mundo, do amor, da sociedade, da histria... Do ponto de vista da traduo a situao semelhante, mas acho que mais complicada, pois o tradutor tem a responsabilidade de transmitir a mensagem do autor aos leitores de uma lngua diferente, cuja perceo da realidade objetiva no necessariamente a da lngua portuguesa.Petrovska Miroslava, tradutora para o esloveno

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    O estilo de Jos Saramago no me difcil. Acho muito bonito essas frases longas e a sua maneira de pontuar. Para traduzir preciso apropriar-se do estilo do autor. Eu costumo dizer que traduzir inventar o que j foi inventado. o que eu procuro fazer quando traduzo. Harrie Lemmens, tradutor para o holands

    O livro de Jos Saramago que traduzi e que mais me emocionou foi Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas (publicado na Itlia pela Feltrinelli, com o ttulo de Alabarde Alabarde). Aquelas trintas pginas, que s deixam vislumbrar o que poderia ter sido um novo romance, deram-me o tamanho da sua ausncia. E a saudade que senti foi imensa.Rita Desti, tradutora para o italiano

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    O primeiro livro de Jos Saramago que traduzi, com grande prazer e dedicao, foi O Ano da Morte de Ricardo Reis. Optei por esta obra, no s porque se trata de um romance sobre Fernando Pessoa, cuja poesia j traduzira antes mas, alm disso, porque se trata de um romance sobre Lisboa, que deslumbra os leitores com a magia dessa cidade a ponto luz bordada.... O livro saiu em 1997, e at agora, teve cinco edies. Muitas pginas ainda sei de cor, alm de outras, que evito reler, porque me fazem sempre chorar. Mas este um choro por bem.Jasmina Nekovic, tradutora para o srvio

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  • TENS UMTRABALHO

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    C onheceram-se em 1986, em Lisboa, graas aos livros. Alguns meses depois a espanhola Pilar del Ro, leitora de Jos Saramago, transformar-se-ia em sua companheira. E passados dez anos seria promovida a tradutora, o que lhe trouxe, alm de muito trabalho, a possibilidade de acompa-nhar ainda mais de perto o processo de criao do autor de O Ano da Morte de Ricardo Reis livro que, como costuma contar, a levou a Lisboa para conhecer os lugares do romance e o homem que o havia escrito. Pilar del Ro, jornalista, tradutora e presidenta da Fundao Jos Saramago, conversou com a Blimunda sobre essa difcil e bela tarefa que a traduo. Gosto muito de traduzir, partilhar amores, dir no final da entrevista que pode ser lida a seguir:

    O seu primeiro contato com o idioma portugus foi a partir de Jos Saramago ou no? Lembra-se do primeiro livro que leu? Os primeiros livros que li em portugus, por recomendao de Jos, foram Agosto, de Rubem Fonseca, e Uma Famlia

    Inglesa, de Jlio Dinis. E o primeiro livro de Saramago?Foi o Levantado do Cho, que na altura em que li ainda no estava traduzido para espanhol. A primeira traduo que fez foi a de Todos os Nomes, no? Como e por que se decidiu que Pilar del Ro seria a tradu-tora de Jos Saramago?Porque Baslio Losada, que era quem o traduzia para o castelhano, anunciou na apresentao de Ensaio sobre a Cegueira

    que estava a ficar cego e que no voltaria a traduzir. Foi nesse momento que Jos me disse: Pilar, tens um trabalho. An-tes, j havia traduzido conferncias, artigos e correspondncias suas.

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    Costumava traduzir a obra enquanto Saramago a escrevia, o que penso que no algum muito habitual entre os tra-dutores. O que ganhava e o que perdia nesse processo?Ganhava sempre. Tinha a sorte de assistir de dentro ao processo criativo. Era emocionante. E quais eram as vantagens de ter o autor to perto no momento de traduzi-lo?A vantagem era essa: ter o autor ao lado. claro, isso intimidava-me e tirava-me liberdade. Eu ouvia a voz do autor e a

    msica do texto, e diante dessa sinfonia sentia-me pobre e pequena. Por sorte tambm era o suficientemente ousada para no ter um bloqueio de pnico.

    E medo, nunca teve? Sim, sempre me acompanha a sensao de no estar altura do autor. o drama, a tragdia dos tradutores.No teve nunca vontade de fazer como o revisor da Histria do Cerco de Lisboa e mudar o rumo de um relato? No! J disse que sou ousada, mas no a este ponto. Quando Jos escreveu a Histria do Cerco de Lisboa ele estava efabu-

    lando com a liberdade do escritor e partia de uma ideia to forte como a separao da Pennsula Ibrica da Europa. Que um revisor ou tradutor modifique um texto at ao ponto de colocar um no onde h um sim a situao impossvel que Jos Saramago necessitava para escrever as suas fices. Tive vontade, como imagino que todos os leitores tm, de dar um empurro numa personagem, ou puxar-lhe as orelhas, gritar-lhe, mas isso experincia de leitora, no de tradutora.

    Nunca sequer sugeriu mudanas enquanto acompanhava a evoluo do livro?O melhor tradutor o mais invisvel, mas tive duas intervenes na obra de Jos Saramago que conto com muito or-

    gulho. A primeira foi convenc-lo, quando escrevia Todos os Nomes, que sem luz eltrica um atendedor de chamadas no funciona. Para isso tive que demonstrar-lhe na prtica, cortando a luz da casa, e assim evitei que fosse publicado um erro no romance. A outra interveno foi na ltima palavra do livro A Caverna. Jos havia escrito bilhete. Quando viu que, ao traduzir, eu havia colocado entrada, ele trocou a palavra e ficou com a minha. E pronto, assim acaba minha influncia na obra literria de Jos Saramago.

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    As dedicatrias, Jos Saramago colocava-as no final ou no comeo da escrita do livro? E emocionava-se enquanto as traduzia? Ele colocava-as ao final. E sim, sentia pudor ao traduzi-las, mas jamais lhe pedi que fosse mais ou menos discreto, sim-

    plesmente agradecia, com a mesma emoo que ele mas entregava. Vinha sempre at ao meu escritrio, aproximava-se por trs enquanto eu traduzia o que me havia entregado antes, esperava em silncio o meu prprio silncio e... enfim, no digo mais. Duas pessoas diante de uma obra e uma vida compartilhadas.

    Dos livros que traduziu algum foi especialmente difcil? Porqu? Todos os Nomes foi o mais difcil, talvez por ser o primeiro e porque perdi um ficheiro com cerca de 80 pginas traduzidas

    e que me tinha dado muito trabalho fazer. Fiquei to deprimida que preferi fazer uma pausa, e viajei para visitar a minha me. Desfrutei de uns dias a seu lado, as ltimas frias que tivemos juntas. Precisei afastar-me do texto para no desistir. No regresso, decidi deixar para o final as pginas que havia perdido e continuei a traduo. E confesso que encontrei as mesmas dificuldades e dvidas de quando me propus traduzir aquelas pginas perdidas. No tinha aprendido nada.

    No teve vontade de traduzir os livros anteriores a Todos os Nomes? E os poemas, arriscar-se-ia? No, nunca quis nem quero traduzir obras j traduzidas, ainda que esteja consciente de que sero feitas outras tradu-

    es, comeando pelos ttulos de que me ocupei. E quanto a poesia, jamais me arriscaria, o meu atrevimento tem limites. Para traduzir poesia preciso ser poeta, acho.

    a tradutora de um s autor? Quis traduzir o Chico Buarque, mas ainda no era o seu momento em Espanha. E agora estou com um livro do Jos

    Lus Peixoto. E sim, j traduzi outros autores e autoras. Gosto muito de traduzir, partilhar amores.

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  • JOS SARAMAGOCONTINUAA FALAR

    ESCUTEM,HARRIELEMMENS

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    Texto de despedida publicado na edio holandesa de Caim

    N o dia 18 de junho de 2010 o tradutor Harrie Lemmens estava no carro, em Amesterdo, rumo a um encontro para falar sobre a obra de Jos Saramago quando recebeu a notcia da morte do escritor. Depois da conversa com leitores, Lemmens voltou a casa e decidiu escrever ao editor de Jos Saramago na Holanda para propor um posfcio ao romance que acabava de traduzir, Caim. Agora, e pela primeira vez, o texto de Harrie Lemmens publicado em portugus. no haver nada mais que contar, a frase final de Caim. Sim. No haver nada mais que contar. No neste livro, no em prximos livros. Jos Saramago, que jamais se calou perante nada ou perante nin-gum, calou-se agora para sempre. Teve de curvar-se perante a morte, ele que nunca se curvou perante ningum. Mas ficar imortal atravs da sua obra e sobretudo da srie dos seus catorze romances involuntariamente encerrada com este romance (apesar dos seus oitenta e sete anos, estava a comear um novo livro). Enumer-los como ir abrindo janelas uma a uma: Levantado do Cho, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra, Histria do Cerco de Lisboa, O Evangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a Cegueira, Todos os Nomes, A Caverna, O Homem Duplicado, Ensaio sobre a Lucidez, As Intermitncias da Morte, A Viagem do Elefante, Caim. Janelas que oferecem no s o panorama do mundo deste extraordinrio narrador, mas refletem tambm o mundo daqueles que leem os seus livros.

    J se disse e escreveu vezes sem conta que: ler Saramago escutar, j que ele se dirige diretamente ao leitor. Ao mesmo tempo que conta uma histria vai fazendo comentrios a essa histria. E, talvez o que mais importante, chega mesmo a interpelar o leitor. O que achas disto aqui? Ou: Isto no uma vergonha? Ou: Ests a ver o que acontece se Pre-venindo e elucidando, acusando e reprovando, explicando e informando. Mas exprimindo tambm emoo e condescen-

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    dncia, empatia e compaixo, paixo e poesia. Umas vezes com ironia, outras vezes com indignao, outras vezes ainda com humor ou extrema seriedade.

    B altasar e Blimunda, Ricardo Reis, Senhor Jos, Sara, Joana Carda, Cipriano Algor, Raimundo, a mulher do mdico e todas as outras personagens que povoam os seus romances transforma-ram-se em entes queridos tanto para os seus leitores como para os seus tradutores. Tal como os seres annimos, trabalhadores-escravos, explorados da Histria, a quem Saramago d nome no Memorial do Convento e todas as outras figuras reais, inventadas e mticas que desperta para a vida. E aqui no podemos esquecer naturalmente o pobre do elefante Salomo ou Solimo a quem obrigam a fazer uma penosa viagem atravs da Europa s porque os senhores podero-sos tm o hbito de trocar presentes por adulao ou para obter algum tipo de benefcio.As frases de Saramago, cordes de ouro incrustados de dilogos, autnticas pedras preciosas, ecoaro para sempre na

    nossa mente. So ondas que se espraiam eternamente pela areia, ora com violncia ou brandura, ora com fora destrutiva ou a suavidade de um rendilhado de espuma. Foi um desafio inventar novas frases capazes de exprimir a mesma coisa com a mesma fora e musicalidade com a noo de jamais conseguir igualar as originais.

    No, no haver novos livros, mas os existentes tm muito para contar. Escutem. Saramago continua a falar.

    T r a d u o d e A n a C a r v a l h o

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  • JOS SARAMAGO

    O ESCRITORCOMO MESTRE:NA MORTE DE

    CARLOS REIS

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    A s palavras que aqui vos trago so minhas e so de muitos. As palavras a que neste ato dou voz emocionada prolongam, por certo, o que incontveis leitores, amigos e admira-dores de um grande escritor portugus chamado Jos Saramago por todo o mundo tm sentido, desde que se apagou a chama de quem a deu a personagens, a versos e a gestos to humanos como s as fices sabem faz-los. No so, pois, palavras s minhas as que aqui digo. E sei bem que, falecendo em mim engenho para mais, no cabe nelas tudo quanto tem de ser dito num dia como este. Por isso, peo ajuda a um ttulo de Jos Saramago, para logo lembrar muito daquilo que o escritor nos deixa: De como a per-sonagem foi mestre e o autor seu aprendiz, anunciou Saramago em Estocolmo, no dia 7 de dezembro de 1998. Retomo a expresso de humildade e lucidez e, com a permisso do escritor sempre presente, reinvento-a: De como o escritor foi mestre e o leitor seu aprendiz.

    Assim . Temos sido, sempre seremos discpulos do homem escritor que um dia ajudou um av chamado Jernimo nas andanas de pastor, com ele cavou a terra do quintal, cortou a lenha para o lume, fez subir gua do poo comunitrio. esse o princpio de uma histria que verdadeiramente no termina hoje. Mas bem verdade que foi daquele comeo sin-gelo que Jos Saramago partiu para enfrentar um desafio de impossibilidades vrias que o trabalho, o talento e os acasos da vida modelaram num trajeto literrio que continua para alm deste dia e dos que depois viro.

    Muitos e longos caminhos foi preciso andar para que o quase estigma de quem andou descalo at aos 14 anos se vol-vesse num tal percurso literrio. a esse percurso e ao que dele recebemos que hoje, como eternos aprendizes do mestre inesquecvel, pagamos o tributo comovido de uma despedida tambm ela impossvel. Porque soube ser uma personali-dade em quem uma cultura se identifica, em quem uma literatura se ilustra e em quem um idioma se singulariza, Jos Saramago no parte ligero de equipaje, como o grande poeta que um dia se foi, tragicamente ignorado pela ingratido

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    dos homens. De Jos Saramago fica-nos um legado inestimvel e precioso, fruto do milagre que a literatura e as suas pa-lavras favoreceram: a gua que a criana de p descalo fazia subir do poo transmutou-se, fluiu no longo rio de muitos relatos e desaguou, sempre viva e sempre cristalina, nas histrias que o escritor nos contou, nos poemas que escreveu, no teatro que construiu. E assim, com Jos Saramago e de Jos Saramago recebemos a herana de uma memria longnqua e contudo para sempre presente: a das noites da infncia, cujo negrume s a magia do contador de histrias conseguia ras-gar. Disse-o Jos Saramago, sempre evocando o profundo saber do av Jernimo: Enquanto o sono no chegava, a noite povoava-se com as histrias e os casos que o meu av ia contando: lendas, aparies, assombros, episdios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansvel rumor de memrias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava (p. 12).

    D esse rumor de memrias viveu e viver a literatura de um grande escritor, acrescentando--se a ela uma aguda e inquieta autoconscincia do trabalho da escrita literria e da tica que a sustenta. Justamente: o primeiro romance em que Jos Saramago se fez romancista duradou-ro, Manual de Pintura e Caligrafia de seu nome, foi sobretudo uma tentativa em torno da escrita e da representao; antevia-se nele o que o escritor depois haveria de descobrir, de novo em contexto ficcional, e que assim se disse, nA Jangada de Pedra: Dificlimo ato o de escrever, responsabilidade das maiores. Jos Saramago aprendeu a ser escritor cultivando o dificlimo ato de escrever que de ou-tros herdou. Para que assim pudesse ser, muitas e singulares coisas aconteceram na histria pessoal de Jos Saramago, uma histria de impossibilidades outras, anteriores ainda s da fico. Foi ele quem o disse no discurso de Estocolmo, sem todavia tudo revelar. Disse da sua infncia, dos avs que o criaram, dos livros que leu e tambm de uma certa linhagem

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    familiar em que o escritor galardoado com o Prmio Nobel sempre se apoiou e reviu: Um av berbere, vindo do Norte de frica, um outro av pastor de porcos, uma av maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor no retrato que outra genealogia pode importar-me? a que melhor rvore me encostaria? (p. 16).

    A genealogia de Saramago no apenas a da famlia que o honra por ter sido ela quem foi, pois que quela veio juntar-se um outro movimento de descendncia, desenvolvida nos ramos de uma frondosa rvore literria. Expressa ou tacitamente, visivelmente ou de forma sinuosa, Jos Saramago e a sua literatura entroncam no Padre Antnio Vieira cul-tor da metfora, da parbola exemplar e da tensa dialtica argumentativa; em Montaig-ne e na vocao sentenciosa e reflexiva de quem ensaia para devassar o desconhecido; em Garrett e na sua inovadora lngua literria; em Raul Brando e no discurso que vai da narrativa intuio lrica e indagao especulativa; em todos estes e tambm, por diversas formas, em Cames, em Fernando Pessoa, em Almada Negreiros e em Kafka. Em dilogo com todos e com cada um deles enunciou Jos Saramago as obscuras verdades da competio e da contaminao de que falou Harold Bloom, o mesmo renomado crtico que em Genius: A Mosaic of One Hundred Exemplary Creative Minds disse do autor do Memorial do Convento: o mais talentoso romancista vivo nos dias de hoje. Um mestre, acentuou ainda Bloom.

    Um mestre que aprendeu a s-lo, acrescento agora. E volto aprendizagem. Naquele discurso de Estocolmo que j mencionei, leio, em certo momento, a mais densa homenagem que um escritor pode fazer literatura e aos que creem no seu poder libertador: aprender com ela, ser criatura desses que ele mesmo criou. A pessoa em que hoje me reconheo, declarou Jos Saramago, criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas (p. 17). E mais: so esses os mestres de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro ofcio de viver, essas dezenas de personagens de romance

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    e de teatro que neste momento vejo desfilar diante dos meus olhos, esses homens e essas mulheres feitos de papel e de tinta, essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as minhas convenincias de narrador e obedecendo minha vontade de autor (p. 18).

    Por isso as convoco eu neste dia e nesta hora, como fascinantes seres de papel que vivem a perenidade de uma existn-cia que transcende a do escritor. Amigos e conhecidos que nunca existiram, disse Fernando Pessoa num texto famoso sobre os seus heternimos, mas que ainda hoje [] oio, sinto, vejo. E para que dvidas no ficassem, o genial poeta reforou: Oio, sinto, vejo... E tenho saudades deles.

    D as personagens de Jos Saramago, magistral inventor de fices que ecoam no quotidiano pal-pvel das nossas vidas, bem podemos dizer o mesmo. Todas so, por fim, mestres do escritor e nossos mestres, sempre que nas suas aes, nos seus rostos e nas suas palavras reencontra-mos a sabedoria de homens e de mulheres legitimados pela autonomia e pela incondicional possibilidade que a fico lhes confere; homens e mulheres chamados Baltasar e Blimunda, Ricardo Reis e Bartolomeu Loureno, Raimundo Silva e Jos, Maria Sara e Ouroana, Ldia e Maria de Magdala, Joana Carda e Cipriano Algor, o elefante Salomo e o seu cornaca, Tertu-liano Mximo Afonso e Antnio Claro, sua cpia exata e duplicada ou vice-versa. E mesmo quando o nome no est l como em Ensaio sobre a Cegueira e em Ensaio sobre a Lucidez a sua omisso, como falso anonimato, que alegoricamente projeta os homens e as mulheres da fico sobre o mundo real em que revemos dramas e conflitos ficcionais identificados como nossos e porventura com os nossos nomes. Citando um ttulo conhecido: identifi-cados com Todos os Nomes que no nosso mundo se encontram; ou ainda, lembrando palavras do escritor, no discurso de Estocolmo: No escritos, todos os nossos nomes esto l (p. 33).

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    So estas figuras e outras mais (sem esquecer um co chamado Constante), com nome inscrito ou sem ele, que nos provocam (provocare: chamar para fora), ao mesmo tempo que nos propem sentidos que os transcendem e que nos trans-cendem, sob o signo do poder subversivo da linguagem. esse poder que Jos Saramago invoca, quando um minsculo e redondo vocbulo um simples no suscita a reconstruo histrica de um universo afinal fragilizado por esse poder subversivo; e ainda em clave de subverso que o romancista enuncia a alegoria da fratura e da deriva, engenhosa inda-gao ficcional do destino ibrico; ou a metfora do regresso e do reencontro com a ptria, sentidos camonianos mas tam-bm, sua maneira, pessoanos; ou a imagem do coletivo e do seu poder redentor, no termo de um processo histrico que conduz libertao dos levantados do cho; ou a imagem da construo e a sugesto ascensional que a confirma, quando se ergue o convento que a vontade real idealizara, ao mesmo tempo que a passarola voa; ou a representao da cegueira coletiva em que se surpreende uma condio humana degradada na repulsiva violncia do seu egosmo. Isso tudo e tam-bm o rduo trajeto da existncia humana, a dissoluo da identidade, a contestao da ortodoxia religiosa, a celebrao da rebeldia, a reviso da palavra bblica, a questionao da culpa ou a denncia da arbitrariedade divina.

    T ambm por isso, na vida literria como na vida pblica em que ela se inscreveu, Jos Saramago jamais deixou de interrogar os outros e de interpelar verdades estabelecidas e instituies domi-nantes. O que levou a que um grande escritor sempre tivesse recusado a acomodao no conforto da fama e nos enleios da celebridade? Resposta clara: uma constante e militante vocao para de-sassossegar imagens feitas, representaes cristalizadas e mitos aparentemente inatacveis. As-sim foi ao longo de dcadas, sempre que para Saramago estiveram em causa figuras histricas, poderes pblicos, religies e suas contradies, derivas polticas ou episdios do nosso destino co-letivo. isso que prprio dos grandes escritores e tambm neste plano ele soube s-lo, consciente 49

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    como sempre esteve de que a literatura existe para afirmar, de forma variavelmente expressiva, o princpio da subverso da norma, da doxa e da verdade em que se cr cegamente. A ordem que a rege , por paradoxal que parea, o constante movimento que aponta para a sua derrogao. E isto sabendo-se bem que da heterodoxia heresia vai um passo curto que os escritores e os artistas no raro foram acusados de dar, muitas vezes pagando por isso um preo alto. Quando emerge uma tal acusao, entramos irremediavelmente no terreno da moral. Fora dele est a literatura e, de forma s vezes pro-vocatria, a grande literatura. Foi esse lugar heterodoxo o espao que Jos Saramago habitou.

    deste grande romancista que hoje nos despedimos. Romancista e tambm poeta, dramaturgo, en-sasta, diarista, contador de viagens e o mais que nele iremos descobrindo e redescobrindo, sem-pre que os seus textos confirmarem, no mgico e ntimo momento de cada leitura, a sua presena viva entre ns: pelas figuras a que deu vida, pelas imagens que traou, pelas histrias de amor que nos confiou, pelas conquistas de que fez crnica ficcionada, pelos mundos que nos seus romances construiu, pelos mitos que questionou. Por isso mesmo, esta uma despedida sem adeus. De Jos Saramago fica connosco uma literatura que fermento de eternidade, essa mesma eternidade que s a arte garante, acima e para alm de todas as fragilidades da vida. Por isso podemos hoje afirmar

    acerca de Jos Saramago o que no seu tempo Ea de Queirs disse da grande arte, da grande literatura e dos seus intrpre-tes: A arte tudo tudo o resto nada. S um livro capaz de fazer a eternidade de um povo. E bem sabendo que tudo efmero e oco nas sociedades sobretudo o que nelas mais nos deslumbra, Ea acrescentou a propsito de Shakespeare o que agora digo de Jos Saramago: Est vivo de uma vida melhor, porque o seu esprito fulge com um sereno e contnuo esplendor, sem que o perturbem mais as humilhantes misrias da carne!

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  • SARAMAGO,CHORANDO

    SEMCHORARFER

    NANDOBERLN51

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    No chorem. Que chorem os que nunca o leram, pediu Pilar del Ro h cinco anos. Quanta profundidade nos oferecia com aquelas palavras.

    D e acordo. Mas quantas saudades sentimos. Quantos acontecimentos vivemos neste ltimos cinco anos em que estivemos to necessitados da sua lucidez. Tanto se sentiu a ausncia de Jos Saramago neste tempo de mudana, convulso e desassossegador.Como a tantos outros, ao leitor que sou, custou-me compreender o que queria dizer Jos Saramago quando afirmou que escrevia para desassossegar. Entendi-o quando chegou a crise e a desesperana. Do desassossego nascem as perguntas e das perguntas nasce a ao.Por isso nos to fcil record-lo. Cada livro, cada linha de Jos est presente na atualidade.Esteve, sem o estar, quando as praas espanholas foram ocupadas pelo 15-M. Recordmo-lo quando os cidados con-

    verteram a Puerta del Sol de Madrid numa imensa gora de debate poltico, pblico, aberto, desestruturado. Tambm o vimos mar aps mar: por trs das professoras, as expatriadas, as bombeiras, as presidentas de cmara, as vereadoras. Por trs de todas ns, as cidads.

    Os seus leitores, em todo o caso, no o podemos esquecer. No enquanto continuem a existir os seus livros. No en-quanto o trabalho da Fundao Jos Saramago continue fazendo to visvel a sua forma de entender o mundo. No en-quanto continuem abertas as portas da sua casa em Tas, Lanzarote. Um espao hoje convertido em casa-museu, onde se respira a atmosfera do cidado Saramago e onde se tocam os livros que escreveu e os que o inspiraram.

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    impossvel esquecer quem reconhecemos em cada sucesso deste tempo vertiginoso que a sociedade vive.H cinco anos, aquelas pessoas a quem Saramago havia unido, as que viajmos a Lisboa para o adeus ao escritor, conclumos que, tal como em O Ano da Morte de Ricardo Reis, seriam nove os me-ses de despedida, de acordo com a sugesto de Mara del Ro, irm de Pilar. E assim, durante nove meses, desde aquele junho, a cada dia 18, comprometemo-nos a conversar sobre ele, recordando-o, lendo-o. Nessa data, qualquer refeio com familiares, reunies de amigos ou ntimas celebraes deveriam servir de homenagem ao escritor, partilhada atravs de uma fotografia, um desenho ou algumas linhas.

    Eu fi-lo, com um bom nmero de amigos e conhecidos, cada dia 18, muitos meses depois daquele ms de junho em que se esgotaram as flores de Lanzarote. E continuo a faz-lo. Porque no choramos Saramago, talvez. Mas recordamo-lo, cin-co anos depois, a cada dia.

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  • BRE A LUCIDEZ

    AUTORASNOTASDOENSAIO SO-

    JOSSARA

    MAGO55

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    Jos Saramago acompanhava a escrita de um romance de um conjunto de

    notas. Como se pode perceber em Alabardas, alabardas, Espingardas, es-pingardas livro publicado postumamente e que chega acompanhado, para alm do texto do autor, das suas notas preparatrias , o escritor relatava

    nesses escritos as dvidas que tinha, as decises que ia tomando e as dificul-

    dades que enfrentava durante a construo de uma histria. Transpondo-as

    para um filme, elas, as notas, poderiam ser o making of. um privilgio para o leitor entrar nessa intimidade da construo de um livro, como quem entra

    numa cozinha e assiste preparao daquele prato to saboroso que no se

    cansa de comer.

    At agora, estas notas de O Ensaio sobre a Lucidez permaneciam inditas. A Blimunda de Junho, especial dedicada aos 5 anos da morte de Jos Sara-mago, oferece aos seus leitores estas anotaes deixadas pelo escritor. Uma

    maneira de o sentir mais prximo. De o recordar com ainda mais intensidade.

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    (Comeo do livro: 23 de Junho de 2003)4 de Fevereiro de 2003 Na noite de 30 para 31 de Janeiro acordei s 3 horas com o pensamento sbito de que o assun-

    to para um novo romance, de que mais ou menos conscientemente andava procura, afinal j o tinha. Era aquela revoluo branca de que falei em Madrid e Barcelona na apresentao do Homem Duplicado, o voto em branco como nica forma eficaz de protesto contra o abenoado sistema democrtico que nos governa. Como se isto no fosse j suficiente, tive tambm a repentina, a instantnea certeza de que tal livro, no caso de vir a existir, teria de levar o ttulo de Ensaio sobre a Lucidez, como se o facto de votar em branco na actual situao do mundo fosse um acto exactamente ao contrrio daqueles ou da maioria daqueles que no Ensaio sobre a Cegueira se cometeram. Durante estes dias, a convico de haver acertado em cheio foi-se tornando mais forte. Isto , supondo que um vento de suprema loucura ou de suprema lucidez levasse um nmero significativo de pessoas a introduzir nas urnas nada mais que votos em branco (que, precisamente por nada dizerem, estariam dizendo tudo), esse acto, repetido por todas as partes, poderia acabar por resultar numa revoluo, talvez na mais efectiva de todas que at hoje se fizeram.

    13 de Fevereiro de 2003 A ideia de que o acontecimento se manifestaria ao mesmo tempo em todo um pas es-barra com uma dificuldade sria: como definir e manejar a quantidade e a diversidade das personagens que inevitavelmente se manifestariam. A dimenso coral de uma histria assim e a decorrente disperso dos acontecimentos impediriam uma aco dramtica de suficiente coerncia. Parece-me portanto prefervel colocar a histria numa cidade de tamanho mdio, mais para o pequeno que para o mdio, a com uns 100 mil habitantes. O arranque do livro seria o que se segue. Devido ao mau tempo teme-se que a afluncia s urnas seja reduzida, que venha a verificar-se uma percentagem de absteno muito alta. Os partidos que disputam o poder no pas so trs (eleies municipais, no legislativas ou gerais): o partido da direita,

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    o partido do meio e o partido da esquerda, tudo em minsculas, como em minsculas seriam as respectivas siglas: pd, pm e pe. Apesar de se terem multiplicado os apelos ao voto nos dias imediatamente anteriores ao das eleies, as previses de absteno confirmam-se. At s 4 horas da tarde apenas haviam votado 20% dos eleitores e a chuva e o vento no param. Ora, precisamente a essa hora, s 4 da tarde, como se obedecessem a um sinal combinado, as pessoas que at a se tinham mantido em suas casas comeam a sair para votar. Informadas do mais estranho fenmeno, as rdios e as televises co-meam a entoar louvores ao esprito cvico dos habitantes da cidade, louvando o seu esprito cvico e apresentando-os como exemplo a seguir pelo resto do pas. Abertas as urnas e realizado o escrutnio, verificou-se que os vlidos no atingiram 25% dos eleitores inscritos e que todos os restantes boletins aparecem em branco. O pm obteve 13%, o pd 9% e o pe 2,5%. Os votos nulos foram insignificantes, abstenes no houve. (Em tempo: o governo da cidade est nas mos do pd.) O as-sombroso caso pe em movimento os meios de comunicao social (imprensa, rdio, televiso), interessados em conhecer os motivos por que, subitamente, as pessoas s resolveram ir votar, como votaram maioritariamente em branco. A imprensa, a televiso e a rdio locais so as primeiras a assediar os eleitores, mas a cidade no tarda a ser invadida pelos meios de comunicao nacionais que chegam em automveis e helicpteros. (Noutras cidades, pessoas que ouvem as notcias dizem umas s outras: Talvez devssemos ter feito o mesmo.)

    Nos dias seguintes discutir-se- se a eleio foi vlida. O pd, que governa o municpio, diz que no e que portanto o statu quo dever manter-se at nova eleio. O pm, que teve mais votos, diz que vlida e que portanto o poder deve passar s suas mos. A lei eleitoral omissa (consultar a lei eleitoral portuguesa). O pe, timidamente, diz que os boletins brancos representam expresses de protesto e que, ainda que teoricamente, coincidem com as suas prprias posies polticas e ide-olgicas. Ningum o ouve. O governo do pas lana a suspeita de que o inslito resultado teria sido a primeira manifestao de uma conspirao contra a democracia com origem no estrangeiro e promete uma investigao at s ltimas consequn-

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    cias. Polcia, interrogatrios, tentativas de suborno. Ningum fala, pela simples razo de que ningum tem nada para dizer. Se saram s 4 horas, foi por casualidade ou porque o temporal tinha amainado um pouco. E o voto branco? O voto branco no contrrio lei...

    Por deciso do tribunal competente a eleio ser anulada e repetida duas semanas depois. Resultado: o pe no ter quaisquer votos, o pd e o pm tero, cada um, 9%, os votos brancos subiram a 82%. A partir daqui a situao complica-se. Verei como.

    17 de Maro de 2003 Tomei uma deciso que espero poder manter: desistir por agora do Mistrio do Dente Perdido e lanar-me ao Ensaio sobre a Lucidez. Ser um choque para a Companhia das Letras, mas eu no posso ficar espera no sei quantos meses para me ver livre dessa obrigao mais do que aborrecida.

    Cheguei concluso de que o ttulo do romance determina que as personagens sejam as que habitaram as pginas do outro Ensaio, o da cegueira. Provavelmente no todas. Pensei que a mulher do primeiro cego se teria divorciado do marido e que a me do rapazinho estrbico apareceu e tomou conta do filho. Os outros mulher do mdico e marido, rapariga dos culos escuros e velho da venda preta, mantm-se. E tambm o co das lgrimas, que fechar o livro, com a mulher do mdi-co morta ao seu lado, assassinada por aqueles que decidiram que tudo deveria voltar ao bom tempo antigo... (Cuidado com o bvio. Cuidado com os sentimentalismos cansados. O co das lgrimas talvez aparea, mas no para copiar a irrepetvel cena do Ensaio sobre a Cegueira.)

    Uma questo a resolver: as personagens tero nome? Seria cmodo, mas a histria perderia algo da estranheza que as-sinalou o Ensaio sobre a Cegueira e que gostaria de manter neste romance. Talvez opte pelo anonimato: seria ridculo que a mulher do mdico se chamasse, afinal, Manuela. A dificuldade estar em proceder da mesma maneira com as novas perso-nagens que entraro na histria. Uma ideia interessante (parece-me) seria recuperar a personagem do escritor.

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    29 de Maro de 2003 O primeiro captulo comear pela descrio (sumria, claro est) da tempestade de chuva e vento que se abate sobre o pas. A televiso e a rdio apelam conscincia cvica dos eleitores para que, apesar do mau tempo, no se deixem ficar em casa. Usar o palavreado balofo prprio das ocasies patriticas. Entrar em casa das persona-gens principais: a mulher do mdico e o marido (tambm o co, que vive com eles), a mulher divorciada do primeiro ladro, a rapariga dos culos escuros e o velho da venda preta, mais o rapazinho estrbico (a me nunca apareceu, ou sim?), o escritor e a famlia (toda? Recordo que era casado e creio que tinha filhas). s quatro horas da tarde todos saem para ir votar (sairo igualmente os habitantes que ainda no haviam votado). Descrio da caminhada sob a chuva. Bairros inundados, bombeiros, barcos). A rdio e a televiso apressam-se a transmitir a notcia do inopinado acontecimento: os eleitores da ci-dade X esto a dar um extraordinrio exemplo de civismo, arrostando com a intemprie para irem cumprir o sagrado dever. Nas assembleias de voto, at a quase desertas, o entusiasmo grande. Os partidos fazem declaraes congratulatrias. Regresso dos eleitores s suas casas. Quando se escrutinam os votos, a estupefaco varre o pas. De um momento para o outro, a to aplaudida cidade converte-se num fenmeno sem explicao. O captulo termina com as personagens principais a telefonar umas s outras: como votaste? em branco.

    19 de Abril de 2003 Sobrevoando o MediterrneoA ideia de que as personagens da Cegueira devam reaparecer em Lucidez parece-me cada vez melhor. Se o ttulo do

    novo livro indicia j uma continuidade, a presena das personagens confirma-o definitivamente. No esprito das autorida-des perplexas nascer a suspeita de que a mulher que no perdeu a viso na Cegueira poder ter algo que ver com o novo fenmeno. Passar dela para aqueles a quem ela havia guiado uma consequncia lgica. Se o romance anterior tinha obedecido escrupulosamente a uma certa lgica, este no poder ficar atrs. Do grupo da Cegueira, a mulher do mdico

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    ser a primeira pessoa a ser interrogada. Todo o desenvolvimento inicial, desde a primeira votao parcial em branco at totalidade (?) dos votos na revoluo branca, ser tratada como se as personagens mencionadas no existissem. O apa-recimento delas dever surpreender o leitor. As personagens so (sero?):

    a mulher do mdico o mdico a rapariga dos culos escuros o velho da venda preta o primeiro cego (agora divorciado) a mulher do primeiro cego o rapazinho estrbico (ainda no tem idade para votar) a me do rapazinho estrbico (encontrou o filho) o escritor (e a famlia?) o co das lgrimas

    22 de Maio de 2003As eleies no sero municipais, mas legislativas, e a cidade a capital do pas, precisamente onde se concentraram os

    acontecimentos da Cegueira. Desta maneira o caso ganha importncia nacional. Em todo o resto do pas, o mau tempo teve como resultado uma absteno elevadssima, em alguns lugares mais de 50%. A excepo a capital.

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    31 de Maio de 2003 Entre Badajoz e Madrid, de automvel, regressando da reunio dos jris do Prmio Estrema-dura

    As personagens so s as do grupo de cegos e da sua guia, portanto o escritor fica de fora. O que tinha que fazer e dizer j o fez no Ensaio.

    J tenho o final. Os servios secretos, incapazes de descobrir as razes por que as pessoas passaram a votar em branco (ser um direito no lhes parece suficiente), decidem-se por um exemplo: matar a cabecilha, isto , a mulher do mdico. Um atirador especial instala-se numa casa fronteira s traseiras da casa. A mulher do mdico ser morta com um tiro quando sai varanda onde as trs mulheres do Ensaio sobre a Cegueira se lavaram. O co vem ver o que se passou e comea a uivar. Noutra casa fronteira, mesmo em frente, os cegos perguntam-se: Por que uivar aquele co, s vezes uivam lua, Estamos em lua nova, a lua nova no se v, e o sol ainda agora acabou de pr-se, s vezes uivam morte, Ser isso.

    3 de Junho de 2003, dia em que Sophia de Mello Breyner ganhou o Prmio Rainha Sofia de Poesia IberoamericanaO final no ser como foi descrito acima. A mulher do mdico ser assassinada, mas no na varanda das traseiras da

    casa. Ser morta num jardim, aonde tinha levado o co das lgrimas a passear. O co comear a uivar e ser igualmente morto. Os cegos perguntar-se-o: Ouviste alguma coisa, Dois tiros, Mas havia tambm um co aos uivos, J se calou, deve ter sido o segundo tiro, Ainda bem, o uivar dos ces faz-me mal aos nervos.

    20 de Junho de 2003Roma. Durante um jantar ocorreu-me a ideia de que o ttulo do livro poderia ser O Regresso dos Cegos.

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    22 de Junho de 2003Casa. Pilar defende o primeiro ttulo.

    22 de Junho de 2003, casa. Pilar defende o primeiro ttulo.

    1 de Julho de 2003 Terminei o primeiro captulo, comecei o segundo e no estou satisfeito. O primeiro, ainda v, pode-se-lhe dar um jeito, mas as duas pginas escritas do segundo no tm salvao, quando muito podero aproveitar-se alguns pormenores mais adiante e com outro tratamento. Tal como as coisas se encontram neste momento, no tenho per-sonagens, e sem personagens impossvel haver romance. A ideia de fazer entrar as personagens da Cegueira por alturas da pgina 60 ou 70 no tem ps nem cabea. Como aguentar at l o interesse do leitor (para j nem falar do meu prprio interesse...)? preciso no esquecer que essas personagens s tero sentido nesta nova histria se for possvel estabelecer uma relao (que no teria por que ser objectiva) com o fenmeno da votao em branco. A nica relao logicamente aceitvel seria que os olhassem como suspeitos, simplesmente como suspeitos, tendo em conta o carcter excepcional da sua actividade na Cegueira. Quer dizer, se h uns quantos anos houve aqui um grupo chefiado por uma mulher que ganhou no meio do desastre colectivo um estatuto de excepcionalidade, por que no admitir a hiptese que tenham agora algo que ver com a crtica situao poltica e social criada pelo voto branco em massa? E como se chegaria a isso? Uma soluo seria usar o primeiro cego como agente da suspeita, isto , o primeiro cego (pessoa de carcter duvidoso [como j se havia observado na Cegueira] e actualmente divorciado) seria o elo (por iniciativa prpria, ou no) que alimentaria a suspeita depois de a haver sus-citado... Esta soluo permitiria dar histria a densidade dramtica cuja falta me est a travar o passo e, de alguma maneira, a bloquear-me. Outra personagem, primeiramente posta de lado nestas notas, poderia ser o escritor. uma questo a pensar.

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    Se o que acabo de escrever tem sentido, ento a entrada em aco ter de fazer-se logo depois da segunda votao, de modo a criar em pouco tempo a atmosfera de suspeita que tornar a vida dos heris da Cegueira num inferno.

    Vamos a ver se conseguirei tirar esta pedra do meio do caminho...

    11 de Julho de 2003Este livro est a dar-me gua pela barba (supondo que no me afogarei nele...). Nunca um romance me assustou tanto.

    Uma coisa so as dvidas, outra coisa perceber a dificuldade de encher (que palavra...) uma histria que poderia ser contada em vinte pginas, que so precisamente as que levo escritas at ao dia de hoje (creio que vai ser o romance mais curto de quantos escrevi). No que a personagens se refere, vejo claro: sero definitivamente as da Cegueira, incluindo, talvez, o escritor.

    E como introduzi-las? Uma por uma? Sucessivamente? Elas vo ser alvo de uma suspeita, a de terem culpa do que se passa. Esto totalmente inocentes, se votaram em branco fizeram o mesmo que oitenta por cento dos habitantes da cidade. (Josef K. tambm estava inocente e todos sabemos o que lhe aconteceu. Acabei ontem de reler mais uma vez O Processo. Por alguma razo tive necessidade de voltar a ele...). noite, na varanda, olhando a lua, que est em quarto crescente, tive uma ideia que pode ajudar-me muito: a mudana da capitalidade para outra cidade, ficando os insurrectos acantonados num gueto (foi decretado o estado de excepo, o qual, sendo obviamente para aplicar em todo o pas, o ser com muits-simo mais rigor na capital). Creio que esta situao enriquecer a histria. As personagens sero finalmente as seguintes (eliminei o rapazinho estrbico porque encontrou a me e nunca mais se soube dele...):

    O primeiro cego, que ser o delator (divorciou-se da mulher)

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    A rapariga dos culos escuros e o velho da venda pretaA mulher do primeiro cegoA mulher do mdico e o maridoO escritorO co das lgrimas

    ATENO: ESTES ACONTECIMENTOS DECORREM QUATRO ANOS DEPOIS DA EPIDEMIA DE CEGUEIRA. NO QUERO AS MINHAS PERSONAGENS MUITO MAIS VELHAS...

    ATENO: APS A CEGUEIRA AS PERSONAGENS DECIDIRAM NO FALAR DO QUE LHES HAVIA SUCEDIDO, SO-BRETUDO NUNCA FAZER QUALQUER REFERNCIA AO FACTO DE A MULHER DO MDICO NO TER PERDIDO A VISO.

    14 de Julho de 2003A palavra branco excluda do vocabulrio, perigoso us-la. Liga-se uma mquina aos suspeitos (do tipo detector de

    mentiras) e faz-se-lhes dizer a palavra branco...

    15 de Julho de 2003Imaginemos que a mquina seria ligada a um interrogador. No reagiria ele de modo semelhante ao do interrogado?

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  • C O N T A R O S A N O S P E L O S D E D O S E E N C O N T R A R A M O C H E I A

    16 de Julho de 2003O primeiro cego uma das quinhentas pessoas que esto a ser interrogadas. Como tinha previsto, ser ele o motor do

    que se vai passar at ao assassnio da mulher do mdico. O ministro do interior publicar um comunicado em que dir que quinhentos cidados se dispuseram a colaborar com as autoridades democrticas na investigao dos factos relacionados com a votao. No dir, evidentemente, que se encontram detidos...

    18 de Julho de 2003Sequncia dos acontecimentos:1. O detector de mentiras. Resultados nulos. Beco sem sada. Um dos pacientes faz-se notar (como?): o primeiro cego.

    2. Declarao do estado de stio. Mudana da capital para outra cidade.

    3. Reunio do conselho de ministros com a presena do chefe do estado para debate da situao. Opinies diversas. Uma frase casual do chefe do estado: Andamos aqui s apalpadelas, s cegas. Do fundo da mesa, o ministro da cultura: Tal como h quatro anos. Constrangimento geral. O ministro da defesa: Havamos decidido calar para sempre o que se passou. O ministro do interior: A praga que estamos sofrendo tambm uma forma de cegueira. O ministro da justia: Ou de lucidez. Protestos, indignao. O ministro do interior: Com um pouco mais pensaria que o caro colega votou em branco. O ministro da justia: Acertaria se o pensasse. Silncio. O primeiro-ministro: consciente do que acaba de dizer? O ministro da justia: To consciente que neste momento mesmo apresento a minha demisso. Sai. O ministro da cultura: Demito-me tambm. Sai. O ministro do interior: O meu faro no me engana, h tempos que andava desconfia-

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    do destes tipos. O ministro da defesa: O que acaba de acontecer mostra a que ponto chegou a gravidade da situao. ridculo. Ns a querermos infiltr-los a eles, e eles a infiltrarem-nos a ns. Espero que perante isto j no haja dvidas sobre a necessidade do estado de stio. Concordncia geral. O ministro do interior sugerir aos meios de comunicao social que faam referncia de maneira discreta, no demasiado explcita, ao paralelismo entre a cegueira colectiva de h quatro anos e esta nova mar de brancura. O ministrio do interior far chegar os jornais aos pacientes. Fora, a revelao causa uma emoo enorme. Um ttulo: Estaremos outra vez cegos? Avies lanam sobre a cidade (no esquecer, em estado de stio) prospectos com as mesmas palavras. Reaces da populao.

    4. O chefe do estado recebe uma carta. Um paciente diz ter importantes revelaes a fazer relacionadas com o que se passou h quatro anos. A carta passa ao primeiro-ministro e depois ao ministro do interior. O primeiro cego relata o que se passou com o grupo dos sete. No se esquece de dizer que a mulher do mdico matou um homem...

    5. Primeira entrevista com a mulher do mdico. Por que que no cegou? Como se explica que toda a gente tenha cega-do, e ela no?

    F o t o g r a f i a s d e M A R TA M O R G A D O

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    TATAITIS A R A F I G U E I R E D O C O S T A

    F E S T I V A L L I T E R R I O D A G A R D U N H A

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    I M A G I N A N D O U M A S E R R A E A G E N T E Q U E A H A B I T A

    Quem chega Gardunha partindo de Lisboa, recorrendo a um dos comboios que sobrevivem nos caminhos para o interior, vai notando

    as mudanas de relevo e paisagem medida que carris e quilmetros se somem no ritmo da carruagem. Viajar de comboio tem essa

    particularidade de evitar a mudana quase instantnea que os avies asseguram, ou a passagem de um lugar a outro passando por lugar

    nenhum que as autoestradas proporcionam. Nos carris apertados pelo vagaroso comboio regional, o tempo e o espao deslizam ao mesmo

    ritmo e o caminho para o Fundo e para a serra que o aconchega faz-se com uma aula de geografia a desfilar-nos perante os olhos.

    F o t o g r a f i a s d e C U G U A R D A r e a l i z a d a s n o m b i t o d e u m a r e s i d n c i a a r t s t i c a r e a l i z a d a n o F u n d o , d u r a n t e a s e g u n d a e d i o d o F e s t i v a l L i t e r r i o d a G a r d u n h a

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    I M A G I N A N D O U M A S E R R A E A G E N T E Q U E A H A B I T A

    D epois das Portas de Rdo, j outra terra que se pisa. Os campos mais ou menos planos e as pequenas cidades onde o centro histrico se v rodeado de prdios que podiam ter crescido em qualquer ponto do pas desaparecem sem grande recordao quando as escarpas que mergulham no Tejo ocupam a janela do com-boio. E durante alguns quilmetros, sem estradas nem povoaes vista, o cami-nho para a Gardunha parece convocar Thoreau e a sua vida nos bosques, quase a provocar aquela vontade to citadina de largar tudo e escolher a floresta para moradia. A Vila Velha de Rdo segue-se Castelo Branco, j no corao da Beira, e logo depois o Fundo, com a estao deserta apesar da manh j avanada. aqui que nos apeamos.

    O Festival Literrio da Gardunha, cuja segunda edio decorreu ente os dias 18 e 24 de Maio, podia ter escolhi-do o Fundo como referncia do ttulo, circunscrevendo as atividades cidade cuja Cmara Municipal assume o evento. Escolhendo a Gardunha, ampliou o territrio da sua interveno e, mais do que fazer deslocar escritores e participantes entre a cidade e os caminhos da serra, alcanou essa espcie de utopia sempre to apregoada em tempo de eleies, envolvendo as comunidades de uma mesma regio num momento que se quer de partilha.

    Chega-se, ento, ao Fundo, cidade aninhada na Cova da Beira e marcada por um centro de ruas cal-mas desembocando numa avenida larga. Numa dessas ruas fica o Jornal do Fundo, referncia essencial do jornalismo portugus e do combate pela liberdade de informao e opinio durante os anos negros da ditadura. O acaso ditou que pudssemos visitar a sua grfica, onde o jornal j no se imprime, mas onde ainda se guardam os tipos de chumbo, as gravuras e as mquinas tipogrfica