Caos na Saúde Pública

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Caos na Saúde Pública Faltam médicos no município de Paverama Camila Capelão, Édson Schaeffer, Juliana Litivin e Renata Gomes Reportagem produzida na disciplina de Jornalismo Investigativo (professora Luciana Kraemer) Falta de médicos: responsabilidade de quem? Falta de médicos. Seja na Região Metropolitana ou no interior do Estado, esta tem sido uma realidade de muitos municípios. Pacientes se deslocam a centros de saúde sem ter a certeza do atendimento. A pequena cidade de Paverama, localizada no Vale do Taquari, a 98 quilômetros de Porto Alegre, enfrenta dificuldades nos postos do município. São 13h30min. Patrício Garcia de Almeida (45), Elci Campos de Souza (57), Erica Koppe (70) e Orfelina Brandão Marques (76) já se encontram defronte ao posto de saúde de Fazenda São José – Paverama, esperando atendimento médico que inicia ás 17h. Acomodados num banco de madeira, num espaço improvisado na sombra, os quatro aguardam o posto abrir e, assim, garantir o seu atendimento. “Se não chegamos cedo, não conseguimos atendimento. Estou aqui desde o meio-dia. É um absurdo ter que chegar este horário, sendo que o posto abre somente às 17h”, lamenta Almeida. Elci complementa o desabafo do colega de

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Por Camila Capelão, Édson Schaeffer, Juliana Litivin e Renata Gomes

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Caos na Saúde Pública

Faltam médicos no município de Paverama

Camila Capelão, Édson Schaeffer, Juliana Litivin e Renata Gomes

Reportagem produzida na disciplina de Jornalismo Investigativo (professora Luciana Kraemer)

Falta de médicos: responsabilidade de quem?

Falta de médicos. Seja na Região Metropolitana ou no interior do Estado,

esta tem sido uma realidade de muitos municípios. Pacientes se deslocam a

centros de saúde sem ter a certeza do atendimento. A pequena cidade de

Paverama, localizada no Vale do Taquari, a 98 quilômetros de Porto Alegre,

enfrenta dificuldades nos postos do município.

São 13h30min. Patrício Garcia de Almeida (45), Elci Campos de Souza

(57), Erica Koppe (70) e Orfelina Brandão Marques (76) já se encontram defronte

ao posto de saúde de Fazenda São José – Paverama, esperando atendimento

médico que inicia ás 17h. Acomodados num banco de madeira, num espaço

improvisado na sombra, os quatro aguardam o posto abrir e, assim, garantir o

seu atendimento.

“Se não chegamos cedo, não conseguimos atendimento. Estou aqui desde

o meio-dia. É um absurdo ter que chegar este horário, sendo que o posto abre

somente às 17h”, lamenta Almeida. Elci complementa o desabafo do colega de

fila. “Temos que ter horário para ficarmos doentes. Ficamos doentes nas

segundas ou quintas, pois senão não temos garantia de atendimento”, expõe.

Os moradores explicam que o posto de saúde local atende somente quatro

horas semanais, ou seja, segundas-feiras, das 13h às 15h, e quintas-feiras, das

17h às 19h, e dispõe de apenas 12 fichas de atendimento. A referida unidade de

saúde atende as localidades de Fazenda São José, Posses, Vila Felipe e Vila do

Sabão, sendo o segundo maior aglomerado urbano do município.

Quando questionadas sobre o Posto de Saúde do Centro, Erica e Orfelina

relatam outra situação. “Como aqui, temos que chegar cedo. E como Fazenda

São José é longe do Centro e não tem horário de ônibus de acordo, não

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conseguimos fichas. São poucos médicos atendendo lá”, expõe Erica. “Um dia fui

de manhã ao posto do Centro. Cheguei cedo, mas sai de lá ao meio-dia e não

consegui atendimento”, diz Orfelina.

Para Patrício, a comunidade da Fazenda São José sofre muito com a falta

de médicos. “Infelizmente em todo o lugar é assim. O posto daqui da localidade

já esteve fechado durante dois meses. Tivemos que batalhar para conseguir

reabri-lo, mas os horários não são suficientes. E um só posto de saúde no Centro

não consegue atender toda a demanda do município”, frisa.

Conforme os munícipes, muitas vezes é preciso se deslocar até o hospital

da cidade vizinha Teutônia. “No entanto temos que esperar, uma vez que há

prioridades de atendimento conforme gravidade”, ressalta Patrício.

Médicos x SaláriosPaverama tem, conforme o último Censo Demográfico, 8.044 habitantes.

Para atender a população, o município dispõe de dois postos de saúde, no

Centro e em Fazenda São José. Mas o atendimento em uma das unidades é

precário em relação a horários.

Cinco profissionais se revezam no atendimento nos dois postos e, em caso

de emergência, no pronto atendimento do hospital da cidade, que não possui

médico próprio. Destes, somente um atende 40 horas semanais. Os demais são

contratados por 20 horas semanais. Embora atendam nos mais diversos horários,

ainda há dificuldades, havendo a necessidade de mais profissionais.

O secretário de Saúde do município, Luís Carlos de Oliveira, explica que a

principal dificuldade na contratação de médicos é a questão salarial. “Se fosse

pela nossa vontade, teríamos mais médicos no Centro e em Fazenda São José,

onde gostaríamos de atender todos os dias. No entanto, em razão dos salários,

os médicos não se interessam em trabalhar aqui”, lamenta.

Conforme artigo 37, Inciso XI da Constituição Federal, nenhum servidor

público pode receber remuneração maior do que a do chefe do Executivo. Em

Paverama, a remuneração do prefeito beira os R$ 6,5 mil. Conforme Oliveira, a

referência salarial dos médicos para 40 horas semanais é de R$ 12 mil, o que

inviabiliza a contratação de concursados. Em outubro do ano passado, a cidade

abriu concurso para médicos, mas ninguém se escreveu. A alternativa foi buscar

vaga emergencial com a autorização do Ministério Público.

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Com isso foi possível contratar um profissional por 20 horas semanais,

cuja remuneração está em torno dos R$ 6 mil, para atender nas unidades de

saúde do Centro e de Fazenda São José. No entanto, esta contratação ainda não

é o suficiente, pois cerca de 60 pessoas, segundo o secretário Luís Carlos,

procuram diariamente o Posto de Saúde do Centro.

De acordo com o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio

Grande do Sul (Cremers), a cidade de Paverama conta com apenas um médico

registrado. “Isso não significa que não tenha médico trabalhando na cidade, pois

a maioria dos profissionais que moram e trabalham no interior circulam muito

entre vários municípios”, esclarece a assessora de imprensa do Cremers Viviane

Schwäger.

Horários de atendimento dos médicos em Paverama

Funcionários Segunda Terça Quarta Quinta Sexta

Ademar 16h30min– 19h 15h30min–19h 13h-19h 17h–19h

Fazenda São José

Gustavo 13h–15h

Fazenda São José

13h – 15h 13h-15h 13h-15h

Luiz Augusto 8h–12h

13h–19h

8h-12h

13h-19h

Marcelo 11h30min-19h 11h30min-19h

Raul 07h12min–12h

15h–19h

07h12min–12h

15h – 19h

07h12min – 12h

Não atende

07h12min-12h

15h-19h

07h12min-12h

15h-19h

Tabela com os horários de atendimento dos médicos em Paverama

Fazenda Vilanova – uma realidade diferente

O município de Fazenda Vilanova encontra-se a 20 quilômetros de

Paverama e a 95 quilômetros de Porto Alegre. A cidade de 3.697 habitantes (de

acordo com o Censo de 2010), também enfrentou problemas com a falta de

médicos. Entretanto, diferentemente da vizinha Paverama, aqui a situação foi

revertida. A secretária de saúde de Fazenda Vilanova Ana Paula Schwertner

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explica as medidas realizadas. “Foi feito um concurso para carga horária de 20h

semanais, para que os profissionais sentissem mais segurança no trabalho, pois

assim adquirem estabilidade. O problema maior era conseguirmos médico da

família, porque a carga horária exige dedicação exclusiva ao Posto de Saúde

(40h semanais).”

O desafio da Administração Municipal era motivar os profissionais, visto

que a Lei Federal exige que nenhum funcionário receba salário maior que o

prefeito. “Decidimos licitar uma empresa para contratação de profissionais. Esse

problema foi resolvido completamente, pois o médico recebe salário bem mais

alto que o chefe do Executivo. Quase toda semana recebo ligações e currículos

de médicos se oferecendo para trabalharem em nosso município”, declara.

Fazenda Vilanova conta com a estrutura e os serviços de uma Unidade

Básica de Saúde, responsável por atender uma demanda de aproximadamente

820 consultas/mês. De acordo com a secretária Ana Paula o Centro de Saúde

da cidade atende até às 21h, sem fechar ao meio dia. “Temos dois médicos

concursados trabalhando 20h semanais cada. Um ginecologista (atende uma vez

por semana), um pediatra (atende duas vezes por semana), um cardiologista

(atende uma vez por semana) e o médico ESF (trabalha 40h semanais)”, revela

Ana Paula.

Os moradores de Fazenda Vilanova relatam a situação do município.

Elenir Azevedo (45) observa que a falta de médicos era um problema na cidade.

“Mas hoje a situação é diferente. Quando chegamos ao Posto, raramente temos

que esperar para sermos atendidos”, comenta. Arcila Rodrigues (45)

complementa Elenir. “O atendimento em si é bom, independente para quem mora

no interior, como eu, ou para quem mora na cidade. Não está 100%, mas temos

a certeza de sermos atendidos”, frisa. “Quando não é possível o atendimento,

somos bem esclarecidos. Se ficamos doentes no final de semana ou à noite,

contamos com o plantão da Saúde. Por isso, é muito bom”, salienta Erondina

Lemos (72).

Dados Gerais sobre a SaúdeSegundo registros do Conselho Federal de Medicina (CFM) o Brasil tem

uma média de 1,95 médicos registrados para cada mil habitantes, com diferenças

regionais significativas. O Rio Grande do Sul possui a razão de 2,31 médicos

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para mil habitantes. Porém, dados do Conselho Regional de Medicina do Estado

do Rio Grande do Sul (Cremers) apontam que apenas 82 dos 496 municípios

gaúchos se enquadram na média estipulada pela Organização Mundial de Saúde

(OMS), órgão ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), que estabelece o

padrão mínimo desejável de um médico para cada mil habitantes.

No total, 257 cidades gaúchas possuem um índice pior que o recomendado pela ONU.

A maioria dos profissionais de saúde prefere atuar em cidades grandes.

Prova disso, é que Porto Alegre tem um médico para cada 119 habitantes. Uma

média surpreendente, quase nove vezes maior que o padrão da ONU. A

assessora de imprensa do Cremers Viviane Schwäger diz que há anos a

entidade chama atenção dos governos para a elaboração de um plano de

carreira para o SUS. “Esse plano deveria ser nos mesmos moldes dos planos de

carreiras dos juízes, por exemplo, que recebem incentivos e condições para

trabalharem no interior. Muitos municípios pequenos não têm condições mínimas

para garantir o bom atendimento e, consequentemente, o trabalho do médico.

Muitas vezes, até a comunicação com outros colegas ou a busca por informações

é difícil. Por isso - falta de plano de carreira, precariedade de condições e

dificuldade de acesso a informações médicas - muitos profissionais preferem

continuar estabelecidos na capital, região metropolitana ou grandes centros.”

Quando se analisa a distribuição médica em ambientes públicos e privados

nota-se a deficiência do setor. A clientela da saúde privada conta com 3,9 vezes

mais postos de trabalho médico disponíveis, do que os usuários da rede pública.

No Estado, a situação é complicada. Segundo pesquisa do Conselho Federal de

Medicina, moradores de Roraima, por exemplo, que utilizam serviço público,

contam com 35% mais postos de trabalho médico do que a população gaúcha.

Setor público tem 4 vezes menos médicos que o privado

O Conselho Federal de Medicina afirma, no estudo sobre a demografia

médica do Brasil, que os postos de trabalho médico disponíveis para a clientela

dos planos de saúde, são 26% maior que o número dos postos em

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estabelecimentos públicos. A população que depende exclusivamente do

Sistema Único de Saúde (SUS) é 3,25 vezes maior que a dos planos.

Segundo o Conselho Regional de Medicina do Estado há 20.726 médicos

especialistas no RS. Cirurgia Geral, Clínica Médica e Cardiologia são as áreas

que mais possuem profissionais registrados. Estes serviços contam com 1712,

1051 e 961 registros respectivamente.

O diretor de Assistência Hospitalar da Secretaria Estadual de Saúde

Marcos Antônio Lobato acredita que o maior problema é a oferta desigual desses

profissionais. “A falta de especialistas é preocupante. Tentamos contrabalançar

isso com centros clínicos no interior. Alguns médicos relutam em ir para

pequenas cidades porque buscam conforto. Por isso, se sujeitam a receber R$

800 por 24 horas de plantão em hospitais da capital, quando no interior poderiam

conseguir o dobro”, esclarece.

BOXES

O que pensam os profissionais do setor público de saúde?

A técnica em enfermagem, Silvana Fraga, trabalha no Grupo Hospitalar Conceição, um

dos principais hospitais públicos de Porto Alegre. Para ela, o salário é baixo no setor,

mas normalmente não existe excesso de trabalho. “A maioria é contratada para uma

carga horária, que não cumpre. Muitos têm vários empregos para sustentar um padrão

de vida elevado e acabam se sobrecarregando. Para mim, não existe falta de médicos,

mas sim concentração nas cidades grandes e nos centros”.

Tania Roque foi enfermeira no Pronto Socorro de Porto Alegre (HPS) por cinco anos.

Quando o assunto é saúde pública ela é enfática. “Os médicos ganham muito mais nos

consultórios, então os que se inscrevem em concursos, geralmente estão no início de

carreira”, conta.

O que diz a lei

Conforme artigo 37, Inciso XI da Constituição Federal: "...a remuneração e o subsídio

dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta,

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autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados,

do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais

agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos

cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra

natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do

Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do

Prefeito...”.

O que pensam os futuros profissionais da saúde?

Daiana Menote, 24 anos, estudante de medicina, está estagiando no hospital Santa

Casa em Porto Alegre, mas em seu currículo há Cristo Redentor e Hospital de Pronto

Socorro (HPS). Segundo Daiana o problema da saúde pública no Estado está ligado

diretamente com a ineficiência do sistema primário, o posto de saúde. Com isso a

demanda no setor terciário, hospital, só aumenta. “A pediatria está é o setor que mais

precisa de médicos, mas como o salário é baixo e a carga horária é alta, muitos

desistem”, diz a estudante do quinto período. A futura médica, ainda não se decidiu

quanto à sua especialidade, mas acredita que será psiquiatria ou pediatria, e acredita

que irá trabalhar em hospitais. Diferente da grande maioria de seus colegas, que

pensam em trabalhar em clinicas com horários definidos e rentabilidade mais alta.

Nicolle de Souza Zanetti, 23 anos, estuda na Ulbra e se forma no final deste ano.

Terminada a faculdade ela pretende fazer residência em cirurgia geral e depois

talvez em cirurgia plástica. “Essa foi à área que mais me interessou. Na minha turma

acredito que a mais procurada seja a medicina interna e a traumatologia, a menos

desejada acredito que seja infectologia ou geriatria. Muitos profissionais fogem do

serviço público devido à má remuneração e péssimas condições de trabalho, como a

falta de leitos, de medicação, de funcionários, de material de limpeza, do essencial para

um bom atendimento. Com certeza existe uma preferência pela área privada, onde o

profissional é melhor remunerado e todas as carências podem ser sanadas.”

Leticia Medeiros Santomé estuda enfermagem na Unisinos. Ela acredita que existem

muitos médicos e enfermeiros no mercado de trabalho, entretanto salienta que o

aumento na demanda dos serviços de saúde, a estrutura física deficiente das instituições

e a morosidade nas contratações agravam o quadro. “É importante controlar melhor a

escala dos profissionais a fim de realizar substituições quando necessário, e evitar a

sobrecarga de trabalho. Medicina e enfermagem exigem muito conhecimento, habilidade

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e dedicação. As condições precárias e falta de recursos em muitas instituições

desmotivam e dificultam o trabalho destes profissionais.”