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ARTIGOS ____________________ cadernos pagu (4) 1995: pp. 219-242. IMAGENS DA CONDIÇÃO FEMININA EM "TRAVELS IN BRASIL" DE HENRY KOSTER Izabel Andrade Marson * Travels in Brazil 1 , livro do inglês Henry Koster, foi publicado em 1816 como relato de um viajante que se refugiava em Pernambuco por motivos de saúde. 2 A obra está dividida em duas partes: um Diário das estadias de Koster no Brasil e reflexões sobre a sociedade das Capitanias do norte. O Diário relata as duas passagens do autor pela região. Na primeira - dezembro de 1809 a abril de 1811 - percorreu as principais vilas da zona da Mata de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande; a rota que ligava as fazendas de gado do Sertão Cearense ao porto de Recife e as vilas do litoral do Ceará e o porto São Luís do Maranhão. Na segunda - dezembro de 1811 a princípios de 1815 - estabeleceu-se em Pernambuco primeiramente como senhor e depois como lavrador de engenho. O livro reuniu as anotações de Koster complementadas com uma pesquisa feita na biblioteca do historiador Robert Southey 3 e devidamente organizadas em capítulos. A segunda parte da obra é constituída por seis capítulos conclusivos e um Apêndice. Neles Koster apresentou reflexões sobre a agricultura, a sociedade, a escravidão e uma * Professora do Departamento de História IFCH - UNICAMP. 1 KOSTER, Henry: Viagens ao Nordeste do Brasil. Tradução e notas de Luiz da Câmara Cascudo. 2 a ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1942. A primeira edição brasileira foi publicada pela Revista do Instituto Arqueológico Pernambucano desde o n o 51 (1898) até o 147- 150, vol. relativo a 1931 e não foi reunida em livro. 2 Luiz da Câmara Cascudo relata em seu prefácio que Koster viera viver em Pernambuco "se defendendo da tuberculose". Comenta também que, possivelmente era filho de negociantes ingleses estabelecidos em Portugal, país onde nasceu, mas que teria deixado ainda jovem para estabelecer-se na Inglaterra. KOSTER, H: op. cit., p. 11. 3 O Diário abrange os primeiros quinze capítulos da obra que foi dedicada a Southey, amigo de Koster. A pesquisa permitiu ao autor a confecção de importantes notas de rodapé.

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ARTIGOS____________________

cadernos pagu (4) 1995: pp. 219-242.

IMAGENS DA CONDIÇÃO FEMININA EM"TRAVELS IN BRASIL" DE HENRY KOSTER

Izabel Andrade Marson*

Travels in Brazil1, livro do inglês Henry Koster, foipublicado em 1816 como relato de um viajante que se refugiavaem Pernambuco por motivos de saúde.2 A obra está dividida emduas partes: um Diário das estadias de Koster no Brasil ereflexões sobre a sociedade das Capitanias do norte. O Diáriorelata as duas passagens do autor pela região. Na primeira -dezembro de 1809 a abril de 1811 - percorreu as principais vilasda zona da Mata de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande; a rotaque ligava as fazendas de gado do Sertão Cearense ao porto deRecife e as vilas do litoral do Ceará e o porto São Luís doMaranhão. Na segunda - dezembro de 1811 a princípios de 1815- estabeleceu-se em Pernambuco primeiramente como senhor edepois como lavrador de engenho. O livro reuniu as anotações deKoster complementadas com uma pesquisa feita na biblioteca dohistoriador Robert Southey3 e devidamente organizadas emcapítulos. A segunda parte da obra é constituída por seiscapítulos conclusivos e um Apêndice. Neles Koster apresentoureflexões sobre a agricultura, a sociedade, a escravidão e uma * Professora do Departamento de História IFCH - UNICAMP.1 KOSTER, Henry: Viagens ao Nordeste do Brasil. Tradução e notas de Luiz da CâmaraCascudo. 2a ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1942. A primeira edição brasileira foipublicada pela Revista do Instituto Arqueológico Pernambucano desde o no 51 (1898) até o 147-150, vol. relativo a 1931 e não foi reunida em livro.2 Luiz da Câmara Cascudo relata em seu prefácio que Koster viera viver em Pernambuco "sedefendendo da tuberculose". Comenta também que, possivelmente era filho de negociantes inglesesestabelecidos em Portugal, país onde nasceu, mas que teria deixado ainda jovem para estabelecer-sena Inglaterra. KOSTER, H: op. cit., p. 11.3 O Diário abrange os primeiros quinze capítulos da obra que foi dedicada a Southey, amigo deKoster. A pesquisa permitiu ao autor a confecção de importantes notas de rodapé.

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avaliação de questões que emergiam com a vigência dosTratados de Amizade, Aliança e Comercio assinados a 19 defevereiro de 1810 entre as Coroas da Grã-Bretanha e Portugal. OApêndice inclui a tradução de dois estudos sobre plantas daregião escritos pelo Dr. Manoel Arruda Câmara, os quais foramresumidos e traduzidos para o inglês por Koster.4

O sucesso do texto na Europa e nos Estados Unidos podeser percebido pelo número de edições que se seguiram: três em1817 - a segunda inglesa, a primeira americana (em Filadélfia) e aprimeira alemã (em Weimar); uma em 1818 - a primeira ediçãofrancesa; uma em 1831 - a segunda alemã; e uma em 1846, asegunda francesa. Tal interesse pelo livro suscita uma indagação:quais razões poderiam estar na origem deste sucesso?

A curiosidade dos Europeus sobre o Brasil pode ter sidoo motivo mais imediato, pois, o momento da confecção da obra(1810-1815), assim como sua própria existência testemunha aabertura da colônia portuguesa aos estrangeiros. Além disso,poderia atender a outros interesses. A descrição minuciosa queacentuou as peculiaridades de terra e de seus habitantes, podiaagradar aos aficcionados dos relatos de viagens, um gênero deliteratura que vinha se ampliando desde meados do século XVIII.Por outro lado, as também detalhadas informações sobre aspotencialidades econômicas e naturais da região, assim como asdificuldades que se antepunham aos estrangeiros que seestabeleciam, ou simplesmente percorriam o país, acabavam porse constituir num precioso manual para comerciantes que tinhamem perspectiva investir no Brasil, agora mais acessível devido aosediamento da Corte em seu território e as facilidades

4 Informa-nos o tradutor que o doutro Manuel Arruda Câmara foi médico, botânico, entologista,filósofo e naturalista, nascido em Pernambuco. Estudou em Coimbra e na França, onde tomoucontato com os projetos da ilustração francesa e inglesa. Foi amigo dos pernambucanos que fizerama revolução de 1817. Koster o conheceu quando de sua passagem por Goiania. Os mencionadosestudos de Câmara foram publicadas em 1810 pela Imprensa Régia, no Rio de Janeiro. KOSTER,H.: op. cit., pp. 91-92; 591.

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proporcionadas pelos Tratados de Comércio que romperamrestrições antes impostas pelo sistema colonial.

Mas, para além do interesse literário e empresarial, a obrade Koster apresentava um outro atrativo de caráter político ecientífico, pois oferecia uma avaliação das repercussões dosTratados firmados entre a Inglaterra e Portugal, e uma cuidadosaanálise dos efeitos do Antigo Regime (particularmente o sistemacolonial, o tráfico de escravos e a escravidão) sobre a sociedadeque visitou. Nesse sentido, fornecia sólidos argumentos para umaquestão que se projetava na política internacional: a abolição dotráfico de escravos.

1. Uma teoria sobre a sociedade das capitanias do norte

"... Não tive jamais a intenção, durante minharesidência no Brasil, de publicar cousa alguma doque vira e ouvira neste país. Não foi senão depoisdo meu regresso que me encorajaram a reunir todosos detalhes que pudesse comunicar." 5

Todavia, se não houve inicialmente a intenção de divulgaros dados coletados, pode-se afirmar que a presença de Koster noBrasil teve preocupações mais amplas do que um tratamento desaúde. Embora não seja possível precisar a serviço de quem6

5 Idem, ibidem, p. 7. Com estas palavras KOSTER dá início ao prefácio do livro.6 Além do reconhecimento minucioso da região expresso no relato da primeira estadia; das cartas derecomendação que trouxe da Inglaterra e que obteve no Brasil; dos recursos financeiros e físicos(particularmente para um homem doente) que as andanças de Koster absorveram e dos prazos queprecisou cumprir, alguns comentários esparsos deixam entrever que o inglês viajava a serviço dealguém ou de alguma instituição. Por exemplo:

"oito dias depois do meu regresso do Ceará chegou um navio da Inglaterra trazendocartas que me obrigaram a deixar Pernambuco e ir ao Maranhão." (p. 228)

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Koster veio com a incumbência de observar atentamente acolônia portuguesa para mapear os traços da natureza, daspotencialidades econômicas (agrícolas, comerciais, e do mercadode trabalho livre) e, sobretudo da sociedade da região,provavelmente com o intuito de aprender suas peculiaridades esua receptividade aos estrangeiros. Somente uma motivaçãodessa ordem poderia dar inteligibilidade à seqüência de atividadescumpridas pelo autor no Brasil. Chegou a Pernambuco emdezembro de 1809, aparentemente apenas em busca de um climamais ameno que o inglês, munido de inúmeras cartas deapresentação endereçadas a ingleses ali estabelecidos, e,rapidamente adentrou setores da sociedade do Recife junto aosquais os comerciantes ingleses já tinham estabelecido sólidocontato, particularmente famílias de funcionários públicos,senhores de engenho e comerciantes. Em seguida, pelaintermediação de seus compatriotas, aproximou-se deautoridades portuguesas simpáticas ao estreitamento de relaçõescom a Grã-Bretanha - governadores e capitães-mores - que lheforneceram licença para se locomover na região e, algumasvezes, até o acompanharam nos caminhos que ligavam o Recife aoutros núcleos litorâneos. Depois de percorrer as principais vilasda zona da Mata, Koster aventurou-se a explorar sozinho -acompanhado apenas por guias nativos e seu criado inglês - emviagem de ida e volta cheia de dificuldades - o caminho dasfazendas de gado do sertão, no interior do Rio Grande, Paraíba ePernambuco. Além disso, visitou o porto de São Luís noMaranhão antes de seu primeiro retorno à Inglaterra em abril de1811.7

Na segunda estadia - dezembro de 1811 - início de 1815 -Koster desenvolveu uma experiência ainda mais envolvente com

Estas considerações não invalidam as razões de saúde (comprovadas pelas várias crises de febre

narradas no texto) e o gosto pela aventura de ser o primeiro olhar inglês a explorar o sertão do Ceará(p. 203). Todavia, é importante anotar que Koster retornou a Pernambuco logo após a publicaçãodo livro, e ali viveu até sua morte em 1820. Mas não deixou uma linha sequer sobre esta 3a estadia.7 Todas as atividades, sucessos, dificuldades e impressões destes percursos ficaram registrados nosprimeiros nove capítulos da obra.

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a sociedade pernambucana, no sentido de apreender osproblemas que os estrangeiros poderiam enfrentar no Brasil.Alugou e administrou um engenho em Jaguaribe, atividade quelhe proporcionou compreender todos os percalços que esteempreendimento comportava; mais tarde, em 1813, tornou-selavrador de engenho em Itamaracá.8

a. O Antigo Regime no Brasil: feudalismo, escravidão e sistemacolonial:

"Imaginava a vida estranha que levava e asemelhança com a época feudal na Europaaparecia-me, e não a deixava de comparar com oestado atual no interior brasileiro. O grande poderdo agricultor não somente nos seus escravos massua autoridade sobre as pessoas livres das classespobres, o respeito que esses barões exigiram dosmoradores de suas terras, a assistência que recebemdos rendeiros em caso de insulto por parte de umvizinho igual, a dependência dos camponeses...Reunira um número vultuoso de trabalhadores livrese a propriedade era respeitada milhas derredor..."

"... O capitão-mor deixava raramente seu engenhopara ir ao Recife ou Paraíba vivendo, como outrosde sua classe no Brasil, num estado de vida feudal.Derredor dele havia vários outros rapazes que oserviam mas, nem sua mulher nem qualquer dasfilhas apareceu... O dono da casa vestia camisa,ceroulas e um longo roupão, Chamado "chambre".

8 As informações sobre a 2a estadia abrangem cinco capítulos (10o a 15o). O lavrador arrenda terrasde um ou mais engenhos, cultiva a cana com seus próprios escravos e leva-a para moer na fábrica doproprietário da terra, dividindo com ele os rendimentos. Pode ser também um proprietário da terraque planta, e era tão considerado na sociedade quanto os próprios senhores de engenho.

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É a indumentária típica de pessoas que nada têm oque fazer. Quando um brasileiro começa a usar umdesses "chambres", têm-no logo na conta deimportante e lhe dedicam... muito respeito. " 9

As considerações de Koster sobre a sociedade aparecemao longo de todo seu texto, porém de formas diferenciadas. NoDiário emergem esparsas acompanhando os episódios vividos. Éna segunda parte que o autor constrói capítulos sínteses, nosquais organiza as proposições gerais que, na verdade, ordenaramtoda a narrativa. Nestes capítulos - do XVIII ao XX - trata da"População Livre", da "Escravidão" e da "Impolítica do tráficode escravos". Descrevendo a sociedade segundo critériospolíticos e raciais, submeteu-a a classificações: primeiramente,livres e escravos; depois brancos (europeus e brasileiros),mulatos, negros, creolos, mamelucos, mestiços, ciganos eestrangeiros. Os escravos, por sua vez, são separados emafricanos e creolos.10

Sua preocupação inicial é demonstrar a amplamiscegenação entre brancos, negros e índios como especificidadeda sociedade do Brasil quando comparada a outras colônias ondese construíram "castas", particularmente as espanholas, inglesas efrancesas da América.11 A existência da miscegenação, todavia,não era sinônimo de relações democráticas. Pelo contrário, suaorigem estava, por um lado, na escassez de colonizadoresbrancos e, por outro, na escravidão:

"sistema de poder de um homem sobre o outro (que)sanciona a barbaridade e o abuso... o sistema é

9 KOSTER, H.: op. cit., pp. 295-296; 98.10 Idem, ibidem, capítulos XVIII e XIX, passim.11 Idem, ibidem, pp. 473-475.

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radicalmente mau, e todos os meios deviam serpostos em ação para extirpá-lo..." 12

Embora passe boa parte de sua exposição comentandoque a escravidão no Brasil era mais "suportável" do que a deoutras áreas coloniais devido à existência de um calendário quecomportava inúmeros dias santos, e relações queproporcionavam maiores possibilidades de alforria, Kosteracentua o caráter irracional deste sistema, assim como suasindesejáveis decorrências. Conclui que a escravidão era uma"moléstia" que atingia todas as atividades e setores da sociedade,com sequelas de toda espécie: econômicas, políticas e,sobretudo, morais.13

Na prática da escravidão se originavam os traçosdefinidores de uma sociedade "semi-civilizada e feudal". Suascaracterísticas essenciais eram o despotismo dos proprietários deterras e escravos; a reclusão, a violência, a ignorância e aociosidade. O despotismo poderia ser reconhecido em várioscomportamentos: no domínio sobre vastas áreas de terra,homens livres pobres e escravos; no poder militar; na afronta oudesconhecimento da lei; na autonomia pessoal dos proprietários eno exercício pleno das vontades e vícios. A vivência de todo estapoder era possível em parte pela existência de verdadeirosexércitos particulares a serviço dos senhores de terras, e peloisolamento das fazendas e engenhos, os quais proporcionavamplena liberdade de ação para seus proprietários. Despotismo ereclusão engendravam e perpetuavam a violência e a ignorância,entendidos como desagregamento, autoritarismo,desconhecimento dos hábitos e costumes civilizados (boasmaneiras, vestimentas, falta de cultura e até desconhecimentodos novos saberes agrícolas) e, por fim, a corrupção moral

12 Idem, ibidem, pp. 494; 519.13 Idem, ibidem, p. 546.

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devido à indisciplina das paixões e à ociosidade. Assim, aescravidão inibia práticas sociais sadias: o trabalho livre(plenamente acessível devido ao grande contingente de homenslivres disponíveis na região); um sistema agrícola mais racionalcapaz de agilizar os recursos materiais pouco ou nadaaproveitados; o esclarecimento dos proprietários pela assimilaçãoda cultura européia e, particularmente, a reeducação dasmulheres proprietárias, o segmento social exemplar naidentificação da "semi-civilização e do feudalismo", porque nelepodiam ser reconhecidos, de forma transparente, os traçoscaracterizadores deste tipo de sociedade que a escravidãooriginava: despotismo, reclusão, ignorância, irracionalidade eociosidade.

b. A condição feminina: reclusão e ignorância

"... Sempre ouvi dizer, e não posso deixar de aceitar,e reparo como exato na região do país de que estoutratando, que as mulheres são comumente menoshumanas... mas este fato procede, indubitavelmente,do estado de ignorância no qual elas vivem.Recebem escassamente, educação e não têm avantagem de poder obter instrução pelacomunicabilidade das pessoas estranhas ao seuambiente nem adquirem novas idéias naconversação geral. Nasceram, criaram-se econtinuam cercadas de escravos, sem receber amenor contradição, tendo noções exageradas deautoridade sem que percebam o que há de erro emsuas ações. Levai essas mulheres para diante,educando-as; ensinai-lhes o que é racional, e serãoiguais e em nada inferiores aos seus patrícios. Mal acriança sai do berço e lhe dão um escravo de suaidade e sexo para companheiro, ou melhor, para

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brinquedo. Crescem juntos, e o escravo é o objetoonde o jovem amo desabafa suas vontades... Sobreos rapazes o efeito é pouco visível na idade viril,porque o mundo os contém e reprime, mas as moçasque não deixam o lar, e às vezes não háoportunidade de abandonar esses hábitosperniciosos." 14

Escravidão, reclusão e ignorância. Com estes conceitosfortes o autor pretendeu definir a condição feminina na regiãoque conheceu. Através deles procurou sintetizar impressões deum grande número de circunstâncias presenciadas ao longo desua permanência, nas quais pode observar a presença femininanas cerimônias religiosas ( na Semana Santa, na Páscoa, noNatal, nas festas de santos padroeiros, nos batizados ecasamentos); nas ruas do Recife e outras vilas do litoral e dointerior; no ambiente doméstico (nas visitas e festas) e na vidacotidiana.

A reclusão se confundiu, primeiramente, com a idéia deque as mulheres permaneciam quase que exclusivamenteconfinadas ao espaço doméstico, praticamente sem vida pública.Esta consideração aparece logo no início do Diário, quandoKoster descreveu a cidade do Recife:

"Não se vêm mulheres além das escravas negras, oque dá um aspecto sombrio às ruas. As mulheresportuguesas e as brasileiras, e mesmo as mulheresde classe média não chegam à porta da casa durantetodo o dia. Ouvem missa pela madrugada e nãosaem senão em palanquins, ou à tarde, a pé, quandoocasionalmente a família faz um passeio." 15

14 Idem, ibidem, p. 478.15 Idem, ibidem, p. 36.

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Apresenta-se ainda em ocasiões de visitas a engenhos,particularmente durante as viagens pelo interior, cujosproprietários eram imigrantes de origem portuguesa, conformeexemplificam a passagem pelo engenho Mussumbú em Goiania, eos comentários sobre comerciantes portugueses. Nestes casos, asmulheres surgem como prisioneiras do espaço doméstico e deseus maridos; elas não podiam mostrar-se aos estranhos,sobretudo se fossem estrangeiros, mesmo que ali estivessem nacondição de hóspedes da casa. São circunstâncias em que os"costumes mouriscos" demonstram-se conservados:

"Jantamos uma ocasião com o proprietário doengenho Mussumbú. Este senhor, várias outraspessoas e eu estávamos à mesa da sala, enquanto assenhoras, às quais não era permitido sequer trocarum olhar, serviam-se num aposento adjacente. Doisrapazes, filhos do proprietário, ajudados pelosescravos de seu Pai, serviram a mesa e somentequando a deixamos é que eles vieram jantar. O donodeste domínio é português. É entre esta parte dapopulação que deixou seu país para fazer fortuna noBrasil, que a introdução de melhoramentos é quaseimpossível. Muitos brasileiros também, mesmo declasse superior seguem os costumes mouriscos desujeição e reclusão, mas, tendo algumacomunicação com a cidade, vêm depressa que épreciso preferir maneiras mais civilizadas erapidamente possuem hábitos de polidez...

Os comerciantes, geralmente falando porque existeexceção, vivem retirados. Vieram de Portugal,fazendo fortuna nos negócios e casam-se no país. Amaioria continua a viver como se não possuíssebastante riqueza ou pelo menos não se persuade de

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abandonar seus hábitos de retraimento. Exceto nosmeses de verão, quando os vemos sentados nosbatentes de suas residências de campo, não se vêsua família." 16

Esta forma de reclusão foi notada também entre asmulheres dos pequenos proprietários do interior, vaqueiros erendeiros e moradores dos engenhos. Koster deparou-se com ossertanejos quando retornava do Ceará pelos caminhos do sertão,momento em partilhou, inúmeras vezes, de sua hospitalidade.Quanto às mulheres de rendeiros e moradores, formou suaopinião observando-as nas viagens pelas vilas da zona da matanos engenhos próximos do litoral:

"As mulheres dão uma impressão maisdesalinhavada... vestem apenas saia e camisa, semmeias e quase sempre sem chinelos. Quando saemde casa, o que raramente sucede, adicionam umgrande manto branco, de tecido grosseiro, da terraou vindo das manufaturas da Europa... O trabalhofeminino consiste inteiramente nos serviçosdomésticos... Nenhuma mulher, de condição livre,aceitará o encargo ao ar livre, exceto ir buscaracidentalmente água ou lenha, quando o homemnão está em casa.

A mulher raramente aparece e se é vista não tomaparte na conversação, a menos que, sendo boaesposa, esteja vigiando o assado. A moral doshomens é muito severa e é natural que influadesfavoravelmente no espírito feminino, mas ossertanejos são muito ciumentos e há décuplo das

16 Idem, ibidem, pp. 83;59.

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mortes e das desavenças por este motivo e porqualquer outro.

Nessa região (na Mata) os trechos aprazíveis sãonumerosos. São vistas cabanas no meio do matagalconstruídas de barro e cobertas com folhas decoqueiros... Às vezes o aspecto dessas rudesmoradas é animado pela figura feminina que foge ese esconde logo que o passageiro volta os olhospara a estreita picada que leva à cabana." 17

Juntamente com a escravidão, o isolamento imposto àsmulheres proprietárias é considerado como o principal motivo desua ignorância. Ela poderia ser reconhecida em diferentescomportamentos: na "desumanidade" no trato dos escravos, nareserva com estranhos, no despreparo para comportar-se empúblico, na inadequação das vestimentas (ou exagero nas sedas,cetins e jóias, ou extrema rusticidade) e, sobretudo, naincapacidade de sustentar uma conversação gentil. Participandode uma visita a uma família abastada de S. Luís, comentou sobreo formalismo do comportamento feminino e a pobreza doconteúdo de sua conversação:

"Fui apresentado por meu amigo a uma respeitávelfamília de S. Luís. Fizemos uma visita numa tarde,sem convite, segundo o costume... A dona da casa,uma senhora idosa, estava sentada na rede e avisitante feminina ocupava outra, e suas duas filhase amigos sentavam-se em cadeiras. A companhia,consistindo em dois ou três homens, juntos uns dosoutros, formava um hemiciclo perto das redes.Houve muita cerimônia e a conversação seestabelece entre os homens , com reparos ocasionais

17 Idem, ibidem, pp. 204-205; 262-263.

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feitos por uma ou outra das velhas damas. Sendo-lhes dirigida alguma pergunta, as filhasrespondiam. Nada mais. Uma parte do formalismodesaparecerá com a maior e crescente relação. Aeducação das mulheres não é cuidada, o quedelimita as possibilidades de sustentar a conversasobre muitos temas, mesmo quando levadas àssolenidades." 18

Porém, considerando-se o conjunto da narrativa deKoster, os traços essenciais de sua tese sobre as mulheres só têmressonância em fragmentos de algumas cenas, em especialaquelas que retratam o cotidiano de proprietárias do interior e,particularmente, mulheres cujos maridos eram imigrantesportugueses (comerciantes ou senhores de engenho) aquiestabelecidos em busca de fortuna, ou pequenos proprietários.Embora tivesse presenciado situações nas quais se defrontoucom mulheres dos mais diversos estatutos sociais - senhoras deengenho, de funcionários públicos e comerciantes, de pequenosproprietários, libertas, negras de engenho e escravas - asconclusões do autor sobre a condição feminina cristalizaramfacetas de experiências específicas.19 Praticamente ignorarammulheres que desenvolviam atividades públicas (que trabalhavamfora do ambiente doméstico para sobreviver), assim como avariedade e complexidade das circunstâncias em que, mesmo asmulheres proprietárias, foram flagradas. Nesse sentido,minimizando a riqueza de detalhes presentes no Diário, Kosterpreocupou-se em destacar certos traços peculiares, necessários àconstrução de um determinado conceito de feudalismo desociedade "semi-civilizada e feudal", e à crítica do tráfico deescravos, da escravidão e do sistema colonial.

18 Idem, ibidem, pp. 244-245.19 A conclusão de Koster sobre a condição feminina foi colocada justamente no trecho em quecomenta a situação das mulheres brancas livres, as eventuais cidadãs do Brasil.

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A narrativa de "Travels in Brazil" traz muitos outroselementos capazes de nuançar a tese principal, não apenasporque os episódios vividos eram muito mais complexos mas,também, porque o próprio Koster, preocupado em apresentar umprojeto alternativo para superar a "semi-civilização e ofeudalismo", destacou as potencialidades de transformação dasociedade analisada. Assim, para atingir seus propósitos, o autorse viu na necessidade de demostrar o estado de reclusão eignorância para comprovar os efeitos nocivos da escravidão e dosistema colonial, mas também foi impelido a considerar que talsociedade, sob o influxo das relações comerciais com as naçõeseuropéias - sobretudo com a Inglaterra - e a convivência comestrangeiros, poderia reeducar-se:

"O compatrício a quem devo as atenções amáveis defazer-me participar da aprazível sociedade dePernambuco, é um dos primeiros ingleses aaproveitarem a livre comunicação entre a Inglaterrae o Brasil, observando já uma considerávelmudança nas maneiras da alta classe do povo. Abaixa dos preços de todos os artigos de tecidos, afaculdade de obter, a custo cômodo, louça de barro,cutelaria e linho de mesa, de fato foram efeitos quedevem ter impressionado os brasileiros assim comoo aparecimento de um novo povo entre eles, aesperança de melhor situação para todos, o dever opaís tomar vulto, reanimando em muitas pessoas asidéias que dormiam há tempos, desejando mostrar oque possuíam. O dinheiro apareceu para atender àsnovas exigências." 20

20 KOSTER, H.: op. cit., p. 60.

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2. A Sociedade em movimento

A preocupação em descrever detalhadamente as cenasvivenciadas, destacar as peculiaridades "feudais" e comprovar aspotencialidades da sociedade, sobretudo dos proprietários deorigem nativa ( os "brasileiros"), obrigaram Koster a flagrar eapontar comportamentos contraditórios. O multifacetamento dassituações problematizam a imagem de reclusão e ignorância dasociedade como um todo e das mulheres em particular. A própriavivência do autor suscita nuançamentos. Introduzido inicialmentepor outros comerciantes ingleses estabelecidos nas cercanias doRecife, depois por funcionários públicos e, finalmente,acompanhado por guias indígenas ou mulatos e escravos, nãohouve maiores dificuldades para o inglês usufruir dahospitalidade das famílias em qualquer uma das regiões por ondepassou:

"Fui recebido no Ceará hospitaleiramente. O nomeinglês era uma recomendação..." 21

Nos dias que se seguiram à sua chegada, Koster já podepartilhar das agitadas festas de final de ano entre as famílias ricassediadas no Recife, as quais, neste período de verão, instalavam-se em suas casas de campo nos arredores da cidade - Monteiro(onde Koster também alugou uma residência) Poço da Panela eOlinda. A descontração parece ter marcado a temporada:

"Aqui as maneiras cerimoniais da cidade sãoesquecidas e as substituíam um ambiente cordial deliberdade. Nossas manhãs passam indo-se à cavaloao Recife ou a outro lugar da vizinhança, ou aindana conversação nas residências das famílias que

21 Idem, ibidem, p. 179.

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conhecíamos. À hora da sesta ou à tarde, dança-se,faz-se música, joga-se prendas, janta-se com algumcomerciante inglês, cujo reduzido númeroabandonou igualmente a cidade e reside nascircunvizinhanças. Em várias casas portuguesasencontro mesas de jogo de baralho, ocupadas desdeas nove horas da manhã. Quando uma pessoa selevanta, outra toma o lugar, e assim estão semprerepletas, exceto durante o calor do dia, quando cadaum retorna em seu lar ou, o que é menos freqüente,é convidado para ficar e tomar parte na refeiçãofamiliar."

"Meu amigo e eu tivemos muitas pessoas parajantar, mas antes que a refeição terminasse, outrosamigos surgiram sem a menor cerimônia entraram ese puseram à mesa. Depressa toda idéia de ordem seevaporou, substituída pela balbúrdia. Logo depoisdeixamos nossa casa por uma recepção além. Era amesma confusão. Fomos convidados para um baileonde se encontrava o Governador." 22

Porém, as festas não se restringiram ao verão;estenderam-se a outros períodos do ano, em comemoraçõesfamiliares, ou mesmo a circunstâncias comuns. Dessa forma,Koster continuou a participar delas ao longo dos meses seguintesem residências cujos proprietários tinham atividades diversas -senhores de engenho,, comerciantes, profissionais liberais,funcionários públicos - e pode conhecer e relatar mais detalhessobre a vivência das famílias ricas da região: "a convivência docerimonial do século passado com a transbordante alegria deuma festa inglesa dos nossos dias"; "maneiras avisadas e gentis";e o "gosto pela dança":

22 Idem, ibidem, pp. 45; 47.

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"No dia 29 de julho... fomos à casa de uma dasprincipais personagens de Pernambuco, funcionáriopúblico e plantador, possuindo três engenhos empartes diversas dessa região... Um grande grupoestava reunido. Era o dia do aniversário denascimento de um dos anfitriões... Aqui fomostratados pela manhã com o cerimonial do séculopassado e, à tarde, com a transbordante alegria deuma festa inglesa dos nossos dias... (De manhã) assenhoras estavam numa sala e os homens noutra. Obaralho e o gamão eram as distrações usuais, mas apalestra não era desembaraçada e viva. No jantaras senhoras ficaram de um lado e os homens nocanto oposto. Houve profusão de iguarias e sebebeu muito vinho. Alguns homens que gozavam daintimidade, não se sentaram à mesa, mas se puserama servir as damas. Depois do jantar, todos osconvidados passaram a um amplo salão. A sugestãode um baile foi feita e aceita. Vieram rebecas edesde as sete horas, cerca de vinte pares começarame continuaram seu entretenimento até depois dasduas horas da madrugada... Em parte alguma seriapossível maior prazer. A conversação a temporenovada, era sempre descerimoniosa e gentil.Conheci aí várias pessoas excelentemente educadas,cujas relações cultivei durante minha permanênciano país...

Ofereceram-me levar até outra família brasileira(em Olinda) e, aceitei. A 07 de agosto um meuamigo veio buscar-me para acompanhá-lo a Olinda.Quem é convidado tem o direito de levar umcompanheiro. A família era composta por uma velhasenhora, duas filhas e um filho, padre e professor no

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Seminário. Muitas pessoas, do mesmo nível socialestavam presentes, tendo maneiras avisadas egentis... Dançamos ao som do piano tocado por umdos professores, com tal humor que só se detevequando os próprios dançarinos lhe pediram paraparar... Três ou quatro famílias têm o hábito deoferecer semanalmente, numa tarde, recepções ondese jogam cartas, segundo o uso de Lisboa...Compareci algumas vezes mas nada notei depeculiar nos costumes..." 23

As festas religiosas, por sua vez, foram testemunhos deatividade pública nas quais homens e mulheres, das mais variadasorigens, mesclaram-se sem maiores restrições. As comemoraçõesda Semana Santa e da Páscoa de 1810 em Olinda, emboraregistrem a separação entre homens e mulheres, descritas porKoster nuançam a imagem da reclusão feminina:

"...toda a cidade estava em movimento. As mulherestodas, da alta e da baixa sociedade, enchiam as ruaspelas tardes, a pé, contrariamente ao uso local.Muitas estavam vestidas de seda de várias cores ecobertas de correntes de ouro e outras bugigangas,e em geral expunham tudo que de mais fino tinhampodido reunir... As mulheres ao entrar , sejambrancas ou de cor, ficam juntas a essa grade (doaltar), sentando-se no chão, no grande espaçãoaberto no centro. Os homens, se postam de pé, emcada lado da nave, ou ficam perto da entrada,detrás das mulheres que, seja qual for sua condição

23 Idem, ibidem, pp. 57-59.

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de cor, devem ser as primeiras a seremacomodadas." 24

Mesmo as cenas que mais deram ensejo à exemplificaçãodo isolamento feminino e de sua ignorância, não sãounifacetadas, pois aparecem mescladas a a episódios queregistram outros comportamentos dissonantes. Por exemplo, nointerior da Paraíba, Koster hospedou-se no engenho Cunhaú docel. André de Albuquerque Maranhão, um cavaleiro de "maneirasgentis e cortês como os brasileiros de educação possuem" e, aomesmo tempo, senhor de "um engenho feudal com seus negros edemais serviçais" e comandante de um regimento de cavalariamiliciana.25 Na região de Papari conheceu a família de NísiaFloresta, o português Dionísio Pinto Lisboa "que me apresentousua mulher".26

Em S. Luís viveu uma das experiências mais controversasa propósito da condição feminina. No mesmo trecho onde narrouo retraimento das senhoras (mencionado na pg. 08) consideroutambém que:

"As senhoras de S. Luís, entretanto, não sãogeralmente reservadas. Uma jovem senhora, emcerta ocasião, indo com a mãe a uma festa, passou aum salão onde seu pai jogava com vários amigos.Esta chamou sua filha dizendo-lhe que tomasse umacarta. Obedeceu. Ficou jogando até perder trezentosmil réis... " 27

24 Idem, ibidem, p. 48.25 Idem, ibidem, p. 101.26 Idem, ibidem, p. 105. Koster teve a oportunidade de conhecer e hospedar-se na residência deuma precursora das lutas pelos direitos das mulheres no séc. XIX no Brasil, Dionísia Pinto Lisboa,ou Nísia Floresta Brasileira Augusta.27 KOSTER, H.: Op. cit., pp. 244-245.

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Na travessia do sertão em pleno período da seca, Kosternão encontrou apenas mulheres de vaqueiros que se mantiveramafastadas da convivência com os visitantes. Presencioucircunstâncias em que mulheres livres pobres assumiram a chefiade suas famílias porque seus maridos haviam migrado para olitoral em busca de trabalho. Ainda, negociou diretamente comoutras mulheres livres de pequenos proprietário, quando tevenecessidade de abastecer sua caravana de carne de galinhas,porque criar e negociar galinhas era, no interior, uma atividadefeminina:

"As mulheres como é natural, possuíam a direção dacapoeira e, depois de muito regatear, findavamdeclarando que todas (as galinhas) eram favoritas,para si e seus filhos, não consentindo jamais queuma fosse morta. Esse procedimento era tãofreqüente que, para o fim, quando eu mesmo ou oguia galopava para uma dessas casas procurandogalinhas, ouvia o marido dizer que o negóciopertencia à esposa, continuava o caminho semperder tempo em falar." 28

3. "... não é possível julgar a sociedade por uma mesmaregra"

"Chegando à casa, meu amigo e eu, comentamos osepisódios do dia, inteiramente passado com umafamília brasileira... A conversação era frívola masinteressante, com muita finura e graça... Pode serobservado... que não é possível julgar a sociedadepor uma mesma regra. Famílias de igual posição,

28 Idem, ibidem, p. 195.

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importância e riqueza, têm maneiras inteiramentediversas. O fato é que a sociedade sofreu umatransformação rápida. Não que o povo imitasse oshábitos europeus, embora tivessem influência, mas àproporção que a prosperidade aumenta, maior luxoé exigido, quando a educação se aperfeiçoa, osdivertimentos são mais polidos e altos e, alargando-se o espírito pelas leituras, muitos costumes tomamuma forma diversa. As mesmas pessoas vãomudando e já olham com ridículo e desgosto, empoucos anos, os hábitos que as haviam subjugadolongamente...

Pela tarde passava à casa do sr. Marcos, onde sereunia a grande assembléia usual. Sua companhia,a de sua mulher e filha, eram sempre agradáveis,particularmente nessas incivilizadas regiões..." 29

"Não é possível julgar a sociedade (particularmente acondição feminina) por uma mesma regra". A consideração doautor no Diário contrasta e problematiza a teorizaçãoapresentada nos capítulos finais sobre a sociedade. Quais seriamas possíveis razões deste descompasso?

Algumas já foram arroladas nas páginas precedentes.Koster circunscreveu suas conclusões a fragmentos de cenas davida de algumas mulheres; por outro lado, preocupado emdemonstrar as potencialidades de transformação da sociedadebrasileira diante do laissez-faire e dos Tratados firmados com aGrã-Bretanha, descreveu minuciosamente as situações vividasdesvendando todo seu nuançamento, complexidade econtradições, os quais não puderam ser completamenteesclarecidos pelo instrumental teórico do autor.

29 Idem, ibidem, pp. 56; 179. A segunda parte da citação refere-se a visitas feitas à família de umcomerciante no Ceará.

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Esta última consideração merece maior detalhamentoporque está na origem e na montagem da argumentação deKoster. Para comprovar a necessidade de abolir o tráfico e aescravidão e a eficácia da abertura da colônia portuguesa àpenetração estrangeira, recorreu aos esquemas explicativos decunho liberal que no momento ganhavam ampla divulgação: aluta entre o atraso e o progresso, ou entre o feudalismo e oliberalismo. Precisou demostrar a existência, ao mesmo tempo,de uma sociedade feudal (embora em seu texto o feudalismoassuma um sentido específico) ou "mourisca" e astransformações que estariam encaminhando esta sociedadearcaica na direção do progresso, ou de um outro modelo desociedade, pautada pela cordialidade informalidade, livre dosentraves à circulação de pessoas e objetos, dotada de requinte novestir, de boas maneiras, consumista de artigos europeus (depreferência ingleses), fundada no trabalho livre e nainformalidade e igualdade entre os sexos.

Na verdade, Koster argumentou a partir de situaçõesidealizadas, que não poderiam conferir inteligibilidade aointricado jogo de comportamentos com o qual se defrontou. Eisporque, num dos momentos em que se deparou com estacomplexidade, contrariando seus instrumentos de análise equestionando seus próprios modelos, concluiu que não seriapossível julgá-la por uma única regra. Assim como não podeflagrar traços uniformemente "feudais" na sociedade brasileira,também seria difícil reconhecer na Europa em geral e naInglaterra em particular, naquele momento, uma sociedade queespelhasse todos os traços idealizados do progresso, tanto comrelação ao laissez-faire quanto com relação à condição feminina.Lembro aqui a atuação de alguns homens e mulheres - Olympede Gouges, Mary Wollstonecraft, George Sand, Harriet TaylorMill, Stuart Mill, Victor Hugo e Proudhon - que, ao longo doséculo XIX denunciaram e lutaram contra a desigualdade dedireitos civis e políticos entre os sexos, e as discriminações que

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pesavam sobre as mulheres na Europa e na América; assim comoos projetos emergentes na Europa e nos Estados Unidos visandosuperar a difícil situação das mulheres, consideradas como"cidadãs passivas" e "párias" da sociedade, mesmo pelasConstituições mais renovadoras.30 Anoto também o depoimentode européias que visitaram o Brasil na primeira metade do séculoXIX.31

As proposições de Koster para a superação do estado de"reclusão e ignorância" das mulheres proprietárias do Brasil,particularmente a reeducação, foram inspiradas nas falas de suascompatriotas européias, e poderiam caber tanto na Europaquanto em qualquer outro espaço colonial. E o incremento dariqueza, conforme sugeriu o próprio Koster, mais que a imitaçãodos costumes europeus e a imposição do trabalho livre, talvezestivesse na origem das inúmeras mudanças por ele presenciadasno início do século, na sociedade das Capitanias do norte.

A facilidade com que o autor adaptou-se à vida no Brasil- apesar da alardeada distância entre o mundo europeu e ocolonial - sua relutância em retornar à Europa em 1815 e,posteriormente, sua fixação definitiva em Pernambuco, talvez

30 Sobre uma crítica à condição feminina e os projetos de instituição dos direitos da mulher naEuropa e nos Estados Unidos ver:

GOUGES, O.: "Déclaration des droits de la femme", IN Oeuvres. Apresentação de BenoîteGroult. Paris, 1986.

WOLLSTONECRAFT, Mary: A vindication of rights of woman. 1971.MILL, Harriet Taylor e STUART, Jonh: La igualdad de los sexos. Guadarrama, 1973,

particularmente os ensaios "La emancipación de la mujer" e "Primeiros ensayos sobre el matrimonioy el divorcio". 1851.

SAND, George: "Au membres du comité central", IN La femme au 19eme siècle. Org. NicolePriollaud. Liana Levi, 1983.

TAYLOR, Barbara: Eve end the New Jerusalém: socialism and feminism in the nineteenthcentury. Pantheon Books, 1983.

BRESCIANI, M. Stella: "O anjo da casa", IN Primeira Versão. Campinas, IFCH-UNICAMP.1991, no 29.

PERROT, Michelle et allii: "A mulher e o espaço público", IN Revista Brasileira de História.Org. M. Stella Bresciani. S. Paulo, ANPUH-Marco Zero, no 18, ago.-set. 1989.31 Particularmente Rose de Freycinet, Maria Graham, Mme. Langley Dufresnoy, Baronesa deLangsdorff e Ida Pfeiffer, estudadas por LEITE, Miriam Moreira: "Espaço Feminino 1800-1850",IN Anais do Museu Paulista. 30. pp. 227-240, 1981.

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sejam o indício de que as mediações entre a sociedade de"costumes mouriscos" e a progressista Inglaterra fossem maioresque os pressupostos liberais poderiam admitir. É o que ascontraditórias considerações feitas por Koster no encerramentodo Diário, nos faz pensar:

"Pouco tempo depois recebi notícias da Inglaterraque tornavam necessária minha volta ao lar.Abandonei com relutância meu desejo de residir noBrasil... Era preciso possuir uma grande resoluçãopara deixar o povo, a terra e tudo quanto meinteressava, meus negros e os homens livres, meuscavalos, meus cães e também meus gatos e galinhas,a casa e o jardim que eu improvisara e iacultivando, e os campos que limpara e ia semeando.Tudo isso confesso, me custava muito sofrimentodeixar, mas agradeço aos que desejavam que ofizesse. Tornar-me-ia bem depressa um lavrador doBrasil... Possivelmente eu, em breve tempo, nãopodia ser membro de outra sociedade. Sentia-meinclinado à vida que levava. Eu era jovem, era livree tinha poder. Embora estivesse inteiramenteconvicto dos males que decorrem de uma sociedadeem estado feudal, amava ter escravos. Poderiatornar-me tão arbitrário como apaixonado por essaexistência meio selvagem. Podia ficar sentindo tantosabor pela ociosidade, não tendo regras, comodesgostando tudo o que fosse racional e lógico nomundo. Até recentemente acariciei a esperança deregressar para esse país com os meios de cruzar ocontinente sul americano Só Deus sabe se não sejameu destino voltar ao velho sonho..." 32

32 KOSTER, H.: Op. cit., pp. 417-418.