CALVINO ITALO Por Que Ler Os Clássicos

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Por que ler os clássicos Italo Calvino

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Porque Ler Os Clssicos

Porque Ler Os Clssicos

talo Calvino

Teorema

O AUTOR

talo Calvino nasceu em Santiago de Las Vegas (Cuba), a 15 de Outubro de 1923. Em Itlia passou praticamente toda a sua vida, exceptuando os treze anos em que viveu em Paris. Faleceu em Siena, a 19 de Setembro de 1985. Estudou em San Remo at aos 20 anos, ingressando ento na Resistncia contra o fascismo e a ocupao nazi, depois de aderir ao Partido Comunista, que abandonou em 1957, aps a insurreio hngara. Terminada a Segunda Guerra Mundial, instalou-se em Turim, comeando a trabalhar na Einaudi, que depressa se transformou numa das principais editoras italianas do ps-guerra.

J trabalhava na Einaudi (onde desempenhou importantssimo papel como consultor literrio) quando concluiu a sua licenciatura em Letras. Com Os Nossos Antepassados, a sua trilogia fantstica - O Visconde Cortado ao meio (1952), O Baro Trepador (1957) e O Cavaleiro Inexistente (1959) ficou definitivamente consagrado como um dos maiores escritores italianos contemporneos.

A Teorema publicou j Os Nossos Antepassados (1986), Palomar (1987), Sob o Sol Jaguar (1992), Seis Propostas para o Prximo Milnio (1992), As cidades Invisveis, (1993), Cosmicmicas (1993), Marcovaldo (1994), e publicar, no prximo ano, Novas Cosmicmicas e uma recolha pstuma de contos.

TALO CALVINO

PORQU Ler os CLSSICOS

Traduo de Jos Colao Barreiros

Teorema

(c) 1991, Palomar S. r. L. e Amoldo Mondadori S. P. A. Milo

Ttulo original: Perch leggere i classici

Traduo: Jos Colao Barreiros

Capa: Fernando Mateus

Paginao: RMA

Impresso e acabamento: Rainho & Neto Lda. / Santa Maria da Feira

ISBN: 972-695-158-5

Depsito legal n 80191/94

Todos os direitos desta edio reservados por

EDITORIAL TEOREMA, LDA.

Rua Padre Lus Aparcio, 9-1 Frente

Telf.: 52 99 88 - Fax: 352 14 80

1000 LISBOA

Numa carta de 27 de Novembro de 1961 talo Calvino escreveu a Niccol Gallo: Para recolher ensaios esparsos e desorganizados como os meus tem de se esperar pela prpria morte ou ao menos pela velhice avanada.

No entanto Calvino iniciou este trabalho em 1980 com Una pietra sopra, e em 1984 publicou Collezione di sabbia. Depois, autorizou a recolha no estrangeiro, nas verses inglesa, americana e francesa de Una pieira sopra - que no so idnticas ao original -, dos ensaios sobre Homero, Plnio, Ariosto, Balzac, Stendhal, Montale, e do ensaio que d o ttulo a este livro. Alm disso, modificou - e num caso, Ovdio, acrescentou uma pgina que deixou manuscrita - alguns dos ttulos destinados a uma publicao italiana posterior.

Neste volume encontra-se grande parte dos ensaios e dos artigos de Calvino sobre os seus clssicos: os escritores, poetas e cientistas que maior valor tiveram para ele, em diferentes perodos da sua vida. Quanto aos autores do nosso sculo, dei preferncia aos ensaios sobre os escritores e poetas por quem Calvino nutria uma especial admirao.

Esther Calvino

Desejo agradecer a Elisabetta Stefanini a sua preciosa ajuda.

E. C.

NDICE

Porque ler os clssicos - 7As Odisseias na Odisseia - 15Xenofonte, Anabase (A Retirada dos Dez Mil) - 23Ovdio e a contiguidade universal - 29O cu, o homem e o elefante - 39As sete princesas de Nezami - 49Tirant Lo Blanc - 55A estrutura do "Orlando" - 61Pequena antologia de oitavas - 69Jernimo Cardano - 75O livro da Natureza em Galileu - 81Cyrano na Lua - 89Robinson Crusoe, o dirio das virtudes mercantis - 95Candide ou a velocidade - 101Denis Diderot, Jacques l Fataliste - 105Giammaria Ortes - 111O conhecimento pulviscular em Stendhal - 117Guia da Chartreuse para uso dos novos leitores - 131A cidade-romance em Balzac - 139Charles Dickens, Our Mutual Friend - 145Gustave Flaubert, Trois contes - 151Leo Tolstoi, Dois hussardos - 155Mark Twain, O homem que corrompeu Hadleyburg - 159Henry James, Daisy Miller - 165Robert Louis Stevenson, O pavilho nas dunas - 169Os capites de Conrad - 173Pasternak e a revoluo - 179O mundo uma alcachofra - 195Carlo Emilio Gadda, Il Pasticciaccio - 199Eugnio Montale, Talvez uma manh andando - 207O rochedo de Montale - 217Hemingway e ns - 221Francis Ponge - 229Jorge Luis Borges - 235A filosofia de Raymond Queneau - 243Pavese e os sacrifcios humanos - 259Nota do Editor 263

PORQU LER OS CLSSICOS

Comecemos com umas propostas de definio.

1. Os clssicos so os livros de que se costuma ouvir dizer: Estou a reler... e nunca Estou a ler...

isto que se verifica pelo menos entre as pessoas que se pressupe serem de vastas leituras; no se aplica juventude, idade em que o encontro com o mundo, e com os clssicos como parte do mundo, vlido precisamente como primeiro encontro com o mundo.

O prefixo iterativo antes do verbo ler pode ser uma pequena hipocrisia por parte de quem tiver vergonha de admitir que no leu um livro famoso. Para o descansar bastar observar que por mais vastas que possam ser as leituras de formao de um indivduo, fica sempre um nmero enorme de obras fundamentais que no se leu.

Quem leu todo o Herdoto e todo o Tucdides levante o dedo. E Saint-Simon? E o cardeal de Retz? Mas at os grandes ciclos de romances do sculo XIX so mais nomeados que lidos. Balzac, em Frana comea a ler-se na escola e pelo nmero de edies em circulao dir-se-ia que tambm se continua a l-lo depois. Mas em Itlia se se fizesse uma sondagem Marktest receio que Balzac ficaria nos ltimos lugares. 7

Os apaixonados de Dickens em Itlia so uma restrita elite de gente que quando se encontra se pe logo a recordar personagens e episdios como se fossem pessoas suas conhecidas. H anos Michel Butor, ao leccionar na Amrica, farto de ouvir perguntarem-lhe por mile Zola que nunca tinha lido, decidiu-se a ler todo o ciclo dos Rougon-Macquart. Descobriu que era completamente diferente do que julgava: uma fabulosa genealogia mitolgica e cosmognica, que descreveu num belssimo ensaio.

Isto vem a propsito de dizer que ler pela primeira vez um grande livro em idade madura um prazer extraordinrio: diferente (mas no se pode dizer que maior ou menor) do que se tem ao l-lo na juventude. A juventude comunica leitura, tal como a qualquer outra experincia, um sabor e uma importncia muito especiais; enquanto na maturidade se apreciam (deveriam apreciar-se) muitos mais pormenores, nveis e significados. Assim, podemos tentar outra frmula de definio:

2. Chamam-se clssicos os livros que constituem uma riqueza para quem os leu e amou; mas constituem uma riqueza nada menor para quem se reserva a sorte de l-los pela primeira vez nas condies melhores para os saborear.

De facto as leituras da juventude podem ser pouco profcuas por impacincia, distraco, e inexperincia das instrues para o uso e inexperincia da vida. Podem ser (se calhar ao mesmo tempo) formativas no sentido de darem uma forma s experincias futuras, fornecendo modelos, contedos, termos de comparao, esquemas de classificao, escalas de valores, paradigmas de beleza: tudo coisas que continuam a agir mesmo que do livro lido na juventude se recorde pouqussimo ou mesmo nada. Ao reler o livro em idade madura, acontece reencontrar-se estas constantes que agora j fazem parte dos nossos mecanismos internos e de que tnhamos esquecido a origem. H uma fora especial da obra que consegue fazer-se esquecer enquanto tal, mas que deixa sementes. Ento a definio que dela poderemos dar ser:

3. Os clssicos so livros que exercem uma influncia especial, tanto quando se impem como inesquecveis, como quando se ocultam nas pregas da memria mimetizando-se de inconsciente colectivo ou individual.

Por isso deveria haver uma poca na vida adulta destinada a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram 8

os mesmos (mas eles tambm mudam, sob a luz de uma perspectiva histrica que se alterou) ns certamente mudmos, e o encontro um acontecimento totalmente novo.

Assim, o facto de se usar o verbo ler ou reler no tem muita importncia. Com efeito poderamos dizer:

4. De um clssico toda a releitura uma leitura de descoberta igual primeira.

5. De um clssico toda a primeira leitura na realidade uma releitura.

A definio 4 pode considerar-se um corolrio desta:

6. Um clssico um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer.

Enquanto a definio 5 remete para uma formulao mais explicativa, como:

7. Os clssicos so os livros que nos chegam trazendo em si a marca das leituras que antecederam a nossa e atrs de si a marca que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).

Isto tanto se aplica aos clssicos antigos como aos clssicos modernos. Se ler a Odisseia leio o texto de Homero mas no posso esquecer tudo o que as aventuras de Ulisses vieram a significar durante os sculos, e no posso interrogar-me se estes significados estavam implcitos no texto ou se eram incrustaes ou deformaes ou dilataes. Ao ler Kafka no posso deixar de comprovar ou de recusar a legitimidade do adjectivo kafkiano que nos calha ouvir de quarto em quarto de hora, aplicado a torto e a direito. Se ler Pais e filhos de Turgueniev ou Os Demnios de Dostoievsky no posso deixar de pensar que estas personagens continuaram a reencarnar-se at aos nossos dias.

A leitura de um clssico deve dar-nos qualquer surpresa em relao imagem que tnhamos dele. Por isso nunca ser suficiente recomendar a leitura directa de textos originais evitando o mais possvel bibliografia crtica, comentrios e interpretaes. A escola e a universidade deveriam servir para fazer compreender que nenhum livro que fala de outro livro 9

diz mais que este; alis, fazem tudo para fazer crer o contrrio. H uma inverso de valores muito difundida pela qual a introduo, o aparato crtico e a bibliografia so usados como uma cortina de fumo para ocultar o que tem a dizer o texto e que s pode diz-lo se o deixarem falar sem intermedirios que pretendam saber mais que ele. Podemos concluir que:

8. Um clssico uma obra que provoca incessantemente uma vaga de discursos crticos sobre si, mas que continuamente se livra deles.

O clssico no tem necessariamente de nos ensinar alguma coisa que no sabamos; s vezes descobrimos nele algo que tnhamos desde sempre sabido (ou julgado saber) mas no sabamos que ele j o tinha dito antes (ou que pelo menos se liga a isso de modo particular). E esta tambm uma surpresa que d muita satisfao, como sempre a d a descoberta de uma origem, de uma relao, ou de um vnculo. De tudo isto poderamos fazer derivar uma definio do tipo:

9. Os clssicos so livros que quanto mais se julga conhec-los por ouvir falar, mais se descobrem como novos, inesperados e inditos ao l-los de facto.

Naturalmente isto verifica-se quando um clssico funciona como tal, ou seja, quando estabelece uma relao pessoal com quem o ler. Se no der fasca, no h nada a fazer: no se lem os clssicos por dever ou por respeito, mas s por amor. Salvo na escola: a escola deve dar-nos a conhecer bem ou mal um certo nmero de clssicos entre os quais poderemos depois reconhecer os nossos clssicos. A escola destina-se a dar-nos instrumentos para exercermos uma opo; mas as opes que contam so as que se verificam fora e depois de todas as escolas.

s nas leituras desinteressadas que pode suceder esbarrarmos num livro que se torna o nosso livro. Conheo um ptimo historiador de arte, homem de vastssimas leituras, que entre todos os livros concentrou a sua predileco mais profunda no Crculo Pickwick, e a propsito de tudo e de nada cita piadas do livro de Dickens, e associa cada facto da sua vida a episdios pickwickianos. Pouco a pouco ele prprio, o universo e a verdadeira filosofia foram tomando a forma do Crculo Pickwick numa identificao absoluta. Chegamos por esta via a uma ideia de clssico muito elevada e exigente:10

10. Chama-se clssico um livro que se configura como equivalente do universo, tal como os antigos talisms.

Com esta ideia aproximamo-nos da ideia de livro total, como o sonhava Mallarm. Mas um clssico pode estabelecer uma relao igualmente forte de oposio, de anttese. Interessa-me muito tudo o que Jean-Jacques Rousseau pensa e faz, mas tudo me inspira um irreprimvel desejo de contradiz-lo, de critic-lo, de brigar com ele. Tem a ver com a sua antipatia pessoal no plano do temperamento, mas por isso bastava-me no o ler, e afinal no posso deixar de consider-lo um dos meus autores. Direi portanto:

11. O nosso clssico o que no pode ser-nos indiferente e que nos serve para nos definirmos a ns mesmos em relao e se calhar at em contraste com ele.

Creio que no preciso de me justificar se uso o termo clssico sem fazer distines de antiguidade, de estilo ou de autoridade. (Para a histria de todas estas acepes do termo, ver a exaustiva entrada Clssico de Franco Fortini na Enciclopdia Einaudi, vol. iII). O que distingue o clssico no discurso que estou a fazer talvez seja apenas um efeito de ressonncia que tanto vale para uma obra antiga como para uma moderna mas j com o seu lugar numa continuidade cultural. Poderamos dizer:

12. Um clssico um livro que vem antes de outros clssicos; mas quem leu primeiro os outros e depois l esse, reconhece logo o seu lugar na genealogia.

Neste ponto j no posso adiar mais o problema decisivo de como relacionar a leitura dos clssicos com todas as outras leituras que no so clssicos. Problema que tem a ver com perguntas como: Porqu ler os clssicos em vez de nos concentrarmos em leituras que nos faam compreender mais a fundo o nosso tempo? e Como arranjar o tempo e a disponibilidade mental para ler os clssicos, assoberbados como estamos por esta avalancha de papel impresso que caracteriza a actualidade?

claro que se pode imaginar uma pessoa afortunada que dedique o tempo-leitura dos seus dias exclusivamente a ler Lucrcio, Luciano, Montaigne, Erasmo, Quevedo, Marlowe, o Discours de la Mthode, o Wilhelm Meister, Coleridge, Ruskin, Proust e Valry, com uma ou outra di-11

vagao para Murasaki ou as sagas islandesas. Tudo isto sem ter de fazer recenses da ltima reedio, nem publicaes para o doutoramento, nem trabalhos editoriais no fim do prazo. Esta pessoa afortunada para manter a sua dieta sem nenhuma contaminao teria de se abster de ler os jornais, de nunca se deixar tentar pelo ltimo romance ou pela ltima investigao sociolgica. Fica por ver at que ponto um rigorismo destes seria justo e profcuo. A actualidade pode ser banal e mortificante, mas no deixa de ser um ponto em que devemos situar-nos para olhar em frente ou para trs. Para se poder ler os clssicos, deve-se tambm determinar donde estamos a l-los, seno tanto o livro como o leitor perdem-se numa nuvem sem tempo. por isso que tira o mximo rendimento da leitura dos clssicos quem souber alternar com ela a sapiente dosagem da leitura de actualidades. E isto no presume necessariamente uma equilibrada calma interior: pode ser at o fruto de um nervosismo impaciente, de uma insatisfao exasperante.

O ideal talvez seja sentir a actualidade como o rumor que entra pela janela, que nos avisa dos engarrafamentos do trnsito e dos saltos meteorolgicos, enquanto acompanhamos o discurso dos clssicos que soa claro e articulado no nosso gabinete. Mas tambm j muito se para a maioria a presena dos clssicos se sentir como um ribombar longnquo, fora do gabinete invadido pela actualidade como se fosse uma televiso a todo o volume. Acrescentemos portanto:

13. clssico o que tiver tendncia para relegar a actualidade para a categoria de rudo de fundo, mas ao mesmo tempo no puder passar sem esse rudo de fundo.

14. clssico o que persistir como rudo de fundo mesmo onde dominar a actualidade mais incompatvel.

Resta o facto de que ler os clssicos parece estar em contradio com o nosso ritmo de vida, que no conhece tempos longos, nem a respirao do otium humanista; e tambm parece estar em contradio com o ecletismo da nossa cultura que no saberia redigir um catlogo da classicidade que sirva para o nosso caso.

Eram as condies que se realizavam em pleno para Leopardi, dada a sua vida sob a gide paterna, o culto da antiguidade grega e latina e a formidvel biblioteca que lhe foi transmitida pelo pai Monaldo, tendo anexa12

a literatura italiana completa, mais a francesa, excluindo os romances e em geral as novidades editoriais, relegadas quando muito para a margem, para conforto da irm (o teu Stendhal escrevia ele a Paolina). At as suas vivssimas curiosidades cientficas e histricas, Giacomo satisfazia-as em textos que nunca eram demasiado up to date: os hbitos das aves em Buffon, as mmias de Frederico Ruysch em Fontenelle, a viagem de Colombo em Robertson.

Hoje impensvel uma educao clssica como a do jovem Leopardi, e sobretudo a biblioteca do conde Monaldo ardeu. Os velhos ttulos foram dizimados mas os novos multiplicaram-se proliferando em todas as literaturas e culturas modernas. S resta inventar cada um uma biblioteca ideal dos nossos clssicos; e diria que ela teria de ser constituda metade por livros que j lemos e que foram importantes para ns, e metade por livros que nos propomos ler e pressupomos que sejam importantes. E deixando uma seco de lugares vazios para as surpresas, para as descobertas ocasionais.

Reparo que Leopardi o nico nome da literatura italiana que citei. Efeitos do incndio da biblioteca. Agora deveria reescrever todo o artigo tornando bem claro que os clssicos servem para compreender quem somos e aonde chegmos e por isso os italianos so indispensveis precisamente para os compararmos com os estrangeiros, e os estrangeiros so indispensveis precisamente para os compararmos com os italianos

Depois deveria reescrev-lo mais uma vez para no se pensar que os clssicos devem ser lidos porque servem para alguma coisa. A nica razo que se pode aduzir que ler os clssicos melhor que no ler os clssicos.

E se algum objectar que no vale a pena ter tanto trabalho, citarei Cioran (no um clssico, pelo menos por agora, mas sim um pensador contemporneo que s neste momento se comea a traduzir em Itlia) Enquanto lhe preparavam a cicuta, Scrates ps-se a aprender uma ria na flauta. "Para que te servir?" perguntaram-lhe. "Para saber esta ria antes de morrer".

[1981]

AS ODISSEIAS NA ODISSEIA

Quantas Odisseias contm a Odisseia"? No incio do poema a Telemaquia a busca de um conto que no existe, do conto que ser a Odisseia. O cantor Fmio no palcio de taca j sabe os nostoi dos nossos heris; s lhe falta um, o do seu rei; por isso Penlope j no quer ouvi-lo cantar. E Telmaco parte procura desta narrativa junto dos veteranos da guerra de Tria: se descobrir o conto, acabe ele bem ou mal, taca sair da informe situao sem tempo e sem lei em que se encontra h tantos anos.

Como todos os veteranos, Nestor e Menelau tambm tm muito que contar; mas no o conto que Telmaco procura. At que Menelau se sai com uma fantstica aventura: camuflado de foca, capturou o velho do mar, ou seja, Proteu das infinitas metamorfoses, e obrigou-o a contar-lhe o passado e o futuro. Proteu evidentemente j conhecia toda a Odisseia de fio a pavio: comea a contar as desventuras de Ulisses a partir do ponto em que inicia Homero, com o heri na ilha de Calipso; depois interrompe-se. Neste ponto Homero pode tomar-lhe o lugar e continuar o conto.

Chegado corte dos Fecios, Ulisses ouve um aedo cego como Homero que canta as aventuras de Ulisses; o heri irrompe em lgrimas; depois decide-se a contar por sua vez. Neste seu relato, chega ao Hades

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para interrogar Tirsias, e Tirsias narra-lhe a continuao da sua histria. Depois Ulisses depara-se com as Sereias a cantar; cantam o qu? Ainda a Odisseia, talvez igual que estamos a ler, talvez muito diferente. Este conto do regresso uma coisa que j existe, antes de se realizar: pr-existe prpria actuao. J na Telemaquia encontramos as expresses pensar o regresso, dizer o regresso. Zeus no pensava no regresso dos tridas (iII, 160); Menelau pede filha de Proteu que lhe diga o regresso (IV, 379) e ela explica-lhe como poder obrigar o pai a diz-lo (390), pelo que o trida pode capturar Proteu e perguntar-lhe: Diz-me o regresso, como irei pelo mar pescoso (470).

O regresso identificado, pensado e recordado: o perigo o de poder ser esquecido antes que se verifique. De facto, uma das primeiras etapas da viagem contada por Ulisses, a dos Lotfagos, implica o risco de perder a memria, por ter comido o doce fruto do ltus. Pode parecer estranho a prova do esquecimento apresentar-se no incio do itinerrio de Ulisses e no no fim. Se depois de ter superado tantas provas, suportado tantas travessias e aprendido tantas lies, Ulisses tivesse esquecido tudo, a sua perda teria sido bem mais grave: no extrair nenhuma experincia do que sofreu, nenhum sentido do que viveu.

Mas vendo bem, esta do esquecimento uma ameaa que nos cantos IX-XII reproposta vrias vezes: primeiro com o convite dos Lotfagos, depois com os frmacos de Circe e depois ainda com o canto das Sereias. Ulisses tem sempre de se precaver, se no quiser esquecer imediatamente... Esquecer o qu? A guerra de Tria? O cerco? O cavalo? No; a casa, a rota da navegao, o objectivo da viagem. A expresso que Homero usa nestes casos esquecer o retorno.

Ulisses no deve esquecer o caminho que tem a percorrer, a forma do seu destino: em suma, no deve esquecer a Odisseia. Mas tambm o aedo que compe improvisando ou o rapsodo que repete de cor trechos de poemas j cantados no devem esquecer se quiserem dizer o retorno; para quem canta versos sem o apoio de um texto escrito, esquecer o verbo mais negativo que existe; e para eles esquecer o retorno quer dizer esquecer os poemas chamados nostoi, cavalo de batalha do seu repertrio.

Sobre o tema do esquecer o futuro escrevi h uns anos algumas consideraes (Corriere della Ser, 10 de Agosto de 1975) que concluam: O que Ulisses salva do ltus, das drogas de Circe e do canto das Sereias, no s o passado ou o futuro. A memria s conta realmente

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para os indivduos, para as colectividades ou para as civilizaes - se tiver ao mesmo tempo a marca do passado e o projecto do futuro, se permitir fazer sem o esquecer o que se queria fazer, de se tornar sem deixar de ser, de ser sem deixar de se tornar.

Ao meu texto seguiu-se uma interveno de Eduardo Sanguinetti no Paese Ser (agora in Giornalino, Einaudi, Torino, 1976) e uma srie de rplicas, minha e dele. Sanguinetti objectava: No devemos esquecer que a viagem de Ulisses no uma viagem de ida, mas sim uma viagem de volta. E ento temos mesmo de interrogar-nos um momento, que raio de futuro tem ele frente: porque o futuro que Ulisses procura afinal de contas na verdade o seu passado. Ulisses vence as lisonjas da Regresso porque est todo virado para uma Restaurao.

Compreende-se que um dia, por despeito, o verdadeiro Ulisses, o grande Ulisses, se tenha tornado o da ltima Viagem: para quem o futuro no de modo nenhum um passado, mas sim a Realizao de uma Profecia - ou seja, de uma verdadeira Utopia. Enquanto o Ulisses homrico chega recuperao do seu passado como um presente: a sua sabedoria a Repetio, e podemos reconhec-lo bem pela cicatriz que tem, e que o marca para sempre.

Em resposta a Sanguinetti recordava (Corriere della Ser, 14 de Outubro de 1975) que na linguagem dos mitos, tal como na das histrias e do romance popular, toda a empresa que traz a justia, que repara os males e resgata de uma condio miservel, em via de regra representada como a restaurao de uma ordem ideal anterior; o desejo de um futuro a conquistar garantido pela memria de um passado perdido.

Se examinarmos os contos populares vemos que apresentam dois tipos de transformao social, sempre de final feliz: primeiro de cima para baixo e depois de novo para cima; ou muito simplesmente de cima para baixo. No primeiro tipo um prncipe que por qualquer infeliz circunstncia reduzido a porqueiro ou outra msera condio, para depois reconquistar a sua condio real; no segundo tipo h um jovem pobre de nascimento, pastor ou campons, e se calhar at pobre de esprito, que por virtude prpria ou ajudado por seres mgicos consegue casar com a princesa e tornar-se rei.

Os mesmos esquemas aplicam-se aos contos de protagonista feminina: no primeiro tipo a donzela de condio real ou pelo menos rica cai numa condio de desamparo devido rivalidade de uma madrasta

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(como Branca de Neve) ou das meias irms (como a Gata Borralheira) at um prncipe se apaixonar por ela e a reconduzir ao topo da escala social; no segundo tipo trata-se de uma verdadeira pastora ou camponesa que supera todas as desvantagens do seu humilde nascimento e tem acesso a um principesco casamento.

Poder-se- pensar que so os contos do segundo tipo que exprimem mais directamente o desejo popular de uma subverso das categorias sociais e dos destinos individuais, enquanto os do primeiro tipo deixam transparecer este desejo de uma forma mais atenuada, como restaurao de uma hipottica ordem anterior. Mas pensando bem, as extraordinrias fortunas do zagal ou da pastorinha s representam uma iluso miraculista e consolatria, que ser depois largamente continuada pelo romance popular e sentimental. Enquanto em contrapartida os infortnios do prncipe ou da rainha infeliz ligam a imagem da pobreza ideia de um direito espezinhado, de uma justia a reivindicar, ou seja, fixam (no plano da fantasia, onde as ideias podem ganhar razes sob a forma de figuras elementares) um ponto que ser fundamental para toda a tomada de conscincia social da poca moderna, a partir da Revoluo Francesa.

No inconsciente colectivo, o prncipe disfarado de pobre a prova de que todo o pobre na realidade um prncipe que sofreu uma usurpao e que tem de reconquistar o seu reino. Ulisses ou Guerin Meschino ou Robin Hood, reis ou filhos de reis ou nobres cavaleiros cados em desgraa, quando triunfarem sobre os seus inimigos iro restaurar uma sociedade de justos em que ser reconhecida a sua verdadeira identidade.

Mas ainda a primeira identidade de antes? O Ulisses que chega a taca como um velho mendigo irreconhecvel a todos talvez j no seja a mesma pessoa que o Ulisses ido para Tria. No por acaso que salvou a vida mudando o nome para Ningum. O nico reconhecimento imediato e espontneo surge por parte do co Argo, como se a continuidade do indivduo se manifestasse atravs de sinais s perceptveis a um olho animal.

As provas da sua identidade so para a ama uma cicatriz do arranho de um javali, para a mulher o segredo da construo da cama nupcial a partir de uma raiz de oliveira, para o pai uma lista de rvores de fruto; tudo sinais que no tm nada de real, que fazem do heri um caador, um carpinteiro ou um hortelo. A estes sinais vm juntar-se a fora fsica e uma combatividade impiedosa contra os inimigos; e sobretudo o favor manifesto dos deuses, que o que convence tambm Telmaco, mas s por acto de f.

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Por sua vez Ulisses, irreconhecvel, despertando em taca no reconhece a sua ptria. Ter de intervir Atena a garantir-lhe que taca mesmo taca. A crise de identidade geral, na segunda metade da Odisseia. S a narrao garante que as personagens e os lugares so as mesmas personagens e os mesmos lugares. Mas at a narrao muda. A histria que o irreconhecvel Ulisses faz ao pastor Eumeu, depois ao rival Antinoo e prpria Penlope outra Odisseia, totalmente diferente; as peregrinaes que de Creta levaram at ali a personagem fictcia que ele diz ser, uma histria de nufragos e piratas muito mais verosmil que a outra que ele prprio contara ao rei dos Fecios. Quem nos diz que no esta a verdadeira Odisseia? Mas esta nova Odisseia remete ainda para mais outra Odisseia: o cretense nas suas viagens encontrou Ulisses: portanto Ulisses conta a histria de um Ulisses em viagem por pases em que a Odisseia que dada por verdadeira no o fez passar.

Que Ulisses seja um mistificador, j se sabe antes da Odisseia. No foi ele que ideou o grande engano do cavalo? E no princpio da Odisseia, as primeiras evocaes da sua personagem so dois flash-backs sobre a guerra de Tria contados um a seguir ao outro por Helena e por Menelau: duas histrias de simulao. Na primeira ele penetra sob disfarce na cidade cercada para a levar carnificina; na segunda encerrado dentro do cavalo com os seus companheiros e consegue impedir que Helena os desmascare induzindo-os a falar.

(Nos dois episdios Ulisses encontra-se perante Helena; no primeiro como aliada, cmplice da simulao; no segundo como adversria, que simula as vozes das mulheres dos aqueus para os induzir a trarem-se. O papel de Helena torna-se contraditrio mas sempre diferenciado da simulao. Do mesmo modo, Penlope tambm se apresenta como simuladora, pelo estratagema da tela; a tela de Penlope um estratagema simtrico ao do cavalo de Tria, e tal como ele um produto da habilidade manual e da contrafaco: as duas principais qualidades de Ulisses tambm so caractersticas de Penlope).

Se Ulisses um simulador, toda a narrativa que ele faz ao rei dos Fecios pode ser mentira. De facto, estas suas aventuras martimas, concentradas nos quatro livros centrais da Odisseia, rpida sucesso de encontros com seres fantsticos (que surgem nos contos populares do folclore de todos os tempos e pases: o ogre Polifemo, os ventos encerrados no odre, os encantos de Circe, sereias e monstros marinhos) contrastam com o resto do poema, em que predominam os tons graves, a tenso psicolgica,

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o crescendo dramtico gravitando em torno de um fim: a reconquista do reino e da esposa assediados pelos Prcidas. Aqui tambm se encontram motivos comuns aos contos populares, como a tela de Penlope e a prova de tiro ao arco, mas estamos num terreno mais prximo dos critrios modernos de realismo e de verosimilhana: os intervenientes sobrenaturais s dizem respeito s aparies dos deuses olmpicos, habitualmente ocultos sob aparncia humana.

Temos porm de recordar que as mesmas aventuras (sobretudo a passada com Polifemo) tambm so evocadas noutros pontos do poema, e portanto o prprio Homero que d a sua confirmao; e no s, os prprios deuses discutem-nas no Olimpo. E que at Menelau, na Telemaquia, conta uma aventura do mesmo gnero fabuloso das de Ulisses: o encontro com o velho do mar. S nos resta atribuir as diversidades do estilo fantstico montagem de tradies de diferentes origens, transmitidas pelos aedos e confluindo depois na Odisseia homrica, que na narrativa de Ulisses na primeira pessoa revelaria o seu estrato mais arcaico.

Mais arcaico? Segundo Alfred Heubeck, as coisas poderiam ter corrido de maneira inclusivamente contrria. (Vd. Omero, Odissea, Livros I-IV, introduzione di Alfred Heubeck, testo e commento a cura di Stephanie West, Fondazione Lorenzo Valla/Mondadori, Milano, 1981).

Ulisses antes da Odisseia (Ilada includa) fora sempre um heri pico, e os heris picos, como Aquiles e Heitor na Ilada, no tm aventuras fabulosas desse tipo, base de monstros e de encantos. Mas o autor da Odisseia tem de pr Ulisses longe de casa durante dez anos, desaparecido, perdido para os familiares e ex-companheiros de armas. Para isso tem de faz-lo sair do mundo conhecido, passar para outra geografia, para um mundo extra-humano, para um alm (no em vo que as suas viagens culminam numa visita aos nferos). Para este exlio fora dos territrios da pica, o autor da Odisseia recorre a tradies (estas sim, mais arcaicas) como as empresas de Jaso e dos Argonautas.

Portanto a novidade da Odisseia a de ter posto um heri pico como Ulisses a braos com bruxas e gigantes, com monstros e comedores de homens, ou seja, em situaes de um tipo de saga mais arcaica, cujas razes se tm de procurar no mundo da antiga fbula, e inclusivamente de primitivas concepes mgicas e xamnicas.

aqui que o autor da Odisseia, segundo Heubeck, manifesta a sua verdadeira modernidade, a que o torna nosso prximo e actual: se tradicionalmente o heri pico era um paradigma de virtudes aristocrticas e militares,

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Ulisses no s isto mas tambm o homem que suporta as experincias mais duras, os trabalhos, a dor e a solido. claro que ele tambm arrasta o seu pblico para um mtico mundo de sonho, mas este mundo de sonho torna-se ao mesmo tempo a imagem especular do mundo real em que vivemos, no qual predominam a necessidade e a angstia, o terror e a dor, e em que o homem est afundado sem sada.

No mesmo volume, Stephanie West, que no entanto parte de premissas diferentes de Heubeck, apresenta uma hiptese que poder validar o seu discurso: a hiptese de que tenha havido uma Odisseia alternativa, outro itinerrio de retorno, anterior a Homero. Homero (ou quem quer que fosse o autor da Odisseia), considerando esta narrativa de viagens demasiado pobre e pouco significativa, t-la-ia substitudo pelas aventuras fabulosas, mas conservando vestgios da original nas viagens do pseudo-cretense. Com efeito no prembulo h um verso que deveria apresentar-se como a sntese de toda a Odisseia: De muitos homens vi as cidades e conheci os pensamentos. Quais cidades? Quais pensamentos? Esta hiptese pode adaptar-se melhor narrativa das viagens do pseudo-cretense...

Porm, assim que Penlope o reconheceu, no tlamo reconquistado, Ulisses volta a contar as histrias dos Ciclopes, das Sereias... No ento a Odisseia o mito de todas as viagens? Talvez para Ulisses-Homero no existisse a distino mentira-verdade, e ele contasse a mesma experincia ora na linguagem do vivido, ora na linguagem do mito, tal como ainda hoje para ns qualquer viagem, pequena ou grande, sempre uma Odisseia.

[1983]

XENOFONTE, ANABASE (A RETIRADA DOS DEZ MIL)

A impresso mais forte que d Xenofonte, ao l-lo hoje, a de que estamos a ver um velho documentrio de guerra, como so repetidos de vez em quando no cran ou no video. Vem espontaneamente ao nosso encontro o fascnio do preto e branco da pelcula um tanto desbotada, com crus contrastes de sombras e movimentos acelerados, a partir de excertos como este (no cap. V do livro IV):

Sempre sobre uma alta espessura de neve percorrem outras quinze parasangas em trs dias. O terceiro dia particularmente terrvel, por via do vento de tramontana que sopra em sentido contrrio marcha: embravece por toda a parte, tudo queimando e congelando os corpos... Para defender os olhos da reverberao da neve, os soldados durante a caminhada pem frente dos olhos qualquer coisa preta: contra o perigo de congelamento, o remdio mais eficaz mexer sempre os ps, nunca estar quieto e sobretudo tirar o calado de noite... Um grupo de soldados, que ficou para trs devido a tais dificuldades, descobriu no muito afastada, num pequeno vale no meio da planura de neve, uma poa castanha: neve derretida, pensam. De facto, a neve derreteu-se naquele ponto, por uma nascente de gua natural, que corre ali perto, exalando vapores para o cu.

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Mas de Xenofonte cita-se mal: o que conta a sucesso contnua de pormenores visuais e de aco; difcil encontrar uma passagem que represente com plenitude o sempre variado prazer da leitura. Talvez este, duas pginas atrs:

Alguns gregos, que se afastaram do campo, declararam ter entrevisto ao longe como que a massa de um exrcito, e muitas fogueiras aparecer na noite. Ouvindo isto, os estrategos reputam pouco seguro permanecer alojados em ordem esparsa, e renem novamente o exrcito. Os soldados acampam todos juntos ao ar livre, j que o tempo parece voltar ao sereno. Nem que de propsito, durante a noite caiu tanta neve que cobriu armas, bichos e homens deitados no solo; os animais tm os membros to rgidos do gelo que no conseguem endireitar-se nas patas; os homens hesitam em levantar-se porque a neve depositada nos corpos e ainda no derretida infunde calor. Xenofonte ento audazmente levanta-se e, desnudando-se, comea a dar machadadas na lenha; ao seu exemplo algum se ergue, tira-lhe da mo o machado e prossegue a obra; mais outros se levantam e acendem o lume; todos untam os membros em vez de leo com unguentos descobertos na aldeia, de sementes de gergelim, de amndoas amargas e de terebinto, e com banha. Extrado das mesmas substncias h at um unguento perfumado.

O rpido passar de uma representao visual para outra, e da anedota, e da ainda anotao dos costumes exticos: este o tecido que serve de fundo a um contnuo desfiar de episdios aventurosos, de obstculos imprevistos marcha do exrcito errante. Todo o obstculo costuma ser superado por meio de uma astcia de Xenofonte: cada cidade fortificada a assaltar, cada armada inimiga que se lhe ope em campo aberto, cada vau, cada intemprie requerem uma descoberta, um faiscar de gnio, uma inveno estratgica do narrador-protagonista-dirigente. Por vezes Xenofonte parece uma personagem infantil das histrias de quadrinhos que em cada episdio consegue safar-se em circunstncias impossveis; alis, tal como precisamente nas histrias infantis, muitas vezes os protagonistas do episdio so dois, os dois oficiais rivais, Xenofonte e Quirsofo, o ateniense e o espartano, e a inveno de Xenofonte sempre a mais astuta, generosa e decisiva.

Em si o tema da Retirada serviria muito bem para um conto pcaro ou heri-cmico: dez mil mercenrios gregos, recrutados com enganador

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pretexto por um prncipe persa, Ciro o Jovem, para uma expedio no interior da sia Menor destinada na realidade a depor o irmo Artaxerxes II, so derrotados na batalha de Cunaxa, e vem-se sem chefes, longe da ptria, a ter de abrir caminho para o regresso por entre populaes inimigas. No querem seno tornar a casa, mas faam o que fizerem constituem um perigo pblico: dez mil homens armados e famintos, aonde chegam depredam e destroem, como um enxame de gafanhotos; e atraem consigo um grande squito de mulheres.

Xenofonte no era o tipo nem de se deixar tentar pelo estilo herico da epopeia nem de saborear - seno raramente - os aspectos truculento-grotescos de uma situao daquelas. O seu um memorial tcnico de um oficial, um dirio de viagem com todas as distncias e pontos de referncia geogrficos e notcias sobre os recursos vegetais e animais, e uma resenha dos problemas diplomticos, logsticos e estratgicos e das respectivas solues.

O conto entremeado por actas de reunies do estado-maior e por discursos de Xenofonte s tropas ou aos embaixadores dos brbaros. Destes trechos oratrios eu conservava dos bancos de escola a lembrana de uma grande chatice, mas estava enganado. O segredo, ao ler a Retirada dos Dez Mil o de nunca saltar nada, de seguir tudo ponto por ponto. Em cada um daqueles discursos h um problema poltico: ou de poltica externa (as tentativas de relaes diplomticas com os prncipes e os chefes dos territrios de que se solicita a passagem) ou de poltica interna (as discusses entre os chefes helnicos, com as habituais rivalidades entre atenienses e espartanos, etc.). E como o livro escrito em polmica com outros generais, sobre a responsabilidade de cada um no comportamento daquela retirada, o fundo de polmicas abertas ou apenas aludidas, dessas pginas que temos de extra-lo.

Como escritor de aco, Xenofonte exemplar; se o compararmos com o autor contemporneo que mais lhe corresponde - o coronel Lawrence - veremos como a mestria do ingls consiste em suspender- como subentendido exactido toda - factos da prosa - uma aura de maravilha esttica e tica em torno dos acontecimentos e das imagens; no grego no, a exactido e a secura no subentendem nada: as duras virtudes do soldado no pretendem ser seno as duras virtudes do soldado.

H realmente um pathos na Retirada: a nsia do regresso, o pavor da terra estrangeira, o esforo de no se dispersar porque enquanto estiverem juntos de certo modo trazem dentro de si a ptria.

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Esta luta pelo regresso de um exrcito conduzido derrota numa guerra que no sua e abandonado a si prprio, este combater j s para abrir o caminho de sada contra ex-aliados e ex-inimigos, tudo isto aproxima a Retirada a um filo das nossas leituras recentes: os livros de memrias sobre a retirada da Rssia dos alpinos italianos. No uma descoberta de hoje: em 1953 Elio Vittorini, ao apresentar o que devia ficar como livro exemplar do gnero, O Sargento na Neve de Mrio Rigoni Stern, definia-o como pequena anabase dialectal. E com efeito os captulos de retirada na neve da Anabase (de que extra as citaes anteriores) so ricos de episdios que poderiam absolutamente ser confundidos com os do Sargento.

Caracterstica de Rigoni Stern e de outros dos melhores livros italianos sobre a retirada da Rssia, que o narrador-protagonista um bom soldado, tal como Xenofonte, e fala das aces militares com competncia e empenho. Para eles assim como para Xenofonte as virtudes guerreiras, na derrocada geral das mais pomposas ambies, tornam-se virtudes prticas e solidrias pelas quais se mede a capacidade de cada um de ser til no s a si prprio mas tambm aos outros. (Recordemos La guerra dei poveri [A Guerra dos pobres] de Nuto Revelli quanto ao apaixonado furor do oficial desiludido; e outro belo livro injustamente descurado, lunghi furli [As longas espingardas] de Cristoforo M. Negrij.

Mas as analogias ficam por aqui. As memrias dos alpinos nascem da contradio de uma Itlia humilde e sensata com as loucuras e o massacre da guerra total; nas memrias do general do sculo V a contradio com a situao do bando de gafanhotos a que se reduziu a armada dos mercenrios helnicos e o exerccio das virtudes clssicas, filosficas-civis-militares, que Xenofonte e os seus tentam adaptar s circunstncias. E resulta que esta contradio no tem de modo algum a pungente tragicidade da outra: ao conciliar os dois termos Xenofonte parece seguro de t-lo conseguido. O homem pode reduzir-se a gafanhoto e no entanto aplicar a esta sua condio de gafanhoto um cdigo de disciplina e de decoro, - numa palavra: um estilo -; e ficar satisfeito; no discutir nem muito nem pouco o facto de ser gafanhoto mas apenas o melhor modo de s-lo. Em Xenofonte j est bem delineada com todos os seus contornos a tica moderna da perfeita eficincia tcnica, do estar altura da situao, do fazer bem o que se faz independentemente da avaliao da prpria aco em termos de moral universal. Continuo a chamar moderna a esta tica porque o era quando eu era jovem,

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e era este o sentido que se extraa de muitos filmes americanos, e at dos romances de Hemimgway, e eu oscilava entre a adeso a esta moral toda tcnica e pragmtica e a conscincia do vazio que se abria por baixo dela. Mas ainda agora, que parece afastadssima do esprito dos tempos, acho que tinha a sua parte boa.

Xenofonte tem o grande mrito, no plano moral, de no mistificar, de nunca idealizar a posio da sua parte. Se em relao aos costumes dos brbaros manifesta muitas vezes o distanciamento e a averso do homem civilizado tem porm de se dizer que lhe estranha a hipocrisia colonialista. Sabe que est cabea de uma horda de predadores em terra estrangeira, e sabe que a razo no est do lado dos seus mas sim do dos brbaros invadidos. Nas suas exortaes aos soldados nunca deixa de recordar as razes dos inimigos: Outra considerao deveis fazer. Os inimigos tero tempo para nos depredarem, e tm boas razes para nos atacarem, dado que ocupamos a propriedade deles.... em procurar dar um estilo, uma norma, a este movimento biolgico de homens vidos e violentos entre as montanhas e as plancies da Anatlia que est toda a sua dignidade: dignidade limitada, no trgica, no fundo burguesa. Sabemos que se pode conseguir muito bem dar a aparncia de estilo e dignidade s piores aces, mesmo que no ditadas como esta, por um estado de necessidade. O exrcito dos helenos que serpenteia pelo meio das gargantas das montanhas e dos vaus, entre contnuas em boscadas e saques, j no distinguindo at onde vtima e at onde opressor, cercado at na frieza dos massacres pela suprema hostilidade da indiferena e do acaso, inspira uma angstia simblica que s ns podemos entender.

[1978]

OVDIO E A CONTIGUIDADE UNIVERSAL

H l no alto no cu uma via, que se v quando est sereno. Lctea se chama, e sobressai precisamente pelo seu esplendor. Por ela passam os deuses para se dirigirem morada do grande Tonante, ao palcio real. direita e esquerda, com as portas abertas, so os trios dos deuses nobres, sempre apinhados. A plebe habita dispersa pelos outros stios. Os deuses mais poderosos e ilustres estabeleceram aqui o seu domiclio, na frente ("...a fronte potentes / caelicolae clarique suos posuere penates"). Se a expresso no soasse a irreverncia, atrever-me-ia a dizer que este lugar o Palatino do grande cu.

assim que Ovdio, na abertura das Metamorfoses, para nos introduzir no mundo dos deuses celestes, comea por aproxim-lo tanto de ns que o torna idntico Roma de todos os dias, como urbanstica, como diviso em classes sociais, como factos de costume (o apinhar-se dos clientes). E como religio: os deuses tm os seus Penates nas casas em que habitam, o que implica que os soberanos do cu e da terra tributam por sua vez um culto aos seus pequenos deuses domsticos.

Aproximao no quer dizer reduo ou ironia: estamos num universo em que as formas preenchem densamente o espao mudando continuamente de qualidades e dimenses, e o fluir do tempo preenchido por um proliferar de contos e de ciclos de contos.

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As formas e as histrias terrestres repetem formas e histrias celestes mas tanto umas como outras se deixam envolver por sua vez numa dupla espiral. A contiguidade entre os deuses e os seres humanos - aparentados aos deuses e objecto dos seus amores compulsivos - um dos temas dominantes das Metamorfoses, mas apenas um caso particular da contiguidade entre todas as figuras ou formas do que existe, antropomrficas ou no. Fauna, flora, reino mineral e firmamento englobam na sua substncia comum o que ns costumamos considerar humano como conjunto de qualidades corpreas, psicolgicas e morais.

A poesia das Metamorfoses enraza-se sobretudo nestas indistintas fronteiras entre mundos diferentes e logo no livro II encontra uma oportunidade extraordinria no mito de Faton que ousa pr-se s rdeas do carro do Sol. O cu aparece como um espao absoluto, geometria abstracta, e ao mesmo tempo como teatro de uma aventura humana transmitida com tanta preciso de pormenores que no nos deixa perder o fio meada nem por um segundo, levando o envolvimento emotivo at ao espasmo.

No s a preciso nos dados concretos mais materiais, como o movimento do carro que se despista e d solavancos devido inslita leveza da carga, ou nas emoes do jovem cocheiro desajeitado, mas na visualizao de modelos ideais, como o mapa celeste. Digamos j que se trata de uma preciso aparente, de dados contraditrios que comunicam a sua sugesto se tomados um a um e at como efeito narrativo geral, mas no podem saldar-se numa viso coerente: o cu uma esfera atravessada por vias a subir e a descer, reconhecveis pelos sulcos das rodas, mas ao mesmo tempo girando freneticamente em direco contrria do carro solar; est suspenso a uma altura vertiginosa por cima das terras e dos mares que se vem l ao fundo; ora aparece como uma abbada dominante em cuja parte mais alta esto fixadas as estrelas, ora como uma ponte que sustm o carro no vcuo provocando em Faton um igual terror de prosseguir ou de recuar (Quid faciat? Multum caeli post terga relictum ante culos plus est. Animo metitur utrumque); vcuo e deserto (no o cu-urbe do livro I, portanto: Acaso pensars que haja bosques sagrados e cidades dos deuses e templos ricos de oferendas? diz Febo), povoado pelas figuras de animais ferozes que so s simulacro, formas de constelaes, mas nem por isso menos ameaadoras; nelas reconhece-se uma pista oblqua, a meia costa, que evita o plo austral e a Ursa; mas se sair da estrada e se se perder pelos precipcios acaba

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por passar debaixo da Lua, por chamuscar as nuvens e por pegar fogo Terra.

Aps a cavalgada celeste suspensa no vcuo, que a parte mais sugestiva da narrao, comea a grande descrio da Terra a arder, do mar fervente em que flutuam corpos de focas de barriga para o ar, uma das clssicas pginas do Ovdio catastrfico, que serve de suporte ao dilvio do livro I. Em volta da Alma Tellus, da Terra Me, concentram-se todas as guas. As fontes consumidas procuram tornar a sepultar-se no escuro tero materno (fontes qui se condiderant in opacae vscera matris...) E a Terra, mostrando os cabelos chamuscados e os olhos injectados de cinzas, suplica a Jpiter com o fio de voz que resta sua garganta sequiosa, avisando-o de que se os plos se incendiarem tambm os palcios dos deuses ruiro. (Os plos terrestres ou os celestes? Fala-se tambm do eixo da Terra que Atlas j no consegue suster porque est incandescente. Mas os plos naquela poca eram uma noo astronmica, e de resto o verso seguinte precisa: regia caeli. Ento o palcio real do cu era de facto l em cima? Ento por que motivo Febo o exclua e Faton no o encontrou? Alis estas contradies no existem s em Ovdio; tambm a partir de Virglio, tal como dos outros maiores poetas da antiguidade, difcil fazer uma ideia clara de como realmente viam o cu os antigos).

O episdio culmina com a destruio do carro solar atingido pelo raio de Jpiter, numa exploso de fragmentos estilhaados: Ilic frena iacent, ilic temone revulsus axis, in hac radii fractarum parte rotarum... (No este o nico acidente de trnsito nas Metamorfoses: outra derrapagem a grande velocidade a de Hiplito no ltimo livro do poema, em que a riqueza de pormenores ao referir o sinistro passa da mecnica anatomia, descrevendo o horror das vsceras e dos ossos de fora).

A interpenetrao deuses-homens-natureza implica no uma ordem hierrquica unvoca mas sim um intricado sistema de inter-relao em que cada nvel pode influir sobre os outros, embora em medidas diferentes. O mito, em Ovdio, o campo de tenso em que estas foras se defrontam e se equilibram. Tudo depende do esprito com que narrado o mito: s vezes os prprios deuses contam os mitos de que fazem parte como exemplos morais para advertir os mortais; outras vezes os mortais usam os prprios mitos em polmica ou como desafio aos deuses, como fazem as Pirides ou Aracne. Ou talvez haja mitos que os deuses gostem de ouvir contar e outros que prefiram ver calados.

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As Pirides so uma verso da escalada dos Gigantes ao Olimpo vista pelo lado dos Gigantes, com o medo dos deuses postos em fuga (livro V). Narram-na depois de terem desafiado as Musas na arte da narrativa, e as Musas respondem com outra srie de mitos que restabelecem as razes do Olimpo; a seguir punem as Pirides transformando-as em pegas. O desafio aos deuses implica uma inteno irreverente ou blasfema no conto: a tecedeira Aracne desafia Minerva na arte do tear e representa numa tapearia os pecados dos deuses libertinos (livro VI).

A preciso tcnica com que Ovdio descreve o funcionamento dos teares no desafio pode dar-nos uma possvel identificao do trabalho do poeta com a tecelagem de uma tapearia de prpura multicor. Mas qual? A de Palas-Minerva, onde em torno das grandes figuras olmpicas com os seus tradicionais atributos so representadas, em mnimas cenas nos quatro cantos da tela, emolduradas em ramos de oliveira, quatro punies divinas a mortais que desafiaram os deuses? Ou a de Aracne, em que as insidiosas sedues de Jpiter e Neptuno e Apolo que Ovdio j contara longamente reaparecem como alegorias sarcsticas por entre grinaldas de flores e festes de hera (no sem acrescentar um ou outro pormenor precioso: Europa que, levada pelos mares na garupa do touro, levanta os ps para no se molhar: ...tactumque vereri adsilientis aquae timidasque reducere plantas)!

Nem uma nem outra. No grande mostrurio de mitos que todo o poema, o mito de Palas e Aracne pode conter por sua vez dois mostrurios em escala reduzida orientados em direces ideolgicas opostas: um para infundir um sacro temor, o outro para incitar irreverncia e relatividade moral. Quem da inferir que todo o poema deve ser lido no primeiro modo - dado que o desafio de Aracne cruelmente castigado - ou no segundo - dado que o potico ajuste de contas favorece a culpada e vtima - enganar-se-ia redondamente: as Metamorfoses pretendem representar o conjunto do que narrvel transmitido pela literatura com toda a fora de imagens e de significados que isso implica, sem se decidir - de acordo com a ambiguidade propriamente mtica - entre as chaves de leitura possveis. S acolhendo no poema todas as narrativas e intenes de narrativa que circulam em todas as direces, que se amontoam e empurram para se canalizarem na ordenada extenso dos seus hexmetros, o autor das Metamorfoses ter a certeza de no servir um desgnio parcial mas sim a multiplicidade viva que no exclui nenhum deus conhecido ou desconhecido.

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O caso de um deus novo e estrangeiro, nada fcil de reconhecer como tal, um deus-escndalo em contradio com todos os modelos de beleza e virtude, amplamente recordado nas Metamorfoses: Baco-Dionsio. ao seu culto orgaco que as devotas de Minerva (as filhas de Minias) se recusam a juntar-se e continuam a fiar e a cardar a l nos dias das festas bquicas, aliviando a longa fadiga com os contos. Eis assim outro uso dos contos, que laicamente se justifica com o divertimento puro (quod tmpora longa videri non sinat) e com o auxlio da produtividade (utile opus manuum vario sermone levemus) mas que no entanto se dedica a Minerva, melior dea para essas laboriosas donzelas a quem repugnam as orgias e devassido dos cultos de Dionsio, que inundaram a Grcia depois de ter conquistado o Oriente.

certo que a arte de contar, to cara s tecedeiras, tem uma ligao ao culto de Palas-Minerva. Vimo-lo com Aracne, que por ter desprezado a deusa transformada em aranha; mas vemo-lo tambm no caso oposto, de um culto excessivo por Palas que leva a ignorar os outros deuses. Tambm as filhas de Minias, com efeito (livro IV), culpadas de serem demasiado seguras das suas virtudes, e demasiado exclusivas na sua devoo (intempestiva Minerva), sero castigadas horrendamente, com a metamorfose em morcegos, pelo deus que no conhece o trabalho mas sim a embriaguez, que no ouve as histrias mas sim o canto irresistvel e obscuro. Para no ser tambm transformado em morcego, Ovdio tem muito cuidado em deixar abertas todas as portas do seu poema aos deuses passados presentes e futuros, indgenas e estrangeiros, ao Oriente que para alm da Grcia persegue o mundo das fbulas, e restaurao augustal da romanidade que pressiona a actividade poltico-intelectual. Mas no conseguir convencer o deus mais prximo e executivo, Augusto, que o transformar para sempre em exilado, num habitante da lonjura, a ele que queria tornar tudo prximo e presente.

Do Oriente (de algum antepassado das Mil e uma noites, diz Wilkinson) vem-lhe a romntica novela de Pramo e Tisbe (que uma das Minades escolhe numa srie de outras da mesma misteriosa origem), com o muro que abre caminho s palavras sussurradas mas no aos beijos, com a noite branca do luar sob a cndida amoreira, que mandar os seus reflexos at noite de Vero isabelina.

Do Oriente atravs do romance alexandrino chega a Ovdio a tcnica de multiplicao do espao interior obra por meio dos contos encaixados noutros contos, que aumentam aqui a impresso de denso,

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De pululante, de intrincado. Como a floresta em que uma caa ao javali envolve os destinos de ilustres heris (livro VIII), no longe dos abismos do Aqueloo, que detm os regressados da caa no caminho de volta. Estes so acolhidos na residncia do deus fluvial, que se apresenta como obstculo e ao mesmo tempo como refgio, como pausa na aco, momento de narrao e de reflexo. Como entre os caadores est no s Teseu curioso de conhecer a origem de tudo o que v, mas tambm Pirtoo descrente e insolente (deorum spretor erat mentisqueferox), o rio sente-se encorajado a contar histrias maravilhosas de metamorfoses, no que imitado pelos convidados. Assim continuamente se saldam nas Metamorfoses novas concrees de histrias como de conchas de que pode nascer a prola: neste caso o humilde idlio de Filmon e Bucis que contm todo um mundo minucioso e um ritmo totalmente diferente.

Deve-se dizer que destas complicaes estruturais Ovdio s ocasionalmente se serve: a paixo que domina o seu talento compositivo no a sistematicidade mas sim a acumulao, e est ligada s variaes de perspectiva e s mudanas de ritmo. Por isso, quando Mercrio, para adormecer Argo cujas cem plpebras nunca se baixam todas juntas, comea a contar as metamorfoses da ninfa Siringe num tufo de canas, a sua narrao referida em parte por extenso, e em parte resumida numa nica frase, porque a continuao do conto se tornou implcita pelo emudecimento do deus, quando v que todos os olhos de Argo cederam ao sono.

As Metamorfoses so o poema da rapidez: tudo deve suceder-se num ritmo cerrado, impor-se imaginao, cada imagem tem de se sobrepor a outra imagem, adquirir evidncia e desvanecer-se. o princpio do cinematgrafo: cada verso como cada fotograma deve estar pleno de estmulos visuais em movimento. O horror vacul domina tanto o espao como o tempo. Durante pginas e pginas todos os verbos esto no presente, tudo se passa diante dos nossos olhos, os factos perseguem-nos, nega-se toda a distncia. E quando Ovdio sente a necessidade de mudar de ritmo, a primeira coisa que faz no mudar o tempo dos verbos mas sim a pessoa, passar da terceira para a segunda, ou seja, introduzir a personagem de quem vai falar dirigindo-se-lhe directamente por tu: Te quoque mutatum torvo, Neptune, invaico.... O presente no existe s no tempo verbal mas a prpria presena da personagem que evocada. Mesmo quando os verbos esto no passado, o vocativo opera uma aproximao repentina. Este procedimento usado muitas vezes quando vrios sujeitos

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efectuam aces paralelas, para evitar a monotonia na listagem. Se falou de Tcio na terceira pessoa, Tntalo e Ssifo so chamados em causa por tu e com o vocativo. segunda pessoa tm direito at as plantas (Vos quoque, flexipedes hederae, venistis...) e no h razo para espantos, sobretudo quando so plantas que se movem como pessoas e acorrem ao som da ctara do vivo Orfeu, acumulando-se num denso viveiro da flora mediterrnica (livro IX).

Tambm h momentos - e aquele de que agora se fala um deles- em que a narrao tem de abrandar a velocidade, passar para um andamento mais calmo, tornar o passar do tempo como que suspenso, uma velada distncia. Nestes casos o que faz Ovdio? Para ser claro que a narrao no tem pressa, detm-se a fixar os nfimos pormenores. Por exemplo: Filmon e Bucis recebem na sua humilde casa os visitantes desconhecidos, os deuses. ...Mensae sed erat ps tertius impar: testa parem fedi; quae postquam sbdita clivam sustulit, aequatam mentae tersere virentes... Mas uma das trs pernas da mesa muito curta. Um calo nivela-a; enfiado por baixo elimina a inclinao, e o tampo depois limpo com folhas de hortel verde. E em cima pem-se azeitonas de duas cores, consagradas pura Minerva, e comalinas outonais em molho lquido, e endvias e rbanos e uma forma de leite, coalhado, e ovos rolados delicadamente em cinzas no demasiado escaldantes: tudo em loia de barro... (livro VIII).

continuando a enriquecer o quadro que Ovdio alcana um resultado de rarefaco e de pausa. Porque o gesto de Ovdio sempre o de acrescentar, nunca o de tirar; de entrar cada vez mais no pormenor, nunca de se esfumar no vago. Procedimento que surte efeitos diferentes conforme a entoao, ora submissa e solidria com as pobres coisas, ora excitada e impaciente de saturar o maravilhoso da fbula com a observao objectiva dos fenmenos da realidade natural. Como quando Perseu luta com o monstro marinho de dorso incrustado de conchas, e pousa a cabea hirta de serpentes da Medusa de cara para baixo num rochedo, depois de ter estendido - para no sofrer o contacto com a areia grossa - uma camada de algas e de plantinhas nascidas na gua. Vendo as ramagens tornar-se pedras ao contacto com a Medusa, as Ninfas divertem-se a fazer sofrer a mesma transformao a outros ramos: assim nasce o coral que, mole debaixo de gua, se petrifica ao contacto com o ar; assim Ovdio conclui a aventura fabulosa como lenda etiolgica, no seu gosto pelas formas estranhas da natureza.

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Uma lei de mxima economia interna domina este poema aparentemente votado ao dispndio desenfreado. a economia prpria das metamorfoses, que exige que as novas formas recuperem o mais possvel os materiais das velhas. Aps o dilvio, no transformar-se das pedras em seres humanos (livro I) se havia nelas uma parte hmida de qualquer suco ou terrosa, esta passou a fazer de corpo; o que era slido, impossvel de vergar, tornou-se osso; as que eram veias ficaram, com o mesmo nome. Aqui a economia alarga-se ao nome: quaemodovenafuit, sub eodem nomine mansit. Dafne (livro I) de quem o que chama mais a ateno so os cabelos descompostos (de tal modo que o primeiro pensamento de Febo ao v-la : Imaginem, se se penteasse! Spectat inornatos collopendere capillos / et "Quid, si comantur? ait est ) est j predisposta nas linhas flexuosas da sua fuga metamorfose vegetal: ... in frondem crines, in ramos bracchia crescunt; / pes modo torn velox pigris radicibus haeret... Cane (livro V) no faz seno levar ao extremo a consumao em lgrimas (lacrimisque absumitur omnis) at se dissolver no lago de que era ninfa. E os camponeses da Lcia (livro VI) que errante Latona que pretende dessedentar os seus gmeos recm-nascidos lanam injrias e turvam o lago agitando o seu lodo, j no eram muito diferentes das rs em que se transformam por justo castigo: basta que desaparea o pescoo, os ombros se unam cabea, o dorso se torne verde e o ventre esbranquiado.

Esta tcnica da metamorfose foi estudada por Sceglov num ensaio bem claro e persuasivo. Todas estas transformaes - diz Sceglov - tm precisamente a ver com os factos diferenciadores fsico-espaciais que Ovdio costuma isolar nos objectos mesmo fora da metamorfose ("pedra dura", "corpo comprido", "espinha curvada")... Graas ao seu conhecimento das propriedades das coisas, o poeta faz a transformao percorrer o caminho mais curto, visto que sabe antecipadamente o que tem o homem em comum com o golfinho, o que lhe falta ou o que tem mais em relao a este. O facto essencial que, graas representao de todo o mundo como um sistema de propriedades elementares, o processo da transformao - este fenmeno inverosmil e fantstico - reduz-se a uma sucesso de processos bastante simples. O acontecimento j no apresentado como uma fbula mas sim como toda uma srie de factos habituais e verosmeis (crescimento, diminuio, endurecimento, amolecimento, encurvamento, retesamento, conjuno, rarefaco, etc..

A escrita de Ovdio, como Sceglov a define, conteria em si o modelo ou pelo menos o programa de um Robbe-Grillet mais frio e mais rigoroso.

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evidente que esta definio no esgota o que podemos achar em Ovdio. Mas o importante que este modo de designar objectivamente os objectos (animados e inanimados) como diferentes combinaes de um nmero relativamente pequeno de elementos fundamentais e simplicssimos corresponde nica filosofia certa das Metamorfoses: a da unidade e parentesco de tudo o que existe no mundo, coisas e seres vivos.

com o conto cosmognico do livro I e a profisso de f de Pitgoras no ltimo, Ovdio quis dar uma sistematizao terica a esta filosofia natural, talvez em concorrncia com o distantssimo Lucrcio. Sobre o valor a dar a estes enunciados tem-se discutido muito, mas talvez a nica coisa que conta para ns seja a coerncia potica no modo que tem Ovdio de representar e contar o seu mundo: este fervilhar e amontoar de casos muitas vezes semelhantes e sempre diferentes, em que se celebra a continuidade e a mobilidade do todo.

Ainda no encerrou o captulo das origens do mundo e das catstrofes primordiais e j Ovdio se atira srie dos amores dos deuses pelas ninfas ou pelas mulheres mortais. As histrias amorosas (que ocupam predominantemente a parte mais viva do poema, os primeiros onze livros) apresentam vrias constantes: como mostra depois Bernardini, trata-se de enamoramentos primeira vista, um apelo premente, sem complicaes psicolgicas, que exige uma satisfao imediata. E como a criatura desejada normalmente se recusa e foge, frequente o motivo da perseguio nos bosques; a metamorfose pode intervir em momentos diferentes, ora como disfarce do sedutor ora como sada para a sitiada ou punio da seduzida por parte de outra divindade ciumenta.

Em comparao com o contnuo perseguir dos desejos masculinos, os casos de iniciativa amorosa feminina so mais raros; mas em compensao trata-se de amores mais complexos, no de caprichos extemporneos mas sim de paixes, que contm uma riqueza psicolgica maior (Vnus enamorada de Adnis), implicam com frequncia uma componente ertica mais mrbida (a ninfa Salmacis que na cpula com Hermafrodito se funde numa criatura bissexual), e em certos casos trata-se de paixes ilcitas, incestuosas (como as trgicas personagens de Mirra e de Bblis; o modo como a esta ltima se revela a paixo pelo irmo, o sonho, as perturbaes, so uma das mais belas pginas do Ovdio psiclogo), ou homossexuais (como fis), ou de criminoso cime (como Medeia). As histrias de Jaso e Medeia abrem no meio do poema (livro VII) o espao de um verdadeiro romance, em que se entrelaam a aventura e a cupidez

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passional o o grotesco negro da receita dos filtros de feitiaria, que passar com a mesma equivalncia para o Macbeth.

O saltar sem intervalos de uma histria para a outra sublinhado pelo facto - como observa Wilkinson - de que o fim de uma histria raramente coincide com o fim de um dos livros em que est dividido o poema. Ovdio pode comear uma histria nova quando lhe faltam poucos versos para o fim de um livro, e este em parte o velho expediente do folhetinista que agua o apetite do leitor para o prximo episdio, mas tambm um sinal da continuidade da obra, que no seria dividida em livros se pelo seu comprimento no precisasse de um certo nmero de volumes. Assim comunica-se-nos a impresso de um mundo real e coerente em que se verifica uma interaco entre acontecimentos que costumam ser considerados isoladamente.

As histrias podem parecer-se, mas nunca repetir-se. No em vo que a histria mais impressionante a do infeliz amor (livro iII) da ninfa Eco, condenada repetio dos sons, pelo jovem Narciso, condenado contemplao da sua prpria imagem repetida no espelho lquido. Ovdio atravessa a correr esta floresta de histrias amorosas todas parecidas e todas diferentes, perseguido pela voz de Eco que se repercute por entre as rochas: Coeamus! Coeamus! Coeamus!

[1979]

O CU, O HOMEM, O ELEFANTE

Para maior prazer da leitura, na Histria Natural de Plnio, o Antigo, aconselharei que se aponte sobretudo para trs livros: os dois que contm os elementos da sua filosofia, ou sejam o II (sobre a cosmografia) e o VII (sobre o homem), e, como exemplo das suas cavalgadas entre a erudio e a fantasia, o VIII (sobre os animais terrestres). Naturalmente podem descobrir-se pginas extraordinrias por toda a parte: nos livros de geografia (III-VI), de zoologia aqutica, entomologia e anatomia comparada (IX-XI), de botnica, agronomia e farmacologia (XII-XX), ou sobre os metais e pedras preciosas e as belas-artes (XXXII-XXXVII).

O uso que sempre se fez de Plnio, creio eu, o da consulta, quer para conhecer coisas que os antigos sabiam ou julgavam saber sobre um dado assunto, quer para respigar curiosidades e estranhezas. (Sob este ltimo aspecto, no se pode esquecer o livro I, ou seja o sumrio da obra, cujas sugestes provm das associaes imprevistas: Peixes que tm um seixinho na cabea; Peixes que se escondem de Inverno; Peixes que sentem a influncia dos astros; Preos extraordinrios pagos por certos peixes, ou ento Da rosa: 12 variedades, 32 frmacos; 3 variedades de lrios: 21 frmacos; Planta que nasce de uma sua lgrima; 3 variedades de narcisos: 16 frmacos; Planta de que se tinge a semente para nascerem flores coloridas; O aafro: 20 frmacos; Onde se do as flores melhores;

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Quais as flores conhecidas nos tempos da guerra de Tria; Roupas que rivalizam com as flores, ou ainda: Natureza dos metais; Do ouro; Da quantidade de ouro possuda pelos antigos; Da ordem equestre e do direito de usar anis de ouro; Quantas vezes a ordem equestre mudou de nome?) Mas Plnio tambm um autor que merece uma leitura dilatada, no calmo movimento da sua prosa, animada pela admirao por tudo o que existe e pelo respeito pela infinita diversidade dos fenmenos.

Poderemos distinguir um Plnio poeta e filsofo, com um seu sentimento do universo, um seu pathos do conhecimento e do mistrio, e um Plnio neurtico coleccionador de dados, compilador obsessivo, que s parece preocupar-se com o no desperdiar nenhuma anotao do seu mastodntico ficheiro. (Na utilizao das fontes escritas era omnvoro e eclctico, mas no acrlico: havia o dado que tomava por bom, o que registava com benefcio da dvida e o que refutava como evidente patranha: s que o mtodo das suas avaliaes parece por vezes oscilante e imprevisvel). Mas uma vez admitida a existncia destas duas faces, tem de se reconhecer logo que Plnio sempre uno, tal como uno o mundo que ele quer descrever na variedade das suas formas. Para alcanar os seus intentos, no receia dar fundo ao ilimitado nmero das formas existentes, multiplicado pelo ilimitado nmero de notcias existentes sobre todas estas formas, porque as formas e notcias para ele tm o mesmo direito de fazer parte da histria natural e de serem interrogadas por quem procurar nelas o sinal de uma razo superior que ele cr que devero conter.

O mundo o cu eterno e no-criado, cuja abbada esfrica e rotante cobre todas as coisas terrenas (II, 2), mas o mundo dificilmente pode distinguir-se de Deus que para Plnio e para a cultura estica um Deus nico, no identificvel com qualquer das suas partes ou aspectos, nem com a multido de personagens do Olimpo (mas talvez sim com o Sol, alma ou mente ou esprito do cu, II, 13). Mas ao mesmo tempo o cu feito de estrelas eternas como ele (as estrelas tecem o cu e ao mesmo tempo o cu feito de estrelas eternas como ele (e as estrelas tecem o cu e ao mesmo tempo so inseridas no tecido celeste: aetema caelestibus est natura intexentibus mundum intextuque concretis, II, 30), mas tambm o ar (por cima e por baixo da Lua) que parece vazio e derrama c para baixo o esprito vital e gera nuvens, granizo, troves, raios e tempestades (II, 102).

Quando falamos de Plnio nunca sabemos at que ponto podemos atribuir-lhe as ideias que exprime; com efeito, tem sempre o escrpulo de

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pr de seu o menos possvel, atendo-se ao que transmitem as fontes; e isto de acordo com uma ideia impessoal do saber, que exclui a originalidade individual. Para tentarmos compreender qual realmente o seu sentido da natureza, qual o lugar que nele ocupa a arcana majestade dos princpios e o que ocupa a materialidade dos elementos, teremos de nos ater ao que seu de certeza, ou seja, substncia expressiva da sua prosa. Vejam-se por exemplo as pginas sobre a Lua, em que o tom de comovida gratido por este astro ltimo, o mais familiar a todos os que vivem na terra, remdio para as trevas (novissimum sidus, terrs familiarissimum et in tenebrarum remedium..., II, 41) e por tudo o que nos ensina com o movimento das suas fases e dos seus eclipses, vem juntar-se gil funcionalidade das frases para nos dar este mecanismo com cristalina limpidez. nas pginas astronmicas do livro II que Plnio demonstra poder ser algo mais que o compilador de gosto imaginoso que se costuma dizer, e se revela um escritor que possua o que ser o dote principal da grande prosa cientfica: dar com ntida evidncia o raciocnio mais complexo, dele extraindo um sentimento de harmonia e de beleza.

Isto sem nunca se deixar arrastar para a especulao abstracta. Plnio atm-se sempre aos factos (aos que ele considera factos ou que algum considerou como tal): no aceita a infinidade dos mundos porque a natureza deste mundo j bastante difcil de conhecer e a infinidade no simplificaria o problema (II, 4); no acredita no som das esferas celestes, nem como fragor para alm do audvel nem como indescritvel harmonia, porque para ns, que estamos dentro dele, o mundo desliza dia e noite em silncio (II, 6).

Depois de ter despido Deus das caractersticas antropomrficas que a mitologia atribui aos imortais do Olimpo, Plnio tem logicamente de aproximar Deus dos homens pelos limites impostos pela necessidade aos seus poderes (alis, num caso Deus menos livre que os homens, porque no poderia matar-se mesmo que quisesse): Deus no pode ressuscitar os defuntos, nem fazer que quem vive no tenha vivido; no tem nenhum poder sobre o passado, sobre a irreversibilidade do tempo (II, 27). Tal como o Deus de Kant, no pode entrar em conflito com a autonomia da razo (no pode evitar que dez mais dez faam vinte), mas o defini-lo nestes termos afastar-nos-ia do imanentismo pnico da sua identificao com a fora da natureza (per quae declaratur haut dubie naturae potentia idque esse quod deum vocemus, II, 27).

Os tons lricos ou lrico-filosficos que dominam os primeiros captulos do livro II

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correspondem a uma viso de harmonia universal que no tarda a apresentar brechas; uma parte considervel do livro dedicada aos prodgios celestes. A cincia de Plnio oscila entre a tentativa de reconhecer uma ordem na natureza e o registo do extraordinrio e do nico: e o segundo aspecto acaba sempre por ganhar a partida. A natureza eterna e sagrada e harmoniosa, mas deixa uma larga margem ao surto de fenmenos prodigiosos inexplicveis. Que concluso geral devemos tirar da? Que se trata de uma ordem monstruosa, toda feita de excepes regra? Ou que se trata de regras to complexas que escapam ao nosso entendimento? Em ambos os casos, para cada facto deve existir alguma explicao, mesmo que por agora a ignoremos: Tudo coisas de explicao incerta e oculta na majestade da natureza (II, 101), e logo a seguir: Adeo causa non deest (II, 115), no so as causas que faltam, uma causa pode-se sempre arranjar. O racionalismo de Plnio exalta a lgica das causas e dos efeitos, mas ao mesmo tempo minimiza-a: quando descobrimos tambm a explicao dos factos, nem por isso os factos deixam de ser maravilhosos.

A mxima que acabei de citar conclui um captulo sobre a origem misteriosa dos ventos; cumes de montanhas, concavidades de vales que lanam de uns para os outros os sopros de ar como os sons do eco, uma gruta na Dalmcia para onde basta atirar qualquer coisa por muito leve que seja para desencadear uma tempestade marinha, uma rocha na Cirenaica que basta tocar com uma mo para levantar um turbilho de areia. Catlogos destes de factos estranhos, desligados entre si, Plnio d-nos muitssimos: uns sobre os efeitos do raio no homem, com as suas chagas frias (entre as plantas o raio s poupa o louro, entre as aves a guia, II, 146), outros sobre as chuvas extraordinrias (de leite, de sangue, de carne, de ferro ou esponjas de ferro, de l, de tijolos cozidos, II, 147).

E no entanto Plnio limpa o campo de muitas lendas, como os pressgios dos cometas (por exemplo, refuta a crena de que um cometa que aparea entre as partes pudibundas de uma constelao - o que no viam no cu estes antigos! - anuncia uma poca de devassido dos costumes: obscenis autem moribus in verendis partibus signorum, II, 93), alis, cada prodgio apresenta-se-lhe como um problema da natureza, na medida em que a outra face da norma. Plnio defende-se das supersties, mas nem sempre sabe reconhec-las, e isto verifica-se sobretudo no livro VII, onde fala da natureza humana: at sobre factos facilmente observveis

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refere as crenas mais abstrusas. tpico o captulo sobre as menstruaes (VII, 63-66), mas tem de se observar que as notcias de Plnio vo todas no sentido dos mais antigos tabus religiosos relativos ao sangue menstrual. H uma rede de analogias e de valores tradicionais que no entra em contradio com a racionalidade de Plnio; como se esta assentasse tambm no mesmo terreno. Assim ele por vezes inclina-se a construir explicaes analgicas de tipo potico ou psicolgico: Os cadveres dos homens flutuam de costas, e os das mulheres de bruos, como se a natureza quisesse respeitar o pudor das mulheres mortas (VII, 77).

Raramente Plnio refere factos testemunhados pela sua prpria experincia directa: vi de noite durante os quartos de sentinela diante das trincheiras brilhar luzes em forma de estrela nas lanas dos soldados (II,101); durante o principado de Cludio, vimos um centauro que ele mandou vir do Egipto, conservado em mel (VII, 35); eu mesmo vi em frica um cidado de Tisdro, transformado de mulher em homem no dia das npcias (VII, 36).

Mas para um investigador como ele, protomrtir da cincia experimental, que iria morrer asfixiado pelas exalaes do Vesvio em erupo, as observaes directas ocupam um lugar mnimo na sua obra, e no contam nem mais nem menos que as notcias lidas nos livros, tanto mais autorizados quanto mais antigos forem. Quando muito ele pe uma mo frente, declarando: Contudo, para a maior parte destes factos, no empenharia a minha palavra, mas prefiro guiar-me pelas fontes, a que remeto em todos os casos dbios, sem me cansar de seguir os Gregos, que so os mais exactos na observao, bem como os mais antigos (VII, 8).

Aps este prembulo, Plnio sente-se autorizado a lanar-se na sua famosa resenha das caractersticas prodigiosas e incrveis de certos povos do ultramar, que ser to afortunada na Idade Mdia e at depois, e transformar a geografia numa barraca de fenmenos vivos. (Os ecos prolongar-se-o at nos relatos de viagens verdadeiras, como as de Marco Polo). No deve espantar ningum que as lendas desconhecidas fronteira da Terra alberguem seres na fronteira do humano: os Arimaspos com um olho s no meio da fronte, que disputam as minas de ouro aos grifos; os habitantes das florestas de Abarimon, que correm velocssimos com os ps ao contrrio; os andrginos de Nasamona que alternam um ou o outro sexo quando acasalam; os Tbios, que num olho tm duas pupilas e no outro a figura de um cavalo. Mas o grande Circo Barnum

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apresenta os seus nmeros mais espectaculares na ndia, onde se pode encontrar uma populao montanhesa de caadores com cabea de co; e outra de saltadores numa nica perna, que para descansar sombra se deitam levantando o nico p como guarda-sol; e outra ainda de nmadas de pernas em forma de serpente; e os Astomos sem boca, que vivem cheirando perfumes. No meio, notcias que agora sabemos serem verdadeiras, como a descrio dos faquires indianos (denominados por filsofos gimnosofistas), ou que continuam a alimentar as crnicas misteriosas que lemos nos nossos jornais (onde se fala de ps imensos, poder tratar-se do Yeti dos Himalaias), ou lendas cuja tradio se prolongar no decorrer dos sculos, como a relativa aos poderes taumatrgicos dos reis (o rei Pirro que curava as doenas do bao com a imposio do dedo grande do p).

De tudo isto ressalta uma ideia dramtica da natureza humana, como uma coisa precria, insegura: a forma e o destino do homem esto pendurados num fio. Dedicam-se muitas pginas imprevisibilidade do parto, com os casos excepcionais e as dificuldades e os perigos. Esta tambm uma zona de fronteira: quem quer que exista poderia no existir, ou ser diferente, e l que se decide tudo.

Tudo nas mulheres grvidas, como por exemplo o modo de caminhar, influi no parto: se tomarem comidas demasiado salgadas do ao mundo uma criana sem unhas; se no souberem conter a respirao, tero maior dificuldade em parir; at mesmo um bocejo durante o parto pode ser fatal; assim como um espirro durante o coito pode provocar o aborto. Cobre-se de compaixo e de vergonha quem se der conta de como precria a origem do mais soberbo dos seres vivos: muitas vezes para abortar basta o odor de uma candeia acabada de apagar. E dizer que de um incio to frgil pode nascer um tirano ou um algoz! Tu que te fias na tua fora fsica, que encerras nos teus braos os dons da fortuna e te consideras no um pupilo dela mas sim seu filho, tu que tens a alma dominadora, tu que mal um sucesso te faz inchar o peito te julgas deus, pensa que bastaria pouco para poder destruir-te! (VII, 42-44).

Compreende-se que Plnio tenha tido xito na Idade Mdia crist: para pesar a vida numa balana justa, devemos sempre recordar-nos da fragilidade humana.

O gnero humano uma zona dos seres vivos que se define circunscrevendo os seus confins: por isso Plnio anota os extremos limites atingidos pelo homem em todos os campos, e o livro VII torna-se uma coisa

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muito parecida com o que hoje o Guinness Book of Records. Recordes quantitativos, sobretudo: de fora a levantar pesos, de velocidade na corrida, de agudez de ouvido, bem como de memria, e at de extenso de territrios conquistados; mas tambm recordes puramente morais, de virtude, de generosidade, de bondade. No faltam os recordes mais curiosos: Antnia mulher de Druso que nunca cuspia, o poeta Pompnio que nunca dava arrotos (VII, 80); ou o preo mais alto pago por um escravo (o gramtico Dafnis custou setecentos mil sestrcios, VII, 128).

De um s aspecto da vida humana Plnio no se sente capaz de indicar recordes ou de tentar medidas e comparaes: a felicidade. No se pode decidir quem feliz e quem no , visto que depende de critrios subjectivos e opinveis. (Felicitas cui praecipua fuerit homini, non est humani iudicii, cum prosperitatem ipsam alius alio modo et suopte ingenio quisque determinei, VII, 130). Se se quiser olhar cara a cara a verdade sem iluses, nenhum homem se pode considerar feliz: e aqui a casustica antropolgica de Plnio alinha exemplos de destinos ilustres (extrados sobretudo da histria romana), para demonstrar que os homens mais favorecidos pela fortuna deveriam suportar a infelicidade e a desventura.

Na histria natural do homem impossvel fazer entrar a varivel que o destino: este o sentido das pginas que Plnio dedica s vicissitudes da fortuna, imprevisibilidade da durao de cada vida, vacuidade da astrologia, s doenas, morte. A separao entre as duas formas de saber que a astrologia tinha ligado - a objectividade dos fenmenos calculveis e previsveis e o sentimento da existncia individual de futuro incerto, - esta separao que serve de pressuposto cincia moderna, podemos dizer que j est presente nestas pginas mas como uma questo ainda no definitivamente resolvida, para a qual se tem de reunir uma documentao exaustiva. Ao produzir estes exemplos, Plnio parece atrapalhar-se um pouco: todos os factos acontecidos, todas as biografias, todas as anedotas, podem servir para provar que a vida, se considerada do ponto de vista de quem a vive, no suporta quantificaes nem qualificaes, no permite ser medida ou comparada com outras vidas. O seu valor intrnseco a ela: tanto mais que as esperanas e os receios do alm so ilusrios: Plnio compartilha da opinio de que depois da morte comea uma no-existncia equivalente e simtrica que antecede o nascimento.

por isso que a ateno de Plnio se projecta sobre as coisas do mundo, corpos celestes e territrios do globo, animais e plantas e pedras.

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A alma, de que se nega toda a sobrevivncia, se se fechar sobre si mesma s no presente pode gozar o facto de ser viva. Etenim si dulce vivere est, cui potest esse vixisse? At quantofacilius certiusque sibi quemque credere, specimen securitas antegenitali sumere experimento! (VII, 190). Modelar a sua tranquilidade sobre a experincia anterior ao nascimento; isto , projectar-se na sua prpria ausncia, nica realidade segura antes de virmos ao mundo e depois de morrermos. Eis ento a felicidade de reconhecer a infinita variedade do outro de ns, que a Naturalis historia exibe diante dos nossos olhos.

Se o homem definido pelos seus limites, no deveria s-lo tambm pelos pontos culminantes em que pode sobressair? Plnio sente-se no dever de incluir no livro VII a glorificao das virtudes do homem, a celebrao dos seus triunfos: dirige-se histria romana como ao protocolo de todas as virtudes, e tentado a descobrir uma concluso pomposa cedendo encomistica imperial que lhe permitiria assinalar o topo da perfeio humana na figura de Csar Augusto. Mas creio que no so estes os tons que caracterizam o seu tratado: o comportamento titubeante, limitativo e amargo que mais condiz com o seu temperamento.

Poderemos reconhecer aqui questes que acompanharam a constituio da antropologia como cincia. Uma antropologia deve tentar sair de uma perspectiva humanista para alcanar a objectividade de uma cincia da natureza? Os homens do livro VII contam mais quanto mais forem outros diferentes de ns, talvez j no ou ainda no homens? Mas possvel que o homem saia da sua prpria objectividade a ponto de se tomar a si mesmo como objecto de cincia? A moral que Plnio evoca convida cautela e reserva: nenhuma cincia pode esclarecer-nos sobre a felicitas, sobre infortuna, sobre a economia do bem e do mal, sobre os valores da existncia; cada indivduo morre levando consigo o seu segredo.

com esta nota desconsolada Plnio poderia concluir o seu tratado, mas prefere acrescentar uma lista de descobertas e invenes, tanto lendrias como histricas. Antecipando os antroplogos modernos que defendem uma continuidade entre a evoluo biolgica e a tecnolgica, dos utenslios paleolticos electrnica, Plnio implicitamente admite que as contribuies dadas pelo homem natureza passam tambm a fazer parte da natureza humana. Daqui a estabelecer que a verdadeira natureza do homem a cultura vai apenas um passo. Mas Plnio, que no conhece as generalizaes, procura o especfico humano em invenes e costumes que

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possam ser considerados universais. So trs, segundo Plnio (ou segundo as suas fontes), os factos culturais em que se estabeleceu um acordo tcito entre os povos (gentium consensus tacitus, VII, 210): a adopo do alfabeto (grego e latino); o rapar do rosto masculino executado pelo barbeiro, e a notao das horas do dia no relgio solar.

A trade no podia ser mais estranha, pela associao incongruente dos trs termos: alfabeto, barbeiro e relgio, nem mais discutvel. Com efeito, no verdade que todos os povos tenham sistemas de escrita afins, nem verdade que todos faam a barba, e quanto s horas do dia o prprio Plnio alarga-se a traar uma breve histria dos vrios sistemas de diviso do tempo. Mas aqui no pretendemos sublinhar a perspectiva eurocntrica que no particular de Plnio nem do seu tempo, mas sim o sentido em que ele se move: a inteno de fixar os elementos que se repetem constantemente nas culturas mais diferentes para definir o que especificamente humano tornar-se- um princpio de mtodo da etnologia moderna. E, estabelecido este ponto do gentium consensus tacitus, Plnio pode encerrar o seu tratado do gnero humano e passar ad reliqua animalia, aos outros seres animados.

O livro VIII, que passa em resenha os animais terrestres, inicia-se com o elefante, a que dedicado o captulo mais longo. Porqu esta prioridade do elefante? Porque o maior dos animais, certamente (e o tratado de Plnio procede de acordo com uma ordem de importncia que frequentemente coincide com a ordem de grandeza fsica); mas tambm e sobretudo porque, espiritualmente, este o animal mais prximo do homem! Maximum est elephas proximumque humanis sensibus, assim comea o livro VIII. De facto o elefante - explica-se logo a seguir - reconhece a linguagem da ptria, obedece aos mandamentos, memoriza as aprendizagens, conhece a paixo amorosa e a ambio da glria, pratica virtudes raras at entre os homens como a probidade, a prudncia e a equidade, e tributa uma venerao religiosa s estrelas, ao sol e lua. Nem uma palavra (alm daquele superlativo maximum) gasta Plnio para descrever este animal (de resto figurado com fidelidade nos mosaicos da poca), mas s refere as curiosidades lendrias que encontrou nos livros: os ritos e os costumes da sociedade elefantina so representados como os de uma cultura diferente da nossa mas igualmente digna de registo e de compreenso.

Na Naturalis historia o homem, perdido no meio do mundo multiforme, prisioneiro da sua prpria imperfeio, por um lado tem o consolo de saber que at Deus limitado nos seus poderes (Imperfectae vero in homine

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naturaepraecipua solada, ne deum quidem posse omnia, II, 27) e por outro tem como seu prximo imediato o elefante, que pode servir-lhe de modelo no plano espiritual. Preso entre estas duas grandezas imponentes e benignas, o homem surge certamente diminudo, mas no esmagado.

Dos elefantes a resenha dos animais terrestres passa - como numa visita infantil ao jardim zoolgico - aos lees, s panteras, aos tigres, aos camelos, s girafas, aos rinocerontes, aos crocodilos. Seguindo uma ordem decrescente de dimenses, passa-se s hienas, aos camalees, aos porcos-espinhos, aos animais de toca, e tambm aos caracis e aos lagartos; os animais domsticos aparecem em bloco no fim do livro.

A fonte principal a Historia animalium de Aristteles, mas Plnio recupera de autores mais crdulos ou mais fantasiosos as lendas que o Estagirita rejeitava ou referia s para as refutar. Isto verifica-se tanto para as notcias sobre os animais mais conhecidos como para a meno e descrio de animais fantsticos, cujo catlogo se mistura com o dos primeiros: assim, falando dos elefantes, uma digresso informa-nos dos drages, seus inimigos naturais; e a propsito dos lobos, Plnio regista (embora troando da credulidade dos gregos) as lendas dos lobisomens. desta zoologia que fazem parte a anfisbena, o basilisco, o catoblepa, os crocotes, os corocotes, os leucocrotes, os leontofantes, as manticoras, que destas pginas passaro a povoar os bestirios medi