BRITTO.cap6.resenha

6
BRITTO, Luiz Percival Leme. Leitura e participação. In: ______. Contra o consenso: cultura escrita, educação e participação. Campinas – SP: Mercado de Letras, 2003. cap. 6. A dimensão política da leitura. Anna Catharina de Mendonça Paes 1 Luiz Percival Leme Britto é formado em Letras pela Universidade Estadual de Campinas e com mestrado e doutorado em Lingüística pela mesma instituição, atua no corpo docente da Universidade de Sorocaba na área de Educação, com ênfase em Cultura Escrita, especializando-se nos seguintes temas: leitura, cultura escrita, língua portuguesa, letramento e educação escolar. No capítulo aqui referido, o autor promove uma discussão a respeito de conceitos idealizados de leitura, tratados em cinco subdivisões da seção intitulada "As bases do mito", cada subseção nomeada por uma frase de efeito sobre o tema leitura. Dessa forma, o estudioso aponta as falhas contidas nessas noções vagas de leitura que transformam o livro em remédio para todos os males, portador da cura para a ignorância e a exclusão social, camuflando o potencial do ato de ler como gerador de visão crítica do mundo e de posicionamento político. Na seção seguinte – "Razões de ser e de perpetuar-se do mito" – trata dos motivos que sustentam o mito, na próxima seção – "A experiência estética da leitura" – exalta a arte como modelo de participação social e na última seção – "Leitura e participação" – defende a leitura como forma de promover o questionamento da ordem social vigente, como ponto de partida para reformas sociais e para a conquista de cidadania. Consideramos que o autor baseia-se fortemente na ideologia marxista da luta de classes e apresenta tendências esquerdistas de forte cunho populista, mas ao mesmo tempo concentra o valor da leitura em um conceito elitizado, a "leitura racional" (MARTINS 1994). Tomando por base a visão dialógica de leitura apresentada por Gerladi (1997), em que o leitor utiliza-se de seus conhecimentos prévios para interagir com o discurso do autor 1 Aluna do Curso de Letras – Secretariado Executivo Inglês pela Universidade Federal de Santa Catarina. Resenha produzida, para finalidades de exercitação, na disciplina de Produção Textual Acadêmica I.

Transcript of BRITTO.cap6.resenha

Page 1: BRITTO.cap6.resenha

BRITTO, Luiz Percival Leme. Leitura e participação. In: ______. Contra o consenso: cultura escrita, educação e participação. Campinas – SP: Mercado de Letras, 2003. cap. 6.

A dimensão política da leitura.

Anna Catharina de Mendonça Paes1

Luiz Percival Leme Britto é formado em Letras pela Universidade Estadual de Campinas e com mestrado e doutorado em Lingüística pela mesma instituição, atua no corpo docente da Universidade de Sorocaba na área de Educação, com ênfase em Cultura Escrita, especializando-se nos seguintes temas: leitura, cultura escrita, língua portuguesa, letramento e educação escolar.

No capítulo aqui referido, o autor promove uma discussão a respeito de conceitos idealizados de leitura, tratados em cinco subdivisões da seção intitulada "As bases do mito", cada subseção nomeada por uma frase de efeito sobre o tema leitura. Dessa forma, o estudioso aponta as falhas contidas nessas noções vagas de leitura que transformam o livro em remédio para todos os males, portador da cura para a ignorância e a exclusão social, camuflando o potencial do ato de ler como gerador de visão crítica do mundo e de posicionamento político. Na seção seguinte – "Razões de ser e de perpetuar-se do mito" – trata dos motivos que sustentam o mito, na próxima seção – "A experiência estética da leitura" – exalta a arte como modelo de participação social e na última seção – "Leitura e participação" – defende a leitura como forma de promover o questionamento da ordem social vigente, como ponto de partida para reformas sociais e para a conquista de cidadania. Consideramos que o autor baseia-se fortemente na ideologia marxista da luta de classes e apresenta tendências esquerdistas de forte cunho populista, mas ao mesmo tempo concentra o valor da leitura em um conceito elitizado, a "leitura racional" (MARTINS 1994).

Tomando por base a visão dialógica de leitura apresentada por Gerladi (1997), em que o leitor utiliza-se de seus conhecimentos prévios para interagir com o discurso do autor através do texto, Britto (2003) infere que os textos são expressões simbólicas da realidade, com as quais o leitor barganha uma aproximação das impressões decorrentes de sua realidade. O autor identifica esse processo permite caracterizar a leitura como ação cultural que produz um valor que não é próprio do leitor, que se apropria de valores e os constrói com base no conjunto de valores e informações difundidos no meio social. E continua:

Neste sentido, a leitura seria um ato de posicionamento político diante do mundo. E quanto mais consciência o sujeito tiver desse processo, mais independente será sua leitura, já que não tomará o que se afirma no texto que lê como verdade ou como criação original, mas sim como produto. A ignorância do caráter político do ato de ler, por sua vez, não anula seu componente político, porque este é constitutivo do processo, mas conduz à mitificação da leitura e dos textos impressos e ao não reconhecimento do interesses e compromissos dos agentes produtores de textos. (p.100)

Procedendo à análise dos mitos acerca da leitura, Britto (2003) propõe-se a desmascarar distorções conceituais contidas em cinco ditos populares: "1. Cada leitor tem sua interpretação; 2. O sujeito que lê é criativo, descobrindo novos caminhos e novas oportunidades; 3. Uma sociedade leitora é uma sociedade 1 Aluna do Curso de Letras – Secretariado Executivo Inglês pela Universidade Federal de Santa Catarina. Resenha produzida, para finalidades de exercitação, na disciplina de Produção Textual Acadêmica I.

Page 2: BRITTO.cap6.resenha

solidária; 4. A leitura é fonte inesgotável de prazer; 5. Quem lê viaja por mundos maravilhosos".

No que diz respeito à primeira máxima popular analisada, o autor chama atenção para a falsa dedução de que a construção de sentidos do texto, a partir da ação ativa do leitor, varia de acordo com cada leitor, tornando qualquer interpretação aceitável, de forma que a leitura em sala de aula prescindiria de qualquer orientação pedagógica. Concordamos com Britto (2003) no esclarecimento de que esse leitor está inserido em um contexto sócio-cultural, que leva a interpretações de textos de acordo com o sistema de referências de sua comunidade.

Desmitificando a segunda crença popular citada a respeito da leitura, o autor refuta a generalização errônea sobre a relação direta entre o hábito de ler e a transformação do indivíduo em pessoa mais culta e mais desenvolvida intelectualmente; para ele, esse poder de transformação depende do tipo de leitura, das condições em que ocorre e do grau de inclusão social do leitor. Britto (2003) reitera que a leitura está sujeita ao sistema referencial do leitor e que, mesmo como fonte de informação, a leitura não constitui em si mesma fonte de conhecimento. O conhecimento não se adquire, mas se constrói e requer, a princípio, habilidade para concatenar informações, mas provém da elaboração de uma visão crítica do mundo, assinala o autor.

Na subseção seguinte, trata de desvincular o hábito de ler do pressuposto de ser um hábito incondicionalmente saudável e edificante, crença capaz de tornar o livro uma espécie de objeto sagrado, desviando a atenção do entendimento do processo da leitura. A próxima subseção, o Britto (2003) ironiza a promoção da leitura através de sua associação ao prazer de ler, fato que decorre do estabelecimento de um vínculo emocional entre o leitor e o mundo do texto, tal como descreve Martins (1994) em sua concepção de "leitura emocional". Seria, em nosso entendimento, uma forma leitura importante desde os primeiros contatos com a palavra escrita e contribuiria para o desenvolvimento do hábito de ler, atraindo, cativando e motivando o leitor em formação. Contribuição essa menosprezada por Britto (2003) que em seu discurso afirma que a leitura prazerosa não influencia no desenvolvimento da capacidade do leitor e não o impulsiona a ler outros tipos de texto.

Na última subseção, o estudioso faz uma crítica ferina à leitura utilizada como forma de lazer. Para o autor, na leitura por entretenimento, o livro equipara-se aos demais produtos de consumo de cultura de massa – filmes hollywoodianos, teatro de comédia, programas televisivos. O estudioso afirma que essa forma leitura reproduz "[...] um universo conceitual e valorativo de senso comum, não exige senão conhecimentos adquiridos na experiência cotidiana" (p. 105). E Britto (2003) demonstra que esse tipo leitura deixa de contribuir para reverter o quadro atual da leitura escolar, pois também não exige nada além do ato mecânico de decodificar a palavra escrita. Ainda que consideremos válida a leitura por lazer, ou, nas palavras de Geraldi (2001), a "leitura de fruição" por ser capaz de motivar a criação do hábito de ler, não devendo, portanto, essa forma de ler ser inferiorizada, admitimos que Britto (2003) tem razão ao apontar que a leitura de entretenimento por si só não conduz ao amadurecimento do leitor, fato que não nos parece diminuir o seu papel.

Após essa apresentação da atitude predominante em relação à leitura, atitude essa que parte do princípio equivocado de que a leitura é um problema individual, em que pesem apenas o gosto e interesse, problema que se soluciona através da motivação e conquista de adeptos da leitura prazerosa ou da leitura de entretenimento, na seção seguinte – "Razões de ser e de perpetuar-se do mito" –

Page 3: BRITTO.cap6.resenha

Britto (2003) desvenda os interesses políticos e econômicos ocultos pela consolidação dessa postura equivocada diante da questão da leitura. Segundo o estudioso, supor que o ato de ler em si mesmo, retirado de seu contexto social, seja necessariamente benéfico é uma suposição destinada a encobrir que a leitura esteja a serviço do interesse das elites dominantes em manter a atual ordem social.

Sedimentando as ideologias do sistema de produção capitalista sob a forma de um consenso, a leitura prazerosa é utilizada como forma de lazer ou forma de facilitar a aceitação da leitura no ambiente escolar, pois "favorece tanto o desenvolvimento de uma produção editorial de textos facilitados, colados na oralidade e de reprodução do senso comum, como uma aversão à leitura crítica e ao estudo sistemático" (BRITTO, 2003, p. 108).

Prosseguindo em "A experiência estética da leitura", o autor exalta a arte como modelo de atividade capaz de promover reflexões críticas relativas à realidade social, capaz de instigar o questionamento da condição humana e possibilitando uma intervenção no meio social. O estudioso estabelece uma relação entre arte e política ao citar o autor clássico Aristóteles: "A política é, para este filósofo, a arte de tornar a vida possível" (p.111). Divergimos de Britto (2003) quanto ao seu conceito redentor da arte, pois a arte contemporânea mencionada muitas vezes só é compreendida por uma elite intelectual, pois tem causado repulsa entre as massas ao contrariarem com a expressão daquilo que é belo, daquilo que é desejável no consenso popular. Questionamos se a arte contemporânea, como um todo e em sua expressão literária, consegue atingir as camadas populares, já que lhe falta o atrativo da beleza capaz de seduzir as massas, beleza essa que atualmente se encontra no apelo do design de objetos de consumo, tais como carros, telefones celulares e notebooks.

Por último, em "Leitura e participação", o autor defende que a leitura crítica não se concilia com a ideologia capitalista nem com a tendência de manter o indivíduo subdesenvolvido intelectualmente. Para o autor, o não-desenvolvimento da leitura crítica é uma barreira conveniente contra a tomada de posição do sujeito leitor diante das representações da realidade veiculadas através textos, resultando na aceitação passiva desta realidade. Concordamos com essa constatação, a respeito da conveniência em se manter o subdesenvolvimento da leitura crítica, que se desdobra no capítulo 10 desta mesma obra. Naquele capítulo, o autor se fundamenta na teoria de Osakabe (1982) para atribuir à alfabetização o papel de preparar mão-de-obra, a fim de garantir sua eficiência mínima necessária ao sistema produtivo, sem o intuito de permitir o acesso às obras literárias mais complexas que demandam a articulação de textos e objetos culturais que fogem às necessidades cotidianas populares (p. 186-187).

O estudioso propõe a leitura como prática social, possibilitando a ruptura com os padrões pré-estabelecidos, mas registra que a leitura tem sido instrumento de reprodução da ideologia burguesa, contribuindo para a submissão dos operários aos interesses dos detentores de capital. Britto é categórico: "A questão da letramento na sociedade contemporânea é uma questão político-social e não de gosto ou prazer!" Apesar de convergirmos com o autor quanto à importância da leitura no despertar do senso crítico e da consciência social, não descartamos a validade da leitura prazerosa como hábito saudável, hábito que participa da formação do leitor, que lhe estimula a prosseguir sua exploração do universo as palavra escrita mesmo diante de dificuldades em sua evolução como leitor, graças à satisfação recompensadora de seus esforços.

Page 4: BRITTO.cap6.resenha

Britto (2003) escreve um capítulo, a nosso ver, tendencioso, cuja argumentação menospreza a importância da "leitura emocional" conforme enaltece a "leitura racional" (MARTINS, 1994) como salvadora da pátria. O autor nega a contribuição oferecida pela "leitura de fruição" (GERALDI, 2001) na introdução do não-leitor ao universo da palavra escrita, tampouco relevante o texto que se relacione com a experiência de vida do leitor e seu universo particular (FREIRE, 2006), já que, em sua visão, a leitura que se limita a reproduzir o cotidiano não desenvolve a capacidade do leitor. O autor advoga em favor de uma leitura resultante de disciplina intelectual e reflexão racional, exime de sentimentalismos e diametralmente oposta ao entretenimento, essa seria a única forma de leitura capaz de desenvolver intelectos e formar cidadãos críticos, conscientes e questionadores; o produto da difusão dessa forma de ler seria a construção da justiça social.

Este capítulo pode interessar aos estudantes e profissionais da área, dispostos a rever suas noções no que concerne o alcance social do tema leitura e a examinar a relação entre a leitura e a sustentação da ordem sócio-econômica vigente. Não recomendamos o capítulo para leigos no assunto, visto que a interpretação do texto exige evocar conhecimentos prévios do tema. Aos educadores e estudantes do tema leitura, este capítulo faz um apelo e aponta para a responsabilidade dos formadores de leitores, que são também responsáveis pela formação de cidadãos participativos.

Referências

BRITTO, Luiz Percival Leme. Leitura e participação. In: ______. Contra o consenso: cultura escrita, educação e participação. Campinas – SP: Mercado de Letras, 2003. cap. 10.

CASTELFRANCHI, Yurij. Os oblíquos caminhos dos belo. ComCiência. Disponível em: <http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=15&id=138>. Acesso em: 28 set. 2009.

GERALDI, J. W. A leitura de textos. In: ______.Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 165-189.

GERALDI, J. W. Prática da leitura na escola. In:______ (Org.) O texto na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Ática, 2001. p. 88-103.

MARTINS, M. H. O ato de ler e os sentidos, as emoções e a razão. In: ______. O que é leitura? 19. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 36-81.

OSAKABE, Haquira. Considerações em torno do acesso ao mundo da escrita. In: ______. ZILBERMAN,R. (org.) Leitura em crise na escola - as perspectivas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p.147-152.