Blimunda N.º 22 - março 2014

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A Blimunda de março chega carregada de boas leituras. Ricardo Viel conversou demoradamente com Valter Hugo Mãe, Prémio José Saramago de 2007, sobre literatura e sobre a vida. A entrevista vem acompanhada de fotografias do realizador Miguel Gonçalves Mendes, que retratou Hugo Mãe na Islândia, cenário do seu mais recente romance (A Desumanização). Da Póvoa de Varzim, onde no mês passado decorreu a 15ª edição das Correntes d´Escritas, Sara Figueiredo Costa e Ricardo Viel publicam as suas notas sobre os bastidores do principal encontro literário português. Na sua coluna sobre cinema, João Monteiro aborda o tema da censura durante o Estado Novo. Na secção infantil e Juvenil, editada por Andreia Brites, destaque para Maurice Sendak, o "desfazedor de impossibilidades”, quando a Kalandraka nos traz mais uma das suas obras; há ainda uma entrevista a escritora e jornalista Carla Maia de Almeida, a “corajosa” tradutora de Sendak para português.Como é habitual, a revista encerra com a Saramaguiana, que neste mês - em que se assinala o Dia da Mulher - é ocupada por um ensaio de Pedro Fernandes de Oliveira Neto sobre as personagens femininas em Claraboia.Boas leituras e até abril!

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  • M e n s a l N . 2 2 Maro 2 0 1 4 F u n da o J o s S a r a m a g o

    S

    BC E SR TR ENO

    S T S' RE I ACD i eC mAn

    A UT OR A.

    L GE EMV H

    I U D

    N AE

    L N AM

    D K

  • Talvez 100 000 homens, s homens, nada mais que homens, manifestando-se nas ruas, enquanto as mulheres, nos passeios, lhes lanariam flores, este poderia ser o sinal de que a sociedade necessita para combater, desde o seu prprio interior e sem demora, esta vergonha insuportvel. E para que a violncia de gnero, com resultado de morte ou no, passe a ser uma das primeiras dores e preocupaes dos cidados. um sonho, um dever. Pode no ser uma utopia. Jos Saramago

  • ndice5

    Leituras do ms9

    estante de Livros

    1215 anos de Correntes

    desCritas, notas da Pvoa

    Ricardo Viel e Sara Figueiredo Costa

    19a Paz de vaLter Hugo me

    Entrevista por Ricardo Viel

    33Cinema

    os CensuradosJoo Monteiro

    53infantiL e juveniL:

    sendak, o desfazedor de imPossibiLidades

    61Coragem de traduzir um HeriEntrevista a Carla Maia de Almeida

    64destaQue: o meu av

    66notas de rodaP

    69diCionrio Letra C

    70saramaguiana:

    Consideraes sobre o feminino em CLaraboia

    Pedro Fernandes de Oliveira Neto94

    agenda

  • FUNDAO JOS SAR

    AMAGO

    THE JOS SARAMAGO

    FOUNDATION

    CASA DOS BICOS

    ONDE ESTAMOS WHERE TO FIND USRua dos Bacalhoeiros, LisboaTel: ( 351) 218 802 [email protected]

    COMO CHEGAR

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    iro do Pao

    (Linha azul Blue Lin

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    711, 728, 735, 746, 75

    9, 774,

    781, 782, 783, 794

    4

    Segunda a SbadoMonday to Saturday10 s 18 horas10 am to 6 pm

    MADAL

    ENA MA

    TOSO

  • 5Lei turas do MsSara Figueiredo Costa

    deLPHiCa, Herdeira dos gregosEditada pela Crescente Branco, Associao Cultural e Recreativa, a Delphica - letras & artes coordenada por Jorge Fernandes, Jos Manuel de Vasconcelos, Rui Vieira e Verglio Alberto Vieira. No miolo, poesia, fi co, ensaio, entrevistas e traduo convivem num design sbrio que garante leitura o espao necessrio para respirar, sem distraces perante o essencial. Com a herana grega como ponto de partida, a cultura helnica e uma certa ideia de plis feitas carta de intenes, o nmero 1 da Delphica inclui poemas de Eduardo Guerra Carneiro, Xos Maria Alvarz Cccamo, Ivan Junqueira ou Lauren Mendinueta, fi co de Jess del Campo e Rui Vieira, crnica de Joo Barrento, entrevistas a Luis Miguel Cintra, Jos Mouga e Srgio Azevedo e um caderno dedicado a Ral Brando.

    a desPedida do rioA jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho assinou um texto no jornal O Globo sobre a sua despedida do Rio de Janeiro, cidade onde vive h trs anos e meio e sobre a qual tem escrito com regularidade, em crnicas ou reportagens. Aambarcado por uma narrativa do triunfo que infl aciona os preos sem acabar com as desigualdades, o Rio de Janeiro prepara-se para a Copa do Mundo, para os Jogos Olmpicos e para uma certa ideia de prosperidade que se vende como imagem, mas que esconde confl itos, dvidas, falhanos. O Rio, como explica Alexandra Lucas Coelho, tornou-se cidade onde difcil viver: Eu no tenho dinheiro para um apartamento no Rio agora, ou para ter esse dinheiro teria de passar todo o tempo a tentar arrum-lo, e no quero morar numa cidade em que todo o tempo seja gasto tentando arrumar dinheiro para morar l. Uma cidade, entretanto, na qual ser branco j ser rico,

    ser negro j ser pobre, e em que rico ou pobre estimulado a parcelar tudo no carto de crdito, at ao colapso do trnsito, da falha de energia, da falta de gua: certamente a cidade mais bela do mundo capitalista. Como o Rio no vai perder os seus poetas? Como a fl oresta no vai virar um safri? Como o morro no vender a vista?No Pblico de 9 de Maro, a jornalista assina a sua ltima crnica, Atlntico Sul, que os leitores portugueses tm acompanhado semanalmente. Termina assim: Sai tristeza, o que levo do Rio no pesa na bagagem.

    Atlntico uSul u

  • 6Lei turas do Ms

    o CoLoniaLismo nosso de Cada diaNo seu espao habitual do suplemento psilon, do jornal Pblico, Antnio Pinto Ribeiro dedicou a pgina de 7 de Maro ao tema do colonialismo e do ps-colonialismo. Numa altura em que a escravatura e a opresso dos negros voltaram ordem do dia pela mo de Steve McQueen e do seu filme 12 Anos Escravo, Pinto Ribeiro prope uma reflexo sobre colonialismo e domnio a partir do presente, reequacionando uma herana que no diz respeito apenas aos povos colonizados: Entre o que foi promovido e reclamado pelos primeiros lutadores pela causa da libertao das colnias europeias e a actualidade, entre os anos 30 do sculo passado e a publicao muito recente da obra j incontornvel de Achille Mbembe acima mencionada (Critique de la raison ngre, 2013), muita coisa aconteceu. Esse processo vai da assuno virulenta e necessria de uma ideologia

    dois dos nue-ve novsimosCom poucos dias de diferena, desapareceram dois nomes essenciais da poesia espanhola do ltimo sculo. Ana Mara Moix e Leopoldo Mara Panero, ambos integrantes do volume Nueve Novsimos de la Poesa Espaola, de Jos Mara Castellet (1970). No El Pas podem ler-se dois dossiers dedicados aos escritores. Sobre Ana Mara Moix destaca-se um trabalho recente da autora: En los ltimos tiempos haba acendrado su sentido crtico sobre la situacin que vivan Espaa y el mundo, y reflejo de ello fue su Manifiesto personal, un puetazo moral en la mesa de un pas que se haba abandonado a los fastos de los 80 y de los 90 y haba descuidado de manera suicida los valores de una sociedad que no mereca la dejadez civil. No dossier dedicado a Leopoldo Mara Panero inclui-se uma entrevista concedida pelo autor a Jess Ruiz Mantilla e Miguel Mora em 2005 e uma fotogaleria.

    Nueve uNovsimos u

    que rompesse com a opresso colonial (uma vez que esta apenas metamorfoseava o esclavagismo na explorao da fora de trabalho a baixssimo custo, mantendo o negro despojado de cultura porque continuava a ser apenas um indgena) at desconstruo radical do negro, da sua inveno e da inveno da raa. E, mais adiante, Na tese do j referido livro [...] h aspectos que permanecem como chagas e a todos dizem respeito. O primeiro que o negro permanece enquanto fantasmagoria, no j com a frieza do homem-metal ou com a espectacularidade da bailarina Josephine Baker, mas como o africano sem papis que quer chegar a Lampedusa e identificado como fazendo parte de uma raa: a de todos os negros que querem chegar a Lampedusa. Um segundo a irrupo populista tanto em pases europeus como africanos do tema da raa e da sua associao ao nacionalismo. O texto pode ser lido no site Buala, que o republicou.

    Escravos u

  • 7Lei turas do Ms

    o Crnio de CasteLaovvaaatravs editora

    A histria de como este livro se materializou, passando da ideia ao texto e da para as pginas em letra de forma, envolve tantas peripcias como a narrativa que lhe serve de ncleo, um quase-policial em torno do desaparecimento do crnio de Castelao. Comecemos, pois, por Daniel Alfonso Rodrguez Castelao, fi gura maior do nacionalismo galego, homem de esquerda e poltico honrado, autor de textos fi ccionais, dramticos e ensasticos, ilustrador, criador de lbuns de estampas sem os quais a histria cultural da Galiza no seria a mesma e autor de Sempre em Galiza, o livro que todos os galegos orgulhosos de o serem foram guardando nas suas estantes ao longo de geraes (mesmo os que no sabiam ler). Sepultado em Buenos Aires, onde morreu, em 1950, depois de anos no exlio, o corpo de Castelao foi trasladado para o panteo galego, em Santiago de Compostela (curiosamente por um governo autonmico encabeado

    por um dos ministros do mesmo Franco que o levou ao exlio).A hiptese de o crnio de Castelao ter sido roubado o gatilho para um enredo trabalhado a vrias mos por autores do eixo lingustico galego-portugus. Carlos Quiroga, Miguel Miranda, Antn Lopo, Bernardo Ajzenberg, Suso de Toro, Germano Almeida, Quico Cadaval, Possidnio Cachapa, Xavier Queipo, Lus Cardoso e Xurxo Souto responderam chamada lanada em 2000 no mbito do encontro Galego no Mundo, Latim em P, organizado na capital galega. H um ano, trs peridicos cumpriram o propsito original de publicar este texto em regime folhetinesco: Sermos Galiza (Galiza), Jornal de Letras (Portugal) e Rascunho (Brasil). Agora, a Atravs Editora fecha o longo ciclo com a publicao em livro do trabalho coletivo que comeou a esboar-se h catorze anos.O resultado desta narrativa polifnica desigual, por vezes deixando mostra costuras resultantes da mudana de mos, outras tirando partido da estrutura em quase cadver-esquisito para fi ntar o leitor, mas sempre cumpridor da linha inicial proposta aos vrios autores. Ao correr da

    leitura fi ca a impresso de que, estando implcita a impossibilidade de erguer uma histria coerente no

    ritmo, no estilo e nos modos a partir de tantas mos, melhor seria que cada autor tirasse partido de um estilo prprio, brincando com tiques e marcas (como os carnochos de Xurxo Souto) e aproveitando as geografi as de cada um para fazer a histria correr pelo mundo, sempre com a conscincia do absurdo presente, desde logo, no mote que desencadeou estas escritas. Por isso mesmo, O Crnio de Castelao poder no ter os mritos de uma obra-prima, mas no lhe faltam qualidades no apartado de dar a ler um olhar partilhado sobre o patrimnio lingustico comum aos autores, criando uma espcie de frtria que, estendendo-se pelo mundo, no perde o norte nem a origem. A Castelao, cuja genialidade no pensamento no se furtava a um cultivo dedicado do humor, havia

    de agradar esta pardia detetivesca sobre a sua prpria cabea.

  • estante

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    ENRIQUE VILA-MATAS

    kasseL no Con-vida LgiCaTEODOLITO......................................................

    O mais recente romance de Enrique Vila-Matas teve edio portuguesa e espanhola em simultneo. Em portugus, a Teodolito que publica esta refl exo sobre a arte e a literatura contemporneas sob a forma de uma narrativa que comea com um mcguffi n e nunca, at ao fi m, prescinde de questionar tudo, das instituies que avalizam a arte e os artistas s relaes entre as vidas quotidianas e as suas possveis representaes literrias.

    CARLOS QUIROGA

    imPrio do arCONFRARIA DO VENTO......................................................

    Romance de cavalaria do sculo XXI, com os cavalos trocados por avies e as fl orestas por oceanos que precisam de ser atravessados, Imprio do Ar uma gesta pessoal em torno da lngua comum a galegos, portugueses, brasileiros e muitos africanos. Como um segredo guardado pelas pedras do monte Pedroso, em Santiago de Compostela, a demanda deste cavaleiro conquista dos trpicos relembra a linhagem comum do que falamos e escrevemos tanto sem que todos nos saibamos pertena de uma mesma origem.

    MARGARIDA FERNANDES, SOFIA MAGALHES (COM AMORAS)

    CoLeo fLiPbooksEDICARE......................................................

    So cinco livros animados, que recuperam a ideia de imagem em movimento. Ao folhe-los, o leitor visualiza cinco curtas e inusitadas histrias, onde voam peixes, aves e insetos, palpitam coraes, mos e ps reagem aos invasores. Ainda h livros que saem e regressam s estantes, chvenas que caem ao cho, espelhos, torres, poltronas e sanitas. As pginas combinam fotografi as de elementos em porcelana com desenho e padres que, todos juntos, remetem para outra poca e outro lugar. Estes ipbooks de bolso so a primeira edio portuguesa da Edicare.

    MICHAEL ENDE

    momoPRESENA......................................................

    Momo um livro de referncia no universo infantojuvenil. Escrito pelo alemo Michael Ende em 1973, refl ete sobre o sentido do tempo e a sua condio indispensvel. Momo uma menina especial que ter como misso recuperar o tempo roubado por um exrcito cinzento, cujos efeitos sobre as pessoas so devastadores. Esta parbola social amplia as signifi caes do tempo para traar um retrato dos perigos da manipulao da sociedade. Mais tarde, o autor regressa ao tpico da durao em Never Ending Story (1979). O livro foi um best seller, e continua a ser reeditado em muitos pases.

  • 10

    ERIC CARLE

    amigosKalandraka......................................................

    No seu mais recente lbum Eric Carle narra uma singela histria de amizade entre um menino e uma menina. A partida dela leva o protagonista a partir, percorrendo o mundo ao seu encontro. Fiel sua esttica, o autor apresenta cenrios naturais sensoriais, jogando com o papel pintado e o recorte e uma economia textual que com eles dialoga. O fi nal enfatiza a poeticidade da obra, alargando o seu sentido e esbatendo fronteiras sobre sentimentos. A simplicidade mais uma vez a prova maior da excelncia da sua arte.

    MARIA TERESA HORTA

    ambas as mos sobre o CorPoD. QUIXOTE......................................................

    Reedio da primeira incurso de Maria Teresa Horta no romance. Originalmente publicado em 1970, Ambas as Mos Sobre o Corpo resulta do cruzamento de vrias vozes e linhas narrativas que, em interao, revelam o discurso mltiplo de uma mulher cuja identidade se constri atravs de um rigoroso e experimental trabalho de linguagem.

    VVAA

    do branCo ao negroSEXTANTE......................................................

    Doze contos cujo tema comum a cor assinados por autoras como Ana Lusa Amaral, Elgga Moreira, Ldia Jorge, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Yvette K. Centeno. Cada autora escolheu uma cor para servir de mote ao seu texto, criando uma gradao coletiva que comea no branco e termina no negro. Ilustrado por Rita Roquette de Vasconcellos, os direitos autorais do livro Do Branco ao Negro revertem a favor da Associao Alzheimer Portugal.

    ANDR CARRILHO

    inrCiaABYSMO......................................................

    Um lbum onde Andr Carrilho regista desenhos feitos em viagem. Para l do dirio capaz de registar o movimento, as imagens aqui publicadas refl etem, muitas vezes, momentos de pausa, contemplao e refl exo sobre a paisagem, natural e humana, que se v. Em Lisboa ou em Macau, dois dos pontos por onde passam estas pginas, o trao de Carrilho sempre ponto de partida efi caz para pensar o modo como olhamos para o mundo.

    estante

  • portugal 3

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  • notas da Pvoa

    correntes descritas15 anos de

    Ricardo Viel e Sara Figueiredo Costa

    Fotografias de Jos Carlos Marques

    l l lAs Correntes dEscritas deviam mudar-se, este ano, para o Cine-Teatro Garrett, mas com o atraso das obras de restauro do edifcio a programao decorreu no Hotel Axis Vermar, num auditrio com 600 lugares. Restava saber se o pblico das Correntes, habituado ao antigo espao, quereria deslocar-se at ao hotel, isolado de tudo menos da praia, e se 600 lugares no seriam demasiados para um encontro literrio, apesar do seu sucesso ano aps ano.

    l l lAfonso Cruz anda pelo bar do hotel ou pelo auditrio e parece uma espcie de buda. No pela cabea careca ou pela barba, mas antes por um certo modo sereno de falar e de se mover. Quando desfaz o mito campestre que leva tantos citadinos ao campo como a um den (para logo descobrirem os insetos, a necessidade de trabalhar a terra para que ela produza aquilo que os supermercados oferecem em caixinhas seladas com plstico ou a falta de rede no telemvel) no presunoso ou sarcstico, mas antes lgico e ponderado. Quando conta o episdio em que um amigo chega a sua casa, no Alentejo, e se mostra impressionado com os tomates que cresciam no quintal, sendo que esses tomates no passavam de roms, no traz nas entrelinhas qualquer escrnio. Sem abdicar do riso, fonte e resultado da inteligncia, Afonso Cruz ilumina cada histria com a mesma calma com que caminha. No fim, no rejeita os aplausos, mas regressa s conversas sem iluses

    de olimpos literrios. Talvez por isso escreva com tanto de vertigem narrativa, tecendo o mundo como quem sabe das suas infinitas ligaes, como de ponderada serenidade.

    l l lPor falar em narrativas vertiginosas e ligaes infinitas, a histria do recluso de um estabelecimento prisional do Norte que encontrou um dos dois exemplares especiais da primeira tiragem de Para Onde Vo Os Guarda-Chuvas, de Afonso Cruz, s parece possvel no reino da fico.

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  • l l lAo contrrio do que todos na Pvoa pensavam, Eduardo Loureno no assistiu a todas os eventos das Correntes. Perdeu o lanamento do livro de Patrcia Portela. Foi visto no saguo do hotel, a passos rpidos (dentro do que os seus 91 anos permitem, claro), dirigindo-se sala, mas no meio do caminho foi informado por algum que a apresentao acabara naquele momento. J acabou? Que pena, gostava tanto de ter visto... Notava-se no seu rosto que o lamento era sincero.

    c o r r e n t e s d e s c r i t a s

  • l l lArmadilhas da fico: Michel Laub, autor de Dirio da Queda, diz que o facto de saber que as pessoas tomaro como verdade biogrfica certas histrias que inventa, pensando que tero acontecido consigo ou com a sua famlia, provoca-lhe um certo pudor em cont-las, mesmo no sendo verdade. Na mesma linha, Manuel Jorge Marmelo partilha com o pblico a histria do leitor que lhe garantiu que tinha visto com os prprios olhos o acordeonista hngaro (e fictcio) de Uma Mentira Mil Vezes Repetida, o livro com que venceu o Prmio Literrio Casino da Pvoa/ Correntes dEscritas deste ano.

    c o r r e n t e s d e s c r i t a s

  • l l lDurante os trs dias das Correntes Rui Zink e Onsimo Teotnio de Almeida competiram, cabea a cabea, pelo prmio de participante mais bem humorado das Correntes. Zink comeava, logo cedo, antes mesmo do pequeno-almoo com as suas piadas. Onsimo, por sua vez, mantinha o ritmo at altas horas da noite, mesmo depois de um duro jantar cujo prato fora leito. Fui para representar a juventude, j que Eduardo Loureno estava comigo, explicou.

    c o r r e n t e s d e s c r i t a s

  • l l lJoana Brtholo fala de Vandana Shiva, a activista indiana que tem lutado pelos direitos humanos, pela igualdade e pelo ambiente. O tema poderia parecer deslocado num encontro literrio, ainda por cima porque a autora de Havia destaca, de entre as muitas lutas de Vandana Shiva, a luta contra o monoplio e a patente das sementes que vrias multinacionais esto a tentar concretizar, mas quando se compara a pluralidade do mundo editorial comprometida pela concentrao em grandes grupos com a pluralidade dos tipos de cultivo agrcola, tudo parece encaixar.

    c o r r e n t e s d e s c r i t a s

  • l l lA dica foi dada por Manuel Jorge Marmelo e acolhida por alguns jornalistas que cobriam as Correntes. Da casa de banho, graas a algumas caixas de som, ouvia-se perfeitamente as mesas que aconteciam na sala principal do hotel. No sbado, por conta da completa lotao do auditrio e do calor que ali fazia, alguns jornalistas optaram por acompanhar a sesso de encerramento comodamente sentados na escada que leva casa de banho. Quem por l passava no percebia bem que aquilo se tratava de uma sala de imprensa improvisada.

    c o r r e n t e s d e s c r i t a s

  • l l lNa sexta-feira, depois do jantar, Andrs Neuman, que venceu o Prmio Alfaguara em 2009, perguntava por Jos Ovejero, que ficou com o galardo de 2013. Ao ser informado de que o espanhol j havia subido ao quarto para descansar, o argentino sentenciou: o mal que todos os que ganham o prmio padecem. Durante seis meses tens que percorrer a Amrica Latina para promover o teu livro. No comeo tudo maravilha, comidas diferentes, gente diferente, festas... No final, quando tens uma oportunidade sais silenciosamente e vais para o quarto dormir.

    l l lTendncia crescente na Pvoa so as intervenes sobre o cnone, o estilo, a histria literria ou o trabalho feito a partir da linguagem. H quem lamente a deriva acadmica, mas o cruzamento de histrias e partilhas pessoais com alguma reflexo sobre a arte literria faz todo o sentido num festival como este. As conversas no bar e os mexericos esto muito bem, mas a literatura que traz tanta gente ao auditrio e s apresentaes de livros.

    l l lUm escritor agradecia a um amigo por t-lo resgatado de uma conversa de quinze minutos com uma leitora que trazia todos os seus livros com anotaes e um questionrio sobre cada um deles. Argumentou que queria escapar no por achar a leitora desagradvel. Ela sabia muito mais dos romances do que eu, fiquei assustado, explicou o autor.

    l l lNo sbado, tardinha, alguns escritores aproveitavam o sol no jardim do hotel. Um deles era Antonio Gamoneda, poeta maior da lngua castelhana, que fumava uma cigarrilha, pouco amiga das ordens do mdico, sentado numa cadeira desviada do restaurante ali para fora. A vida durar muito ou pouco, no temos como saber, mas h quem saiba que mais importante do que as apostas sobre o percurso nunca deixar de apreci-lo.

    l l lSeriam os festivais literrios as tertlias de outrora? Era a tese defendida por alguns dos escritores mais novos. Como j no h os famosos e concorridos encontros nos bares e cafs de antigamente, a eles restam-lhes as Correntes. quando se encontram, trocam impresses, falam bem e mal dos que no esto (e dos que esto) e, como no, bebem uns traguinhos juntos.

    l l lNo vale a pena duvidar do interesse que este encontro desperta: os 600 lugares do auditrio estiveram sempre ocupados e houve mesas em que as cadeiras no bastaram, havendo gente sentada no cho, encostada s paredes e at no trio, tentando ouvir o que diziam os participantes da mesa atravs das colunas espalhadas fora do auditrio. Aos quinze anos, as Correntes dEscritas continuam a no fazer sentido e ns s podemos agradecer-lhes por isso.

    c o r r e n t e s d e s c r i t a s

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  • 19

    a P a z d e v a L t e r H u g o m e

    r i C a r d o v i e L

    f o t o g r a f i a s d e m i g u e L g o n a L v e s m e n d e s

  • 20

    Depois de duas horas de conversa e uma pequena batalha pela conta do almoo, mostro o meu bloco de notas a Valter Hugo Me. Um homem apaziguado, eu havia escrito. Acha que esse poderia ser um bom ttulo para um perfil seu?, pergunto-lhe. Valter sorri e responde: Sim, acho que mesmo isso. Acho que atingi a paz possvel, dentro das minhas dores e das minhas frus-traes, daquilo que eu sonhei ser e daquilo que eu sou, eu conse-gui um equilbrio.

    O escritor nascido em Angola e radicado em Portugal chega aos 42 anos com prmios (Jos Saramago e Portugal Telecom), leitores por todo o mundo, mas repleto de inseguranas em rela-o ao seu ofcio e ao seu papel no mundo. Ainda assim, sente que atingiu uma complexa, mas efetiva paz, e por isso grato vida. Foi o que contou Blimunda no comeo deste ms, quando esteve em Lisboa para assistir ao espetculo O Fascismo dos Bons Homens, adaptao do grupo Trigo Limpo teatro ACERT do seu romance A Mquina de Fazer Espanhis. Leia a entrevista:

    Estudou Direito e chegou a trabalhar como advogado. No se pergunta s vezes como seria a sua vida caso no tivesse abando-nado a carreira?

    Seria horrvel. Porque eu chorava muito. Tinha muita dificul-dade em distanciar-me dos problemas dos outros, para mim era demolidor, era muito violento. Eu acabava os meus dias exausto, como se estivesse a divorciar-me de dez mulheres e a ser despedi-do por sete fbricas.

    Mas no acha que o trabalho de escritor muito desgastante tambm?

    . E ingrato, em certo sentido. Porque nunca nada suficien-te, nenhum livro suficiente. Eu posso sentir assim um orgulho parolo, brega, de ter escrito este ou aquele romance, este ou aque-le texto, mas nessa dimenso brega, porque depois parece que volto ao ponto zero, e que no fiz nada. Todos os dias tenho essa sensao de que no fiz nada que valesse a pena, que tenho que comear outra vez e que no sou inteligente o suficiente.

    J o ouvi queixar-se da solido do ofcio de escrever, mas voc mora em Vila do Conde. Nunca passou pela sua cabea ir morar no Porto ou em Lisboa?

    a p a z d e va l t e r h u g o m e

  • 21

    Vila do Conde , para todos os efeitos, uma cidade. O gostar de viver num lugar assim tem que ver com alguma recluso mas tambm uma espcie de anonimato. As pessoas sabem quem eu sou, mas to fcil verem-me na rua que ningum tem urgncia para falar-me. Ento sinto que tenho tempo. E no sinto urgncia de ningum e nada me demora em Vila do Conde, timo. O Porto est ao lado, 15 minutos de carro, e h tudo no Porto, e tento no ir muitas vezes.

    Para no se distrair? Sente-se culpado quando no est a es-crever, quando est com os amigos ou numa festa?

    Eu sinto-me culpado se achar que no dei o meu melhor, se achar que no fui honesto com o texto, ento essa conscincia que no me larga, acusadora e muito punitiva que tenho, no me per-mite encarar a vida como uma coisa fcil. Eu podia achar que es-tou numa fase do meu percurso em que podia gozar alguma coisa, aproveitar, ser feliz na medida do possvel, mas h alguma coisa de disciplinador que me faz at ter medo dos textos. Em ltima anlise, eu vivo sempre assustado com os textos.

    Foi sempre assim?Foi sempre assim, mas vai sendo cada vez pior. Fui sempre

    muito cruel comigo, mas agora piora.A Mquina de Fazer Espanhis foi escrito h quase quatro

    anos. Agora, com essa adaptao ao teatro, de alguma manei-ra reencontra esse texto. Qual a relao que tem com esse livro hoje? Quando l um texto seu, pensa que faria diferente? Gosta de revisitar o que escreveu?

    Odeio, odeio (risos). Faria certamente diferente. O que apro-veito so pequenas coisas de que no lembrava, uma frase de que j no me lembrava e que subitamente me parece bem. Mas tento esquecer, e quando lembro eu tenho uma ternura como se fosse uma av que no visito h muitos anos, ou algum que andou comigo na escola e que fez parte da minha vida, algum de quem gostei muito mas que depois mudou. Enfim, estou apaixonado por outra pessoa, j passou. E ento fica s aquela ternura mis-turada com um bocadinho de saudade, mas nenhuma vontade de voltar a ter uma relao, sabe? Chega! (risos). No crio confuses entre os livros, sei bem de quem gosto. E basicamente o nico livro de que gosto aquele em que estou a trabalhar, o nico livro que talvez capaz de me salvar, ento s posso gostar desse, os outros no me salvaram, no me vo salvar, no podem fazer nada por mim.

    Mas no acha que ao escrever se torna uma pessoa melhor?Quero muito. Quero muito achar que progrido, que estou mais

    perto de uma coisa boa, sobretudo que estou mais perto de ser al-gum em quem eu prprio possa acreditar. Os livros tm que ser-vir para isso, mas vivo muito angustiado com essa ideia de saber se estou melhor, e se mereo alguma coisa, se mereo o que tenho, inclusive se mereo esperar melhor mais ainda. Porque acho que a vida uma porcaria para quase toda a gente, e quando nos oferece algo, deve colocar-nos a questo de se estamos altura, se isso merecido, ou se temos um percurso de abuso em relao ao mun-do. Penso muito nisso...

    a p a z d e va l t e r h u g o m e

  • 22

    Nem os prmios e os muitos leitores o acalmam em relao a isso?

    Nessa dimenso mais imediata bom, bom. muito gratifi-cante. E ao mesmo tempo responsabilizador, e por isso minha an-gstia no deixa de crescer, tambm por causa disso, dessa espcie de companhia.

    Tenho a sensao de que est a ir cada vez mais para um ex-tremo com os seus livros, numa busca de uma linguagem mais potica que passa muito longe de ser uma busca por escrever um livro comercialmente bom. A Desumanizao, por exemplo [lan-ado no final de 2013], no fcil de ler...

    No , e timo que os meus leitores consigam acreditar em mim mesmo diante de um livro mais exigente, mais abstrato. A verdade que eu sempre procuro colocar-me um pouco em ris-co, at porque, como eu no tenho um deslumbre por mim ou por aquilo que eu fao, a minha nica hiptese tentar descobrir coi-sas sobre mim que no conhea. Talvez um dia eu me deslumbre comigo mesmo ou pelo que fao... A nica hiptese procurar mais, procurar outra coisa. Ento sempre fao o livro seguinte bem distante do anterior. Fujo. O meu primeiro livro era um livro de poemas a que chamei Silencioso corpo de fuga e era j isso, essa tentativa de fugir de alguma coisa que acho pouca, que acho pe-quena, e que se calhar sou eu.

    E em A Desumanizao, parece que cada trecho se explica por si. Se o leitor abrir em qualquer pgina e ler, mesmo sem saber a histria, ir encontrar um fragmento que se basta...

    No precisa de entender a narrativa, no ? Eu gosto disso, gosto e acho que caminho nessa direo da prosa como outra dimenso da poesia, as frases todas imbudas de um sentido profundamen-te esttico, alm de obviamente, necessariamente, do seu sentido pico, mas sempre com um sentido profundamente esttico.

    Comeou a escrever poesia e agora est a voltar poesia?A prosa parece, erradamente, pura circunstncia, discurso

    destitudo de literatura. Por vezes alguns livros, alguns ditos ro-mances, no so seno relatos vazios de uma situao, uma des-crio meramente narrativa e sem qualquer aventura de lingua-gem. Isso para mim no literatura, um relato, um testemunho sem preocupao de estar a criar uma pea literria, e a prosa ser tanto mais literria, maior ser a aventura literria, quanto mais prxima da poesia estiver. No significa que eu queira tornar-me um escritor hermtico, sem contar uma histria ou at mesmo sem momentos ldicos, mas significa que quero muito expandir a possibilidade de falar, a experincia de falar. De pensar e de falar.

    No ltimo livro aborda essa questo da impossibilidade de tra-duzir em palavras os sentimentos...

    E essa a angstia constante. Eu acho que quem procurar a literatura como arte, ou melhor, quem procura um texto como li-teratura no deixa de viver com esse impasse, de perceber at que ponto que vale aquilo que se est a fazer, at que ponto que vale a pena acreditar nas palavras. Como que eu posso esperar salvar-me a mim e eventualmente o mundo a partir de um livro. o que Halla, em A Desumanizao, diz, as palavras so demasiado

    a p a z d e va l t e r h u g o m e

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    magras, no cabe nada dentro, no tm nada dentro, a nica coisa que retiramos delas s um som.

    Aquilo que dizia Alejandra Pizarnik [poeta argentina]: se digo gua, beberei? Se digo po, comerei? Ou a palavra cavalo no galopa, como escreve neste livro...

    No galopa. E nenhuma palavra nos serve de barco para irmos embora...

    Ento sente-se cada vez mais longe desse objetivo, embora cada vez tenha uma escrita mais apurada? No vai chegar nunca quilo que busca?

    Nunca (silncio). Mas... no vou desistir de procurar chegar mais perto. Mas na verdade isso: um escritor satisfeito deixa de ser um escritor, um artista satisfeito deixa de ser um artista, passa a ser o comerciante da sua prpria arte. Se eu achasse que escrevia um livro absoluto que me redime para todo o sempre, parava de escrever e era o vendedor desse prprio livro, parava de ser escritor.

    Li uma entrevista em que falava da utilidade da literatura. Qual ?

    Tenho aprendido a aceitar a utilidade dos livros, porque inega-velmente eles servem-me a mim para alguma coisa. Como escritor e como leitor. Sempre me serviram, sempre foram capazes de me mudar a vida. E como escritor percebo que alguns dos meus livros influram decisivamente na vida de alguns de meus leitores. Por isso, vale a pena duvidar, mas arriscar. Vale a pena arriscar tam-bm.

    Diz que nunca teve ambio na vida, mas escrever, comunicar--se e buscar uma utilidade nos livros no uma espcie de ambi-o?

    Nesse sentido , sim. uma ambio de chegar a mim mesmo, antes de qualquer coisa. Quando ganhei o Prmio Jos Saramago no preparei discurso, no sabia o que dizer, e a primeira coisa que eu disse, que me ocorreu, foi que a escrita era um exerccio de solido e que naquele momento eu sentia-me estranho, mas muito grato, por sentir-me acompanhado. Mas se nunca tivesse aconte-cido, se eu nunca tivesse leitores, a escrita nunca estaria ausen-te, nunca desapareceria. Porque, na sua natureza, ela feita para ser uma coisa nossa, h expetativa da comunicao, mas ela parte desse ponto solitrio.

    E se nunca houvesse a expetativa da comunicao?Ento no faria sentido, nem a literatura, nem nada, seramos

    apenas bichos.O Valter tem muitos fantasmas?Os meus fantasmas so quase todos de tica. Eu tenho uma

    culpa crist muito grande. No estou a ser cristo, ou melhor, at acho a figura de Cristo impressionante, maravilhosa. Cristo en-quanto tal, no o que fizeram da bblia. Mas a personagem, eu acho uma figura maravilhosa e respeit-lo-ei. Mas fui muito cren-te, e tenho tendncia para achar que se Deus no existir a natureza pensa. A Desumanizao diz isso: a Islndia pensa, que uma for-ma de dizer que a natureza pensa. E somos observados, e somos talvez julgados, e se ningum me julgar julgo-me eu. E ento estou

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    sempre aterrorizado com a possibilidade de ter sido errado com algum, injusto com algum.

    Mas quem l os seus livros, quem v as suas entrevistas, fica com a impresso de que voc uma pessoa boa...

    Mas eu queria ser melhor. E sinto que em dadas situaes eu falho. Aquilo em que acredito no exatamente aquilo que fao. Por exemplo, durante toda a minha juventude eu achava que ia ser missionrio em frica. Ento hoje, estar aqui a almoar, comprar sapatos novos como fiz agora, sinto que estou muito longe do meu projeto, de verdadeiramente ajudar algum, sabe? Eu vou ajudan-do, mas aquela ajuda confortvel de quem vive confortavelmente e no abdica do seu conforto. Por isso, em ltima anlise, acho que posso s ser um bocadinho melhor do que a mdia, mas sou uma porcaria como toda a gente.

    Eu tenho a sensao de que A Desumanizao um livro pessimista, diferente de O Filho de Mil homens que deixa uma mensagem de esperana, assim?

    Ao escrever O Filho de Mil Homens eu quis acreditar numa fe-licidade e foi o nico livro em que fiz verdadeiramente um pac-to com uma personagem. Fiz um pacto de no-agresso com o Crisstomo. Garanti-lhe, logo no comeo do livro, que ele ia ser feliz. Eu estava a fazer 40 anos, o Crisstomo fez 40 anos, ele queria basicamente o que eu queria, ento eu disse-lhe: vou dar--te tudo o que eu puder dar. Era uma forma de dizer assim: isso vai te acontecer a ti, para que seja possvel acontecer a mim. Para eu perceber como as coisas podem acontecer. meu livro mais

    benigno, nesse sentido de esperanado e bonito, e o livro que cria nas pessoas, genericamente, um impacto mudador. Todos os dias, e isto rigoroso, todos os dias desde que o livro foi pu-blicado recebo mensagens de algum que leu o livro e que no consegue deixar de me falar. Escrevem-me as coisas mais boni-tas acerca da leitura do livro. Todos os dias, e o livro saiu h dois anos e meio. Conheci um rapaz que no queria ter filhos, a mu-lher queria. A mulher deu-lhe O Filho de Mil Homens, ele leu, e tm um filho e chamaram ao filho Valter. E ele diz que eu tinha razo, que a partir do momento em que o filho nasce o mundo muda e tudo o que ns achamos das nossas capacidades acerca de fazer ou deixar de fazer, muda tudo.

    No tem filhos, mas narra a paternidade em O Filho de Mil Homens. E em A Desumanizao coloca-se no papel de uma menina que engravida.

    a maravilha da literatura. A literatura no interessa se for para contar uma e outra vez a nossa vida, ou aquilo que vemos e sabemos. A literatura exatamente ir procura do que no sabe-mos. Escrevo livros para descobrir algo sobre mim que me faa gostar de mim. E por isso tenho de procurar, no fcil.

    O que que a literatura j lhe deu?Amigos, pases, e apaziguar-me. Eu consegui apaziguar-me

    com coisas comuns da vida. O achar que algum dia posso vir a ser bom, um bom homem, feito de pequenos instantes, um acumu-lado. A Desumanizao acaba com uma frase arrasadora que me aponta o dedo como aponta o dedo a toda a gente, mas quando

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  • 25

    eu a escrevi era uma forma de me violentar. A ltima frase diz: Quem no sabe perdoar s sabe coisas pequenas. E isto obriga-me a pensar no que que eu fao, de que modo que guardo os meus remorsos e fico a remoer as minhas mgoas. E sobretudo no que diz respeito aos amores e essas coisas com as quais no podemos ser pragmticos, e a literatura da-me isto, obriga-me a ponderar, a pensar duas vezes, e s vezes d-me o exemplo, serve-me de exem-plo. Quando estou ao p de prevaricar, de perverter aquilo em que acredito, eu lembro-me: eu prprio escrevi que quem no sabe perdoar s sabe coisas pequenas.

    Ento a literatura ajuda-o a ser, ou pelo menos a tentar ser, uma pessoa melhor?!

    Obriga-me. E as pessoas tambm [me obrigam]. As pessoas leem e dizem: foi voc quem escreveu isso, foi voc que disse tal coisa.

    A literatura pode salvar as pessoas, no pode?Os livros podem ser outros, podem ser de outra natureza, os

    meus livros so assim, eu s escrevo como sei. No escrevo nem como quero, escrevo como sei. E os meus livros tm essa aspirao universal de um entendimento qualquer, de uma descodificao universal do homem que nos permite detectar/identificar erros e falhar com uma expetativa de que isso possa ser um mundo me-lhor. Se ingnuo eu no sei, mas prefiro ser ingnuo e acreditar que estou a trabalhar numa construo do que achar-me muito pragmtico e antenado e eventualmente tudo que fao e produzo proponha a destruio.

    Tenho a sensao de que nos seus livros a histria cada vez vai sendo mais secundria, enquanto a linguagem cada vez tem mais importncia.

    Esse mundo da literatura da trama, que o que importa des-cobrir se a donzela casa ou no casa, quem foi que matou, essa aproximao um pouco mais detetivesca, policial, eu estou com-pletamente fora. No tenho nem pacincia para ficar inventando uma trama cheia de possveis culpados, porque para mim no uma hiptese, toda a gente culpada. Nos meus livros a tese essa. Toda a gente culpada, toda a gente terrvel, como toda a gente ou pode ser adorvel.

    o senhor Silva da Mquina de Fazer Espanhis... o senhor Silva, que bate na colega do quarto do lado...Mas que uma pessoa encantadora...E ele nem sabe que bate, aquilo est no inconsciente dele. Mas delatou...Delatou Pide o mido para proteger a sua famlia. E isso so-

    mos ns, em ltima anlise somos ns, que num determinado mo-mento pesamos a perverso dos nossos atos para saber se o que resulta dali suficientemente bom para justificar, quando nada do que mau poderia algum dia justificar o que bom.

    Far parte do novo documentrio do Miguel Gonalves Men-des [realizador de Jos e Pilar]. Quando ele o convidou disse logo sim ou precisou pensar?

    Eu disse logo sim, porque eu tinha visto Jos e Pilar e disse-lhe que aquilo era um monumento cinematogrfico de uma dignidade

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  • 26

    to grande, que eu seria completamente idiota se no dissesse que sim.

    Ainda no se arrependeu?Tem dias, tem dias. Eu gosto muito dele, embora ele seja bara-

    lhante. Ele muito exigente. Trabalhar com o Miguel tem coisas engraadas porque ele observa-me e acaba por conseguir enten-der de mim algo que eu no entenderia. como ter um espelho falante. Ele capta-me, recebe a minha imagem e d um retorno cr-tico. um espelho falante.

    F-lo questionar-se sobre a vida?A ltima verso do livro, iniciei-a verdadeiramente depois de

    uma conversa com o Miguel. Eu falei-lhe do que estava a fazer, da minha abordagem, e ele gostou muito, mas perguntou-me duas ou trs coisas: e porque que no fizeste desta forma? porque eu acho que gostava que acontecesse tal coisa, dizia ele. Aquilo que ele queria no acontece no livro, mas mostrou-me que eu tinha que voltar novamente ao ponto zero e refazer, porque tambm no podia ser da forma como estava.

    O Miguel Gonalves fala muito do medo que tem de morrer, voc tambm tem essa questo presente?

    Sobretudo pensei, achei que ia morrer vrias vezes, achei que no passaria determinadas barreiras, e cresci a saber que tinha um irmo que morreu antes de nascer, e por isso para mim a vida nunca foi uma garantia nem nunca foi terna, nem mesmo na in-fncia a vida no era para sempre, nem os meus pais no eram para sempre, nada era suficientemente robusto para perdurar. E

    por isso eu sempre estive espera de morrer. Hoje o que aconte-ce que j morreram tantas pessoas e vou acompanhando gente em lutas contra a morte de forma to desajustada e injusta que eu sinto que se com 42 anos eu morresse, j no morreria antes do tempo. Talvez j estivesse bastantemente completo. Por isso, nada do que me falta diminuiria a maravilha de ter vivido. Mesmo o fato de no ter tido um filho, de no ter filhos, ou de no ter con-seguido realizar algumas coisas, nem por isso a minha vida seria injustiada ou injustificada. Se eu tiver de morrer vou morrer feliz na mesma. Estou me fodendo (risos). Que uma coisa que eu acho que a melhor das vinganas contra tudo quanto a vida nos possa fazer de mal ns acharmos que ela j nos trouxe tanto de bom que j valeu. J estou no lucro. Acho que muito pouca gente conse-gue chegar a essa conscincia. por isso que toda minha angstia em relao literatura no me retira essa espcie de calma, essa espcie de paz, que uma paz complexa mas muito efetiva. efetivamente da que eu retiro a minha gratificao. A nica tatua-gem que eu tenho no corpo fiz na Islndia, na primeira vez que eu l fui, e a palavra TAKK, que em islands obrigado.

    Obrigado a quem?Obrigado a existir. Obrigado a tudo. Valeu. Vale. Sou grato!

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  • Cnemi aCCCCnnnneeeenennnnenennennnnnenn mmmmemeeeememeemeeeeemeeiiiiCiCCCCiCiCCiCCCCCiCCninnnnininninnnnninn aaaamammmmamammammmmmammo s C e n s u r a d o s

    j o o m o n t e i r o

  • 34

    os Censurados

    as peas que bernardo santareno escreveu foram censuradas ou proibidas. os lmes que manuel guimares realizou foram alvo de cortes que alteraram a lgica narrativa. antnio de macedo viu um dos seus lmes, nojo aos Ces (1970), ser proibido de passar na ntegra em Portugal por ser contrrio aos interesses nacionais. do convvio entre estes trs artistas nasceram duas obras de gnero esquecidas do Cinema novo portugus: o gtico Crime de aldeia velha (1964) e o western spaghetti a Promessa (1973). Para alm da censura de estado, estas obras foram

    objeto de outra censura muito mais e caz: a censura de gosto.

  • Zefa (Maria Olguim) em O Crime da

    Aldeia Velha

  • Barbara Laage ( direita) em

    O Crime da Aldeia Velha

  • Para mim, [o neorrealismo] sobretudo uma posio moral da qual se olha o mundo. torna-se em seguida uma posio esttica,

    mas partida moral.roberto rosselini

  • 38

    Nos ltimos anos do Estado Novo, a resistncia intelectual e artstica desenvolvia-se muito em

    tertlias nos cafs e restaurantes da capital. O movimento chamado Cinema Novo nasceu por

    exemplo no Restaurante Vv, que ainda hoje se situa no cruzamento da Avenida de Roma com

    a Avenida dos EUA. Mas nem todos os cineastas associados a este movimento frequentavam

    este caf. Na Rua Alexandre Herculano fi cava, at h pouco tempo, a Confeitaria Paraso, onde

    durante a dcada de 60 se encontravam regularmente o dramaturgo Bernardo Santareno e os

    cineastas Manuel Guimares e Antnio de Macedo, fi guras de certa forma marginais s classes

    artsticas a que pertenciam.

    Santareno comummente considerado o maior dramaturgo portugus do sculo XX. Pseudnimo de

    Antnio Martinho do Rosrio, formou-se em Medicina Psiquitrica e trabalhou de perto com franjas sociais

    mais desfavorecidas. Aderiu ao Partido Comunista e nos anos 50 comeou a escrever para teatro sob a infl uncia

    de Federico Garca Lorca, entre outros. Os heris das suas peas eram as comunidades de trabalhadores

    com quem conviveu de perto e os obstculos que a sociedade portuguesa, controlada pelo Estado Novo, lhes

    colocava. por isso associado ao movimento neorrealista, que em Portugal se manifestou mormente na

    literatura. A relao que Santareno criou com a censura salazarista marcou muito a sua carreira as suas

    peas eram representadas com intervalos de dez anos aps a sua publicao e o trabalho dos ltimos anos

    antes da revoluo havia sido totalmente proibido. Escrevia mais para ser lido como romancista do que para

    ser representado em palco.

    A censura em teatro era a mais inquisitria: as peas eram censuradas antes de subirem cena,

    o s c e n s u r a d o s

  • comeando pelos textos que as inspiravam, terminando na poltica de subsdios que excluam todos aqueles

    que insistissem em determinados autores. Para alm das simpatias polticas do dramaturgo, os textos de

    Santareno abordavam o obscurantismo religioso e os efeitos da represso sexual nas comunidades menos

    favorecidas e que, consequentemente, explodiam em violncia inusitada e nunca antes vista no teatro

    portugus. Prova disso foi a reao do pblico quando Antnio Pedro encenou A Promessa no Teatro

    Experimental do Porto. Subiu ao palco em 1957, foi retirada aps duas semanas e s voltou cena uma

    dcada depois.

    Apesar de o Neorrealismo no ser muito popular junto da censura, foi conseguindo aos poucos

    saltar para o grande ecr pelas mos de alguns dos seus maiores executantes literrios. Autores

    como Leo Penedo, Alves Redol ou Manuel da Fonseca estiveram por detrs das tentativas de

    mudana de tom dos fi lmes populares (Sonhar Fcil, Os Trs da Vida Airada) e da importao

    do modelo italiano de De Sica e Rosselini (Dom Roberto, Saltimbancos). No de espantar que o

    potencial cinematogrfi co do trabalho de Santareno interessasse s ovelhas negras do Cinema

    Novo: Guimares e Macedo. O que de espantar, sim, foi a reao das elites culturais s adaptaes

    de Crime de Aldeia Velha e A Promessa que, apesar da sua ousadia temtica e esttica, fi zeram com

    que estes fi lmes se apagassem da memria coletiva portuguesa. Falemos ento de cinema.

    o s c e n s u r a d o s

  • Joo Mota e Guida Maria em

    A Promessa

  • A S P U P I L A S D A A L D E I A V E L H A

    Decorria o ano de 1934 quando chegou aos jornais o caso de uma mulher queimada viva pela populao da

    aldeia de Soalhes, em Marco de Canavezes. Acusada de estar possuda pelo demnio, foi posta a arder numa

    lareira caseira, na crena de que o fogo afugentaria o ser maligno para que a mulher pudesse ressuscitar

    curada. Bernardo Santareno leu esta notcia e inspirou-se para escrever O Crime de Aldeia Velha publicado

    em 1959. Dois anos mais tarde, o autor revela imprensa os planos para adaptar a pea ao grande ecr. O

    realizador seria Henrique Campos, o guio seria escrito por um profi ssional espanhol e no elenco fi gurariam

    atores como Mariana Rey Monteiro ou Mrio Pereira. Mas os pedidos de subsdio ao Secretariado Nacional

    de Informao foram recusados e o projeto abortado. Santareno, num tom irnico, diz compreender, porque

    o fi lme iria cheirar a carne assada. Promete entrar num perodo cor-de-rosa que lhe permita agradar ao S.N.I. e

    ganhar um subsdio com projetos como por exemplo As Pupilas da Aldeia Velha ou A Promessa de S. Bernardino.

    Em 1964, o projeto retomado por Antnio Cunha Telles que procurava um sucesso de bilheteira que o salvasse

    dos fl ops comerciais de Os Verdes Anos e Belarmino. Desta vez, seria o prprio Santareno a escrever os dilogos e o

    principal papel seria entregue a uma vedeta estrangeira. Consciente da necessidade de uma deriva comercial, Cunha

    Telles resolveu entregar a realizao a algum com experincia e pouco afoito a tendncias experimentalistas que

    afugentassem o grande pblico. O escolhido foi Manuel Guimares, artista plstico, ex-assistente de Manoel de

    Oliveira, e o primeiro realizador portugus a fazer um esforo para integrar o cinema na corrente neorrealista que

    perpassava na literatura e o tirar do charco em que estava mergulhado na dcada de 50.

    Saltimbancos, de 1951, foi a primeira tentativa. Feito sem fi nanciamento e com a cumplicidade de um grupo de

    o s c e n s u r a d o s

  • amigos, como o escritor Leo Penedo e o ator Artur Semedo. Todos concordaram em trabalhar de graa sob condies

    algo precrias: por exemplo, para comprar pelcula, Guimares vendeu a moblia e a atriz Maria Olguim empenhou

    as joias. O fi lme foi elogiado principalmente por escritores neorrealistas que faziam crtica cinematogrfi ca e teve um

    desempenho interessante nas bilheteiras. Os problemas comearam com o projeto seguinte, Nazar, sujeito a cortes

    da censura que provocaram lacunas narrativas no fi lme, afastando pblico e crtica. Vidas sem Rumo, fi lmado em 1952,

    seria totalmente proibido, obrigando Guimares a re-fi lm-lo quase na ntegra. O fi lme apenas estrearia em 1956.

    Exausto, beira de uma depresso nervosa e afundado em dvidas destes trs fi lmes, realizou a opereta A Costureirinha

    da S para tentar sobreviver. Livre da censura estatal por uma vez, seria agora alvo da censura de gosto, acusado pelos

    seus pares de traio arte.

    O convite de Cunha Telles para adaptar a obra do amigo Santareno foi uma injeo de vitalidade

    no quase derrotado Guimares. A preferncia pela esttica neorrealista para retratar a situao

    dos mais pobres assim como a afi nidade poltica que ambos partilhavam Guimares era

    tambm militante do Partido Comunista puseram-nos em sintonia. Ambos viram neste projeto

    a possibilidade de exorcizarem no grande ecr a sua prpria luta contra a censura salazarista.

    O potencial dramtico da pea foi traduzido visualmente por uma esttica prxima do fi lme de

    terror gtico, assente nos grandes contrastes luz/sombra que faziam sobressair a ambiguidade

    dos personagens e das suas aes. Isso est presente logo nas primeiras imagens do fi lme onde

    surge a legenda Este fi lme decorre no sculo passado. Trata-se de um comentrio irnico ou uma tentativa

    de distrair a censura? Os autores nunca esclareceram.

    o s c e n s u r a d o s

  • Os primeiros planos do fi lme descrevem aquilo que parece um sabat de bruxas mas , na realidade, um exorcismo levado

    a cabo pelas mulheres de Aldeia Velha. A sua lder, Zefa (Maria Olguim), surge virada para a cmara (para o espectador)

    de faca em riste, identifi cando-nos com o possudo (Serge Farkas). A personagem de Joana desempenhada pela atriz

    francesa Barbara Laage, cujo visual destoa da indumentria negra que cobre as mulheres da aldeia. A sua cabeleira loira

    conduz os homens loucura e, de certa forma, simboliza a modernidade a tentar sobreviver numa sociedade ancestral e

    reprimida. E como costume na obra de Santareno, o desejo sexual reprimido descamba em atos de violncia descontrolada:

    dos duelos de machados entre os homens at via sacra de Joana em direo ao fogo, tal qual uma Joana DArc moderna. H

    inclusive uma crtica implcita ao prprio povo portugus, j que as fi guras da autoridade o padre e o regedor se tornam,

    elas prprios, vtimas da ira da populao, que se compraz em sorrisos enquanto observa o fogo imolar Joana.

    A receo a O Crime de Aldeia Velha no melhorou a reputao de Manuel Guimares junto do pblico

    ou da crtica (agora totalmente dominada pelos futuros cineastas da segunda gerao do Cinema

    Novo). Houve inclusive quem sugerisse ao realizador que se reformasse juntamente com outros do

    cinema clssico portugus. Algum que toda a vida lutou para fazer um cinema com assuntos

    portugueses, atuais e urgentes que interessam a todos acabou sendo identifi cado com aqueles que

    abominava. Facto que torna O Crime de Aldeia Velha quase num testamento flmico da luta inglria de

    Manuel Guimares contra a censura, a falta de fi nanciamento e o desprezo dos colegas de profi sso.

    Acusado de se limitar a adaptar o modelo neorrealista italiano, Guimares caiu no esquecimento e s

    voltou a ser relembrado quando Leonor Areal, na sua tese de doutoramento Cinema Portugus Um Pas Imaginado,

    editada em 2011, lhe d a paternidade do movimento em Portugal, classifi cando-o de neorrealismo de resistncia.

    o s c e n s u r a d o s

  • A P R O M E S S A D E S O B E R N A R D I N O

    Se Manuel Guimares o proscrito do Cinema Novo, Antnio de Macedo o fora da lei. Pertencente primeira

    gerao do movimento, a das Produes Cunha Telles, proveio do cinema experimental autodidata e destacou-se

    quando escreveu um dos poucos livros sobre teoria cinematogrfi ca editados em portugus, A Evoluo Esttica

    do Cinema. Ao contrrio de Guimares, a quem faltou o apoio dos pares, Macedo deixou cedo bem claro que no

    estava interessado em fazer parte de nenhum grupo. Quando realizou a pardia aos fi lmes de agentes secretos,

    Sete Balas para Selma, foi excomungado por Joo Csar Monteiro da revoluo cinematogrfi ca portuguesa. E

    quando as Produes Cunha Telles faliram, fi lmou do seu prprio bolso Nojo aos Ces, simplesmente porque

    precisava de fazer a catarse em relao situao do pas. A censura no andava distrada e proibiu Nojo aos

    Ces de passar na ntegra em Portugal continental e ilhas, considerando-o contrrio aos interesses da ptria.

    Apesar de no ser membro do Partido Comunista, tinha em comum com Bernardo Santareno interesses msticos

    e esotricos. E quando em 1957, Santareno lhe entregou A Promessa para ler, Macedo interessou-se pelo potencial

    cinemtico da pea, e tentou fi lm-la imediatamente. A reputao de Santareno na censura afastou potenciais

    produtores e Macedo acabou por fi lmar antes Domingo Tarde, de Fernando Namora. Os anos foram passando mas

    a vontade de adaptar A Promessa manteve-se intacta e o guio foi sendo reescrito, passando inclusive pelas mos do

    reputado guionista espanhol Santiago Moncada. Quando o Centro Portugus do Cinema cooperativa de cineastas e

    tcnicos subsidiada pela Fundao Gulbenkian foi fundado, Macedo, ao contrrio dos colegas, tinha um argumento

    pronto h vrios anos. No entanto, houve vrias resistncias internas, porque A Promessa com o passar dos anos se

    tinha convertido num western spaghetti ao estilo de Sergio Leone.

    o s c e n s u r a d o s

  • Filmagens de

    A Promessa nos Estdios

    da Tobis

  • Com o auxlio de uma coproduo espanhola, o fi lme comeou a ser rodado em maro de 1971. A

    Promessa retrata uma comunidade piscatria onde um casal, Jos e Maria, havia feito uma promessa

    de celibato pelo regresso do mar em segurana do pai de Maria. Esta jura iria ser posta em causa

    aquando da chegada de um cigano ferido chamado Labareda, que o casal acolhe em casa para o

    tratar. Do texto original de Santareno no restava uma linha, foi todo transformado ao som de Ennio

    Morricone e de Era uma vez no Oeste. Macedo at acrescentou um cigano mudo que tocava uma

    ocarina como Charles Bronson e a sua harmnica. O que procuro denunciar a explorao de uma

    comunidade de pescadores analfabetos por membros da classe eclesistica, disse em entrevista.

    E f-lo em grande estilo: uma violao fi lmada em ralenti; cadveres mutilados em exposio numa igreja ao

    som da msica da regio captada por Michel Giacometti; e (pasme-se) o primeiro nu integral da histria quase

    centenria do cinema portugus.

    O fi lme tinha tudo para ser apreendido e escondido num cofre debaixo de terra, mas sucedeu algo de

    inesperado: A Promessa selecionada para ir a concurso no Festival de Cannes. A nica participao lusa

    datava da abertura do certame com Cames, de Leito de Barros. Em 1968, os cineastas da Nouvelle Vague tomam

    de assalto o festival e transformam-no naquilo que ele ainda hoje, o mais importante evento cinematogrfi co

    do mundo. A Promessa havia benefi ciado da coproduo espanhola porque Cannes s era acessvel a pases

    cuja cinematografi a produzisse um mnimo de vinte fi lmes anuais e desses, 25% teriam de ter divulgao

    internacional. O fi lme no ganhou nenhum prmio mas foi vendido para vrios pases, e o lucro ajudou a

    saldar as dvidas do Centro.

    o s c e n s u r a d o s

  • Esta passagem por Cannes amansou um pouco a censura, que no entanto, exigiu 2 cortes o dilogo

    entre o padre velho e o novo acerca do comrcio com o divino e, claro est, a cena do nu. Com a preciosa

    ajuda de Fernando Lopes, altura diretor do Centro, chegou-se a um compromisso para estrear o fi lme sem

    cortes. A condio era a seguinte: se alguma carta de reclamao chegasse sede do SNI, o fi lme seria retirado

    imediatamente de cartaz. Dois meses aps a estreia, deu-se o 25 de abril, e por essa altura o fi lme j havia batido

    recordes de assistncia no cinema Condes. Apesar de ter sido a produo mais cara da existncia do Centro,

    o fi lme conseguiu pagar-se, e a capacidade de organizao de Macedo, decerto provinda da sua experincia

    como arquiteto, permitiu at poupar pelcula, que seria usada para fi lmar a obra-prima de Antnio Reis, Jaime.

    As relaes entre os cineastas do Centro nunca foram as melhores. Consciente disso, a Fundao

    Gulbenkian deu a entender que se estes no se organizassem internamente, o subsdio terminava.

    Foi ento estabelecido um pacto de no agresso e os realizadores organizaram-se por grupos de

    trabalho escolhidos de acordo com afi nidades estticas. No entanto, Fernando Lopes e Antnio-

    Pedro Vasconcelos ressuscitam a revista Cinfi lo que iria servir de vlvula de presso ao cessar-

    fogo acordado. E assim, os colegas de Macedo puderam dar azo sua revolta perante a provocao

    de transformar Santareno num western spaghetti. Num dossier intitulado O que nos promete a

    promessa?, a fao mais radical do Centro tenta destruir o fi lme e a reputao de Macedo. O

    primeiro francoatirador Vasco Pulido Valente que abre as hostilidades assim: Um destes dias fui ver

    vinte minutos de A Promessa. Por voyeurismo sociolgico e porque os bilhetes eram de graa. Olha-se e no

    se acredita. [] Afi nal no descobri ontem que os Macedos existem: esto na Universidade, nos jornais, no

    o s c e n s u r a d o s

  • cinema. O senhor que se segue Eduardo Prado Coelho, que num tom mais contido compara a pea ao fi lme

    e acusa Macedo de ter instrumentalizado a obra de Santareno de acordo com as suas prprias preocupaes

    esotricas. Por exemplo na pea, o cigano Labareda castrado por um Jos impotente; no fi lme, Jos esfaqueia

    o cigano j morto e de seguida violenta a esposa, terminando o fi lme num plano em que se v o casal nu

    abraado na cama com o cadver a seus ps, sugerindo um macabro tringulo amoroso de sexo e morte. A

    estacada fi nal dada por Vasconcelos que acusa Macedo de misturar nos seus fi lmes Bergman, James Bond,

    o cinema underground e agora o western spaghetti; e pior, recorrendo a um arsenal expressivo com o qual

    Peckinpah se tornou tristemente famoso, acusando Cannes de ser um festival vendido. Atualmente, dizer

    que cineasta X mistura Bergman com Peckinpah o melhor dos elogios possvel, no vivssemos ns em plena

    Era Tarantino. Mas em 1974 era o pior dos insultos. L fora, os crticos falavam de um fi lme que apontava

    mudana da mentalidade portuguesa...

    Mas Macedo sobreviveria, no s a este ataque como tentativa de impedir a estreia de As Horas de Maria

    por parte dos setores catlicos conservadores da sociedade portuguesa em 1976; aos herdeiros de Jos Rgio

    que tentaram tambm impedir a estreia de O Prncipe com Orelhas de Burro; claudicando durante a dcada

    de 90 perante sucessivas recusas de fi nanciamento por parte dos concursos do atual Instituto de Cinema e

    Audiovisual.

    o s c e n s u r a d o s

  • Almoo de m de rodagem

    Sinde Filipe ao centro e sua

    direita, Antnio de Macedo e Bernardo Santareno

  • A M A S C A R A D A D O P O V O

    Ao compararmos as crticas a ambos os fi lmes encontramos uma convergncia a dois nveis: no apro-

    veitamento folclrico do povo e no excesso de violncia grfi ca. O Crime de Aldeia Velha chocou os

    crticos pelo aproveitamento no pior jeito populista dos habitantes da aldeia de Monsanto onde o lme foi rodado. O povo continua a ser tratado como um cozinho de luxo e os profi ssionais do cinema em Portugal limitam-se a vestir os atores com os trajes tradicionais e a pedir-lhes que mimetizem alguns

    gestos mais acentuados dos locais. Dez anos depois (a distncia temporal que separa as duas adapta-

    es), A Promessa acusada de roubar ao povo a sua imagem reduzindo-o perante uma mera est-

    tica decorativista obediente fotogenia da pobreza do sul.

    Relativamente violncia, no caso de Guimares, prende-se com essa necessidade de ter de mostrar sangue em

    abundncia quando se mata algum, no v o incrdulo duvidar. Esse mesmo um defeito congnito do cinema

    portugus, o de comprazer-se em mostrar as cenas truculentas at ao fi m, bem explicadinhas. Quanto a Macedo,

    a acusao ainda mais contundente: Mas para Macedo o cinema uma linguagem. O cinema fala. E fala para

    quem? Para o pblico que, sendo pagante, tem que ser entretido e, sendo analfabeto, s entende uma linguagem

    super-expressiva. Como a dos surdos-mudos. Este virar as costas ao cinema italiano e norte-americano de gnero

    tem muito a ver com a formao da maioria dos praticantes do Cinema Novo em Frana e sua tentativa de provo-

    car em Portugal uma revoluo cinematogrfi ca como as ocorridas em Frana, Itlia ou Brasil.

    Assim como Santareno se tornou ainda em vida um dos maiores nomes do teatro contemporneo portugus,

    j a Guimares (falecido em 1975) e a Macedo (ex-cineasta octogenrio) lhes tem sido negada a consagrao ou

    o s c e n s u r a d o s

  • pelo menos um reconhecimento pela sua coragem. Muito pelo contrrio, parece ter existido at um certo aspeto

    persecutrio, indiferente s tentativas de Guimares em tirar o cinema portugus do charco e s experincias

    visuais de Macedo que lhe garantiram entradas em festivais como Veneza e Cannes, algo que os seus colegas do

    Centro s conseguiram anos mais tarde (incluindo o mestre Manoel de Oliveira). Independentemente da parti-

    cipao ativa do dramaturgo na produo dos dois fi lmes, Guimares acusado de ter preparado um cocktail

    cine-teatral incapaz de se libertar da pretensa conciliao entre Literatura e Cinema, fruto da inexistncia de

    uma indstria que produza argumentos originais. J Macedo, que transformou por completo o original, foi criti-

    cado por se ter afastado do universo de Santareno, banalizando-o atravs do recurso a uma esttica proveniente

    de gneros menores.

    O caso de Macedo ainda mais esquizofrnico. Eduardo Prado Coelho, que acusou Macedo de se ter

    apropriado do material fornecido por Santareno da forma menos efi caz, mas em 1983 escreve

    que a escolha desta pea lhe permitiu realizar aquele que talvez o seu fi lme mais desenvolto

    e efi caz. Mudar de opinio no sinnimo de fraqueza de carcter mas Prado Coelho no faz

    propriamente um mea culpa, ao contrrio por exemplo do crtico Jorge Leito Ramos. No nmero

    seguinte do Cinfi lo especial acerca de A Promessa, um leitor identifi cado como JH Leito Ramos

    junta-se ao coro de crticas e acusa o festival de Cannes de ser uma feira de fi tas, pondo em

    causa o critrio por detrs da seleo deste fi lme e do esquecimento de O Passado e o Presente de

    Manoel de Oliveira, produzido pelo Centro. Vinte anos depois, aquando da passagem do fi lme na SIC, recorda

    essa crtica e escreve: S que, distncia de vinte anos, noutras eras e andanas, sem tticas nem estratgias

    o s c e n s u r a d o s

  • de permeio, talvez se perceba que estava ali uma hiptese de cinema comercivel que viabilizasse o outro. O

    outro a que ele se refere o cinema de autor.

    Paulo Filipe Monteiro no seu estudo intitulado Uma Margem no Centro: a Arte e o Poder do Novo Cinema,

    afi rma que o movimento Cinema Novo com o apoio da Fundao Gulbenkian se tornou no poder domi-

    nante antes da revoluo de abril. Unidos contra o Estado Novo e os seus fi lmes, estes novos cineastas

    reformaram os velhos, negaram-lhes a existncia e recomearam do zero. O que se verifi cou aps o 25

    de abril de 1974 foi, de certa forma, paradoxal. Enquanto existiu um inimigo comum, havia unio en-

    tre todos; assim que este inimigo sucumbiu, os cineastas dividiram-se em cooperativas e tornaram-se

    inimigos uns dos outros. Antnio Roma Torres, na sua obra Cinema Portugus, Ano Gulbenkian, acusa

    anlises crticas, como as que foram feitas em relao ao Crime de Aldeia Velha e A Promessa, de

    estarem viciadas por um critrio de qualidade necessariamente implcito e pouco objetivo, escamoteando as

    determinantes ideolgicas que o informa. verdade que a decadncia do cinema luso teve muito que ver com a

    penetrao massiva do cinema americano no ps-Segunda Guerra Mundial, mas falta estudar as consequncias

    destas guerras intestinas para a histria do atual divrcio entre o pblico e o seu cinema (cada vez mais indispen-

    svel nas feiras de fi tas l fora). E, mais importante ainda, para auferir as razes do apagamento de alguns fi lmes

    e realizadores da memria coletiva nacional.

    Fotogra as de A Promessa cedidas por Henrique Esprito Santo

    o s c e n s u r a d o s

  • sendakinfantil e juvenil

    Andreia Brites

    o desfazedor de impossibilidades

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    s e n d a k o d e s f a z e d o r d e i m p o s s i b i l i d a d e s

  • F oi o prprio autor quem confidenciou, numa en-trevista ao jornal The New York Times, em 1993, que bastante literal nas histrias que conta, e que muitas das interpretaes que os leitores adultos tecem, por muito vlidas que sejam, e muitas so, no correspondem s suas intenes. Nessa linha de pensamento, quando se defen-de do epteto de controverso ou prejudicial tranquilidade infan-til por provocar medo ou alimentar situaes de crueldade social, Sendak argumenta que as crianas percebem. Ao contrrio da lei-tura pejada de referncias, conceitos psicanalticos e sociolgicos, as crianas aderem diretamente s emoes atravs da sua prpria experincia, que, no esqueamos, ainda no procedeu ciso tr-gica entre realidade e imaginrio.

    No lbum que serve de mote entrevista de 93, We are all in the Dumps With Jack and Guy, Maurice Sendak conta a histria de um beb abandonado que vive na rua e que ser acolhido por duas figu-ras especiais. Para os adultos, a grande questo reside na crueldade daquele quadro, e no facto de o beb continuar a viver na rua, mes-mo contando com a proteo de Jack e Guy. O autor contrape com um exemplo: A good friend of mine in California got an early copy of the book and read it to his daughter. And he said, It was sad, wasnt it? He was projecting. And she said, Its all right, because the baby has a family. And he said, Its not really a family, honey. And she repeated, The baby has a family. And she got it.

    Se h algo que marca intrinsecamente a literatura infantil o seu recetor especfico, com consequncias aparentemente incontorn-veis para os estudos literrios: os adultos no acedem ao imaginrio

    e ao pensamento das crianas, logo nunca lero como elas e nunca podero por isso reconhecer integralmente os efeitos da sua leitura. Ser radical afirmar que ningum como Sendak consegue chegar a elas de forma to direta, mas no uma inverdade considerar que h na sua arte uma compreenso mais profunda e uma abordagem mais desprendida de todo o contexto de interpretao adulta. A ge-nialidade deste autor, cuja tcnica e ritmo de ilustrao marcaram decisivamente a histria do picture book, centra-se precisamente nessa viso global que dialoga sem intermedirios com o seu pbli-co. No fcil encontrar autores que reiterem to categrica e intui-tivamente o ponto de vista infantil, sem que isso em algum momen-to constitua um conflito entre a inteno da obra e a sua receo.

    P or isso, a edio na pennsula ibrica de 20 t-tulos deste autor magno um acontecimento digno de destaque. Para Margarida Noronha, a editora portuguesa da Kalandraka, Sendak um dos maiores autores de literatura infan-tojuvenil, o artfice daquele que para ns o lbum ilustrado perfeito, Onde vivem os mons-tros. Considera que a sua edio representa juntar a obra de um grande artista de outros grandes ilustradores contemporneos que temos vindo a publicar: Roberto Innocenti, Leo Lionni, Arnold Lobel, Janosch, Tomi Ungerer, Iela Mari, Shaun TanTrata-se, em suma, de oferecer ao nosso pblico o melhor do que somos capazes de publicar. Da mesma forma que queremos que as crianas tenham uma alimentao saudvel, tambm desejamos que os seus palada-res leitores se deleitem com o melhor, ou seja, com obras que as enri-queam literria e plasticamente.

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    D e entre os cerca de oitenta ttulos que assi-nou, em muitos dos quais apenas a ilustra-o, a Kalandraka teve de escolher. No sen-do tarefa fcil, era essencial ter critrios. O ponto de partida foi a trilogia iniciada com Onde Vivem os Monstros, o paradigmtico picture book do autor, que j tinha sido pu-blicado pela editora em todas as lnguas peninsulares exceto espa-nhol. Desde ento, temos estado atentos a todas as mudanas de gesto dos seus direitos. Nesta ltima etapa, os herdeiros queriam que a obra de Maurice Sendak estivesse agrupada numa s editora nos pases onde est publicado. E na Pennsula Ibrica a Kalandraka foi a editora eleita, o que nos deixa muito orgulhosos. E acrescenta: A obra de Maurice Sendak muito vasta e a escolha foi complexa porque, em primeira instncia, tratava-se de selecionar 20 ttulos entre numerosas possibilidades. Porm, na Kalandraka apostmos em oferecer ao nosso pblico obras que consideramos essenciais e especiais na trajetria deste criador. Comemos ento pela sua c-lebre trilogia de histrias que partem de trs sonhos, trs aventuras noturnas, publicadas num espao de tempo muito dilatado: Onde vi-vem os monstros (1963), Na cozinha da noite (1970) e Outside Over There (1981). Em segundo lugar, decidimos publicar a coleo Urso Peque-no porque as suas histrias intimistas no s do a conhecer a grande escritora Else Holmelud Minarik, como tambm expem uma faceta de certa forma mais terna das ilustraes de Sendak. A partir daqui, pretendemos publicar outras obras que mostraro distintas etapas da ampla produo artstica e literria de Maurice Sendak.

    O primeiro ttulo desta vintena , por isso, Na Cozinha da Noite, traduzido do original, In the Night Kitchen, e acaba de chegar s livrarias. Muito diferente do anterior no tipo de ilustra-o, tambm foi estudado como obra de banda desenhada, pela estrutura de vinhetas atravs da qual narrada a histria de Mickey (Miguel na traduo portuguesa). Na sua composio alis clara a influncia de Little Nemo in the Slumberland, a srie de tiras de banda desenhada do incio do sculo XX, assinadas por Winsor McCay que o prprio Sendak assume como consciente e intencional. A estrutura diegtica do ciclo fechado assemelha-se notoriamente, comeando e terminando na cama, o lugar do sono e do despertar para o sonho.

    A partir daqui, as interpretaes proliferaram, e a obra j foi analisada na perspetiva psicanaltica da morte, da fantasia sexual, e at da simbologia crist com a morte e a ressurreio associadas aos movimentos de descida e ascenso, com a garrafa de leite como principal cone.

    A nudez de Miguel foi, apesar de todo o pensamento muito mais interessante que se foi desenvolvendo em torno da obra, o seu ele-mento mais polmico. Tem provocado inmeros atos de censura nos EUA, entre os quais a integrao deste ttulo em listas de livros proibidos em bibliotecas e escolas. Houve at um movimento que apelava a que os mediadores desenhassem fraldas em todas as ima-gens em que aparecesse o corpo nu de Mickey.

    Estamos em 1970 e o autor continua o seu percurso de apaga-mento de fronteiras e de criao de uma nova identidade para o l-bum de receo infantil.

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  • Se h aspetos totalmente diferentes e at inesperados do ponto de vista da tcnica da ilustrao, com consequncias para a leitura, outros persistem numa linha de continuidade que reforam essa originalidade de Sendak, num duplo sentido. Originalidade porque faz algo novo, mas igualmente porque assenta numa observao da origem, e essa origem no pode ser outra que o comportamento e o imaginrio infantil.

    O autor resiste, todavia, a generalizar padres, e atinge sempre um grau de subjetividade da personagem que a torna mais veros-mil. Tal como Max, Miguel vive uma aventura onrica fabulosa, que nasce no seu quarto e ali acaba. A ideia de ciclo no estranha ao tempo da fantasia, ao tempo do brincar, ao tempo da evaso, que, por muito que dure, est sempre condicionado s fronteiras do tem-po e do espao dos adultos (a casa, a escola, as rotinas).

    Embora no seja condio imprescindvel, a noite potencia todos os mistrios, os medos e os sonhos, que se confundem com o sono. Ao contrrio de Max, Miguel j est na cama, onde aparente-mente despertado por um barulho. O medo, que se induz pela sua expresso inicial, d lugar a uma reao verbal. Miguel reage ao som, interpela-o, e logo se levanta para o combater. Comea ento uma queda surpreen-dente que o liberta, como que por magia, do pijama, e o leva em direo ao andar de baixo. Apesar de serem referidos no texto, a imagem no mostra os pais, que se presume durmam no quarto, fora dos limites da vinheta. Flutuando como um astronauta, num espao sem gravidade, Miguel tem ainda oportunidade de observar a lua antes de se deleitar com uma aterragem fofa, dentro da taa de massa, onde os trs padeiros da cozinha da noite preparam pes-de-leite. O motivo desta nova aven-

    tura o leite que estes homens anafados, com bigodes curtos, semelhan-tes ao da figura de Oliver Hardy (o Bucha dos filmes cmicos da dupla Bucha e Estica), confundem com Miguel. O ritmo dos dilogos obede-ce a repeties, enumeraes, exclamaes e rimas que se associam s formas curvas e gestos cadenciados numa coreografia imagtica. As co-lheres de pau so um adereo recorrente, ora para mexer a massa, ora como extenso do poder dos padeiros. Miguel emerge da massa quando a colocam no forno, num gesto de libertao, e logo cria um avio que lhe d acesso aos cus estrelados desta cidade erigida com utenslios de cozinha e enorme garrafa de leite onde acaba por mergulhar, perante o espanto do trio. O incidente causado na rotina destes trabalhadores resolvido pelo prprio protagonista, quando lhes d o leite de que preci-sam, usando, dentro da garrafa, o medidor que lhes tira no momento em que levanta voo. Tudo regressa ordem, a massa vai finalmente para o forno, e os padeiros recuperam o estado original de contentamento, em-bora nunca tenham efetivamente perdido uma boa disposio doseada de espanto. Miguel, por sua vez, depois de se ter libertado do pijama, ter ficado coberto de massa e de a ter igualmente largado no contacto com o leite, regressa sua cama e sua roupa original, recuperando o sono, sob o avio que pende num fio sobre a sua cama.

    A histria tem um fortssimo pendor de fantasia, alicerado em cada detalhe desta fabulosa cozinha, cheia de arranha-cus, torres e cpulas onde reconhecemos frascos, latas e sacos de farinha, com-pota, cremes, comida de crianas, bagas e um inmero conjunto de marcas e produtos que um abundante lettering revela. Ainda h tampas, velas, saca-rolhas ou abre-latas, espremedores, batedeiras e funis, para comporem to apetecvel cenrio.

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  • S endak continua a respeitar a conteno dis-cursiva, apesar do estilo mais cnico desta obra. A narrativa textual mantm a sua sim-plicidade sequencial, prxima dos atos de fala das crianas.As vinhetas, por seu turno, acompanham a ao e pautam o movimento dos vrios epis-dios de voo e queda, ou da preparao do po. De acordo com a nfase a dar ao momento ou com a necessidade de alargar o acesso ao contexto, a vinheta aumenta o seu tamanho na pgina, podendo at dar lugar a uma nica ilustrao de pgina dupla, como acontece quan-do os padeiros transportam a massa do po-de-leite para o forno, quando Miguel sobrevoa a garrafa de leite e finalmente quando os padeiros cantam em torno da massa, com Miguel a observ-los com agrado, ainda empoleirado na garrafa, no canto superior esquerdo da imagem.

    As opes cromticas destacam o azul da noite, o amarelo da lua, o branco da farinha, e os tons castanhos que reme-tem para o po e para a pele, com apontamentos variados que realam a dimenso cosmopolita desta cozinha especial, com arcos, estaes de comboio elevadas, portas e muitas ja-nelas com luzes acesas e apagadas. Os tons escuros e suaves do quarto, por seu turno, remetem para os limites espaciais e o conforto da cama, com a manta a que Miguel recorre no incio e no fim.

    No final, o texto oferece ao leitor dois elementos funda-mentais para a concluso da obra. O voo de Miguel at sua cama descrito assim: E deslizou pela garrafa/ em direo

    cama dele/ finalmente livre (no original, carefree and dried). A inter-rogao inevitvel: livre de qu? Do medo original? Da massa que o envolveu? Do sonho e da viagem?

    Provavelmente, do medo, j que esse o impulso original da sua aventura onrica. A fechar, na ltima pgina, uma revelao: por essa razo que, graas ao Miguel, temos pes-de-leite todas as ma-nhs. Ao protagonista atribuda a condio de heri, com esta mxi-ma irnica, ao jeito de tantos textos pedaggicos ou moralizantes, mas que aqui tem um efeito antittico. Pois se Miguel quem perturba o tra-balho dos padeiros, tambm Miguel quem lhes d aquilo de que mais

    precisam. A interrogao persiste, nesta narrativa fechada que afinal se abre quando nada o faria crer. Mas no ser toda ela uma inter-rogao permanente, um desafio a toda a ordem causal e temporal?

    Sem macular a simplicidade, Maurice Sendak alarga a experi-ncia onrica associada ao medo e infinita capacidade que as crian-as tm de viver, reviver e transfor-mar o vivido. Como o prprio au-tor afirma em 1993, este um tema persistente: the tenaciousness of children to survive. Isso implica sempre ter medo e super-lo. Com prazer.

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  • C a r L a m a i a d e a L m e i d a

    C o r a g e m d e t r a d u z i r

    u m H e r ia n d r e i a b r i t e s

    s e n d a k

    foto

    gr

    afia

    de

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  • A funo do tradutor , muitas vezes, a mais inglria e mais ignorada no universo da literatura. Tarefa sempre sub-valorizada, por si s um acto de criao. Carla Maia de Almeida, escritora e jornalista, assumiu o desafio de tra-duzir os textos de Maurice Sendak e sofreu. Nesta entrevista, conta Blimunda como a difcil arte de intervir num texto sem jamais o desrespeitar. Numa palavra, traduzir Maurice Sendak significa

    Coragem. O que est a ser mais aliciante?Gosto de coisas difceis; ou, como se diz agora em linguagem coach, desafiantes. Tentar entrar na cabea de um dos meus

    heris literrios e traduzir para portugus o que ele escreveu faz-me sentir na pele das mulheres exploradoras do sculo XIX, tal a riqueza do mundo que tenho minha frente. O universo do Sendak luxuriante, para usar um adjectivo tambm do sculo XIX. Agora li-o com outra percepo e outra capacidade relacional. Aprendemos sempre melhor e mais depressa quando temos um pretexto que nos implica directamente no processo de aprendizagem, como o caso.

    Quais so os erros que nunca se podem cometer?O erro de pensar que estamos livres de cometer erros, o erro de fazer as coisas pressa, o erro de fazer tradues demasiado

    letra, o erro de fazer tradues demasiado inventivas, o erro de no dar tempo para o texto respirar antes de entregar, o erro de no trocar ideias ou tirar dvidas com outras pessoas, o erro de desanimar antes do fim.

    Quais so as maiores dificuldades?So as do costume, as dificuldades que qualquer traduo apresenta, mas que aumentam com a complexidade literria do

    texto. Os dicionrios esto longe de resolver tudo. Do ingls para o portugus, sempre uma dor de alma perder um jogo de pa-lavras, uma aliterao, uma rima... No nos podemos esquecer que os picture books so tambm para ser lidos em voz alta, essa uma das suas especificidades. preciso ter um certo ouvido para isto. A Riitta Oitinen, finlandesa que estuda as questes da traduo na LIJ, fala na dimenso da aura: um cruzamento da dimenso verbal e visual, que se manifesta na fruio global da obra e na leitura em voz alta. Portanto, eu sou tambm uma leitora de auras.

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    s e n d a k c o r a g e m d e t r a d u z i r u m h e r i

  • Quais so as grandes especificidades dos textos de Sendak?

    Bom, esta d pano para mangas, mas, essencialmente, eu lembraria a integrao quase fusional entre texto e imagem (muitas vezes, na imagem que est a compreenso do texto); a resistncia a uma compreenso nica e normativa do texto, que tem ori-gem em todo o magma psicanaltico presente na obra do Sendak (o que me obriga a mobilizar tambm o meu inconsciente); e a certeza de que cada palavra que l est no est por acaso. Ele prprio dizia que escrevia com um propsito, e por isso escreveu muito menos do que ilustrou. No fim, fica a sensao de no se ter resolvido por completo o enigma. O que bom. Porque um clssico um livro que nunca acabou de dizer o que tem de dizer, como escreveu o Italo Calvino.

    Ters certamente visto outras tradues. H falhas? Quais so as mais gritantes?Vi a traduo francesa do In the Night Kitchen e fiquei logo horrorizada. incrvel! Aquilo outro texto, h partes que so pura

    inveno, no tm nada a ver com o que o Maurice Sendak escreveu nem com as ilustraes. Vi tambm a traduo espanhola, que segue bastante a francesa... Enfim, no sei como possvel. Escandaloso. Eu disse Margarida Noronha que no queria ficar para a Histria como mais uma tradutora que assassinou os textos do Sendak... Acho que pelo menos isso consegui.

    Sendo autora, jornalista e tambm tradutora que se dedica sobretudo ao livro infantil e juvenil, o que representa para ti Maurice Sendak?

    At agora s tenho traduzido livro infantil e no quero traduzir mais nada, quero que esse trabalho enriquea e complemente tudo o resto: o jornalismo, a escrita, a formao... mas sempre fiel minha dama. Traduzir quase to bom como escrever, d-nos uma outra percepo da estrutura e da orgnica da escrita, e eu tenho tido a sorte de traduzir textos de excelentes autores, como Tomi Ungerer, Patch Hutchins ou Emily Gravett.

    O que que o Maurice Sendak representa para mim? Um heri. Nada menos do que isso. Algum que fez aquilo que sempre quis fazer, desde o incio, desde que era mido: escrever e desenhar. Algum que saiu de um meio pobre de Brooklyn e revo-lucionou a partir de dentro de si prprio o modo como se faziam e entendiam os livros para crianas e os picture books em particular. Algum que se atreveu a pr o self no centro dos livros, e ao mesmo tempo estar sempre do lado das periferias, das margens, sem concesses a um sistema que aconselha sobre o que fazer agora, de modo a que o sistema possa funcionar sem atrito. Contra a mentira e a hipocrisia, o Sendak foi um homem radical e brutalmente honesto mas tambm terno e divertido. Gosto disso.

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    s e n d a k c o r a g e m d e t r a d u z i r u m h e r i

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    No seu terceiro lbum, Catarina Sobral cria uma elegia ao tempo deleitado de uma rotina feliz. O Meu Av narra o quotidiano de um heri, aquele que j se libertou da ditadura do tempo: O meu av costumava ter uma loja de relgios. Agora tem bastante tempo. O Dr. Sebastio no relojoeiro (apesar de estar sempre a ver as horas) e nunca tem tempo a perder. Um heri que acumulou experincia, um heri que no novo, um heri aos olhos do neto, um heri que recupera a fi gura ingnua e inconsequente do carismtico Sr. Hulot, de Jacques Tati. Este av, a quem Catarina Sobral habilmente deu vida, uma fi gura simples na aparncia e no comportamento, mas que congrega no apenas toda uma enciclopdia de referncias da autora como uma teia de juzos sociais. Em primeiro lugar, a fi gura do av a de algum carinhoso e disponvel, na literatura e na vida, enquanto paradigma. Que depois no seja bem assim, enfi m, cada caso um caso O av , potencialmente, aquele que tem tempo para ir buscar o neto escola, fazer coisas com ele, ouvi-lo e contar episdios biogrfi cos ou curiosidades. , em resumo, uma fi gura emptica. A personagem corresponde. tambm uma espcie de alter ego para muitos adultos, que se projetam nessa condio, a do homem reformado, enrgico, que tem hobbies, uma vida social ativa e mesmo assim se sente sempre tranquilo e disponvel.

    que termina de forma sugestiva, Tm pouco em comum, embora o meu av diga que j foi muito parecido com o Dr. Sebastio que nunca se esquece de comprar o jornal. O meu av nunca se lembra de ler as notcias., no h palavras para enumerar a rotina deste homem que no mdico, mas doutor. Apenas a fora das ilustraes, que apresentam as duas personagens sempre a par, a realizar a mesma ao, com abordagens diferentes, narra o dia a dia do vizinho do av. O silncio discursivo enfatiza o efeito comparativo da imagem, como se se tratasse do jogo das diferenas, levando-o ao extremo antinmico. A distino erige-se sobre as semelhanas: ambos sentados secretria, o Dr. Sebastio de costas, o av de frente; ambos com o brao estendido, o primeiro a pagar a pizza, o segundo a tirar farinha de um frasco, a mesa do lanche e as pernas de um, de p, e do outro, sentado. Com a escolha de uma paleta mnima de cores (vermelho, verde e amarelo, com jogos de tons e sobreposies) que preenchem longos espaos das pginas, constituem padres, ou jogam com os contornos a preto ou branco, h uma espcie de identidade entre as duas vidas, uma sincronia que o tempo promove, e que a perspetiva pe em confronto, entre a pgina mpar e a pgina par, seja usando o mesmo ponto de vista, para reiterar as diferenas, seja manipulando a lente em funo do que um ou o outro veem, seja manifestando a sua relao efetiva

    Em Destaque

    o meu avCATARINA SOBRAL

    ORFEU NEGRO

    Corresponde. At onde chega a ironia da perfeio? Haver de todo ironia? Afi nal, o narrador apenas reproduz o que sabe, v e acompanha. Aquilo que, pode o leitor imaginar, o av lhe conta na viagem de regresso da escola, na bicicleta de dois lugares, ou quando fi cam sentados no banco de jardim, iluminados pelo candeeiro pblico que ladeia o prdio, depois de deitarem o lixo no caixote. Mas seria este av to saudvel se no existisse um oposto, uma fi gura atormentada, que a cada novo momento de prazer do ancio se v confi nado a espaos obrigatrios, tarefas stressantes ou pausas vazias de qualquer interesse? O Dr. Sebastio no faz pilates nem aprende alemo. Ao contrrio, equilibra-se entre pastas de arquivo e uma chamada telefnica. Faz seres, manda emails, encomenda pizzas e aquece o almoo no micro-ondas. Depois da apresentao inicial

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    ou simblica com um lugar, ou ainda apresentando ambas as personagens alheadas do seu contexto, com motivaes totalmente diferentes.Mais do que rever Hulot, Pessoa, Almada ou Manet, qu