CIDADESCONTÍNUAS · influenciou as cidades imaginadas por Italo Calvino. O momento reformador da...

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Crítica Urbana CIDADES CONTÍNUAS GONÇALO ANTUNES Em As Cidades Invisíveis, Italo Calvino imagina várias cidades visitadas por Marco Polo, que, por sua vez, relata as suas experiências a Kublai Kan, o imperador dos Tártaros. Nesse relato, Marco Polo dá como exemplo diversas cidades contínuas, como é o caso da cidade de Cecília." Foto: Joao-Barbosa, en Unsplash.

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Crítica Urbana

CIDADES CONTÍNUAS

GONÇALO ANTUNES

“Em As Cidades Invisíveis, Italo Calvino imagina várias cidadesvisitadas por Marco Polo, que, por sua vez, relata as suasexperiências a Kublai Kan, o imperador dos Tártaros. Nesserelato, Marco Polo dá como exemplo diversas cidades contínuas,como é o caso da cidade de Cecília."

Foto: Joao-Barbosa, en Unsplash.

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Número 14. Septiembre 2020

ONTA Marco Polo que um pastor, perdidocom o seu rebanho, lhe perguntou comose chamava aquele local, pois não oconseguia diferenciar de outras paisagensurbanas, ao que Marco Polo respondeu

que o pastor se encontrava na ilustre cidade deCecília. Depois deste episódio, Marco Polo foi viajarpelo mundo e, anos mais tarde, sentiu-se elepróprio perdido entre ruas em tudo iguais, pelo queperguntou a um transeunte em que cidade seencontrava; respondeu-lhe o transeunte que estavana cidade Cecília, cidade sem fim, da qual não seconseguia sair. Foi então que Marco Poloreconheceu o pastor, acompanhado com o querestava do seu rebanho. Marco Polo e o pastor jánão sabiam quando tinham entrado em Cecília e,como dizia sabiamente o velho pastor, os lugaresmisturam-se e Cecília está em toda a parte.No seu relato a Kublai Kan, Marco Polo dá conta deoutra cidade contínua, de seu nome Trude. Àsemelhança de Cecília, em Trude tudo seassemelhava. Os subúrbios eram todos iguais, comas suas praças, ruas e alamedas idênticas. Era aprimeira vez que Marco Polo estava em Trude, massentia que já conhecia a cidade, os seus hotéis, aspraças, os largos, as ruas, as alamedas, pois todoseram iguais ao que já tinha visto em outras cidadespor onde passara. Marco Polo sabia do infeliz destinoque o aguardava: quando partisse para outra cidade,chegaria a outra Trude. O mundo está coberto poruma única Trude, concluía.Os relatos de cidades contínuas repetem-se, comoLeónia, a cidade de cujos desperdícios invadem omundo; Procópia, a cidade densa e sobrelotada; ouPentensileia, a cidade diluída no espaço, semcentralidade(s) e que é a periferia de si própria.Olhemos agora para o mundo real, que certamenteinfluenciou as cidades imaginadas por Italo Calvino. Omomento reformador da Revolução Agrícola, há cercade 12 000 anos, permitiu que se estabelecessem osprimeiros povoados humanos, que evoluíram,posteriormente, para grandes cidades, o berço dasprimeiras civilizações. Depois de séculos dedesenvolvimento urbano e populacional relativamentelento, foi com a Revolução Industrial, por volta de1800, que se iniciou uma dramática transformação napaisagem das cidades.No início do século XIX, dos cerca de mil milhões dehabitantes no planeta, menos de 5% viviam emambiente urbano. Atualmente, vivem no planetamais de sete mil milhões de habitantes, dos quaiscerca de 55% residem em espaços urbanos. Pelaprimeira vez na história da humanidade, a maioria dapopulação vive em cidades de pequena, média egrande dimensão. Esta é uma tendência que seprevê que se mantenha, com a população mundial a

C atingir os onze mil milhões em 2100, com cerca de75% a viver em cidades.Hoje, existe um número cada vez maior de países coma maioria da população a viver em espaços urbanos,como é o caso do Japão, com mais de 90% dapopulação a viver em cidades, ou os Estados Unidos daAmérica, Reino Unido, França, Espanha e Alemanha,com valores próximos dos 80%. Atualmente, váriasmegacidades destacam-se devido à sua populaçãototal, como é o caso de Tóquio, Deli, Xangai, São Paulo,Cidade do México, Cairo, Mumbai ou Pequim, todascom mais de vinte milhões de habitantes.É neste contexto que podemos falar de cidadescontínuas, que cada vez mais dominam acontemporaneidade. Em meados do século XX, asvisões de Lewis Mumford1, Jane Jacobs2, ou HenriLefebvre3, apresentavam-se bastantes apreensivas, oumesmo pessimistas, sobre os espaços urbanos que seestavam a desenvolver no mundo desenvolvido.Estes pensadores demonstravam-se preocupadoscom a desumanização das cidades e o seucrescimento excessivo, sem que a qualidade de vidada população fosse colocada como a pedra basilar dodesenvolvimento urbano.Mais recentemente, tem sido possível verificar que asgrandes cidades (ou as grandes áreas metropolitanas)são locais de excelência para observar fenómenos de(in)justiça social, como tem sido apontado por DavidHarvey4, assim como fenómenos de (in)justiçaespacial, conforme analisado mais recentemente porEdward Soja5.Estas reflexões estão longe de negar a importânciadas cidades no mundo contemporâneo, mas criticama forma como se têm estruturado. As cidades sãonecessariamente o reflexo da sociedade capitalistaem que vivemos, como notado, também, por DavidHarvey6. Embora correndo o risco de umasimplificação excessiva, os espaços da cidadecapitalista estão espacialmente hierarquizados, sendoo valor do metro quadrado o indicador mais visíveldessa hierarquização. As grandes áreas metropolitanassão espaços eminentemente desiguais, o que é visívelem diferentes dimensões que se sobrepõem, como aespacial, a social, a económica e a cultural.Contudo, deverá salientar-se que as grandesaglomerações urbanas trazem também aspectospositivos. É essa a perspectiva de Edward Glaeser7,que procura desconstruir muitas das críticas realizadasàs cidades contemporâneas. Além de Glaeser,

1. The City in History, 1961.2. The Death and Life of Great American Cities, 1961.3. Le Droit à la ville, 1968.4. Social Justice and the City, 1973.5. Seeking Spatial Justice, 2010.6. Spaces of Capital: Towards a Critical Geography, 2001.7. Triumph of the City, 2011.

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modelos da geografia económica têm vindo asublinhar os ganhos competitivos e de produtividadedas cidades, atribuíveis à concentração de populaçãoe de actividades económicas. É este o caso deconceitos como os distritos industriais, as economias deaglomeração, os clusters, as cidades criativas, ou ascidades globais, que dependem sempre de noçõesassociadas às economias de escala e à existência degrandes cidades.

Cidades globaisCada vez mais, existem no mundo grandes cidadespredadoras. São as cidades globais, como denominaSaskia Sassen. A ideia inerente às cidades globais partedo princípio de que a globalização deu origem apontos estratégicos, com diferentes importânciashierárquicas, sendo esses pontos estratégicos urbanossão fundamentais para o funcionamento do sistemafinanceiro e de comércio global. As cidades globais sãoassim locais de contemporaneidade, poder,sofisticação, riqueza e influência global. OGlobalization and World Cities Study Group & Network,tem apontado consecutivamente para Nova Iorque eLondres como as cidades com maior projecçãomundial e com maior capacidade para influenciar todoo planeta.As cidades globais são normalmente tidas comocidades vencedoras no sistema competitivo global.Todavia, como aponta a própria Sassen, as cidadesglobais são máquinas para produzir riqueza, mastambém produzem e expandem desigualdades. Nestesentido, é também curioso ver como Richard Florida,percussor do conceito de creative class8, assente nacompetição agressiva entre cidades para atrairempresas, universidades e know how altamentequalificado, tenha recentemente9 percebido que aemergência de superstar cities é perniciosa, porconcentrarem de forma excessiva empresas, indústria,talento e riqueza, tendo um funcionamento predadorque deixa o restante território (mundial) na sombra.Saindo do cenário global, esta análise pode sertransportada para a escala nacional. Frequentemente,

NOTA SOBRE O AUTORGonçalo Antunes é doutorado em Geografia e Planeamento Territorial, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Novade Lisboa (NOVA FCSH). É professor convidado na NOVA FCSH e investigador doutorado integrado no Centro Interdisciplinar de CiênciasSociais (CICS.NOVA). O seu trabalho de investigação relaciona-se com a Geografia Urbana e os Estudos Urbanos, e, em particular, asPolíticas de Habitação.

8. The Rise of the Creative Class, 2002.9. The New Urban Crisis, 2017.

existe a tentação de centralizar a população, riqueza,empresas, universidades e actividades económicasnuma só cidade, por norma a capital do país. Esta éuma tendência visível em muitos países emdesenvolvimento, mas não só. Por exemplo, emPortugal cerca de 27% da população reside na ÁreaMetropolitana de Lisboa, e 16% na Área Metropolitanado Porto, totalizando 43% da população portuguesa.Esta situação é demonstrativa de desequilíbrioshistóricos na distribuição da população pelo território e,por consequência, das actividades económicas,culturais, dos serviços e das grandes infraestruturas,concentradas excessivamente no litoral e na capital,colocando o restante território numa posiçãodesvantajosa e menos atractiva.

À procura da articulação do mundo urbanoO que diferencia a nossa sociedade urbana dassoturnas cidades contínuas visitadas por Marco Polo?Não existirão alternativas ao modelo de grandescidades que concentram a população e as actividadeseconómicas?As críticas às grandes cidades, gigantes de betão e decimento, não são de agora. As disfuncionalidades dosespaços urbanos têm sido apontadas ao longo detodo o século XX, existindo um conjunto amplo dereflexões que apontam como as grandes cidades,embora continuem a ser vistas como a miragem demodernidade e de desenvolvimento, são tambémpotenciadoras de desigualdades multidimensionais.Cada vez mais, percebe-se que no mundocontemporâneo a redução do espaço-tempo e adisseminação de meios tecnológicos podem permitirque se encontrem novas soluções urbanas, quedevem passar pela articulação de grandes, médias epequenas cidades dispersas, contribuindo assim parauma melhor organização do território.A pandemia global Covid-19 demonstrou como estetempo excepcional pode ser aproveitado pararepensar e dar uma nova forma ao mundo urbanocontemporâneo. O caos pandémico será tambémuma oportunidade para construir cidades maisinclusivas, sustentáveis e resilientes, afinal, queaproveitem as capacidades e as potencialidades detodo o território.