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to de documentos, como o cartão da gestante, com dados sobre a gravidez ao longo de todo o pré-natal, e a carta à gestante, com informações sobre os riscos da cesárea e os direitos da usuária, como ter acompa- nhante durante o parto. Além disso, os médicos foram obrigados a realizar o partograma, um documento que registra a evolução do parto, com dados sobre dilatação, contrações etc. para auxiliar, inclusive, a troca de plantão. As regras já estão em vigor há mais de um ano e meio, mas até o fechamento desta edição, a ANS não havia divulgado se a norma está ajudando ou não a reduzir o número excessivo de cesáreas no Brasil. A reportagem fez essa pergunta à agência, que, por meio de sua assessoria de imprensa, respondeu que um balanço da norma estava em produção, no fim de fevereiro, mas nenhum dado sobre a quantidade de cesarianas realizadas antes e após a adoção da norma foi antecipado à REVISTA DO IDEC. Quem recebeu tais números previamente foi a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). Segundo Juvenal Borriello, diretor de Defesa e Valorização Profissional da entida- de, “houve uma pequena melhora” nas taxas de cesá- rea após a norma, mas ele não detalhou os resultados. Sem tais dados em mãos, a reportagem consultou Regras para reduzir partos cirúrgicos desnecessários nos planos de saúde são avanço, mas ainda há muitos desafios para combater a epidemia de cesarianas no Brasil D e cada 10 brasileiros que nasceram na rede privada de saúde no Brasil em 2013, oito foram por cesariana. Com 84,5% de ocor- rências nos planos de saúde e 55% consi- derando a rede pública e privada, o Brasil atingiu um nível de partos cirúrgicos alarmantemente superior ao preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de 15%. Não por acaso, a situação passou a ser classificada como epidemia. Quando realizada sem indicação, a cesárea representa riscos desnecessários à saúde da mulher e do bebê: aumenta em 120 vezes a probabilidade de problemas respiratórios e triplica a chance de morte da mãe. Nesse cenário, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) se viu forçada a baixar uma norma para controlar essa epidemia nos planos de saúde – os principais responsáveis por colocar o País na posi- ção de campeão mundial de cesarianas. A Resolução Normativa (RN) n o 368 entrou em vigor em julho de 2015 e, entre as principais medidas, garantiu às con- sumidoras o direito de saber o percentual de partos normais e cesáreas realizado por sua operadora, por médico e por hospital da rede de seu plano no período de um ano. A informação deve ser fornecida por escri- to, em linguagem clara, no prazo de 15 dias úteis. A norma também passou a exigir o fornecimen- CAPA 16 MAR-ABR 2017 l REVISTA DO IDEC CESÁREAS FORA DE CONTROLE

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to de documentos, como o cartão da gestante, com dados sobre a gravidez ao longo de todo o pré-natal, e a carta à gestante, com informações sobre os riscos da cesárea e os direitos da usuária, como ter acompa-nhante durante o parto. Além disso, os médicos foram obrigados a realizar o partograma, um documento que registra a evolução do parto, com dados sobre dilatação, contrações etc. para auxiliar, inclusive, a troca de plantão.

As regras já estão em vigor há mais de um ano e meio, mas até o fechamento desta edição, a ANS não havia divulgado se a norma está ajudando ou não a reduzir o número excessivo de cesáreas no Brasil. A reportagem fez essa pergunta à agência, que, por meio de sua assessoria de imprensa, respondeu que um balanço da norma estava em produção, no fim de fevereiro, mas nenhum dado sobre a quantidade de cesarianas realizadas antes e após a adoção da norma foi antecipado à REVISTA DO IDEC.

Quem recebeu tais números previamente foi a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). Segundo Juvenal Borriello, diretor de Defesa e Valorização Profissional da entida-de, “houve uma pequena melhora” nas taxas de cesá-rea após a norma, mas ele não detalhou os resultados. Sem tais dados em mãos, a reportagem consultou

Regras para reduzir partos cirúrgicos desnecessários nos planos de saúde são avanço,mas ainda há muitos desafios para combater a epidemia de cesarianas no Brasil

De cada 10 brasileiros que nasceram na rede privada de saúde no Brasil em 2013, oito foram por cesariana. Com 84,5% de ocor-rências nos planos de saúde e 55% consi-

derando a rede pública e privada, o Brasil atingiu um nível de partos cirúrgicos alarmantemente superior ao preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de 15%. Não por acaso, a situação passou a ser classificada como epidemia. Quando realizada sem indicação, a cesárea representa riscos desnecessários à saúde da mulher e do bebê: aumenta em 120 vezes a probabilidade de problemas respiratórios e triplica a chance de morte da mãe.

Nesse cenário, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) se viu forçada a baixar uma norma para controlar essa epidemia nos planos de saúde – os principais responsáveis por colocar o País na posi-ção de campeão mundial de cesarianas. A Resolução Normativa (RN) no 368 entrou em vigor em julho de 2015 e, entre as principais medidas, garantiu às con-sumidoras o direito de saber o percentual de partos normais e cesáreas realizado por sua operadora, por médico e por hospital da rede de seu plano no período de um ano. A informação deve ser fornecida por escri-to, em linguagem clara, no prazo de 15 dias úteis.

A norma também passou a exigir o fornecimen-

CAPA

16 MAR-ABR 2017 l REVISTA DO IDEC

CESÁREASFORA DE CONTROLE

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ck

l Doula: profissional cuja função é dar apoio e suporte físico e emocional à mulher antes, durante e após o parto. Utiliza técnicas não farmacológicas para alívio da dor e cria um ambiente acolhedor para o parto. Não possui necessariamente gra- duação na área da saúde, mas normalmente tem um curso de formação rápida.

l Enfermeiro obstetra: graduado em enfer- magem com pós-graduação em obstetrícia. Tem competência legal para realizar pré-natal em gestação de baixo risco e partos normais, além de todas as atividades de enfermagem.

l Obstetriz: profissional com graduação es- pecífica em obstetrícia e ênfase na promoção da saúde da mulher. Tem competência legal para realizar pré-natal em gestação de baixo risco e partos normais.

l Violência obstétrica: comportamentos e procedimentos inadequados realizados por profissionais de saúde durante a gestação, tra- balho de parto, pós-parto etc. Esses tratamentos violam os princípios de atendimento humanizado e os direitos humanos. Por exemplo, intervenções médicas sem autorização da mulher, gritos, ofen- sas e ausência de alimentação ou água durante o trabalho de parto.

GLOSSÁRIO OBSTÉTRICO

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As regras já estão em vigor há mais de um ano e meio, mas até o fechamento desta edição, a ANS não havia divulgado se a norma está ajudando ou não a reduzir o número excessivo de cesáreas no Brasil. A reportagem fez essa pergunta à agência, que, por meio de sua assessoria de imprensa, respondeu que um balanço da norma estava em produção, no fim de fevereiro, mas nenhum dado sobre a quantidade de cesarianas realizadas antes e após a adoção da norma foi antecipado à REVISTA DO IDEC.

Quem recebeu tais números previamente foi a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). Segundo Juvenal Borriello, diretor de Defesa e Valorização Profissional da entida-de, “houve uma pequena melhora” nas taxas de cesá-rea após a norma, mas ele não detalhou os resultados. Sem tais dados em mãos, a reportagem consultou

Regras para reduzir partos cirúrgicos desnecessários nos planos de saúde são avanço,mas ainda há muitos desafios para combater a epidemia de cesarianas no Brasil

De cada 10 brasileiros que nasceram na rede privada de saúde no Brasil em 2013, oito foram por cesariana. Com 84,5% de ocor-rências nos planos de saúde e 55% consi-

derando a rede pública e privada, o Brasil atingiu um nível de partos cirúrgicos alarmantemente superior ao preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de 15%. Não por acaso, a situação passou a ser classificada como epidemia. Quando realizada sem indicação, a cesárea representa riscos desnecessários à saúde da mulher e do bebê: aumenta em 120 vezes a probabilidade de problemas respiratórios e triplica a chance de morte da mãe.

Nesse cenário, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) se viu forçada a baixar uma norma para controlar essa epidemia nos planos de saúde – os principais responsáveis por colocar o País na posi-ção de campeão mundial de cesarianas. A Resolução Normativa (RN) no 368 entrou em vigor em julho de 2015 e, entre as principais medidas, garantiu às con-sumidoras o direito de saber o percentual de partos normais e cesáreas realizado por sua operadora, por médico e por hospital da rede de seu plano no período de um ano. A informação deve ser fornecida por escri-to, em linguagem clara, no prazo de 15 dias úteis.

A norma também passou a exigir o fornecimen-

CAPA

16 MAR-ABR 2017 l REVISTA DO IDEC

CESÁREASFORA DE CONTROLE

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l Doula: profissional cuja função é dar apoio e suporte físico e emocional à mulher antes, durante e após o parto. Utiliza técnicas não farmacológicas para alívio da dor e cria um ambiente acolhedor para o parto. Não possui necessariamente gra- duação na área da saúde, mas normalmente tem um curso de formação rápida.

l Enfermeiro obstetra: graduado em enfer- magem com pós-graduação em obstetrícia. Tem competência legal para realizar pré-natal em gestação de baixo risco e partos normais, além de todas as atividades de enfermagem.

l Obstetriz: profissional com graduação es- pecífica em obstetrícia e ênfase na promoção da saúde da mulher. Tem competência legal para realizar pré-natal em gestação de baixo risco e partos normais.

l Violência obstétrica: comportamentos e procedimentos inadequados realizados por profissionais de saúde durante a gestação, tra- balho de parto, pós-parto etc. Esses tratamentos violam os princípios de atendimento humanizado e os direitos humanos. Por exemplo, intervenções médicas sem autorização da mulher, gritos, ofen- sas e ausência de alimentação ou água durante o trabalho de parto.

GLOSSÁRIO OBSTÉTRICO

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especialistas de diversas áreas para saber como eles avaliam as medidas em vigor e para entender quais são os desafios para estancar a sangria desatada de cesá-reas no Brasil.

AVANÇOS E LIMITAÇÕES

Para Raquel Marques, mestre em saúde pública e presidente da organização feminista Artemis, as regras criadas pela ANS não resolvem o problema do excesso de cesáreas nos planos de saúde, mas elas são impor-tantes para a indução de boas práticas, além de serem parte de um processo de mudança cultural. “A norma indica que certas práticas não serão mais toleradas”, avalia. “E com o partograma, por exemplo, o médico precisa demonstrar que pelo menos tentou realizar um parto normal”, comenta.

A presidente da Artemis também considera muito importante a divulgação do percentual de cesáreas. “Isso dá um horizonte para a mulher que procura pelo parto normal na rede privada”. A advogada e pesqui-sadora em saúde do Idec, Ana Carolina Navarrete, concorda que a medida é positiva e que pode dar uma

CAPA

18 MAR-ABR 2017 l REVISTA DO IDEC

visão mais crítica à gestante, mas acha que apenas informar é pouco. Mesmo que tenha acesso às infor-mações sobre a taxa de cesáreas de seu médico e saiba dos riscos desse tipo de parto, pode ser muito difícil para a mulher questionar a opinião do profissional caso ele diga que a cirurgia é necessária. “A gestante tem menos conhecimento técnico para influir nas decisões que são tomadas sobre a sua saúde e a do bebê”, pon-dera a advogada.

Segundo o Inquérito Nacional Nascer no Brasil, rea-lizado pela Fundação Oswaldo Cruz em 2012, a taxa de mulheres que querem fazer cesariana aumenta muito no decorrer da gestação – vai de 28% a 66% –, o que pode sugerir uma influência do profissional que acom-panha o pré-natal nessa decisão. “Há muitas pesquisas que mostram que a mulher é levada a acreditar que teve uma gestação ou parto problemático, quando na verdade não teve, e a cesariana foi feita por conveniên-cia médica”, aponta Marques.

DESVINCULAÇÃO DO MÉDICO

A relação entre a influência do obstetra e a alta incidência de cesáreas tem a ver, entre outros fatores, com a forma como os planos de saúde remuneram os médicos pelos partos. A maioria das operadoras paga ao profissional o mesmo valor pelo procedimento vagi-nal ou cirúrgico. No entanto, considerando que o even-to fisiológico é imprevisível e pode demorar muito mais do que a cesárea, a cirurgia acaba sendo mais cômoda e financeiramente vantajosa para o médico.

Embora afirme que o honorário pago pelos convê-nios pelos partos é inadequado, Borriello, da Febrasgo, rejeita sua vinculação com o alto índice de cesáreas nos planos de saúde. “A remuneração [do médico] está dentro de um pacote de outros problemas”, afirma. A federação defende o pagamento pelo tempo que o obs-tetra fica disponível para a realização do parto. Mas, em vez de negociar com as operadoras, os obstetras tentam repassar esse custo às consumidoras de plano de saúde. “A operadora lava as mãos”, diz o diretor da Febrasgo. Porém, nesse caso, a corda não pode estou-rar para o lado mais fraco. Cobrar taxa da usuária é ilegal. “A negociação do pagamento de quaisquer pro-cedimentos deve ser feita entre o profissional e a ope-radora. A função da operadora é, justamente, fazer a intermediação financeira entre o consumidor e o pres-tador credenciado”, declara a advogada do Idec (saiba mais sobre seus direitos no quadro da página ao lado).

EPIDEMIA DE CESÁREAS

l PLANOS DE SAÚDE

Total de partos:

502,8milhões Cesáreas

84,6%

Cesáreas40%

l SUS

Total de partos:

1,8milhões

Fonte: Ministério da Saúde, 2013

Em janeiro, uma decisão judicial proferida em São Paulo reiterou esse entendimento, rejeitando o pedido de uma associação de obstetras do Estado, que tentava legitimar a taxa.

No entanto, as usuárias de plano de saúde também não têm o direito de exigir que o médico que acom-panhou sua gestação realize o parto. “Nenhum con-trato, de nenhuma operadora, diz que o médico que faz pré-natal tem de fazer o parto. A beneficiária tem direito ao parto com [o médico] plantonista”, destaca Borriello. “Temos de brigar para que o plantão seja competente”, completa.

Nesse ponto, Raquel Marques concorda com ele. A presidente da Artemis defende que é preciso aca-bar com a associação entre pré-natal e parto, e criar um vínculo com o serviço de saúde – ou seja, com estabelecimentos que adotem protocolos únicos, que garantam que o atendimento será qualificado indepen-dentemente do profissional que fizer o parto. “É muito difícil pensar em uma forma de remuneração justa para o atual modelo. Quanto o médico tem de ganhar para ficar disponível para o parto normal? Seis vezes mais? Doze vezes mais? Ainda que isso fosse possível, não resolveria o problema, pois essa dedicação exclu-siva à gestante tem limite, o médico também cansa”, argumenta Marques.

REVISTA DO IDEC l MAR-ABR 2017 19

l Cesária desnecessária: caso a mulher perceba que foi submetida a uma cesárea sem indicação clínica e esta tenha provocado consequências nefastas à sua saúde ou à do bebê, pode pleitear na Justiça reparação pelos danos sofridos. A constatação da necessidade ou não do parto cirúrgico pode ser feita por meio de consulta ao partograma ou ao prontuário médico.

l Taxa do obstetra: se a usuária de plano de saúde deparar com a cobrança de taxa de disponibilidade por um obstetra credenciado, pode denunciar a prática à operadora e à ANS. Caso tenha pago pelo procedimento, a consumidora pode pedir ressarcimento apenas ao médico (se entender que ele violou a norma) ou a todos os envolvidos (operadora, médico e estabelecimento de saúde). Caso a taxa seja informada apenas no momento do parto, a abusividade é ainda maior.

FUI VÍTIMA, E AGORA?

Fonte: Conrado Navarro, educador financeiro e fundador do site Dinheirama (http://dinheirama.com/)

Fato é que, hoje, muitas mulheres criam um vínculo afetivo com o obstetra que acompanha sua gestação e, mais do que isso, têm medo do atendimento que vão receber de um plantonista – na recente decisão que proibiu a cobrança de taxa da usuária de plano de saúde, a juíza levanta essa questão, inclusive. Mas, segundo Marques, o atendimento por esse médico com quem a gestante já tem uma relação não garante que ela não vá sofrer violência obstétrica (entenda o conceito no quadro da página 17). “Às vezes, o profissional que é um fofo no pré-natal tem rotinas violentas”, alerta.

MAIS ENFERMEIRAS

Mais do que desvincular o parto do profissional que faz o pré-natal, especialistas defendem que o parto deve ser dissociado da figura do médico como detentor do processo. Nesse sentido, consideram fundamen-tal incorporar outros profissionais ao atendimento à gestante, como enfermeiras obstétricas ou obstetri-zes e doulas (veja a diferença no quadro da página 17). “Nenhum país conseguiu diminuir a taxa de cesáreas sem enfermeiras obstétricas e obstetrizes. Nos países com os melhores índices de assistência obstétrica, como Reino Unido e Holanda, são esses os profissionais responsáveis pelo atendimento ao parto, muitas vezes

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especialistas de diversas áreas para saber como eles avaliam as medidas em vigor e para entender quais são os desafios para estancar a sangria desatada de cesá-reas no Brasil.

AVANÇOS E LIMITAÇÕES

Para Raquel Marques, mestre em saúde pública e presidente da organização feminista Artemis, as regras criadas pela ANS não resolvem o problema do excesso de cesáreas nos planos de saúde, mas elas são impor-tantes para a indução de boas práticas, além de serem parte de um processo de mudança cultural. “A norma indica que certas práticas não serão mais toleradas”, avalia. “E com o partograma, por exemplo, o médico precisa demonstrar que pelo menos tentou realizar um parto normal”, comenta.

A presidente da Artemis também considera muito importante a divulgação do percentual de cesáreas. “Isso dá um horizonte para a mulher que procura pelo parto normal na rede privada”. A advogada e pesqui-sadora em saúde do Idec, Ana Carolina Navarrete, concorda que a medida é positiva e que pode dar uma

CAPA

18 MAR-ABR 2017 l REVISTA DO IDEC

visão mais crítica à gestante, mas acha que apenas informar é pouco. Mesmo que tenha acesso às infor-mações sobre a taxa de cesáreas de seu médico e saiba dos riscos desse tipo de parto, pode ser muito difícil para a mulher questionar a opinião do profissional caso ele diga que a cirurgia é necessária. “A gestante tem menos conhecimento técnico para influir nas decisões que são tomadas sobre a sua saúde e a do bebê”, pon-dera a advogada.

Segundo o Inquérito Nacional Nascer no Brasil, rea-lizado pela Fundação Oswaldo Cruz em 2012, a taxa de mulheres que querem fazer cesariana aumenta muito no decorrer da gestação – vai de 28% a 66% –, o que pode sugerir uma influência do profissional que acom-panha o pré-natal nessa decisão. “Há muitas pesquisas que mostram que a mulher é levada a acreditar que teve uma gestação ou parto problemático, quando na verdade não teve, e a cesariana foi feita por conveniên-cia médica”, aponta Marques.

DESVINCULAÇÃO DO MÉDICO

A relação entre a influência do obstetra e a alta incidência de cesáreas tem a ver, entre outros fatores, com a forma como os planos de saúde remuneram os médicos pelos partos. A maioria das operadoras paga ao profissional o mesmo valor pelo procedimento vagi-nal ou cirúrgico. No entanto, considerando que o even-to fisiológico é imprevisível e pode demorar muito mais do que a cesárea, a cirurgia acaba sendo mais cômoda e financeiramente vantajosa para o médico.

Embora afirme que o honorário pago pelos convê-nios pelos partos é inadequado, Borriello, da Febrasgo, rejeita sua vinculação com o alto índice de cesáreas nos planos de saúde. “A remuneração [do médico] está dentro de um pacote de outros problemas”, afirma. A federação defende o pagamento pelo tempo que o obs-tetra fica disponível para a realização do parto. Mas, em vez de negociar com as operadoras, os obstetras tentam repassar esse custo às consumidoras de plano de saúde. “A operadora lava as mãos”, diz o diretor da Febrasgo. Porém, nesse caso, a corda não pode estou-rar para o lado mais fraco. Cobrar taxa da usuária é ilegal. “A negociação do pagamento de quaisquer pro-cedimentos deve ser feita entre o profissional e a ope-radora. A função da operadora é, justamente, fazer a intermediação financeira entre o consumidor e o pres-tador credenciado”, declara a advogada do Idec (saiba mais sobre seus direitos no quadro da página ao lado).

EPIDEMIA DE CESÁREAS

l PLANOS DE SAÚDE

Total de partos:

502,8milhões Cesáreas

84,6%

Cesáreas40%

l SUS

Total de partos:

1,8milhões

Fonte: Ministério da Saúde, 2013

Em janeiro, uma decisão judicial proferida em São Paulo reiterou esse entendimento, rejeitando o pedido de uma associação de obstetras do Estado, que tentava legitimar a taxa.

No entanto, as usuárias de plano de saúde também não têm o direito de exigir que o médico que acom-panhou sua gestação realize o parto. “Nenhum con-trato, de nenhuma operadora, diz que o médico que faz pré-natal tem de fazer o parto. A beneficiária tem direito ao parto com [o médico] plantonista”, destaca Borriello. “Temos de brigar para que o plantão seja competente”, completa.

Nesse ponto, Raquel Marques concorda com ele. A presidente da Artemis defende que é preciso aca-bar com a associação entre pré-natal e parto, e criar um vínculo com o serviço de saúde – ou seja, com estabelecimentos que adotem protocolos únicos, que garantam que o atendimento será qualificado indepen-dentemente do profissional que fizer o parto. “É muito difícil pensar em uma forma de remuneração justa para o atual modelo. Quanto o médico tem de ganhar para ficar disponível para o parto normal? Seis vezes mais? Doze vezes mais? Ainda que isso fosse possível, não resolveria o problema, pois essa dedicação exclu-siva à gestante tem limite, o médico também cansa”, argumenta Marques.

REVISTA DO IDEC l MAR-ABR 2017 19

l Cesária desnecessária: caso a mulher perceba que foi submetida a uma cesárea sem indicação clínica e esta tenha provocado consequências nefastas à sua saúde ou à do bebê, pode pleitear na Justiça reparação pelos danos sofridos. A constatação da necessidade ou não do parto cirúrgico pode ser feita por meio de consulta ao partograma ou ao prontuário médico.

l Taxa do obstetra: se a usuária de plano de saúde deparar com a cobrança de taxa de disponibilidade por um obstetra credenciado, pode denunciar a prática à operadora e à ANS. Caso tenha pago pelo procedimento, a consumidora pode pedir ressarcimento apenas ao médico (se entender que ele violou a norma) ou a todos os envolvidos (operadora, médico e estabelecimento de saúde). Caso a taxa seja informada apenas no momento do parto, a abusividade é ainda maior.

FUI VÍTIMA, E AGORA?

Fonte: Conrado Navarro, educador financeiro e fundador do site Dinheirama (http://dinheirama.com/)

Fato é que, hoje, muitas mulheres criam um vínculo afetivo com o obstetra que acompanha sua gestação e, mais do que isso, têm medo do atendimento que vão receber de um plantonista – na recente decisão que proibiu a cobrança de taxa da usuária de plano de saúde, a juíza levanta essa questão, inclusive. Mas, segundo Marques, o atendimento por esse médico com quem a gestante já tem uma relação não garante que ela não vá sofrer violência obstétrica (entenda o conceito no quadro da página 17). “Às vezes, o profissional que é um fofo no pré-natal tem rotinas violentas”, alerta.

MAIS ENFERMEIRAS

Mais do que desvincular o parto do profissional que faz o pré-natal, especialistas defendem que o parto deve ser dissociado da figura do médico como detentor do processo. Nesse sentido, consideram fundamen-tal incorporar outros profissionais ao atendimento à gestante, como enfermeiras obstétricas ou obstetri-zes e doulas (veja a diferença no quadro da página 17). “Nenhum país conseguiu diminuir a taxa de cesáreas sem enfermeiras obstétricas e obstetrizes. Nos países com os melhores índices de assistência obstétrica, como Reino Unido e Holanda, são esses os profissionais responsáveis pelo atendimento ao parto, muitas vezes

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sem a participação de médicos”, informa Nadia Zanon Narchi, professora de obstetrícia da Universidade de São Paulo (USP).

Marques concorda. “A enfermeira obstétrica e a obstetriz são profissionais aptas a atender pré-partos e partos de risco habitual [sem complicações]. Todas nós, ao engravidarmos, deveríamos ser encaminhadas a uma dessas profissionais. Se ela identificar algum problema, aí encaminha para o médico, que deveria atender ape-nas os casos graves. É assim que ocorre na maioria dos países”, explica.

No ano passado, a ANS publicou uma norma (RN

no 398/2016) que determina o credenciamento de enfermeiras obstétricas ou obstetrizes pelos planos de saúde quando viável. A regra foi baixada por força de uma determinação judicial, a partir de uma ação do Ministério Público Federal. Mas há muitas dúvi-das sobre a eficácia dessa norma. Tanto o diretor da Febrasgo quanto a professora da USP dizem desco-nhecer casos de credenciamento e de atendimento ao parto por esses profissionais em São Paulo, por exem-plo. “É um modelo de assistência que não existe na rede privada”, observa Narchi. A ANS também não esclareceu como essa norma vem sendo implementada; apenas demonstrou apoio à maior atuação desses profissionais, dizendo, por exemplo, que ela “pode contribuir para a promoção de boas práticas e a melhora da segurança e da experiência do cuidado com o parto e o nascimento”.

Uma barreira para a inclusão desses profissionais é que eles são escassos no mercado. O curso de obs-tetrícia da USP, do qual Narchi é docente, é o único existente no Brasil. Segundo ela, que atua na área desde a década de 1970, nos anos 80 e 90 houve um desestí-mulo muito grande à formação na área e, por isso, há pouca procura por esses cursos. “Se os planos de saúde começarem a incentivar de fato a inclusão desses pro-fissionais no atendimento à gestante, a demanda [pela formação] deve aumentar”, acredita.

PARTO ADEQUADO, MAS RESTRITOMuitos pontos levantados pelos especialistas como

medidas necessárias para atacar a epidemia de cesá- reas no Brasil estão sendo trabalhados no projeto Parto Adequado, desenvolvido pela ANS em parceria com oHospital Israelita Albert Einstein e o Institute for Health- care Improvement, com apoio do Ministério da Saúde.

A primeira etapa do projeto ocorreu entre fevereiro de 2015 e outubro de 2016, e contou com a participa-ção de 35 hospitais privados e públicos de todo o País. As diretrizes do projeto envolvem a incorporação de equipe multiprofissional nos hospitais, treinamento dos profissionais e revisão das práticas de atendimento. O Hospital Nipo-Brasileiro, um dos participantes da pri-meira fase do projeto, informa ter adotado medidas de adequação do ambiente, como ampliação das salas de parto, e parcerias com operadoras para remuneração médica e hospitalar para partos vaginais, por exemplo.

Diferentemente dos impactos da norma aprovada em 2015, a ANS divulga amplamente os resultados do projeto Parto Adequado. Segundo a agência, a taxa de partos vaginais nos 26 hospitais que fizeram parte do grupo piloto (que participaram de todas as estra-tégias adotadas), cresceu em média 76%: passou de 21% em 2014 para 37% ao final do projeto, em 2016. Considerando os 35 hospitais, o aumento foi de 43%. “Em 18 meses, mais de 10 mil cesáreas sem indicação clínica foram evitadas”, informa a ANS.

A segunda fase do projeto está começando, com a participação de 150 hospitais, e será desenvolvida ao longo de dois anos. A ANS destaca que o número de estabelecimentos participantes é quatro vezes maior do que na primeira etapa, mas não respondeu se considera viável expandir esse modelo para toda a rede privada no Brasil nem em quanto tempo isso seria possível.