BUROCRACIA PÚBLICA E REFORMA GERENCIAL - 3º ADM · A burocracia pública brasileira, associada...
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____________ Luiz Carlos Bresser-Pereira professor emrito da Fundao Getlio Vargas. [email protected] - www.bresserpereira.org.br. Agradeo aos comentrios de Mariane Nassuno.
BUROCRACIA PBLICA E REFORMA GERENCIAL
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Revista do Servio Pblico, nmero comemorativo dos 50 anos. Verso de 11 de agosto 2007.
A alta burocracia pblica profissional passa a fazer parte das classes dirigentes brasileiras a
partir dos anos 1930. Durante cinqenta anos ela estar basicamente associada burguesia
industrial na liderana e promoo de um extraordinrio processo de industrializao ou
desenvolvimento econmico. Ao mesmo tempo, na sua condio de classe administrativa,
realiza a reforma do aparelho do Estado: primeiro, ainda nos anos 1930, promovendo a
Reforma Burocrtica que visava torn-lo mais profissional e efetivo, e mais tarde, a partir dos
anos 1990, engajando-se na Reforma Gerencial que visa tornar esse aparelho mais eficiente ao
tornar as agncias mais autnomas e seus administradores, melhor responsabilizados perante a
sociedade. Esta segunda reforma, entretanto, ocorreu em um quadro poltico e econmico
adverso. A estratgia nacional-desenvolvimentista que servira de bandeira para as duas
classes entrou em crise nos anos 1980, no bojo de uma grande crise da dvida externa. Sem
rumo, no apenas a economia mas a prpria sociedade brasileira entra em crise, que se
resolve, a partir do incio dos anos 1990: os empresrios industriais e a burocracia pblica
deixam de liderar o processo econmico e poltico, cedendo lugar a uma coalizo de rentistas,
agentes do setor financeiro, e interesses estrangeiros que adotam a ortodoxia convencional o
conjunto de diagnsticos e recomendaes originrias no Norte como poltica econmica.
Sem estratgia nacional de desenvolvimento, a economia do pas entra em regime de quase-
estagnao. Nesta nova conjuntura social e poltica, no h espao nem para os empresrios
nacionais nem para a burocracia pblica. No obstante esse quadro, a Reforma Gerencial de
1995, conduzida pela burocracia pblica e apoiada pela sociedade, avana primeiro a nvel
federal, e depois, nos Estados e grandes municpios. E d um novo sentido de misso a todos
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que dela participam. Por outro lado, a partir do incio dos anos 2000, o sistema hegemnico
por trs da ortodoxia convencional entra em declnio, sacudido pelo fracasso de suas reformas
que contrastam com o xito dos pases principalmente os asiticos que as rejeitaram e
adotaram estratgias nacionais de desenvolvimento. Abre-se, assim, uma oportunidade para
que uma nova coalizo nacional se forme, envolvendo empresrios industriais, burocracia
pblica e trabalhadores, e que um novo desenvolvimentismo substitua a ortodoxia
convencional.
Neste trabalho, porm, meu escopo no to amplo como aquele sugerido no pargrafo
anterior. Meu foco de ateno ser o papel poltico e gerencial da burocracia pblica brasileira
desde o incio dos anos 1990. Para isto preciso distinguir a burocracia pblica do aparelho
ou organizao do Estado; e importa adotar uma posio clara em relao a um problema por
natureza ambguo e dialtico que o da relao entre sociedade e Estado. A burocracia
pblica foi no passado um mero estamento, e hoje um setor da classe profissional ou
tecnoburocrtica; sempre foi a responsvel pela administrao do aparelho do Estado, e, em
muitos momentos, um ator importante na definio de suas polticas.1 Ao mesmo tempo em
que um grupo de interesses como qualquer outro que pressiona o Estado, a burocracia
pblica constitui ou integra o aparelho do Estado. Por isso, freqente a confuso entre o
Estado e a prpria burocracia pblica, e a atribuio ao Estado de uma autonomia relativa.
Se o Estado fosse a sua burocracia, quando esta tivesse muito poder seria legtimo em se falar
em autonomia do Estado. A burocracia pblica, porm, apenas um dos setores sociais que
buscam influenciar o Estado. Por outro lado, o Estado muito mais do que um simples
aparelho ou organizao: o sistema constitucional-legal a ordem jurdica e a organizao
que a garante. E, nessa qualidade, o Estado o instrumento de ao coletiva da nao. Suas
leis e polticas so o resultado de um complexo sistema de foras sociais, entre as quais a
burocracia pblica apenas uma delas. O Estado, portanto, jamais autnomo; ele reflete ou
expressa a sociedade. O que pode acontecer a burocracia pblica lograr um poder
desproporcional em relao s demais classes dirigentes quando estas estiverem divididas.
Nesses momentos a elite burocrtico-poltica aumenta seu poder em relao s demais classes,
1 Fiz a anlise da classe tecnoburocrtica principalmente em Bresser-Pereira (1981) A Sociedade Estatal e a
Tecnoburocracia.
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e se afirma que o Estado ganhou autonomia. Na verdade, o que ocorreu foi que as outras
classes que compem a sociedade momentaneamente perderam poder relativo para a
burocracia pblica na determinao das polticas, na definio de seu sistema legal e na
maneira de implement-lo. Em qualquer hiptese, o Estado a instituio mais abrangente de
cada Estado-nao, j que a prpria ordem pblica e a organizao que a garante. Mas em
nome de quem essa ordem definida e garantida? Essencialmente, em nome das trs classes
bsicas das sociedades capitalistas contemporneas: a capitalista, a tecnoburocrtica ou
profissional, e a trabalhadora. O poder dessas classes, naturalmente, variar historicamente:
quanto mais democrtico for um pas, menos poder tero os capitalistas e mais poder tero os
trabalhadores na prpria sociedade, e, em conseqncia, no Estado. Em qualquer hiptese,
porm, os dois setores sociais que detero maior poder poltico sero o dos grandes
capitalistas e a alta burocracia pblica, que tambm pode ser simplesmente denominada
burocracia poltica j que, alm dos servidores em sentido estrito, inclui os polticos eleitos
que vivem de pagamentos do Estado. A aliana entre esses dois setores sociais muitas vezes
identificada na literatura da sociologia poltica e do desenvolvimento econmico como uma
aliana entre os empresrios e o Estado, ou, na linguagem americana, como uma coalizo
entre business and government. No Brasil, essa aliana deu origem ao nacional
desenvolvimentismo a uma bem sucedida estratgia nacional de desenvolvimento.
A burocracia pblica brasileira, associada aos empresrios industriais, foi, entre 1930 e 1986,
parte integrante da elite dirigente ou do pacto poltico nacional-desenvolvimentista que
promoveu a industrializao brasileira. Ao mesmo tempo, envolveu-se profundamente na
Reforma Burocrtica de 1937. Entretanto, a partir do colapso, em 1986, do Plano Cruzado e
da coalizo poltica democrtica e nacional que liderou a campanha pelas Diretas J da qual
uma parte importante dessa burocracia participou durante quatro anos (1987-2001) o pas
entrou em um vcuo poltico ou vcuo de poder, at que, em 1991, no segundo governo
Collor, se rendeu ao Norte, deixou de pensar com sua prpria cabea, e passou a adotar a
ortodoxia convencional ao invs de contar com uma estratgia nacional de desenvolvimento.
Por um breve momento, em 1994, o Plano Real, realizado de acordo com uma teoria da
inflao inercial desenvolvida no Brasil, devolveu ao pas a idia de nao, mas logo em
seguida as autoridades econmicas voltaram a se subordinar s idias vindas de Washington e
Nova York. Em conseqncia, a clssica aliana nacional-desenvolvimentista, rompida em
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1986, foi, no incio dos anos 1990, substituda por uma nova coalizo poltica formada de
rentistas, setor financeiro, empresas multinacionais e interesses estrangeiros no Brasil, os dois
primeiros grupos, beneficiados com as altas taxas de juros que passam a prevalecer, os dois
ltimos, com as taxas de cmbio apreciadas. Empresrios e burocracia pblica ficaram fora do
poder. No estou, entretanto, pessimista. A hegemonia neoliberal e globalista est em
declnio, e um espao est se abrindo para que a nao se reconstitua, para que polticas
nacionais seja adotadas, e que, no quadro da grande competio entre naes que a
globalizao, o Brasil volte a competir com xito ou a se desenvolver.
Reforma gerencial em um quadro de crise
Entre 1987 e 1991 o Brasil viveu sob profunda crise: crise econmica de alta inflao, de
moratria da dvida externa; mas crise principalmente poltica, porque marcava o fim da
aliana histrica entre os grandes empresrios industriais e a burocracia poltica, e a
substituio, na direo do pas, dessas duas classes pelos grandes rentistas, que vivem de
juros, pelos agentes financeiros, que vivem de comisses pagas pelos rentistas, pelas empresas
multinacionais, que agora haviam se apoderado de grande parte do mercado interno brasileiro
e se interessavam por cmbio apreciado para enviarem maiores rendimentos para o exterior, e
pelos interesses estrangeiros no Brasil, igualmente favorecidos pela taxa de cmbio no
competitiva.
No plano da poltica econmica e das reformas, a abertura comercial foi apressada e radical
ignorando-se que as tarifas aduaneiras no tinham como papel apenas proteger uma indstria
que deixara de ser infante, mas principalmente neutralizar a apreciao do cmbio causada
pela doena holandesa2 e pela poltica de crescimento com poupana externa.
3 Esta poltica
transformada na grande poltica de desenvolvimento a partir da justificativa equivocada que
o Brasil no tem mais recursos para financiar seu desenvolvimento econmico. Na verdade,
ela s causaria o aumento artificial dos salrios e do consumo interno, e a substituio da
2 A doena holandesa uma falha de mercado que leva os pases dotados de amplos e baratos recursos naturais a
verem sua taxa de cmbio se apreciar de maneira a tornar no competitiva e, dependendo da gravidade da apreciao, inviabilizar atividades industriais operando no estado da arte da tecnologia.
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poupana interna pela externa, ao mesmo tempo em que endividava o pas. Por outro lado, a
abertura financeira, com a liberao completa dos movimentos de capital, foi adotada em
1991 o que levou o pas a perder o controle de sua taxa de cmbio. As privatizaes foram
tambm aprofundadas, eliminando-se a reserva para o capital nacional que existia para os
servios pblicos monopolistas; a desnacionalizao dos bancos comerciais passa a ser
permitida. Os resultados so uma profunda desnacionalizao da economia brasileira, duas
crises de balano de pagamentos, e baixas taxas de crescimento, no obstante, a partir do
incio dos anos 2000, um enorme aumento dos preos das commodities exportadas pelo Brasil
permitisse que, em cinco anos, as exportaes dobrassem.
Em meados dos anos 1990 os empresrios industriais estavam marginalizados e a burocracia
pblica via negado tudo o que fora levada a acreditar no perodo desenvolvimentista. O
aparelho do Estado era agora dirigido por uma equipe econmica constituda de economistas
estranhos burocracia pblica que haviam realizado PhD nos Estados Unidos e voltavam para
trabalhar no mercado financeiro. Por outro lado, durante o governo Collor, havia sido
realizada uma tentativa de desmonte do aparelho do Estado inspirada no mesmo
neoliberalismo e na mesma ortodoxia convencional que orientava a poltica econmica.
nesse quadro desfavorvel que ter incio, no governo Fernando Henrique Cardoso, a
Reforma Gerencial ou Reforma da Gesto Pblica de 1995. Essa reforma, que coube a mim e
minha equipe no MARE (Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado)
idealizar e implementar, era uma imposio histrica para o Brasil, como para todos os
demais pases que haviam nos cinqenta anos anteriores montado um Estado do Bem Estar. O
grande crescimento que o aparelho do Estado se impusera para que pudesse garantir os
direitos sociais, exigiam que o fornecimento dos respectivos servios de educao, sade,
previdncia e assistncia social fosse realizado com eficincia. Esta eficincia tornava-se,
inclusive, uma condio de legitimidade do prprio Estado e de seus governantes. Na medida
em que a reforma gerencial a segunda grande reforma administrativa do aparelho do Estado
capitalista, sua adoo por ns, como para todos os pases de renda mdia e alta, era apenas
uma questo de tempo. Uns avanam, outros se atrasam. O Brasil, em 1995, saiu na dianteira
3 Poupana externa dficit em conta corrente; quando um pas incorre em dficit em conta corrente sua taxa de
cmbio se aprecia em relao quela que existira se houvesse equilbrio em conta corrente.
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dos pases em desenvolvimento, e se antecipou a alguns pases ricos como a Frana e a
Alemanha.
Reformas gerenciais j vinham ocorrendo em alguns pases desenvolvidos desde a dcada
anterior, como resposta ao fato de que a transio do Estado Liberal para o Estado
Democrtico no comeo do sculo XX havia levado ao aumento do tamanho do Estado e,
portanto, sua transformao em um Estado Democrtico e Social. Por outro lado, a
globalizao que ento ganhava momentum aumentava de forma extraordinria a competio
entre os Estados-nao e obrigava suas empresas e seus servios pblicos a se tornarem mais
eficientes. A administrao pblica burocrtica e sua burocracia weberiana eram adequadas
para um pequeno Estado Liberal; no quadro dos Estados democrticos e sociais do final do
sculo; em um mundo mais competitivo do que em qualquer outra poca de sua histria, no
havia alternativa seno enveredar pela reforma da gesto pblica ou reforma gerencial.
A necessidade de mudana comea a ficar clara durante o governo Collor um governo
contraditrio que comea fazendo a afirmao do interesse nacional, mas afinal se curva
ortodoxia convencional, que dar passos decisivos no sentido de iniciar as necessrias
reformas orientadas para o mercado, mas comete equvocos graves. Na rea da administrao
pblica, as tentativas de reforma do governo Collor foram equivocadas ao confundir como a
direita neoliberal que ento chegava ao poder o fazia reforma do Estado com corte de
funcionrios, reduo dos salrios reais, e diminuio a qualquer custo do tamanho do Estado.
A burocracia pblica, que havia visto o aparelho do Estado ser enrijecido e formalizado
durante o retrocesso burocrtico que ocorreu em torno da Constituio de 1988, resistia o
quanto podia s reformas atabalhoadas do governo. Quando Itamar Franco chega ao poder,
essas reformas foram corretamente abandonadas. A onda ideolgica neoliberal vinda do
Norte, entretanto, tornara-se dominante na sociedade e a presso contra o Estado e sua
burocracia apenas aumentava.
Estava claro, porm, para mim que a grande crise que o pas enfrentava desde os anos 80 era
uma crise do Estado uma crise fiscal, administrativa e de sua forma de interveno na
economia. Era uma crise que enfraquecia o Estado e abria espao para que a ideologia
neoliberal vinda do Norte o enfraquecesse ainda mais. A soluo para os grandes problemas
brasileiros no era substituir o Estado pelo mercado, como a ideologia liberal propunha, mas
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reformar e reconstruir o Estado para que este pudesse ser um agente efetivo e eficiente de
regulao do mercado e de capacitao das empresas no processo competitivo internacional.
Dessa forma, no MARE, no demorei em fazer o diagnstico e definir as diretrizes e objetivos
da minha tarefa. Comeava ento a Reforma Gerencial de 1995. No fui eu quem solicitou a
mudana de status e de nome do ministrio, mas esta mudana provavelmente fazia sentido
para o presidente: desta forma ele fazia um desafio ao novo ministro, e equipe que eu iria
reunir em torno de mim. A resposta ao desafio foi elaborar, ainda no primeiro semestre de
1995, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado e a emenda constitucional da
reforma administrativa, que afinal seria aprovada trs anos depois (Emenda 19). Tomvamos
como base as experincias recentes em pases da OCDE, principalmente no Reino Unido,
onde se implantava a segunda grande reforma administrativa da histria do capitalismo a
reforma gerencial do final do sculo XX. As novas idias estavam ainda em formao; surgira
no Reino Unido uma nova disciplina, a new public management, que, embora influenciada
por idias neoliberais, de fato no podia ser confundida com as idias da direita; muitos pases
social-democratas da Europa estavam envolvidos no processo de reforma e de implantao de
novas prticas administrativas. O Brasil tinha a oportunidade de participar desse grande
movimento, e constituir-se no primeiro pas em desenvolvimento a fazer a reforma.
Quando as idias foram inicialmente apresentadas, em janeiro de 1995, a resistncia foi muito
grande (Bresser-Pereira, 1999), principalmente porque eram idias novas, e tambm porque
elas pareciam neoliberais e contra os interesses dos servidores pblicos. Tratei, entretanto, de
enfrentar essa resistncia da forma mais direta e aberta possvel. O tema era novo e complexo
para a opinio pblica, e a imprensa tinha dificuldades em dar ao debate uma viso completa e
fidedigna. No obstante, a imprensa serviu como um maravilhoso instrumento para o debate
das idias. Minha estratgia principal era atacar a administrao pblica burocrtica, ao
mesmo tempo em que afirmava a importncia do servio pblico, defendia as carreiras de
Estado e mostrava a relao direta da reforma que estava propondo com o fortalecimento da
capacidade gerencial do Estado. Dessa forma confundia meus crticos que afirmavam que eu
agia contra os burocratas pblicos, quando eu procurava fortalec-los, conferir-lhes maior
capacidade de ao e torn-los responsabilizados. Em pouco tempo, um tema que no estava
na agenda do pas assumiu o carter de um grande debate nacional. Os apoios de servidores,
de polticos principalmente de governadores e de prefeitos e de intelectuais no tardaram,
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e afinal quando a reforma constitucional foi promulgada, em abril de 1998, formara-se um
quase-consenso sobre sua importncia para o pas, agora fortemente apoiada pela opinio
pblica, pelas elites formadoras de opinio, e em particular pela alta burocracia pblica.
Estava claro que a reforma beneficiava a maioria dos altos administradores pblicos
existentes no pas que so dotados de competncia tcnica e esprito pblico. A reforma havia
conquistado o corao e as mentes da alta burocracia que, ao contrrio do que afirma a teoria
da escolha racional, no faz apenas compensaes entre o seu desejo de ficar rica via
corrupo e o de subir na carreira, mas na sua maioria faz compensaes entre este segundo
objetivo e o de contribuir para o interesse pblico.
Para realizar a reforma dois instrumentos foram usados: de um lado, o Plano Diretor da
Reforma do Aparelho do Estado, de outro, uma emenda constitucional. A reforma
constitucional foi parte fundamental da Reforma Gerencial de 1995 j que esta implicava
mudanas institucionais fundamentais. Muitas mudanas institucionais, porm, foram de
carter infraconstitucional. Mas mesmo no plano legal a reforma excedeu em muito a Emenda
19. Quando, por exemplo, em 1997, as duas novas instituies organizacionais bsicas da
reforma, as agncias executivas (instituies estatais que executam atividades exclusivas de
Estado) e principalmente as organizaes sociais (instituies hbridas entre o Estado e a
sociedade que executam os servios sociais e competitivos) foram formalmente criadas, isto
no dependeu de mudana da Constituio. Grandes alteraes tambm foram realizadas na
forma de remunerao dos cargos de confiana, na forma de recrutar, selecionar e remunerar
as carreiras de Estado, sem que para isso fosse necessrio mudar a Constituio. Por outro
lado, algumas das leis complementares Emenda 19, como aquela que define as carreiras de
Estado e aquela que, a partir da anterior, estabelece os critrios de demisso por insuficincia
de desempenho, no foram ainda aprovadas pelo Congresso. O documento essencial para a
reforma, entretanto, foi o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que continha o
diagnstico e toda a lgica da reforma que ento se iniciava. Fernando Abrucio (2007: 5)
observou recentemente que os principais avanos obtidos pela Reforma Gerencial de 1995 se
deram no processo de complementao da Reforma Burocrtica de 1937:
a maior mudana realizada foi, paradoxalmente, a continuao e aperfeioamento da civil service reform, por mais que o discurso do Plano Diretor da Reforma do Estado se baseasse numa viso (erroneamente) etapista com a reforma gerencial vindo depois da burocrtica. Houve uma grande reorganizao administrativa do Governo Federal, com destaque para a melhoria substancial das
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informaes da administrao pblica antes desorganizadas ou inexistentes e o fortalecimento das carreiras de Estado. Um nmero importante de concursos foi realizado e a capacitao feita pela ENAP, revitalizada. Em suma, o ideal meritocrtico contido no chamado modelo weberiano no foi abandonado pelo MARE; ao contrrio, foi aperfeioado.
Abrucio est correto quando mostra que a Reforma Gerencial de 1995 tinha um aspecto
burocrtico. No havia, porm, nada de paradoxal nisto. A nfase que dei ao ncleo
estratgico do Estado e a realizao de concursos pblicos anuais para todas as carreiras
burocrticas tinham deliberadamente este objetivo. A reforma no foi uma mera cpia da
Nova Gesto Pblica. Foi uma adaptao criativa das reformas de gesto pblica que estavam
acontecendo em alguns pases ricos, com o desenvolvimento de uma srie de conceitos e de
um modelo estrutural que no estavam presentes ou estavam mal definidos na literatura
europia e americana a respeito.
A Reforma Gerencial de 1995 tem trs dimenses: uma institucional, outra cultural, e uma
terceira de gesto.4 A prioridade, naturalmente, cabia mudana institucional, j que uma
reforma em primeiro lugar uma mudana de instituies. Para realiz-la foi necessrio que,
antes, se realizasse um debate nacional no qual a cultura burocrtica at ento dominante foi
submetida a uma crtica sistemtica, ao mesmo tempo em que se acentuavam dois aspectos da
reforma: a nova estrutura do aparelho do Estado que se estava propondo, baseada em ampla
descentralizao para agncias e organizaes sociais, e a nova forma de gesto apoiada no
mais em regulamentos rgidos, mas na responsabilizao por resultados atravs de contratos
de gesto.
A Reforma Gerencial de 1995 baseia-se em um modelo que implica mudanas estruturais e de
gesto. A reforma no estava interessada em discutir o grau de interveno do Estado na
economia, uma vez que j se chegou a um razovel consenso sobre a inviabilidade do Estado
mnimo e da necessidade da ao reguladora, corretora, e estimuladora do Estado. Ao invs de
insistir nessa questo, a reforma partiu de uma serie de perguntas de carter estrutural que
4 Para a formulao e incio da implementao da Reforma Gerencial de 1995, alm de escrever, com a ajuda de
assessores, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, escrevi diversos trabalhos publicados principalmente na Revista do Servio Pblico. Sintetizei esses trabalhos e as primeira realizaes da reforma no livro Reforma do Estado para a Cidadania (1998). Ainda no perodo 1995-98, ver o livro organizado por Vera Petrucci e Letcia Schwarz, orgs. (1998), e o trabalho de Indermit Gill (1998). Hoje existe uma enorme bibliografia sobre a reforma.
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tinham como pressuposto gerencial o fato de que a descentralizao, a conseqente autonomia
dos gestores, e a sua responsabilizao por resultados tornam os gestores e executores mais
motivados e as agncias mais eficientes. As perguntas de carter estrutural eram: primeiro,
quais so as atividades que o Estado hoje executa que lhe so exclusivas, envolvendo poder
de Estado? Segundo, quais as atividades para as quais, embora no exista essa exclusividade,
a sociedade e o Estado consideram necessrio financiar (particularmente servios sociais e
cientficos)? Finalmente, quais as atividades empresariais, de produo de bens e servios
para o mercado? A resposta a essas perguntas dependia da existncia de uma terceira forma de
propriedade no capitalismo contemporneo, alm da propriedade privada e da estatal: a
propriedade pblica no-estatal que assume cada vez maior importncia nas sociedades
contemporneas. A partir dessas perguntas e da dicotomia da administrao burocrtica x
gerencial, foi-me possvel construir o modelo estrutural da reforma. Os Estados modernos
contam com trs setores: o setor das atividades exclusivas de Estado, dentro do qual esto o
ncleo estratgico e as agncias executivas ou reguladoras; os servios sociais e cientficos,
que no so exclusivos mas que, dadas as externalidades que possuem e os direitos humanos
que garantem, exigem forte financiamento do Estado; e, finalmente, o setor de produo de
bens e servios para o mercado. Considerados estes trs setores, a reforma estabeleceu trs
perguntas adicionais: que tipo de administrao, que tipo de propriedade, e que tipo de
instituio organizacional devem prevalecer em cada setor? A resposta primeira pergunta
simples: deve-se adotar a administrao pblica gerencial. No plano das atividades exclusivas
de Estado, porm, uma estratgia essencial reforar o ncleo estratgico, ocupando-o com
servidores pblicos altamente competentes, bem treinados e bem pagos. A questo da
propriedade uma questo estrutural essencial para o modelo da Reforma Gerencial. No
ncleo estratgico e nas atividades exclusivas do Estado, a propriedade ser, por definio,
estatal. Na produo de bens e servios h hoje, em contraposio, um consenso cada vez
maior de que a propriedade deve ser privada, particularmente nos casos em que no haja
monoplio mas um razovel grau de competio. No domnio dos servios sociais e
cientficos a propriedade dever ser essencialmente pblica no-estatal. As atividades sociais,
principalmente as de sade, educao fundamental e de garantia de renda mnima, e a
realizao da pesquisa cientfica envolvem externalidades positivas e dizem respeito a direitos
humanos fundamentais. So, portanto, atividades que o mercado no pode garantir de forma
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adequada atravs do preo e do lucro. Logo, no devem ser privadas. Por outro lado, uma vez
que no implicam no exerccio do poder de Estado, no h razo para serem controladas pelo
Estado, nem para serem submetidas a todos os controles inerentes administrao
burocrtica. Logo, se atividades sociais no devem ser privadas, nem estatais, a alternativa
adotar-se o regime da propriedade pblica no-estatal, utilizar organizaes de direito
privado mas com finalidades pblicas, sem fins lucrativos. Propriedade pblica, no sentido
de que se deve dedicar ao interesse pblico, que deve ser de todos e para todos, que no visa
ao lucro; no-estatal porque no parte do aparelho do Estado. As organizaes pblicas
no-estatais podem ser em grande parte e em certos casos, inteiramente financiadas pelo
Estado. Quando se trata, por exemplo, de um museu, ele deve ser quase integralmente
financiado pelo poder pblico. Esta forma de propriedade garante servios sociais e
cientficos mais eficientes do que os realizados diretamente pelo Estado, e mais confiveis do
que os prestados por empresas privadas que visam o lucro ao invs do interesse pblico.
mais confivel do que as empresas privadas porque, em reas to delicadas como a educao
e a sade, a busca do lucro muito perigosa. mais eficiente do que a de organizaes
estatais, porque pode dispensar os controles burocrticos rgidos, na medida em que as
atividades envolvidas so geralmente atividades competitivas, que podem ser controladas por
resultados com relativa facilidade.
Trs instituies organizacionais emergiram da reforma, ela prpria um conjunto de novas
instituies: as agncias reguladoras, as agncias executivas, e as organizaes sociais.
No campo das atividades exclusivas de Estado, as agncias reguladoras so entidades com
autonomia para regulamentarem os setores empresariais que operam em mercados no
suficientemente competitivos, enquanto as agncias executivas ocupam-se principalmente da
regulao de atividades competitivas e da execuo de polticas pblicas. Tanto em um caso
como no outro, mas principalmente nas agncias reguladoras, a lei deixou espao para a ao
reguladora e discricionria da agncia, j que no possvel nem desejvel regulamentar tudo
atravs de leis e decretos. No campo dos servios sociais e cientficos, ou seja, das atividades
que o Estado executa mas no lhe so exclusivas, a idia foi transformar as fundaes estatais
hoje existentes em organizaes sociais. As agncias executivas sero plenamente
integradas ao Estado, enquanto as organizaes sociais incluir-se-o no setor pblico no-
estatal. Organizaes sociais so organizaes no-estatais autorizadas pelo parlamento de um
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pas a receber dotao oramentria do poder executivo perante o qual so responsabilizadas
atravs de contratos de gesto.
Todas essas mudanas estruturais, entretanto, devem ser acompanhadas de mudanas no plano
da gesto estrito senso. Enquanto a administrao pblica burocrtica enfatizava a superviso
cerrada, o uso de regulamentos rgidos e detalhados, e a auditoria de procedimentos, a
Reforma Gerencial enfatizar o controle por resultados, a competio administrada por
excelncia, e a participao da sociedade no controle das organizaes e polticas do Estado.
O instrumento que o ncleo estratgico usa para controlar as atividades exclusivas realizadas
por agncias e as no-exclusivas atribudas a organizaes sociais o contrato de gesto. Nas
agncias, o ministro nomeia o diretor-executivo e assina com ele o contrato de gesto; nas
organizaes sociais, o diretor-executivo escolhido pelo conselho de administrao; ao
ministro cabe assinar os contratos de gesto e controlar os resultados. Os contratos de gesto
devem prever os recursos de pessoal, materiais e financeiros com os quais podero contar as
agncias ou as organizaes sociais, e definiro claramente - quantitativa e qualitativamente -
as metas e respectivos indicadores de desempenho: os resultados a serem alcanados,
acordados pelas partes. A competio administrada por excelncia compara agncias ou
unidades que realizam atividades semelhantes, de forma que os indicadores de desempenho
derivam da prpria competio, e dos incentivos positivos que so estabelecidos. O controle
ou a responsabilizao (accountability) social essencial para o xito da reforma baseada em
agncias descentralizadas.
Uma reforma bem sucedida
Desde o incio de 1998 tornou-se claro que a Reforma Gerencial de 1995 fora bem sucedida
no plano cultural e institucional.5 A idia da administrao pblica gerencial em substituio
burocrtica havia-se tornado vitoriosa, e as principais instituies necessrias para sua
implementao tinham sido aprovadas, a comear pela Emenda 19. Entretanto, estava claro
tambm para mim que o Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado, criado
em 1995, no tinha poder suficiente para a segunda etapa da reforma: sua implementao. S
5 Sobre o processo poltico de aprovao da reforma ver Marcus Melo (2002) e Bresser-Pereira (1999).
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o teria se fosse uma secretaria especial da presidncia e contasse com o interesse direto do
presidente da Repblica. Como esta alternativa no era realista, passei a defender dentro do
governo a integrao desse ministrio no do Planejamento, com o argumento de que em um
ministrio que controla o oramento pblico haveria poder suficiente para implementar a
reforma. Minha proposta coincidiu com a viso do problema que tinha a Casa Civil, e acabou
sendo aceita na reforma ministerial que inaugurou, em janeiro de 1999, o segundo governo
Fernando Henrique Cardoso. O MARE foi fundido com o Ministrio do Planejamento,
passando o novo ministrio a ser chamado Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto.6
Este ministrio, ao qual foi atribuda a misso de implementar a reforma gerencial, no deu,
porm, a devida ateno nova misso, exceto nas aes relativas implementao dos
projetos do Plano Plurianual, PPA. Praticamente todos os ministros preocuparam-se
exclusivamente com o oramento, deixando a gesto em segundo plano. O oramento no foi
diretamente relacionado com o programa de gesto da qualidade. A transformao de rgos
do Estado em agncias executivas, ou, dependendo do caso, em organizaes sociais, no
ganhou fora a nvel federal. Os concursos pblicos anuais para as carreiras de Estado foram
parcialmente descontinuados a ttulo de economia fiscal. Hoje estou convencido que me
equivoquei ao propor a extino do MARE: no previa o desinteresse do ministro pelo tema
da gesto; sua quase total concentrao no processo oramentrio. 7
Em 2003 comea o governo Lula. O PT se opusera reforma porque a supunha neoliberal, e
tambm porque suas bases sindicais so crescentemente de servidores pblicos de nvel mdio
e baixo. Ora, a Reforma Gerencial de 1995, ao enfatizar a importncia do ncleo estratgico
do Estado, e ao defender que as atividades operacionais do Estado fossem transferidas para
organizaes sociais quando se tratassem de servios sociais e cientficos, ou simplesmente
fossem terceirizadas se fossem atividades empresariais, reduzia substancialmente o espao
6 O presidente disse-me ento, ao informar de sua deciso de fundir os dois ministrios, que entendia que minha
misso na administrao federal havia sido cumprida, e me convidou para assumir o Ministrio da Cincia e da Tecnologia. Permaneci nesse cargo entre janeiro e julho de 1999, quando voltei para minhas atividades acadmicas. 7 A despeito de o Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto no ter utilizado o oramento como recurso
de poder para alavancar a implementao da Reforma Gerencial na segunda gesto do governo Fernando Henrique Cardoso, avanos foram alcanados. Ver a respeito, Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto (2002). No governo Lula, esses avanos continuaram ao nvel da burocracia pblica federal, inicialmente sem o apoio do governo; aos poucos, porm, as idias gerenciais tambm alcanaram seu nvel decisrio.
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para a baixa e mdia burocracia pblica. O Estado devia continuar grande porque a carga
tributria se conservaria alta, ou, em outras palavras, porque se mantinha responsvel pela
garantia dos direitos sociais, particularmente por uma educao fundamental, por cuidados de
sade e por uma renda bsica previdenciria, garantidos de maneira universal. Ms esses
servios podiam ser executados em seu nome por organizaes sociais que, por definio, no
empregam servidores pblicos. Em conseqncia, a partir de 2003 a reforma foi relativamente
paralisada a nvel federal. Mesmo nesse nvel, porm, sua atividade social mais bem sucedida,
a Bolsa Famlia, vem sendo administrada segundo critrios gerenciais. Por outro lado, seu
servio social que mais emprega servidores, a Previdncia Social, vem passando por uma
reforma em que os princpios gerenciais esto sendo adotados. Finalmente, o governo
comeou a discutir a criao de uma fundao pblica que, caso se concretize e no conte
com servidores pblicos, ser uma forma alterada e talvez aperfeioada de organizao social.
Em qualquer hiptese, est claro que a Reforma Gerencial de 1995 continua viva mesmo no
nvel federal. O fato de que esta uma reforma que corresponde ao estgio de
desenvolvimento do Estado brasileiro a torna inevitvel. Sua garantia maior um nmero
crescente de gestores pblicos em Braslia que sabem o quo importante ela para se
legitimar a ao do Estado e se garantir o desenvolvimento econmico e social do pas.
Se isto verdade a nvel federal, ainda mais a nvel estadual e municipal o que no
surpreendente dado que os servios sociais e cientficos que envolvem grandes contingentes
de servidores e atendem a um grande nmero de cidados so realizados nesse nvel. Nos
Estados Unidos, conforme Osborne e Gaebler (1992) demonstraram, a reforma iniciou-se e
avanou muito mais a nvel municipal e estadual do que federal. Isto era verdade nos anos
1990 e continua verdade na atual dcada. No Brasil, no mbito estadual, a Reforma Gerencial
est avanando em toda parte (Consad, 2006). Em So Paulo, por iniciativa do governador
Mario Covas, foram criadas grandes organizaes hospitalares de sade no formato das
organizaes sociais. Seu xito em termos de qualidade dos servios e de reduo de custos
impressionante. Entre outros estados, em Pernambuco e em Minas Gerais, esto sendo
realizadas reformas amplas que utilizam todos os critrios e princpios da Reforma da Gesto
Pblica de 1995. Abrucio e Gaetani (2006: 32-33), avaliando os avanos da Reforma da
Gesto Pblica de 1995 nos estados, encontraram efeitos em quatro nveis: o primeiro diz
respeito ao apoio que, como ministro, dei aos encontros entre secretrios estaduais de gesto;
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segundo, a adoo de modelos institucionais derivados da Reforma Bresser constitui uma
segunda demonstrao de sua importncia. Hoje j existem 67 organizaes sociais em 12
estados da federao, no ocorrendo nelas uma cpia da proposta do Plano Diretor, mas um
estmulo imaginao institucional dos estados. Em um terceiro nvel, a partir do debate
que se instalou durante quatro anos (1995-1998), essa concepo de reforma foi utilizada
como pano de fundo das reformas, mesmo quando do arrefecimento desse modelo no plano
federal. Desse caldo de cultura estabeleceu-se um referencial geral de modernizao, capaz
de fornecer motivaes para a adoo de um novo modelo de gesto pblica... Completando o
processo de propagao das idias presentes na Reforma Bresser, houve no quadrinio de
2003-2006 uma migrao de tcnicos de alto escalo que tinham trabalhado no governo
federal, especialmente no primeiro governo FHC, para os governos estaduais. Conforme
Regina Pacheco (2006: 171, 183), quatorze estados apresentam gesto por resultados; a
contratualizao envolveu indicadores de desempenho variados, algumas das experincias
utilizando como indicador final o IDH (ndice de Desenvolvimento Humano) que, no entanto,
no indicado por sua amplitude excessiva. Em um nvel mais amplo, as idias da Reforma
Gerencial de 1995 ultrapassaram as fronteiras do pas, e, atravs do CLAD Conselho
Latino-Americano de Administrao para o Desenvolvimento, que realiza grandes congressos
anuais desde ento, estendeu-se para a Amrica Latina atravs da aprovao pelos ministros
de administrao latino-americanos do documento Uma Nova Gesto Pblica para a Amrica
Latina.8
A implementao da Reforma Gerencial de 1995 durar muitos anos no Brasil, passar por
avanos e retrocessos, enfrentar a natural resistncia mudana e o corporativismo dos
velhos burocratas, os interesses eleitorais dos polticos, o interesse dos capitalistas em obter
benefcios do Estado. Mas o essencial , de um lado, que ela corresponde ao estgio histrico
do desenvolvimento brasileiro, e, de outro, que ela foi adotada pela alta burocracia pblica
brasileira que sabe que seu poder e seu prestgio dependem de um Estado eficiente.
Entretanto, a burocracia pblica s voltar a ter o prestgio e o poder que teve no perodo
ureo do desenvolvimento brasileiro quando voltar a participar de uma nova estratgia
8 Ver CLAD (1998). O CLAD, com sede em Caracas, rene os governos de 24 pases latino-americanos e do
Caribe, e dos dois pases ibricos. Seu Conselho Diretivo formado pelos ministros de administrao ou
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nacional de desenvolvimento. Levar adiante a Reforma Gerencial importante, esta um
meio: para que a ao da burocracia pblica brasileira volte a ter pleno sentido preciso
tambm que os objetivos de desenvolvimento econmico e social sejam restabelecidos.
Um novo sentido de misso
O Estado brasileiro, do ponto de vista scio-poltico, passou por vrias fases. O Estado
Oligrquico era um Estado por definio capturado pelos interesses de classe. O Estado
Nacional-desenvolvimentista, entre 1930 e 1984, foi um Estado de transio que promoveu a
industrializao, realizou a Reforma Burocrtica de 1936, a partir da aliana poltica da
burguesia industrial com a alta burocracia pblica, mas foi antes marcado pelo autoritarismo
do que pela democracia. O Estado que hoje existe no Brasil , no plano poltico, o Estado
Democrtico e esse foi um grande avano. Entretanto, do ponto de vista social e econmico,
deixou de ser nacional e voltou a ser dependente: um Estado Liberal-Dependente
incompatvel com a retomada do desenvolvimento econmico. Nele, o pacto poltico
dominante passou a ser constitudo por uma aliana dos rentistas ou capitalistas inativos com
o setor financeiro, as empresas multinacionais e os interesses internacionais no Brasil os
dois primeiros grupos interessados em elevadas taxas de juro e os dois ltimos, em taxa de
cmbio sobre-apreciada.
H muitas causas que explicam esse desastre nacional, todas elas associadas ao fracasso do
Pacto Popular-Democrtico de 1977 em conduzir o pas. Esse pacto foi capaz de promover a
transio democrtica, deu origem a toda uma srie de polticas sociais que contriburam para
diminuir um pouco a grande concentrao de renda existente, mas no teve proposta em
relao ao desenvolvimento econmico, e, quando se viu brevemente no poder, em 1985,
levou o pas ao grande desastre que foi o Plano Cruzado. Havia necessidade, ento, de uma
mudana profunda das polticas econmicas para as quais a sociedade brasileira no estava
preparada. As causas imediatas da Grande Crise eram a dvida externa contrada nos anos
1970 e a alta inflao inercial que decorreu do uso da indexao de preos, mas era preciso
tambm mudar do velho desenvolvimentismo baseado na substituio de importaes e nos
investimentos do Estado para um novo desenvolvimentismo que se concentrasse em tornar a
correspondentes em cada pas.
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economia brasileira mais competitiva externamente atravs de polticas macroeconmicas que
combinassem estabilidade com crescimento e que garantissem aos empresrios taxas de juros
moderadas e principalmente taxas de cmbio competitivas. Esse , essencialmente, o tema de
meu livro Macroeconomia da Estagnao (2007) cujas teses no repetirei aqui.
Aqui o que importante assinalar que os fatores que levaram ao Brasil a renunciar sua
condio de nao independente no segundo governo Collor e chegada ao poder de uma
coalizo poltica intrinsecamente adversria do desenvolvimento econmico do pas o Pacto
Liberal-Dependente esto desaparecendo. Embora as taxas de crescimento sejam muito
baixas quando comparadas com a dos demais pases, a economia brasileira no vive mais o
quadro de crise dos anos 1980. Por outro lado, o pressuposto de suas elites intelectuais,
marcadas pela teoria da dependncia e pelo Ciclo Democracia e Justia Social de que o
desenvolvimento econmico estava assegurado no havendo por que se preocupar com ele,
perdeu qualquer base na realidade: o desenvolvimento que estava assegurado durou apenas os
anos 1970. Em terceiro lugar, est ficando claro para a toda a sociedade o fracasso da
ortodoxia convencional, aqui e em outros pases como a Argentina e o Mxico, em promover
o desenvolvimento econmico; quando, neste quadro, a Argentina rompe com a ortodoxia
convencional e passa a adotar estratgias macroeconmicas semelhantes aos dos pases
asiticos (cmbio competitivo, taxa de juros moderada, e ajuste fiscal rgido), passa a crescer
fortemente. Em quarto lugar, a hegemonia ideolgica norte-americana, que se tornara absoluta
nos anos 1990, enfraqueceu-se de maneira extraordinria nos anos 2000 devido ao fracasso da
ortodoxia convencional em promover o desenvolvimento econmico, e devido ao desastre que
representou para os Estados Unidos a guerra do Iraque. Finalmente, nota-se entre os
empresrios industriais, que ficaram calados durante os anos 1990, uma nova conscincia dos
problemas nacionais e uma nova competncia em matria macroeconmica por parte de suas
assessorias que sero essenciais para a definio, em conjunto com a burocracia pblica, de
um novo desenvolvimentismo.
neste quadro mais amplo que a idia de um novo desenvolvimentismo, que se oponha tanto
ortodoxia convencional quanto ao velho desenvolvimentismo, se impe. O nacional-
desenvolvimentismo desempenhou seu papel mas foi superado, enquanto a ortodoxia
convencional uma estratgia proposta por nossos concorrentes que antes neutraliza do que
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promove o desenvolvimento econmico. dentro do quadro do novo-desenvolvimentismo
que devemos pensar o papel da burocracia pblica. Por enquanto, ela continua, como toda a
sociedade brasileira, desorientada. Sua rea econmica limita-se racionalidade de reduzir
despesas o que necessrio, mas est longe de ser suficiente. Falta a todos uma estratgia
nacional de desenvolvimento. Enquanto o Brasil no voltar a ter um projeto de nao,
enquanto a coalizo poltica dominante estiver formada por empresas multinacionais e
interesses estrangeiros no Brasil, no haver desenvolvimento econmico. S quando voltar a
existir no pas uma coalizo poltica ampla, da qual faam parte central a alta burguesia
industrial e alta burocracia pblica, o Brasil poder voltar a realmente se desenvolver.
Enquanto isso no acontece, o pas se manter quase-estagnado crescendo porque o
capitalismo dinmico, mas vendo sua distncia em relao aos pases ricos aumentar ao
invs de diminuir, como seria de se esperar.
A eventual retomada do desenvolvimento econmico em termos nacionais no resolver
magicamente os problemas do pas. Continuaremos a ver no Brasil um elevado grau de
corrupo, uma generalizada violncia aos direitos republicanos dos cidados, ou seja, ao
direito que cada cidado tem de que o patrimnio pblico seja usado de forma pblica. A
pobreza, a injustia e o privilgio continuaro ainda amplamente dominantes no Brasil. A
violncia aos direitos sociais ainda convive com violncias aos direitos civis, especialmente
dos mais pobres. Mas em todas essas reas o progresso depende da retomada do
desenvolvimento econmico. verdade que, na rea poltica e social, houve um substancial
avano desde 1980, ou seja, desde que a economia entrou em regime de quase-estagnao.
Isto foi possvel graas principalmente ao Pacto Democrtico-Popular de 1977. Dificilmente,
porm, ser possvel continuar a progredir nessas duas reas e na proteo do meio ambiente
se a Nao no for reconstituda, se a sociedade como um todo no voltar a se constituir como
Nao, e se suas classes dirigentes no voltarem a contar com uma burocracia pblica dotada
de uma misso republicana.
A burocracia pblica exerce um papel importante quando a respectiva sociedade, e
principalmente a classe burguesa que nela exerce papel dominante, tem uma razovel clareza
quando aos objetivos a serem alcanados e os mtodos a serem adotados. Entre 1930 e 1980
isto aconteceu, entremeado por uma crise na primeira metade dos anos 1960; mas desde os
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anos 1980 o Brasil no conta mais com uma estratgia nacional de desenvolvimento. No
obstante, esta burocracia, ao contrrio do que se afirma, tem logrado xitos importantes na
gesto do aparelho do Estado. Isto ocorreu especialmente na sade pblica graas ao xito do
SUS (Sistema nico de Sade) em estabelecer um sistema de atendimento de sade
populao universal, muito barato, e com qualidade razovel. Tem logrado tambm avanos,
entre outros setores, na defesa do meio ambiente e da educao fundamental, onde j no
existe mais um problema de quantidade, o problema central agora o da qualidade do ensino.
E poder ter maiores avanos na medida em que essa qualidade depende no apenas de maior
treinamento dos professores, mas principalmente de novas formas de gesto da educao.
Fracassa na rea do ensino universitrio, que no Brasil, por ser estatal como na Frana e na
Alemanha, ao invs de pblico no-estatal como nos Estados Unidos e na Gr-Bretanha,
apresenta resultados altamente insatisfatrios.
Na rea mais geral da gesto, graas a concursos anuais para todas as carreiras do ciclo de
gesto e especialmente para a dos gestores pblicos, o Estado brasileiro conta hoje na rea
federal com uma burocracia muito melhor preparada e eficiente do que geralmente se
imagina. No nvel estadual, esto tambm se multiplicando as carreiras de gestores pblicos.
Na rea do Poder Legislativo, a burocracia pblica experimentou um grande avano graas s
carreiras de assessoramento criadas no Senado e na Cmara dos Deputados.
Estes xitos se devem em grande parte Reforma Gerencial iniciada em 1995 que, alm de
tornar o aparelho do Estado mais eficiente, est devolvendo burocracia pblica brasileira
parte do prestgio social que perdeu em conseqncia do esgotamento da estratgia nacional-
desenvolvimentista e do retorno a uma democracia liberal. Mais do que isto, a reforma da
gesto pblica est dando a amplos setores da burocracia pblica brasileira um novo sentido
de misso. O etos do servio pblico, que nunca lhe faltou, foi embaado pela desorientao
social, mas a existncia de um quadro de reforma factvel vem lhe dando novo nimo e
objetivos mais claros. So, por enquanto, objetivos internos ao aparelho do Estado. Um
objetivo maior, de participao na retomada do desenvolvimento nacional, depende de toda a
sociedade e seus lderes polticos se voltarem para ele. Depende da refundao da nao
brasileira.
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Nesse processo, o papel da burocracia pblica dos seus servidores, dos seus intelectuais
importante. Em todas as reas do Estado, a burocracia pblica estrito senso divide o poder
com os polticos. Em apenas um dos trs poderes, no Judicirio, os burocratas possuem o
poder final; nos demais, os polticos detm esse poder. Desde a Constituio de 1988, a
autonomia da alta burocracia judicial, que inclui alm da prpria magistratura o Ministrio
Pblico e a Advocacia do Estado, e a Advocacia Pblica, tornou-se muito mais forte em
certos momentos, excessiva. Ocorreu, entretanto, um processo de gradual desvinculao da
magistratura pblica de uma ideologia liberal e formalista que atende aos interesses da ordem
constituda, e sua vinculao, de um lado, a seus prprios interesses corporativos, de outro,
aos interesses da justia social que animaram a carta de 1988. Entretanto, conforme Vianna et
al. (1997: 38), embora parte do Estado, encravado em suas estruturas, o Judicirio como ator
no est destinado a irromper como portador de rupturas a partir de um construto racional que
denuncie o mundo como injusto. A lenta autonomizao do Judicirio dos interesses
econmicos um fator positivo que reflete o fato de que os magistrados se percebem como
parte da classe profissional com deveres para com os pobres ao invs de fazerem parte da
capitalista.
A burocracia publica, para realizar seu papel, precisa de mais autonomia e de mais
responsabilizao (accountability). A Reforma Gerencial de 1965 deu um papel decisivo ao
controle social, ou seja, responsabilizao da burocracia pblica perante a sociedade, mas
isto vem ocorrendo de maneira lenta. Sabemos, porm, que a democracia implica no apenas
liberdade de pensamento e eleies livres, no apenas representao efetiva dos cidados
pelos polticos e mais amplamente pela burocracia pblica, mas significa tambm prestao
de contas permanente por parte da burocracia pblica de forma a permitir a participao dos
cidados no processo poltico. Os quatro pilares da democracia so liberdade, representao,
responsabilizao e participao. Em outro trabalho (Bresser-Pereira, 2004), vi trs estgios
histricos da democracia: a democracia de elites ou liberal, da primeira metade do sculo XX,
a democracia de opinio pblica ou social, da segunda metade desse sculo, e a democracia
participativa que vai aos poucos aparecendo. No Brasil, as trs formas de democracia esto
presentes e embaralhadas: temos muito de democracia de elites, j somos uma democracia
social, e a Constituio de 1988 abriu espao para uma democracia participativa. Antes de
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chegar a ela, porm, alm de melhorarmos os nossos sistemas de participao, ser necessrio
tornar a burocracia pblica mais responsabilizada perante a sociedade.
No creio, entretanto, que esta mudana seja possvel se a sociedade brasileira no voltar a ser
uma verdadeira Nao e a ter uma estratgia nacional de desenvolvimento econmico, social
e poltico. Entre o incio do sculo XX e 1964 a sociedade brasileira no quadro do Ciclo
Nao e Desenvolvimento constituiu a nao brasileira e industrializou o Brasil, mas, em
compensao, deixou em segundo plano a democracia e a justia social. Esse ciclo terminou
no golpe militar de 1964. A partir do incio dos anos 1970, um novo ciclo da sociedade
comeou o Ciclo Democracia e Justia Social que promoveu o avano da democracia e
procurou reduzir as desigualdades sociais mais gritantes e a pobreza extrema, mas abandonou
a idia de nao e foi incapaz de promover desenvolvimento econmico. Em meados dos anos
2000 esse ciclo tambm est esgotado. O grande desafio que se coloca hoje para a sociedade
brasileira o de fazer uma sntese desses dois ciclos algo que possvel e que dar
orientao e sentido para sua burocracia pblica.
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