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O Voto por Correspondência nas Sociedades Abertas Gonçalo Castilho dos Santos * * Assistente-Estagiário da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Jurista do Gabinete de Estudos da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.

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O Voto por Correspondência nasSociedades Abertas

Gonçalo Castilho dos Santos *

* Assistente-Estagiário da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Jurista do Gabinete de Estudos daComissão do Mercado de Valores Mobiliários.

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I. Introdução

1. Enquadramento

I. Um dos direitos consagrados pela lei a favor dos sócios é o da participação nasdeliberações sociais1. Além do direito a estar presente nas assembleias gerais e aí adiscutir os assuntos suscitados no decurso da assembleia, o sócio tem direito a votarnessas assembleias. Os termos em que esse direito de voto pode ser exercido —designadamente, no que respeita a limites impostos por lei ou pelo contrato desociedade – bem como as consequências da conformação do iter da formação davontade colectiva sobre o conteúdo da participação social têm sido, aliás, objecto doestudo por parte de diversas gerações de juristas.

No presente trabalho, analisam-se especificamente algumas das questões que sesuscitam em torno da previsão constante do Código dos Valores Mobiliários (CdVM)relativa ao exercício do direito de voto por correspondência. Com efeito, o artigo22.º do CdVM vem esclarecer em que termos é que é possível o exercício do direitode voto por correspondência nas sociedades abertas2. A introdução deste preceito é,de certa forma, uma novidade, pelo menos se tivermos em conta as tradicionaisreservas da doutrina nacional a propósito da admissibilidade do voto porcorrespondência nas sociedades comerciais em geral.

II. O absentismo dos accionistas nas assembleias gerais das sociedades anónimas é,actualmente, apontado como um dos grandes óbices a uma efectiva participação socialda maioria dos sócios. É aduzido, com frequência, como motivo desvirtuador do tipo

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1Artigo 21.º do Código das Sociedades Comerciais. De seguida, as referências a preceitos legais sem menção darespectiva fonte devem considerar-se feitas em relação ao Código das Sociedades Comerciais, aprovado peloDecreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro, com sucessivas alterações.

2A sociedade com o capital aberto ao investimento do público é abreviadamente designada no CdVM como“sociedade aberta”. Independentemente de se propugnar a qualificação da sociedade aberta como novo tiposocietário ou como subtipo das sociedades anónimas e comandita por acções, é evidente o destaque que oCódigo dos Valores Mobiliários pretende atribuir ao conceito e regime jurídico da sociedade aberta (cf., apropósito, o ponto 8 do Preâmbulo). Visa-se, desde logo, superar a dissonância de nomenclatura e dedisciplina jurídica que existia entre o Código das Sociedades Comerciais e o Código do Mercado dos ValoresMobiliários, bem como aprimorar a transparência do controlo societário e a operatividade de diversosinstrumentos jurídicos, tendo em vista, designadamente, a tutela dos investidores e, dessa forma, a eficiênciados mercados.

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fórmulas parassocietárias, é importante não descurar, neste contexto, a pulverizaçãoaccionista e a patrimonialização da participação social — muitas vezes encarada comoinvestimento nos mercados de valores mobiliários – para justificar o actual alheamentoda maioria dos pequenos accionistas em relação à participação na vida da sociedade.

O voto por correspondência surgiria, assim, como uma medida paliativa para esteproblema, procurando-se, desta forma, incrementar o exercício de um dos principaisdireitos sociais e, dessa forma, robustecer os mecanismos de controlo intra-societário.

III. A pessoalidade tem sido uma característica consensualmente associada aoexercício do direito de voto. Em virtude de se ligar esta referência à presença do sócionos trabalhos da assembleia geral, têm sido aduzidos diversos argumentos no sentidode não se admitir o voto por correspondência, desde logo, em atenção às limitaçõeslegais decorrentes do exercício não presencial do direito de voto8.

Destaca-se a invocação de razões ligadas à segurança e à certeza inerentes ao processode formação da vontade social, que estariam comprometidas com a adopção destaforma de exercício do direito de voto, bem como o facto de, desse modo, se estar aimpossibilitar o esclarecimento obtido através de informações prestadas no decurso dodebate da assembleia geral9. Aventa-se ainda, no sentido da inadmissibilidade, oargumento retirado do silêncio do Código das Sociedades Comerciais em relação àlegitimidade do voto por correspondência, salientando-se que tendo a lei admitidouma simples carta assinada como idóneo instrumento de representação não deixariade ter considerado que bastaria uma forma similar para exprimir o voto, se assim opretendesse. Desta forma, a omissão quanto à correspondência seria, neste contexto,indiciadora da rejeição da legitimidade deste modo de exercício do voto10.

IV . O disposto no artigo 22.º do CdVM tem como consequência esclarecer estadiscussão no que respeita às sociedades abertas, remetendo o referido debatedoutrinário para o âmbito das sociedades fechadas. A opção legislativa do Código dos

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histórico da sociedade anónima – designadamente, pela perturbação que introduz naclássica proporcionalidade entre participação social e controlo societário – e, maisnefastamente, como elemento potenciador de abusos de minorias activas emdetrimento de maiorias silenciosas3. A questão tem vindo a ser, aliás, suscitada, deforma reiterada, no âmbito da temática do governo das sociedades (corporate governance)– sobretudo das sociedades abertas ao investimento do público – tendo merecidorecentemente a atenção da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) nocontexto das respectivas recomendações sobre o governo das sociedades cotadas 4/5.

É no contexto da globalização económica e da dispersão geográfica de um amplouniverso de (pequenos) investidores que têm surgido propostas no sentido de seestimular o exercício do direito de voto6. Nas sociedades abertas, a par das generalizadaslimitações estatuárias ao exercício dos direitos sociais7 e ao desenvolvimento de

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3Argumentando com a tutela dos pequenos investidores e com o intuito de se evitar a desigualdade entre osaccionistas face às “minorias maioritárias”, cf. JUAN SÁNCHEZ-CALERO GUILARTE, “La limitación delnúmero máximo de votos correspondientes a un mismo accionista (com especial referencia a los bancosprivados y al mercado de valores)”, in Revista de Derecho Bancario y Bursátil, XI, (Abril-Junho), 1991, pp. 271-319;EDUARDO POLO, “Abuso o tirania”, in Estudios juridicos en homenaje al Profesor Aurelio Menendez, II, Madrid, 1996,pp. 2269-2293 (maxime, 2283-2286). Por seu turno, enquadrando a questão na recente reforma jurídicaitaliana (Testo Único della Intermediazione Finanziaria) e realçando o reforço dos mecanismos de tutela das minorias,cf. ANTONIO PAVONE LA ROSA, “La disciplina della grande impresa tra disciplina della strutturasocietaria e disciplina del mercato finanziario”, in Giurisprudenza commerciale, 26.2 (Março-Abril), 1999, pp. 137-144.

4A Parte II do documento da CMVM Recomendações da CMVM sobre o governo das sociedades cotadas é dedicada aoexercício do direito de voto e representação de accionistas, reservando-se o § 8.º, no contexto do exercícioactivo do direito de voto, para uma referência ao voto por correspondência.

5O governo das sociedades é matéria que, sobretudo no panorama internacional, tem merecido crescenteatenção por parte dos cultores do direito comercial e do direito dos valores mobiliários, dobradaconcomitantemente por intervenções de diversas autoridades de supervisão. Para uma rica recolhabibliográfica, nomeadamente, no que respeita aos principais relatórios de peritos que surgiram na segundametade da década de 90, cf. PAULO CÂMARA, O Governo dos Grupos Bancários, in Estudos de Direito Bancário,separata, Coimbra, 1999, maxime, notas 49 e ss.. Na literatura jurídica espanhola respeitante ao governosocietário ressaltam duas obras de relevo: FEDERICO SAN SEBASTIÁN FLECHOSO, El gobierno de las sociedadescotizadas y su control, Madrid, 1996, pp. 651 e ss.; e a colectânea coordenada por GAUDENCIO VELASCO, Elgobierno de las sociedades cotizadas, Madrid, 1999, com especial interesse para a nossa análise, veja-se o artigoassinado por CARMEN LEDESMA, relativo ao “Papel de la junta general en el gobierno corporativo de lassociedades de capital” (pp. 615 e ss.).

6Cf., designadamente, AMADEU FERREIRA, Direito dos Valores Mobiliários, Lisboa, 1997, p. 176, que, emboranoutro contexto, realça as dificuldades associadas à dispersão geográfica dos accionistas. Com interesse apropósito da “internacionalização da mobilidade funcional dos investidores”, vide AGOSTINO GAMBINO,“Governo societario e mercati mobiliari”, in Giurisprudenza commerciale, 24.6 (Novembro-Dezembro), 1997, pp.789-791.

7Cf., a propósito, o n.º 2 do artigo 384.º (situação já admitida anteriormente nos §§ 3.º e 5.º do artigo 183.ºdo Código Comercial, na redacção do Decreto-Lei n.º 154/72, de 10 de Maio). Para um excurso porlegislações e práticas societárias estrangeiras no que respeita a limites do direito de voto através do contrato de

sociedade, vide FEDERICO SAN SEBASTIÁN FLECHOSO, “Reflexiones sobre gobierno corporativocomparado”, in Revista de Derecho Bancario y Bursátil, XVI (Abril-Junho), 1998, pp. 499-517.

8Maxime, o n.º 2 do artigo 54.º e os n.os 3 e 8 do artigo 247.º.

9Nesse sentido, RAÚL VENTURA, Sociedades por Quotas (Comentário ao Código das Sociedades Comerciais), Coimbra,1989, p. 176, e JORGE PINTO FURTADO, Deliberações dos Sócios, Coimbra, 1993, p. 139. Curiosamente, esteAutor invoca, no entanto, a possível generalização da deliberação por voto escrito a outros tipos sociais quenão as sociedades por quotas e em nome colectivo, atendendo à respectiva compatibilidade com sociedades denumerosos sócios. Asserção que, parece-nos, não pode deixar de se reflectir na reflexão em torno do voto porcorrespondência (cf., a propósito, JORGE PINTO FURTADO, ob. cit., p. 204).

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2. Indicação de sequência

A par da evidente motivação que subjaz à previsão respeitante ao voto porcorrespondência, deparamos com um conjunto de questões ora relacionadas com oimpacto que o preceito mobiliário pode ter junto da disciplina das sociedadesanónimas fechadas, ora implicadas nas soluções de direito positivo, em regra de carizanalógico, que propugnamos para os diversos problemas que surgem na emissão e narecepção da declaração de voto por correspondência e, concomitantemente, naformação da própria deliberação social.

Ao longo do presente artigo, enquadraremos, assim, o voto por correspondência faceao numerus clausus das formas de deliberações dos sócios, esmiuçando a distinção entreforma de deliberação e forma de votação. Depois de fazermos apelo ao princípio daliberdade de forma do exercício do direito de voto, analisaremos o regime veiculadopelo artigo 22.º do CdVM e, no cotejo com o Código das Sociedades Comerciais,atentaremos em alguns problemas resultantes da expressa consagração, na nova leimobiliária, do voto por correspondência. Finalmente, destacaremos a vigência doprincípio da equiparação entre o tratamento jurídico a dar às situações de voto porcorrespondência nas sociedades abertas e as soluções gerais da lei societária.

Centraremos, pois, a nossa análise no tratamento jurídico do exercício porcorrespondência do direito de voto, na perspectiva das assembleias gerais dassociedades anónimas abertas. Isso não impede, todavia, que recorramos por diversasvezes a dispositivos previstos para outros tipos societários, nomeadamente, comoacontece com a deliberação por voto escrito que, como é sabido, só pode ter lugar nassociedades por quotas e nas sociedades em nome colectivo14/15.

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Valores Mobiliários11 não pode, todavia, deixar de influenciar a interpretação doCódigo das Sociedades Comerciais, aconselhando que se reaprecie a posiçãotradicional no que respeita à pretensa inadmissibilidade do voto por correspondênciano direito societário português12.

A este propósito, não podemos deixar de opinar que a pessoalidade não deve serconfundida com a presencialidade, o que, aliás, pensamos ser corroborado,designadamente, pelo instituto da representação de sócios. Para mais, como teremosoportunidade de defender, preconizamos – em dissonância com a argumentaçãoexpendida pela doutrina maioritária que vem negando a admissibilidade do voto porcorrespondência – que o artigo 22.º do CdVM confirma o princípio da autonomiasubjacente ao n.º 8 do artigo 384.º, nos termos do qual a forma do exercício do votopode ser determinada pelo contrato, por deliberação dos sócios ou por decisão dopresidente da assembleia13.

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10Este argumento surge pela pena de JORGE PINTO FURTADO, ob. cit., p. 110.

11Que se junta, portanto, ao artigo 52.º do Código Cooperativo (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 51/96, de 7de Setembro) que permite o voto por correspondência nas assembleias gerais das cooperativas.

12Já na vigência do direito anterior ao actual Código das Sociedades Comerciais era entendimento pacífico doSupremo Tribunal de Justiça (cf., designadamente, o Acórdão de 27 de Maio de 1960, in Boletim doMinistério da Justiça, n.º 97, p. 396) que os artigos 36.º, § 2, e 39.º, § 1, ambos da Lei das Sociedades porQuotas, não impediam que no pacto social se convencionasse a possibilidade de algum sócio votar por escritoquando não pudesse comparecer à assembleia geral, embora os outros sócios se reunissem em assembleia e aívotassem oralmente. Argumentava-se a propósito, nomeadamente, com o princípio da autonomia da vontade(artigo 672.º do Código Civil de 1867), em anotação concordante de JORGE PINTO COELHO em Revista deLegislação e Jurisprudência, ano 94, pp. 39 e ss..

13A admissibilidade do voto por correspondência nas assembleias gerais afigura-se como tendência importanteno panorama jussocietário internacional. Assim, além do direito francês que, pelo artigo 161.º, n.º 1, da Lein.º 83-I, de 3 de Janeiro de 1983, admite há muito esta forma de exercício do voto, veja-se o ordenamentoitaliano, designadamente, na perspectiva societária, o artigo 127.º do Decreto de 24 de Fevereiro de 1998,n.º 58, bem como os artigos 73.º e ss. do Regulamento da Commissione Nazionale per le Società e la Borsa (CONSOB)n.º 11520/98, relativo aos emitentes. Esta referência à ordem jurídica italiana deve ser articulada com outrasmanifestações desta admissibilidade, designadamente, no que respeita às deliberações sociais em empresasprivatizadas e em sociedades de investimento de capital variável) - cf., a propósito, NICCOLÒ SALANITRO,Società per azioni e mercati finanziari, Milão, 1999, pp. 59-61. Em Espanha, apesar da doutrina dominanteconsiderar “perigosa” a dmissibilidade do voto por correspondência, vão surgindo intervenções em sentidocontrário; a título de exemplo, vide R. URIA, A. MENENDEZ e M. OLIVENCIA, Comentario al regimen legal de lassociedades mercantiles, V, 1992, p. 104; bem como CARMEN LEDESMA, ob. cit., p. 653. De certa formacorroborando esta tendência, atente-se ainda no documento recomendatório da Organização de Cooperaçãoe de Desenvolvimento Económico, relativo aos Princípios sobre o Governo das Sociedades (OCDE Principles of

Corporate Governance) - in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários n.º 5, Agosto de 1999, pp. 286 e ss., maximep. 304 - referindo a necessidade de se “removerem as barreiras artificiais de participação dos sócios nasAssembleias Gerais”.

14Cf, a propósito, n.º 1 do artigo 247.º e n.º 1 do artigo 189.º. Criticando, aliás, a exclusão legal dadeliberação por voto escrito nos termos do n.º 1 do artigo 373.º e realçando a perplexidade decorrente daproclamação em sentido contrário no n.º 8 do Preâmbulo do Código das Sociedades Comerciais, vide JORGEPINTO FURTADO, ob. cit., p. 66.

15Ainda antes de avançarmos para a análise do artigo 22.º do CdVM, impõe-se uma razão de ordem em relaçãoàs formas de deliberação social que não a assembleia geral no contexto das sociedades abertas: é natural que,atendendo ao circunstancialismo traduzido nos critérios do artigo 13.º do CdVM, seja difícil configurar aocorrência de deliberações sociais em sociedades abertas que não se traduzam na convocação de assembleias

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correspondência e a deliberação por voto escrito, motiva, em geral, o tratamentodoutrinário se não conjunto, pelo menos conexo18.

3.2. Liberdade de forma do exercício do direito de voto

I. Contrariamente às deliberações por voto escrito, a lei societária não secomprometeu com quaisquer requisitos formais relativamente à votação emdeliberações emitidas em assembleia geral, em harmonia, aliás, com o princípio geralvertido no artigo 219.º do Código Civil. Com efeito, nos termos do n.º 8 do artigo384.º, a forma de exercício do voto pode ser determinada pelo contrato de sociedade,por deliberação dos sócios ou por decisão do presidente19.

A forma de exercício do voto é, assim, normalmente considerada como matériaeminentemente estatutária20. Em consonância, a lei societária é muito comedida notratamento desta questão, limitando-se a estipular habilitações nessa matéria, comoacontece nos termos do já citado n.º 8 do artigo 384.º.

Embora as modalidades de voto enunciadas pela doutrina pressuponham declaraçõesde voto emitidas por accionistas presentes ou representados na assembleia geral (vg.votação nominal, secreta, por boletins de voto, etc.), nada obsta a que, nos termos daalínea d) do n.º 5 do artigo 377.º em articulação com o n.º 8 do artigo 384.º (eabstraindo agora do regime mobiliário para as sociedades abertas), seja possíveladmitir o voto por correspondência, desde logo, por determinação do contrato desociedade. A autonomia da vontade – que deve iluminar a aplicação e a interpretaçãoda lei societária – milita a favor do entendimento que recusa a restrição injustificadada esfera auto-organizativa das sociedades21.

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II. O voto por correspondência nas assembleias gerais dassociedades abertas

3. Princípios sobre o exercício do direito de voto

3.1. Tipicidade das formas de deliberação dos sócios

I. É sabido que o artigo 53.º veio consagrar, nos termos do denominado princípio datipicidade, quatro formas de deliberação social: deliberações formadas em assembleiageral, deliberações de assembleia universal, deliberações unânimes por escrito edeliberações por voto escrito16.

A questão da admissibilidade do voto por correspondência tem sido, aliás, tratada peladoutrina em conexão, nomeadamente, com o tratamento da disciplina da deliberaçãopor voto escrito (artigo 247.º)17. Importa, contudo, assentar na distinção entre estaforma de deliberação e o voto por correspondência.

II. Assim, apesar do carácter não presencial do exercício do direito de voto sercomum à deliberação por voto escrito e ao voto por correspondência, não devemosconfundir a forma de deliberação prevista no artigo 247.º com a forma deexteriorização da vontade do sócio através do voto por correspondência.

Na perspectiva da discussão em torno da admissibilidade do voto porcorrespondência, a especificidade da deliberação por voto escrito, que queremosdestacar, traduz-se no facto de, pela sua natureza, esta forma de deliberação implicarnecessariamente a exteriorização da declaração de voto através do envio e recepção decorrespondência, o que, embora não justifique a confusão entre o voto por

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gerais. Note-se que o unanimismo, quer para efeitos de escolha da forma deliberativa (deliberação por votoescrito e assembleia universal), quer na determinação do sentido de voto (deliberações unânimes por escrito),não se coaduna com a anteriormente referida pulverização accionista e tendencial absentismo no exercício dosdireitos sociais.

16Veja-se, assim, além dos artigos 53.º e 54.º, também os artigos 247.º, n.º 1, 373.º, n.º 1 e 472.º, n.º 1.Note-se que, com interesse para a nossa análise, a deliberação em assembleia universal é, à partida, a única

forma de deliberação que não comporta, pela sua natureza, o voto por correspondência (vide artigo 54.º).

17Cf., designadamente, EDUARDO LUCAS COELHO, Direito de voto dos accionistas nas assembleias gerais das sociedadesanónimas, Lisboa, 1987, p. 121, e JORGE PINTO FURTADO, ob. cit., pp. 109-110.

18Note-se, a propósito, que a denominação como “sociedade de pessoas” com que geralmente a sociedade porquotas é crismada pela doutrina e pela jurisprudência – atenta a disciplina no Código das SociedadesComerciais – justificará as cautelas do legislador materializadas no artigo 247.º, já que, como foi apontado, estáem causa um desvio à regra da participação presencial do sócio no processo formativo da vontade colectiva.

19A propósito da decisão do presidente da assembleia relativamente à forma de exercício do voto, veja-se emJORGE PINTO FURTADO, ob. cit., p. 139, a respectiva qualificação como decisão de “caráctersimplesmente ordenador”.

20Já o Código Comercial dispunha no n.º 7 do artigo 114.º que cabia ao título constitutivo da sociedade

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forma, pelo menos para as sociedades abertas, a querela doutrinária quanto àadmissibilidade do voto por correspondência fica irremediavelmente ultrapassada.

Sob o pano de fundo da autonomia societária, o preceito estipula que os estatutos dasociedade não podem vedar essa forma de exercício do voto quando esteja em causa aalteração estatutária ou a eleição de titulares dos órgãos sociais.

II. Este enquadramento suscita-nos dois comentários.

Primeiro, a lei assume a regra supletiva da admissibilidade do voto porcorrespondência, o que, mesmo para quem, como nós, já incluía o voto porcorrespondência no âmbito do n.º 8 do artigo 384.º, é uma novidade atendendo aofacto de, a partir de agora, o voto por correspondência ser admitido mesmo semprevisão expressa nesse sentido por parte do contrato de sociedade. O silêncio docontrato social relativamente à possibilidade de se votar por correspondência implica,à luz do n.º 1 do artigo 22.º do CdVM, o respectivo consentimento e não, comoacontecia até agora, a rejeição dessa modalidade de expressão do voto.

Em segundo lugar, relativamente à previsão do n.º 2 do artigo 22.º do CdVM – ao sevedar a possibilidade do contrato de sociedade afastar o voto por correspondência noscasos em que esteja em causa a alteração dos estatutos e a eleição de titulares dos órgãossociais – note-se que essa imperatividade quanto ao exercício do voto através decorrespondência inova não só face ao Código das Sociedades Comerciais, mastambém em relação ao regime da Lei das Sociedades por Quotas em que o artigo 36.ºsó admitia o voto por correspondência desde que não estivesse em causa a modificaçãodo pacto social ou a dissolução da sociedade. Atente-se que o Código dos ValoresMobiliários ao estabelecer uma regra de intangibilidade relativamente a duas matériasde importância central no contexto da problemática do governo societário vai, assim,mais longe do que, nomeadamente, as leis francesa e italiana na consagração do votopor correspondência24.

III. O figurino legal parece estar talhado para as assembleias gerais de accionistas.Ressalvada a questão de saber qual a resposta do Código das Sociedades Comerciaisquanto à admissibilidade do voto por correspondência – questão de que, de seguida,

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II. Não se argumente, por sinal, que o n.º 8 do artigo 384.º só regula formas deexercício do voto por accionistas presentes na assembleia geral, atendendo à previsãolegal da determinação da forma da declaração de voto praticamente emcontemporaneidade com a deliberação em causa, como pareceria resultar, nos termos doartigo 384.º, do facto de se habilitarem os sócios e o presidente da assembleia aestipularem o modo de exercício do voto. O argumento não é, com efeito, decisivo,impondo-se, face à natureza do voto por correspondência, uma interpretação restritivado n.º 8 do artigo 384.º: no caso do voto por correspondência em assembleia geral, nãopode ser admitida a estipulação dessa forma de votação depois do envio da convocatóriarespectiva22, ou seja, através de uma eventual deliberação dos sócios presentes naassembleia ou de decisão do presidente da mesma. Para mais, além da alínea d) do n.º 5do artigo 377.º, deve permitir-se a recepção, em tempo útil, das declarações de voto,bem como o esclarecimento e a reflexão do sócio que tenha decidido votar através decorrespondência.

É verdade que com o desenvolvimento da denominada “Sociedade da Informação” e,designadamente, com o advento e difusão da correspondência electrónica, os termosem que deve ser equacionada a questão da recepção “em tempo útil” do voto deve serrepensada. Isso, parece-nos, não contende todavia com o essencial do quepreconizámos nesta matéria23. Voltaremos, aliás, a esta questão quando, adiante, nosdebruçarmos sobre o regime consagrado no artigo 22.º do CdVM. Nessa altura,embora no que respeita à convocatória da assembleia o preceito mobiliário venhaconfirmar o entendimento apresentado, detectaremos a necessidade de se adaptar orespectivo regime em função do exercício do voto através de correspondênciaelectrónica.

4. Regime jurídico

4.1. Âmbito da admissibilidade do voto por correspondência

I. Nos termos do artigo 22.º do CdVM esclarece-se que nas assembleias gerais dassociedades abertas o direito de voto pode ser exercido por correspondência. Desta

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especificar as condições necessárias ao exercício do voto, o que incluía as referências à forma de exercício dovoto.

21Aliás, na esteira do entendimento maioritário a propósito do regime que precedeu o Código das SociedadesComerciais

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O que vem a ser, aliás, confirmado pela alínea a) do n.º 3 do artigo 22.º do CdVM.

23A última versão da Electronic Commerce Bill, tal como foi colocada à discussão pública em Março de 1999, incluía uma

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I. O n.º 3 do preceito do Código dos Valores Mobiliários relativo ao voto porcorrespondência estipula elementos informativos a juntar àqueles que, nos termosgerais, devem constar da convocatória da assembleia geral 28.

Na realidade, a juntar designadamente ao que já resulta dos n.os 5 e 8 do artigo 377.º,a lei vem impor a inclusão, na convocatória da assembleia geral, da indicação de que odireito de voto pode ser exercido por correspondência, bem como a descrição domodo como se processa o voto por correspondência. No que respeita ao segundoaspecto, a alínea b) do n.º 3 do artigo 22.º do CdVM enuncia o endereço e o prazopara a recepção das declarações de voto emitidas por correspondência.

II. Sem embargo de adiante esmiuçarmos os termos da recepção dos votos porcorrespondência em articulação com os deveres previstos no n.º 4 do artigo 22.º doCdVM, pensamos que a lei societária permite densificar o regime relativo ao prazopara a recepção das declarações de voto por correspondência.

Assim, preconizamos a aplicação analógica do n.º 4 do artigo 247.º, na parte em quenão se permite a fixação de prazo inferior a dez dias a contar da publicação daconvocatória. A identidade natural – sem implicar é certo, como já referimos, asinonímia – entre a forma de deliberação por voto escrito e o exercício do voto porcorrespondência justifica a atendibilidade desta regra, já que permite,nomeadamente, acautelar cerceamentos à participação efectiva dos sócios querecorram ao voto por correspondência, através da estipulação de prazos muito curtospara a remessa dos votos. Para mais, o cotejo desta solução com os prazos previstos nosartigos 375.º e 378.º não levanta qualquer problema, evidenciando, pelo contrário, arazoabilidade do que deixamos proposto.

4.3. Alteração da ordem de trabalhos da assembleia geral

I. Contrariamente ao que acontece por exemplo na representação de accionistas, emque pode existir alguma margem de manobra do representante na conformação dosentido de voto durante a realização da assembleia geral29, já no caso de voto porcorrespondência o respectivo sentido de voto quanto à proposta de deliberação éexteriorizado de forma imutável antes da efectivação da deliberação, não sendoconcebível, salvaguardados casos de voto por correspondência electrónica que a seguirmencionaremos, que o voto por correspondência seja “actualizado” no momento dadeliberação propriamente dita face ao circunstancialismo (imprevisto) verificado no

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daremos breve nota – importa questionar se o voto por correspondência deveconsiderar-se admitido nas assembleias de obrigacionistas.

Pensando especificamente numa sociedade aberta, assim qualificada em virtude,nomeadamente, da emissão de obrigações que confiram direito à subscrição ou àaquisição de acções25, a resposta, não obstante a letra do artigo 22.º que refere apenas ovocábulo “assembleia geral”, deve ser afirmativa, desde logo, atenta a inexistência deinteresses em contrário dos credores ou do emitente e a comummente aceiteparadigmaticidade da disciplina das assembleias gerais de accionistas face a outros tiposde assembleias previstas na lei societária26. Note-se que mesmo para quem não aceite ovoto por correspondência à luz do Código das Sociedades Comerciais é difícil sustentarque uma sociedade aberta – assim qualificada em virtude, por exemplo, dopreenchimento da alínea c) do n.º 1 do artigo 13.º do CdVM – não esteja sujeita, paraefeitos da assembleia geral de accionistas, à disciplina dos artigos 21.º e ss. do CdVM. Éque a qualidade de sociedade aberta, quando resultante de emissão de obrigações nostermos do artigo 13.º do CdVM, não pode deixar de ter reflexos sobre a reunião magnados accionistas em que, recorde-se, podem estar em causa deliberações que versamsobre assuntos com relevância para os investidores obrigacionistas, bem como vice-versa.

A qualificação de sociedade aberta implica, assim, assumir a existência de uma culturade mercado e de protecção dos investidores que não pode ser perspectivada de formacompartimentada e meramente interna à sociedade, contrapondo artificialmente na leisocietária accionistas e obrigacionistas (cf., a propósito, os artigos 355.º e 389.º)27.

4.2. Informação na convocatória

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alteração à company law britânica no sentido de arredar qualquer dúvida em torno da possibilidade dos estatutos dassociedades comerciais britânicas admitirem o voto por correspondência electrónica (cf. Governance, n.º 68, Junho de1999, p. 3).

24Cf., com efeito, o supra mencionado Decreto de 24 de Fevereiro de 1998, n.º 58, e conexa regulamentação daCONSOB que remete para a esfera da autonomia da vontade a permissão estatutária do voto porcorrespondência, sem ressalva de qualquer tipo de matérias.

25Alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 13.º do CdVM.

26Cf., a propósito, os artigos 355.º e 389.º.

27Este juízo de concordância quanto à admissibilidade do voto por correspondência nas assembleias deobrigacionistas deve ser articulado com a necessidade de se adaptar o regime: veja-se, por exemplo,

contrariamente à argumentação adiante expendida em torno do n.º 2 do artigo 380.º, para efeitos daverificação da autenticidade do voto, a solução acolhida pelo n.º 10 do artigo 355.º, que a admitir-se o voto

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votantes por correspondência perante o circunstancialismo que envolva a votação emassembleia geral somos coerentes com a assunção, por quem recorra ao voto porcorrespondência, dos riscos inerentes à utilização desta forma de exercício do voto33.

O estabelecimento do thema deliberandum ganha, assim, para efeitos do exercício porcorrespondência do direito de voto, uma relevância que vai para além da natureza de“mero acto de iniciação do processo deliberativo”, aproximando-se dos contornos de“estrutura da deliberação” tal como é configurada para a deliberação por voto escrito.

4.4. Condicionamento do voto

I. Estas considerações vêm corroborar a constatação de que quem vota porcorrespondência autolimita a amplitude do esclarecimento da sua decisão quanto aosentido de voto que pretende ver expresso no momento da deliberação34.

Com efeito, a participação não presencial, materializada no voto por correspondência,implica, para o sócio que tenha optado por esse modo de exercício do voto, o riscojurídico de existir divergência entre a sua declaração de voto e a sua vontade presumívelnum contexto de esclarecimento presencial na assembleia, designadamente, face àalteração das circunstâncias que fundaram a declaração expressa no voto porcorrespondência e que só são conhecidas no decurso do plenário dos sócios. No limite,isso passa-se, afinal, com todas as formas de exercício diferido, ou indirecto, dosdireitos (v.g. por representação), em que se aceita que a declaração de exercício dosmesmos (maxime, o voto) seja dissonante em relação à vontade que teria sidoexteriorizada, actualizadamente, face às circunstâncias conhecidas no momento dadeliberação35. Contudo, note-se que no que respeita especificamente ao voto porcorrespondência, desde logo no cotejo com a representação, não é possível sequer

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decurso da assembleia geral.

Este facto, dobrado desde logo por razões de ordem logística, suscita a questão de saberem que termos é que opera o voto por correspondência quando sejam aditados novosassuntos à ordem do dia da assembleia geral ou em que se altere a proposta concretasujeita à votação. Pensamos, a propósito, que a declaração de voto, embora relevandopara efeitos de quorum constitutivo da assembleia, foi emitida tendo por base os assuntosreferenciados na convocatória, não valendo, assim, relativamente a outras matérias30.

Entre saber se o voto por correspondência deve ser considerado nesses casos comorejeição ou como abstenção em relação à proposta, socorremo-nos analogicamente don.º 5 do artigo 247.º (caso em que, como já tivemos oportunidade de salientar, estáem causa o necessário exercício do voto por correspondência). Assenta-se, dessa forma,na rejeição da modificação da proposta31. Julgamos, com efeito, que esta analogia deestatuição satisfaz melhor os interesses dos sócios votantes por correspondência, atentoo risco de manipulação do universo dos votos por correspondência num sentidofavorável ao daqueles que propõem a modificação da ordem do dia ou da própriaproposta de votação. Nem se argumente com a rigidificação inerente a esta solução, jáque além de mecanismos de salvaguarda dos sócios presentes na assembleia, como asuspensão da sessão (artigo 387.º), é possível aduzirem-se disposições legais de pendorrestritivo face à revisão da ordem do dia da assembleia, designadamente o artigo 378.º.

II. Entre estes dois pólos, que implicam, por um lado, no caso da fundamentação daabstenção, uma maior instrumentalização do voto por correspondência em relação àparticipação presencial dos restantes sócios32 e, por outro lado, no caso de se sustentarque a admissibilidade do voto por correspondência nos termos carreados no texto,alerta para o risco de se estar a incentivar o desvio entre a vontade expressa através dovoto por correspondência e a vontade presumível do sócio, pensamos ter propugnadopela solução mais equilibrada: acautelando o interesse do (silencioso) universo de

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por correspondência nas assembleias de obrigacionistas parece impor o reconhecimento notarial doobrigacionista que tenha expresso por correspondência o seu voto.

28Que, recorde-se, deve ser enviada à CMVM e à entidade gestora da bolsa onde os valores mobiliários estãoadmitidos à negociação, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 249.º do CdVM (vide ainda, conexamente,a alínea a) do n.º 1 do artigo 249.º do CdVM).

29Veja-se, além, do regime da representação na lei civil, a previsão in fine da alínea c) do n.º 1 do artigo 381.º.

30Repare-se que esta questão da modificação da ordem do dia nem sempre segue o regime relativamenterestritivo e cauteloso do artigo 378.º. Excepcionalmente, a lei admite desvios a esse regime, designadamentenos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 376.º no que respeita à destituição de administradores oudirectores.

31Foi outra a opção da regulamentação da CONSOB, maxime do n.º 2 do artigo 77.º do Regulamenton.º 11520/98, em que se prescreve a abstenção para este tipo de casos.

32Desde logo, ex vi do n.º 1 do artigo 386.º quando se estipula que as abstenções não contam para a maioria.

33Para uma perspectiva tradicional da fixação do thema deliberandum, numa envolvente de rejeição do voto porcorrespondência, cf. JORGE PINTO FURTADO, ob. cit., pp. 92-95. Assim também em Espanha, JOSÉOTERO LASTRES, “Acerca de la junta general de accionistas de la S.A.”, in Estudios sobre la sociedad anonima(coord. Victor Garrido de Palma), II, 1993, maxime pp. 64 e ss..

34Esta questão não deve ser confundida com outro tipo de vicissitudes da deliberação social que não passam pelaalteração da ordem do dia ou alteração da proposta levada à votação. Veja-se, a propósito, a aprovação da actada reunião da assembleia geral, nos termos do n.º 3 do artigo 388.º, caso em que nos inclinamos para

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o prejuízo do sócio votante por correspondência, nem muito menos dos sóciospresentes na assembleia geral que têm sempre a possibilidade de in loco ajuizarem dascircunstâncias subjacentes à realidade objecto da votação em causa38.

4.5. Autenticidade e confidencialidade do voto

I. Tal como a lei configura o voto por correspondência nas sociedades abertas, estaspassam a ter de estar preparadas para, pelo menos nas situações previstas no n.º 2 doartigo 22.º do CdVM, gerirem a recepção das declarações de voto enviadas porcorrespondência, designadamente, no respeito pelo n.º 4 do artigo 22.º do CdVM.

A sociedade aberta está adstrita a verificar a autenticidade do voto e a assegurar, até aomomento da votação, a respectiva confidencialidade. Estes deveres impõem,naturalmente, ajustamentos de ordem logística nas rotinas que antecedem a realizaçãoda assembleia geral, suscitando, em caso de incumprimento por parte da sociedade, aaplicação das regras gerais da responsabilidade civil por factos ilícitos39, bem como datutela contra-ordenacional prevista na alínea c) do n.º 2 do artigo 390.º do Códigodos Valores Mobiliários40.

II. A verificação da autenticidade do voto não levanta problemas que não possam serresolvidos pelas regras gerais da prova documental41, devendo entender-se,designadamente, que não é exigido o reconhecimento notarial da assinatura dadeclaração de voto, desde logo se atendermos a que basta uma carta com assinaturacomo instrumento de representação voluntária (n.º 2 do artigo 380.º), sendo pois

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“actualizar” a declaração de vontade, designadamente, através de soluções como a queresulta da alínea c) do n.º 1 do artigo 381.º.

II. Nada impede, por fim, que o sócio que aceite votar por correspondência estabeleçadiversos sentidos de voto hipotéticos conforme as circunstâncias passíveis de verificação,estipulando, nomeadamente, instruções quanto ao mesmo, ou condicionando o seuvoto a determinados pressupostos36. Desta forma, salvaguardada a imprescindívelclareza e inteligibilidade da declaração, o sócio atenuaria o risco de o seu voto exprimiruma vontade dissonante daquela que resultaria da sua presença em assembleia geral.

Consideramos, assim, que não é de aplicar, quanto à questão específica docondicionamento do voto, a solução do n.º 5 do artigo 247.º. Enquanto nessepreceito o condicionamento do voto é necessariamente considerado como rejeição daproposta, já no voto por correspondência nada impede que para se garantir uma maisefectiva concordância entre a vontade do sócio expressa no voto e a sua vontade queeste expressaria face a circunstâncias que só vêm a ser conhecidas no momento davotação, se admita a estipulação de instruções ou condicionantes ao exercício do votopor correspondência37. Repare-se, com efeito, que contrariamente ao quesustentámos a propósito da aplicação analógica do mesmo n.º 5 do artigo 247.º parao caso de lacuna de previsão quanto a alterações da ordem do dia, enquanto esta regraespelha o facto da deliberação ocorrer apenas através dos votos de sócios ausentes e de,portanto, se levantarem problemas quanto aos pressupostos que levaram os sócios,unanimemente, a aceitar esta forma de deliberação, já nos casos de voto porcorrespondência, nos termos do artigo 22.º, não se configura, muito pelo contrário,

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considerar que, excluindo porventura os casos de voto por correspondência electrónica, não é possível que osócio que votou por correspondência possa aprovar a acta nos termos deste preceito. A propósito da acta daassembleia geral e, por seu turno, face à possível adaptação dos procedimentos ao voto por correspondência,viden.º 3 do artigo 63.º.

35Pensando num exemplo que traduza esta eventual dissonância: na situação em que os sócios são chamados aeleger os titulares do órgão de administração, imagine-se que a pessoa escolhida pelo sócio que votou porcorrespondência para preencher esse lugar desistia momentos antes da votação; aceitando que, nos termos don.º 10 do artigo 392.º, existiam suplentes na lista do desistente, o risco de dissonância entre a vontade(presumível) e o voto podia, designadamente, materializar-se na rejeição de um candidato que, numa situaçãode participação presencial, até teria sido escolhido pelo sócio como o “melhor candidato face às novascircunstâncias”.

36Designadamente, formulando juízos do tipo “se a pessoa X da lista 1 desistir da eleição para o cargo Y, votosubsidiariamente na pessoa Z da lista 2”; “aceito a modificação estatutária Q, no pressuposto de que amodificação K só seja eficaz caso aquela seja aprovada”.

37Em lugar paralelo, atenda-se à alínea c) do n.º 1 do artigo 381.º.

38O ordenamento jurídico italiano tem vindo, naturalmente, a ser confrontado com este problema da alteraçãoda ordem do dia ou da proposta de votação no contexto da utilização do voto por correspondência. O n.º 3do artigo 77.º do já referido Regulamento da CONSOB n.º 11520/98 vem considerar que o voto porcorrespondência releva para o cômputo do quorum constitutivo da assembleia, possibilitando ainda que o sócioque vote por correspondência estipule preventivamente qual o sentido do seu voto relativamente adeterminadas alterações à proposta de deliberação que venham a surgir. Realçando este aspecto, sobretudo noconfronto com a solução oposta que constava da Lei italiana das privatizações (artigo 4.º do Decreto de 31 deMaio de 1994, n.º 332) - imposição legal da imodificabilidade do thema deliberandum tal como consta daconvocatória-cf. ELENA PAGNONI, Voto per corrispondenza, in Il Testo Único della Intermediazione Finanziaria (coord. CarlaBedogni), Milano, 1998, pp. 697-698.

39Nomeadamente, o artigo 486.º do Código Civil.

40Face ao disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 388.º do CdVM está em causa a aplicação de coima

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artigo 22.º do CdVM, cabe à sociedade implementar os procedimentos necessários aacautelar a adequada recepção dos votos enviados por correspondência, bem como oseu tratamento pela mesa da assembleia geral, designadamente em termos deceleridade, transparência e eficiência do processo47.

IV. O que fica dito quanto à articulação entre o dever de verificação da autenticidadedo voto e a ressalva da respectiva confidencialidade, não impede, naturalmente, que,desde logo por imposição estatutária, se apliquem as regras específicas respeitantes aoregisto prévio do sócio junto da sociedade para efeitos da participação na assembleiageral48, bem como, tal como resulta da alínea b) do n.º 3 do artigo 22.º do CdVM,seja estipulado um prazo limite para a recepção das declarações de voto49.

Aliás, a questão da legitimação do sócio para votar na assembleia geral precede, lógicae juridicamente, a aplicação da disciplina do voto por correspondência.Contrariamente a outros ordenamentos jurídicos, a lei nacional não estabeleceuregras específicas quanto à articulação entre a legitimação para votar e os termos emque decorre a emissão e recepção dos votos por correspondência. O silêncio da lei sóconfirma a aplicação das regras gerais nesta matéria, embora, naturalmente, não fiquevedada a hipótese de se ajustarem os procedimentos ligados com o exercício porcorrespondência do direito de voto no sentido de, nomeadamente, se permitir oenvio e apresentação (simultaneamente com a declaração de voto e eventuaisdocumentos comprovativos da identidade do sócio votante) dos certificados a que sereferem os artigos 78.º, 83.º, 104.º e 105.º, todos do CdVM50.

4.6. Voto por correspondência electrónica

I. A análise que temos vindo a fazer ao longo deste trabalho independe da natureza dosuporte dos documentos utilizados no processo de voto por correspondência. Comefeito, grande parte do que fica referido aplica-se quer a declarações de voto expressasem documentos em suporte electrónico, transmitidas, portanto, por correspondência

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suficiente a apresentação de (cópia de) documento de identificação de onde conste arespectiva assinatura do votante42.

Contudo, nada impede naturalmente que o sócio que entenda exercer porcorrespondência o seu direito de voto proceda ao reconhecimento notarial darespectiva assinatura constante da declaração de voto, prevenindo, de forma maisconsistente, eventuais medidas dilatórias avançadas por outros sócios no sentido dequestionar a autenticidade do voto, atenta uma pretensa falsidade da assinatura.

III. Para efeitos de se articular temporal e logisticamente o cumprimento dos deveresrelacionados com a autenticidade e a confidencialidade do voto43, além do lugarparalelo que pensamos poder ser apontado no que respeita aos termos em que decorrea legitimação do representante44, veja-se que não estamos perante uma novidade nocontexto das soluções da lei societária no que respeita ao exercício do direito de votode forma não presencial: referimo-nos, concretamente, ao regime da recepção dovoto escrito, tal como resulta do artigo 247.º, que pode ser faseada e em que aresponsabilidade da sociedade pela confidencialidade do sentido do voto até aomomento da tomada da deliberação45, atenta designadamente a conduta do gerente,se coloca nos termos gerais46.

Cumpre, assim, à sociedade acautelar a inviolabilidade da declaração de voto, quer naperspectiva da integridade do seu sentido, quer da sua confidencialidade. Atento orisco jurídico que sobre ela recai no que toca ao respeito pelo dever legal do n.º 4 do

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correspondente a contra-ordenação grave, cujo montante oscila entre os € 12.500 e os € 1.250.000(portanto, aproximadamente, entre 2.500 contos e 250.000 contos).

41Cf. artigos 362.º e ss. do Código Civil, em especial os artigos 373.º e 374.º.

42À luz do n.º 10 do artigo 355.º, é outra a solução para as assembleias de obrigacionistas. Como é sabido, aliás, aquestão do reconhecimento da assinatura do instrumento de representação de um accionista é matériacontrovertida na doutrina. Já não assim, no entanto, para os casos de outras participações sociais que não asacções, v.g. n.º 4 do artigo 249.º e 189.º. Realçando a perplexidade resultante da desarmonia de regimes entre asociedade anónima e os outros tipos sociais, cf. RAÚL VENTURA, Sociedades por quotas, ob. cit., pp. 210-212.Como resulta do texto, propugnamos, a propósito, a posição sustentada, designadamente, por EDUARDOVERA-CRUZ PINTO, A representação do accionista para exercício do direito do voto nas assembleias gerais das sociedades anónimas,Lisboa, 1988,p. 25. Em sentido contrário, no entanto, apontando a “evidência de uma gralha tipográfica” que omitiu a palavra“reconhecida” no n.º 2 do artigo 380.º, vide JORGE PINTO FURTADO, ob. cit., p. 205.

43E face a eventuais receios de que a lei seria permeável ao sacrifício de um dos deveres (designadamente, aconfidencialidade) perante a necessidade de se controlar previamente a autenticidade.

44Cf. n.º 2 do artigo 380.º, em que a lei permite que a autenticidade da assinatura do representado sejacontrolada apenas no momento da realização da assembleia geral.

45Ex vi do n.º 7 do artigo 247.º.

46Pensamos, com efeito, que a melhor solução em termos de transparência do processo é que os subscritosselados que contêm as declarações de voto sejam abertos apenas no decurso da assembleia geral, apurando-seos votos nos termos estipulados pelo contrato ou ex vi do n.º 8 do artigo 384.º. Desta forma, pensamos que asociedade - rectius, a mesa da assembleia geral - salvaguardar-se-ia melhor na sua posição de garante daregularidade do processo, nos termos do n.º 4 artigo 22.º do CdVM.

47É possível conceber diversos expedientes orientados a garantir a regularidade do processo: desde a estipulação daobrigatoriedade da selagem da correspondência remetida para a sociedade e/ou a necessidade da mesma revestir aforma de carta registada, à identificação das pessoas responsáveis pelo depósito das declarações de voto, passandopelo ajustamento dos procedimentos do funcionamento da assembleia geral (v.g. reforço do pessoal de apoio aos

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naturalmente, as considerações supra em torno do enquadramento societário emobiliário.

A equiparação de forma e de força probatória entre os documentos electrónicos e osdocumentos em papel deve ser articulada com a aposição de assinatura digitalcertificada por entidade credenciada, nos termos dos artigos 7.º e seguintes doDecreto-Lei n.º 290-D/9953. Com efeito, a aposição de uma assinatura digital a umdocumento electrónico ou a uma cópia deste equivale à assinatura autógrafa dosdocumentos com suporte em papel. A assinatura digital cria a presunção de que apessoa que a apôs é o titular desta (ou seu representante) e de que o documentoelectrónico não sofreu alteração desde que lhe foi aposta a assinatura digital54. A leidispõe ainda que a assinatura digital substitui, para os devidos efeitos, a aposição deselos, carimbos, marcasou outros sinais identificadores do respectivo titular. A propósito especificamenteda força probatória do documento electrónico, o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º290-D/99 equipara-o, quando aposta uma assinatura digital certificada, aodocumento assinado para efeitos do artigo 376.º do Código Civil, nomeadamente,em termos de reconhecimento notarial da assinatura.

A declaração de voto comunicada por um meio de telecomunicações considera-seenviada e recebida pelo destinatário se for transmitido para o endereço electrónicodefinido na convocatória da assembleia geral55. Na linha do aventado princípio daequiparação de suportes, o envio da declaração de voto por correspondênciaelectrónica, quando assinada digitalmente, equivale à remessa por via postal registadae, se a recepção for comprovada por mensagem de confirmação dirigida ao remetentepelo destinatário com assinatura digital e por aquele recebida, considerar-se-áequivalente à remessa por via postal registada com aviso de recepção56.

III. Nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 22.º do CdVM, na parte relativa à

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electrónica, quer ao voto expresso em documento em suporte em papel. Além deapresentar as traves mestras do regime jurídico relativo à utilização de documentoselectrónicos, pretende-se, de seguida, destacar algumas das especificidades que secolocam a propósito da utilização do primeiro tipo de documentos no contexto dovoto por correspondência.

Se até há algum tempo a questão da utilização de meios telemáticos no processo deformação da vontade colectiva das sociedades era remetida para o universo dasextravagâncias e utopias relacionadas com a Sociedade da Informação, actualmente, alémdo incremento da difusão e utilização de meios de comunicação desta natureza, bemcomo o reconhecimento das vantagens a eles associadas, existe já enquadramentojurídico nacional para estas matérias o que implica, incontornavelmente, a ponderaçãodas consequências da utilização de documentos electrónicos.

II. A este propósito, e pensando agora no voto por correspondência electrónica,ressaltam duas fontes normativas: por um lado, o Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 deAgosto, que aprova o regime jurídico dos documentos electrónicos e da assinaturadigital51 e, por outro lado, o artigo 4.º do Código dos Valores Mobiliários52.

Ainda que o artigo 4.º do Código dos Valores Mobiliários venha estipular aequivalência de suportes, impondo concomitantemente a verificação dos respectivosníveis de inteligibilidade, de durabilidade e de autenticidade, é ao Decreto-Lein.º 290-D/99 que devemos recorrer em primeira linha para captarmos o regimejurídico aplicável ao voto por correspondência electrónica, pressupostas,

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trabalhos da mesa da assembleia caso se opte por apurar os votos por correspondência no decurso da assembleia),já para não falar na elaboração de boletim de voto padrão para estas situações (identificação do sócio,discriminação da quantidade de acções/votos, etc.). Embora omisso em relação a estas questões, diríamos,operacionais, o Regulamento da CONSOB n.º 11520/98 estipula que cabe, até ao início da votação, aopresidente da mesa da assembleia geral a custódia dos votos enviados por correspondência (n.º 2 do artigo 76.º).

48Cf. GUSTAVO MINERVINI, “La dematerializzazione delle azioni quotate e l’esercizio dei diritti sociali”, inGiurisprudenza commerciale, 26.6. (Novembro-Dezembro, 1999), pp. 647 e ss..

49Coteje-se, nomeadamente, a alínea d) do n.º 5 do artigo 377.º.

50Nesse aspecto, o citado Regulamento da CONSOB (artigo 74.º), em articulação com o artigo n.º 4 do artigo85.º do Testo Unico), refere expressamente a possibibilidade de se juntar à declaração de voto enviada porcorrespondência o certificado comprovativo da legitimidade para exercer os direitos inerentes aos valoresmobiliários, nomeadamente o direito de voto.

51Nos termos do artigo 38.º desse diploma, é necessário ainda aguardar pela respectiva regulamentação,nomeadamente no que respeita a normas de carácter técnico e de segurança, bem como, ex vi do artigo 40.º, adesignação da autoridade credenciadora das autoridades certificadoras (vide definições no artigo 2.º do citado

Decreto-Lei).

52A nossa ordem jurídica é, aliás, uma das mais bem apetrechadas com instrumentos jurídicos orientados aenfrentar com sucesso os desafios colocados pela Sociedade da Informação. Depois da apresentação da IniciativaNacional para a Sociedade da Informação em ligação com a publicação do Livro Verde para a Sociedade da Informação,bem como do desenvolvimento daquela Iniciativa através da aprovação do respectivo Documento Orientador pelaResolução do Conselho de Ministros n.º 94/99, de 25 de Agosto, surgiram dois diplomas importantes nestecontexto: além do já referido Decreto-Lei n.º 290-D/99, veja-se o Decreto-Lei n.º 375/99, de 18 de Setembro,relativo ao reconhecimento da factura electrónica. Enquanto isso, por outro lado, arrastam-se os trabalhos, aonível das instituições comunitárias, em torno da aprovação de diversas Directivas com relevância para estas áreas,nomeadamente, as que respeitam ao comércio electrónico no mercado interno. De qualquer modo, na parte doquadro geral comunitário para as assinaturas electrónicas foi, entretanto, publicada a Directiva nº 1999/93/CEdo Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Dezembro de 1999. Neste contexto, o Código dos ValoresMobiliários não é imune à necessidade de se disciplinar a crescente utilização de outros suportes que não o papel,

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formas, mais aperfeiçoadas, de estímulo à participação do sócio na vida da sociedadesem, simultaneamente, se sacrificar a actualidade e completude da informação que devesuportar a decisão sobre o sentido de voto. Os artigos 22.º e 4.º do CdVM permitem,por isso, actualizar a reflexão tradicional em torno do voto por correspondência emsuporte em papel, acomodando as especificidades e vantagens resultantes da utilizaçãode documentos electrónicos, designadamente a celeridade e interoperatividadeinerente aos meios de comunicação telemáticos. Está em causa, afinal, uma diferentedensificação da noção de participação presencial dos sócios nas assembleias gerais.

4.7. Princípio da equiparação. Outros aspectos relevantes do regime jurídico

I. Face ao exposto, é possível rematar com uma referência ao princípio da equiparaçãoentre o tratamento jurídico do voto por correspondência e as soluções da leisocietária no que respeita, designadamente, às deliberações sociais.

Com efeito, embora naturalmente atendendo às especificidades traduzidas nospreceitos mobiliários e impostas pela natureza das coisas, não podemos deixar deconsiderar, quer por analogia, quer por interpretação das normas, que a disciplina dovoto por correspondência tem as suas traves mestras no direito societário. Sópontualmente, e muito porque nos referimos a sociedades abertas, por um lado, e aum modo de exercício do voto que contende em certos pontos com os meiostradicionais da formação da vontade social, por outro, é que tivemos necessidade deadaptar disposições legais face ao voto por correspondência.

II. Em jeito de notas de regime jurídico e com o objectivo de confirmar essaequiparação de soluções normativas, referenciamos, de seguida, alguns aspectos

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estipulação de um prazo para a recepção das declarações de voto por correspondência,pensamos que nada obsta a que esses prazos sejam distintos para diferentes tipos decorrespondência. Nomeadamente, se é certo que faz sentido que o voto porcorrespondência tal como tem vindo a ser tradicionalmente concebido – ou seja, emsuporte em papel – implique que, para efeitos do controlo da respectiva autenticidade eregularidade, os documentos relevantes sejam recebidos com antecedência em relação àvotação propriamente dita, já quanto à correspondência electrónica, verificados ospressupostos jurídicos e operacionais vertidos no Decreto-Lei n.º 290-D/99, nadaimpede que a declaração electrónica de voto do sócio legitimado para votar apenas sejarecebida pelamesamomentos antes da votação57.

IV. A propósito do voto por correspondência, é possível configurar formas departicipação do sócio nos trabalhos da assembleia geral que ficam a meio caminhoentre o tradicional voto por correspondência e a participação presencialpropriamente dita. Assim, com o acolhimento pela lei de mecanismos de validação daidentidade dos sujeitos e do conteúdo das mensagens enviadas através de meios decomunicação electrónicos (v.g. a assinatura digital e vários métodos de certificação), éconcebível que, através de meios de comunicação à distância, como tele evideoconferências e sistemas análogos, o sócio acompanhe os trabalhos em tempo real,de forma afinal presencial, mas em que a respectiva declaração de voto é enviada erecebida através de meios de correspondência electrónica58.

A confirmação, designadamente pela mesa da assembleia geral, desses dados relevantes parao processo de formação da vontade, continua a ter de ser ponderada à luz do que referimosa propósito das soluções de direito positivo no que toca aos documentos e às assinaturaselectrónicas. Naturalmente, o risco jurídico – de que falávamos anteriormente a propósitodo circunstancialismo que esteve subjacente à convocatória e à original proposta dedeliberação – desaparece nestes casos, em que o modo de exercício do voto à distânciapermite superar alguns dos inconvenientes associados ao tradicional voto porcorrespondência, bem como do que seja, para esse efeito, a forma escrita porcorrespondência.

É patente, por isso, que o figurino tradicional do voto por correspondência – exercícionão presencial e, portanto, à distância, do direito social – pode conviver com outras

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consagrando, designadamente, o princípio da equivalência de suportes no respectivo artigo 4.º.

53A assinatura digital é uma modalidade de assinatura electrónica que consiste num meio de autenticação dedocumentos electrónicos baseado num sistema criptográfico de par de chaves assimétricas, pelo qual osubscritor usa a chave privada para assumir a autoria do documento e o destinatário usa a chave pública paraverificar a autoria e a integridade do documento (cf., a propósito, alínea c) do artigo 2.º do Decreto-Lein.º 290-D/99). Para uma resenha sobre os problemas que se colocam em torno da adopção da assinaturadigital, vide MARIA SÁNCHEZ MIGUEL, “Normas comunitarias para el establecimiento de un marco común

para la firma electrónica”, in Revista de Derecho Bancario y Bursatil, (Outubro-Dezembro), 1998, pp. 1189 e ss..

54Cf. artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 290-D/99.

55Conforme o disposto no n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 290-D/99. O n.º 2 deste preceito admiteainda a oponibilidade entre as partes e a terceiros a data e a hora da criação, da expedição ou da recepção deum documento electrónico que contenha uma validação cronológica emitida por uma entidade certificadora.

56Cf. n.º 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 290-D/99.

57Note-se que, desde logo, para efeitos de quorum constitutivo e de verificação da legitimidade para votar (maxime,além da questão da titularidade do direito, vide também a questão dos impedimentos de voto) é, no entanto,necessário que se identifiquem os sócios presentes ou representados na assembleia geral.

58Avançando com o exemplo da teleconferência como alternativa ao voto por correspondência, de modo a

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correspondência nos casos de representação necessária, designadamente, decontitulares da participação social (artigo 303.º) e de incapazes, bem como deaccionistas nos termos do direito de agrupamento (n.º 5 do artigo 379.º).

c) Finalmente, outro aspecto a ter em conta quando procedemos à equiparação econexão entre os regimes jurídicos constantes do artigo 22.º do CdVM e doCódigo das Sociedades Comerciais é o da valia, no âmbito mobiliário, dosprincípios conformadores do exercício do direito de voto consagrados na leisocietária. Documentando a plena aplicabilidade desses vectores normativos,veja-se, nomeadamente:

(i) os impedimentos de voto previstos na lei e no contrato de sociedade paraefeitos da inibição do sócio que pretenda votar por correspondência (n.os 4 e 6do artigo 384.º)64;

(ii) a subsistência do direito de agrupamento nos termos do n.º 5 do artigo379.º nos casos de voto por correspondência65;

(iii) a necessidade de se respeitar a unidade do voto do sócio que, dispondo dediversos votos, decida exercer por correspondência o seu direito de voto (artigo385.º);

(iv) a validade do voto expresso por correspondência para a assembleia geral emcausa quer ela se efectue em primeira, quer em segunda convocação, emconsonância, aliás, com o afloramento do princípio geral na alínea a) do n.º 1do artigo 381.º66;

(v) a impugnabilidade das deliberações sociais nos termos gerais do Código dasSociedades Comerciais em que ocorra o exercício por correspondência dodireito de voto, designadamente, atenta a disciplina do artigo 58.º em que se

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relevantes surpreendidos no âmbito do regime do direito de voto porcorrespondência.

a) Na esteira do que está disposto para a representação de accionista59, deveconsiderar-se que a presença, na assembleia, do sócio que votou porcorrespondência implica a revogação do voto emitido, na medida em que a mesa daassembleia tenha conhecimento atempado dessa presença, ou seja, previamente àvotação propriamente dita do assunto objecto do voto por correspondência60. Alista de presenças prevista no artigo 382.º e a verificação da autenticidade do voto(n.º 4 do artigo 22.º do CdVM) permitem acautelar eventuais tentativas dedefraudar a regular formação da vontade colectiva, em termos que não se afastamem nada, aliás, do que hoje já acontece, nomeadamente, para os casos derepresentação de accionistas61.

b) No que respeita ao instituto da representação cotejado com o voto porcorrespondência não se configuram problemas de compatibilização entre asduas figuras. Com efeito, pensando mais uma vez no regime paralelo decorrenteda deliberação por voto escrito, não se deve atender, para efeitos de voto porcorrespondência, à proibição do n.º 1 do artigo 249.º relativamente àrepresentação voluntária aos casos previstos no artigo 247.º, em que o legisladorterá considerado desnecessária a representação do sócio nessa forma dedeliberação62. Não parece legítimo, face ao disposto na lei, perspectivar oexercício do voto por correspondência como um sucedâneo da representaçãopara votar em assembleia geral63, não se vislumbrando motivos para cercear odireito à participação social na vertente da representação de accionistas (artigos380.º e 381.º). Estranho seria, aliás, que não se permitisse o voto por

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salvaguardar assim a natureza colegial da deliberação social, cf. GAUDENCIO ESTEBAN VELASCO, apudCARMEN LEDESMA, ob. cit., p. 653.

59Cf. alínea b) do n.º 1 do artigo 381.º.

60Com interesse, mas sem podermos desenvolver as consequências dessa posição para efeitos da aplicação àdeclaração de voto dos artigos 217.º e ss. do Código Civil, vide a propósito da qualificação da emissão do votocomo declaração de vontade receptícia (aparentemente ao presidente da assembleia) EDUARDO LUCAS COELHO, Aformação..., ob. cit., pp. 166 e ss.. Como é bom de ver face ao que sustentamos no texto, consideramos, noentanto, inaplicável, desde logo, a regra da irrevogabilidade da proposta para efeitos de uma pretensa “negocia-bilidade” da deliberação social.

61Designadamente, no que respeita aos casos de solicitação de procuração para representação (proxies, na divulgadaterminologia anglo-saxónica), em que, podendo estar em causa a emissão de um considerável número de votos, éexigido à mesa da assembleia geral que controle a possibilidade de duplicação de votos entre aqueles que resultamdas “carteiras de instrumentos de representação” e a presença de accionistas representados na assembleia geral. Aregulamentação da CONSOB acolhe, por seu turno, uma solução mais restritiva quanto ao momento até ao qualpode ocorrer a revogação do voto, estipulando-se que a mesma só pode operar até ao dia precedente da

assembleia geral em causa (n.º 4 do artigo 75.º do Regulamento da CONSOB n.º 11520/98).

62O que nem sem sempre será verdadeiro (v.g. de doença do sócio em causa). Seguimos de perto, porconseguinte, as considerações tecidas a propósito por RAÚL VENTURA, Sociedades por Quotas, Coimbra, 1989,pp. 207-208, designadamente quando o ilustre Professor advoga que o representante, não podendo emitir ovoto por escrito nos termos do n.º 1 do artigo 249.º, pode responder – necessariamente por escrito – àconsulta prevista no artigo 247.º. Esta interpretação hábil do n.º 1 do artigo 249.º, bem como as reticênciasaventadas quanto à ratio subjacente à proibição da representação voluntária na deliberação por voto escritoparecem indiciar algumas reservas do Autor relativamente à bondade da restrição legal.

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IV. Síntese

1) O absentismo dos accionistas nas assembleias gerais das sociedades anónimas é umdos principais problemas versados na actual reflexão sobre o governo societário. Nocontexto da globalização dos mercados, o voto por correspondência surge como umadas possíveis medidas vocacionadas para estimular o exercício do direito de voto e,dessa forma, robustecer os mecanismos de controlo intra-societário.

2) A pessoalidade inerente ao exercício do direito de voto não deve ser confundidacom a respectiva presencialidade. O Código das Sociedades Comerciais, na linha doque era comummente admitido na vigência do Direito societário anterior, não proíbeo voto por correspondência. O princípio da autonomia da vontade, concretizadodesignadamente no n.º 8 do artigo 384.º do Código das Sociedades Comerciais, éconfirmado pelo artigo 22.º do Código dos Valores Mobiliários.

3) A forma de deliberação não se confunde com a forma de exteriorização da vontadedo sócio através do voto. A invocação da tipicidade das formas de deliberação nãopermite fundar uma pretensa inadmissibilidade do direito de voto porcorrespondência. A forma de exercício do voto é matéria eminentemente estatutária,ressalvadas naturalmente as regras dispositivas aplicáveis. Assim, no caso do voto porcorrespondência numa assembleia geral, a proibição da estipulação dessa forma devotação depois do envio da convocatória.

4) A deliberação por voto escrito implica que os sócios votem necessariamente porcorrespondência o que justifica a resolução de diversos problemas suscitados noâmbito do voto por correspondência em assembleia geral através da analogia com oartigo 247.º do Código das Sociedades Comerciais.

5) Nas sociedades abertas, o silêncio do contrato social relativamente à possibilidadede se votar por correspondência implica, à luz do n.º 1 do artigo 22.º do Código dosValores Mobiliários, o respectivo consentimento. Trata-se de uma solução inovadora,mesmo para quem já admitia o voto por correspondência com base no Código dasSociedades Comerciais. A lei mobiliária nacional, ao estipular a imperatividade daadmissibilidade do direito de voto para determinadas matérias (alterações estatutáriase eleição de titulares de órgãos sociais), além de contrariar a solução acolhida na leisocietária anterior ao Código das Sociedades Comerciais, vai mais longe que ordensjurídicas estrangeiras que já acolhiam o voto por correspondência (nomeadamente,França e Itália).

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deve considerar aplicável a prova de resistência da alínea b) do n.º 1 daquelepreceito a todos os casos de vícios na declaração de voto67, bem como assimetriasno acesso à informação relevante para efeitos da assembleia geral.

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6) Admite-se o voto por correspondência nas assembleias de obrigacionistas.

7) Preconiza-se a aplicação analógica do n.º 4 do artigo 247.º do Código dasSociedades Comerciais, no que respeita ao prazo para recepção das declarações devoto por correspondência.

8) No caso em que sejam aditados novos assuntos à ordem do dia da assembleia geralou em que se altere a proposta concreta sujeita à votação, o voto por correspondênciadeve ser valorado num sentido negativo face a essas matérias. Propugna-se a aplicaçãoanalógica do n.º 5 do artigo 247.º do Código das Sociedades Comerciais. Nessescasos, o voto por correspondência releva, nos termos gerais, para efeitos deponderação do quorum constitutivo da assembleia. O thema deliberandum extravasa, apropósito do voto por correspondência, a tradicional função de “mero acto deiniciação do processo deliberativo”, aproximando-se dos contornos de “estrutura dadeliberação”, tal como é configurado para a deliberação por voto escrito.

9) O voto por correspondência comporta o risco jurídico de se verificar umadivergência entre a declaração de voto e a vontade presumível do sócio num contextode esclarecimento presencial na assembleia geral, designadamente, face à alteração dascircunstâncias que fundaram a declaração expressa no voto por correspondência e quesó são conhecidas no decurso dos trabalhos do plenário dos sócios. Admite-se que osócio que vota por correspondência possa estipular instruções de sentido de voto, bemcomo condicionar o seu voto a determinados pressupostos de facto. Salvaguardada aclareza e a inteligibilidade da declaração de voto, trata-se de matéria de interpretaçãoda vontade.

10) O cumprimento dos deveres de verificação da autenticidade e daconfidencialidade do voto por correspondência impõe ajustamentos às rotinas queantecedem a realização da assembleia geral, os quais podem ser resolvidos pelas regrasgerais da prova documental. Não é necessário o reconhecimento notarial da assinaturado sócio que vote por correspondência. A questão da legitimação do sócio para votarna assembleia geral precede logicamente a aplicação da disciplina do voto porcorrespondência. As duas realidades não contendem entre si, vigorando as disposiçõeslegais e estatutárias aplicáveis, designadamente, no que respeita à apresentação decertificados de legitimação para o exercício dos direitos inerentes às acções.

11) A prática societária não se pode alhear da equiparação entre suportes propugnada

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