Blimunda 6 Novembro 2012

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    N. 6NOVEMBRO 2012 FUNDAO JOS SARAMAGO

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    A grande fuso editorial

    no BrasilDurante alguns dias, a imprensa especializada

    e os sites e blogs dedicados edio e ao mercadolivreiro no falaram de outra coisa: empresa edi-torial alem Bertelsmann, proprietria da Ran-dom House, e a editora britnica Pearson, quedetm a mtica Penguin, passaram a ser uma sentidade. Aparentemente, a notcia no seria re-

    levante para a edio em lngua portuguesa, mascom a globalizao do mercado do livro e com asrelaes entre grandes empresas multinacionais epequenas editoras locais cada vez mais estreitas,a criao da Penguin Random House uma novi-dade que pode alterar tudo. No blog A Bibliotecade Raquel, associado ao jornal Folha de S. Paulo,a jornalista Raquel Cozer regista algumas notassobre esta fuso, procurando analisar os cenrios

    possveis para a edio brasileira na sequncia dosurgimento do novo grupo editorial: A Penguin jmarca presena aqui desde a aquisio de 45% daCompanhia das Letras, no ano passado. Temposatrs, o grupo Bertelsmann inaugurou um escri-trio em So Paulo, e representantes da RandomHouse andaram conversando com editores brasi-leiros para avaliar opes de compra. No saberiadizer se a fuso com a Penguin interromperia es-sas conversas, considerando que a nova empresaj detm parte de uma editora no Brasil, ou se ou-tras negociaes continuam. Editores brasileiroscom quem conversei creem que, aps a situaose regularizar, a Penguin Random continuarcom outras conversas.

    http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.

    com.br/2012/10/29/random-penguin-

    companhia/

    O boom latino-americano

    meio sculo depoisO livro que permitiu discursos, ensaios, de-

    bates e polmicas sobre o boom literrio latino--americano no foi um romance, uma novela, umpoemrio. Foi um livro de entrevistas feitas porLuis Harss, um acadmico da rea da literatura,e publicado em 1966, que inaugurou o boom quedeu ao futuro as premissas de um cnone que

    continua slido e coerente e que garantiu matriapara reflexo sobre um momento e uma geografiaque se tornaram um marco na literatura do sculoXX. No El Pas, Amelia Castilla assina um textosobre esse livro de Luis Harss,Los Nuestros, reedi-tado pela Alfaguara quase cinquenta anos depoisda sua primeira publicao, e conta com declara-es do autor sobre o seu trabalho, uma espcie debalano sobre o impacto que o livro teve no pano-

    rama literrio e universitrio da poca e sobre aherana que permanece desse cnone que reuniaJorge Luis Borges, Alejo Carpentier, Juan Rulfo,Miguel ngel Asturias, Juan Carlos Onetti, JlioCortzar, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa,Gabriel Garca Mrquez e Joo Guimares Rosa.

    http://cultura.elpais.com/cultu-

    ra/2012/10/31/actualidad/1351696675_845653.

    html

    leituras do ms

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    Manuel RivasAs Voces BaixasEdicins Xerais

    Autor prolfico e com registos que andampelos territrios da literatura e do jornalismo,Manuel Rivas tem construdo o seu trabalho fic-cional numa slida ligao com a geografia ga-lega, fazendo do mapa um territrio emocional

    a que no so alheias as memrias, o patrim-nio ou os lugares de encontro. As Voces Baixas,romance publicado recentemente na Galiza,confirma essa ligao umbilical entre geografiae narrativa, um dilogo contnuo que suspendefronteiras entre factos e fico para melhor al-canar o espao de uma certa herana comum.De certo modo, era o que acontecia j nos con-tos que compunham o livro Un Milln de Vacas,

    mas agora essa herana abordada de um modomais consistente.Fragmentrio e estruturado como se de uma

    compilao de pequenas crnicas se tratasse, otexto ganha unidade medida que se avana naleitura, percebendo-se os episdios da infnciado narrador como um mosaico de lembranasdispersas que, unidas pele exerccio da mem-ria enquanto modo de dar sentido ao presente,do narrativa o flego romanesco anuncia-do. Das pequenas descobertas dentro de casaaos primeiros tesouros conquistados terradura do monte do Faro, na Corua, ao lado doscompanheiros de aventura, a voz que narra AsVoces Baixas percorre os locais da sua infn-cia enquanto com eles constri um mapa, noum mapa saudosista e voltado para uma ideiaparadisaca de meninez, mas uma topografiaidentitria onde os elementos, os lugares e as

    aprendizagens quotidianas so linhas que mar-cam um caminho. Esse caminho andar peloslugares da coragem e do medo, da respirao e

    da morte, pequenas paragens que so a matriade uma vida e que so igualmente a nica he-rana possvel, a hiptese, mesmo que remota,de aquilo que fica no ser apenas um nome nos

    documentos

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    OS SARAMAGO PUBLI-cou O Evangelho Segun-do Jesus Cristo em 1991, aoaproximar-se do seu septua-gsimo aniversrio. Comoadmirador crtico e feroz deSaramago, tenho algumarelutncia em escolher esteem detrimento dos seus ou-tros romances, mas trata-sede um trabalho espantoso,imaginativamente superiora qualquer outra verso da

    vida de Jesus, incluindo osquatro evangelhos cannicos.

    Alguns dos laivos de ironia perdem-se na ex-celente traduo de Giovanni Pontiero mas maisdo que os suficientes sobrevivem ainda para sa-tisfazer o leitor consciente.

    A audcia de Saramago triunfante no seuEvangelho(diminutivo do ttulo que usarei daquipara a frente). Deus, noEvangelhode Saramago,

    tem algumas afinidades com o Yahweh de J Wri-ters e tambm com o Nobodaddy de Blake, mas importante notar que Saramago resiste a dar--nos o Ialdaboth gnstico. No seu Post-ScriptumFinal No-Cientfico, Kierkegaard observa ironi-camente que dar ao pensamento supremacia so-bre tudo o resto gnosticismo. Contudo o Deusde Saramago escandaliza-nos de formas quetranscendem o intelecto, j que um Deus que si-multaneamente verdade e tempo a pior notciapossvel. O diabo de Saramago, deliciosamentechamado Pastor, a suavidade em pessoa com-parado com o seu Deus, que recusa a tentativa

    de reconciliao de Pastor e que no manifestaamor nem compaixo por Jesus ou por qualqueroutro ser humano.

    Isto deve fazer o livro parecer sublimementeultrajante, mas no o caso, e penso que s umsectrio ou um tonto julgariam blasfemo oEvan-

    gelho de Saramago. O Deus de Saramago tan-to pode ser astuto como doce e dotado de umsentido de humor selvagem. Ningum vai amareste deus, mas ele tambm no pede nem esperaamor. Adorao e obedincia so os seus requi-sitos e a violncia sagrada o seu recurso infini-to. Baruch Spinoza insistia que devamos amar

    Deus sem nunca esperar que Deus nos amassede volta. Ningum poderia amar o Deus de Sa-ramago, a no ser que o amante estivesse toprofundamente envolvido em sado-masoquismoque se visse sem defesa perante a sua conduta.

    Deus diz-nos noEvangelhoque est insatisfei-to com a pouca consistncia que lhe dada peloseu povo eleito, os Judeus:

    Desde h quatro mil e quatro anos que venho sendodeus dos judeus, gente de seu natural conflituosae complicada, mas com quem, feito um balanodas nossas relaes, no me tenho dado mal, umavez que me tomam a srio e assim se iro manterat to longe quanto a minha viso do futuro podealcanar, Ests, portanto, satisfeito, disse Jesus,

    Estou e no estou, ou melhor, estaria no fosseeste inquieto corao meu que todos os dias me dizSim senhor, bonito destino arranjaste, depois dequatro mil anos de trabalho e preocupaes, queos sacrifcios nos altares, por muito abundantes evariados que sejam, jamais pagaro, continuas a

    O DAS BARBAS DEUS,O OUTRO O DIABO

    Harold BloomT r a d u o d e M y r i a m Z a l u a r

    Ilustraes de Andr Carrilho e Crist ina Sampaio

    J

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    ser o deus de um povo pequenssimoque vive numa parte diminuta do mundo quecriaste com tudo o que tem em cima, diz-me tu,meu filho, se eu posso viver satisfeito tendo esta,

    por assim dizer, vexatria evidncia todos osdias diante dos olhos, No criei nenhum mundo,no posso avaliar, disse Jesus, Pois , no podesavaliar, mas ajudar, podes, Ajudar a qu, Aalargar a minha influncia, a ser deus de muitomais gente, No percebo, Se cumprires bem o teu

    papel, isto , o papel que te reservei no meu plano,estou certssimo de que em pouco mais de meiadzia de sculos, embora tendo de lutar, eu e tu,

    com muitas contrariedades, passarei de deus doshebreus a deus dos que chamaremos catlicos, grega, E qual foi o papel que me destinasteno teu plano, O de mrtir, meu filho, o de vtima,que o que de melhor h para fazer espalhar umacrena e afervorar uma f. As duas palavras,mrtir, vtima, saram da boca de Deus como sea lngua que dentro tinha fosse de leite e mel, masum sbito gelo arrepiou os membros de Jesus, tal

    qual se o nevoeiro se tivesse fechado sobre ele,ao mesmo tempo que o Diabo o olhava com umaexpresso enigmtica, misto de interesse cientficoe involuntria piedade.

    Deus est impaciente e no quer ser desmo-ralizado; estes so os seus motivos para vitimarJesus, e, consequentemente, para torturar at morte os milhes que morrero como sacrifcios

    por Jesus, quer afirmem ou reneguem este lti-mo. Este Deus o maior dos comediantes, comoficamos a saber a partir do seu canto dos mrti-res: uma ladainha, por ordem alfabtica paraevitar melindres de precedncias. A ladainha absolutamente maravilhosa, desde Adalberto dePraga, executado com um esponto de sete pon-tas, a Wilgeforte, ou Liberata, ou Eutrpia, vir-gem, barbuda, crucificada. Ao longo de quatropginas de comprimento, o catlogo da violncia

    sagrada tem delcias como Blandina de Lio, per-furada por um touro bravo, e o desafortunadoJanurio de Npoles, primeiro atirado s feras,

    depois para dentro de um forno e finalmente de-capitado. Ogusto do Deus de Saramago recorda ode Edward Gibbon no Captulo XVI daHistriado Declnio e Queda do Imprio Romano, excetuan-do que Gibbon, mantendo o decoro, evita deta-lhar as numerosas variedades de martrio pelatortura. Mas Gibbon antecipa de novo Saramagoobservando que os Cristos infligiram cruelda-des bem maiores uns aos outros do que as quetinham experimentado do zelo dos infiis. ODeus de Saramago, com a sua voz algo cansa-da, fala da Inquisio como um mal necessrio,e defende a queima de milhares porque a causa

    de Jesus assim o exige. Uma olhadela sobrecapada edio americana do Evangelhode Saramagoassegura-nos que desafiar a autoridade de Deuso Pai continua a no ser a sua renegao.

    Embora seja necessariamente um persona-gem secundrio quando comparado com o Jesusde Saramago, Deus pede para ser escrutinadopara alm dos seus aspetos ameaadoramentecmicos. Em primeiro lugar, o Deus do Evange-

    lho tempo, e no verdade, o outro atributo queafirma. Saramago, um marxista (excntrico) eno um cristo, subverte Santo Agostinho nateodiceia do tempo. Se o tempo Deus, ento aDeus nada pode ser perdoado, e, seja como for,quem haveria de querer perdoar-lhe? Mas ento,o Deus do Evangelho no est minimamente in-teressado em perdo: ele no perdoa ningum,nem mesmo Jesus, e recusa perdoar Pastor,

    quando o diabo faz uma proposta honesta deobedincia. O poder o nico interesse de Deus,e o sacrifcio de Jesus usa a perspetiva do perdodos nossos pecados apenas como aviso. Deus dei-xa claro que somos todos culpados e que preferemanter as coisas assim. Jesus no expiao: asua crucificao apenas um mecanismo atravsdo qual Deus deixa de ser judeu e passa a ser ca-tlico, um convertido em vez de um marrano.

    Isto de uma ironia soberba, e Saramago faz

    dela uma forma de arte superior, embora reduzi--la criticamente a tal seja um convite a um ataquecatlico. De todas as representaes fictcias de

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    Deus desde a dos jeovistas, voto pela de Sarama-go. Ela ao mesmo tempo a mais engraada e amais empolgante, no gnero dos heris-viles deShakespeare: Ricardo III, Iago, Edmundo noRei

    Lear.

    Pastor, ou o diabo, tem o seu prprio charme,ao encarnar uma representao muito originalde Satans. Um homem gigante, com uma ca-bea enorme, Pastor permite a Jesus tornar-se oseu assistente pastor para um grande rebanhode ovelhas e cabras. Em resposta piedosa ex-clamao de Jesus S o Senhor Deus o no

    judeu Pastor responde com grande pungncia:

    Sim, se existe Deus ter de ser um nico Senhor,mas era melhor que fossem dois, assim haveria umdeus para o lobo e um deus para a ovelha, um parao que morre e outro para o que mata, um deus parao condenado, um deus para o carrasco

    Este sensato dualismo no exatamente sat-

    nico, e Pastor mantm-se mais amvel que Deusao longo do romance. Nos dilogos entre o diaboe o jovem Jesus, o papel do diabo prevalece cla-ramente, embora honradamente, diferena dodomnio de Deus sobre Jesus da primeira vez quepai e filho se encontram no deserto. Deus exigecomo sacrifcio uma ovelha querida para Jesuse este acede relutantemente. Pastor, ao saber dofacto, abandona Jesus: No aprendeste nada,

    vai. E Pastor, at aqui, est certo: a aprendiza-gem de Jesus sobre a natureza de Deus s sercompletada na cruz.

    Que devemos ento fazer de Pastor? O diabode Saramago humano, no entanto apenas umctico: ele sabe demasiado sobre Deus. Se o Deusde Saramago um convertido portugus, ento odiabo de Saramago nunca foi judeu, e, parece es-tranhamente desconexo tanto com Deus quantocom Jesus Cristo. Por que est Pastor no livro?

    Evidentemente, apenas como testemunha, oque penso que se deve concluir. Saramago parecequerer levar-nos de volta ao Satans no-cado

    do Livro de J, que anda de um lado para o ou-tro, e para cima e para baixo na Terra. E contu-do o Satans de J era um acusador; Pastor no.Por que permanece Jesus quatro dias com Pas-tor, como aprendiz? O anjo, que chega atrasadopara dizer a Maria que Jesus filho de Deus diz--nos que o Diabo o esprito que se nega, o que extravagantemente ambguo, e poderia quererdizer que o Pastor resiste a desempenhar o papelque Deus lhe atribuiu. O anjo de Maria, depoisde nos dizer que o Pastor foi seu colega de escola,diz que Pastor prospera porque Assim o exigea boa ordem do Mundo. H ento uma relao

    secreta entre Pastor e Deus, que alarma os disc-pulos de Jesus. Quando Deus, vestido como umjudeu rico, aparece a Jesus no barco, Saramagoimagina uma magnfica reentrada para Pastor:

    A barca oscilou com o impulso, a cabea ascendeuda gua, o tronco veio atrs escorrendo qualcatarata, as pernas depois, era o leviat surgindodas ltimas profundidades, era, como se viu,

    passados todos estes anos, o pastor, que dizia Cestou eu tambm, enquanto se ia instalando naborda do barco, exatamente a meia distncia entre

    Jesus e Deus, porm, caso singular, a embarcaodesta vez no se inclinou para o seu lado, como

    se Pastor tivesse decidido aliviar-se do seuprprio peso ou levitasse parecendo estar sentado.C estou, repetiu, espero ter chegado ainda atempo de assistir conversa, J amos bastante

    avanados nela, mas no tnhamos entrado noessencial, disse Deus, e, dirigindo-se a Jesus,Este o Diabo, de quem falvamos h pouco.Jesus olhou para um, olhou para outro, e viu que,tirando as barbas de Deus, eram como gmeos, certo que o Diabo parecia mais novo, menosenrugado, mas seria uma iluso dos olhos ou umengano por ele induzido. Disse Jesus, Sei quem, vivi quatro anos na sua companhia, quando

    se chamava Pastor, e Deus respondeu, Tinhas

    de viver com algum, comigo no era possvel,com a tua famlia no querias, s restava o

    Diabo, Foi ele que me foi buscar, ou tu que me

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    enviaste a ele, Em rigor, nem uma coisa nemoutra, digamos que estivemos de acordo em queessa era a melhor soluo para o teu caso, Porisso ele sabia o que dizia quando, pela boca do

    possesso gadareno, me chamou teu filho, Talqual, Quer dizer, fui enganado por ambos, Como

    sempre sucede aos homens, Tinhas dito que nosou um homem, E confirmo-o, poderemos dizerque, qual a palavra tcnica, podemos dizer queencarnaste, E agora, que quereis de mim, Quemquer sou eu, no ele, Estais aqui os dois, bem vique o aparecimento dele no foi surpresa para ti,

    portanto esperava-lo, No precisamente, embora,

    por princpio, se deva contar sempre com o Diabo,Mas se a questo que temos que tratar, tu e eu,apenas nos diz respeito a ns, por que veio ele c,

    por que no o mandas embora, Pode-se despedira arraia-mida que o Diabo tem ao seu servio,no caso de ela comear a tornar-se inconveniente

    por atos ou palavras, mas o Diabo, propriamentedito, no, Portanto, veio porque esta conversa tambm com ele, Meu filho, no esqueas o que te

    vou dizer, tudo quanto interessa a Deus, interessaao Diabo

    Como Deus e o Diabo so gmeos (j o tnha-mos suspeitado), uma delcia dizerem-nos queno podemos viver com Deus, e que portanto te-mos de escolher entre a nossa famlia e o diabo.Deus fala do seu desejo de ser Deus dos Catli-cos, mas esta sua ambio j se vislumbrou, e o

    que quero aqui perguntar : por que est Pastorno barco? A sua expresso um misto de de in-teresse cientfico e involuntria piedade, masele est ali porque, como Jesus argutamente su-pe, ampliar o domnio de Deus tambm am-pliar o do diabo. E no entanto o pobre Pastor temas suas perplexidades:

    Fico, disse Pastor, era a sua primeira palavradesde que se tinha anunciado, Fico, repetiu, e

    depois, Posso, eu prprio, ver algumas coisas dofuturo, mas o que nem sempre consigo distinguirse verdade ou mentira o que julgo ver, quer

    dizer, s minhas mentiras vejo-as como o que so,verdades de mim, porm nunca sei at que ponto

    so as verdades dos outros mentiras deles.

    Saramago chama secamente a isto uma ti-rada labirntica, mas ele quer dizer que ela acu-sa claramente Deus, cujas verdades so efeti-vamente as suas mentiras. A causa do Deus daIgreja Catlica que ser fundada sobre Jesus s verdadeira na medida em que historicamentehorrvel, e o entusiasmo que Deus manifesta aoenumerar os mrtires e ao resumir a Inquisiotem inconfundveis laivos de sadismo. De uma

    forma alarmante, Deus (um bom agostinhano,antes de Agostinho) desaprova todas as alegriashumanas como sendo falsas, uma vez que todaselas emanam do pecado original:a luxria e o medo, so as armas com que o

    Demnio atormenta as pobres vidas dos homens

    Quando Jesus pergunta a Pastor se isto ver-dade, a resposta do diabo eloquentemente es-

    clarecedora:

    Mais ou menos, respondeu ele, limitei-me a tomarpara mim aquilo que Deus no quis, a carne, com asua alegria e a sua tristeza, a juventude e a velhice,a frescura e a podrido, mas no verdade que omedo seja uma arma minha, no me lembro de ter

    sido eu quem inventou o pecado e o seu castigo, e omedo que neles h sempre

    Tendemos a acreditar nisto quando Deusexclama em resposta: Cala-te, , o pecado e oDiabo so os dois nomes duma mesma coisa. preciso Deus dizer isto? O Cardeal-arcebispo deLisboa no diria o mesmo? A resposta de Sara-mago misteriosa. Deus descreve as Cruzadaspor travar contra o no-nomeado Al, que Pastorrepudia criar:

    Mas ento, perguntou Pastor, quem vai criar oDeus inimigo. Jesus no sabia responder, Deus,se calado estava, calado ficou, porm do nevoeiro

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    desceu uma voz que disse, Talvezeste Deus e o que h de vir no sejammais do que heternimos, De quem,de qu, perguntou, curiosa,

    outra voz, De Pessoa, foi o que

    se percebeu, mas tambm podia

    ter sido, Da Pessoa.Jesus, Deus eo Diabo comearam por fazer de contaque no tinham ouvido, mas logo a seguirentreolharam-se com susto, o medo comum assim, une facilmente as diferenas.

    S aqui, no Evangelho de Saramago, ouvi-

    mos uma voz para alm da de Deus. De quem ?Quem poderia proclamar o que Deus no desejadizer, isto que ele e Al so um s? Como umDeus to manhoso e pouco amvel como o de Sa-ramago, tanto ns quanto Saramago ansiamospor um Deus para alm de Deus, talvez o Alienou o Deus Estranho dos Gnsticos. Mas, quemquer que seja este Deus, ele no voltar a falarneste romance. Muito habilmente, Saramago

    acabou de nos dizer explicitamente aquilo quevinha dizendo implicitamente ao longo da obra:Deus e Jesus pragmaticamente so inimigos, ain-da que Pastor seja involuntariamente inimigo deambos. Porm, em que consiste tal inimizade?Em reao descrio que Deus faz da Inquisi-o, Pastor comenta:

    preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue

    O grande momento de Pastor e uma deentre a mo-cheia de passagens-chave no livro chega com a sua v tentativa de reconciliaocom Deus:

    Pastor fez um silncio, como se procurasse asmelhores palavras, e explicou, Ouvi com grandeateno tudo quanto foi dito nesta barca, e embora

    j tivesse, por minha conta, entrevisto uns clares e

    umas sombras no futuro, no cuidei que os claresfossem de fogueiras e as sombras de tanta gentemorta, E isso incomoda-te, No devia incomodar-me,

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    uma vez que sou o Diabo, e o Diabo sempre algumacoisa aproveita da morte, e mesmo mais do quetu, pois no precisa de demonstrao que o inferno

    sempre ser mais povoado do que o cu, Ento de quete queixas, No me queixo, proponho, Prope l, masdepressa, que no posso ficar aqui eternamente, Tu

    sabes, ningum melhor do que tu o sabe, que o Diabotambm tem corao, Sim, mas fazes mau uso dele,Quero hoje fazer bom uso do corao que tenho, aceitoe quero que o teu poder se alargue a todos os extremosda terra, sem que tenha de morrer tanta gente, e poisque de tudo aquilo que te desobedece e nega, dizes tuque fruto do Mal que eu sou e ando a governar no

    mundo, a minha proposta que tornes a receber-meno teu cu, perdoado dos males passados pelos que no

    futuro no terei de cometer, que aceites e guardes aminha obedincia, como nos tempos felizes em que fuium dos teus anjos prediletos, Lcifer me chamavas, oque a luz levava, antes que uma ambio de ser iguala ti me devorasse a alma e me fizesse rebelar contraa tua autoridade, E por que haveria eu de receber-te e perdoar-te, no me dirs, Porque se o fizeres,se

    usares comigo, agora, daquele mesmo perdo queno futuro prometers to facilmente esquerda e direita, ento acaba-se aqui hoje o Mal, teu filho no

    precisar morrer, o teu reino ser, no apenas estaterra de hebreus, mas o mundo inteiro, conhecidoe por conhecer, e mais do que o mundo, o universo,

    por toda a parte o Bem governar, e eu cantarei, naltima e humilde fila dos anjos que te permaneceram

    fiis, mais fiel ento do que todos, porque

    arrependido, eu cantarei os teus louvores, tudoterminar como se no tivesse sido, tudo comear aser como se dessa maneira devesse ser sempre

    A ironia do humano Pastor e do desumanoDeus no poderia ser mais bem justaposta. Deusdeixa claro que preferiria um diabo ainda pior,se tal fosse possvel, e que sem o diabo, Deus nopode ser Deus. Pastor, que foi persuasivamentesincero, encolhe os ombros e vai-se embora, aps

    recuperar de Jesus a velha tigela negra de Nazarpara dentro da qual o sangue de Jesus escorrernas palavras finais do romance.

    No suficiente louvar a originalidade de Sa-ramago em pintar o seu diabo de forma totalmenteno-diablica. Temos de ir mais longe. O enigm-tico Pastor o nico diabo que poderia ser est-tica e intelectualmente apropriado na conclusodo Segundo Milnio. Excetuando o facto de no

    poder ser crucificado, este anjo cado tem de lon-ge mais em comum com o Jesus de Saramago doque com o Deus de Saramago. So ambos vtimasde Deus, sofrendo da tirania do tempo, que Deuschama verdade. Pastor resignado, e menos re-belde que Jesus, mas porque Pastor sabe tudo oque h para saber. Como leitores, permanecemosmais prximos do estranho diabo de Saramago doque ao seu malvolo e irnico Deus.

    A glria do Evangelhode Saramago o Jesusde Saramago, que me parece humana e esteti-camente mais admirvel do que qualquer outra

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    A glria do

    Evangelho deSaramago o Jesusde Saramago, queme parece humanae esteticamentemais admirvel doque qualquer outraverso de Jesus naliteratura do sculo

    que ora acaba.

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    verso de Jesus na literatura do sculo que oraacaba. Talvez o de O Homem que Morreu, de D.H.Lawrence, seja um concorrente altura, mas oJesus de Lawrence um grande vitalista lawren-ciano, mais do que um ser humano possvel. OJesus de Saramago paradoxalmente o mais ca-loroso e memorvel personagem de todos os seuslivros. W. H. Auden, crtico de poesia cristo, en-controu estranhamente no Falstaff de Shakespe-are um tipo de Cristo. Cito um pargrafo de Au-den para enfatizar o quo distantes tanto o Deusquanto o Jesus de Saramago se encontram atde um generoso e no-dogmtico ponto de vista

    cristo:

    O Deus cristo no um ser autossuficiente comoo da Primeira Causa de Aristteles, mas um Deusque cria um mundo que continua a amar aindaque este se recuse a am-lo de volta. Aparece nestemundo, no como Apolo ou Afrodite poderiamaparecer, disfarado de homem para que nenhum

    humano possa reconhecer-lhe a divindade, mas

    como um verdadeiro homem que abertamenteproclama ser Deus. E a consequncia inevitvel.As mais altas autoridades religiosas e temporaiscondenam-No como um blasfemo e um Senhor do

    Desgoverno, como um mau Companheiro paraa humanidade. Inevitvel porque, como disse

    Richelieu A salvao do Estado est neste mundoe a Histria ainda no nos forneceu qualquer

    prova de que o Prncipe deste mundo tenha

    mudado de carcter

    O Deus de Saramago, como referi, no ama omundo nem espera que o mundo o ame de vol-ta. Ele deseja poder, to extenso quanto possvel.E o Jesus de Saramago no passa da aparnciade um Deus disfarado de homem, embora oseu Jesus tenha sido sequestrado por Deus, paraservir os propsitos de poder de Deus. Quanto aSatans, o Prncipe deste mundo, sabemos que

    Saramago mudouo seu carcter.O ttulo do romance O Evangelho Segundo Je-

    sus Cristo, sendo que segundo o termo mais

    importante. O Jesus de Saramago um ironista,um espantosamente suave ironista, se conside-rarmos a sua vitimao por Deus. Antes de en-contrar Joo Baptista, dito a Jesus que Joo mais alto, mais pesado, mais barbudo, andrajosoe que sobrevive de gafanhotos e de mel selvagem.

    Parece bem mais o Messias do que eu, disse Jesus,e levantou-se da roda

    O romance de Saramago comea e terminacom a Crucificao, apresentada no princpiocom uma ironia considervel, mas no final com

    umpathosterrvel:

    Jesus morre, morre, e j o vai deixando a vida,quando de sbito o cu por cima da sua cabea seabre de par em par e Deus aparece, vestido comoestivera na barca, e a sua voz ressoa por toda aterra, dizendo, Tu s o meu Filho muito amado,em ti pus toda a minha complacncia. Ento Jesuscompreendeu que viera trazido ao engano como se

    leva o cordeiro ao sacrifcio, que a sua vida foratraada para morrer assim desde o princpio dos

    princpios, e, subindo-lhe lembrana o rio de sanguee de sofrimento que do seu lado ir nascer e alagartoda a terra, clamou para o cu aberto onde Deus

    sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele no sabe oque fez. Depois, foi morrendo no meio de um sonho,estava em Nazar e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendoos ombros e sorrindo tambm, Nem eu posso fazer-te

    todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas asrespostas. Ainda havia nele um resto de vida quandosentiu que uma esponja embebida em gua e vinagrelhe roava os lbios, e ento, olhando para baixo, deu

    por um homem que se afastava com um balde e umacana ao ombro. J no chegou a ver, posta no cho, atigela negra para onde o seu sangue gotejava.

    Homens, perdoai-lhe, porque ele no sabeo que fez testemunha tanto da doura de Jesus

    quanto da fria esteticamente controlada de Sa-ramago. Nem um leitor desinteressado, livre deideologias e de credos, ir perdoar o Deus de

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    Saramago pelo homicdio de Jesus e pelas con-sequentes torrentes de sangue humano que deleresultaro. Stephen de Joyce fala do Deus car-rasco, como alguns italianos ainda o chamam,e este precisamente o Deus de Saramago. Istopor si s seria suficientemente aterrador mas ainda ampliado pelo longo e amoroso retrato queSaramago faz de Jesus.

    A histria deste Jesus principia e terminacom uma tigela de cermica, que comea por seroferecida a Maria, a me de Jesus, por um pedin-te, um anjo aparente. A tigela transborda de terraluminosa, presumivelmente por cair; no final ela

    recolhe o sangue de Jesus moribundo. O pedinte Deus, e no Pastor, e aparece de novo a Marianum sonho-viso que tambm um encontroamoroso. Quando Jesus nasce, Deus manifesta--se de novo como o terceiro dos pastores que pas-sam, trazendo po de um tipo oculto. Supe-seque se trata de uma analogia subtil semente deDeus que resulta na carne de Jesus, mas Sarama-go de tal forma matizado que a suposio tem

    por vezes de ser evitada, neste livro misterioso.Aos treze anos de idade, Jesus sai de casa por-

    que os Romanos crucificaram o seu pai Jos, umainveno totalmente da autoria de Saramago, talcomo a cumplicidade parcial de Jos no massa-cre dos inocentes por Herodes tambm umasugesto bastante surpreendente de Saramago, e tambm outro tormento para Jesus que o levamais adiante no seu caminho.

    Mas por que altera tanto a histria Saramago?Talvez esta seja de todas a verso mais humanade um Jesus que tem de sofrer a escurido de doispais, o amoroso, desafortunado e culpado Jos, e osem-amor, afortunado e ainda mais culpado Deus.

    Quando o menino Jesus se disputa com osdoutores da Lei no Templo, lembro-me outra vezde como o agostiniano Saramago fez Deus e a Lei.Ningum discute com este anacronismo, porqueo Deus de Saramago est ele prprio ansioso por

    abandonar o judasmo (por assim dizer) pelo ca-tolicismo. E alm disso, podemos conceder a Sa-ramago os seus anacronismos neste maravilhoso

    livro, tal como se concedem anacronismos semfim a Shakespeare. Porm, a culpa no umapreocupao do Jesus apenas tradicional queme move, o Jesus do Evangelho de Toms. Em-bora eu seja um Gnstico Judeu a explicar umbelo livro escrito por um portugus que no um catlico, no mais do que Fernando Pessoa oera. Neste preciso ponto da narrativa, Saramagojunta Jesus e Pastor, e aquela curiosa estadia queexaminei previamente.

    E contudo a principal ligao de Jesus na suavida, como Saramago a v e conta, no nem comos seus pais, nem com o diabo, nem com Maria a

    sua me, mas com a prostituta Maria Madalena.De todos os esplendores do Evangelho de Sara-mago, o amor entre Jesus e a Madalena o maisgrandioso, e o seu encontro e unio para mim oauge da obra de Saramago, at data. Ecoando oCntico dos Cnticos, Saramago um grande ar-tista quando entrelaa uma rplica a Pastor como despertar de Jesus para a vida sexual:

    Jesus respirava precipitadamente, mas houve ummomento em que pareceu sufocar, e isso foi quandoas mos dela, a esquerda colocada sobre a testa, adireita sobre os tornozelos, principiaram uma lentacarcia, na direo uma da outra, ambas atradasao mesmo ponto central, onde, quando chegadas,no se detiveram mais do que um instante, pararegressarem com a mesma lentido ao ponto de

    partida, donde recomearam o movimento. No

    aprendeste nada, vai-te, dissera Pastor, e quiquisesse dizer que ele no aprendera a defender avida. Agora Maria de Magdala ensinara-lhe

    Podemos anular o qui e Maria de Mag-dala a melhor professora de Jesus, eclipsandoJos, Deus, Pastor e Maria a me. No momentoque deve ser o mais irnico do livro ela ensina--lhe a liberdade, que Deus no permite a nenhumhomem, e particularmente no permite ao nico

    filho de Deus.Eu prprio acabei de fazer setenta anos e

    pergunto com mais urgncia que antes: onde

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    pode ser encontrada a sabedoria? A sabedoriado Evangelho de Saramago muito dura: s per-doando Deus podemos emular Jesus, mas noacreditamos, com Jesus, que Deus no sabe o queDeus fez.

    Encontro o eplogo para o Evangelho, no naCegueira,uma parbola to obscura como qual-quer outra, mas no encantador Conto da Ilha Des-conhecida, uma breve fbula composta em 1998,o ano do prmio Nobel, e traduzida um ano maistarde por Margaret Jull Costa. Na maravilhosaveia cmica de O Cerco de Lisboa, o conto de Sa-ramago comea com um homem pedindo a um

    rei um barco para navegar em busca da ilha des-conhecida. Conseguido o barco, o homem deixao porto, seguido pela mulher da limpeza do rei,que ir constituir o resto da tripulao.

    A mulher da limpeza, com um soberbo de-sassombro, faz o voto que ela e o homem sejamsuficientes para levar a caravela at ilha desco-nhecida, animando assim o homem, cuja vonta-de no se equipara dela. Deitam-se em beliches

    separados, bombordo e estibordo, mas ele tempesadelos, at que encontra a sombra dela aolado da sombra dele:

    Acordou abraado mulher da limpeza, e ela a ele,confundidos os corpos, confundidos os beliches, queno se sabe se este o de bombordo ou o de estibordo.

    Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e amulher foram pintar na proa do barco, de um lado

    e do outro, em letras brancas, o nome que aindafaltava dar caravela. Pela hora do meio-dia, coma mar, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar,

    procura de si mesma.

    Saramago no nomeia ningum: sou critica-mente ultrajante o suficiente para me aventurarcom algumas nomeaes experimentais, comoanttese ao Evangelho de Saramago. Chamemosao homem Jesus Cristo, experimentemos a mu-

    lher da limpeza como Maria Madalena e o rei,que existe para receber favores, ser Deus. Semdvida, Saramago abanaria a cabea, mas um

    gnio narrativo to audacioso inspira audcia aoseu crtico. Ningum ser crucificado nos mas-tros da Ilha Desconhecida, e os pesadelos desteJesus no se realizaro. O conto feliz de Sarama-go um antdoto momentneo mais trgica dassuas obras. Cuidado com um Deus que ao mes-mo tempo verdade e tempo, avisa-nos Saramago,e abandone-se um tal Deus para navegar em bus-ca de si mesmo.

    Obras citadas

    Auden, W.H. The Princes Dog. The Dyers

    Hand and Other Essays. New York: RandomHouse, 1962. 182208.Gibbon, Edward. The History of the Declineand fall of the Roman Empire. Vol. 1. New YorkHeritage Press, 1946.Kierkegaard, Sren. Concluding Unscientific

    Postscript to Philosophical Fragments. Vol. l. Ed.and trans. Howard V. Hong and Edna H. Hong.Princeton: Princeton UP, 1992.

    Saramago, Jos. The Gospel According to JesusChrist, Trans. Giovanni Pontiero. New York:Harcourt Brace, 1994.. The Tale of the Unknown Island. Trans.Margaret Jull Costa. New York: Harcourt Brace,1999.

    NdT: a passagem a negrito no consta do texto em ingls.

    Suponho que o tradutor do Evangelhono tenha conseguido

    passar para o ingls o jogo de palavras sobre Pessoa e os hete-

    rnimos, tendo optado por saltar a referncia e por traduzir

    no sejam mais do que heternimos por sejam o mesmo

    Deus.

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    A CORAGEMDE JOS SARAMAGO

    Mario Benedetti

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    Ilustrao de Joo Fazenda

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    OUTORGAO DONobel a Jos Saramago,para alegria dos seusfiis leitores e raiva doVaticano, honra, cla-ro, o escritor portugusmas, e sobretudo, pres-tigia a Academia Sue-ca e revela a sua atualindependncia, j quepremiar neste globaliza-do fim de sculo um es-critor confessadamente

    comunista no me parece que a benquiste com

    os turiferrios do poder. Poucos dias depois de oPapa ter beatificado uma personagem croata quecolaborou abertamente com o fascismo, a hip-crita indignao do Vaticano face ao ltimo Nobelmereceu esta resposta de Saramago: O Vaticanoescandaliza-se facilmente pelos outros e no pelos seus

    prprios escndalos. Gostaria que o Vaticano me ex-plicasse o que isso de ser um comunista recalcitrante.Talvez queiram dizer coerente. Eu s digo ao Vaticano

    que continue com as suas oraes e deixe os outros empaz. Tenho um profundo respeito pelos crentes, masno pela instituio da Igreja. O cristianismo ensi-nou-nos a amar-nos uns aos outros. Eu no tenho ainteno de amar toda a gente, mas sim a de respeitartoda a gente.A verdade que o comunismo militante de Sa-ramago nunca o assimilou ao chamado realismosocialista. Os seus romances so de um nvel ede um rigor literrios verdadeiramente exce-cionais. Saramago no s um narrador origi-nal, como tambm tem a coragem de se atrevera escrever sobre temas que no parecem ser os

    mais adequados para a literatura. parte O Anoda Morte de Ricardo Reis, essa obra-prima que lhedeu fama, os seus dois ltimos romances,Ensaio

    sobre a Cegueirae Todos os Nomes, perscrutam, nonas aparncias mas sim nas essncias do ser hu-mano. Estas obras fora de srie so duas grandesmetforas, duas inslitas fices, mas uma vezinstalado nelas, o autor guia-as com a naturali-dade com que conduziria relatos de costumes. Oleitor descobre que o extravagante se torna quo-tidiano, que o paradoxal se torna corrente, e isso o que mais perturba porque, entre outras coi-sas, o leitor torna-se cego com todos os cegos erecupera a viso ao mesmo tempo que eles.

    No entanto, o verdadeiro complemento destaobra esplndida Jos Saramago como pessoa.Confesso que admiro essa pessoa tanto como ad-miro a sua obra. Tive a sorte de conhec-lo em1987. Tnhamos assistido a um Encontro de Es-critores em Berlim e estivemos cinco horas noaeroporto de Roma, espera da ligao com umvoo que nos trouxesse a Madrid. Ele estava com asua mulher, Pilar del Ro, uma simptica andalu-

    za, que com o passar dos anos se converteu tam-bm na sua melhor tradutora. Cinco horas sosuficientes para falar de todos os temas do Uni-verso e arredores. No nos tnhamos lido um aooutro, pelo que, a pedido de Pilar, comemos acontar os nossos livros. O melhor foi que des-se encontro nasceu uma boa e slida amizade,que teve um belo auge quando, no dia seguinteao do anncio do Nobel, Saramago me telefonoudo avio que o levava de Frankfurt a Madrid (euestava ainda a convalescer de uma operao) epude assim dar-lhe o meu forte abrao areo.Uma coisa que muito admiro em Saramago a sua

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    forte coerncia e o seu valor para a manter. Recor-do que, em 1992, em plena Exposio de Sevilha,ele disse coisas como esta: Existe a irresistvel ten-tao de nos perguntarmos se os gigantescos impriosindustriais e financeiros de hoje no esto, como pode-

    res supranacionais que so, a reduzir a probabilidadedemocrtica, que se encontra conservada na sua for-ma mas, se no me engano, demasiado pervertida na

    sua essncia.Vrios anos depois, quando se apresentou emMadrid a verso espanhola de Ensaio sobre a Ce-

    gueira, Saramago expressou a sua polmica opi-nio sobre a democracia, e que era mais ou me-nos assim (no guardei a citao textual): certo

    que, em democracia, os povos elegem os seusdeputados, por vezes o seu presidente, mas essesgovernantes democraticamente eleitos so ime-diatamente pressionados, dirigidos, adminis-trados, manipulados e virtualmente suplanta-dos pelos grandes decisores supranacionais, talcomo o Fundo Monetrio Internacional, o BancoMundial ou a Trilateral. E a estes, perguntouSaramago, quem os elege?

    H poucas horas, na concorridssima confern-cia de imprensa que deu em Madrid aps a ob-teno do Nobel, recordou que um grupo socialfrancamente minoritrio o dono da maior parte

    do capital mundial. E concluiu: Por isso que estemundo uma merda. Aplaudiram-no.Que na globalizao da hipocrisia em que vivemos,

    quando a relao de Monika Lewinsky ocupa maisttulos de imprensa do que a crise israelo-palesti-niana, a queda da bolsa nipnica ou a extenso daSIDA, quando a globalizao da frivolidade no sengloba consumidores e consumidos mas tambmpolticos e intelectuais; que logo agora surja um es-critor que no tem medo do compromisso e diz comtoda a claridade e simplicidade o seu declogo deverdades, parece-me um acontecimento extraordi-nrio. Para muitos intelectuais que passeiam com oseu pedestal s costas e transportam o seu silncioculpado para no se zangarem com o Big Brother,a atitude normal e sem rebuos de Saramago vaidireita conscincia. Nunca o vimos fazer conces-ses para obter prmios ou privilgios, e quandono seu pas deu de caras com a censura, preferiuexilar-se com Pilar em Lanzarote, onde vivemtranquilos com o seu co Camese onde os novoslivros tm vindo a surgir. A partir dessa ilha singu-

    lar, viaja e ouve com ouvido faulkneriano o som e afria do mundo. Com a sua melhor solidariedade,submerge-se em Chiapas. Tenta (para mal-estar daIgreja) humanizar o prprio Jesus. Recorda aos jo-vens que se tivesse morrido aos 60 anos, no teriaescrito nada, e aos 75 anos adiciona: Quero que os

    jovens saibam que ns, os velhos, estamos aqui paratrabalhar. E ele trabalha. Romance aps romance.Compromisso aps compromisso. Toda a minha

    obra uma meditao sobre o erro, disse em 1990.Talvez por isso atravesse a histria, a cegueira, arotina, a f, como um esforo para desfazer agravose tambm para a si mesmo se emendar os defeitos.

    Com Nobel ou sem Nobel, Jos Saramago um dos criadores mais notveis que nos deu estesculo que agora nos deixa, e no s da desaten-dida lngua portuguesa, mas tambm da univer-sal lngua do homem.

    Quero que os

    jovens saibam quens, os velhos,estamos aqui paratrabalhar. E eletrabalha. Romanceaps romance.

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    LINGUAGEM E HISTRIASEGUNDO JOS SARAMAGO

    Manuel Gusmo

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    A CIRCUNSTNCIA a da atribuio do Nobel, vale a pena procurarna leitura da obra roma-nesca de Jos Saramagoalguns dos traos da suasingularidade. Sabendoque qualquer singulari-dade se tece numa redede relaes e numa parti-cular constelao de pro-cedimentos, proponho--vos algumas notas em

    torno de dois tpicos: o dos modos da escrita, e o

    das configuraes da historicidade.

    LINGUAGEM...A obra romanesca de Jos Saramago marcada

    por dois gestos verbais para cuja conexo gostariade chamar a ateno. Por um lado, trata-se de umaforma de frase e, designadamente, de uma pontu-ao que aparece como caracterstica, e, por outro,daquilo que se pode descrever como uma apropria-

    o ativa da herana literria, cruzada com a inven-o e a imitao de formas da coloquialidade maiscomum. A sua frase parece por vezes conter, entredois pontos finais, vrias frases, ditas no mnimopor duas personagens e, frequentemente, por trs(sendo que uma dessas personagens pode ser a donarrador). Essas frases, contidas numa, so sepa-radas por vrgulas que podem estar a substituirpontos de interrogao, so dados apenas pelamaiscula inicial de uma palavra que vem depoisde uma vrgula. Estamos perante uma frase pluri-vocal: como se fossem vrios a dizer uma frase,e essa frase, que um acontecimento do dilogo,

    pode ento comportar o confronto de pontos devista. Este modo de frasear produz efeitos rtmicose prosdicos, percecionados por uma espcie deouvido mental, e coopera com a construo de umaimagem ou de um efeito do narrador oral, partici-pante ativo naquilo que conta. Entretanto, pela suadimenso plurivocal, e sobretudo quando a liga-mos a outros traos do universo romanesco que elaajuda a construir, esta forma de frase produz umoutro efeito particularmente importante; ela mos-tra a radical socialidade da linguagem, de qualquerlngua, e de qualquer ato de fala. Mostra aquilo queem alguma teoria da linguagem se tematiza, quan-do se diz que nunca ningum diz sozinho uma fra-

    se h sempre o outro que a ouve, o outro da com-preenso, da resposta, ou da dissenso. Mesmo nacmara ntima de cada um, a frase que s dizemosmentalmente dita a um desdobramento do eu.Por outro lado, falamos sempre com as palavrasdos outros, deformando-as um pouco, certo; epor a passa a possibilidade da individuao e dasingularidade. nesse sentido, tambm, que o di-logo a forma bsica da fala, e que numa s frase

    se podem ouvir vrias vozes. A plurivocalidade tambm polifonia.Esta assuno da socialidade da linguagem,

    inserida como um dispositivo da narrao, podeainda ligar-se ao modo como insistentemente,em alguns dos seus romances, se joga com essetipo particular de frases do idioma que so osprovrbios, frases supostamente indeformveisque conteriam, congelado, um sentido nico,uma sabedoria monolgica.

    Saramago chega aqui de duas maneiras: porum lado, pode usar o mesmo provrbio emcontextos diferentes, de modo a mostrar que ele

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    pode significar coisas diversas e, no limite, inver-sas; por outro lado, deforma e inventa provr-bios. Este modo de usar e construir provrbios

    constitui uma marca do jogo verbal (o homo lo-quens tambm um homo ludens) e um processodo ironizao (de carnavalizao) do saber, oudo dialogismo (vale a pena ler, a propsito, oensaio de Jos Mattoso sobre os provrbios por-tugueses).

    Esta ostenso do uso das palavras dos ou-tros, de que acima falei, o que podemos en-contrar num outro plano textual no regime ci-tacional de certos romances de Saramago (porexemplo, em O Ano da Morte de Ricardo Reis) e,mais amplamente, no modo como ele se apropriade registos discursivos e estilsticos da tradioliterria. Por aqui passa, agora, a dimenso tex-tual (escrita) da narrao, que corrige a ima-gem do narrador oral. A citao (assinalada ouno), glosa e deformao de versos de Pessoa--Ricardo Reis, a transformao de uma frmulade Cames na primeira e na ltima frases desse

    livro sobre Reis, as revisitaes do barroco, aimitao de ritmos sintticos e construes re-tricas do padre Antnio Vieira (que abrem, porexemplo, a Viagem a Portugal), os ecos de Garrettou de Camilo, constituem mais do que um gestode integrao no cnone, mais do que homena-gens aos antepassados. Cruzam-se com os gestosde imitao da oralidade e das vozes popularese so uma forma de apropriao autoconstituti-

    va, um operador de historicizao transtempo-ral. Por a, a possibilidade de dissoluo de umaidentidade cultural nacional (e nisso reside umdos papis propiciadores de Viagem a Portugal,observados por Maria Alzira Seixo), o romanceresponde, no pela rigidificao de uma supostaidentidade monolgica, mas antes pela constru-o de uma identidade dialgica, social e histori-camente heterognea.

    E HISTRIA

    Os leitores e a receo crtica tm insistentee diversamente encontrado uma relao com a

    histria em Saramago. Talvez possamos dizerque o processamento ficcional dos seus roman-ces constitui uma forma singular de ficciona-

    lizao de matria histrica. Antes de avanar,gostaria de lembrar, at porque tambm nissojoga Saramago, que usamos a palavra histriaem pelo menos trs sentidos; (a) a histriaque a existncia dos humanos no tempo, a histriaque em dadas condies fazemos e vivemos; (b)a histriaenquanto nome de uma disciplina, osescritos historiogrficos; (c) e a atividade de con-tar estrias (histrias de vida, contos vrios,relatos, lendas, mitos, etc.). O que fazemos em

    (b) e (c) tem parte, ou parte, tendencialmenteconflitual, do que fazemos em (a). Quando conta-mos ou escrevemos histria, no nos limitamos aconhecer ou imaginar um passado, inscrevemoso nosso presente e estamos de alguma forma escuta do que a vem (chamamos-lhe o futuro).Em Jos Saramago, a lio de matria histri-ca (passada, atual, ou de um futuro inventado),mesmo quando produz mundos possveis, no

    limite alternativos ao mundo emprico tal como socialmente construdo pelo senso comum, re-conhecido pela historiografia, ou reconstitudopelas cincias da natureza, uma fico histricanos seus gestos, uma fico que historiciza o vi-ver. Giuseppe Tavani assinalou j como a ltimafrase do 1. captulo de Levantado do Cho indi-cia eficazmente aquilo que podemos tomar comouma persistente e variante estratgia narrativa.

    Levou sculos para chegar a isto, quem duvi-dara de que assim vai ficar at consumao dossculos? E esta outra gente quem , solta e mida,que veio com a terra, embora no registada na es-critura, almas mortas, ou ainda vivas? A sabedoriade Deus, amados filhos, infinita: a est a terra equem a h de trabalhar, crescei e multiplicai-me dizo latifndio. Mas tudo isto pode ser contado de ou-tra maneira.

    Contar isto (a histria da terra e do latifndio)de outra maneira significa voltar a contar algoque j foi contado. Trata-se de um outro modo decontar e de outra matria contvel: aqueles que

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    no tm registo na escritura termo notarial etermo que designa uma escrita oficial ou can-nica, sancionada por uma lei, a dos senhores.Mas vai tratar-se tambm de, neste outro con-tar, ensaiar respostas pergunta do pargrafoanterior, que podia ser lida como uma pergun-ta retrica, implicando uma resposta negativa.O romance vir, entre outras coisas, a mudar aresposta a essa pergunta; vir dizer que sim,h quem tenha dvidas quanto a qualquer ante-cipao da consumao dos tempos, ou do fimda histria; que no, talvez as coisas no fiquemassim.

    Vrios dos romances posteriores de Sarama-go procedero assim; supem um texto ou textosprvios, nos quais descobrem ou inventam umalacuna, textos que corrigem, ou que vo voltaruns contra os outros. Assim, em Memorial doConvento a historiografia oficial; em O Ano da

    Morte de Ricardo Reis a fico heteronmica dePessoa; em A Jangada de Pedra o texto polticodominante sobre a integrao europeia; em His-

    tria do Cerco de Lisboa por um lado crnicas ehistoriografia, mas tambm a fico de um textohistoriogrfico a que o protagonista impe umno, o que o levar a passar de revisor a autor;em O Evangelho segundo Jesus Cristo os evange-lhos cannicos e apcrifos.

    O tipo de texto suposto e os modos da suapresena explcita ou implcita na narrativa,os procedimentos ficcionais de subverso desse

    texto, e as suas consequncias na construo dosmundos narrativos variam de romance para ro-mance, mas mantm nessa variao a dimensode ficcionalizao irnica, rapsdica e polmicada histria j escrita. Esta ficcionalizao tendea mostrar sempre, na enunciao narrativa, opresente histrico em que se escreve, criando aunidade de uma contradio, pela qual o narra-dor se simula contemporneo da ao passadaque conta e, ao mesmo tempo, alude contempo-

    raneidade do autor emprico. Vrios traos coo-peram na produo de um efeito de obra, comorplica ou simulacro do mundo de mundos que

    temos como mundo real; podemos encontrar onome de Saramago disseminado em textos seus,ou mesmo encontrar representaes oblquasdo autor; o Julio Mau-Tempo do Memorial ,necessariamente, na lgica da fico, um ante-passado dos Mau-Tempo do Levantado do Cho;um romance de Saramago pode citar ou aludira um outro romance seu. No processo de preen-chimento da lacuna, da correo ou emendado texto prvio, encontramos outros procedi-mentos reiterados, na configurao do espaoe tempo e das populaes do mundo narrativo.Encontramos, por exemplo, acontecimentos fan-

    tsticos ou maravilhosos (os poderes de Blimun-da, o voo da passarola, as conversas de Reis como espectro de Pessoa; a separao e a navegaoda Pennsula lbrica); anacronismos e alucina-es que sobrepem, na simultaneidade, tem-pos cronolgica e historicamente afastados (porexemplo, naHistria do Cerco de Lisboa); a mistu-ra de personagens ficcionais (Baltasar e Blimun-da), com personagens que a fico constri sobre

    indivduos historicamente atestados (D. Joo V,Bartolomeu Loureno e Domenico Scarlatti, ouPessoa), e com reficcionalizaes de personagensque j existiam como fices (Ricardo Reis, porexemplo).

    UMA NARR ATIVA T ICO-POLTICAVrios destes procedimentos encontramo-

    -los num tipo de fico histrica que emblem-

    tico da ps-modernidade; mas a singularidadede Jos Saramago est tambm no modo comoa sua fico oferece resistncia a uma certa vul-gata ps-modernista enquanto aceitao de umsuposto fim da Histria e das ideologias. Nomodo como o moderno, mais do que se esgotarna ps-modernidade a integra como uma fasede uma modernidade longa. Talvez esteja justa-mente aqui uma das razes textuais da ampli-tude heterognea dos seus leitores no modo

    como Saramago une desejo de fico e desejo dehistria, como sintoma de crise e gesto de crtica,como receio da barbrie e desejo de um outro fu-

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    turo. Tais desejos e receios manifestam-se maisnitidamente nos ltimos romances, Ensaio sobrea Cegueirae Todos os Nomes,onde adquire evidn-cia uma forma de romance como alegoria (queentretanto j est latente, pelo menos, emJanga-da de Pedrae emEvangelho segundo Jesus Cristo).Esta alegoria, que comea por ser a narrativiza-o de uma metfora, no se fecha entretanto nairreversibilidade de um duplo sentido nem nogesto de uma apologtica. Nela, um ceticismo eum pessimismo ativos no desistem entretantoda compaixo, da tnue sombra de uma esperan-a. A de podermos ser outros. NoMemorial, por

    exemplo:se Blimunda tivesse vindo despedida sem ter

    comido o seu po, que vontade veria em cada um, ade ser outra coisa

    Os traos dessa insistncia do moderno estojustamente na persistncia de um ethos, que vemde trs e longa e variantemente sustentado.Esse ethos uma marca tico-poltica e inscre-ve-se na articulao entre os gestos verbais e as

    configuraes da historicidade; desde a macro--estrutura textual at ao nvel da frase. Mostra--se: no escrever a voz dos que no tm lugar naescritura; nas apresentaes dos construtoresdo convento, na oratria e na cincia de Barto-lomeu, e na arte de Scarlatti; nas listas de nomesprprios de mortos annimos e/ou histricosque em vrios romances aparecem; na compai-xo irnica pelo aristocrata indiferente Ricardo

    Reis, e na presena intermitente dos navios darevolta dos marinheiros; na passagem do revi-sor a autor, na reversibilidade entre quem cercae quem cercado, e na homenagem ao rei-poeta,D. Dinis; no humano, demasiado humano deCristo; na catstrofe da cegueira, na mulher domdico e na fraternidade que sobrevive e faz so-breviver.

    Esse ethos inscreve-se no gesto verbal da ci-tao deformada, na entoao enunciativa, na

    significao posicional e no sentido histrico etranstemporal da ltima frase de O Ano da Mortede Ricardo Reis:

    Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.E , tambm, um princpio de relativizao e

    deformao da perspetiva, que permite inscre-ver um partis pris pelas gentes que no vm naescritura, e pela humanidade (ofendida) dos hu-manos:

    Toda a gente se admirava com o tamanho des-medido da pedra, To grande. Mas Baltasar mur-murou, olhando a baslica, To pequena.

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    A MORTE TIRA UMAS FRIASJames Wood

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    T r a d u o d e A n a B e a t r i z M a n s o

    Ilustrao de Javier Olivares

    FILSOFO BERNARDWilliams escreveu emtempos um ensaio inti-tulado O Caso Makro-pulos, no qual defendiaque a vida eterna deve-ria ser to entedianteque ningum a suporta-ria. Segundo Williams,a constncia que defineum eu eterno implicariaum infinito deserto deexperincias repetitivas,

    para que o eu no fosse alterado a ponto de ser es-

    vaziado de qualquer definio. por esse motivoque, na pea de Karel Capek a que Williams vaibuscar o seu ttulo, a personagem Elina Makro-pulos, com trezentos e quarenta e dois anos, tendoingerido o elixir da vida eterna desde os quarentae dois anos de idade, decide descontinuar o regi-me e morre. A vida precisa da morte para cons-tituir o seu significado; a morte o perodo negroque comanda a sintaxe da vida.

    EmAs Intermitncias da Morte, Jos Saramago,um autor cujas frases longas e ininterruptas sorelativamente estranhas ao perodo, escreveu umromance que funciona como uma experincia depensamento no campo Capek/Williams. (O seuromance no faz qualquer aluso explcita a ne-nhum dos dois.) meia-noite de uma vspera deAno Novo, num pas sem nome do interior comcerca de dez milhes de habitantes, a Morte decla-ra trguas Humanidade, uma interrupo vo-luntria, de modo a dar s pessoas a ideia de comoseria viver para sempre. De incio, as pessoas fi-cam evidentemente eufricas:

    Tendo vivido, at estes dias de confuso, naquiloque haviam imaginado ser o melhor de todos os mun-dos possveis e provveis, descobriam, deliciados, queo melhor, realmente o melhor, era agora que estava aacontecer, que j o tinham ali mesmo, porta de casa,uma vida nica, maravilhosa, sem o medo quotidia-no da rangente tesoura da parca, a imortalidade na

    ptria que nos deu o ser, a salvo de incomodidadesmetafsicas e grtis para toda a gente, sem uma cartade prego para abrir hora da morte, tu para o para-so, tu para o purgatrio, tu para o inferno, nesta en-cruzilhada se separavam em outros tempos, queridoscompanheiros deste vale de lgrimas chamado terra,os nossos destinos no outro mundo.

    Mas as incomodidades metafsicas, pol-ticas, pragmticas no tardam a fazer a sua re-entrada. A Igreja Catlica a primeira instituioa pressentir o perigo. O Cardeal telefona ao pri-meiro-ministro para realar que se se acabassea morte no poderia haver ressurreio, e que seno houvesse ressurreio, ento no teria sentidohaver igreja. Para o Cardeal, a vida sem a morte equivalente a Deus decidir o Seu prprio fim. A

    vida sem a morte abole a alma. Numa assembleiaonde est reunido um grupo de filsofos e clri-gos, ambos os lados concordam que a religio pre-cisa tanto da morte como do po para a boca. Avida sem a morte como a vida sem Deus, diz umdos sacerdotes, porque se os seres humanos nomorressem tudo passaria a ser permitido. (Esta uma verso do medo dostoiesvskiano de que, semDeus, tudo permitido.) Um dos filsofos, numtom semelhante ao do astuciosamente secularSaramago, sugere que, uma vez que a morte eranotoriamente, o nico instrumento de lavourade que deus parecia dispor na terra para lavrar os

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    caminhos que deveriam conduzir ao seu reino, aconcluso bvia e irrebatvel de que toda a hist-ria santa termina inevitavelmente num beco semsada.

    Um pas onde ningum morre transforma-seinevitavelmente num zoolgico malthusiano. Osvelhos que estavam beira da morte na vsperade Ano Novo mantm-se simplesmente beira,inertes na sua dessuetude. Os cangalheiros, osvendedores de seguros de vida e os diretores dehospitais e lares de idosos veem-se, por diversasrazes, ameaados pelo desemprego ou pela hipe-ratividade. No tardar a que o estado deixe de ser

    capaz de pagar a manuteno dos seus cidados.E, embora esta sbita utopia possa ser agora omelhor de todos os mundos possveis, podemossempre confiar nos humanos para destruremutopias. As famlias com membros envelhecidos eenfermos apercebem-se de que precisam da mor-te para os salvar de uma eternidade de cuidados cabeceira da cama. Uma vez que a morte nofoi suspensa nos pases vizinhos, a soluo bvia

    transportar o Avzinho adoentado para l dafronteira, onde a morte far o seu trabalho. Umaorganizao semelhante Mfia assume o contro-lo destas fugas para a morte, uma operao com asecreta conivncia do governo, visto que nenhumestado tem dinheiro para pagar uma expanso in-finita. Tal como o primeiro-ministro alerta o Rei,se no voltarmos a morrer no temos futuro.

    As Intermitncias da Morte uma pequena e

    mordaz adio obra de um grande romancista.Com eficcia, coloca em movimento o seu hipot-tico caso de teste e gera rapidamente um conjuntode pertinentes questes teolgicas e metafsicasrelativas desejabilidade da utopia, possibilida-de do Paraso e aos verdadeiros alicerces da reli-gio. O trabalho recente de Saramago inclinou-semais para o vagamente metafrico, com atoresannimos e universais no lugar de personagensindividuais. Estes livros seriam assumidamente

    ensasticos se no fossem as extraordinrias fra-ses de Saramago e a subtileza das suas narrativas.Na ausncia de pessoas ficcionais vvidas, as fra-

    ses de Saramago, nas quais um narrador ou gru-po de narradores tem sempre uma forte presena,constituem uma espcie de comunidade prpria:so altamente povoadas.

    Alguma da escrita mais significativa dos l-timos trinta anos tem-se deliciado com as fraseslongas e sem regras pensemos em Thomas Ber-nhard, Bohumil Hrabal, W. G. Sebald, RobertoBolao mas ningum apresenta propriamenteo mesmo tom de Saramago. Ele possui uma ca-pacidade de parecer sbio e ignorante ao mesmotempo, como se no estivesse realmente a narraras histrias que narra. Muitas vezes, usa aqui-

    lo que se poderia chamar de estilo livre indiretono identificado as suas fices do a sensaode no estarem a ser contadas por um autor, massim por, digamos assim, um grupo de idosos s-bios e algo grrulos, sentados no cais em Lisboa,a fumar um cigarro, sendo um deles o prprioescritor. Esta comunidade aprecia trusmos, pro-vrbios, lugares-comuns. Est escrito que no sepode ter tudo na vida, diz-nos o narrador deAs

    Intermitncias da Morte, e acrescenta: assim avida, vai dando com uma mo at que chega o diaem que tira tudo com a outra. O narrador de umromance anterior anuncia: A fama, ai de ns, uma aragem que tanto vai como vem, um cata--vento que tanto vira a norte como a sul. E numoutro: Diz-se, desde os tempos clssicos, que afortuna protege os audaciosos. Estas trivialida-des nunca so propriamente validadas nem refu-

    tadas; so ironizadas pela bvia lacuna que existeentre o conhecedor escritor ps-moderno laurea-do com um Nobel enquanto produz as suas ficese a pessoa ou pessoas que aparentemente narramessas fices.

    O estilo contnuo uma parte importante des-sa ironia: a falta de flego empresta uma sensa-o de desregramento loquaz, como se diferentespessoas interviessem para dar a sua opinio. Umanica frase longa parece muitas vezes ter sido es-

    crita por diferentes vozes, e o tumulto sem pon-tuao permite astutas voltas e reviravoltas, comoquando um lugar-comum se apanha a si prprio

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    no ato de ser um lugar-comum e se retrata: Umhomem desses, salvo pouqussimas excepessem lugar nesta histria, nunca passar de umpobre diabo, curioso que se diga sempre pobrediabo e nunca se diga pobre deus. Na frase acer-ca da euforia inicial das pessoas quando a morte suspensa, repare-se que uma imagem potica doCeifeiro (rangente tesoura da parca) d lugar auma imagem mais comum (carta de prego paraabrir hora da morte ) e depois a um total lugar--comum j gasto (este vale de lgrimas chamadoterra), e que esta progresso permite a presenasimultnea do escritor, que tem as suas imagens,

    e das pessoas sobre as quais est a escrever, quetm as delas. E a ocorre um intercmbio mgico:quando chegamos ao final dessa frase acerca damorte, a elegante imagem mtica parece de algu-ma maneira muito menos poderosa do que a ima-gem mais banal.

    Deste modo, a prosa de Saramago d-nos umasensao simultaneamente moderna e antiga. O es-critor est a trabalhar de modo consciente, atrain-

    do constantemente a ateno para a narrao, masa narrao parece mergulhar facilmente num pro-blema da mochila universal, fazer florescer as suasverdades franzinas e sbias. esta abordagemastuciosamente modesta que permite a Saramagoescrever as suas fices especulativas e fantsti-cas como se se tratassem dos acontecimentos maisprovveis e dar-lhes uma slida literalidade umpas sem nome atacado por uma epidemia de ce-

    gueira, a Pennsula Ibrica separada do continenteeuropeu e transformada numa enorme ilha flutu-ante, um homem que caminha pelas ruas de Lisboae que ao mesmo tempo inegavelmente real e umfantasma literrio. Em certos aspetos, a sua obraest mais prxima da de um satirista como Lucia-no, cujos esquissos imaginam pessoas a viajar paraa Lua ou para o Hades, ou os deuses a altercarementre eles, do que da de qualquer romancista con-temporneo. Quando, no novo romance de Sara-

    mago, a Morte decide finalmente pr fim sua in-terrupo e deixar a mortalidade seguir de novoo seu caminho, a Igreja, que andara a rezar por tal

    restabelecimento, fica agradada: As preces ha-viam demorado quase oito meses a chegar ao cu,mas h que pensar que s para atingir o planetamarte precisamos de seis, e o cu, como fcil deimaginar, dever estar muito mais para l, treze milmilhes de anos-luz de distncia da terra, nmerosredondos. Essa voz incitadora, com a sua parciali-dade antiteolgica, tem reminiscncias no apenasde Luciano mas tambm do lucinico Leon BattistaAlberti, cuja stira quatrocentistaMomus imaginao caos que poderia instalar-se no Cu caso todospedissem ao mesmo tempo a Deus que atendessea uma prece.

    O curto romance de Saramago d azo a ques-tes semelhantes. Se a vida eterna no poderia demodo nenhum funcionar na Terra, porque ser aeternidade etrea to ardentemente desejada? Tal-vez seja pela nossa esperana desesperada de queo Cu seja o mesmo que a Terra mas tambm mui-to diferente, uma vez que o Homem arruna Para-sos. Para Saramago, como para Bernard Willia-ms, o problema no apenas o facto de os homens

    serem assassinos natos de utopias; o de que aprpria eternidade a vida para sempre ininter-rupta parece insustentvel. E, neste romance,Saramago faz mais do que provocar Dostoivski.Pois, se o desaparecimento de Deus significa quetudo permitido, e o desaparecimento da mortesignifica que tudo permitido, ento, pelo tcitocatecismo do romancista, Deus deve ser a mortee a morte deve ser Deus. No de admirar que a

    religio precise da morte: a morte o nico Deusem que podemos acreditar.Saramago atrado para estas inverses gns-

    ticas. Naquele que possivelmente o seu melhorlivro, O Evangelho Segundo Jesus Cristo(1991), o ro-mancista conta de forma distintiva a histria davida e morte de Jesus sem alterar nenhum dos fac-tos famosos, ao mesmo tempo que vira do avessoa teologia dos Evangelhos. Certo dia, Jos, o pai deJesus, ouve acidentalmente alguns soldados a co-

    mentarem as ordens de Herodes para que sejammortas todas as crianas com menos de trs anosde idade. Corre para casa para esconder a sua mu-

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    lher e o filho recm-nascido, mas esquece-se deavisar o resto da aldeia. Pelo seu pecado, anunciamais tarde um anjo a Maria, Jos ir sofrer. E omeu filho?, pergunta ela ao anjo. Disse o anjo, So-bre a cabea dos filhos h-de sempre cair a culpados pais, a sombra da culpa de Jos j escurece afronte do teu filho, escreve Saramago. A seu tem-po, Jos capturado por soldados romanos queabafam uma rebelio e crucificado juntamentecom outros trinta e nove judeus. Por seu turno, Je-sus torna-se obcecado por uma sensao de culpaherdada e pela ideia de que, tal como ele diz, Omeu pai matou os meninos de Belm. Na fora

    de um relmpago pelo dedo do blasfemo contadorda histria, Saramago transforma um dilema teo-lgico que lhe familiar o Deus bom que trazJesus ao mundo tambm o Deus mau que per-mite o massacre de bebs inocentes num pro-fundo imbrglio. De repente, Jesus amaldioadopor uma forma de pecado original, e o seu sacrif-cio na Cruz torna-se no uma expiao do pecadodo Homem mas sim um legado do mesmo: segue

    as pegadas do pai, amaldioado pela linhagem pa-ternal. Deus no perdoa os pecados que mandacometer, assim coloca a questo o narrador. NaCruz, ouvindo o seu Pai celestial a declamar a par-tir das nuvens Tu s o meu Filho muito amado,em ti pus toda a minha complacncia, Jesus bra-da: Homens, perdoai-lhe, porque ele no sabe oque fez. a derradeira e mais perversa inversodo romance.

    O Evangelho Segundo Jesus Cristocausou enor-me controvrsia no Portugal catlico (Jesus dor-me e vive com Maria Madalena), mas este o maispio dos livros blasfemos. Por detrs das suas fe-rozes ironias, Saramago parece no fazer mais doque encarar a Encarnao com a maior seriedadepossvel: se Jesus nasceu homem, parece ele di-zer, ento herdar tudo aquilo a que um homemest sujeito, incluindo o pecado, que, seja comofor, provm de Deus. A fasquia est muito alta,

    mas o temperamento autoral ameno, inquiridor,amadurecido. E se Deus fosse o Diabo?, pareceperguntar o autor, espreitando docilmente para

    ns atravs dos seus culos de armao escurae do tamanho de uma televiso. De certa manei-ra, ele o menos fantico dos romancistas, porinsistir de modo to implacvel nas suas hipte-ses ficcionais, seguindo-as atravs de grandes ehumanas concluses. O seu novo romance vai--se tornando gradualmente menos conceptual

    e crescentemente tocante, sem nunca se tornarrealista em nenhum sentido convencional, nemsequer plausvel.

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    As Intermitncias

    da Morte gerarapidamenteum conjuntode pertinentesquestes teolgicas

    e metafsicasrelativas desejabilidadeda utopia,

    possibilidadedo Paraso eaos verdadeirosalicerces dareligio.

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    Ele representa-nos a Morte como uma ausn-cia feminina encarnada, um esqueleto num lenolque vive numa sala subterrnea glida, apenasacompanhada pela sua muito utilizada gadanha.(Ele tambm lhe nega um M maisculo.) Pas-sados os seus sete meses de interrupo volunt-ria, esta deusa sombria envia uma carta para umaestao de televiso a anunciar que vai pr fim sua experincia porque os humanos agiram demodo to deplorvel. As pessoas morrero denovo ao ritmo antigo, que de cerca de trezentaspor dia. De acordo com as novas regras, aos ci-dados cujo tempo terminou ser dado um aviso

    com uma semana de antecedncia: cada um delesreceber uma carta de cor violeta, um aviso detrmino vindo da prpria Morte. Esta concessoaparentemente humana o nomeado passa a tertempo para pedir a sua licena, pr a sua proprie-dade em ordem, e por a em diante insuporta-velmente cruel, claro est, uma vez que a maioriadas pessoas preferiria ser surpreendida pela mor-te do que condenada a ela. Um desses nomeados,

    um violoncelista de cinquenta anos, desnorteia adeusa. A Morte escolheu-o para o trmino, mas acarta de cor violeta repetidamente devolvida aoremetente; o violoncelista parece recusar as suasordens. Numa srie de cenas inesperadamentebelas, a Morte, bastante perplexa, insinua-se noapartamento do violoncelista e senta-se em siln-cio a observ-lo enquanto ele dorme; v o modocomo se levanta de noite para beber um copo de

    gua e deixar o co ir rua, v uma suite de Bach(a n. 6) na sua cadeira, e por a em diante. Estna hora de o violoncelista morrer extinguiu-seo tempo que lhe havia sido prescrito ao nascer mas a Morte parece no ter nenhum poder sobreeste homem qualquer, nem feio nem bonito.

    Em Todos os Nomes, um romance anterior como qual este novo faz uma bvia parceria, um mo-desto auxiliar de escrita torna-se obcecado poruma cidad perfeitamente comum, uma mulher

    cujo nome na certido de nascimento o apanhade surpresa certa tarde no seu local de trabalho,a Conservatria Geral do Registo Civil. Tal como

    no novo romance, o funcionrio seleciona umacidad das fileiras dos mortos e vivos e, de formagradual, sem nunca a nomear (tambm o violon-celista permanece sem nome), dota-a de uma par-ticularidade metafsica.

    tambm isto que faz o romancista: pega numnome, numa personagem, numa pessoa, e salva-ado esquecimento silencioso atravs da irradiaode palavras. Mas tambm pode mat-la sempreque assim o deseje: todos os romances so inter-rompidos simplesmente porque chegam ao fim.Falamos de poder autoral omnisciente porque osescritores tm o poder de decidir a vida e a morte

    dos seus nomes. O auxiliar de escrita de Todosos Nomes, que conhecido simplesmente comoSr. Jos, partilha o mesmo nome prprio com oromancista. No seu novo romance, Saramago tor-na a pedir-nos que reflitamos acerca dos poderesdivinos do contador de histrias. Quando a cartada Morte publicada nos jornais, consulta-se umgramtico, que toma nota da sua sintaxe catica,da ausncia de pontos finais, do no uso de parn-

    tesis absolutamente necessrios, da eliminaoobsessiva dos pargrafos, da virgulao aos salti-nhos (). A Morte escreve como Jos Saramago.Enquanto a Morte observa o violoncelista a be-ber, Saramago escreve que ela olhou para a guae fez um esforo para imaginar o que seria tersede, mas no o conseguiu. O leitor indaga-se:se a Morte no consegue imaginar a sede, conse-guir porventura imaginar a morte? E o roman-

    cista? Uma resposta que Saramago oferece aampla verdade antiga e universal na direo daqual a sua fico complexa tem vindo a viajar a de que, se no nos escudarmos da morte nemansiarmos religiosamente por venc-la, mas, pelocontrrio, aceitarmos a antiga realidade de queno seio da vida estamos na morte, ento a morterodeia-nos como a vida, e imaginar a morte , naverdade, imaginar a vida.

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    OM JORGE AMADO Epouqussimos mais, Sara-mago um dos raros lu-sofalantes que conseguiusair do crculo lingusticoportugus, que j escrito-res como Machado de Assisconsideravam uma priso,e impor-se como escritorsupranacional, primeiroibrico e depois, simples-mente, escritor pertencenteao mundo.

    A profunda relao com a realidade e a atua-

    lidade que a obra literria de Jos Saramago es-tabelece (seja a narrativa, seja a poesia, a crnicaou o teatro), a sua componente de denncia deuma histria cujas estruturas aparentes so des-montadas e remontadas, seguindo de cada vezum desenho diferente, em busca de significadossempre novos, fez com que, mesmo nestes diasto ricos em invenes interpretativas, as formastenham levado a pior ao enfrentar os contedos.

    No entanto, penso que no possvel separar asduas coisas e continuo a utilizar categorias comoas propostas por Hjelmslev: forma do contedoe forma da expresso. Continuo a acreditar numestruturalismo que se obstina e decai; continuo aafirmar que numa obra tudo significa e que for-mas e contedos participam juntos na criao deum sentido, do sentido concebido ao mesmo tem-po como sentido atribudo pelo narrador e sentidopercebido pelo recetor, nessa obra determinada enessa determinada circunstncia. Eis aqui a razoque justifica o ttulo destas linhas: Um estilo comoideologia.

    claro que quem isto escreve, por formao eideologia, no pode falar seno dos modos, isto ,das formas. Os fins so arcanos e parecem trans-cender-se uns aos outros. Deixo-os, pois, para aanlise de um filsofo, qui um existencialista,enquanto entro no terreno em que se desenvolvea minha atividade.

    Ocupar-me-ei, portanto, apenas daquela orali-dade que parece ter-se convertido na caractersti-ca que singulariza a escrita de Saramago, a partirde um romance comoLevantado do Cho, que em1980 marcou uma passagem criativa do nossoautor. Uma passagem de toda a sua escrita, tantono sentido temporal como estilstico e de gnero,

    mas tambm de xito.Com efeito, o estilo oral, se queremos definir des-

    te modo o estilo narrativo mais recente de Saramago,parece ter nascido nesta obra potica, juntamentecom tantas outras coisas, depois daquele 25 de abrilde 1974, que, para a gerao de Saramago e a minha,dividiu em dois, no s a Histria de Portugal (umaHistria com H grande) mas tambm a prpria his-tria individual e poltica (aqui com minscula) de

    cada um dos seus membros. ento quando, depoisda chamada Revoluo dos Cravos, o escritor por-tugus Jos Saramago, que em todos esses anos deespera, mais alm tambm do mito populista doselfmade man, no tinha feito mais do que escrever, flo-resce, como por milagre, revelando-se como escritorde primeiro plano no s na sua ptria mas tambm,e sobretudo, no exterior. E floresce como portadorno apenas de uma nova forma de sentir e contar ahistria, mas tambm como inventor de uma nova emuito peculiar escrita literria.

    A oralidade de Saramago muito diferente,por exemplo, da dos escritores iberoamericanos

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    UM ESTILO COMO IDEOLOGIALuciana Stegagno Picchio

    Ilustrao Luis Granea

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    do nosso sculo, a comear por Jorge Amado eGuimares Rosa. Este ltimo, ainda dentro de umexpressionismo cheio de aluses e implicaescultas e universais, tenta reproduzir uma deter-minada linguagem regional cujos pontos fortesso as estruturas sintticas e morfolgicas, massobre todo o lxico, ainda que reinterpretado e al-terado. A de Saramago, em compensao, umaoralidade teorizada pelo prprio quando diz aosseus crticos e ao seu pblico perplexo diante dapgina compacta, aparentemente sem flego, sem

    pontos nem vrgulas: Leiam-me em voz alta., por assim dizer, uma oralidade mentalizada,evocada dentro do narrador omnisciente. Chegacomo uma msica interior, re-elaborada pelo in-consciente coletivo a que prefiro chamar social emvez de regional; e isto, mesmo quando o oral seapresenta como a voz dos trabalhadores de umadeterminada regio de Portugal, como o Alente-jo. Os resultados grficos desta gravao fni-ca so essas pginas compactas, aparentementesem pausas nem brancos (o silence alentour do li-teratssimo e gutenbergo-dependente Mallarm),sem marcas de pontuao nem grafemas conven-

    cionais, como as aspas para indicar o comeo e ofinal de uma rplica de dilogo. Saramago inventaas suas prprias regras grficas e em seguida res-peita-as escrupulosamente (por isso ns, os seuscrticos, nos aborrecemos tanto quando os edito-res, conhecedores de outras normas grficas ge-neralizadas, intervm nas tradues, nivelando--as e, por conseguinte, trivializando-as com basenessas normas). Quando Saramago introduz uma

    vrgula e uma maiscula, estamos noutra frase,na rplica de outro interlocutor, o qual, por outrolado, no fala diretamente com a sua voz, percebi-da pelo narrador como distanciao teatral, dra-mtico, brechtiano, mas sim que fala atravs dagravao, saboreando o autor cada palavra sua,cada frase (o provrbio, o dito, a expresso polis-smica). E a interpretao do autor o que chegaao pblico. Por isso falo de sentido criado conjun-

    tamente pela forma e pelo contedo. E por issocontinuo a falar de estilo como ideologia.O estilo oral de Saramago, constitudo por

    entoaes, por traos supersegmentais, por su-blinhados, por mudanas de voz e de tom, pres-supe uma execuo coletiva, multivocal, em quecada voz se distingue pela individualidade dotimbre, mas que ao mesmo tempo est sujeita sregras rigorosas de uma partitura, obedecendo aleis rtmicas, cromticas, de appoggiatura e de ca-

    dncia. Uma literatura para os ouvidos, alm depara os olhos. Da que Saramago insista semprenos condicionamentos tmbricos e meldicos que

    A [linguagem]

    de Saramago uma oralidadeteorizada peloprprio quando dizaos seus crticose ao seu pblicoperplexo diante dapgina compacta,aparentemente sem

    flego, sem pontosnem vrgulas:Leiam-me em vozalta.

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    governam a sua criao. Da tambm a dificuldadede traduzir Saramago. como propor um guiodramtico, certamente teatral, com papis bemdistribudos entre os que dizem o texto e os que oescutam, mas onde o autor, que coincide semprecom o narrador, est dentro e no fosse do espe-tculo. Frente a cada quadro esse autor diz ns,nunca eles, como na literatura oral, juglaresca,brechtiana, dos seus predecessores.

    A prova do que digo chega do Saramago dra-maturgo, no inferior ao outro, o romancista, massem dvida outro. Dir-se-ia que este tipo de lin-guagem, imagem fnico-grfica, cone evocativo

    de um fluxo de memria feito de sons e de vozes etraduzido mais tarde na escritura, deveria encon-trar a sua realizao mais plena no teatro. Porqueesse um gnero fundamentalmente ligado exe-cuo oral e receo, fruio auditiva mais doque visual, como por definio o caso da narra-tiva. Pelo contrrio, no mesmo assim. Se a obranarrativa, pelo menos no que se refere a Sarama-go, surge sempre do centro da personalidade do

    escritor, como sua razo ntima e justificao exis-tencial, como sua memria visual, auditiva, mastambm olfativa e ttil, o teatro de Saramago nas-ce de estmulos exteriores. Nasce romanticamen-te, talvez mais que realisticamente, tomando a for-ma de um manifesto, em apoio e como ilustraode uma tese na qual as personagens tm funesde categorias de ao, quase abstratas e como taissupra-regionais e supranacionais. Neste sentido,

    a sua linguagem neutra, capaz de ser decalcadaem qualquer lngua do mundo, fcil de traduzir,destinada traduo, como o recente In Nomine

    Dei, pensado desde a sua conceo para uma ver-so em alemo e uma execuo com o suporte deuma msica semantizante. Uma linguagem emnada aparentada com peculiaridades lingusticasregionais das quais refletisse expressionistica-mente a realizao sonora. No por acaso que,das quatro obras dramticas j escritas, e deixan-

    do de lado Blimunda, retirada por outros do seuMemorial do Convento, o seu texto poeticamentemais autnomo acontea ser o primeiro: Aquela

    Noite de 1979 que, ao pr em cena uma realidadevivida na carne, transcreve, como numa dupladistanciao e, aqui sim, teatral, brechtiana, a lin-guagem do poder e a da oposio na noite que ser-ve de passagem do velho ao novo Portugal.

    Neste sentido, parece-me que o teatro estpara a narrativa como a escultura para a pintura.Como a escultura, o teatro cria, copiando-as davida, figuras de vulto que projetam autonoma-mente a sua sombra debaixo do sol. Enquanto anarrativa projeta sobre a pgina, como sobre umatela, a imagem da vida, produzindo, com os artif-cios dos sublinhados, dos claro-escuros, da pers-

    petiva, no o decalque ou a interpretao, mas atransfigurao da realidade. Nisto Saramago ummestre. Porque a realidade que ele interpreta parans, sem nunca a copiar, estimula os cinco senti-dos, bem como as nossas categorias estticas. Massobretudo estimula as nossas conscincias.

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    UANDO, NO VEROpassado, levados pelonosso amigo Juan Cruz,fomos, Silvia e eu, visitar--vos, a Pilar e a ti, na ilhade Lanzarote, primeiropensei: esta ilha no exis-te, uma miragem, apro-ximo-me de uma navede pedra fantasmagricaancorada frente costade frica... Como quepode existir uma ilha que

    no acaba de nascer, que ainda no teve tempo de

    fazer histria?Olhamos as montanhas de fogo gelado que do-

    minam a paisagem e recordamos que s h doissculos existem. Olha: encontramo-nos numa ilhatrmula onde o fogo est enterrado mas continuavivo, onde basta plantar uma rvore a menos de ummetro para que as suas razes ardam e verter umcntaro de gua numa cova para que o lquido ferva.

    Ali vivem Pilar e tu, Saramago, e ao chegar a

    Lanzarote eu perguntei-me: Como pode este es-critor escrever rodeado de cordilheiras debaixo domar e areias de um azul mais intenso que o do oce-ano e do cu juntos? Que poderes possui Saramagopara vencer com a sua pena, dia a dia, a naturezaterrvel, gelada e fervente ao mesmo tempo, des-ta ilha que devia permanecer, talvez para sempre,submersa, parte da cratera do mar?

    Perdoa-me, Saramago, mas desde ento leio ereleio os teus livros imaginando-me em Lanzarotee imaginando-te a ti escrevendo-os todos nessa ilhaque te permite viajar pela vida sobre uma jangadade pedra com velas de papel.

    Lanzarote a paisagem do primeiro dia da cria-o.

    E no primeiro dia da criao, Deus disse que noprincpio era o Verbo e retirou-se para a sua herda-de de nuvens, tendo aberto e fechado, instantane-amente, com o seu nico verbo, o livro da criao.

    Ento chegou Saramago e disse:Est certo. No princpio foi o Verbo, mas o verbo

    no eterno, simplesmente interminvel.Talvez Deus, ao dizer a sua primeira palavra,

    pensasse que dizia a ltima palavra.E os poderes do mundo estiveram de acordo

    com Deus. No h nada a acrescentar. Tudo estdito, tudo est legislado. As imperfeies do mun-

    do so menores e podemos consert-las, como seconserta um automvel ou uma cafeteira.

    Por outro lado, chegou Saramago, o romancis-ta, e disse-nos: Nada est dito. Tudo est por dizer.

    Cada vez que algum diz Tudo est Dito, issosignifica que No se disse Nada. Ou que j no sedeve dizer mais. Ao calar, disse-se.

    Jos Saramago quer unir-se assim aos homense s mulheres que querem dizer as suas palavras.

    Esta a razo do seu trabalho e a honra dos seusromances: Dizer a palavra anterior, a herdada. Mastambm a palavra por vir, a desejada. Esta a co-lheita do romancista Saramago: tudo o que foi ditoe o que falta dizer.

    Estou a definir a arte de Reis, o Memorial doConvento, a Histria do Cerco de Lisboa, o Evange-lho Segundo Jesus Cristo, oEnsaio sobre a Cegueirae,finalmente, Todos os Nomes, os nomes da humani-dade que no disse a sua ltima palavra.

    Ricardo Reis, Saramago: Somos mais que um sFernando Pessoa, somos uma pluralidade de seresfaladores, todos podemos ser poetas. Histria do

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    SARAMAGO EM JALISCOCarlos Fuentes

    Ilustrao de Alex Gozblau

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    Cerco de Lisboa, Saramago: Basta mudar um dadopara que mude a histria. Como o jogador de xa-drez, o romancista Saramago, ao mover uma peado tabuleiro, sacrifica o milho e meio de possibi-lidades e consequncias que um movimento dife-rente tivesse desencadeado. Assim presta contas

    Saramago verdade: multiplicando as possibilida-des da liberdade.

    O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Saramago:Porque que o carpinteiro Jos no avisou todas asmes de Israel daquilo que Jos sabe: que Herodesvai assassinar todos os recm-nascidos do reino?Para salvar Jesus, para que Jesus cumpra o seu des-tino, que ser, tambm, a sorte da morte? Ser queJos reserva Jesus para a morte no Glgota? Para

    isso salva-o Herodes? E os outros, todos os outrosmeninos, esses o qu? Pode elevar-se a glria deDeus ou de um governo sobre a misria de um smenino morto?

    Todos os Nomes, Saramago: O Sr. Jos, o escrivoda vida e da morte, sabe que no pode pronunciar--se o nome de Deus sobre o silncio annimo de to-dos os homens. Dei o nome de Deus, Saramago, spara reclamar que se digam tambm todos os no-mes silenciados pela crueldade de Herodes.

    s um herege, Saramago, e herege quer dizero que escolhe, o que conta uma histria diferente.Continua a narrar, Saramago, no contes a hist-

    ria que nos contaram, mas sim a histria com queainda sonhamos. No aceites nenhuma verdade,Saramago, pede contas a todas as verdades. No tesubmetas civilizao que nos impem, Saramago,continua a criar uma civilizao qual possamospertencer livremente.

    Avisa os vizinhos, Saramago, escreve para dar avoz de alarme, a vem o assassino, o dspota, o tor-turador, o indiferente, o desdenhoso, o que odeiatodos menos a si mesmo, o que encolhe os ombros;enfrenta-os, Saramago, com a paixo dos teus ro-mances, no te ds por vencido, Saramago, no de-sistas.

    Os teus leitores, apesar de serem muitos, sosempre poucos, mas os teus leitores, mesmo quesejam poucos, so sempre muitos.

    D a cara tua ilha ardente, Saramago, e nave-ga com ela, com a tua jangada de pedra narrativa,ao lado de Pilar, at ns, os teus amigos aqui emGuadalajara, onde os esperamos aos dois, com osbraos abertos, para ouvir finalmente o canto dassereias.

    Continua a escrever, Saramago, a interminvelOdisseia que vais cantando de ilha em ilha, de lei-tor em leitor, at formar o mais bonito arquiplagoda Terra, o rosrio do livro que se nega a escrever apalavra Fim.

    No, a ilha de Saramago no acaba de nascer, ailha no teve tempo de fazer histria, a ilha espera oromance seguinte de Jos Saramago para continu-ar a nascer, para inventar a histria, para dar olhos

    aos cegos e nome aos annimos e justia ao oprimi-do e vida criana.Em meu nome e no nome de Gabriel Garca

    Mrquez, tenho um imenso prazer em oferecer aCtedra Latino-Americana Julio Cortzar ao gran-de es