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® BuscaLegis.ccj.ufsc.Br Cooperativas: a liberdade de associação e o registro obrigatório na OCB José Carlos Bastos Silva Filho* RESUMO O cooperativismo brasileiro, mesmo depois da promulgação da Constituição Federal de 1988, continua sendo regido pelas disposições da Lei 5.764/71. Por certo, algumas disposições desta lei não foram recepcionadas pelo ordenamento constitucional vigente no país, visto se confrontarem diretamente com o especial tratamento dispensado pelo Texto Magno às cooperativas. O presente estudo dedica-se à análise das disposições constantes dos arts. 105 e 107 da Lei 5.764/71, os quais prevêem a obrigatoriedade de registro das cooperativas junto à Organização das Cooperativas Brasileiras para entrarem em funcionamento, à luz dos princípios constitucionais da livre associação e da livre criação de cooperativas. Palavras-chave: Cooperativas. Liberdade de associação. Livre criação de cooperativas. Registro obrigatório na OCB. -------------------------------------------------------------------------------- 1 INTRODUÇÃO

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Cooperativas: a liberdade de associação e o registro obrigatório na

OCB

José Carlos Bastos Silva Filho*

RESUMO

O cooperativismo brasileiro, mesmo depois da promulgação da Constituição Federal de

1988, continua sendo regido pelas disposições da Lei 5.764/71. Por certo, algumas

disposições desta lei não foram recepcionadas pelo ordenamento constitucional vigente no

país, visto se confrontarem diretamente com o especial tratamento dispensado pelo Texto

Magno às cooperativas. O presente estudo dedica-se à análise das disposições constantes

dos arts. 105 e 107 da Lei 5.764/71, os quais prevêem a obrigatoriedade de registro das

cooperativas junto à Organização das Cooperativas Brasileiras para entrarem em

funcionamento, à luz dos princípios constitucionais da livre associação e da livre criação de

cooperativas.

Palavras-chave: Cooperativas. Liberdade de associação. Livre criação de cooperativas.

Registro obrigatório na OCB.

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1 INTRODUÇÃO

O presente ensaio é fruto de reflexões a respeito da nova ordem constitucional instaurada

pela Carta Política de 1988 e de algumas disposições da Lei nº. 5.764/71, que rege o

cooperativismo no Brasil, quanto à liberdade de associação e à exigência de

registro/filiação das cooperativas à Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB).

Ao participar do I Simpósio de Pesquisa em Direito Cooperativo, realizado pelo sistema

OCB, na cidade de São Paulo-SP, em maio deste ano, uma das apresentações chamou-nos

atenção. Notadamente, no "Painel de Direito Regulatório", um dos renomados palestrantes,

que ali tratavam de temas e desafios atuais do Direito Cooperativo, defendeu a legitimidade

da exigência de registro à OCB para que as cooperativas possam funcionar, sob pena de

serem consideradas contrárias à ordem jurídica, enfim, "pseudocooperativas". Na

oportunidade, também foram conclamadas as Organizações das Cooperativas nos Estados

(OCE’s) a combater tal prática e a iniciar uma verdadeira "caça às fraudocooperativas", que

ainda não se filiaram ao sistema e, por conseguinte, funcionariam irregularmente,

"manchando a imagem do movimento cooperativista no Brasil".

Parando para refletir, iniciamos pesquisa sobre a temática. Descobrimos, então, que a

orientação da OCB sobre o registro das cooperativas remonta ao final do século passado.

Com efeito, o Parecer CONJUR 008/2000, da assessoria jurídica da OCB, é expresso no

mesmo sentido do acima exposto. Senão, vejamos:

REF.: OBRIGATORIEDADE DO REGISTRO DE COOPERATIVAS NO SISTEMA

OCB E DO PAGAMENTO DA CONTRIBUIÇÃO COOPERATIVISTA. LEGALIDADE

CONFORME DISPOSIÇÕES DA LEI 5764/71.

[...]

Pode-se afirmar com total segurança, que as sociedades que não estiverem obedecendo as

regras insculpidas na Lei 5764/71, notadamente as previstas nos artigos 107 e 108, são

pseudocooperativas. Nesses casos, recomenda-se às Organizações Estaduais que seja feito

um levantamento de dados dessas sociedades irregulares que estão utilizando

indevidamente a bandeira cooperativista como forma societária, com posterior

encaminhamento das informações aos órgãos de fiscalização: Federal, Estadual e Municipal

para que os mesmos façam criteriosa apuração das irregularidades cometidas [01]. (sem

negrito no original)

Preocupa a supracitada recomendação principalmente porque a Carta Magna de 1988

inaugurou uma nova ordem especialmente quanto às liberdades individuais e coletivas – e

aqui se inclui a liberdade de associação e de formação de cooperativas –, rompendo com a

pecha intervencionista e controladora dos Governos Militares. Somam-se a isto os

obstáculos enfrentados por pequenas cooperativas organizadas por trabalhadores com

dificuldades de inserção no mundo do emprego formal – as cooperativas populares –, que,

após a difícil organização e regularização de seus empreendimentos, necessitam enfrentar

ainda mais uma burocratizante exigência, qual seja, a de filiação obrigatória ao sistema

OCB – com o qual não se identificam, dada a sua "estrutura simples" [02] –, para que,

enfim, possam ser consideradas legítimas cooperativas. É o que justifica o este ensaio.

Destarte, o presente trabalho, construção teórica com base em pesquisa documental, tem

por escopo trazer à baila a discussão sobre a constitucionalidade dos artigos 105, alínea "c"

e 107, ambos da Lei 5.764/71 frente ao direito fundamental de liberdade de associação

insculpido na Constituição Federal de 1988, levando em conta duas proposições básicas: (i)

foi constitucionalmente recepcionada a exigência de registro na OCB para fins de

funcionamento das cooperativas?; e (ii) qual é a identidade do sistema OCB frente à Ordem

Constitucional de 1988? Não temos a pretensão de esgotar a temática, mas apenas levantar

as bases por onde devem trilhar os debates.

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2 DO DIREITO À LIBERDADE DE ASSOCIÇÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE

1988

Antes de analisarmos os referidos dispositivos da Lei 5.764/71, calha tecermos alguns

comentários a respeito do direito fundamental à liberdade de associação e de criação de

cooperativas insertos na Constituição de 1988.

De maneira ampla, a delimitação do direito à liberdade de associação é regulamentada pela

Constituição Federal em seu art. 5º, incisos XVII a XXI, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se

aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à

liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;

XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de

autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;

XIX - as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades

suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado;

XX - ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;

XXI - as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para

representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente; (grifos nossos)

Com efeito, da simples leitura dos retrotranscritos dispositivos, resta claro que a

Constituição assegura ampla liberdade de criação de associações, sendo vedada qualquer

interferência estatal em seu funcionamento. Tal vedação, contudo, não é absoluta, pois se

exige que a associação seja para fins lícitos, estando proibida, de qualquer forma, a que

tenha caráter paramilitar.

O professor José Afonso da Silva aponta que, da análise dos citados dispositivos

constitucionais, podem-se extrair quatro direitos, quais sejam: a) o de criar associações, o

qual independe de autorização; b) o de aderir a qualquer associação, visto que "ninguém

será compelido a associar-se"; c) o de desligar-se da associação, porque ninguém poderá ser

obrigado a manter-se associado; e d) o de dissolver espontaneamente a associação, já que o

Estado não pode compelir as associações a existirem [03].

O insigne mestre do Direito Constitucional também aponta como garantia coletiva, trazida

pela Constituição para proteger a liberdade de associação, a vedação de "interferência

estatal no funcionamento das associações, nem, nos termos da lei, de cooperativa" [04].

Em particular, no que toca à formação de cooperativa, a Constituição assegura a liberdade

de sua criação (art. 5º, XVIII), condicionando-a à observância do disposto em lei, e veda

expressamente, em qualquer caso não previsto em seu texto [05], a interferência estatal em

seu funcionamento. E nisto concordamos com o Professor José Afonso da Silva, para

quem, como acima fizemos referência, não é possível a interferência estatal (entenda-se

Poder Executivo) no funcionamento das cooperativas após terem sido legalmente

constituídas.

Acredita-se, pois, que a Constituição garante tanto a livre criação de cooperativas – desde

que preenchidos os requisitos previstos em lei para tanto – quanto a liberdade de auto-

organização e auto-gestão (autonomia) de seu funcionamento, proibindo qualquer tipo de

intervencionismo estatal neste pormenor.

Em dissertação sobre o tema, Eduardo Faria Silva (2006, p.92), ao tratar da liberdade de

associação e da Lei 5.764/71, depõe:

A Constituição Federal de 1988 fez emergir expressamente, ao assegurar o direito à livre

constituição e associação, nos incisos XVIII e XX do artigo 5 º, a contrariedade existente

entre a redação da Lei n.º 5.764/71 e as lutas travadas pelos atores sociais contrários ao

intervencionismo Estatal exercido e legalmente permitido no cooperativismo, bem como ao

controle exercido no sistema pela OCB.

O novo texto constitucional, inscrito entre os direitos fundamentais regentes da sociedade e

do Estado brasileiro, refundou a estrutura de poder constante no ordenamento jurídico e, no

que se refere à liberdade de organização e associação para constituição e representação das

sociedades cooperativas, pode ser entendido nas seguintes dimensões: a) como o direito de

livre criação dessas sociedades e de livre estabelecimento das normas de organização,

funcionamento e representação interna; b) como direito à livre associação das sociedades

cooperativas entre si, para deliberarem sobre a criação de pessoa jurídica que as congregue

e as represente na defesa de seus interesses comuns ou, em sentido oposto, o direito de se

desvincular espontaneamente da pessoa jurídica a que estavam associadas, e c) em sua

vertente negativa, pode ser compreendido como o direito a não se associar, ou de não tomar

parte de qualquer entidade representativa, como têm ressaltado a doutrina e as Cortes

Constitucionais de outros países [06]. (sublinhamos)

Sem sombra de dúvidas, a Carta de 1988 garantiu a autonomia que faltava às cooperativas,

proporcionando o desenvolvimento dos mais variados ramos do cooperativismo, de forma

independente e autônoma, através da ruptura com a histórica ligação do cooperativismo

brasileiro aos órgãos estatais [07], indo ao encontro das concepções basilares do

movimento, que incluem a emancipação e a libertação humanitária dos cooperativados

contra qualquer tipo de estrutura dominadora e exploradora.

É mister destacar também que o art. 5º, XVIII, da Constituição configura-se como norma

de eficácia contida, na medida em que está sujeita a restrições a serem impostas pelo

legislador ordinário que limitem sua eficácia e aplicabilidade [08]. Isso quer dizer que,

independentemente de autorização, podem ser criadas livremente cooperativas dentro dos

limites e condições impostos pela lei, a qual será responsável por "conter" este direito de

livre criação.

Por óbvio, as condições e os limites à formação de cooperativas não podem ser impostos

por qualquer lei, devendo esta ser constitucional. Neste contexto, podem emergir dúvidas

quanto aos limites da regulamentação infraconstitucional sobre a criação de cooperativas,

mas é a própria Constituição quem nos auxilia a dirimi-las. Motivos infra.

Primeiramente, a lei que regulamentará a criação de cooperativas não poderá condicionar o

seu funcionamento a qualquer tipo de autorização específica (que não as previstas na

própria Constituição), a teor da primeira parte do art. 5º, XVIII c/c o parágrafo único do art.

170, da Carta Magna. Segundo, a lei também não poderá prever nenhuma forma de

intervenção estatal nas cooperativas já legalmente criadas e em funcionamento, na esteira

da última parte do art. 5º, XVIII, da Lei Fundamental. Terceiro, não poderá impor a filiação

das entidades cooperativas a qualquer sistema de representação – quer oficial, quer não –,

consoante a letra do art. 5º, XX, da Lei das leis. Por fim, sempre que possível, de lege

ferenda, o legislador ordinário deverá estimular a atividade cooperativista no país, com

vistas ao fortalecimento do movimento, o qual foi eleito como especial forma de

organização do trabalho, de distribuição de renda e de combate das desigualdades em geral,

de acordo com o disposto no art. 174, § 2º, inserido nas disposições constitucionais sobre a

ordem econômica brasileira. Sobre o thema, dispara Paulo Renato Fernandes da Silva:

Vale dizer, o Estado passa a reconhecer a importância da criação de uma ambiência jurídica

e econômica propícia e facilitadora ao nascimento e desenvolvimento de cooperativas no

país, como uma forma de minonar os efeitos das chagas sociais da miséria e do

desemprego. Isso pode ser feito através de políticas públicas de incentivo e fomento ao

associativismo cooperativo [09].

Por fim, giza-se que a incorporação no texto constitucional da proteção favorável à

autonomia das cooperativas não pode, sequer, ser passível de alteração por processo de

modificação constitucional (quer de revisão, quer de reforma), pois se encontra sobre o

manto de proteção das cláusulas pétreas (art. 60, §4º da CF/88).

Isso posto, passemos à análise dos dispositivos da Lei 5.764/71 frente à regulamentação

constitucional do direito à liberdade de associação.

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3 A CRIAÇÃO E O FUNCIONAMENTO DAS COOPERATIVAS E A LEI 5.764/71

Dispõe a Lei 5.764/71, in verbis:

[...] Art. 105. A representação do sistema cooperativista nacional cabe à Organização das

Cooperativas Brasileiras - OCB, sociedade civil, com sede na Capital Federal, órgão

técnico-consultivo do Governo, estruturada nos termos desta Lei, sem finalidade lucrativa,

competindo-lhe precipuamente:

[...]

c) manter registro de todas as sociedades cooperativas que, para todos os efeitos, integram a

Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB;

[...]

Art. 107. As cooperativas são obrigadas, para seu funcionamento, a registrar-se na

Organização das Cooperativas Brasileiras ou na entidade estadual, se houver, mediante

apresentação dos estatutos sociais e suas alterações posteriores.

Parágrafo único. Por ocasião do registro, a cooperativa pagará 10% (dez por cento) do

maior salário mínimo vigente, se a soma do respectivo capital integralizado e fundos não

exceder de 250 (duzentos e cinqüenta) salários mínimos, e 50% (cinqüenta por cento) se

aquele montante for superior.

Ambos os supracitados dispositivos são originalmente encontrados desde a sanção da Lei nº

5.764/71 e carregam consigo o ranço do intervencionismo estatal sobre o cooperativismo

desde os tempos da Ditadura Militar. Com efeito, tanto a alínea "c" do art. 105 quanto o art.

107 contêm regra explícita que (i) condiciona o funcionamento das cooperativas ao registro

na OCB e (ii) impõe, ab initio, a filiação de todas as cooperativas ao sistema OCB de

representação.

Em defesa dos dispositivos em comento, pronunciou-se a OCB por meio do citado Parecer

CONJUR nº 008/2000, in litteris:

Após a realização das formalidades relativamente à constituição, os atos originários da

criação da sociedade cooperativa são levados ao registro e arquivamento na Junta

Comercial do Estado. Ainda com relação a parte constitutiva, reservou o legislador a

obrigatoriedade que se fossem tais atos levados a registro, junto à Organização das

Cooperativas Brasileiras. A aquisição da personalidade jurídica da cooperativa efetiva-se,

portanto, após o cumprimento desses requisitos básicos.

A disciplina legal sobre a questão do registro está contemplada no artigo 107, da lei de

regência do cooperativismo, que assim dispõe, in verbis:

[...]

Cumpridas todas as etapas conforme as considerações acima, a sociedade estará plenamente

legalizada, podendo, daí por diante, exercer os seus objetivos sociais cooperativistas.

Qualquer desvio de conduta relativamente ao cumprimento dos ditames da lei de regência,

ensejará a descaracterização da sociedade como cooperativa, enquadrando-a no rol de

sociedade irregular. (g.n.)

Ao condicionar a aquisição da personalidade jurídica e, conseqüentemente, do

funcionamento das cooperativas à "autorização" da OCB, o parecer CONJUR 008/2000

contraria tanto a ordem constitucional, quanto a sistemática da Lei 5.764/71, bem como os

princípios basilares de hermenêutica jurídica. É o que passaremos a abordar.

Num esforço de interpretação, podemos imaginar a forma como o sistema OCB enxerga o

direito à liberdade de associação e de criação de cooperativas garantidos pela Constituição.

Com efeito, num raciocínio simplista, pode-se dizer que, quando da elaboração do Texto

Magno, o constituinte originário tinha previamente delineado um modelo para o

cooperativismo brasileiro, qual seja o contido na Lei 5.764/71, pelo qual as cooperativas

deveriam pautar sua atuação de acordo com os princípios contidos em seu art. 4º e teriam

sua constituição e funcionamento sob a guarda de um órgão, criado pelo Estado para

representar o movimento no país e resguardá-lo de iniciativas contrárias aos seus interesses.

Diante disso, se a criação das cooperativas, independentemente de autorização, deva ser na

"forma da lei", como prevê a Constituição; se a lei 5.764/71 é a Lei de Regência do

Cooperativismo no Brasil e nela está previsto a filiação obrigatória ao sistema OCB para o

funcionamento das cooperativas, logicamente seria constitucional tal exigência. Isso porque

não se trataria de efetiva "autorização" (o que é expressamente vedado pela Constituição

Cidadã), mas de mera "filiação sindical". Trata-se, porém, de exegese puramente legalista,

porquanto não se sustenta frente a uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico

pátrio.

Efetivamente, dispõe o Código Civil de 2002 que:

Art 45. Começa a existência legal das pessoas jurídica de direito privado com a inscrição do

ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou

aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar

o ato constitutivo.

Prima facie, parece que o disposto no Código Civil brasileiro corroboraria com a Lei

5.764/71, pois permitiria a prévia aprovação para inscrição dos atos constitutivos de certas

pessoas jurídicas de direito privado. No entanto, logicamente, não é o mesmo que se

condicionar o registro das cooperativas à aprovação da OCB, visto que esta não integra o

Poder Executivo (o único que dispõe de competência para proceder à autorização e ao

arquivamento), por ser entidade civil de natureza privada [10], como restará exposto mais à

frente.

De outra sorte, pode parecer também, de uma leitura rápida do art. 45 do C.C./2002, que,

para cada pessoa jurídica de direito privado (associações, sociedades, fundações), exista um

"registro" respectivo e, assim, caberia às cooperativas registrarem-se na OCB, por ser ela o

seu "respectivo registro" – o que não é o caso. Isso porque os "respectivos registros", aos

quais se refere o retro transcrito artigo da Lei Civil, no caso das sociedades – onde se

incluem as cooperativas – são (i) o registro Civil das Pessoas Jurídicas, para as sociedades

simples (art. 998, CC/02), e (ii) o Registro Público das Empresas Mercantis, para as

sociedades empresárias (art. 967, CC/02).

Nesta senda, conquanto a equiparação feita pelo Código Civil de 2002 entre as cooperativas

e as sociedades simples (art. 982, parágrafo único), ressalvadas as posições em contrário, é

pacífico o entendimento de que as cooperativas devam registrar seus atos constitutivos nas

Juntas Comerciais para adquirir personalidade jurídica, dado as disposições especiais da Lei

de Regência [11].

Do mesmo modo, o § 6º do art. 18 da Lei 5.764/71 explicita que: "arquivados os

documentos na Junta Comercial e feita a respectiva publicação, a cooperativa adquire

personalidade jurídica, tornado-se apta a funcionar". Ou seja, mesmo que se considere

apenas o microssistema da Lei 5.764/71, ainda assim teríamos uma antinomia entre os seus

arts. 105, "c", e 107 frente às disposições de seu art. 18, § 6º. Fiquemos com o dispositivo

que melhor se alinhe aos ditames constitucionais, qual seja, o § 6º do art. 18 da Lei do

Cooperativismo.

A aquisição de personalidade jurídica, após o devido arquivamento dos atos constitutivos

da pessoa jurídica (cooperativa, in casu), implica na "aptidão genérica para adquirir direito

e contrair obrigações" [12]. É a atribuição de personalidade jurídica que torna apta a pessoa

jurídica a participar de qualquer espécie de relação jurídica com outras pessoas – ou seja, a

"funcionar" – não podendo o Estado interferir, especialmente no caso das cooperativas, em

seu funcionamento.

Outrossim, se desconsiderarmos o ordenamento jurídico infra-constitucional, e focarmos

nossa análise apenas sobre o Texto Fundamental, veremos que os dispositivos da Lei de

Regência do Cooperativismo em comento afrontam diretamente o direito à livre associação

e criação de cooperativas, como aqui delineado no item 2 supra.

Isso porque, primeiramente, dispõe a Carta Política de 1988 que é livre o "exercício de

qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo

nos casos previstos em lei" (art. 170, parágrafo único). Na ressalva contida na parte final do

parágrafo único, do art. 170, da Constituição, não se incluem as cooperativas. A um porque

o seu objeto (serviço, produção, comércio) é que se constitui em "atividade econômica" e

não sua estrutura societária ("de cooperativa"). E, a dois porque as cooperativas

(organização societária) independem de autorização para funcionar, desde que sua criação

se processe "na forma da lei" (art. 5º, XVIII, CF/88).

Segundo, porque é vedada a interferência estatal no funcionamento das cooperativas (art.

5º, CF/88), sendo inconstitucional exigir que para funcionar elas tenham de se registrar

obrigatoriamente na Ordem das Cooperativas Brasileiras (art. 107, Lei 5764/71). Ora, se é

garantido o livre exercício de atividade econômica, sem necessidade de autorização de

órgãos públicos, por que seria exigida "autorização para funcionar" para as cooperativas,

emitida por entidade que nem sequer compõe a Administração Pública? Apenas se

considerássemos que a OCB teria o mágico poder de transformar qualquer "sociedade de no

mínimo vinte pessoas" em legítima cooperativa pelo simples fato de nela ser registrada,

poderíamos defender a recepção do art. 107 da Lei 5.764/71 pela Constituição de 1988 – o

que também não é o caso.

Terceiro, porque é assegurada a liberdade de associação. Esta, por um lado, implica na

garantia de que ninguém será obrigado a associar-se e, de outro, igualmente, ninguém será

compelido a manter-se associado. Ou seja, ela possui um caráter positivo, de associação

livre, e um viés negativo, o de não-associação livre. Deste modo, dizer que todas as

cooperativas integram obrigatoriamente o sistema representativo da OCB (art. 105, "c", c.c.

art. 107, da Lei 5.764/71) é o mesmo que declarar que para elas não existe o direito de livre

associação garantido pelo art. 5º, XX, da Constituição Federal, o que é inconstitucional.

Eduardo Faria Silva corrobora as idéias aqui expostas, ao asseverar que:

Nesse ambiente político-constitucional, que conjuga valores, princípios e normas, a

instituição e o funcionamento das sociedades cooperativas continuam a ser regulados pela

Lei n.º 5.764/71, mas esta norma não pode, em hipótese alguma, conter dispositivos que

venham ferir ou restringir os direitos fundamentais afirmados. Assim, a Lei n.º 5.764/71 foi

recepcionada pela Constituição Federal de 1988, nos pontos em que é mantida a harmonia

com o sistema constitucional vigente.

Adotando-se essa posição hermenêutica coerente com o programa e a estrutura

constitucional vigentes, os artigos 17, 18, 105 e 107, da Lei n.º 5.764/71, foram, sob o

ângulo material, revogados tacitamente, em virtude da superveniência da Constituição

Federal, pois os artigos revelam o caráter intervencionista e controlador estatal na atividade

privada, preconizada em um modelo de Estado claramente refutado, desde 1988, pela

sociedade brasileira.

Como se observa, compõem esse conjunto de dispositivos revogados todos aqueles que

sustentavam a existência de um sistema de intervenção e de controle do Estado, de forma

direta ou delegada, sobre a atividade privada das cooperativas [13]. (g.n.)

Ainda o mesmo autor, agora em Parecer Jurídico sobre a constitucionalidade da Portaria nº

939/05, do Ministério do Planejamento,Orçamento e Gestão, a qual impõe às cooperativas

o registro junto à OCB para fins de cadastro no SIAPE, opinou:

Finalmente conclui-se pela inconstitucionalidade e ilegalidade de exigência constante da

Portaria n º 939//05, em exame, porque impõe às cooperativas o registro de seus atos

constitutivos, junto à Entidade de caráter privado, sindical patronal, o que contraria,

frontalmente, a liberdade de criação dessas pessoas jurídicas e de atribuição de sua

personalidade jurídica. O ato administrativo regulamentar atinge, ainda, a liberdade de

associação dessas sociedades cooperativas, e dificulta seu funcionamento, promovendo a

quebra do tratamento isonômico que o Estado deve dispensar a todos os cidadãos e

entidades privadas, ao realizar suas atividades [14]. (g.n.)

No mesmo sentido, a Justiça Federal, no Rio Grande do Sul, firmou o seguinte

entendimento em caráter liminar, em sede de Mandado de Segurança:

De fato, a exigência em pauta cerceia o direito constitucional de livre associação, uma vez

que o art. 5º, XX da CF/88 diz que ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a

permanecer associado. Ademais, também a Constituição garante, pretendendo incentivar a

criação de cooperativas, que estas não dependem de autorização do Poder Público para

serem criadas. Ora, se não dependem sequer de autorização do Poder Público, por que

dependeriam de autorização de pessoas jurídicas de direito privado, como os sindicatos? E

em que pese a lei estadual não mencionar o vocábulo ‘autorização’, a exigência de pré-

registro no Sindicato Funciona como verdadeira autorização para funcionarem as

cooperativas, na medida em que sem tal medida não conseguem efetivar o registro na Junta

Comercial, e em conseqüência, no CNPJ, inviabilizando inteiramente as atividade da

Cooperativa, o que denota a presença do periculum in mora [15]. (g.n.)

Por derradeiro, anota-se que, mesmo que se considere o registro à OCB como uma filiação

sindical, igualmente cairíamos na garantia constitucional do direito à livre associação. E,

neste caso, ainda se acresça a garantia de livre associação sindical, especificamente inserta

no art. 8º, V, da Constituição Federal.

Por tudo isso, conclui-se pela não recepção dos arts. 105, "c", e 107 da Lei 5.764/71 pela

Constituição Federal de 1988, o que implica na revogação destes dispositivos, visto que

conflitam diretamente com o texto da nova Carta [16], o que responde à primeira de nossas

indagações.

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4 O PAPEL DA OCB NA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL

Muito embora não consideremos que a obrigatoriedade de registro na OCB como conditio

sine qua non para o funcionamento das cooperativas seja aceita pela nova ordem

constitucional, não perdemos de vista a importância que uma entidade como a Organização

das Cooperativas Brasileiras (OCB) tem na defesa dos interesses do movimento

cooperativista. Neste diapasão, qual seria a natureza jurídica do papel exercido pela OCB

na nova ordem constitucional?

Para tanto, cabe um breve relato histórico sobre a origem da organização, a saber:

A criação da OCB foi concretizada durante o IV Congresso Brasileiro de Cooperativismo,

realizado em Belo Horizonte — Minas Gerais, no ano de 1969. A primeira diretoria efetiva

da OCB foi eleita em 1970. Nesse período, a sede da OCB funcionou em São Paulo.

Somente dois anos após o encontro de Belo Horizonte, em dezembro de 1971, implantou-se

o Sistema OCB juridicamente. Em meados de 1972, a sede definitiva da Organização foi

instalada em Brasília - DF. A representação do sistema cooperativista nacional cabe à OCB,

sociedade civil, órgão técnico-consultivo, estruturado nos termos da Lei. 5.764/71 [17].

Portanto, a criação da OCB se deu bem antes da entrada em vigor da Lei 5.764/71, a partir

da fusão de duas outras entidades de representação do cooperativismo que existiam no

Brasil na década de 60, sendo que aquela passou a ser a representante única do

cooperativismo em âmbito nacional.

Realmente, a fusão da Aliança Brasileira de Cooperativas – ABCOP e da União Nacional

das Associações de Cooperativas – UNASCO, realizada no IV Congresso Brasileiro de

Cooperativismo, em 2 de dezembro de 1969, na cidade de Belo Horizonte-MG, representou

um marco importante para a defesa do cooperativismo nacional. Ao mesmo tempo, no

entanto, foi uma forma de manter o cooperativismo sob o julgo da classe dominante, em

especial da classe política ligada ao setor agrícola, e o controle do governo militar. Neste

sentido, Eduardo Faria Silva expõe:

O conteúdo do documento mencionado acima, resultado de uma atuação direta do Ministro

da Agricultura, Luiz Fernando Cirne Lima, e do Secretário da Agricultura do Estado de São

Paulo, Antonio José Rodrigues Filho, que atuaram por quase dois anos na construção da

fusão das entidades, demonstra a concretização formal de uma relação que já era exercida

substancialmente. A declaração de que a entidade organizada colaboraria de forma franca e

leal com as autoridades constituídas sinaliza o rumo que parcela quantitativamente

importante do movimento cooperativo assume, isto é, de afirmação do Estado ditatorial.

A OCB, que teve Antonio José Rodrigues Filho como primeiro Presidente, emerge, assim,

"como produto dos interesses da classe governamental, que se utiliza destes aparatos

privados de hegemonia do Estado, para desarticular ou organizar determinados setores e

frações de classe".

Com a restrição ou eliminação dos espaços autônomos da sociedade civil contrários ao

regime militar, o governo, no caso específico do campo, transforma o cooperativismo "no

único canal político efetivo de representação dos interesses das massas trabalhadoras

rurais", reforçado e garantindo o poder de vigilância pela forma de representação, a qual foi

atribuída à OCB [18].

Para concluir este breve histórico, acrescenta-se que, ainda segundo Eduardo Faria, quando

da aprovação do Projeto de Lei nº 292, que deu origem à Lei 5.764/71, a parte referente à

unicidade de representação do movimento pela OCB (art. 105, 107 da Lei 5.764/71)

praticamente apenas repetiu a ata de fundação desta entidade, dando status de organismo

legalmente constituído de âmbito nacional, responsável por "unificar" o pensamento sobre

as sociedades cooperativas, o que, numa ditadura militar, como forma de controle, era bem

conveniente.

No entanto, na atual conjuntura, não pode prosperar este modelo de controle, muito menos

a OCB poderá sustentar-se como a ultima ratio em relação à representação e à defesa do

cooperativismo e das cooperativas, porque a estas é dado o direito de se auto-organizarem e

auto-associarem livremente na consecução de seus interesses (princípios da auto-gestão

democrática, autonomia e independência [19] e da intercooperação, internacionalmente

reconhecidos).

Feitas as devidas considerações, na prática diz o art. 105 da 5.764/71 que a Organização das

Cooperativas Brasileiras – OCB é "sociedade civil, com sede na Capital Federal, órgão

técnico-consultivo do Governo, estruturada nos termos desta Lei, sem finalidade lucrativa".

Neste diapasão, se a OCB é sociedade civil, logicamente tem natureza de pessoa jurídica de

direito privado, portanto, não pode ser confundida com autarquia, fundação pública,

agência reguladora ou agência executiva, que precipuamente são pessoas jurídicas que

atuam sobre o regime administrativo de direito público. Nem, tampouco, como sociedade

de economia mista ou empresa pública, pois não está estruturada como empresa. Muito

menos, ainda, não poderá ser assemelhada com qualquer órgão da estrutura da

Administração Pública da União, vez que, em sendo assim, não poderia falar-se em

personalidade jurídica própria – o que também não é o caso [20].

Então, se a OCB é entidade de representação nacional dos interesses de todas as

cooperativas do Brasil, que, no dizer da Lei 5.764/71, obrigatoriamente integram-na, seria

correta sua aproximação com a figura dos sindicatos. Estes podem ser entendidos como

"associação coletiva, de natureza privada voltada para a defesa e incremento de interesses

coletivos profissionais e materiais de trabalhadores, sejam subordinados ou autônomos, e

de empregadores" [21]. É bem verdade que a OCB vem sistematicamente, desde 1994,

organizando-se, nos Estados da Federação, como sindicato, federação sindical e, até

mesmo, confederação [22]. Contudo, não concordamos também com sua natureza sindical,

pelo menos nos moldes como hoje se apresenta. Explica-se.

Primeiramente porque os sindicatos, desde sua origem, não tinham o escopo principal de

romper com a lógica capitalista e extinguir a figura do empregador, como pretende o

cooperativismo [23]. Os sindicatos visto como "organizações sociais constituídas para,

segundo um princípio de autonomia privada coletiva, defender os interesses trabalhistas e

econômicos nas relações coletivas entre os grupos sociais" [24] visam precipuamente o

equilíbrio de interesses entre os grupos de trabalhadores e de empregadores sem, entretanto,

por fim à mais valia capitalista. Destarte, onde posicionaríamos a OCB? Na defesa dos

interesses dos trabalhadores ou dos empregadores (patrões)? Em qualquer dos casos, a

resposta positiva é diametralmente oposta às aspirações do movimento cooperativista.

E, segundo, porque não existe sindicato cuja filiação seja obrigatória (art. 8º, V, da CF/88).

Sobre as denominadas "cláusulas de sindicalização forçada", Maurício Godinho Delgado

explica que:

Há sistemáticas de incentivos à sindicalização (apelidadas de cláusulas de segurança

sindical ou de sindicalização forçada) que são controvertidas no que tange à sua

compatibilidade com o princípio da liberdade sindical [...] No Brasil tem prevalecido o

entendimento denegatório de validade às citadas cláusulas de sindicalização forçada [25].

De outra banda, poderíamos aproximar a OCB à estrutura das entidades representativas de

profissões [26] (como a OAB e os vários Conselhos Profissionais), tendo em vista que estas

também têm por escopo a proteção dos interesses dos profissionais que representam e a

regulamentação de suas profissões. Entretanto, cai por terra também esta configuração,

quando analisamos o fundamento para existência das entidades representativas. Senão,

vejamos.

A leitura do art. 5º, XIII da Constituição nos informa que é livre o exercício de qualquer

profissão, desde que atendidas as qualificações profissionais que a lei exige. Também o art.

21, XXIV c/c o art. 22, XVI, ambos da CF/88, nos diz que compete à União a organização,

a manutenção e a execução da inspeção do trabalho e, privativamente, legislar sobre a

organização nacional de emprego e condições para o exercício de profissões, podendo para

tal mister delegar estas funções aos conselhos de classe, dotando-lhes do poder de polícia

necessário para tanto. Nesta pisada, o Colendo Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA

FEDERAL E JUSTIÇA DO TRABALHO. CONSELHO DE FISCALIZAÇÃO

PROFISSIONAL. EXECUÇÃO FISCAL. COBRANÇA DE ANUIDADES.

COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL MESMO APÓS A EDIÇÃO DA EMENDA

CONSTITUCIONAL 45/2004. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 66/STJ. 1. Compete à Justiça

Federal processar e julgar execução fiscal promovida por Conselho de fiscalização

profissional, ratio essendi da Súmula 66/STJ. 2. In casu, depreende-se que órgão

fiscalizador de classe profissional não atua como se sindicato fosse; apenas exerce poder de

polícia no que respeita ao exercício profissional; não se vislumbra relação de trabalho entre

o conselho e a profissional ora executada, mas sim relação jurídica imposta por lei, tão-

somente concernente à autorização para o exercício profissional; que os conselhos de classe

profissional são imbuídos de poder polícia por delegação da União (art. 21, XXIV, c/c art.

22, XVI, ambos da CF/88), à luz do princípio da descentralização, razão pela qual a

natureza da relação jurídica embasadora do título executivo extrajudicial é de direito

público. Por isto que a competência para processar e julgar executivo fiscal movido por

conselho de fiscalização profissional é da Justiça Federal, ainda com promulgação da EC nº

45/2004 superveniente à Súmula 66/STJ. Precedentes do STJ: CC 55.401/SP, Relatora

Ministra ELIANA CALMON, Primeira Seção, DJ de 06 de março de 2006 e CC

36801/GO, Relator Ministro FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, Primeira Seção, DJ 27

de junho de 2004. [...] (STJ - CC 68.448 - SP - 1ª S. - Rel. Min. Luiz Fux - DJ 28.09.2006,

sem negrito no orginal)

A OCB, contudo, não tem função de fiscalizar o exercício de profissão, porque "ser

cooperado" é a qualidade de "ser sócio de cooperativa", não se enquadrando per si no

conceito de profissão. Tanto é assim, que os cooperados – quer sejam médicos, quer

advogados, engenheiros, odontologistas – necessitam do aval dos respectivos conselhos de

classes para exercerem seus ofícios dentro de suas cooperativas, sendo contraproducente

afirmar que a OCB teria o condão de suprir tal exigência ao "autorizar" o funcionamento

das cooperativas.

Em outra esteira, se a Organização das Cooperativas do Brasil exerce a função de guarda

dos interesses e da doutrina cooperativista e opina sobre os assuntos afetos ao

cooperativismo, crê-se que sua natureza jurídica se aproxima a dos entes de colaboração

estatal, como os que compõem o denominado "Sistema S", os quais inclusive são

destinatários de contribuições sociais de interesse de categorias econômicas. Este

entendimento foi reforçado principalmente após a criação do Serviço Nacional de

Aprendizagem do Cooperativismo-SESCOOP (que passou a integrar o "Sistema S"), o qual

agindo em parceria com a OCB – por muitas vezes, com ela se confundindo, sendo muito

comum dividirem o mesmo espaço nas unidades estaduais e até a mesma fonte de

arrecadação [27], qual seja a contribuição compulsória de 2,5% sobre a folha de salários

das cooperativas – tem a função de difundir a doutrina cooperativista, formar e treinar

profissionalmente os trabalhadores de cooperativas e de assessorar o governo federal em

assuntos de formação e gestão cooperativista [28] – logo, "órgão técnico-consultivo" (art.

105, caput, da Lei 5.764/71) assim como a OCB. Melhor seria, para acabar com as

controvérsias, se o governo decidisse unificar as duas entidades.

De outra sorte, se considerarmos as funções que competem à OCB, descritas no art. 105 da

Lei 5.764/71, que reproduz os termos de seu estatuto de fundação, sem olvidar de suas

peculiaridades, poderíamos aproximar o papel exercido por ela ao dos PROCON’s. Parece

estranho, mas ao compararmos as disposições do referido artigo com os objetivos

institucionais dos PROCON’s espalhados pelo país, mutatis mutandi, chegaremos à

conclusão de que a OCB está para a defesa do cooperativismo, assim como o PROCON

está para a defesa das relações de consumo. A tabela abaixo visa comprovar tal assertiva:

Funções institucionais da OCB descritas No Art. 105 Da Lei 5.764/71 Objetivos

institucionais da Fundação Procon de São Paulo ( Art. 3º da Lei Estadual nº 9.192/95) [29]

-fixar a política da organização com base nas proposições emanadas de seus órgãos

técnicos (alínea "h") -planejar, coordenar e executar à política estadual de proteção e defesa

do consumidor, atendidas as diretrizes da Política Nacional das Relações de Consumo;

(inciso I)

-denunciar ao Conselho Nacional de Cooperativismo práticas nocivas ao desenvolvimento

cooperativista (alínea "e") -recebimento e processamento de reclamações administrativas,

individuais e coletivas, contra fornecedores de bens ou serviços; (inciso II)

-fiscalização do mercado consumidor para fazer cumprir as determinações da legislação de

defesa do consumidor; (inciso XI)

-acompanhamento e propositura de ações judiciais coletivas; (inciso V)

-manter serviços de assistência geral ao sistema cooperativista, seja quanto à estrutura

social, seja quanto aos métodos operacionais e orientação jurídica, mediante pareceres e

recomendações, sujeitas, quando for o caso, à aprovação do Conselho Nacional de

Cooperativismo – CNC (alínea "d") -suporte técnico para a implantação de Procons

Municipais Conveniados; (inciso XI)

-disponibilização de uma Ouvidoria para o recebimento, encaminhamento de críticas,

sugestões ou elogios feitos pelos cidadão quanto aos serviços prestados pela Fundação

Procon, com o objetivo de melhoria continua desses serviços; (inciso II)

-orientação aos consumidores e fornecedores acerca de seus direitos e obrigações nas

relações de consumo; (inciso III)

-manter relações de integração com as entidades congêneres do exterior e suas

cooperativas. (alínea "j") -intercâmbio técnico com entidades oficiais, organizações

privadas, e outros órgãos envolvidos com a defesa do consumidor, inclusive internacionais;

(incisos VI e VII)

Seja como for, de fato a OCB exerce função insubstituivelmente necessária na difusão da

doutrina cooperativista; na defesa dos interesses das cooperativas, com muitas conquistas

relevantemente positivas para o desenvolvimento do movimento no Brasil e no Mundo; na

formação e treinamento de novas lideranças cooperativas e de gestores, o que é muito

importante para aumentar a competitividade e propiciar a expansão e a sobrevivência do

movimento; na negociação junto ao governo por melhor tratamento às cooperativas,

buscando sempre maior incentivo público às suas atividades; e, também, na identificação e

no combate às "cooperativas" exploradoras de mão-de-obra, que apenas maculam a imagem

do cooperativismo no país.

Enfim, por tudo isso, conclui-se que a OCB, no contexto atual do cooperativismo brasileiro,

é entidade que exerce louvável papel, não podendo desaparecer. No entanto, deverá

encontrar uma identidade mais consentânea com a ordem constitucional vigente do que a de

"órgão controlador do cooperativismo". Oxalá que consiga em breve fazer-se sentir

necessária aos objetivos e interesses das cooperativas como um todo (populares, agro-

exportadoras, de crédito, de saúde, enfim, de todos os ramos) – quer seja como ente de

colaboração, quer como o "PROCON do cooperativismo", quer como "sindicato

cooperativista".

E isso responde à segunda de nossas indagações.

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5 CONCLUSÃO

A exigência de filiação e registro junto à Organização das Cooperativas Brasileiras, contida

nos art. 105, "c" e 107 da Lei 5.764/71, para que as cooperativas possam funcionar, é

contrária à ordem jurídico-constitucional vigente no Brasil, ferindo de morte o direito à

livre associação, pelo que concluímos pela revogação tácita destes artigos da Lei de

Regência após a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988.

Pelos motivos apresentados justificamos que a Organização das Cooperativas Brasileiras

teve em sua origem forte influência dos órgãos estatais da Ditadura Militar, servindo à

conveniência política das grandes cooperativas agro-exportadoras e do governo militar. Por

isso, talvez, a OCB não carregue consigo a identidade do movimento, dado não ter nascido

da livre iniciativa das cooperativas em se associarem, funcionando mais como órgão de

controle do que propriamente de representação.

Diante da nova ordem constitucional, a OCB não poderá subsistir como entidade de

representação sindical única e compulsória e, muito menos, como ente de controle do

cooperativismo. Por isso nos posicionamos por sua aproximação com a figura dos entes de

colaboração com a Administração a exemplo do chamado "Sistema S".

Por fim, espera-se que a Organização das Cooperativas Brasileiras consiga desfazer a

imagem de "autorizadora de registros" e de "arrecadadora de contribuição cooperativista" e

passe realmente a congregar o movimento cooperativista brasileiro, o qual precisa estar

unido em torno dos mesmos objetivos como especial condição para sua sobrevivência.

Também, estima-se que as entidades de representação, tais como a OCB, possam levar ao

maior número possível de pessoas os benefícios que a empresa cooperativa pode lhes

proporcionar, ajudando assim na redução das desigualdades sociais que assolam o nosso

país.

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REFERÊNCIAS

BECHO, Renato Lopes. Elementos de direito cooperativo. São Paulo: Dialética, 2002.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 4 ed. São Paulo: LTr, 2005.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. ed. 24. São Paulo: Saraiva, 2007.

FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de direito administrativo. ed. 11. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2004.

FUNDAÇÃO PROCON-SP. Fundação de proteção e defesa do consumidor. Disponível

em: . Acesso em: 18 set 2007.

GIL, Vilma Dias Bernardes. As novas relações trabalhistas e o trabalho cooperativo. São

Paulo: LTR, 2002.

DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros,

1993

Elaborado em 08.2007.

*Professor de Cooperativismo e Cidadania do ensino fundamental e médio, membro do

Conselho de Jovens Cooperativistas do Estado do Maranhão, bacharel em Direito

Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10495 >. Acesso em:

29. nov. 2007.