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    vol. 12, n. 1, jun 2012, p. 4-17Em pauta

    Ao cultural e teatro como pedagogia

    Beatriz A. V. Cabral UDESC Pq2/CNPq

    Resumo

    A ao cultural no Teatro como Pedagogia vista como aquela que busca quebrar a reproduo decomportamentos (habitus) atravs de sua configurao como experincia esttica. Como tal, vai almdo teatro como informao e entretenimento, e implica formas de conhecimento que dialogam comformas de identificao e subjetividade. Sob este ponto de vista, a relao entre ao cultural e texto considerada pelo ngulo da ressonncia e do reconhecimento esttico, focalizando a materialidadedo suporte (texto) associada imaterialidade de sua carga informacional e emocional. A possibilidadede aproximar a ao cultural da ao social est, neste sentido, na aproximao entre as noes dediferena, desentendimento e partilha do sensvel, assim como na distino entre conflito e tenso,uma vez que o poltico estaria na esttica e no no tema.

    Abstract

    The cultural action in theatre as pedagogy is seen here as one that seeks to break thereproductive behavior (habitus) through its configuration as aesthetic experience. As such, goesbeyond the theatre as entertainment and information, and implies forms of knowledge that dialoguewith forms of identification and subjectivity. The relationship between cultural action and text, from

    this point of view, is considered from the perspective of resonance and aesthetic recognition byfocusing on the materiality of the support (text) associated with the immateriality of its informational andemotional burden. The possibility of associate cultural action and social action lies on the one hand,in the interaction between the notions of difference, disagreement and distribution of the sensible, andon the other hand in the distinction between conflict and tension, once the politics would be on theaesthetics and not on the theme.

    A Ao Cultural, pelo mbito do ensino, pode ser vista como a ao do professor que

    busca quebrar a reproduo de comportamentos (habitus) que impedem a ampliao

    do olhar e da percepo do aluno. Este entendimento refuta o ensino-instruo, o qual

    supe que todos alcanam o conhecimento da mesma forma e podem ser avaliados

    da mesma maneira; exige o questionamento do que se ensina e da maneira pela qual

    se ensina. A questo central passa a ser: que aspectos e que dimenses teatrais

    podem ampliar a significao da ao do professor? neste sentido que o Teatro

    como Pedagogia est centrado em sua dimenso artstica e a partir dela que se

    vincula esttica, tica e poltica, tornando-se uma forma de combater padres

    de comportamento que reproduzem o senso comum. O pressuposto aqui que se o

    fazer artstico for significativo, e tiver ressonncia com os interesses e preocupaes

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    dos participantes, causar impacto e provavelmente mudanas de percepo; caso

    contrrio, ser um desservio causa a que se prope.

    HabitusVersus Mudana

    Escola, famlia e mdia so agentes interdependentes na socializao das

    crianas em algumas ocasies elas esto associadas, em outras se confrontam.

    Quando associadas, mantm a tradio; quando em confronto, promovem rupturas.

    Como pensar a ao cultural a partir desta perspectiva de uma interao dinmica

    entre famlia, escola e mdia?

    De acordo com Pierre Bourdieu, a noo de habitus permite entender o relacio-

    namento entre estas instituies de condicionamento social e as subjetividades indivi-

    duais isto, se partirmos do entendimento que habitus no significa destino, e sim um

    condicionamento cultural que leva o indivduo a agir ou optar por algo.

    O conceito de habitus, tal como investigado por Bourdieu, aponta para algumas

    questes que permitem repensar a ao cultural do professor:

    Habitus um sistema de formas adquiridas de percepo, pensamento e

    atitudes, que delimitam ou governam nossas interaes no campo social.

    O habitus insinuado (introduzido ou criado) no indivduo atravs da violncia

    simblica (no explicitamente), isto , atravs de discursos e aes de repro-

    duo social e cultural.

    Portanto, o habitus um sistema de disposies pessoais, estruturadas social-

    mente, as quais tm uma funo estruturante em nossa mente, e dirigem nossas

    aes e atitudes cotidianas. Como tal, limita ou influencia as oportunidades que nos

    aparecem. Entretanto, a mudana possvel Bourdieu considera a mobilidade do

    habitus como decorrente de experincias individuais ou coletivas.

    Aqui sero focalizados aspectos tericos sobre como a ao cultural, atravs

    da experincia do fazer teatral, torna-se um campo privilegiado para mudanas das

    formas de percepo e aes cotidianas.

    Teatro como Pedagogia, como Cultura, como Ruptura

    A perspectiva das pedagogias crtica e ps-crtica subsidia a perspectiva da

    mudana de hbitos no campo do fazer teatral, pois questiona a forma de perceber

    questes ticas e epistemolgicas de seu ensino.

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    De acordo com Henri Giroux (1957), a pedagogia crtica passa a se associar

    reflexo sobre os princpios que regem a ao pedaggica e no implementao de

    uma determinada metodologia (o como fazer). Neste sentido, ao cultural (a propo-

    sio de um fazer) e ao pedaggica (sua conduo) no se medem pela expectativa

    de resultados especficos, mas se constituem como processos de investigao, cujo

    produto o professor no prev e nem controla (apesar da possibilidade de confront-lo

    atravs de problematizaes e desafios).

    Seguindo este ponto de vista, a expresso teatro como pedagogia introduzida

    aqui para indicar uma possvel ruptura com delimitaes e limitaes impostas a priorino

    campo da pedagogia do teatro. Entre estas, a identificao de estilos e formas de fazeres

    como excludentes entre si, a dissociao do teatro na educao da arte teatral, a exacer-

    bao do social e do educativo em detrimento do cultural (o que implica a excluso de

    complexidades), a indistino entre acesso cultura1 e acesso aos bens culturais.

    A ao cultural do teatro poder, potencialmente, incidir sobre ou gerar uma ao

    social, com variaes de intensidade ao nvel da criao e da recepo, desde que no

    haja expectativas de resultado. Em teatro, e na arte em geral, a mobilidade da interpre-

    tao, ao nvel da produo e da recepo, e quando abre espao para a expresso

    individual e particular de cada participante, introduz a diferena e a distino como

    critrio de avaliao.

    Jacques Rancire considera que a conexo entre poltica e esttica est na

    singularidade do indivduo artista. Para o filsofo, o teatro, a escrita, as artes plsticas,

    so formas artsticas que constituem prticas da palavra e do corpo so, portanto,

    formas de partilha do sensvel que operam um deslocamento necessrio reflexo

    e transformao social. Segundo o autor, trata-se da incerta realidade da arte, na

    qual o argumento em si legitima o desentendimento e os atos estticos configuram a

    experincia, pois estes levam a novos modos do sentir e novas formas de subjetivi-

    dade poltica. Assim, a liberdade expressiva se associa ampliao de configuraes

    sensveis. A ambiguidade e a recusa de formalizao de uma mensagem objetiva na

    expresso artstica imprime mobilidade de sentidos, o que impulsiona novas interpre-

    taes e permite a criao de mundos.

    Se a ao cultural parte do princpio de que a cultura (e o teatro) como peda-

    gogia atinge o emocional e o racional, possvel afirmar que o engajamento contnuo

    1 Acesso cultura uma expresso inadequada, em qualquer circunstncia em que seja mencionada, pois todo

    ser humana tem sua cultura, seja ela ou no condizente com os costumes e moral da sociedade em que vive.

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    do indivduo com atividades culturais e artsticas contribui para a quebra e mudana

    de habitus. Assim, a qualidade e a continuidade de um trabalho artstico significativo

    para o indivduo podem mudar sua viso de mundo e perspectivas, pois quanto maior

    sua significao cultural, mais significativo seu potencial social.

    Tomaz Tadeu da Silva (2005) ao defender apedagogia como cultura e a cultura

    como pedagogia, afirma que os processos pedaggicos so comparveis aos

    processos de sistemas culturais, na medida em que ambos transmitem uma varie-

    dade de formas de conhecimento vitais formao da identidade e da subjetividade.

    Do ponto de vista pedaggico e cultural, afirma o autor, no se trata simplesmente

    de informao ou entretenimento: trata-se em ambos os casos, de formas de conhe-

    cimento que influenciaro e comportamento das pessoas de maneiras cruciais e at

    vitais (2005, p.140).

    Historicamente, lembra Tomaz Tadeu, os processos pedaggicos e culturais

    diferem principalmente pelos recursos econmicos e tecnolgicos que mobilizam, os

    quais facilitam aos processos culturais formas sedutoras e irresistveis de apresen-

    tao. Os processos culturais apelam para a emoo e a fantasia, para o sonho e a

    imaginao, mobilizando uma economia afetiva, que hoje no pode mais ser ignorada

    pelo campo da pedagogia.

    O teatro como pedagogia e como cultura implica o conhecimento de si e do

    outro, mobilizando esta economia afetiva, e eventualmente fazendo a diferena. A

    carncia de recursos econmicos e tecnolgicos no significa apenas o desconhe-

    cimento de formas sedutoras e irresistveis de apresentao, poisrefere principal-

    mente s condies de trabalho e formao continuada do professor. Enquanto um

    programa cultural mobiliza recursos financeiros, equipe e tempo de trabalho, um

    professor em geral atua de forma isolada, em mltiplas turmas com mais de 30

    alunos cada. Qual contribuio o teatro, entendido como pedagogia e como cultura,

    poder trazer a este professor?

    Momentos quando a ausncia ou a presena da ao cultural indica a dierena

    Um breve testemunho da observao de duas situaes, a primeira com adoles-

    centes e role-play games pela internet, a segunda com drama e crianas em sala de

    aula, explicitam como o significado da ao cultural pode fazer a diferena no coti-

    diano das atividades de lazer e de ensino.

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    Testemunho 1

    Anos atrs observei um grupo de adolescentes jogando Ultima VII, um role playing

    game de computador (CD). Me espantou o nmero de horas que passavam, por dia,

    concentrados e engajados no jogo. A partir da me questionei como ns, professoresde teatro, com espao, som, interaes no momento, muitas vezes temos dificuldade

    em conseguir 50 minutos de engajamento, ao vivo. poca foi lanado Ultima Online,

    um dos primeiros jogos online com mltiplos jogadores. Os adolescentes se inscre-

    veram imediatamente (era necessrio pagar uma taxa mensal), e passaram a jogar

    em horrios incomuns a fim de interagir com maior nmero de pessoas de hemisfrios

    distintos. Aps dois ou trs meses de entusiasmo com a mudana, os encontrei de

    volta ao Ultima VII Eu: No pagaram a mensalidade?

    Eles: Pagamos.

    Eu: A internet est fora do ar?

    Eles: No. T OK.

    Eu: Por que vocs no esto online?

    Eles: Se no h um grande jogador online, s aparece contribuio estpida,nenhuma histria interessante, nem boas falas.

    Testemunho 2

    Entre 1990 e 1993 tive a oportunidade de acompanhar o trabalho de drama

    education2 conduzido por Dorothy Heathcote em escolas, com turmas de crianas ou

    adolescentes, e na universidade com grupos de mestrandos. Aqui relato um episdio

    do processo Mary Morgan.3

    Heathcote conduzia processo de drama atravs de episdios nos quais desem-penhava papeis que provocassem a ao dos participantes (individualmente ou em

    2 As expresses drama in education, process drama e drama so usadas por autores distintos e muitas vezes

    pelo mesmo autor. Drama in Education predomina no campo do teatro na escola; Process Drama,em trabalhos

    centrados em um texto como pr-texto, comum em contextos variados; Drama, usado mais recentemente,

    comum em contextos nos quais a atividade j est instaurada ou quando o professor fala ou escreve para seus

    pares (conferncias e congressos neste campo de conhecimento).

    3

    Dorothy Heathcote Archive 1990-1993 at Manchester Metropolitan Univesity. Organizado e mantido por SandraHesten. Os arquivos de trabalhos anteriores e posteriores de Dorothy Heathcote podem ser acessados em www.

    did.stu.mmu.ac.uk/dha

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    grupo), mudando de postura ou papel para expandir ou modificar o entendimento das

    aes e o sentido de teatralidade.

    Durante o processo Mary Morgan, Heathcote criou um episdio centrado em

    um cemitrio, onde cada criana (8 anos de idade) colocou um tmulo (criado na aula

    de artes visuais) para uma pessoa imaginria que morrera em meados do sculo

    XIX, poca em que a causa da morte estava geralmente includa na epgrafe de sua

    lpide. O cemitrio de Presteigne (Pas de Gales), onde a histria real aconteceu,

    inclui duas lpides para Mary Morgan, uma singularidade que indica uma situao

    rica de eventos dramticos4.

    Heathcote iniciou este episdio pedindo que cada criana ficasse em p ao lado

    do tmulo que havia criado (de papelo), como se fosse uma rvore. Ela ento cami-

    nhou por entre os tmulos, identificando cada imagem corporal como uma espcie

    diferente de rvore, descrevendo a forma de sua raiz, galhos e folhas. Sua descrio,

    na grande maioria dos casos, alterou e realou a expresso fsica do aluno. Na sequ-

    ncia, ela comeou a questionar cada rvore, a fim de criar a atmosfera do cemitrio

    e ao mesmo tempo ouvir algo sobre a opinio da comunidade local sobre os mortos

    ou a morte5.

    A primeira pergunta foi dirigida a uma criana com reputao de ser difcil (a

    professora havia antecipado esta informao).

    Heathcote:Aqui est, h mais de 300 anos, um poderoso e forte carvalho. Porfavor, diga-me carvalho, o que voc observou durante estes anos?

    Carvalho: No muito! (respondendo de cara amarrada)

    Heathcote: Que triste! (Ela seguiu para a prxima rvore). Que salgueiroprotetor debruado sobre este pequeno tmulo! (Ela l a inscrio na lpide).Voc certamente observou muitas pessoas cuidando deste tmulo durantemuitos anos.

    Salgueiro: No muito!

    Heathcote seguiu questionando as rvores e incluindo referncias s suas

    epgrafes, e abrindo oportunidades para respostas. Ainda assim,

    todos responderam no estilo de no muito. Ao terminar o roteiro, disse:

    4 Jennifer Green, The Morning of Her Day. Green, jornalista de passagem pela vila de Presteigne, no Pas de

    Gales, ao visitar o cemitrio e encontrar as duas lpides, pesquisou o arquivo pblico da localidade. A histria de

    Mary Morgan (17 anos de idade), auxiliar domstica no castelo local, narrada a partir dos autos do processo

    que a condenou morte por enforcamento, aps esconder sua gravidez enfaixando o abdmen, e matar a

    criana ao nascer. Foi a ltima morte por enforcamento em Gales, em 1805.

    5 O tema da morte indicado no currculo ingls, e, portanto, focalizado de alguma forma, em cada escola.

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    Que triste encontrar um cemitrio, ao redor de uma bela igreja, no centrode uma pequena cidade, onde os mortos foram esquecidos. Suas histriasmorreram com eles. Poderamos dizer que este um lugar sem memria?Poderiam vocs, crianas dos tempos modernos, trabalhar como detetivespara solucionar este mistrio?

    Os dois testemunhos mostram como a mobilizao de recursos econmicos etecnolgicos, em si, pode no fazer a diferena.

    No primeiro caso, a verso online e os recursos tecnolgicos recm-introduzidos

    no mercado, com a possibilidade de interagir com participantes de outras partes do

    mundo, foi excitante e motivadora. Entretanto, retornaram ao CD. Ao conversar com o

    grupo para entender melhor o retorno, eles me explicaram que quando algum professor

    de literatura ou histria est online e coordena o encontro, sugerindo e organizando

    aes coletivas ou confrontos, o jogo vale a pena. Caso contrrio, os participantesficam caminhando aleatoriamente, acumulando pontos e matando quem encontram

    pelo caminho. No CD, disseram, so oferecidas as opes de ao e alternativas de

    fala para cada ao. Estas alternativas saram de obras de Shakespeare, Alan Poe,

    Swift, Oscar Wilde etc. As alternativas de texto tornam qualquer opo interessante.

    O segundo caso aponta para o teatro como pedagogia no cotidiano de uma sala

    de aula comum, com cadeiras afastadas e sem qualquer outro recurso alm da relao

    professor-alunos. A professora associa histria, real e ficcional, expresso fsica epresena de atores-espectadores. Ela introduz os nomes de 30 espcies de rvores,

    dramtica e teatralmente em contexto, alimentando e redefinindo possibilidades de

    expresso e construo da narrativa. E, mais importante, exemplifica o potencial de levar

    em considerao as reaes mais negativas dos alunos e transform-las em material

    para criar uma atmosfera que acentue as fronteiras entre os contextos real e ficcional.

    Nas ronteiras entre o real e o ccional

    A ao cultural, quer atravs da montagem de um texto clssico, de sua apro-

    priao e atualizao, ou de uma criao coletiva a partir de investigao histrica ou

    temtica, requer refazer o mapeamento de parmetros de lugar, identidade, histria e

    poder. As fronteiras entre o real e o ficcional so ativadas e provocam mudanas de

    percepo e expectativas. Estas em geral resultam da variedade (alternativas) e quali-

    dade de referncias lingusticas e contextuais cruzadas nos encontros teatrais, e esto

    associadas transgresso ou ressonncia com o contexto real dos participantes.

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    De acordo com Henri Giroux (1997, p. 30), a possibilidade de quebrar barreiras em

    termos de conhecimento e acesso a informaes tem a ver com o papel do professor

    como intelectual, como aquele que desafia os limites do estabelecido.

    Estes limites so observados e desafiados em situaes nas quais as fronteiras

    entre o real e ficcional so transitadas atravs da imerso dos participantes; atravs do

    prazer de entrar no espao da fico, que segundo Janet Murray, refere-se ao prazer

    de navegar, de encontrar o novo, o diferente:

    Uma narrativa excitante, em qualquer meio, pode ser experimentada comouma realidade virtual porque nossos crebros esto programados parasintonizar nas histrias com uma intensidade que pode obliterar o mundo nossa volta (...) A narrativa tambm uma experincia liminar () As histriasevocam nossos desejos e medos mais profundos porque fazem parte damgica regio de fronteira () ns precisamos manter o mundo virtual realfazendo com que ele permanea fora dali. (Murray, 2003, pp.101-103).

    O professor de drama/teatro usa procedimentos que cruzam tempo, espao e

    presena para mediar a interao dos alunos e favorecer o desenvolvimento do processo

    de significao. Trata-se de um processo contnuo de estruturao da narrativa cnica.

    Entretanto, o procedimento para promover imerso na criao coletiva ainda

    requer uma dimenso esttica de significao e reconhecimento. Para tanto, neces-

    srio planejar momentos significativos ao longo do processo.

    Retornando a Janet Murray e sua anlise do conceito de imerso, trabalhar nafronteira entre os mundos real e ficcional a essncia do processo do drama, e da

    prpria performance (ibidem, p.105). Para David Davis, a fronteira aponta para a

    impreciso da forma artstica; para o movimento e deslocamento do contedo cada

    vez que o observador o leia novamente aqui reside a evidncia de um bom trabalho

    de arte (Davis, 1992p. 3).

    O ponto importante a ser enfatizado que o mundo virtual traz liberdade para

    experimentao e expresso; seu potencial analgico traz ressonncia com o mundoreal e, portanto, reconhecimento esttico.

    Ressonncia e Reconhecimento Esttico

    O drama e o teatro contemporneos, sejam quais forem suas origens e inser-

    es, buscam formas de comunicao com contextos e espaos distintos como uma

    maneira de expandir sua ressonncia com questes familiares aos participantes e

    promover reconhecimento esttico. O desafio torna-se equilibrar momentos de ruptura

    e de continuidade.

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    Neste sentido, o texto quer em sua forma original, quer como fragmentos que

    se aproximam tematicamente, como sequncia de imagens ou como associao de

    objetos, apresenta um papel central. O texto aponta, sugere ou questiona aspectos da

    identificao cultural, provoca estranhamento ao identificar ou diferenciar julgamentos

    de prticas sociais, reflete uma sensibilidade pr-existente e como tal cria ou desperta

    tal sensibilidade, amplia e expande repertrio artstico e percepo esttica.

    A ao cultural de selecionar um texto, programar sua introduo e formas de

    interao com os participantes inclui considerar sua materialidade como suporte,

    associada imaterialidade de sua carga informacional e emocional. Selecionar o

    material a ser introduzido a partir de seu potencial informacional, emocional, tico

    e expressivo corresponde ao que Barthes acentuou em distintos momentos como

    aquele capaz de produzir pregnant moments (momentos prenhes de significao).

    So estes momentos que afastam o risco de considerar a ao cultural apenas como

    ao social, como um servio a ser avaliado de acordo com a expectativa de um

    resultado pr-estabelecido.

    A ao cultural como congurao da experincia esttica

    Segundo Rancire, os atos estticos como configuraes da experincia criam

    novos modos de percepo sensorial e induzem novas formas de subjetividade (2004,

    p. 9). Nesta perspectiva, so considerados, ao se falar em educao e arte, o sensorial

    e o subjetivo da ao criativa, seu suporte material e imaterial, o real e as fronteiras

    da realidade.

    Assim, se a ao cultural em si pode ser vista como ao social, o contrrio

    dificilmente ocorre. A ao social parte de objetivos e recursos especficos que

    precisam ser avaliados de acordo com a aferio de resultados tambm especficos:

    as mudanas ocorridas em formas de vida e aes sociais. A ao cultural, avaliada a

    partir de anlise da recepo, inclui motivaes e manifestaes crticas como contra-

    dies, diferenas e desentendimentos. Sua observao e anlise permitem detectar

    mudanas de percepo, usualmente atravs das aes expressivas do aluno/ator;

    aes estas em constante movimento e modificaes.

    Neste sentido, uma forma de aproximar ao cultural e social poderia ser a

    aproximao entre as noes de desentendimento e partilha do sensvel, segundo

    Rancire, e a de filosofia da diferena, de Deleuze.

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    Para Rancire, a esttica e a poltica so maneiras de organizar o sensvel: de

    dar a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos aconteci-

    mentos . Quando caminham juntas abrem possibilidades com base no encontro discor-

    dante de percepes individuais. Poltica e esttica, segundo o filsofo, tm assim em

    comum a delimitao do visvel e do invisvel, do audvel e inaudvel, do pensado e do

    impensvel, do possvel e do impossvel. A distribuio do sensvel o sistema de fatos

    (autoevidentes) da percepo dos sentidos que simultaneamente revela/expe a exis-

    tncia de algo em comum e a delimitao que define as partes e posies respectivas

    dentro dele. A distribuio do sensvel, portanto, estabelece algo que compartilhado e

    exclusivo s partes envolvidas e a maneira dos indivduos terem uma parte nesta distri-

    buio. Aquilo que exclusivo de cada indivduo gera possveis desentendimentos, cuja

    negociao e discusso abrem novas perspectivas e possibilidades.

    Para Deleuze, e observando a questo por outro ngulo, o teatro, devido sua

    constituio crtica, opera modificando elementos do texto original. Assim, a fonte

    modificada deixa de ser representada, e o fazer teatral se torna o da no-represen-

    tao o ponto de vista do apropriador. Este agenciamento da enunciao, decorrente

    principalmente da articulao do individual com o poltico, est centrado usualmente

    nos componentes lingusticos e sonoros a lngua, a fala e o gesto como variaes

    contnuas. Assim, se uma mesma situao ou texto apropriado por diferentes grupos,

    as variaes lingusticas e gestuais conduzem a significaes distintas, e configuram

    um teatro da no-representao.

    Outro aspecto assinalado por Deleuze, que repercute no campo da pedagogia,

    que o teatro permanece representativo cada vez que toma os conflitos como objeto,

    uma vez que estes j esto normatizados, codificados e institucionalizados. Buscar

    solues possveis, segundo Deleuze, no significa escapar da representao, um

    movimento da repetio; a repetio, em outro contexto e circunstncia, substitui a

    representao pela apresentao (2009, p.31). Na rea especfica do drama o conflito

    como objeto o ponto de partida; a mobilidade da significao requer a distino entre

    conflito e tenso.

    A ao cultural em teatro e a distino entre confito e tenso

    Ao escolher um texto, tema ou imagem para um processo de criao em teatro,

    o professor usualmente no busca sua repetio ou identidade, mas sim um ponto

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    de vista ou perspectiva, e formas de question-lo6. Ao enquadrar situaes e lanar

    frases do texto para estabelecer dilogos ou confrontos, ele est oferecendo formas de

    ampliar a percepo do tema e integr-lo s prprias preocupaes e interesses dos

    alunos. Neste sentido, a conduo do processo se caracteriza como uma ao cultural

    que equilibra momentos de identificao e estranhamento, nos quais a diferena

    ganha contornos que sero produtivos, caso seja trabalhada atravs de momentos de

    tenso que explicitem e ao mesmo tempo evitem possveis conflitos.

    Segundo Gavin Bolton (1984), enquanto a estrutura denota a relao entre os

    componentes da cena, a tenso indica a nossa experincia dessa estrutura. Nos

    jogos teatrais e no drama o relacionamento estrutural que implica tenso est geral-

    mente explcito: a indefinio entre recompensa e punio, a necessidade de tomar

    uma deciso que envolva risco, a espera, as barreiras, os enigmas, os dilemas. A

    experincia dramtica bem sucedida, afirma Bolton, quando o grupo intuitivamente

    reconhece que a intensidade de uma situao reside na dificuldade de tomar uma

    deciso que poder lhe ser favorvel ou no. A tenso antecede o conflito e, em drama,

    sobrepe-se a ele, dado o seu carter de experincia existencial, que prioriza a din-

    mica interna da uma situao em detrimento de uma possvel sequncia de aes

    (esta centrada na representao).

    A crena que conflito deva ser a principal fonte de tenso em drama/teatro, ou

    qualquer gnero, segundo Bolton, um equvoco. Isto porque desperta prontamente

    emoes que tendem a sobrepujar o pensamento e no permitem acessar recursos

    de distanciamento mais sutis. Tal fenmeno particularmente observado na esfera do

    trabalho em grupo, na qual a raiva se une com o sentimento de grupo para criar o que

    conhecido como efeitoyahoo: um crescendo de indisciplina e barulho sob a direo

    e proteo do conflito dramtico, que invariavelmente destri o drama. O conflito, uma

    vez despertado, difcil de controlar, e pode facilmente espalhar limites no claros entre

    o comportamento apropriado a um personagem e aquele apropriado a um participante.

    J a tenso, ao ativar a energia atravs do confronto entre expectativas e limitaes,

    6 Isto no significa que, dependendo da experincia e interesse do professor e dos alunos, no se possa jogar com

    as possveis significaes de um texto decorado previamente. O professor dinamarqus Dan Olsen apresentou,

    em uma conferncia na Inglaterra, uma experincia realizada com o texto infantil O Patinho Feio montado por

    um grupo de seus estudantes e gravado em vdeo. Esta gravao foi apresentada para grupos de diversos

    pases, solicitados a repetir as aes observadas e o texto traduzido, podendo retornar ao vdeo quantas vezesachassem necessrio. A observao de vrias montagens, representando as mesmas situaes e aes, revela

    claras diferenas e identificaes culturais.

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    implica afastar trs riscos que impedem a interao tica esttica poltica: o de

    considerar a comunidade ou o grupo como uma entidade consensual com fronteiras

    fixas; o de afastar a ambiguidade e considerar suas necessidades como prontamente

    identificveis; o de acreditar que seus objetivos possam ser alcanados de forma isolada

    e independente dos interesses da cultura dominante.

    Embora questes em torno de consenso, certeza, verdade, objetividade e reali-

    dade estejam bastante exploradas e questionadas na rea de cincias humanas, inclu-

    sive em teatro, elas ainda pontuam, aqui e ali no processo coletivo do drama. Uma das

    razes poderia estar na criao de uma identidade grupalcomo objetivo e concepo

    de trabalho, pois a identidade de grupo tende a anular as diferenas e a atenuar as

    desigualdades, e acaba por nivelar as especificidades individuais. Consenso torna-se

    a condio sine qua non de sua eficcia. Consenso torna-se tambm uma ferramenta

    eficaz no estabelecimento de habitus.

    Ao Cultural e Teatro como Pedagogia: texto, tradues e ronteiras

    Repetir um texto, argumenta Roberto Machado (2009), no buscar sua iden-

    tidade, mas afirmar sua diferena; pensar em seu prprio nome usando o nome de

    um outro, organizar seu texto a partir de um ponto de vista, de uma perspectiva que

    faz o objeto estudado sofrer pequenas ou grandes tores, a fim de ser integrado s

    suas prprias questes. Para Deleuze, o teatro crtico quando opera amputando,

    subtraindo alguma coisa, alguns dos elementos do texto original, para fazer aparecer

    algo diferente. No apenas a matria do texto, a histria original que modificada;

    tambm a forma de apresenta-la, que cessa de ser representao, constituindo-se

    como um teatro da no-representao. A interao sensorial com o espao, o texto e

    o outro vai definir a energia em cena. Por esta perspectiva possvel perceber a iden-

    tidade como diferena.

    Em que medida a associao entre texto e ao cultural permite mediar esta

    interao sensorial com o espao e o outro? Se no processo de criao a tensodo

    contexto da fico gera a energia para a investigao cnica, as tores e amputaes

    (ojogarcom a linguagem)permitem o distanciamento para perceber a relevncia do

    material investigado e as formas pessoais de responder aos problemas e tenso

    gerada. Est aberto o espao para a ambiguidade, a indefinio, a incerteza. Isto

    porque, segundo Rancire, as palavras tm um poder de ruptura: elas embaralham aevidncia segundo a qual as coisas seriam simplesmente o que elas so. Segundo o

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    autor, o mesmo acontece com a arte, pois o regime esttico da arte realiza suas possi-

    bilidades essenciais ultrapassando a si mesmo, criando formas de vida.

    Helen Nicholson, em editorial sobre Atos de Traduo7 ressalta que a linguagem

    tanto limita quanto amplia horizontes, e que novas formas de ver, ouvir e pensar

    podero ser encontradas atravs da expresso performtica de questes sociais

    (2010, p. 307). Neste editorial Nicholson remete a uma palestra de Jacques Derrida

    (Oxford Amnesty Lecture, 1982), na qual o filsofo chama a ateno para o relaciona-

    mento entre linguagem, subjetividade e direitos humanos, e considera que estes so

    sempre construdos pela linguagem e carregam as marcas de sua cultura e histrias.

    Para Derrida, necessrio respeitar a cultura do outro para afirmar a prpria isto no

    apenas poltico, tambm potico. Nicholson parte desta reflexo de Derrida para

    apresentar um nmero temtico de RiDE8 sobre performances e experincias intercul-

    turais. Atos de traduo, enfatiza Nicholson, movem ideias tericas pratica atravs

    de eventos performativos.

    neste sentido que uma ao cultural, no teatro como pedagogia, que tenha

    como ponto de partida e se alimente de um texto literrio (dramtico ou no), contribui

    para a ampliao da linguagem e da percepo esttica, mantendo a atuao ou

    experincia na fronteira entre o real e o ficcional. Seguindo o famoso dictum de Witt-

    genstein, os limites de minha linguagem so os limites de meu mundo, associo-o

    afirmao de Rancire, para quem o poltico est na esttica, no temtico. O texto,

    contextualizado, confrontado (traduzido), e transformado se afasta da explanao e

    entra no campo da explorao, permitindo que a ao cultural pretendida se configure

    como um processo de aproximao descontnua e no-linear do tema, uma constante

    mudana de perspectivas que a aproxima da experincia esttica.

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