BRAZIL, André - Modulação-Montagem - ensaio sobre biopolítica e experiência estética

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    Andr Guimares Brasil

    MODULAO/MONTAGEMEnsaio sobre biopoltica e experincia esttica

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao emComunicao da Escola de Comunicao da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro como quesito parcial para a

    obteno do ttulo de Doutor.Orientadora: Profa. Dra. Ivana Bentes Oliveira

    Rio de JaneiroJulho 2008

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    Andr Guimares BrasilMODULAO/MONTAGEM

    Ensaio sobre biopoltica e experincia esttica

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduaoem Comunicao da Escola de Comunicao daUniversidade Federal do Rio de Janeiro comoquesito parcial para a obteno do ttulo de Doutor.Orientadora: Profa. Dra. Ivana Bentes Oliveira

    Aprovada em _________________________________________

    __________________________________________Profa. Dra. Ivana Bentes OliveiraDoutora em ComunicaoUFRJ

    _______________________________________Prof. Dr. Csar Geraldo GuimaresDoutor em Estudos LiterriosUFMG

    __________________________________________Profa. Dra. Fernanda Glria BrunoDoutora em Comunicao

    UFRJ

    __________________________________________Prof. Dr. Mauricio LissovskyDoutor em ComunicaoUFRJ

    __________________________________________Prof. Dr. Peter Pl PelbartDoutor em FilosofiaPUC SP

    Suplentes:

    Profa. Dra. Andrea Frana Martins, Doutora em Comunicao, PUC-RJProf. Dr. Paulo Roberto Gibaldi Vaz, Doutor em Comunicao, UFRJ

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    FICH C T LOGRFIC

    Brasil, Andr.

    MODULAO/MONTAGEM: ensaio sobre biopoltica e experinciaesttica./Andr Guimares Brasil.Rio de Janeiro: UFRJ/CFCH/ECO, 2004

    206f.: il.

    Orientadora: Profa. Dra. Ivana Bentes de Oliveira

    Tese (Doutorado em Comunicao e Cultura Contempornea) Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, Escola de Comunicao,CFCH, 2004.Referncias Bibliogrficas: f. 199-206.

    1. Comunicao. 2. Biopoltica. 3. Experincia Esttica. 4. Capitalismoesttico - Tese. I. Oliveira, Ivana Bentes (orient.). II. Universidade Federal doRio de Janeiro. Escola de Comunicao ECO/CFCH. III.Modulao/Montagem: ensaio sobre biopoltica e experincia esttica.

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    para anaamor raro

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    gradecimentos

    A Ana, que eu fui buscar de bicicleta.Aos meus pais, que me apresentaram a palavra e continuam me expondo aos seus mistrios.

    Primeiros e mais importantes leitores.Aos meus irmos, que esto por perto, mesmo quando estou longe.A Nanda, por me ensinar a beleza.Ao Czar Migliorin, meu irmo, que fez do doutorado algo maior do que seria.A Flvia pelas conversas em volta da mesa, no parque, nos cafs e pela admirao que s faz crescer.Ao Diego que me conta histrias e a Elisa que me faz dar risada.Ao Eduardo de Jesus, meu amigo, que, l no comeo, me disse para resistir sempre.E continua me lembrando disso.Ao Csar Guimares, por levar o pensamento para onde leva.A Ivana Bentes, minha orientadora, pela crena nas imagens e no mundo.Glria, que ouviu o que eu no precisei dizer.Ivone, que eu quero reencontrar depois da tese.Kika, pelo almoo que dura um dia e a vida inteira.Roberta Veiga, que, h muito, erra comigo pelos livros afora.Geane, que, vez ou outra, aparece em emails que me fazem escrever.Cac, pela cerveja no meio do dia que tomamos e que continuamos nos devendo.Aos amigos do peito, que no querem nem ouvir falar de tese: Julios, Bandeira, Guto, Toninho, Gui,Rudi, lvaro, Maurcio.Aos amigos que tive a sorte de encontrar, bons de papo e bons de garfo (e de vinho): Marlia, Fred,Bellini, Issa, Cia, Otvio. Vocs no perdem por esperar minha graduao em culinria!A Cac, com quem vou correr a prxima maratona.A T que me faz ver a vida que h no espao.A Consuelo Lins pela escuta atenta e pelos toques precisos.Aos funcionrios e professores da Ps, especialmente, a Fernanda Bruno e ao Paulo Vaz, pelas aulasinspiradas que esto na tese.

    A Amaranta, que parece comigo e a M, que l cartas e que d certo.A Solange Farkas e aos amigos do Videobrasil, que, como eu, gostam da arte menor do vdeo.

    Agradeo s instituies que possibilitaram a pesquisa: Programa de Ps-Graduao da Escola deComunicao da UFRJ; PUC Minas; CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico eTecnolgico); Capes (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior)

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    O rio se move.O melro deve estar voando.

    Wallace Stevens

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    Resumo

    Qual a dimenso poltica da experincia esttica no contexto da biopoltica? Em via inversa, qual a dimensoesttica da poltica? Motivados por estas questes, elaboramos um ensaio, no qual se articulam dois domniostericos: o primeiro retoma o conceito de biopoltica, formulado originalmente por Michel Foucault, paradescrever seus desdobramentos contemporneos. O segundo domnio abriga um conjunto de teorias recentesque buscam definir o estatuto da experincia esttica, para alm da esfera especfica da arte.

    Primeiramente, define-se a biopoltica como o poder que, em consonncia com o Estado liberal e o capitalismo,se interessa pela vida em suas dimenses individual e coletiva. Se, a partir de Gilbert Simondon, a vida oprocesso de defasagem, variao e modulao do ser, a biopoltica se caracteriza aqui como o conjunto deestratgias que modulam a modulao da vida.

    A dificuldade em se responder a questo proposta pela pesquisa est no fato de que as estratgias biopolticas sevoltam, atualmente, para a dimenso esttica da experincia, ou seja, elas atuam justamente no interior dosprocessos que permitem vida se reinventar e que podem provocar, no cotidiano, a ampliao de seu horizontede possibilidades. Dito de outro modo, a biopoltica constitutiva de um capitalismo esttico, que transborda oslimites da empresa para investir na fora de inveno e de recriao da vida. Trata-se, nesse caso, principalmente,de um investimento no tempo: interessa menos a vida em sua atualidade do que suas potencialidades.

    Nossa hiptese a de que h uma dimenso poltica naquela que se constitui como esttica do ordinrio. Paraalm do artstico, o potencial poltico da experincia esttica se encontra na esfera do uso: aqui, o uso se liga aoutros conceitos a montagem, a bricolagem, a profanao para que se mostre como, na experinciacotidiana, nos apropriamos dos objetos, dos dispositivos e das linguagens.

    Se o tempo da biopoltica se define pelo clculo e pela antecipao, o uso nos faz encontrar uma outratemporalidade, um tempo potencial, tempo da memria, da origem e da infncia, segundo teoria de WalterBenjamin retomada por Giorgio Agamben. A cada uso dos objetos e dos dispositivos, a cada ato de linguagem, todo o passado que se torna novamente possvel, ou seja, todo o passado que se abre como possibilidade.

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    Rsum

    Quelle serait la dimension politique de lexprience esthtique dans le cadre de la biopolitique? Et, inversement,quelle serait la dimension esthtique de la politique? partir de ces questions, nous avons labor un essai osarticulent deux domaines thoriques: le premier reprend le concept de biopolitique, dont la formulationoriginel reporte Michel Foucault, pour aborder ses dploiements contemporains. Lautre domaine contient un

    groupe de thories plus rcentes qui sengagent dans llargissement du statut de lexprience esthtique au-delde la sphre de lart.

    La dfinition de biopolitique dans ce point de vue est envisage comme le pouvoir qui, en consonance avec ltatlibral et le capitalisme, sintresse la vie dans ses niveaux individuel et collective. Si lon accepte, en accordavec Gilbert Simondon, que la vie est le processus de dcalage, variation et modulation de ltre, la biopolitiquepeut tre dfinie comme lensemble des stratgies qui modulent la modulation de la vie.

    Les difficults que lon trouve rpondre la question propose par la recherche sont lies au fait que lesstratgies de la biopolitique se tournent vers la dimension esthtique de lexprience, cest--dire, elles agissent lintrieur mme des procds qui permettent la rinvention de la vie et qui peuvent largir lhorizon de sespossibilits au quotidien. De ce point de vue, la biopolitique peut tre dfinie comme le noyau dun capitalismeesthtique, qui dpasse les limites des entreprises pour investir dans la force inventive et crative de la vie. Ilsagit, dans ce cas et surtout, dun investissement du temps: ce qui intresse est moins la vie dans son actualit

    que dans ses potentialits.

    Notre hypothse est quil y a une dimension politique dans lesthtique du quotidien. Au-del de lartistique, lepotentiel politique de lexprience esthtique se trouve dans le domaine de lusage, qui est li aussi aux conceptsde montage, bricolageet profanation, pour donner voir comment nous nous approprions des objets, dispositifse langages dans exprience quotidienne.

    Si le temps de la biopolitique est dfini par le calculet la capacit danticipation, travers lusage lon dcouvreune autre temporalit: un temps potentiel, le temps de la mmoire, un temps dorigine et de lenfance, si lon estdaccord avec la thorie de Walter Benjamim reprise par Giorgio Agamben. chaque emploi des objets et desdispositifs, chaque acte de langage, tout le pass devient nouveau possible, cest--dire, le pass souvreentier comme possibilit.

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    bstract

    First and foremost the question to be answered could be so formulated : which is the potential of aestheticalexperience in the context of biopolitics ? Due to its importance, it motivates the elaboration of an essayconnecting two theoretical domains : the first one brings to light the concept of biopolitics, created originallyby Michel Foucault and enriched by other authors to cover certain contemporary social configurations; thesecond domain includes recent developments that try to enlarge the status of the aesthetical experience beyondits historical and specific links with art.

    Biopolitics is defined as the power used by liberal State and by capitalism to manipulate human life in its socialand individual levels. If, according to Gilbert Simondon, life is a process of modulation, variation and time laggingof Being, biopolitics is characterized as the strategies which modulates the modulation of life.

    The difficulties encountered to answer the proposed question in this research are mostly due to the fact that thestrategies used nowadays, are focused in the processes which allow the re-invention of life, as the way toenlarge its horizon of possibilities. That is equivalent to state that liberal capitalism highligts the estheticaldimention of experience. Biopolitics is, so, part of an aesthetical capitalism that overflow the borders of theenterprises to invest in the power of invention and re-creation inherent to life itself. As every investment,biopolitics is concerned mainly with time, and looks upon life much more from the point of view of itspotentiality and less in its actuality.

    Our hypothesis stresses the political dimension that pervades the aestheticsof dayly life. The political power ofthe aesthetical experience extrapolates art and is located in the sphere of common usage. This common usage islinked to other concepts, such as, assemblage, bricolage and profanation, which bring to life the fact that byliving, we take possession of objects, devices, and languages. Time in biopolitics is defined by calculation andanticipation. Usage makes us discover another kind of temporality time of memory, of origin and of childhood,if we follow the ideas of Walter Benjamin and of Giorgio Agamben. Each act of usage which includes themanipulation of objects, devices and languages, brings to life the past as a new horizon of possibilities.

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    Sumrio

    INTRODUO 01

    MODULAAO

    A mesa onde escrevemos 22O que a poltica 24Um sequestro 31Da poltica do rosto 37O horizonte como ponto de fuga e o espao como perspectiva 41Espao e tempo da disciplina 44O passo 48Da biopoltica 50Olhar panptico, olhar cintico, olhar algortmico 55Excesso 63Biopoltica no capitalismo avanado 70Do risco 72A justia infinita 75O consenso 77

    A espera, o evento, o descompasso 80Configurao sensvel paradoxal 89Paradoxo do espao: a rede 90Paradoxo do tempo: a simulao 98Paradoxo da subjetividade: a performance 102O que a vida 107Capitalismo esttico 111Entre a guerra e o jogo 117

    MONTAGEM

    Ferrugem 124Pobreza e precariedade 127Infncia 130

    O que a linguagem 135Da experincia 139Do esttico ao poltico 143Corpo harmonioso 147Corpo sem rgos 152Corpo-montagem 159O espao da experincia esttica 165O tempo da experincia esttica 168O sujeito da experincia esttica 172

    Virar a cmera 179Da irredutibilidade da experincia esttica 183

    CONCLUSO

    Concluso I: Por uma comunidade esttica 189Concluso II: Esttica do ordinrio 193

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS199

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    Projeto grfico: Fernanda GoulartImagens das capas: Yuken Teruya

    Imagens das divisrias: Charwey Tsai

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    Introduo

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    INTRODUO 1

    Recm-lanada pela Sony, a cmera Cybershot Tse assemelha aos diversos modelos que se

    substituem, um aps o outro, no mercado de gadgets digitais. Mas, ela guarda uma

    diferena ou, em termos mercadolgicos, um diferencial: a cmera s dispara diante do

    sorriso daqueles que fotografa.1 Por meio de tcnicas da biometria, a cmera detecta

    variaes faciais, codificando-as em um repertrio que vai do riso tmido gargalhada.

    Ao avisoj habitual que acompanha as cmeras de vigilncia dos shoppings centers

    sorria! Voc est sendo filmado acrescenta-se esta exigncia, intrnseca ao dispositivo:

    sorria, seja feliz! Assim voc aparecer na imagem.

    Essa felicidade tecnologicamente assistida2 reveladora da relao que mantemos com

    o tempo: em uma espcie de curto-circuito temporal, o sorriso, antes efeito de um

    momento feliz, prazeroso, passa a ser sua causa. Somos felizes porque, na imagem,

    sorrimos. Como se o evento o sorriso j estivesse inscrito no futuro, na forma de uma

    expectativa, no caso, uma exigncia. A inverso temporal faz da cmera fotogrfica, antes

    uma mquina de viso, uma mquina de pr-viso: o evento que ela captura est, desde

    j, inscrito em sua memria. De um sorriso possvel, eventual, ele se torna um sorriso

    esperado, calculado.

    O gesto, a expresso do rosto, contudo, no so redutveis expectativa e ao clculo.

    Primeiramente, h a variao do rosto que, em sua singularidade, no pode ser totalmente

    prevista pela modelizao numrica. Mas, h ainda a dimenso de uso do dispositivo, que

    1Devo o exemplo a Fernanda Bruno, em seu blog Dispositivos de visibilidade e subjetividade contempornea.

    BRUNO, Fernanda. Sorria! Disponvel em http://dispositivodevisibilidade.blogspot.com. Acesso em 21 abr.2008.2Ibidem.

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    INTRODUO 2

    se configura sempre como uma prtica de desdobramentos, em certa medida,

    imprevisveis.

    O plustecnolgico funciona aqui como metonmia: a relao entre a cmera fotogrfica

    e o sorriso reveladora de um conjunto de estratgias que visam adequar a singularidade,

    a eventualidade, a imprevisibilidade em uma palavra, a potncia da vida ao clculo de

    uma expectativa. Esse conjunto de estratgias fazem parte do que denominamos

    biopoltica.

    Desde a formulao pioneira por Michel Foucault, em 1974, o conceito de biopoltica

    passa por uma srie de apropriaes e derivaes tericas, sem, com isso, se distanciar

    totalmente da definio original: trata-se da rede de estratgias difusas e imanentes

    atravs das quais o poder investe a vida humana, em suas dimenses biolgica, subjetiva e

    social. Hoje, para alm do Estado, a biopoltica convergente ao processo de expanso do

    capitalismo avanado, confundindo-se com as tcnicas de gesto, marketing e consumo.

    Como veremos, a poltica contempornea se exerce nesse embate entre a dimenso de

    clculo prpria biopoltica e o carter excessivo da vida cotidiana. O que motiva,

    inicialmente, nossa pesquisa pensar o lugar da esttica nesse embate, o que significa

    perguntar: para alm da esfera da arte, qual o potencial poltico da experincia esttica?

    Responder pergunta, nos exige construir uma trama conceitual que nos leve

    formulao de uma esttica do ordinrio, para, em seguida, sublinhar ali uma dimenso

    poltica.

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    INTRODUO 3

    Para Gilbert Simondon, a vida se define como uma espcie de errncia do ser, o processo

    por meio do qual o ser se torna extico, se defasa de si mesmo. Em permanente processo

    de individuao, o ser sempre devir, ele quando j deixou de ser. Essa defasagem o

    que compreendemos como modulao, ou seja, a vida em variao contnua. Se, por meio

    da modulao, a vida defasagem e variao, em suas estratgias de regulatrias, a

    biopoltica busca intervir justamente nessa dinmica. Ela regula a errncia da vida para

    tornar seu futuro adequado, suficiente. Uma outra definio ainda mais concisa de

    biopoltica poderia ser: o conjunto de tcnicas, procedimentos e estratgias, atravs do

    qual se modula a modulao da vida.

    Se esse principalmente um investimento no tempo, porque interessa menos a vida, em

    sua atualidade, do que as possibilidades de variao, de transformao e inveno que ela

    abriga. Da engenharia gentica ao marketing, interessa mapear, antecipar e modular seu

    campo de possibilidades.

    A biopoltica, tal como hoje a pensamos, guarda continuidades e descontinuidades em

    relao formulao inicial. De l para c, percebe-se uma intensificao de suas

    estratgias, em razo de alguns fatores que sero desenvolvidos ao longo do texto: em

    primeiro lugar, h, como dissemos, uma convergncia entre biopoltica e capitalismo

    avanado. Por meio do marketing, o capitalismo se interessa pela vida, no apenas como

    lugar da produo e do consumo, mas, principalmente, como uma inesgotvel reserva de

    inveno. Como veremos, o capitalismo ps-industrial tambm chamado cognitivo,

    afetivo, esttico transborda os limites da empresa para se expandir a outros domnios da

    vida cotidiana. O que se produz e se reproduz agora no so apenas mercadorias, mas

    modos de vida.

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    INTRODUO 4

    Um segundo ponto, diz respeito ao avano cada vez mais acelerado da tecnocincia, em

    aliana com as tecnologias da imagem e da informao. Menos pticas do que

    algortmicas, essas tecnologias nos permitem o mapeamento e a modulao do espao, do

    tempo, do corpo e das subjetividades, intervindo no apenas em suas visibilidades no

    presente, mas, principalmente, naquilo que, no futuro, seria invisvel. Reside a seu

    principal investimento: tornar visvel o invisvel, reconfigurando os limites entre um e

    outro universo. Mais uma vez, este um investimento no tempo: a acelerao tecnolgica

    provoca uma espcie de colapso temporal, no qual o futuro, antecipado pelas tcnicas de

    previso e simulao, se volta sobre a vida, no presente, regulando suas aleatoriedades.

    O contexto que legitima as estratgias biopolticas aquele de uma sociedade do risco e

    da insegurana. No mbito do Estado liberal, a insegurana menos o que deve ser

    combatido do que o que deve ser regulado. Como escreve Rancire, a insegurana ,

    atualmente, um modo de gesto da vida coletiva. Diante de seu aumento, cresce na

    mesma proporo a demanda pelo controle. Tornados retrica e modo de gesto, risco e

    insegurana nos fariam reduzir a poltica a aes de polcia. Exemplar aqui o sloganda

    justia infinita, utilizado por George Bush em sua cruzada contra o terror, logo aps o

    atentado de 11 de setembro nos Estados Unidos. Diante do risco do terror, a justia se

    torna infinita, ou seja, o Estado passa a exercer um direito acima de qualquer norma de

    direito.

    Aqui, nos aproximamos da questo central de nossa pesquisa. Como veremos, com

    Rancire, a poltica justamente o que se contrape ordem policial, na medida em que

    exige um novo ordenamento, uma nova cenaa partir dos dissensos que ela instaura. Se a

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    INTRODUO 5

    polcia a ordem que determina a funo e o posicionamento dos sujeitos em

    determinado espao sensvel, a poltica o que exige a reconfigurao do espao para

    que ali novos posicionamentos, novas funes e outros sujeitos polticos possam existir. A

    poltica diz respeito, portanto, a um deslocamento de natureza sensvel, fazendo ver

    aquilo que no se via e ouvir o que no era percebido seno como rudo. H uma gnese

    esttica da poltica: trata-se de reconfigurar o espao e o tempo da experincia, de forma

    a ampliar nosso horizonte de possveis. Nesse sentido, poltica e esttica se opem

    polcia, ao controle e, antes de tudo, ordem do consenso.

    Advm da a dificuldade da poltica no contexto do capitalismo avanado, que, como

    vimos, se expande e se sustenta por meio das estratgias biopolticas. O capitalismo

    intervm justamente na zona de intercesso entre a poltica e a esttica, para modular e

    regular aqueles processos que, no cotidiano, nos permitiriam projetar mundos possveis.

    Nesse contexto, a experincia poltica e a esttica se tornam to difceis quanto urgentes,

    o que nos leva a retomar nossa pergunta inicial: qual , hoje, o potencial poltico da

    experincia esttica?

    Para tentar responder a questo, mobilizamos um repertrio terico-conceitual bastante

    heterogneo, em um percurso talvez exageradamente disperso e segmentado. Nossa

    expectativa a de que heterogeneidade e disperso prprias deste texto ensastico no

    impeam o leitor de perceber uma linha argumentativa, ainda que tnue, que o leve a

    compartilhar conosco algumas hipteses. Ao final, percebemos que a lgica do texto

    cumulativa e elptica: os conceitos vo sendo apresentados e retomados, em uma sucesso

    de repeties diferidas.

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    INTRODUO 6

    A primeira parte do ensaio, que chamamos Modulao, apresenta duas definies de

    poltica, que nos ajudam a pensar sua gnese esttica. Para Jacques Rancire, a poltica diz

    respeito a uma partilha do sensvel, ou seja, uma reconfigurao do espao e do tempo, a

    partir da qual se transformam os limites entre o que ou no visvel, o que ou no

    enuncivel, o que, em uma comunidade poltica, se considera parte de dada racionalidade

    ou dela est excludo. Assim, para Rancire, trata-se sempre de um deslocamento sensvel

    em relao a determinada ordem policial. J para Maurizio Lazzarato, a poltica esttica

    na medida em que se refere criao de mundos. Em sua defesa de uma poltica do

    evento, o autor se alia ao conjunto de tericos contemporneos que pensam a poltica, no

    interior do capitalismo global, como imanncia: ela a forma como se produzem mundos

    e subjetividades, a partir do trabalho difuso, auto-potico e, muitas vezes, conflituoso de

    uma multitude.

    Se ambas as teorias compartilham essa dimenso esttica da poltica, elas se distanciam

    em, ao menos, um aspecto. Para Rancire, h uma negatividade em relao qual a

    poltica se define: ela se ope a uma ordem policial, que o autor denomina consenso. Em

    sua negatividade, a poltica dissensual, se contrapondo quilo que, no consenso

    democrtico, torna o todo igual soma das partes. Na democracia, em seu sentido poltico

    forte, h sempre uma parcela daqueles que no se contam e que, diante de uma nova

    partilha do sensvel passam a fazer parte dessa contagem. nesse sentido que, para

    Rancire, a democracia no deve nunca nos levar ao consenso, mas est em permanente

    toroem relao a si mesma.

    Para Lazzarato, o capitalismo atual o imprio, nos termos de Antnio Negri e

    Michael Hardt no nos permite identificar uma negatividade a ser combatida. A nica

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    INTRODUO 7

    resistncia possvel ser, assim, a que nos impe o desafio de inventar uma multiplicidade

    de mundos, que podem existir como incompossveis. O termo, retomado por Lazzarato a

    partir da leitura deleuziana da obra de Leibniz, diz respeito possibilidade de existncia

    simultnea de mundos singulares, divergentes e contraditrios. A poltica vista assim em

    sua positividade, como processo de criao e de proliferao de mundos incompossveis.

    Ela no concebida em seu carter negativo mas, antes, produtivo.

    Em seguida, no texto, voltamos biopoltica, para defini-la a partir de Michel Foucault,

    em dilogo com outros autores que retomam a atualidade do conceito. Da disciplina

    biopoltica, trata-se de um poder produtivo, imanente dinmica social, que

    historicamente coincide com o desenvolvimento do Estado liberal e do capitalismo, ou

    seja, que se exerce em meio liberdade e autonomia. Se a disciplina ainda se volta sobre

    o indivduo, a biopoltica, em complemento, se estende s populaes, regulando seus

    deslocamentos pelo territrio, sua circulao. A passagem da disciplina biopoltica

    tambm aquela da norma ao risco: trata-se agora no apenas de moldar o corpo e a

    subjetividade tendo em vistas uma norma, mas tambm de regular as indeterminaes

    que ameaam a espcie humana, a partir de tcnicas e tecnologias de modulao.

    So conhecidas as reticncias foucaultianas ao conceito de espetculo, formulado

    inicialmente por Guy Debord. A ele incomoda, especialmente, a imediata banalizao do

    conceito, que, a partir dos anos 60, foi transformado em palavra de ordem. Neste ensaio,

    no entanto, tentamos nos reaproximar da teoria de Debord (e sua retomada por Giogio

    Agamben), para mostrar como a verso contempornea da biopoltica se produz na

    intercesso com o espetculo. Para tanto, esboamos um breve percurso que, da

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    INTRODUO 8

    fotografia s imagens eletrnicas e digitais, passando pelo cinema, identifica pontos de

    convergncia entre estratgias biopolticas e aquelas do espetculo.

    Como veremos com Agamben, na esteira de Debord, o espetculo tende a separar os

    domnios da linguagem e da experincia, em um processo crescente de abstrao. Mais

    do que isso, ele torna a linguagem (no s a linguagem verbal, mas tambm as

    audiovisuais) um domnio de especialistas, domnio da tcnica, que se volta sobre a

    experincia na forma de uma roteirizao generalizada. Como resume Comolli, os roteiros

    no atuam mais apenas no campo das imagens e das representaes, mas, por meio delas,

    passam a modular, controlar, regular a prpria experincia. Sabemos como a histria

    conceitual do roteiro no recente. Aqui, em contrapartida, veremos como ele incide

    principalmente sobre o tempo, na articulao entre duas temporalidades: o tempo da

    previso e da simulao prprio biopoltica e o tempo do instantneo uma

    hipertrofia do direto, diria Comolli prprio ao espetculo.

    Nesse percurso somos defrontados a um paradoxo que est na base da poltica

    contempornea: por um lado, como nunca na histria estamos diante de um horizonte

    aberto de possibilidades (e de incertezas). O avano tecnocientfico e o contexto de

    liberdade alcanados pela sociedade moderna ampliam as possibilidades da vida de se

    criar e se reinventar, mergulham a vida em um campo de virtualidades sem igual. Por

    outro lado, legitimam-se formas de controle sobre a vida jamais vistas. Amplia-se nosso

    campo de possveis para que, no mesmo processo, ele se submeta s expectativas que

    criamos no presente. Eis o paradoxo: no mbito da biopoltica, o poder davida tende a

    coincidir e reforar o poder sobrea vida.

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    INTRODUO 9

    Esse paradoxo de fundo se desdobra na forma como experienciamos o espao, o tempo e

    na maneira como se produz, hoje, a subjetividade. Do ponto de vista espacial, as redes

    scio-tcnicas tornam o nosso um espao potencial, que encurta as distncias e faz com

    que cada ponto esteja potencialmente ligado a todos os outros. Por outro lado, a rede

    permite tambm o controle do trnsito dos indivduos pelos territrios geogrficos e

    simblicos: quanto mais me desloco, quanto menos me fixo, mais passvel ao controle me

    torno. Mais importante do que isso, em sua lgica a-centrada e em sua dinmica de auto-

    organizao, a rede permite no apenas a autonomia dos indivduos e dos coletivos, mas

    tambm a criao de estratgias sutis, quase imperceptveis, baseadas no auto-controle,

    na auto-regulao.

    Do ponto de vista do tempo, os avanos tecnocientficos nos fazem experienciar, na

    expresso de Paulo Vaz, um tempo profundo, em que a vida confrontada a um futuro

    aberto, indeterminado. Diante da demasia do tempo, nos valemos da tecnologia para

    antecipar e simular cenrios, buscando adequar a indeterminao do futuro s

    determinaes de nossas expectativas presentes. O futuro deixa assim de ser o lugar da

    diferena para se tornar o lugar de uma adequao, em outros termos, a reiterao do

    mesmo.

    Por fim, a subjetividade: se por um lado, ampliam-se os modos de subjetivao possveis,

    por outro, aderimos espontnea e voluntariamente s formas de controle. Para participar

    dos circuitos de consumo, de informao e de entretenimento, precisamos exteriorizar

    nossa subjetividade, em um deslimite entre os domnios pblico e privado. Ou seja, a

    nossa uma subjetividade que se forma em uma constante performance, tendo como

    campo de visibilidade as mdias eletrnicas e digitais. Muitas vezes, isso significa nos

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    INTRODUO 10

    submeter a estratgias de exposio da intimidade que se traduzem em formas de

    controle ligadas, principalmente, ao universo do marketing.

    Este o contexto que motiva nossa pesquisa e que ser desenvolvido na primeira parte do

    ensaio: pouco a pouco, as estratgias biopolticas participam da expanso do capitalismo

    contemporneo. Ele possui a particularidade de transbordar os limites da fbrica e da

    empresa, para se disseminar por todos os domnios da vida cotidiana. Mais do que vender

    produtos, trata-se de criar mundos, nos quais se inventam e se experimentam modos de

    vida. Nesse sentido, o capitalismo dito ps-industrial e cognitivo pode ser caracterizado

    tambm como capitalismo esttico. Como mostram Luc Boltanski e ve Chiapello, o novo

    esprito do capitalismoincorporou tudo aquilo que, antes, fazia parte do universo da arte

    e que compunha um discurso crtico, baseado na diferena, na liberdade, na autenticidade

    e na autonomia.

    Diante desse contexto, resta-nos perguntar novamente: o que reivindicar experincia

    esttica? Qual o seu potencial poltico quando a inveno e a criao passam a ser o que

    move o capitalismo em seu estgio avanado? Para responder a essa pergunta, na segunda

    parte do texto, denominada Montagem, deslocamos nossa discusso para outro campo de

    investigao, ligado Teoria Esttica. Para avaliar o potencial poltico da experincia

    esttica seria preciso, em um primeiro movimento, mostrar sua irredutibilidade ao campo

    da arte, como uma dimenso transversal experincia cotidiana. Mas, em um segundo

    movimento, ressaltamos, em contrapartida, sua irredutibilidade ao cotidiano, como

    excepcionalidade que . Para Hans Ulrich Gumbrecht, a experincia esttica se daria na

    forma de pequenas crises, que, em meio nossa rotina, confrontam o estranho ao familiar

    e que, por isso, so capazes de deslocar, alargar, nosso horizonte de possveis.

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    INTRODUO 11

    Nesse ponto do percurso nos perguntamos: como se passa do esttico ao poltico?

    Ressaltar uma gnese esttica da poltica no significa dizer que esttica e poltica sejam

    universos equivalentes, que o esttico seja imediatamente poltico. A passagem da

    sensao comunicao (no sentido amplo, como aquilo que permite a formao de um

    comum), do espao sensvel polis, da pura multiplicidade comunidade, no est nunca

    garantida. Essa no uma discusso nova. Pelo contrrio, ela est na base da formao do

    que Rancire denomina um regime esttico, tendo como uma de suas formulaes

    originais as Cartas sobre a educao esttica do homem, publicadas em 1795, por Schiller.

    Para o filsofo, no h outro caminho para transformar o homem das sensaes

    homem do povo em homem poltico que no o da educao esttica. A noo de jogo

    fundamental aqui: no livre jogo das aparncias se desfaz a distino entre o sensvel e o

    inteligvel, entre a atividade e a passividade. Em termos polticos, a educao esttica

    contribuiria para desfazer a dominao da formasobre a matria, da intelignciasobre a

    sensibilidade, que estaria na base do poder das classes intelectuais sobre as classes da

    sensao. Se uma comunidade se pode fundar por meio do esttico, ela suprimiria a

    diferena entre as duas humanidades.

    Nos limites desta pesquisa, no podemos retomar essa tradio terica. Optamos pela

    tentativa de pensar a passagem do esttico ao poltico em sua atualidade. Antes de propor

    nossa prpria hiptese, abordamos dois caminhos conceituais que, ao propor um

    paradigma esttico transversal aos vrios domnios da experincia cotidiana, nos

    permitem pensar a passagem do esttico ao poltico em direes distintas, quase opostas.

    Cada qual ao seu modo, elas propem uma resposta questo: que corpo derivar da

    experincia sensvel, que corpo polticopoderia resultar do esttico?

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    INTRODUO 12

    Para a perspectiva pragmatista, que vai de John Dewey a Richard Shusterman, a

    experincia esttica no se ope aos outros domnios da experincia o domnio da

    prtica, da cognio mas os atravessa, enriquecendo-os: o esttico se define pelo

    conjunto de qualidades sensveis que nos permite integrar a disperso da realidade em

    umaexperincia. A dimenso esttica do cotidiano nos possibilita dizer que tivemos uma

    experincia e nos faz ainda desejar que essa experincia nica caminhe rumo perfeio,

    a um termo harmonioso. Tanto na formulao original de Dewey quanto na posterior

    apropriao crtica feita por Shusterman, a experincia esttica estaria ligada a um

    processo de aperfeioamento. Seja em dimenso individual ou coletiva, a passagem do

    esttico ao poltico, nessa perspectiva, nos levaria formao de um corpo integrado,

    consensual, harmnico. Restaria avaliar em que medida esse um consenso j

    previamente determinado, ou seja, em que medida a harmonia que a se almeja seria

    adequada a uma ordem estabelecida. Nesse caso, o corpo harmonioso, nos restaria menos

    cri-lo do que meramente alcan-lo, em uma performance de progresso contnuo.

    A segunda perspectiva rene as proposies tericas que, a partir da filosofia de Gilles

    Deleuze e Flix Guattari, desenvolvem uma poltica da diferena e da multiplicidade.

    Nesse caso, para alm do artstico, haveria uma dimenso esttica, ou proto-esttica,

    virtual, que tensionaria as estruturas e os sistemas fechados, fazendo-os entrar em

    variao contnua. A defesa de um paradigma esttico transversal experincia cotidiana,

    visa, aqui, opor a variao constncia, a multiplicidade unidade, a diferenciao

    repetio. Da esttica poltica, teramos a defesa de um corpo mltiplo, varivel, corpo

    sem rgos, sempre em processo de formao. Ele se compe de afetos, sensaes e

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    INTRODUO 13

    intensidades e atua como potncia ao fundo das estruturas, sejam elas lingusticas,

    psquicas ou sociais.

    Por um lado, ento, o corpo harmonioso se constituiria, por meio da esttica, como o

    resultado de uma expectativa: o consenso. Por outro lado, seria preciso pensar como

    derivar da pura intensidade e da pura variao do corpo sem rgos algo como uma

    poltica. Nossa hiptese a de que resta esttica, em sua relao com a poltica, um

    limite estreito entre um e outro, o corpo harmonioso e o corpo sem rgos. Nesse

    intervalo, se produz um corpo-escritura, corpo-montagem, nascido de um descompasso:

    entre o mundo tal qual ele e esse mesmo mundo, agora, reconfigurado. A experincia

    esttica o que se produz nesse descompasso.

    Nesse ponto da discusso, precisamos nos dedicar ao conceito de montagem. Aqui, ele se

    concebe em sua amplitude, para alm da discusso restrita ao campo do cinema, apesar

    de no se desconectar totalmente dela. A partir de Jacques Rancire, uma definio

    sucinta seria: a montagem a medida do que no tem medida comum.

    Tomemos um exemplo corriqueiro, de nossa predileo, como se perceber ao longo

    deste ensaio. Duas crianas brincam. Uma delas abre o ba de brinquedos e dispe as

    peas pelo cho. O ba abriga uma quantidade de materiais, cada qual com sua prpria

    temporalidade: brinquedos antigos, outros mais recentes, jogos completos, incompletos,

    peas que se encaixam, peas soltas, outras que se perderam...a brincadeira, no se sabe

    ainda o que ser. Diante das peas um mundo desmontado, pronto a ser experimentado

    , as crianas vo testando as possibilidades, os jogos, as narrativas possveis. Em sua

    heterogeneidade, as peas no foram concebidas para estar juntas, no h entre elas,

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    INTRODUO 14

    necessariamente, uma medida comum. H, nesse espao de brinquedos dispersos, algo de

    incomensurvel. Trata-se de um corpo sem rgos: no cho quarto, abre-se um espao

    residual de pura possibilidade. A brincadeira ser ento a montagem, a desmontagem e a

    remontagem desse espao. Atravs dela, vai-se construindo um mundo prprio,

    circunstancial, a partir do contato entre peas dspares. A brincadeira no almeja um fim,

    uma meta, mas a construo de um comum: um jogo, uma narrativa, que no se sabe, a

    princpio, qual ser.

    Para Rancire, a montagem uma frase-imagem, uma sintaxe parattica. Nela a parataxe

    um repertrio heterogneo e disperso de objetos e imagens no impede a

    configurao de uma sintaxe uma composio discursiva circunstancial a partir desse

    repertrio. Por outro lado, provocada pela parataxe, a sintaxe no precisa deixar de ser

    aberta, potencial, ela no se reduz, necessariamente, a um discurso consensual, facilmente

    assimilvel. Em uma frase-imagem, nos diz o autor, a frase (a sintaxe) acolhe a potncia

    parattica da imagem sem deixar que ela caia na falta de sentido. Por sua vez, a imagem

    (a parataxe), em sua potncia, recusa o reconhecimento fcil, a imediata comunho de

    sentido.

    Voltemos brincadeira: o conjunto de peas soltas pelo cho, sua disperso, no

    impedem a criao de um mundo comum entre as duas crianas, nem as narrativas

    possveis ali. O que se cria, no entanto, no deve seguir um roteiro ou uma expectativa

    fechada. Simultaneamente, se inventam o mundo e as narrativas, no havendo uma

    determinao prvia de seu futuro.

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    INTRODUO 15

    Diante do exemplo da brincadeira, podem nos repreender o tom quase nostlgico. Entre

    jogos de guerra, programas televisivos e brinquedos com controle remoto, h muito no

    se brinca dessa forma, diriam alguns. Cada vez mais, as brincadeiras devem seguir um

    roteiro prvio, possuem manual de instruo e meta bem definida. Concordamos. Mas, a

    despeito de toda roteirizao, h uma infncia que permanece, uma origem sempre por

    vir, que retorna por meio da memria. Esse retorno, uma repetio, se difere, se reinventa

    a cada rememorao. A matria da montagem ser, assim, a memria. Para Walter

    Benjamin, a rememorao justamente o processo atravs do qual se monta um

    repertrio o passado para torn-lo novamente possvel, para permitir que ele retorne

    como potncia.

    A montagem o lugar da experincia esttica: uma situao problemtica, uma crise em

    relao aos nossos parmetros de (re)conhecimento, nos exige a criao de uma nova cena

    e de um novo discurso capaz de abrigar o que nos surge em sua excessiva alteridade. Ela

    o que nos permite produzir um pensamento esttico uma potica do saber, na

    expresso de Rancire: esse pensamento precrio nasce de um corpo a corpo com a

    experincia, em um processo de afeco mtua. Trata-se, em outros termos, de um jogo,

    que funde uma passividade (um pathos), uma atividade e a criao de um mundo

    circunstancial (um ethos), no pr-existente ao prprio jogo da montagem. Como

    procuramos mostrar nesse ensaio, a montagem torna indissociveis os domnios da

    linguagem e da experincia: criamos os discursos acerca do mundo no mesmo momento

    em que o experienciamos, desmontamos e remontamos continuamente.

    Esse um procedimento que faz parte do domnio do uso. Para lembrar o conceito de

    Giorgio Agamben, a montagem um tipo especial de uso, uma profanao. Profanar,

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    INTRODUO 16

    escreve o autor, o movimento aposto ao de consagrar (sacrare): se a sacralizao uma

    retirada do mundo, que se torna alheio, distante da interveno dos homens, a profanao

    , em via inversa, sua restituio, por meio do uso. Para Agamben, o uso deve ser, nesse

    caso, negligente, livre, distrado. A negligncia o que nos religa aos objetos que nos

    foram abstrados por meio de um sacrifcio. Em uma leitura equivalente e complementar,

    De Certeau defende a astcia do uso, uma reutilizao desabusada e desautorizada dos

    objetos, dos saberes, dos espaos, das tecnologias e linguagens. Essas astcias prprias do

    cotidiano formam a rede de uma de anti-disciplina, que se contrape s normas e s

    estratgias. Na esteira desse autor, diramos que a montagem ganha aqui o sentido de

    uma bricolagem. De Certeau recorre a Lvi-Strauss, para definir a bricolagem como uma

    reutilizao contingencial dos objetos do mundo, de forma a se recriar o prprio mundo.

    O bricoleur filho de Kairs, ele que se move pelas situaes, atento s ocasies, no se

    submete a um projeto rgido e compe conjuntos abertos. Como reapropriao astuta e

    negligente daquilo que nos constantemente expropriado, a bricolagem nos religa a uma

    infncia sempre presente.

    Essa rede conceitual em torno da noo de uso a montagem, a profanao, a bricolagem

    nos permite reivindicar uma esttica do ordinrio, na qual um pensamento que no se

    pensa, prprio das tticas e astcias da vida cotidiana, atravessado por um

    pensamento que ainda no pensa, pensamento esttico. Para alm do domnio das artes,

    essa esttica do ordinrio possui uma potncia poltica, na medida em que possibilita uma

    reaproximao, um vnculo entre experincia e linguagem.

    Nossa hiptese ser a de que a crtica ao capitalismo avanado esttico e biopoltico

    passa por esse vnculo que se estabelece por meio do uso. Vale lembrar aqui a

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    INTRODUO 17

    provocao de Walter Benjamin, retomada posteriormente por Agamben: uma crtica ao

    capitalismo deve ser, essencialmente, uma crtica temporalidade que ele nos impe. Se o

    tempo moderno o vazio da cronologia, sobre o qual se ampara a noo de progresso, o

    tempo do capitalismo contemporneo ser aquele que se produz como antecipao, por

    meio da simulao. Por meio da simulao, disseminada pelas tecnologias da imagem e

    da informao, antecipamos o futuro no presente, no sem, antes, purific-lo de sua

    excessiva indeterminao.

    A poltica, em seu sentido forte, ope a esse movimento tautolgico outra concepo do

    tempo. Ela surge das diferenas temporais que existem dentro e fora da polis. Segundo

    Rancire, ao situar o mesmo e o outro em um espao comum, a poltica nos exige

    compreender as diferentes temporalidades que compem nosso presente. O tempo da

    poltica, diramos, aquele que se constitui, paradoxalmente como anacronismo e

    virtualidade. Como pode ser?

    O tempo benjaminiano aquele da memria, da infncia e da origem. Mas aqui no do

    passado que se trata. A memria o que retorna como rememorao, ela , portanto, uma

    escritura, atravs da qual o passado se restitui como recriao. No tecido da memria,

    nos diz Benjamin, a recordao a trama e o esquecimento, a urdidura. Assim, a memria

    o que torna o tempo suspenso entre algo que sempre j passou (ou seja, nada

    totalmente novo) e que sempre est por vir (nada totalmente igual). Como

    rememorao, o passado se repete na forma de uma diferena.

    Dentro dessa concepo do tempo, a origem a infncia no um paraso perdido,

    algo que s pode alimentar nossa nostalgia. Na expresso clebre de Benjamim, a origem

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    INTRODUO 18

    um turbilho, que, ao girar o tempo, faz convergir o que passou e o que est em vias de

    se formar. Esse o paradoxo do tempo original: o que permanece, o que resta, o que

    torna novamente possvel.

    Agamben retoma a formulao benjaminiana acerca do tempo, para estabelecer uma

    relao entre infncia e linguagem. Se pudesse ser totalmente dissociada da experincia,

    nos diz ele, a linguagem seria um cdigo vazio, uma estrutura sem vida. Atravs da

    experincia entramos na linguagem, nos apropriamos de seu cdigo, desmontamos e

    remontamos suas peas. Mas, em sua desmedida, a linguagem no pode ser objeto de

    domnio absoluto por parte dos homens. O que equivale a dizer que, a cada vez que

    usamos a linguagem, temos que novamente reaprend-la. Somos, assim, in-fantes: a cada

    enunciao, toda a linguagem que nos apresenta em estado de potncia e solicita, por

    isso, ser reaprendida, reapropriada. A infncia o que possibilita o mergulho da

    linguagem na experincia e, portanto, o que a limita, impedindo que ela seja um cdigo

    matemtico vazio e abstrato, fechado em sua prpria abstrao. Do ponto de vista do

    tempo, a infncia o que permite que, a cada enunciao, a cada uso, todo o passado da

    linguagem se torne novamente presente, possvel.

    Esse um tempo em potncia. Ele no uma abstrao, no est alheio experincia, mas,

    ao contrrio, o seu fundamento: atualiza-se no cotidiano na forma do uso. Usar os

    objetos, dispositivos e linguagens retir-los seu estado inercial aquele prprio dos

    roteiros e das simulaes para restitu-los a seu estado potencial. Nesse sentido, a

    dimenso poltica da experincia esttica est em nos permitir, por meio do uso

    cotidiano, nos expor potncia dos objetos, dos dispositivos, das linguagens.

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    INTRODUO 19

    Digamos que o uso o que nos permite fazer da vida uma escritura. Para Jean-Luc Nancy,

    ela se define como o que no se submete a um modelo. A escritura abre uma relao, um

    comum, ela o em jogo do em comum da vida. Se, no domnio do capitalismo

    biopoltico e esttico, a vida objeto de modulao e controle, diramos que ela no

    absolutamente redutvel a esse investimento.

    Nesse jogo contnuo cujo terreno o cotidiano, qual seria, ento, a potncia poltica da

    experincia esttica? A busca por uma resposta a essa questo o fio tnue que nos

    permite acompanhar o ensaio a despeito de sua disperso. O propsito de respond-la

    no deve nos fazer exigir do esttico mais do que ele pode nos oferecer. No chegamos a

    uma resposta que possa se traduzir em aes, em estratgias de resistnciaao capitalismo.

    No era esse o intuito. Digamos apenas que, na vida, o que se cria e se recria , com cada

    vez mais intensidade, objeto de expropriao. O que permanece irredutvel a essa

    expropriao a possibilidade de se criar: o tempo em estado de potncia o

    Inaproprivel. A cada uso dos objetos, dos dispositivos, das linguagens essa

    possibilidade se renova. Ao contrrio do que nos faz crer a lgica do consumo, o uso no

    o que desgasta, mas o que nos expe, de novo e novamente, uma possibilidade. Antes

    de sua dimenso prtica, utilitria, o uso nos coloca diante da medialidade dos

    dispositivos e da comunicabilidadeda linguagem, conforme formulao de Agamben.

    O resultado dessa pesquisa um ensaio, como explicitamos no ttulo. Mais do que uma

    certeza acerca do mundo, o pensamento ensastico nos leva a errar sobre o estado do

    mundo. O ensaio se move segundo um impulso de aventura, no sistemtico: no apenas

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    INTRODUO 20

    o conceito mas tambm a imagem,no apenas as diferenas mas as diferenciaes.3Esse

    movimento de derivao e errncia faz do pensamento ensastico algo arriscado:

    pensamento que se ensaia, segundo Silvina Rodrigues. Ele se pensa no momento mesmo

    em que o texto vai-se fazendo. Relativiza-se enquanto se afirma, o que nos faz ir ainda

    mais longe, para dizer, com Adorno, que o ensaio ocupa um lugar entre os despropsitos.

    Imerso na desproporo da experincia, ele se articula como se estivesse para ser, a todo

    momento, interrompido.4 Como discurso, o ensaio s pode ser dis-cursus, curso

    interrompido, sugerindo a idia de fragmento como coerncia.5

    Ao final desse percurso, percebemos o ensaio ele prprio como uma montagem, uma

    bricolagem. Ele se arrisca a aproximar autores, teorias e experincias bastante distintos.

    Condizente com nossa prpria argumentao, trata-se de um uso, em certo sentido,

    negligente desse material. Esperamos, contudo, que ele no seja pouco rigoroso.

    Misto de opo consciente e incapacidade, nesta pesquisa no analisamos um corpus

    emprico bem definido. Artsticas ou no, as experincias que aparecem ao longo do

    trabalho no podem ser classificadas nem como exemplo, nem como objeto de anlise.

    Elas fazem uma espcie de intercesso6com o texto, atravessam uma ou outra discusso,

    mas compem segmentos relativamente autnomos. Por isso, as anlises so curtas e

    quase se reduzem a descrever as experincias, colocando-as em contato com a teoria. Se a

    lgica do texto a da montagem, o modo de se operar menos a anlise do que o

    contato.

    3RODRIGUES, Silvina. Literatura, defesa do atrito. Lisboa: Vendaval, 2003, p. 165-166.4Ibidem, p. 35.5

    BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: a palavra plural. So Paulo: Escuta, 2001, p. 30.6Indiretamente, fazemos referncia aqui ao conceito de intercessores, como formulado em DELEUZE, Gilles.Les intercesseurs. In: Deleuze, G. Pourparlers(1972-1990). Paris: Les ditions de Minuit, 2003, p. 165-184.

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    INTRODUO 21

    Tambm, preciso sublinhar, o critrio de escolha dessas experincias algo subjetivo.

    Primeiramente, elegemos experincias residuais (o termo est longe de ser pejorativo)

    um vdeo-sequestro no Youtube, uma cena de um filme, uma frase escrita sobre a mo,

    alguns vdeos exibidos em festivais de arte eletrnica, documentos de um banco de dados

    na internet todas elas relacionadas de forma direta ou indireta ao contexto de nossa

    discusso. Se, muitas vezes, o contato com essas experincias se deu no universo das artes,

    elas nos interessam principalmente naquilo que podem nos ligar experincia cotidiana,

    ou naquilo que podem sugerir em termos de uma esttica do ordinrio: o sequestro de

    um jornalista, cartazes publicitrios rasgados, pisoteados, o gesto de um operador de

    cmera annimo. Nada coincidentemente, as experincias que aparecem ao longo do

    ensaio surgem em contextos ditos perifricos em relao ordem mundial atual,

    contextos, muitas vezes, conflituosos: elas vm da sia, do Oriente Mdio, da Amrica

    Latina. Nesses contextos, difcil desconsiderar os anacronismos, as materialidades e as

    muitas contradies polticas e sociais.

    Mais do que fortuito, o contato com esses objetos nos permite vislumbrar uma imagem

    para a poltica hoje: ela difcil e se compe de resduos, restos, destroos. Assim como o

    cotidiano, a poltica contempornea nos solicita constantemente nos transformar em

    bricoleurs, nos demanda, antes de tudo, a crena em torn-la possvel.

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    Parte 1. Modulao

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    MODULAO 22

    A mesa onde escrevemos

    Em Ide de la prose7, h um belo texto de Agamben, no qual ele conta a histria de

    Damascius, ltimo pensador da filosofia pag, antes do fechamento da escola de Atenas,

    pelo imperador Justininano, no ano de 529. Exilado em Ctsiphon, Damascius comea a

    escrever um livro que se chamaria Aporias e solues a propsito dos princpios primeiros.

    Ali, ele persegue a seguinte questo: o comeo do Todo est alm ou em alguma das

    partes desse Todo? Depois de trabalhar na obra durante trezentos dias, ele no consegue

    mais do que se deparar com sua incapacidade de responder pergunta. O que o leva a

    uma outra, to insuportvel quanto a primeira: como o pensamento pode pensar o

    comeo do pensamento? Em outros termos, como compreender o incompreensvel?8

    Como pensar o impensvel do pensamento?

    Eis que, uma noite, ele vislumbra a idia que pode ajud-lo a dar termo a suas

    inquietaes: o incio de tudo um lugar perfeitamente vazio, sequer um lugar, mas o

    lugar dos lugares, onde eventualmente emerge um sopro, uma imagem, uma palavra. Ele

    uma superfcie lisa e sem qualidade, na qual nenhum ponto se distingue do outro: uma

    espcie de espao-limite do pensamento. O limite do pensamento no , contudo, nem

    um espao, nem uma coisa. Ele sua prpria potncia, a linguagem em estado de

    potncia. Duas belas imagens aparecem a Damascius. A primeira, uma cena de infncia:

    na fazenda onde nasceu, havia uma superfcie de pedra branca sobre a qual, tarde, os

    camponeses batiam o trigo para separar a palha do gro. O que ele procurava, nos

    7AGAMBEN, Giorgio. Seuil. In: Agamben, G. Ide de la prose. Paris: Christian Bourgois Ed., 1998.8Ibidem, p. 13.

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    MODULAO 23

    pergunta Agamben no texto, no seria essa superfcie, ela mesma impensvel, indizvel,

    sobre a qual o crivo da linguagem separaria a palha e o gro de cada ser?9

    A segunda a imagem da mesinha na qual Damascius escreve. A obra no era nada mais

    do que a tentativa de representar essa pequena mesa lisa, sobre a qual nada foi ainda

    escrito. por isso que ele no podia levar a termo seu livro: o que no podia cessar de se

    escrever era a imagem do que no tinha cessado de no se escrever.10 ai, nessa origem

    sempre por recomear, que o pensamento encontra a poltica. Porque, em sua forma

    limtrofe, a poltica o impensvel, ou o que se mantm impensado no pensamento. A

    linguagem em sua potncia sempre por vir, sua infncia.11O limite da linguagem sua

    origem e a a poltica se torna possvel: no momento em que, tudo visto e dito, algo

    permanece por ser dito e por ser visto. A poltica surge porque o que no pode cessar de

    ser pensado a imagem do que no cessa de no ser pensado. Ela nasce da demanda de se

    pensar impensvel, pois desse impensvel, se inventa um mundo. Nesse sentido, a poltica

    se produz no momento de limiar em que o vazio da linguagem se torna trao sensvel, a

    partir de uma ciso, um corte. Esse corte permite ver o que antes no se via e permite

    escutar, como palavra, o que antes no se escutava seno como rumor. Esse rumor deve

    continuar sempre ao fundo da linguagem, dos cortes que ela opera. 12

    9Ibidem, p. 14.10 No original: ce qui ne pouvait cesser de scrire tait limage de ce qui navait pas cess de ne passcrire. AGAMBEN, Giorgio. Seuil. In: Agamben, G. Ide de la prose, p. 16.11O conceito ser abordado mais frente. AGAMBEN, Giorgio. Infncia e histria: destruio da experinciae origem da histria.12 Esse impensvel ao fundo da linguagem, que a um s tempo sua potncia e seu limite, no transcendente: em uma rede conceitual marcada por correspondncias e diferenas, ele pode ser o fora(conforme leitura da obra de Maurice Blanchot por Michel Foucault) ou a imanncia (Gilles Deleuze). Cf.FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos III. Esttica: Literatura e Pintura, Msica e Cinema. So Paulo: Forense

    Universitria, 2001. O pensamento do exterior, p. 219-242; BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. Apalavra plural. So Paulo: Escuta, 2001; DELEUZE, Gilles. A imanncia: uma vida...In: Educao e realidade. n.27, v. 2, p. 10-18, jul/dez. 2002.

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    MODULAO 24

    O que a polt ica

    A polt ica surge no momento em que a voz, que apenas indica dor e sofrimento, se faz

    linguagem palavra manifesta nos permitindo distinguir entre o til e o nocivo, o

    justo e o injusto, o bem e o mal. Ser Aristteles (lembrado por Rancire e Agamben)

    quem primeiro identifica este fundamento esttico da plis:

    nico entre todos os animais, o homem possui a palavra. Sem dvida, a voz o meiopelo qual se indica a dor e o prazer. Por isso pertence aos outros animais. A naturezadeles vai s at a: possuem o sentimento da dor e do prazer e podem indic-lo entre si.Mas a palavra est a para manifestar o til e o nocivo e, por conseqncia, o justo e oinjusto. isso que prprio dos homens, em comparao com os outros animais: o

    homem o nico que possui o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto. Ora, a comunidade dessas coisas que faz a famlia e a polis. 13

    Trata-se, portanto, de um deslocamento sensvel que estaria na gnese da poltica:

    passagem da voz linguagem.14Porque a voz apenas indica, a palavra manifesta.15Essa

    passagem se apresenta na forma da percepo, do reconhecimento de uma existncia, de

    uma voz que pode, agora, ter nome e razo: aqueles que passam a existir pela palavra,aqueles cujo murmrio torna-se reconhecvel como linguagem, distino de um logos.

    A poltica no se reduz, contudo, a dar voz aos que no a tm, ou seja, permitir que os

    vrios sujeitos, agora, interlocutores, se expressem. Mais profundamente, a passagem da

    voz linguagem uma ciso que cria o mundo. Por meio de um deslocamento sensvel,

    em um mesmo processo, instaura-se o mundo e os sujeitos que o constituem.

    13 Aristteles citado por RANCIERE, Jacques. O desentendimento: Poltica e Filosofia. Trad. ngela LeiteLopes. So Paulo: Ed. 34, 1996, p. 17.14AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte:

    Editora UFMG, 2004, p. 15.15 RANCIRE, Jacques. O desentendimento: Poltica e Filosofia. Trad. ngela Leite Lopes. So Paulo: Ed. 34,1996, p. 17.

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    MODULAO 25

    Partamos, assim, de uma definio simples e interessada: a poltica a maneira como, pela

    linguagem, se cria e se partilha um mundo. Como provoca Jacques Rancire, ela feita

    no de relaes de poder, mas de relaes de mundos.16A poltica se constitui, portanto,

    no momento de uma ciso, uma ciso cuja lmina a linguagem.

    H, hoje, ao menos duas perspectivas para se compreender essa ciso, cada qual

    apreendendo de maneira diferente suas derivaes. Em uma primeira via, teramos os

    tericos da multitude, defensores da poltica como evento e multiplicidade.17Essa teoria

    se articula em torno da noo de produo de subjetividade e das formas de resistncia

    emergentes no interior do imprio, a verso contempornea do capitalismo global.18Por

    ser invisvel e nmade, o imprio um poder que no pode ser identificado como

    negatividade e que deve ser enfrentado num embate imanente ao seu modo de produo

    mesmo.

    Herdeiros da filosofia da diferena e do conceito de micropoltica,19conforme formulado

    por Gilles Deleuze e Flix Guattari, os tericos da multiplicidade defendem que, para alm

    da esfera institucional, a poltica produz mundos, por meio de agenciamentos locais. Essa

    concepo da poltica parte da multiplic idade e a ela retorna como multitude, a forma do

    comum nascida da radicalizao da democracia: uma espcie de corpo sem rgos da

    poltica, carne viva, que no se deixa totalizar em uma identidade estvel, seja ela a massa,

    a classe, ou o povo.

    16 RANCIRE, Jacques. O desentendimento: Poltica e Filosofia. Trad. ngela Leite Lopes. So Paulo: Ed. 34,1996.17 Cf. HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multitude: guerre et dmocracie lge de lempire. Paris: LaDcouverte, 2004.18

    HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Empire. London/Cambridge: Harvard University Press, 2001.19DELEUZE, GILLES. e GUATARRI, FLIX. Mille plateaux: capitalisme et schizophrnie 2. Paris: Les ditions deMinuit, 2006.

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    MODULAO 26

    Como ressalta Lazzarato, essa perspectiva poltica define um processo de constituio do

    mundo e da subjetividade que no est centrado na noo de sujeito, mas de evento. O

    evento o que surge como emergncia problemtica, uma soluo parcial, imprevisvel

    de um campo de possibilidades. Essa soluo, uma atualizao, no pode ser prevista por

    um conjunto fechado. A subjetividade seria, assim, criada, inventada, em agenciamentos

    parciais, diagramticos, que articulam elementos semiticos, polticos, tecnolgicos,

    artsticos. A multitude o conjunto no totalizvel destas subjetividades singulares,

    eventuais. Como escreve Deleuze, sim, existem sujeitos: eles so gros danantes na

    poeira do visvel, lugares mveis em um murmrio annimo. O sujeito sempre uma

    derivada. Ele nasce e se esvai na espessura do que se diz, do que se v. 20

    Mais do que desenvolver os vrios desdobramentos desta poltica das multiplicidades, vale

    marcar dois aspectos que sero os principais pontos de diferenciao em relao outra

    perspectiva, formulada por Rancire. Em primeiro lugar, trata-se sempre de se afirmar a

    multiplicidade dos processos e de suas efetuaes, ou seja, de se recusar qualquer

    totalidade. A subjetividade constante devir e os mundos se criam e se desfazem a partir

    de agenciamentos e atualizaes locais, eventuais. A poltica o lugar, portanto, da

    criao e da resistncia, ou melhor, da resistncia pela criao: de subjetividades, de

    modos de vida, de mundos.

    Um segundo ponto deriva da: como resume Maurizio Lazzarato, esta uma poltica ps-

    socialista que no se desdobra segundo a lgica da contradio, mas segundo a lgica da

    20No original: Oui, il y a des sujets: ce sont des grains dansants dans la poussire du visible, et des places

    mobiles dans un murmure anonyme. Le sujet, cest toujours une derive. Il nat et svanouit dans lpaisseurde ce quon dit, de ce quon voit. DELEUZE, Gilles. Un portrait de Foucault. In: Deleuze, G. Pourparlers(1972-1990). Paris: Les ditions de Minuit, 2003, p. 146.

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    MODULAO 27

    diferena. A poltica , aqui, colocao prova, experimentao: as singularidades

    individuais e coletivas (...) desdobram uma dinmica de subjetivao que , ao mesmo

    tempo, afirmao da diferena e composio de um comum no totalizvel.21 Se o

    primeiro ponto exprime a recusa a todo tipo de totalizao, esse segundo aspecto mostra

    a recusa a qualquer negatividade. Se no h inimigo identificvel e se os sujeitos so

    sempre eventuais, a poltica afirmao da diferena, pela criao e pela experimentao,

    e o povo sempre falta, pois ele no pode coincidir jamais consigo mesmo.22

    A outra perspectiva se constitui na defesa de uma poltica do dissenso, cuja negatividade

    a polcia, uma ordem consensual, que estabelece os limites do que pode ser visto, dito,

    ou seja, o horizonte de nossos possveis. Aqui, tambm a poltica significa constituio de

    mundos, a partir do que Jacques Rancire chama uma partilha do sensvel. Essa partilha

    possui dois sentidos, aparentemente, contraditrios: o que divide (cinde) e o que torna

    comum.

    A poltica constri (e, ao mesmo tempo, seconstri sobre) uma configurao do sensvel.

    Ela ocupa-se do que se v e do que se pode dizer sobre o que visto, de quem tem

    competncia para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espao e dos possveis

    do tempo.23Para Rancire, h sempre, ao fundo da poltica, um desentendimentoacerca

    do que existe e do que no existe, do que dito e do que ser ouvido como palavra, do

    21 No original: les singularits individuelles et collectives (...) dploient une dynamique de subjectivation,qui est la fois affirmation de la diffrence et composition dun commun non totalisable. LAZZARATO,Maurizio. Les rvolutions du capitalisme. Paris: Le Seuil, 2004, p. 199.22

    LAZZARATO, Maurizio. Les rvolutions du capitalisme. Paris: Le Seuil, 2004, p. 199.23 RANCIRE, Jacques. A partilha do sensvel: esttica e poltica. Trad. Mnica Costa Netto. So Paulo: EXOExperimental e Ed. 34, 2005, p. 17.

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    que percebido ou no, do que faz parte da cena ou dela est excludo. Ela um recorte

    dos tempos e dos espaos, do visvel e do invisvel, do rudo e do enuncivel. 24

    Seria preciso, contudo, levar o conceito de poltica para alm de uma dimenso

    meramente normativa, que, para Rancire, caracteriza, antes, uma ordem policial.

    Segundo o autor, a polcia diz de uma ordem que define a distribuio dos poderes, dos

    lugares e dos fazeres, assim como os processos de legitimao desta distribuio. A ordem

    policial aquela que dispe o visvel e o dizvel, que faz com que uma atividade ganhe

    visibilidade e existncia e que uma palavra seja compreendida como discurso. A polcia

    uma ordem sensvel que regula a distribuio dos corpos, as ocupaes e as propriedades

    dos espaos.25 a, neste ordenamento do que deve ou no ser visto, ouvido, includo em

    uma dada cena, que a poltica emerge.

    Deste ponto de vista, a poltica o processo antagnico, litigioso, desestabilizador da

    polcia: o momento em que se rompe com dada ordem sensvel impondo uma partilha

    ainda inaudita e incluindo nessa partilha algo que no cabia ali: a parcela dos sem-

    parcela. A poltica se exerce no encontro entre dois processos heterogneos: de um lado,

    o processo policial que , em certa medida, o enrijecimento de determinada cena e do

    posicionamento dos corpos nessa cena. Trata-se de um processo de diviso, na medida

    em que se cria um mundo no qual alguns contam e outros no. De outro lado, o processo

    de igualdade, que pressuporia um mundo no qual qualquer ser falante est em p de

    igualdade com qualquer outro ser falante. Este o desentendimento da poltica: ela surge

    do encontro de uma partilha que divide (a ordem policial) e uma partilha que se

    24

    Ibidem, p. 16.25 RANCIRE, Jacques. O desentendimento: Poltica e Filosofia. Trad. ngela Leite Lopes. So Paulo: Ed. 34,1996, p. 42.

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    MODULAO 29

    compartilha (o pressuposto da igualdade).26 Essa definio vai contra a boa vontade

    militante, segundo a qual, tudo seria poltico. Nada , por si, poltico. Mas tudo pode vir

    a s-lo se atualizar o encontro das duas lgicas,a lgica policial e a lgica da igualdade.27

    Para Rancire, a partilha do sensvel prpria poltica sempre dissensual na medida em

    que ela contrape, pelo menos, dois mundos: aquele da polis, a cena democrtica no

    interior da qual uns contam e outros no, e aquele mundo em vias de se constituir a

    partir da subjetivao dos sem-parcela, sujeitos polticos com os quais ainda no se

    contava. Por esse motivo, a poltica no nunca o lugar da pura afirmao, mas da

    negatividade. Ao consenso da ordem policial se ope o dissenso nascido do pressuposto

    da igualdade.

    No se trata, contudo, de reduzir a poltica busca do consenso em torno de uma

    reivindicao tornada pblica. A poltica , antes, o que exige a criao da cena e dos

    sujeitos que dela participam. um encontro dissensual, no porque os atores no chegam

    ao acordo sobre este ou aquele tema, mas porque aqueles que surgem, em seu excesso,

    exigem uma nova contagem na polis, esto ao mesmo tempo dentro e fora da cena, no

    so ainda reconhecidos como participantes da comunidade poltica, mas j criaram o

    dano, a ciso a partir da qual outra cena ter que ser inventada. As partes no preexistem

    ao conflito da poltica, elas se nomeiam e nomeiam o mundo ao qual querem fazer parte.

    Ser em um e mesmo gesto que se expe o dano da poltica, que se criam seus atores e a

    cena da qual participam (mas no totalmente). por isso que a ruptura poltica de

    natureza esttica, antes de ser comunicacional. O dialogismo da poltica tem muito da

    26Ibidem.27Ibidem, p. 45.

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    MODULAO 30

    heterologia literria, de seus enunciados subtrados de seus autores e devolvidos a eles, de

    seus jogos da primeira e da terceira pessoa tem muito mais disso do que da situao

    supostamente ideal, do dilogo entre uma primeira e uma segunda pessoa.28

    A subjetivao poltica ser assim um processo que resulta na constituio, sempre

    parcial, polmica, polifnica, de um sujeito. A subjetivao entendida aqui como a

    produo de uma instncia de enunciao que no era antes identificvel por um campo

    de experincia dado. Ou seja, a possibilidade do sujeito de enunciao caminha a par com

    a reconfigurao do campo de experincia. Toda subjetivao uma desidentificao, o

    arrancar naturalidade de um lugar, a abertura de um espao de sujeito onde qualquer

    um pode contar-se porque o espao de uma contagem dos incontados, do

    relacionamento entre uma parcela e uma ausncia de parcela.29Ou seja, para Rancire, o

    sujeito existe, mas ele uma identidade que se constitui por uma desidentificao. Os

    processos de subjetivao no resultam na pura multiplicidade da multitude um povo

    que falta mas na defesa de um povo que existe em toro consigo mesmo.

    Poderamos resumir assim as diferenas entre as duas perspectivas tericas a poltica da

    multiplicidade e a poltica do dissenso: para ambas, a poltica possui uma dimenso

    esttica, na medida em que se trata da criao de mundos sensveis, mundos habitveis,

    cenas de visibilidade e de enunciao. Para a primeira perspectiva, trata-se de criar

    mundos a partir da experimentao e da contnua produo de subjetividade. Ela uma

    poltica afirmativa, imanente, que recusa a identidade ou qualquer forma estvel de

    representao. Para a segunda perspectiva, trata-se de criar mundos a partir de uma

    28 RANCIRE, Jacques. O desentendimento: Poltica e Filosofia. Trad. ngela Leite Lopes. So Paulo: Ed. 34,

    1996, p. 70.29 RANCIERE, Jacques.O desentendimento: Poltica e Filosofia. Trad. ngela Leite Lopes. So Paulo: Ed. 34,1996, p. 48.

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    MODULAO 31

    partilha do sensvel, que opera em torno de um dano: a parcela dos sem-parcela. H

    sempre uma negatividade a ser deslocada, transformada por meio da poltica: a ordem

    policial, que define uma partilha anterior ao dano. O sujeito poltico o que surge no

    interior desse processo, como identidade em processo de desidentificao.

    Estabelecidas as diferenas entre as teorias, resta-nos repetir que ambas nos permitem

    atentar para a dimenso esttica da poltica. Passar do rudo palavra, do invisvel ao

    visvel, do sensvel ao inteligvel, esse um deslocamento de carter esttico: ele nos faz

    entrar, simultaneamente, na linguagem e na polis, possibilitando a vida em comum. A

    tarefa poltica est sempre por se fazer e nos coloca diante da potncia da linguagem.

    por isso que, para Agamben, a poltica no deve ser vista nem como a esfera dos meios

    para se atingir certos fins, nem como a esfera dos fins em si mesmos, mas como o lugar

    onde a linguagem se expe enquanto tal, enquanto medialidade pura.30 Ela nos coloca

    diante da potncia da linguagem e essa sua prpria potncia. Trata-se de uma tarefa

    interminvel que visa, finalmente, a dimenso de uso do comum da linguagem, uma

    prxis. Para Jean-Luc Nancy, a poltica o lugar do em-comum enquanto tal.31 A

    concordar com ele, uma pergunta to simples quanto fundamental poderia ser: como se

    usa um comum?32 A pergunta, como se ver, atravessa este ensaio: por meio dela, se

    constri uma esttica do ordinrio, que v no usosua dimenso tambm poltica.

    Um sequestro

    Vejamos uma experincia difcil: o sequestro pelo PCC (Primeiro Comando da Capital) do

    30 AGAMBEN, Giorgio. Notes on politics. In: Agamben, G. Means Without End: Notes on Politics. Trad.Vincenzo Binetti e Cesare Casarino. Minneapolis: Univ. of Minnesota Press, 2000, p. 116.31

    NANCY, Jean-Luc. El sentido del mundo. Buenos Aires: La Marca Editora, 2003. p. 137.32AGAMBEN, Giorgio. Notes on politics. In: Agamben, G. Means Without End: Notes on Politics.Trad.Vincenzo Binetti e Cesare Casarino. Minneapolis: Univ. of Minnesota Press, 2000, p.117.

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    jornalista da Rede Globo Guilherme Portanova e do auxiliar tcnico Alexandre Calado. Na

    madrugada de domingo, 13 de agosto de 2006, o Planto de Jornalismo da emissora

    exibe imagens precrias e instveis, pouco comuns para o padro de qualidade da Globo:

    elas mostram um jovem encapuzado que l um comunicado. Entre desafiante e hesitante,

    o jovem enuncia a mensagem, misto de discurso jurdico e reivindicao poltica. A

    exibio do vdeo pela Rede Globo era a contrapartida exigida pelo PCC para a libertao

    da equipe, seqestrada na manh de sbado. Imediatamente aps apario das imagens

    em rede nacional, o vdeo j estava disponvel no YouTube33, este que funcionou como

    espcie de caixa de ressonncia do fato.

    Antes de tudo, o vdeo-sequestro deve ser analisado no mbito das estratgias

    contemporneas que vem no espao audiovisual, miditico, uma possibilidade de

    interveno poltica, em uma espcie de guerrilha eletrnica. Hoje, boa parte da

    populao, principalmente no contexto da Amrica Latina, formada pelo que Ivana

    Bentes denominou oralistas: pessoas cuja formao escolar clssica, baseada na escrita,

    vem sendo substituda pela cultura audiovisual. Essa informao oral/audiovisual est

    puglando uma massa de semi-analfabetos ou oralistas a um sistema de informao

    fragmentado e complexo, vivo, que pode ser, ao mesmo tempo, muito sofisticado ou

    limitado.34

    Se, em sua brutalidade, o vdeo-sequestro se impe como desafio analtico, porque ele

    se situa numa zona ambgua, fazendo conviver mtodos arcaicos de violncia e

    dispositivos avanados de comunicao mvel; o discurso desautorizado e o discurso

    33O vdeo est disponvel em http://www.youtube.com/watch?v=enHhZ9F42Z8. Acesso em 12 dez. 2007.34BENTES, Ivana. Globalizao eletrnica na Amrica Latina. In: Menezes, P. (Org.). Signos Plurais: mdia, arte,cotidiano na globalizao. So Paulo: Editora Experimento, 1997, p. 11-23.

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    MODULAO 33

    especialista; a visibilidade e o encapuzamento; o espao fechado da priso e o espao

    aberto da telepresena. O vdeo, sabemos, se articula com uma srie de outros

    procedimentos do grupo, que se vale das tecnologias eletrnicas e digitais para tornar

    permeveis o espao pblico e o espao de confinamento. assim que, por meio dos

    celulares, de seu uso ttico, os lderes do PCC comandam distncia, ganham mobilidade,

    mesmo estando presos.

    Este um vdeo-acontecimento. Analis-lo s possvel por meio de uma pragmtica,

    atenta ao que est representado na imagem, mas tambm, a tudo aquilo que a provocou e

    que continua para alm dela. Video-acontecimento porque, nele, o evento e a imagem

    tornam-se intercambiveis, quase indistintos: a virtualidade da imagem est colada sua

    atualidade, uma dimenso intervindo na outra, em uma espcie de curto-circuito entre o

    fato e sua imediata circulao miditica. Sim, o mundo passa a fazer cinema e o sequestro

    o que faz reverberar um mundo no outro, nos faz atravessar de um a outro, o mesmo

    mundo. Atravs do sequestro, a realidade pede como resgate aquilo que a fico havia lhe

    roubado.

    Defender a dimenso poltica deste vdeo no tarefa fcil, algo que se d de maneira

    direta. Ela no est no carter reivindicativo do comunicado. Tampouco, no embate entre

    poderes: a mdia, o Estado, a justia, a organizao criminosa. Para alm de todos estes

    aspectos, mas estreitamente ligado a eles, o vdeo-sequestro poltico, principalmente,

    porque opera no mago de um regime de sensibilidade, de visibilidade e de crena. O que

    ali se pede como resgate a prpria linguagem. Sua fora poltica est no fato de que o

    vdeo intervm, de forma problemtica e conflituosa, em nossa percepo do que seja

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    rudo e do que seja palavra, do que seja visvel ou invisvel, do que seja ou no possvel na

    cena pblica.

    Para percebermos essa poltica antes da poltica, esse desentendimento ao fundo de

    toda atividade poltica (em seu sentido forte), talvez, seja necessrio nos atentar para uma

    figura limtrofe: o mediador. Trata-se do jovem encapuzado que, entre ameaador e

    acuado, l o comunicado no vdeo, porta um discurso que lhe escapa, que lhe parece

    imprprio. Esse discurso, no limite do inteligvel, nos leva gnese da poltica, a sua

    origem esttica.

    Logo primeira vista, o que chama ateno no vdeo do PCC, veiculado pela Globo, a

    mensagem lida pelo jovem: composta por fragmentos de leis e por palavras de ordem, o

    discurso soa estranho ao universo televisivo. A estranheza reforada pela leitura

    truncada e por uma cmera instvel, amadora. A discrepncia entre a precariedade da

    leitura e a especialidade do texto gera um alheamento por parte de quem l e uma

    dificuldade de entendimento por parte de quem acompanha o discurso.

    Mas, para alm do prprio sentido do texto, h esse desentendimento anterior, a que o

    vdeo nos remete: ele diz respeito prpria linguagem, linguagem vista aqui como

    lugar da poltica. O discurso do jovem encapuzado, no limiar de ser ouvido como palavra,

    como linguagem, nos leva a essa origem na qual a esttica se encontra com a poltica.

    Afinal de contas, o que o jovem comunica a prpria linguagem, sua medialidade pura35,

    diria Agamben. Mais do que a reivindicao enviesada que ele expressa, seu discurso quer

    principalmente ser percebido como discurso. Por isso, o sequestro, cujo resgate algo

    35AGAMBEN, Giorgio. Means Without End: Notes on Politics.Minneapolis: Univ. of Minnesota Press, 2000.

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    que fora anteriormente sequestrado: a linguagem. O que interessa no vdeo-sequestro do

    PCC a comunicabilidade anterior comunicao, que ele escancara e veicula. Ou melhor,

    o que o vdeo comunica, por meio de seu mediador encapuzado, sua prpria

    comunicabilidade.36

    H, antes de tudo, a percepo por parte do PCC do espao privilegiado de visibilidade

    espao de produo de um comum que a mdia. O vdeo ser ento uma tentativa de

    incluso nesse espao miditico, espetacular. Ele um esforo de reconhecimento,

    demonstrao de fora que se existe na medida em que se demonstra, se expe como

    imagem e como narrativa.

    Vejamos como se opera essa exposio, retomando a mediao do jovem encapuzado. Ela

    uma mediao paradoxal, que opera por meio da excluso. Ou melhor, ela se inclui, se

    torna visvel, atravs de uma excluso. O encapuzamento a forma emblemtica dessa

    mediao. Aqui, o rosto se torna o lugar da poltica: para aparecer no espao pblico

    miditico, o jovem precisa desaparecer por trs do capuz. Para se incluir na polis,ele deve,

    concretamente, se excluir, escondendo o rosto.

    Guardadas as diferenas, a estratgia do encapuzamento nos permite conectar esse vdeo

    a uma srie de outras intervenes no espao pblico eletrnico, dentre as quais, a mais

    emblemtica em vrios sentidos, inaugural a do Exrcito Zapatista de Liberao

    Nacional, no Mxico. Como sabemos, esse movimento de guerrilha, surgido em Chiapas,

    em 1994, e liderado pelo subcomandante Marcos, se vale da internet como forma de

    globalizar o conjunto de suas reivindicaes, em uma rede que liga intelectuais, artistas e

    36Ibidem.

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    ativistas de todo o mundo. Como analisa Ivana Bentes, o tom potico dos seus

    comunicados, assim como sua origem misteriosa, contribuem para fazer do

    subcomandante Marcos o primeiro pop-star revolucionrio da globalizao

    eletrnica.37 O capuz funciona nesse caso como estratgia poltico-miditica em dois

    sentidos: primeiro, porque ajuda a alimentar o mistrio por trs da figura do

    subcomandante, criando um efeito de mdia de alta eficcia. Em segundo lugar, porque

    esse rosto sem rosto, permite universalizar as causas particulares dos zapatistas: ele

    uma espcie de rosto em branco, virtual, passvel de ser apropriado por outros. Nesse

    sentido, bastante sofisticada a frmula encontrada por Marcos para definir sua

    comunidade: zapatista no Mxico, gay em So Francisco, negro na frica do Sul,

    muulmano na Europa, chicano nos Estados Unidos, palestino em Israel, judeu na

    Alemanha, pacifista na Bsnia, mulher desacompanhada em metr s dez da noite,

    campons sem-terra em qualquer pas, trabalhador sem trabalho em qualquer cidade.38

    O vdeo do PCC assim resultado de um duplo movimento, aparentemente, contraditrio.

    De um lado, o desejo de reconhecimento, demonstrao de fora, exposio no espao

    miditico: da o carter espetacular do sequestro. Por outro lado, a estratgia do

    encapuzamento, que faz com que essa incluso na mdia se d por meio de uma excluso.

    O rosto encapuzado afirma sua propriedade negando-a. Torna-se implicado, ligado a

    uma experincia especfica o vdeo-sequestro e, simultaneamente, abstrado dessa

    experincia: plstico, lacunar, esse rosto uma propriedade imprpria, capaz de abrigar

    outros rostos possveis. Encapuzado, o rosto mantm-se ali, nessa zona indiscernvel, entre

    o prprio e o imprprio, entre aparecer e desaparecer, quase visvel e quase invisvel.

    37BENTES, Ivana. Globalizao eletrnica na Amrica Latina. In: Menezes, P. (Org.). Signos Plurais: mdia, arte,cotidiano na globalizao. So Paulo: Editora Experimento, 1997, p. 11-23.38 Cf. DI FELICE, Massimo e MUOZ, Cristobal. A revoluo invencvel: Subcomandante Marcos e ExrcitoZapatista de Libertao Nacional. So Paulo: Boitempo Editorial, 1998.

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    Ao final de contas, a estratgia do PCC foi anulada. Como se colocado entre parnteses, o

    vdeo no repercutiu muito alm de sua incmoda apario, tornou-se algo extico, alvo

    de juzos morais, de discursos populistas e policialescos. Resta-nos apreender sua

    ambiguidade. Na instantnea apario destas imagens, que tambm um plano-

    sequncia, misturam-se tempos heterogneos, virtualidades e anacronismos.

    Da poltica do rosto

    Pelo menos, no se deve entender que, pelo rosto, outrem, que voc situa como que fora

    do mundo, caia de repente no domnio das coisas visveis?39 De repente e

    irremediavelmente: por isso, para Blanchot, ele um excesso, uma presena que no se

    pode dominar, que transborda a representao, toda forma, toda imagem, toda viso e

    toda idia que queira apreend-lo.40

    O rosto, nos diz Agamben, a paixo da linguagem, o lugar em que a linguagem se

    expe enquanto tal, onde ela expe sua abertura e sua comunicabilidade. Se o rosto pode

    ser o lugar da poltica porque ele se expe, ele sofre e suporta essa exposio. 41O rosto

    abriga uma guerra. De um lado, ele o lugar da tentativa de expropriao, da

    transformao de uma impropriedade em propriedade, ali, onde o espetculo se encontra

    com a biopoltica. Antes de tudo, preciso extrair da singularidade de um rosto, uma

    identidade. Depois, preciso tornar essa identidade identificvel, trao identitrio de um

    grupo (um tipo, um esteretipo).

    39BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. A palavra plural. So Paulo: Escuta, 2001, p. 102.40Ibidem, p. 102.41AGAMBEN, Giorgio. The face. In: Agamben, G. Means Without End: Notes on Politics.Minneapolis: Univ. ofMinnesota Press, 2000, p. 91.

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    Por outro lado, essa uma guerra difcil, uma guerra permanente. Porque o ro