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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIA POLTICA

    EDMILSON LEITE MACIEL JUNIOR

    ALM DA APARNCIA: A LEGITIMIDADE DO CONSELHO TUTELAR NO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA CRIANA E DO

    ADOLESCENTE

    VEREDAS DA FUNDAO DO NOVO NA TEORIA POLTICA DE HANNAH ARENDT

    RECIFE 2005

  • EDMILSON LEITE MACIEL JUNIOR

    ALM DA APARNCIA: A LEGITIMIDADE DO CONSELHO TUTELAR NO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS

    DA CRIANA E DO ADOLESCENTE

    VEREDAS DA FUNDAO DO NOVO NA TEORIA POLTICA DE HANNAH ARENDT

    Dissertao apresentada como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Cincia Poltica junto Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientao da Profa. Dra. Ana Tereza Lemos-Nelson.

    RECIFE 2005

  • A existncia, porque humana, no pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, pronunciar o mundo, modifica-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizando aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. No no silncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ao-reflexo.

    Paulo Freire Pedagogia do Oprimido

  • AGRADECIMENTOS

    A Sueli Nascimento, companheira de todas as horas, presena constante em minha

    jornada.

    A Ana Tereza Lemos-Nelson pela amizade, carinho e estmulo, fortalecendo em mim,

    a cada contato, a responsabilidade do amor mundi.

    Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico - CNPQ pelo

    apoio, por meio da bolsa de mestrado em cincia poltica.

  • RESUMO

    O Sistema de Garantia de Direitos da Criana e do Adolescente, enquanto mecanismo

    composto por instituies com natureza democrtica, representativa e/ou participativa,

    depender sua eficincia e efetividade da experincia vivificada institucionalmente no agir em

    conjunto (ao poltica), possibilitada apenas no interior de uma rede de controle social da

    poltica pblica. Fazendo parte do Sistema de Garantia de Direitos, com poder decisrio, esto

    o Juiz da Infncia e Juventude (Poder Judicirio) e o Conselho Tutelar (Poder Executivo).

    Considerando que apenas o Conselho Tutelar, cujo mecanismo de composio ocorre atravs

    da eleio, possui a insurgncia da dimenso poltica, entendemos que esta constitui, junto

    com as dimenses jurdica e eleitoral, a possibilidade de legitimao no Sistema de Garantia

    enquanto defensor da liberdade infanto-juvenil. luz do pensamento de Hannah Arendt,

    analisamos a legitimidade concebida como produto de uma efetividade realizada atravs de

    um agir em conjunto, onde a liberdade e o espao pblico so institucionalizados e o poder e a

    autoridade so exercidos de forma dialgica e no violenta. Nossa pesquisa de campo,

    realizada nos municpios pernambucanos de Gravat, Serra Talhada e Recife, foi orientada

    pela construo de indicadores que revelassem a dinmica dessa trplice dimenso da

    legitimidade. Utilizamos como principais instrumentos de coleta de dados a pesquisa

    documental e entrevistas a conselheiros tutelares atuais e anteriores, a promotores e juizes da

    infncia. Temos, assim, como resultado da investigao de nossa hiptese embora no

    conclusivo, porm indicativo das complexas relaes ainda a perscrutar que a aparente

    configurao legtima dos conselhos tutelares, fundada em sua organizao formal, jurdica e

    eleitoral, sugere que a ausncia de ao poltica, entendida como o agir em conjunto, implica

    em crise de legitimidade e ameaa a integridade de todo o sistema.

    Palavras-chave: Conselho Tutelar Sistema de Garantia de Direitos da Criana e do

    Adolescente Legitimidade Teoria Poltica de Hannah Arendt.

  • ABSTRACT

    The Child and Adolescent Assurance System of Rights, as a mechanism composed by

    institutions with a democratic, representative and/or participative background will base its

    efficiency and effectiveness on the experience lived institutionally in the collective acting

    (political action), only allowed by the interior of a social control network of public policy. As

    a part of the Assurance System of Rights, with power of decision, are the Judge of Childhood

    and Youth (Judiciary Power) and the Tutelary Council (Executive Power). Considering that

    only the Tutelary Council, whose mechanisms of composition occur through elections, has the

    insurgency of the political dimension, we comprehend that it constitutes, along with the

    juridical and electoral dimensions, the possibility of legitimacy of the Assurance System as

    the defender of the childhood-youthful freedom. Under the light of Hannah Arendts theory,

    we analyze the legitimacy conceived as the product of an achieved effectiveness through a

    collective way of acting, where freedom and public space are institutionalized and the power

    and authority are carried through in a dialogical and non-violent way. Our field research,

    carried through in the cities of Gravat, Serra Talhada and Recife, in the state of Pernambuco,

    was guided by the construction of pointers that revealed the dynamics of this three-sided

    dimension of legitimacy. We used as main instruments of collection of data, documentary

    research and interviews with current and previous members of the Tutelary Council and

    prosecutors and judges of this area. As the result of the investigation of our hypothesis -

    although not conclusive, but indicative of complex relations still needing more investigation

    that the apparent legitimate configuration of the tutelary councils, based on its formal,

    juridical and electoral organization, suggests that the absence of political action,

    comprehended as the collective acting, implies in a legitimacy crisis and threats the integrity

    of the entire system.

    Key-words: Legitimacy Tutelary Council Child and Adolescent Assurance System of

    Rights Hannah Arendts Political Theory.

  • SUMRIO

    Introduo 09 Captulo I Sistema de Garantia de Direitos da Infncia e Juventude 12

    1.1. De Menor a Criana: a conquista do direito de ter direitos 12 1.2. Sistema de Garantia de Direitos como Modelo de Democracia. 23 1.3. Sistema de Conselhos enquanto Mecanismo de Accountability 31 1.4. Crise dos Modelos de Democracia: um problema de legitimidade 34

    Captulo II Legitimidade dos Conselhos Tutelares construindo um dilogo

    entre a teoria poltica de Hannah Arendt e a cidadania infanto-juvenil 40 2.1. A Fenomenologia Poltica de Hannah Arendt 40 2.2. O Problema da Legitimidade em Hannah Arendt 47 2.3. Da Ruptura a reconstruo da cidadania para crianas e adolescentes 50

    Captulo III Teoria e Prtica: perscrutando a legitimidade dos Conselhos Tutelares 64

    3.1. Modelo Terico Utilizado 64 3.2. Investigando Conselhos Tutelares em Municpios Pernambucanos 68

    3.2.1. Consideraes sobre os Critrios de Seleo da Amostra 68 3.2.2. Especificao da Amostra 71 3.2.3. Coleta de Dados 74

    3.3. Uma Anlise da Legitimidade dos Conselhos Tutelares de Recife, Gravat e Serra Talhada 76 3.3.1. Dimenso Jurdica 76

    3.3.1.1. Fundamento de Validade Jurdica 76 3.3.1.2. Estrutura Organizacional e Administrativa 77 3.3.1.3. Mecanismos de Controle do Sistema de Garantia 83 3.3.1.4. Procedimento Utilizado pelo Conselho Tutelar: regras do jogo 86 3.3.1.5. Inovaes Institucionais no Conselho Tutelar 87

    3.3.2. Dimenso Eleitoral 90 3.3.2.1. Requisitos para a Candidatura 92 3.3.2.2. Procedimento Eleitoral 93

    3.3.3. Dimenso Poltica 96 3.3.3.1. Autonomia Poltico-Administrativa 96 3.3.3.2. Ao em Conjunto: compartilhando a autoridade 99 3.3.3.3. Em Busca da Ilha de Liberdade 102

    Captulo IV Alm da Aparncia: a Legitimidade do Conselho Tutelar no

    Sistema de Garantia de Direitos da Criana e do Adolescente 105 Consideraes Finais 112 Referncias 115

  • Introduo

    A legitimidade, na teoria poltica de Hannah Arendt, est alm da aparncia da

    mera legalidade. Ela se estabelece na efetividade das instituies. Assim, para Hannah

    Arendt, a legitimidade decorre de um conjunto de valores: da ao realizada em conjunto; no

    espao pblico onde liberdade, poder e autoridade so institucionalizados e vivenciados em

    uma estrutura plural (conselhos) e dialgica, preservando a sua natureza poltica. A poltica e

    a liberdade, assim, esto no domnio da experincia e da ao.

    A liberdade necessita do agir conjunto em uma fundao (espao pblico

    institucionalizado) que legitima o poder. Os conselhos possuem como caractersticas serem

    rgos participativos, autnomos, compostos por cidados com poder de deliberar e de

    executar, gozando de legitimidade. Arendt identifica como importante varivel dessa

    legitimidade a celebrao de alianas, a busca incessante pelo consenso. Isto a leva a afirmar

    que o poder legtimo comunicacional e dialgico. O poder, para Hannah Arendt, um

    recurso gerado pela capacidade poltica de produzir consenso e engajamento participativo.

    Enquanto a autoridade pressupe obedincia sem violncia, forjada em um processo longo de

    consenso poltico que, por sua vez, surge da participao ativa nos assuntos de interesse

    pblico.

    Atravs do dilogo com a teoria poltica de Hannah Arendt, nos foi possvel

    construir o conhecimento acerca das limitaes e perspectivas a uma legitimidade

    institucional dos conselhos tutelares. Essa dinmica de legitimao, que implica

    necessariamente na efetividade da garantia dos direitos das crianas e adolescentes, dentro de

    um sistema de controles mtuos (accountability), constituiu o objeto do estudo que ora

    apresentamos.

  • 10

    Para uma compreenso harmoniosa das idias que pretendemos demonstrar aqui,

    procuramos organizar nossa exposio de maneira a ir construindo gradativamente uma

    percepo acerca da dinmica observada nos conselhos tutelares dos municpios

    pernambucanos: Recife, Gravat e Serra Talhada.

    No primeiro captulo, resgatamos os aspectos histricos e culturais que perpassam a

    representao dos direitos de cidadania da infncia e da adolescncia, percorrendo o caminho

    que vai da viso acerca dos menores objeto da institucionalizao compulsria num

    sistema jurisdicional de controle das situaes irregulares at a ruptura conceitual e

    metodolgica ensejada com o paradigma da proteo integral. Abordamos, ento, a concepo

    de Sistema de Garantia de Direitos da criana e do adolescente e, dentro dele, a funo dos

    conselhos tutelares no desempenho da ao poltica de controle democrtico de sua

    efetividade, em conformidade com os preceitos legais.

    Argumentamos, desde esse primeiro momento da exposio, sobre a natureza do

    poder decisrio e fiscalizador dos conselhos tutelares e suas possibilidades de atuar como um

    mecanismo de accountability dentro de um modelo de democracia participativa desenhado na

    Constituio Federal de 1988 e ratificado na Lei n 8.069, de 13 de julho de 1990 Estatuto

    da Criana e do Adolescente. Destacamos a os riscos e tendncias de uma crise de

    legitimidade e conseqente ameaa efetividade do princpio da proteo integral das

    crianas e adolescentes, considerando a necessria complementaridade de trs dimenses

    inerentes ao processo de legitimao, quais sejam: a legitimidade jurdica, a legitimidade

    eleitoral e, principalmente, a legitimidade poltica.

    No segundo captulo, buscamos estabelecer um dilogo entre a teoria poltica de

    Hannah Arendt e a trajetria do movimento pela cidadania infanto-juvenil, no Brasil, para

    que, a partir da compreenso das categorias ao conjunta, espao pblico, liberdade, poder,

    autoridade e pluralidade construdas pela via do mtodo fenomenolgico (fenomenologia

    poltica de Hannah Arendt) pudssemos prosseguir com a anlise da legitimidade dos

    conselhos tutelares, identificando os problemas que tendencialmente induzem a uma crise de

    legitimidade na fundao do novo.

  • 11

    no terceiro captulo que vamos apresentar os resultados da pesquisa emprica que

    realizamos junto aos conselhos tutelares da pequena amostra de municpios pernambucanos.

    Na anlise das informaes coletadas durante a pesquisa de campo, agrupamo-las em tpicos,

    segundo os indicadores vinculados a cada varivel ou dimenso da legitimidade estudada.

    A legitimidade dos conselhos tutelares no Sistema de Garantia de Direitos , por fim,

    analisada enquanto espao de liberdade e no quarto e ltimo captulo.

    Chegaremos, enfim, s consideraes, onde pontuaremos os principais aspectos

    levantados no trabalho de investigao de nossa hiptese de pesquisa. Apontamos, ainda que

    no conclusivamente, que a aparente configurao legtima dos conselhos tutelares, fundada

    em sua organizao formal, jurdica e eleitoral, sugere que a ausncia de ao poltica,

    entendida como o agir em conjunto, implica em crise de legitimidade e ameaa a integridade

    de todo o sistema.

    Em razo das limitaes do estudo proposto e desenvolvido cujo mrito e

    relevncia, esperamos, esteja no desvelamento da condio scio-poltica dos conselheiros

    tutelares , o conhecimento ora construdo sugere e indica que ainda h um esforo terico-

    metodolgico a ser prosseguido, no sentido de se perscrutar com maior acuidade as

    complexas relaes institucionais e sociais que envolvem o paradigma da proteo integral

    das crianas e adolescentes. Este aqui s um comeo.

  • Captulo I

    Sistema de Garantia de Direitos da Infncia e Juventude

    1.1. De Menor a Criana: a conquista do direito de ter direitos

    Para alm de mera acepo lingstica ou etimolgica, a distino entre criana e

    menor deita razes histricas, sendo reflexo da (eterna) desigualdade existente na sociedade

    brasileira. A maneira como nos organizamos para proteger as crianas e os adolescentes varia

    no tempo e no espao. Na sociedade moderna, porm, estamos mais aparelhados

    intelectualmente para entender a importncia e as implicaes para o indivduo de vivenciar

    um estgio do desenvolvimento humano denominado infncia1.

    Constitui nosso objetivo, neste captulo, analisar as distines e dimenses scio-

    jurdicas e polticas do ser humano criana enquanto menor, sem direitos, em confronto

    com o status de cidadania do ser humano criana, sujeito de direitos, vislumbrando refletir

    sobre a importncia do momento de ruptura2 da tradio brasileira em relao aos direitos

    infanto-juvenis, a partir da compreenso desta tradio. Para atingir tal fim, investigaremos,

    atravs dos aspectos histricos e jurdicos (legislao), o sentido da palavra e da condio de

    menor (tradicionalmente considerado sem direito a ter direito), sendo um dos fatores que

    dificultam a efetividade dos direitos civis garantidos na Constituio e nas leis. 1 Conforme pondera Samuel Pfromm Netto O que hoje sabemos sobre processos bsicos de natureza

    psicolgica nos primeiros anos de vida humana, sobre fatores que contribuem para retardar ou causar danos ao desenvolvimento, sobre riscos, distrbios, anomalias e dificuldades que geram uma infncia infeliz e prenunciam conflitos e problemas srios na futura pessoa adulta, mais do que suficiente para justificar a compreenso do carter fundamental dos chamados anos formativos que em mdia, correspondem aos dois primeiros decnios de vida (In CURY, Munir. Estatuto da Criana e do Adolescente Comentado. So Paulo: Malheiros, 1992, p. 15).

    2 Ainda que, pragmaticamente, apenas no aspecto jurdico, com a Constituio Federal de 1988 e o Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei n 8.069 de 13 de julho de 1990).

  • 13

    Tal proceder adquire relevncia, pois, possibilita compreender, axiologicamente, os

    fundamentos subjetivos que norteiam as aes dos rgos componentes do Sistema de

    Garantia de Direitos da infncia e juventude.

    Historicamente, a compreenso do significado da infncia como um direito subjetivo

    do ser humano em desenvolvimento, ou mesmo a sua existncia, algo recente. No mundo

    antigo e medieval, segundo Philippe ries3, talvez simplesmente no houvesse lugar para a

    infncia, ou a crueza da realidade estava a obstruir a visibilidade desta condio.

    A partir da anlise de pinturas e outras manifestaes artsticas e literrias do sculo

    XI ao XIX, ries retrata o lento caminhar na construo da percepo da infncia. No sculo

    XI, com a representao da criana como um adulto deformado at a representao de tipos

    de crianas mais prximos do sentimento moderno. No sculo XII, a influncia da doutrina

    crist levou os artistas a identificarem elementos de afetividade na representao do Menino

    Jesus e sua me.4

    A doutrina crist fundamentada no valor da pessoa humana5 constitui uma ruptura com

    padres de comportamento e a criana, at ento tratada com indiferena, passa a ocupar um

    espao na famlia, sendo retratada nas artes, como smbolo de inocncia e pureza. Entretanto,

    a percepo social (comunidade poltica) da criana e do adolescente como seres humanos

    incompletos e, portanto, imperfeitos moldou a significncia poltica e jurdica ao longo do

    tempo e do espao.

    3 RIES, Philippe. Histria Social da Criana e da Famlia. Rio de Janeiro: Ltc, 1981, p. 17. 4 ries esclarece: No incio, Jesus era, como as outras crianas, uma reduo do adulto: um pequeno Deus-

    padre majestoso, apresentado pela Theotkos. A evoluo em direo a uma representao mais realista e mais sentimental da criana comearia muito cedo na pintura: numa miniatura da segunda metade do sculo XII, Jesus em p veste uma camisa leve, quase transparente, tem os dois braos em torno do pescoo de sua me e aninha em seu colo, com o rosto colado ao dela. Com a maternidade da Virgem, a tenra infncia ingressou no mundo das representaes. No sculo XIII, ela inspirou outras cenas familiares. Na Bblia Moralizada de So Lus, encontramos cenas de famlia em que os pais esto cercados por seus filhos, com o mesmo acento de ternura do jub de Cahartres; por exemplo, num retrato de famlia Moiss, o marido e a mulher do as mos, enquanto as crianas (homenzinhos) que os cercam estendem a mo para a me. Esses casos, porm, eram raros: o sentimento encantador da tenra infncia permaneceu limitado ao Menino Jesus at o sculo XIV, quando, como sabemos, a arte italiana contribuiu para desenvolve-lo e expandi-lo. (RIES, Philippe. Histria Social da Criana e da Famlia. Rio de Janeiro: Ltc, 1981, p. 19).

    5 Neste sentido, evidencia Miguel Reale: Da doutrina crist resulta que o homem por si s um valor digno do mais alto respeito e que, pelo simples fato de sermos homens, independentemente de qualquer ligao de ordem poltica e jurdica, somos possuidores de um ncleo indestrutvel de prerrogativas que o Estado no pode deixar de reconhecer. Destarte, a primeira conseqncia do triunfo do Cristianismo foi relativa ao valor da pessoa humana. (REALE, Miguel. Questes de Direito Pblico. So Paulo: Saraiva, 2000, p. 4.)

  • 14

    Uma instituio que colaborou com essas transformaes, segundo ries, foi a escola,

    inicialmente prorrogando a infncia, que durava dos cinco aos sete primeiros anos para os dez

    anos de vida, dando, por conseguinte, visibilidade fase da adolescncia at ento

    imperceptvel. A escolarizao no era um monoplio de uma determinada classe, nem

    tampouco era destinada educao da infncia: era uma espcie de escola medieval

    destinada educao de clrigos (jovens o u velhos).

    O rigoroso controle disciplinar dos alunos, no sculo XVII, favoreceu a construo de

    melhores condies de uma educao rigorosa, a tal ponto que a instituio ideal do sculo

    XIX seria o internato, quer fosse um liceu, um pequeno seminrio, um colgio religioso ou

    uma escola normal. No entanto, para aquelas crianas cujos pais no tinham condio de arcar

    com os custos de uma educao em tempo integral foi negado o privilgio do ensino longo e

    clssico, e [condenado] o povo a um ensino inferior, exclusivamente prtico. 6

    A escola passa a ser a instituio que estabelece e aprofunda a diferena entre a

    criana rica e a pobre. Remanesce do passado, por conseguinte, a excluso da cidadania (dos

    menos favorecidos economicamente e, no nosso caso, particularmente de crianas e de

    adolescentes). A igualdade violada pelos costumes sociais e recepcionada pela lei,

    norteando uma educao que segrega e no liberta.

    Em tempos coloniais, a sociedade brasileira chegou a identificar uma fase da infncia

    onde a criana, como afirmou Gilberto Freyre, entre os seis a dez anos era considerada

    menino -diabo. 7 Naquele perodo, a escravido transformava crianas em objetos. Os filhos

    dos escravos, crianas cativas, s vezes, a partir dos quatro anos eram adestradas e aos doze

    6 RIES, Philippe. Histria Social da Criana e da Famlia. Rio de Janeiro: Ltc, 1981, p. 20. 7 Neste sentido, assim descreve Freyre o menino no Brasil patriarcal: (...) enquanto considerado menino foi

    sempre criatura conservada a grande distncia do homem. (...) At certa idade, era idealizado em extremo. Identificado com os prprios anjos do cu. (...) Mas essa adorao pelo menino era antes dele chegar idade teolgica da razo. Dos seis ou sete anos aos dez, ele passava a menino diabo. Criatura estranha que no comia na mesa, nem participava de modo nenhum da conversa de gente grande. Tratado de resto. Cabea raspada: os cachos do tempo de anjo guardados pela me sentimental no fundo da gaveta da cmoda ou oferecidos ao Senhor dos Passos para a cabeleira de dia de procisso. E porque se supunha essa criatura estranha, cheia de instinto de todos os pecados, com a tendncia para a preguia e a malcia, seu corpo era o mais castigado dentro da casa. Depois do corpo do escravo, naturalmente. Depois do corpo do moleque leva pancada, que s vezes apanhava por ele e pelo menino branco. (...) [Era] Castigado por uma sociedade de adultos em que o domnio sobre o escravo desenvolvia, junto com as responsabilidades de mando absoluto, o gosto de judiar tambm com o menino. (FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos: decadncia do patriarcado e desenvolvimento do urbano. So Paulo: Global, 2004, pp. 178-179.

  • 15

    anos eram consideradas adultas e comeavam a trazer a profisso no seu sobrenome: Chico

    Roa, Joo Pastor, Ana Mucama. 8

    Na guerra do Paraguai (de 1864 a 1870), crianas com idade entre nove e doze anos

    foram convocadas e enviadas para frente de batalha.9 Analisando este fato, podemos ressaltar

    duas ordens de considerao: a primeira a identificao de crianas e adolescentes em

    situao economicamente desfavorvel tratados como adultos imperfeitos (iguais na

    responsabilidade, diferentes nos direitos). Ocorre que este comportamento foi inicialmente

    identificado por ries, atravs de suas pesquisas em crianas do sculo XI; houve, portanto, a

    tradio deste comportamento. A segunda diz respeito ao locupletamento do estado de guerra

    para expor ao risco extremo de morte crianas e adolescentes oriundos de determinado

    segmento (inferior) da populao.

    Em decorrncia da industrializao, houve um aumento expressivo da populao de

    So Paulo, no perodo de 1870 a 1907.10 Sem infraestrutura, a cidade tornou-se um local ideal

    para pestes e epidemias que se alastravam, beneficiadas pela ausncia de condies mnimas

    de salubridade e saneamento. 11 Em estado de constante carncia e aguda misria, crianas e

    adolescentes ingressam no trabalho infantil.

    Desde a abolio da escravatura, no final do sculo XIX, segundo Haim Grunspun,

    teve incio uma polmica acerca do trabalho infantil. Em decorrncia da crise econmica e

    com o desemprego de adultos, levou-se utilizao de crianas como mo-de-obra barata,

    independentemente de sua etnia, pois, as crianas brancas tambm eram compulsoriamente

    retiradas da rea urbana para o trabalho nas fazendas.12 O cotidiano cruel das crianas

    8 GES, Jos Roberto de, Crianas Escravas, Crianas dos Escravos. In DEL PRIORE, Mary. Histria das

    Crianas no Brasil. So Paulo: Contexto, 2004, p. 184. 9 Conforme salienta Renato Venncio: Embora a cor dos meninos no seja indicada, possvel que algumas

    crianas fossem filhas de escravas; de certa maneira, a ausncia de sobrenomes um indicador desse tipo de recrutamento. (VENNCIO, Renato Pinto. Os Aprendizes da Guerra. In DEL PRIORE, Mary. Histria das Crianas no Brasil. So Paulo: Contexto, 2004, p. 207)

    10 Oportuno considerar que So Paulo estava com cerca de trinta mil habitantes em 1870, passaria a abrigar uma populao de 286 mil habitantes em 1907. (SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Criana e Criminalidade no Incio do Sculo. In DEL PRIORE, Mary. Histria das Crianas no Brasil. So Paulo: Contexto, 2004, p. 212)

    11 Idem,ibidem, p. 212. 12 Acerca da histria do trabalho infantil no Brasil, Grunspun resalta: Antes as crianas sempre foram

    exploradas, mas como a escravatura cobria o trabalho com adultos e crianas, as crianas rfs e pobres eram recrutadas para o trabalho das fazendas e das casas grandes dos senhores, onde eram exploradas e abusadas, mais do que os filhos dos escravos que valiam dinheiro e estas no valiam. Antes da extino da escravatura nenhuma criana recebia algum ganho pelo trabalho que executava. Com a massa de escravos livres sem

  • 16

    operrias nas fbricas e oficinas13 levou o Governo Provisrio a regulamentar, atravs do

    Decreto 1.313, de 17 de janeiro de 1891, o trabalho dos menores nas fbricas da capital

    federal, esta Lei jamais foi cumprida.14 Neste contexto, o agravamento das tenses sociais

    levou a um aumento do nmero de crimes praticados por adultos e crianas.15

    Este cenrio tornou-se propcio para o crescimento do nmero de crianas

    abandonadas e delinqentes16, sendo a vadiagem17 a infrao de maior incidncia. A medida

    aplicada indiscriminadamente era a internao18, desde que o suspeito no conseguisse

    comprovar a sua ocupao19. Atravs da coero legal, arrebanhavam-se milhares de crianas

    trabalho, as famlias no conseguiam sustentar seus filhos e muitos dos filhos das escravas no tinham pai conhecido e ficavam pelas ruas. A crise econmica que avassalou o Pas na poca, desempregou as famlias dos brancos e seus filhos tambm ficavam deriva. A sociedade no fim do sculo se preocupava mais com a criminalidade infantil, na procura de solues para o problema do menor abandonado e/ou delinqente. A experincia da escravido havia demonstrado que a criana era mo-de-obra mais dcil, mais barata e com maior facilidade de adaptao ao trabalho. GRUNSPUN, Haim. O Trabalho das Crianas e do Adolescente. So Paulo: Ltc, 2000, p. 51 (grifo nosso).

    13 MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Crianas Operrias na Recm-Industrializada So Paulo. In DEL PRIORE, Mary. Histria das Crianas no Brasil. So Paulo: Contexto, 2004, p. 259.

    14 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Dcadas de Espanto e uma Apologia Democrtica. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 72.

    15 Segundo relatrio apresentados pelo chefe de polcia da capital ao secretrio da justia e segurana pblica (1904-1906) A natureza dos crimes cometidos por menores era muito diversa daqueles cometidos por adultos, de modo que entre 1904 e 1906, 40% das prises de menores foram motivadas por desordens, 20% por vadiagem, 17% por embriaguez e 16% por furto ou roubo. Se comparados com os ndices de criminalidade adulta teremos: 93,1% dos homicdios foram cometidos por adultos, e somente 6,9% por menores, indicando a diversidade do tipo de atividades ilcitas entre ambas as faixas etrias. As estatsticas mostram que os menores eram responsveis neste perodo por: 22% das desordens, 22% das vadiagens, 26% da gatunagem, 27% dos furtos e roubos, 20% dos defloramentos e 15% dos ferimentos. (SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Criana e Criminalidade no Incio do Sculo. In DEL PRIORE, Mary. Histria das Crianas no Brasil. So Paulo: Contexto, 2004, p. 214.)

    16 Neste sentido artigo publicado no Jornal O Movimento de So Manoel Estado de So Paulo, em 01/02/1925 por Joaquim Candido Azevedo Marques, juiz de direito daquela comarca.. Oxal, destarte, no sejamos mais, daqui a uns annos, testemunhas compungidas desse especaulo doloroso que se observa quotidianamente, por toda parte, aqui como em outros centros, de menores abandonados, girovagando ao lo, pelas vias e logradouros publicos; arrastados ao sabor traioeiro da onda das ruas; almas cndidas, puras, a se plasmarem, emtanto, nesse cadinho immundo da todos os vicios, presas imblles do barathro da propria inexperiencia; muita vez commettendo tropelias, tumultos, damnos; importunando o nosso socego e as nossas occupaes com pendinchar constante de uma mendicidade duvidosa ou manifestamente indbita, ou com solicitaes outras, de pura vadiagem ou abandono; quando no delinqindo, positivamente, contra a propriedade alheia, ou contra a moralidade publica! (MARQUES, Joaquim Candido de Azevedo. Menores Abandonados e Delinqentes. So Paulo: Saraiva, 1925, p. 14).

    17 Previsto no Cdigo Penal art. 399 e 400. 18 Segundo a Lei federal 4.242 de 5 de janeiro de 1921 no seu o menor que contar mais de 14 e menos de 18

    annos (20) em conformidade com a Lei duas hipteses su rgem a primeira: Si o menor for abandonado, moralmente pervertido, ou estiver em perigo de o ser, a autoridade o internar em uma escola de reforma, por todo o tempo necessrio sua educao, que poder ser de tres annos, no mnimo, e de sete annos, no maximo (21) e a segunda: Si o menor no for abandonado nem moralmente pervertido, nem precisar de tratamento especial, a autoridade, si o julgar culpado, o recolher a uma escola de reforma pelo prazo de um a cinco annos. (MARQUES, Joaquim Candido Azeve do. Menores Abandonados e Delinqentes. So Paulo: Saraiva, 1925, p. 98.)

    19 A correo que o Estado lhes imputava passava necessariamente pela pedagogia do trabalho. Em seu relatrio de 1904, o chefe de polcia Antonio de Godoy defendia: a pena especfica da vagabundagem

  • 17

    para o trabalho escravo nas indstrias. A absurda lgica kafkiana20 erigida condio de

    lgica jurdica propugnava: quem no estava sucumbindo no martrio do trabalho infantil era

    qualificado como vadio e, por conseguinte, um infrator.

    Vislumbrando proteger as crianas, reduzir a delinqncia e o estado de abandono, a

    lei, ao unir poder e injustia estava matando o mesmo esprito que alegava estar cultivando,

    uma vez que aceitava como ponto de partida o argumento de uma delinqncia latente nas

    pessoas pobres 21 e uma honestidade manifesta nas pessoas mais abastadas economicamente.

    O Direito, enquanto instrumento de controle e mudana, fenmeno social; portanto,

    o fato jurdico revela um alto ndice de socializao entre os fenmenos normativos. 22

    Atravs das leis, pode-se entender e revelar um vivo sentimento da realidade, e das

    necessidades sociais que se manifestam em cada perodo histrico.23 Mesmo levando em

    considerao que o Estado nem sempre utiliza o Direito visando superar contradies sociais

    e sim mant-las em condio de latncia, ainda assim, as leis so indicadores importantes dos

    valores socialmente aceitos pela sociedade.

    A sistematizao das leis relativas a menores veio com a Repblica atravs de trs

    diplomas legais, sendo o primeiro denominado Consolidao das Leis de Assistncia e

    Proteo a Menores24, o segundo, Cdigo de Menores25 e o terceiro, Estatuto da Criana e do

    Adolescente26.

    Ao longo de dcadas (1921 at 1990), apesar das grandes transformaes, as

    legislaes refletem uma sociedade vida pelo aprimoramento de um modelo de controle

    incontestavelmente o trabalho coato. E a pena especfica, porque realiza completamente as duas funes que lhe incumbem: tem eficcia intimidativa, porque o vagabundo prefere o trabalho fome; tem poder regenerativo, porque, submetido ao regime das colnias agrcolas ou das oficinas, os vagabundos corrigveis aprendem a conhecer e a prezar as vantagens do trabalho voluntariamente aceito. (SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Criana e Criminalidade no Incio do Sculo. In DEL PRIORE, Mary. Histria das Crianas no Brasil. So Paulo: Contexto, 2004, p. 222.)

    20 A expresso kafkiana, utilizada como adjetivo, encontra seu sentido nas obras de Franz Kafka caracterizada pelo absurdo como lgica da vida, a burocracia transformada em pesadelo e um sentimento de culpa antes de qualquer motivo.

    21 MENDEZ, Emlio Garcia; COSTA, Antnio Carlos Gomes da. Das Necessidades aos Direitos. So Paulo: Malheiros, 1994, p. 32.

    22 SOUTO, Cludio. Teoria Sociolgica do Direito e Prtica Farense. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1978, p. 17.

    23 LESSA, Pedro. Estudos de Filosofia do Direito. Campinas: Bookseller, 2000, p. 289. 24 Decreto n 17.943-A, de 12 de outubro de 1927. 25 Lei n 6.697, de 10 de outubro de 1979. 26 Lei n 8.069, de 13 de julho de 1990.

  • 18

    social baseado na diferena e no na igualdade, onde crianas e adolescentes em situao de

    vulnerabilidade social so rotulados como menores (em situao irregular) e confinados em

    instituies de internao. Sendo, por conseguinte, discriminados e colocados numa posio

    mais humilhante que aquela onde se encontravam expostas pela desigualdade social, pois, a

    legislao institua a segregao atravs da construo de uma categoria de indivduos

    dbeis para quem a proteo, muito mais que constituir um direito, consiste numa

    imposio. 27

    A construo da categoria sociolgica denominada menor no condiz apenas com uma

    dimenso jurdica de criao de uma jurisdio separada dos adultos. Trata-se da utilizao de

    um instrumento jurdico para retirar de uma parcela da populao (crianas e jovens pobres)

    seus direitos e garantias fundamentais necessrias para sua existncia num Estado de

    Direito.28 Conforme salienta Emlio Garcia Mendez, a doutrina da situao irregular no se

    dirige ao conjunto da populao infanto-juvenil, mas apenas aos menores em situao

    irregular. 29

    O Estado, ao institucionalizar a diferena entre criana e menor, como uma questo

    meramente jurdica e no poltica, retira-se do centro de responsabilizao no que concerne

    elaborao de polticas pblicas. A legalizao do tratamento diferencial destinado ao menor

    teria implicado no incio do deslocamento da responsabilizao, retirando a culpa dos ombros

    dos adultos (ou do Estado) para os das crianas, vitimizando-as e condenando-as

    segregao30. A construo jurdico-social do menor como uma criana sem direito a ter

    direitos, constitui, assim, um marco na legalizao da excluso social deste segmento da

    populao.

    27 MENDEZ, Emlio Garcia; COSTA, Antnio Carlos Gomes da. Das Necessidades aos Direitos. So Paulo:

    Malheiros, 1994, p. 14. 28 Nas palavras de Raul Zaffaroni (1984), a minimizao formal do controle para se atingir o mximo de

    represso material. Por isto, em termos gerais, a poltica de reformas no se esgota na criao de um jurisdio separada daquela dos adultos. Ela trata de elevar, na medida do possvel, a idade mxima da inimputabilidade para aumentar quantitativamente a parcela da populao a ser protegida, mas despojada de todas as garantias formai de um processo penal. (MENDEZ, Emlio Garcia; COSTA, Antnio Carlos Gomes da Emilio Garcia Mendez. Ib. Ibid, p. 25)

    29 MENDEZ, Emlio Garcia. Adolescentes em Conflito com a Lei. Revista da Esmape, Recife, V. 3, n 7, p. 203.

    30 MENDEZ, Emlio Garcia; COSTA, Antnio Carlos Gomes da. Das Necessidades aos Direitos. So Paulo: Malheiros, 1994, p. 32.

  • 19

    A ausncia de polticas pblicas direcionadas para crianas e adolescentes constitui

    um continuum at o incio do sculo XX, quando o governo de Getlio Vargas cria o

    Ministrio da Educao e da Sade Pblica, motivado pelo incio da industrializao e

    percebendo a necessidade de uma nova mo-de-obra, pois, apenas 30% da populao estava

    matriculada na escola. O Estado brasileiro comea a dar os primeiros passos para a

    implementao de uma poltica de educao. Portanto, a idia de uma educao pblica vem

    surgir no Brasil, apenas na dcada de 30, com o movimento renovador da educao, quando

    os pioneiros da escola nova (Ansio Teixeira, Loureno Filho e outros) lanam um manifesto

    em defesa da educao pblica.

    No perodo de 1946 a 1964, houve um grande avano na poltica educacional

    brasileira em relao aos anos anteriores. O educador Paulo Freire sensibiliza a nao com

    uma proposta educacional construtivista, na qual a essncia da educao a prtica da

    liberdade.31 Ocorreu uma ampla campanha em defesa da escola pblica liderada pelos

    professores Florestan Fernandes e Roque Espencer Maciel de Barros. Entretanto, aps o golpe

    militar, com as restries s liberdades civis, chegam tempos sombrios.

    Apesar do aumento significativo do nmero de escolas em todo o pas, os indicadores

    oficiais apontam a fragilidade do sistema pblico educacional brasileiro, uma vez que, de cada

    1.000 alunos que entraram na 1 srie em 1964, apenas 101 chegam 8 srie em 1970. O

    mtodo de ensino claramente confinava, no promovia a emancipao.

    Lamentvel evidncia das restries s liberdades civis, o Cdigo de Menores vigorou

    sem grandes modificaes ao longo de todo o perodo da ditadura militar. A doutrina da

    situao irregular, recepcionada pela Lei n 6.697, de 10 de outubro de 1979, era apenas o

    aprimoramento do modelo anterior, guardando estreita semelhana com os dispositivos legais

    anteriores, sobretudo, pelo fato de que boa parte dos institutos do novo cdigo atentava

    31 Segundo Paulo Freire: A existncia, porque humana, no pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode

    nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, pronunciar o mundo, modifica-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizando aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. No no silncio que os homens se fazem , mas na palavra, no trabalho, na ao-reflexo. (FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 78)

  • 20

    contra os direitos fundamentais de quem ele, paradoxalmente, propunha-se a defender. 32

    Portanto, manteve-se a tradio legislativa brasileira.

    A definio de menor abandonado remonta Lei Federal n 4.242, de 5 de janeiro de

    192133, recepcionada em parte pelo Decreto n 17.943-A, de 12 de outubro de 192734,

    representa o uso do arbtrio e violncia para resoluo de graves problemas sociais, ou seja,

    uso do sistema judicial para realizar o controle social da pobreza.

    Quando da elaborao do segundo Cdigo de Menores, em 1979, sob a influncia do

    Instituto Interamericano da Criana, rgo da Organizao dos Estados Americanos (OEA),

    32 Paulo Csar Maia Porto. O Estatuto da Criana e do Adolescente e a Represso aos Atos Infracionais. Revista

    da Esmape, V.2, n 3, p. 429. 33 Segundo Joaquim Candido de Azevedo Marques Os casos de abandono No conceito da lei, considera-se

    abandonado todo o menor que, tendo menos de 18 annos: 1) no tenha habitao certa, nem meios de subsistncia, por terem seus paes fallecidos, desapparecidos, ou desconhecidos, ou por no terem tutor, ou pessa sob cuja guarda vivam; 2) se encontrem eventualmente sem habitao certa nem meios de subsistncia, devido indigncia, enfermidade, ausncia, ou priso dos paes, tutor, ou pessa encarregada de sua guarda; 3) tenha pai, me, ou tutor, ou encarregado de sua guarda, reconhecido impossibilitado ou incapaz de cumprir os seus deveres para com o filho, ou pupilo, ou protegido; 4) viva em companhia de pae, me, tutor ou pessa que se entregue pratica de actos contrrios a moral e aos bons constumes; 5) se encontre em estado habitual de vadiagem, mendicidade ou libertinagem; 6) devido crueldade, explorao ou perversidade dos paes, tutor ou encarregado de sua guarda, seja: a) privado habitualmente dos alimentos ou dos cuidados indispensveis sade; b) victima de mos tratos fsicos habituaes ou castigos immoderados; c) empregado em occupaes prohibidas ou manifestamente contrarias moral e aos bons constumes, ou que lhe ponham em risco a vida ou a sade; d) excitado habitualmente para a gatunice, mendicidade ou libertinagem; 7) tenha pae, me, ou tutor, ou pessa encarregada de sua guarda, condemnado por sentena irrecorrvel: a) a mais de 2 annos de priso, por qualquer crime; b) a qualquer pena como co-autor, cumplice, encobridor ou receptador de crime commettido por filho, pupilo ou menor sob sua guarda, ou por crime contra eles. (MARQUES, Joaquim Candido Azevedo. Menores Abandonados e Delinqentes. So Paulo: Saraiva, 1925, p. 13-14.)

    34 Dos Menores Abandonados. Art. 26 consideram-se abandonados os menores de 18 anos: I - que no

    tenham habitao certa nem meios de subsistncia, por serem seus pais falecidos, desaparecidos ou por no terem tutor ou pessoa sob cuja guarda vivam; II que se encontrem eventualmente sem habitao certa nem meios de subsistncia devido indigncia, enfermidade, ausncia ou priso dos pais, tutor ou pessoa encarregada de sua guarda; III que tenham pai, me ou tutor ou encarregado de sua guarda reconhecidamente impossibilitado ou incapaz de cumprir os seus deveres para com o filho ou pupilo ou protegido; IV que vivem em companhia de pai, me, tutor ou pessoa que se entregue prtica de atos contrrios moral e aos bons costumes; V que se encontrem em estado habitual de vadiagem, mendicidade ou libertinagem; VI que freqentem lugares de jogo ou de moralidade duvidosa ou andem na companhia de gente viciosa ou de m vida; VII que, devido crueldade, abuso de autoridade, negligncia ou explorao dos pais, tutor ou encarregado de sua guarda, sejam: a) vtimas de maus tratos fsicos habituais ou castigos imoderados; b) privados habitualmente dos alimentos ou dos cuidados indispensveis sade; c) empregados em ocupaes proibidas ou manifestamente contrrias moral e aos bons costumes, ou que lhes ponham em risco a vida ou a sade; d) excitados habitualmente para a gatunice, mendicidade ou libertinagem. VIII que tenham pai, me ou tutor, ou pessoa encarregada de sua guarda, condenado por sentena irrecorrvel: a) a mais de dois anos de priso por qualquer crime; b) a qualquer pena como co-autor, cmplice, encobridor ou receptor de crime cometido por filho, pupilo ou menor sob sua guarda, ou por crime contra eles. (MARQUES, Joaquim Candido Azevedo. Menores Abandonados e Delinqentes. So Paulo: Saraiva, 1925, p. 80-82).

  • 21

    em seu IX Congresso de 1948, foi escolhida a expresso situao irregular para cara cterizar

    o estado em que vivem os menores.35

    A doutrina da situao irregular no se dirigia ao conjunto da populao infanto-

    juvenil, mas apenas aos menores carentes, abandonados, inadaptados e infratores, no se

    fazendo distino entre essas circunstncias. O cdigo de menores, recepcionando valores do

    passado, perpetua a categoria sociolgica do menor como um objeto de interveno jurdica e

    social do Estado.36

    Ocorre uma estranha lgica: apenas as crianas e os jovens que estivessem em

    situao irre gular eram objeto de atuao do Estado, recebendo agora o nome juris de

    menor. Um dos efeitos da judicializao e policizao de questes sociais foi a no

    implementao de polticas pblicas que mitigassem os nefastos efeitos de uma sociedade

    dramaticamente desigual.

    O Decreto n 17.943-A, de 12 de outubro de 1927 e a Lei n 6.697, de 10 de outubro

    de 1979, constituram leis segregacionistas, reflexo do seu tempo histrico, abrigando o

    paradigma do direito do menor, que segundo Mrio Volpi so rtulos perversos da

    incapacidade, da menoridade e da ndole m gerados pelo complexo de preconceitos

    agrupados numa doutrina da situao irregular. 37

    Durante dcadas, a forma de controle social utilizado pelo Estado recepcionava e

    ampliava o fortalecimento de uma cultura scio-jurdica de proteo -represso, propiciando

    condies para a disseminao de esteritipos sociais que rotulavam crianas e jovens

    oriundos de famlias trabalhadoras de baixa renda, geralmente desorganizadas. O menor em

    situao irregular aquele que vive na situao de marginalidade social. 38

    Claro que esta configurao do sistema jurdico permitiu a consolidao de um sistema

    de proteo social bastante seletivo. O marco inicial foi implementado na dcada de 1930, 35 CAVALLIERI, Allyrio. Clarificando o Conceito. In ALENCAR, Ana Valderez A. N. de e LOPES, Carlos

    Alberto de Souza. Cdigo de Menores: Lei n 6.697/79 comparaes, anotaes, histrico. Braslia: Senado Federal, 1982, p. 85.

    36 MENDEZ, Emlio Garcia. Adolescentes em Conflito com a Lei. Revista da Esmape, Recife, V. 3, n 7, p. 203.

    37 VOLPI, Mario, in SARAIVA, Joo Batista Costa. Adolescente e Ato Infracional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 09.

    38 PASSETTI, Edson. O que Menor. So Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 31.

  • 22

    quando o sistema de proteo social era baseado numa concepo de seguro social, vinculado

    a trabalhadores no mercado formal com carter contributivo. Esta concepo desloca a

    responsabilidade das questes sociais (como da pobreza, misria e desigualdade) para o setor

    filantrpico, forjando um modelo de poltica pblica onde os investimentos na rea social se

    configuram no s como gastos, mas como gastos residuais, quando se trata de investimentos

    em setores como sade e educao, e, sobretudo, quando se trata de alocar recursos para os

    seguimentos sociais no inseridos no mercado de trabalho. 39

    No sistema jurdico ptrio, a especificidade da infncia, enquanto condio peculiar do

    ser humano em desenvolvimento40 surge somente a partir da promulgao da Constituio

    Federal de 1988. Na legislao infraconstitucional, o momento fundador do novo paradigma

    foi a aprovao do Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei n 8.069/90) recepcionando

    princpios da Conveno pelos Direitos da Criana.41

    Como mecanismo de enfrentamento das armadilhas do aparelho estatal burocratizado,

    ineficiente e ineficaz, evidenciam-se, a partir das reivindicaes sociais das dcadas de 80/90,

    estratgias de construo de uma democracia participativa, que conduza efetivao dos

    direitos propugnados no sistema jurdico. Esse modelo de exerccio democrtico pe em

    xeque a centralizao do poder poltico e a fragmentao das aes de interesse pblico e

    ressalta a condio de controle social sobre o Estado, a ser exercido pela sociedade.

    So, ento, arquitetados, a partir mesmo das leis infraconstitucionais, desenhos de

    gesto de polticas pblicas que vislumbrem a integralidade de aes, descentralizadas, com

    nfase para a capacidade de planejamento e gerenciamento na municipalidade. A poltica de

    atendimento da criana e do adolescente prevista no ECA segue essa nova lgica

    administrativa o princpio da incompletude institucional Conselhos (de Direitos e Tutelar)

    / Poder Judicirio / Ministrio Pblico / Poder Executivo / Organizaes No

    Governamentais.

    39 COHN, Amlia. O Modelo de Proteo Social no Brasil. In NOVAES, Regina e VANNUCHI, Paulo.

    Juventude e Sociedade: trabalho, educao, cultura e participao. So Paulo: Fundao Perseu Abramo, 2004, p. 165.

    40 Segundo Antnio Carlos Gomes da Costa o reconhecimento da peculiaridade dessa condio vem somar-se condio jurdica de sujeito de direitos e condio poltica de absoluta prioridade, para constituir-se em parte do trip que configura a concepo de criana e adolescente do Estatuto, pedra angular do novo Direito da infncia e juventude no Brasil. (In CURY, Munir. Estatuto da Criana e do Adolescente Comentado. So Paulo: Malheiros, 1992, p. 39)

    41 Recebido atravs do Decreto Legislativo n 28, de 14 de setembro de 1990.

  • 23

    1.2. Sistema de Garantia de Direitos como Modelo de Democracia

    Enveredar em uma investigao dos diversos modelos de democracia ou das formas de

    deliberao democrtica extremamente importante, porm, embaralha a percepo da

    democracia como um processo em constante movimento ao longo da histria. Interessante

    observar como Robert Dahl, com cuidadosa habilidade, afasta-se deste problema ao

    considerar as democracias existentes como pobres aproximaes do ideal democrtico 42,

    levando-nos, atravs de poucas variveis, ao conceito de poliarquia.

    Os pressupostos metodolgicos da identificao de uma democracia, segundo Dahl,

    so: a democracia como um sistema hipottico; a permanente resposta aos cidados emanada

    pelo governo; os cidados serem considerados politicamente iguais; os cidados devem ter

    oportunidades plenas (liberdade para formular, expressar e ter suas preferncias igualmente

    consideradas na conduta do governo). O sistema eleitoral um dado importante na avaliao

    da implementao das regras do jogo democrtico em um determinado pas.

    Para Dahl, h duas dimenses da democratizao: a contestao pblica (grau de

    liberalizao) e o direito de participao (grau de inclusividade). Atravs destas dimenses

    poderemos estabelecer um parmetro para classificar os mais diversos pases, projetando

    tendncias e identificando fragilidades, a partir da aferio de indicadores que, uma vez

    associados, nos permitam identificar o caminho que determinado regime esta percorrendo.

    Dahl constri os fundamentos para analisar o movimento dos regimes em uma perspectiva

    que , simultaneamente, institucional e histrica, denotando o carter dinmico do processo

    democrtico.

    A limitao do modelo defendido por Dahl ressaltada por Lamounier, que prope

    uma outra dimenso; sendo em um eixo o grau do sistema representativo (liberalizao e

    participao) e no outro a desconcentrao (mudana social). Em um pas inserido em uma

    realidade de contradies, a desconcentrao da renda, da riqueza e da propriedade da terra

    exigem a implementao de polticas pblicas de longo prazo, criando expectativas

    substanciais na populao menos favorecida economicamente. Identifica duas subcategorias:

    a democracia formal e a democracia substantiva. A democracia formal seria a representativa,

    42 Dahl, Robert. Poliarquia. So Paulo: Ed. So Paulo, 1997.

  • 24

    enquanto a substantiva seria a democracia participativa. Considera Lamounier que o caso do

    Brasil seria formado por uma democracia formal (representativa) com focos de participao

    substantiva em determinados setores.

    Ainda reconhecendo as limitaes da teoria poltica de Dahl, autores como Andreas

    Schedler43, Guillermo ODonnell44 e John Ferejohn45, baseando-se na mtua fiscalizao

    pelas instituies (ou agncias) e pelo cidado lastreada em um princpio de responsabilizao

    poltica do ente estatal, convencionaram denominar accountability poltica uma rede de

    instituies (governamentais e no governamentais) com competncia para fiscalizar,

    controlar, dar publicidade (tornar transparente o exerccio do poder) e aplicar sanes. Para

    implementao desta rede de instituies, ocorreram mutaes e inovaes no desenho

    institucional de diversas poliarquias, possibilitando o aperfeioamento contnuo dos

    instrumentos de ampliao dos graus de accountability.

    Vislumbrando dirimir a inexorvel ambigidade do termo accountability, Andras

    Shedler46 aponta para um aspecto bidimensional do termo identificando como principal

    caracterstica a capacidade de resposta dos governos (answerability) e a capacidade para

    impor sanes (enforcement) uma vez violados os deveres pblicos como principais

    instrumentos de limitao do poder. A capacidade de respostas dos governos encontra fulcro

    no poder de decidir do governante e nos mecanismos institucionais legais que o vincula a dar

    publicidade (informar) e esclarecer ou explicar as suas decises administrativas (justificar).

    John Ferejohn47 investigou porque os agentes pblicos tomariam decises que

    implicasse em reduo do seu poder discricionrio. Suas consideraes levaram concepo

    da denominada accountability endgena, ou seja, os prprios agentes seriam induzidos a

    43 SCHEDLER, Andras. Conceptualizing Accountability. In Andreas Schedler; Larry Diamond; Marc F.

    Plattner (eds.) The sel-Restraining State. Power and Accountability in new democracies. Boulder and London: Lynne Rienner Publishers, 1999 (apud CARNEIRO, Carla Bronzo Ladeira; COSTA, Bruno Lazzarotti Diniz. In ovao Institucional e Accountability: o caso dos conselhos setoriais. In: VI CONGRESO INTERNACIONAL DEL CLAD, 5-9, 2001, Buenos Aires, Argentina. Disponvel em: . Acesso em 1 de outubro de 2003.

    44 ODONNELL, Guillermo. Accountability Horizontal e Novas Poliarquias. In: Lua Nova Revista de Cultura e Poltica, n. 44. So Paulo: CEDEC, 1998, p.10.

    45 FEREJOHN, John. Accountability and authority: toward a theory of political accountability. Mimeo, 1997 (apud CARNEIRO, Carla Bronzo Ladeira; COSTA, Bruno Lazzarotti Diniz. Op. cit.).

    46 SCHEDLER, Andras, op. cit., p.10. 47 CARNEIRO, Carla Bronzo Ladeira; COSTA, Bruno Lazzarotti Diniz. Inovao Institucional e Accountability:

    o caso dos conselhos setoriais. In: VI CONGRESO INTERNACIONAL DEL CLAD, 5-9, 2001, Buenos Aires, Argentina. Disponvel em: . Acesso em 1 de outubro de 2003.

  • 25

    tornar suas aes controlveis pelos seus eleitores (principais), de forma a atrair recursos e

    suporte, e analisa as condies sob as quais os agentes so mais ou menos responsivos aos

    interesses pblicos. 48 A tese de Ferejohn sobre accountability endgena baseia-se em que

    quanto maior o grau de accountability do agente, maior o grau de poder (o aumento de

    autoridade) sendo este, portanto o estmulo.

    Guillermo ODonnell, por sua vez, identifica dua s formas de accountability: uma

    vertical, que realizada atravs do voto do eleitor ou atravs do controle burocrtico

    administrativo, e a accountability horizontal, como a existncia de agncias estatais que tm

    o direito e o poder legal e que esto de fato dispostas e capacitadas para realizar aes, que

    vo desde a superviso de rotina a sanes legais ou at o impeachment contra aes ou

    omisses de outros agentes ou agncias do Estado que possam ser qualificadas como

    delituosas. 49 E acrescenta que a accountability horizontal efetiva no produto de agncias

    isoladas, mas de redes de agncias. 50 Uma rede composta por agncias, pressupondo uma

    relao entre iguais, propiciando a fiscalizao mtua, uma relao intra-sistmica.

    Essa definio retomada em outro artigo do referido autor: Poliarquias e

    (in)efetividade da Lei na Amrica Latina: uma concluso parcial, no qual complementa que

    Todavia, espero que fique claro que eu considero a accountability, inclusive a que chamo de

    horizontal (isto , o controle que alguns rgos estatais exercem sobre a ilegalidade das

    aes de outros desses agentes) uma das trs dimenses constitutivas do Estado de Direito

    democrtico. 51

    Cabe aqui ressaltar que, para ODonnell, o Estado de Direito implica na exist ncia de

    um sistema legal democrtico composto de trs dimenses: a preservao da liberdade e

    garantias polticas da poliarquia, a preservao dos direitos civis de toda populao e a

    existncia de redes de responsabilidade (accountability)52. Por conseguinte, a

    48 CARNEIRO, Carla Bronzo Ladeira; COSTA, Bruno Lazzarotti Diniz. Inovao Institucional e Accountability:

    o caso dos conselhos setoriais. In: VI CONGRESO INTERNACIONAL DEL CLAD, p. 2, 2001, Buenos Aires, Argentina. Disponvel em: . Acesso em 1 de outubro de 2003.

    49 ODONNEL, Guillermo. Accountability Horizontal e Novas Poliarquias. In: Lua Nova Revista de Cultura e Poltica, n 44. So Paulo: CEDEC, 1998, p. 40.

    50 Idem, ibidem, p. 43. 51 ODONNEL, Guillermo. Poliarquias e (in)efetividade da Lei na Amrica Latina: uma concluso parcial. In

    PINHEIRO, P. S.; ODONNELL, G.; MNDEZ, J. E. Democracia, Violncia e Injustia: o no estado de direito na Amrica Latina. So Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 371.

    52 Idem, ibidem, p. 352.

  • 26

    consubstanciao (atravs da previso legal) de mecanismos que permitam, atravs de um

    emaranhado de vnculos, a responsabilizao institucional e o controle popular constitui,

    segundo ODonnell, elemento caracterstico do Estado Democrtico de Direi to.

    A concepo de accountability formulada por Guillermo ODonnell constitui, a nosso

    ver, a referncia terico-metodolgica que fundamenta o pressuposto do Sistema de Garantia

    de Direitos da Criana e do Adolescente como uma rede de agncias de controle da

    efetividade dos direitos prescritos na Lei 8.069/90 ECA, na qual destacamos o Conselho

    Tutelar, devido a sua caracterstica peculiar de ter seus membros eleitos (accountability

    vertical) e possuir atribuies de fiscalizao e defesa de direitos (accountability horizontal),

    conforme, na seqncia, passamos a argumentar.

    Decorrente dos direitos e garantias fundamentais expressos na Constituio Federal,

    recepcionados pelo Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) como conhecido, ao se

    constituir um diploma de interesses coletivos voltados para a extenso e ampliao dos

    direitos de cidadania a crianas e adolescentes, expressa a adoo de largas mudanas no

    panorama jurdico-institucional brasileiro no que concerne ao rompimento com os paradigmas

    excludentes e estigmatizantes de definio das crianas e adolescentes em situao irregular

    como objetos de tutela do Estado, bem como, com a tradicional centralizao e verticalizao

    do processo de tomada de decises e da implementao de polticas pblicas voltadas para

    esses objetos.

    Tais mudanas em que pesem as determinaes conjunturais do perodo de

    redemocratizao experimentado no pas na dcada de 80 e o debate internacional

    contemporneo em torno dos direitos fundamentais da infncia e da juventude implicaram,

    no dizer de Antnio Carlos Gomes da Costa53, em uma ruptura conceitual e processual com o

    padro nacional de elaborao das polticas sociais. Referidas transformaes ocorreram

    devido participao popular, seja atravs de assinaturas ou por intermdio de organizaes

    no governamentais. Contribuiu de forma decisiva o Movimento Nacional dos Meninos de

    53 COSTA, A. C. G. da. O novo direito da criana e do adolescente no Brasil: o contedo e o processo das

    mudanas n panorama legal. In A criana, o adolescente, o municpio: entendendo e implementando a Lei 8.069/90. [Braslia: s.n., 1990].

  • 27

    Rua atuando como plo aglutinador de um conjunto de entidades empenhadas na luta pelos

    direitos da criana e do adolescente54.

    A mudana conceitual se manifesta na negao dos postulados tericos e ideolgicos

    inerentes ao paradigma da situao irregular, que fundamentavam a poltica da infncia

    estabelecida atravs das Leis Federais n 4.513/64 (PNBEM Poltica Nacional de Bem-Estar

    do Menor) e n 6.697/79 (Cdigo de Menores que tratava da proteo e vigilncia dos

    menores), e na afirmao e recepo, na Constituio Federal promulgada em 1988 (artigo

    227) e no Estatuto da Criana e do Adolescente, da doutrina da proteo integral defendida

    pela Organizao das Naes Unidas (ONU), com base na Declarao Universal dos Direitos

    da Criana e no texto ( poca ainda no aprovado) da Conveno Internacional dos Direitos

    da Criana.

    A linha de ao da PNBEM e do Cdigo de Menores imprimia um conjunto de normas

    indiscriminadamente aplicveis a uma diversidade de situaes especiais (carncia material,

    abandono, prtica de ato infracional), enquadrando as crianas e adolescentes em situao

    irregular objeto de tutela e interveno da Justia de Menores que os encaminhava para os

    servios de ressocializao geridos e implementados, de forma centralizadora e

    verticalizada, pela FUNABEM (Fundao Nacional de Bem-estar do Menor), rgo gestor

    nacional e FEBEM (Fundao Estadual de Bem-Estar do Menor), rgos executores

    estaduais.

    A Doutrina da Situao Irregular, recepcionada pelo Cdigo de Menores,

    caracterizava-se pela judicializao do problema, identificando o menor como um ser digno

    de compaixo ou represso. Portanto, quanto mais se aplicaria esta doutrina, menor seria a

    necessidade de polticas sociais bsicas: um verdadeiro ilusionismo jurdico.

    A aparncia do aparato jurdico, tanto do Cdigo de Menores como do Estatuto da

    Criana e do Adolescente, representa uma abstrao ou a alienao da essncia do ser,

    desvinculando as causas das irregularidades dos prprios procedimentos burocrticos

    jurdicos que as reproduzem. O assistencialismo fruto dessa relao deturpada entre

    54 LYRA, Rubens Pinto. As Vicissitudes da Democracia Participativa do Brasil. In Revista de Informao

    Legislativa, Braslia, ano 36, n. 141, jan/mar, 1999, p. 24.

  • 28

    obrigao (moral transformada em lei) do Estado (sociedade poltica + sociedade civil) e as

    condies objetivas de vida dos cidados.

    A condio peculiar da criana e do adolescente como pessoas em desenvolvimento

    (artigo 6 ECA), a condio jurdica de sujeitos de direitos e a condio poltica de absoluta

    prioridade55 (art. 227, CF/88 e art. 4, ECA) fundamentam a Doutrina da Proteo Integral,

    vislumbrando o dever da famlia, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Pblico

    assegurar a concretizao dos direitos fundamentais (art. 4, ECA) e a responsabilidade de

    todos de velar pela dignidade da criana e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer

    tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatrio ou constrangedor (art. 18, ECA). O

    entrelaamento destes princpios norteia o caminho a ser percorrido pelo intrprete, na busca

    de uma exegese constitucional que garanta a cidadania na infncia e na juventude.

    O Estatuto da Criana e do Adolescente inaugura tambm mudanas relativas ao

    mtodo e gesto da poltica de atendimento dos direitos, com nfase na desjurisdicializao

    dos assuntos sociais (retira a responsabilidade exclusiva do Juizado de Menores); na

    articulao e integrao das aes governamentais e no governamentais, atravs de um

    Sistema de Garantia de Direitos; na descentralizao poltico-administrava do atendimento e

    na democratizao da gesto.

    A criao desse sistema expressa um processo de inovao institucional e redesenho

    das funes do Sistema de Justia (Juizado da Infncia e da Juventude, Ministrio Pblico,

    Defensoria Pblica, Polcia Judiciria) em relao ao antigo Cdigo de Menores. Este novo

    desenho institucional est a exigir das instituies, para alm da competncia jurdica, uma

    competncia poltica e social.

    A efetividade dos direitos da criana e do adolescente possui como bice o modelo do

    Estado de Bem Estar Social implementado no Brasil. Pode-se afirmar que o Brasil possui um

    sistema de servios sociais, comunitrios e pessoais pouco desenvolvido. Direitos sociais,

    como o direito infncia, esto garantidos na Constituio Federal de 1988, mas ainda

    negado a milhares de crianas. A retomada da democracia no Brasil no significou que tenha

    ocorrido a mudana de um Estado repressivo para um Estado social; ao revs, foi agravada

    55 CURY, Munir, SILVA, Antnio Fernando do Amaral e, MENDEZ, Emlio Garcia. Estatuto da Criana e do

    Adolescente Comentado Comentrios Jurdicos e Sociais. So Paulo: Malheiros, 2000, p. 39.

  • 29

    pela implementao de polticas neoliberais. Os problemas podem ser avaliados pelos gastos

    sociais, tanto em transferncias como em servios pblicos ofertados populao, que se

    apresenta significativamente abaixo do seu nvel de desenvolvimento. A partir dos

    indicadores sociais do pas, possvel concluir que o Brasil no est preparado para enfrentar

    as grandes mudanas demogrficas, sociais e econmicas que a sociedade brasileira est

    experimentando.56

    A especificidade do Sistema de Garantia dos Direitos da Criana e do Adolescente

    est na descentralizao poltico-administrativa com participao da populao prevista na

    poltica de atendimento. Referida participao ocorre atravs de um sistema de conselhos - o

    Conselho de Direitos e o Conselho Tutelar.

    A diversidade do Sistema de Garantia composto por rgos que integram o

    subsistema jurdico (Poder Judicirio, Ministrio Pblico e Defensoria Pblica) e rgos

    pertencentes ao subsistema poltico sendo: os integrantes das estruturas poltico-

    representativas (rgos integrantes do poder executivo em todos os nveis incluindo a

    Fundao de Apoio a Criana e ao Adolescente FUNDAC); os rgos integrantes das

    estruturas poltico-participativas (Conselho de Direito e Conselho Tutelar) e as organizaes

    no governamentais integrantes da sociedade civil (associaes) foi engendrada

    vislumbrando a possibilidade de um agir em conjunto, uma ao articulada conforme previsto

    no Estatuto da Criana e do Adolescente.57

    primeira vista, esse sistema possui uma grande possibilidade de exeqibilidade;

    porm, analisando com maior vagar, surgem algumas dificuldade de operacionalizao deste.

    Vejamos: na dimenso jurdica, a interpretao restritiva da Lei, no que tange matria de

    competncia, pode defluir como ilao lgica a impossibilidade de uma atuao extrajudicial

    junto a determinados setores da sociedade civil organizada. Na dimenso poltica, o dilema

    gira em torno dos modelos de democracia: a representativa (sistema de partidos) e a

    participativa (sistema de conselhos). A democracia representativa composta pela

    administrao pblica em todos os nveis, vinculada a um sistema de partidos com regras e

    56 PEREIRA, Jos Matias. Repensando a Administrao Pblica: o futuro do Estado de bem-estar. In Revista de

    Informao Legislativa, Braslia, ano 36. n 142, abr/jun, 1999, p. 243. 57 O ECA, em seu artigo 86, prev: A poltica de atendimento dos direitos da criana e do adolescente far -se-

    atravs de um conjunto articulado de aes governamentais e no-governamentais, da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios .

  • 30

    interesses especficos. O sistema de conselhos, enquanto paradigma da democracia

    participativa, composto por instituies com natureza democrtica, representativa e

    participativa, depender sua eficincia e efetividade da experincia vivificada

    institucionalmente no agir em conjunto (ao poltica), possibilitada apenas no interior de uma

    rede de controle social da poltica pblica (accountabilitty horizontal).

    Segundo Boaventura de Souza Santos, a demodiversidade, ou seja, a coexistncia

    pacfica ou conflituosa de diferentes modelos e prticas democrticas, seria possvel existir

    em duas formas: a coexistncia e a complementaridade. A primeira forma implica uma

    convivncia, em nveis diversos, das diferentes formas de procedimentalismo, organizao

    administrativa e variao no desenho institucional. 58 Sendo a democracia representativa em

    nvel nacional e a democracia participativa em nvel local. A segunda forma de combinao, a

    complementaridade, pressupe o reconhecimento pelo governo de que o procedimentalismo

    participativo, as formas pblicas de monitoramento dos governos e os processos de

    deliberao pblica podem substituir parte do processo de representao e deliberao. 59

    A complementaridade apenas possvel com o reconhecimento da legitimidade das

    instncias representativas da democracia participativa. Neste sentido, o entrelaamento

    institucional atravs de mecanismos jurdico-poltico de recproca responsabilizao

    (accountability) torna-se essencial demodiversidade, pois, permite, atravs da ao em

    conjunto, o aperfeioamento democrtico institucional. Por conseguinte, a sua legitimidade.

    A ausncia de ao poltica pelos conselheiros no Conselho Tutelar, por seu turno,

    ensejar uma crise de responsabilizao60 (inefetividade da rede de accountability). Esta, por

    sua vez, implicar uma grave crise de legitimao poltica, negando a existncia de um Estado

    Democrtico de Direito. Sem responsabilizao no h direito, assim como no pode haver

    uma democracia sem cidadania.

    58 SANTOS, Boaventura de Souza. Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio

    de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002, p.75. 59 Idem, ibidem, p. 76. 60 LEMOS-NELSON, Ana Tereza. Criminalidade Policial, Cidadania e Estado de Direito. In Cadernos CEAS.

    Salvador, 2002, n 197, p. 21.

  • 31

    1.3. Sistema de Conselhos enquanto Mecanismo de Accountability

    O sistema de conselhos concebido no Estatuto da Criana e do Adolescente

    composto pelo Conselho de Direitos da Criana e do Adolescente e pelo Conselho Tutelar.

    Os conselhos tutelares so rgos sui generis, autnomos, no subordinados a

    nenhuma instncia do Poder Executivo Municipal, tampouco do Legislativo ou do Judicirio,

    nem do Ministrio Pblico. Sua funo pblica legalmente constituda, longe de qualquer

    atribuio policialesca, confere-lhe poderes para o exerccio de um efetivo controle pblico

    decorrente de sua legitimidade perante o Sistema de Garantia de Direitos da Criana e do

    Adolescente.

    Inserido no conjunto ou rede institucional do poder pblico articulado com as

    organizaes da sociedade civil, voltado para a proteo integral dos direitos da criana e do

    adolescente, os conselhos tutelares possuem o carter de uma espcie de mecanismo de

    accountability horizontal. Isto , as atribuies derivadas dos dispositivos legais do ECA

    evidenciam uma tal delegao de responsabilidade e conseqente autoridade pblica a esse

    rgo, garantidas, inclusive, pelos artigos 236 e 249 do ECA61, que nos levam a compreender

    sua dimenso scio-poltica nos termos aqui sugeridos.

    No obstante no haver nos dispositivos da Lei Federal o ECA explcita definio

    do status de mecanismo de controle pblico da poltica de atendimento dos direitos da criana

    e do adolescente atribudo ao Conselho Tutelar (alis, tal atribuio afeta aos Conselhos

    Municipal, Estadual e Federal de Direitos da Criana e do Adolescente artigo 88, inciso II),

    tal dimenso institucional se deduz de sua funo primordial: zelar pelo cumprimento dos

    direitos da criana e do adolescente (art. 131), bem como de todas as suas atribuies,

    especialmente as de assessorar o Poder Executivo Local na elaborao da proposta

    oramentria para planos e programas de atendimento dos direitos da criana e do

    adolescente (artigo 136, IX), de fiscalizar as entidades governamentais e no governamentais

    (artigo 95), alm daquelas relativas aos procedimentos de apurao de irregularidade em 61 Lei 8.069/90 (Livro II, Ttulo VII Dos Crimes e das Infraes Administrativas). Art. 236: Impedir ou

    embaraar a ao de autoridade judiciria, membro do Conselho Tutelar ou representante do Ministrio Pblico no exerccio de funo prevista na Lei: Pena deteno de seis meses a dois anos . Art. 249: Descumprir, dolosa ou culposamente, o s deveres inerentes ao ptrio poder ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinao da autoridade judiciria ou Conselho Tutelar: Pena multa de trs a vinte salrios de referncia, aplicando-se o dobro em caso de reincidncia .

  • 32

    entidades governamentais e no governamentais (artigo 191) e para imposio de penalidade

    administrativa por infrao s normas de proteo criana e ao adolescente (artigo 194).

    O projeto democrtico-popular, de conformao de um novo modelo de gesto

    municipal, expressa o objetivo de favorecer a organizao da sociedade civil promovendo

    uma reestruturao dos mecanismos de deciso, implicando os interlocutores sociais na

    elaborao e na implementao das polticas pblicas. 62 A despeito de crticas quanto ao

    risco de que o Estado venha a se desonerar da soluo dos problemas sociais situao da

    qual, conforme afirmamos, a sociedade deve se prevenir a participao da sociedade civil

    prescrita nesse projeto poltico representa uma alternativa de responsabilizao dos

    interlocutores sociais na gesto e no controle da coisa pblica.

    Isto posto, no somente no caminho da efetivao da gesto participativa adotada

    pelas administraes municipais democrticas, mas tambm e principalmente com vistas

    real aplicabilidade do ECA em todos os municpios brasileiros, h que se por em pauta a

    necessidade de se processar uma reviso de posicionamento poltico-institucional que vise

    consecuo do sistema articulado e integrado de garantia dos direitos, estabelecendo entre os

    conselhos tutelares e demais rgos pblicos e organizaes da sociedade civil, especialmente

    os Conselhos Municipais de Direitos da Criana e do Adolescente uma relao de

    reciprocidade no exerccio de suas atribuies.

    Aos conselhos tutelares cabe zelar pela preveno contra a desresponsabilizao do

    Estado quanto sua obrigao/dever, definida constitucionalmente (artigo 227 da CF/88), de

    oferecer s crianas e adolescentes as condies e garantias de preservao dos seus direitos,

    especialmente os civis e sociais, expressos/positivados na legislao nacional e nas

    convenes internacionais das quais o pas signatrio.

    O Conselho Municipal de Direitos da Criana e do Adolescente dever encaminhar ao

    Conselho Tutelar as demandas concretas de violao de direitos que, por ventura, lhes sejam

    postas a resolver. O Conselho Tutelar, por sua vez, acompanha e observa as propostas de

    polticas emanadas do Conselho Municipal de Direitos da Criana e do Adolescente e a

    garantia de universalidade do atendimento aos direitos sociais bsicos (conjunto de demais

    62 SILVA, Gustavo Tavares. Democracia Representativa e Gesto Participativa . In: OLIVEIRA, Marcos

    Aurlio Guedes de (org.). Poltica e Contemporaneidade no Brasil. Recife: Bagao, 1997.

  • 33

    polticas pblicas), tendo no atendimento dos casos que lhe chegam um termmetro da

    situao das crianas e adolescentes do municpio e, conseqentemente, tendo condies de

    dar ao Conselho Municipal de Direitos da Criana e do Adolescente o retorno

    (retroalimentao, feedback) quanto s principais demandas de polticas pblicas, para que

    este ltimo seja capaz de priorizar as aes da poltica de atendimento por ele deliberada.63

    Neste sentido, os conselhos tutelares deveriam atuar sempre articulados com os

    conselhos municipais de direitos da criana e do adolescente, como agncias executivas de

    providncias sobre casos concretos e, ao mesmo tempo, como instrumentos indicadores da

    efetividade da poltica (feedback), oferecendo-lhes permanentemente subsdios para

    formulao e/ou aperfeioamento da poltica de atendimento.

    Para alm desta prerrogativa, a configurao institucional dos conselhos tutelares,

    afirmada positivamente em termos de uma legalidade, confere a esses rgos uma

    legitimidade jurdica que lhes assegura o poder-dever de exerccio da funo de controle

    popular sobre todo o conjunto de rgos e entidades que compem a rede de proteo integral

    s crianas e adolescentes (princpio primordial da poltica de atendimento prevista no ECA,

    nos artigos 86 e ss). Ao mesmo tempo, a Lei atribui sociedade local o poder de controle

    direto (por meio da consulta eleitoral) sobre a atuao dos agentes que, pela ao conjunta

    entre si e com outras instituies, devero concretizar a palavra da Lei. Este controle popular

    sobre os conselhos no exclui a mtua responsabilizao entre os organismos governamentais

    e no governamentais que compem o Sistema de Garantia de Direitos.

    Nesses termos, a efetividade dos propsitos dos conselhos tutelares pressupe uma

    legitimidade poltica, que implica no poder de discordar (resistncia) das atitudes, da

    eficincia, da eficcia, da ao dos agentes polticos que emprestam vida ao rgo pblico. E

    atravs do voto que pode haver um contnuo aperfeioamento da instituio.

    63 A noo de articulao e integrao entre os conselhos tutelares e os conselhos municipais de direitos, assim

    como a relao dos primeiros com outras instncias do Sistema de Garantia de Direitos, est expressa em Sistema de Garantia de Direitos um caminho para a proteo integral. Recife: CENDHEC, 1999, p. 109.Coleo Cadernos CENDHEC vol. 8.

  • 34

    1.4. Crise dos Modelos de Democracia: um problema de legitimidade

    Diversas so as dificuldades enfrentadas pelo pesquisador que se prope a enveredar

    pelas sendas tortuosas do estudo do problema da legitimidade. O primeiro bice vem a ser

    uma incmoda sensao de limitao, por certo, imposta pela epistemologia que o leva a um

    contnuo sentimento de imperfeio ensejador de equivocadas teses acerca das relaes e

    instituies de poder estudadas no mbito das cincias polticas. Neste desiderato, percebe-se

    desde logo que a palavra legitimidade possui um sentido oco, conforme pondera o Joo

    Maurcio Adeodato64, podendo ser utilizada para aferir como legtima tanto uma tirania como

    um governo democrtico, dependendo evidentemente das variveis escolhidas (formais ou

    materiais) como identificadoras de legitimidade e, portanto, do referencial terico-

    metodolgico adotado.

    A legitimidade um conceito essencial, tanto no aspecto poltico quanto no jurdico.

    Direito e Poltica possuem no Estado Moderno um potencial de complementaridade tal que se

    pode mesmo ponderar sobre uma legitimidade jurdico-poltica65. O eterno dilema entre

    legalidade e legitimidade abrandado quando se considera o fato de que em um Estado de

    Direito a defesa renitente da liberdade uma finalidade precpua de sua existncia.66

    Ademais, conforme esclarece Bachelard, a complexidade inerente ao mundo moderno impe

    uma convergncia de saberes (neste caso, o saber jurdico e o saber poltico) superando a

    insurgncia do pensamento geomtrico que pode levar a uma anlise onde o paradigma do

    conhecimento vlido, o conhecimento cientfico, tende a reduzir o universo dos observveis

    ao universo dos qualificveis, e o rigor do conhecimento ao rigor matemtico do

    conhecimento, do que resulta a desqualificao (cognitiva e social) das qualidades que do

    sentido prtica. 67

    Entre a crueza da realidade e o iderio da Poltica, ocorre a insurgncia do Direito

    tornando o poder impessoal e criando um obstculo ao uso da liberdade.68 Portanto, o Direito

    64 ADEODATO, Joo Maurcio Leito. O Problema da Legitimidade: No rastro do Pensamento de Hannah

    Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1989, p. 21. 65 FARIA, Jos Eduardo. Poder e Legitimidade. So Paulo: Ed. Perspectiva, 1978. 66 GOYARD-FABRE, Simone. Os Princpios Filosficos do Direito Poltico Moderno. Paternot. So Paulo:

    Martins Fontes, 1999, p. 311. 67 BACHELARD, Gaston. O Novo Esprito Cientfico. Rio de Janeiro: Tempo Universitrio, 2000. 68 KANT, Immanuel. A Paz Perpetua. Lisboa Portugal: Edies 70, 1995, p. 128.

  • 35

    resulta da Poltica69, a qual, por sua vez, passa a ter suas regras submetidas ao crivo do

    Direito. Ou seja, em um Estado Democrtico de Direito o poder no se baseia

    exclusivamente na violncia, mas sim naquela fora mitigada e racionalizada empregada em

    conformidade a um conjunto de regras vlidas tanto para os que obedecem como para os que

    mandam 70, fornecendo uma legitimao poltica mais forte que as antigas fontes

    teleolgicas e contratualistas.71

    Com habitual argcia, esclarece Nelson Saldanha:

    O sentido jurdico confere cunho legtimo e oficial s estruturas, a serem aceitas e obedecidas; mas ao conjunto de normas e de prticas correspondentes ao Direito, o que lhes d carter estvel, o amparo poltico que possuem, ao provirem de um poder socialmente maior. Como ordem oficial, a organizao jurdica representa uma unidade scio-poltica cuja auto-imagem auto-suficiente (e que por isso se impe contra o desvio e a desordem). 72

    Assim, a legitimidade transita na relao, nem sempre sutil, entre o Estado (poder

    constitudo) deliberando e os cidados obedecendo. Esta relao poltica, por sua natureza

    dialgica, e jurdica na sua instrumentalizao e concreo. A validade do poder no Estado

    depende muito do reconhecimento do cidado de sua existncia, pois, no conceito de

    legitimidade est contida a justia enquanto valor supremo. Portanto, uma anlise do

    problema da legitimidade no pode prescindir de uma reflexo poltica, jurdica, sociolgica e

    filosfica73. A validade de um conceito que compreenda esta convergncia epistemolgica

    extremamente difcil de ser comprovada. Entretanto, diversos modelos tericos

    vislumbrando a superao deste problema foram construdos.

    Dentre as distintas abordagens desse conceito, compreendemos que a noo de

    legitimidade como sinnimo de ao realizada em conjunto no espao pblico, conforme

    definio de Hannah Arendt74, seja a concepo mais adequada para a pesquisa que ora

    69 SALDANHA, Nelson. Ordem e Hermenutica. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1992, p.168. 70 FARIA, Jos Eduardo. Poder e Legitimidade. So Paulo: Ed. Perspectiva, p. 78 71 FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no Mundo Moderno. So Paulo: Ed. Martins Fontes, 2002, p. 29. 72 SALDANHA, Nelson. Ordem e Hermenutica: sobre as relaes entre as formas de organizao e o

    pensamento interpretativo, principalmente no direito. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1992, p. 169. 73 GRAU, Eros Roberto e GUERRA Filho, Willis Santiago. Direito Constitucional: estudos em homenagem a

    Paulo Bonavides. So Paulo: Ed. Malheiros, 2001, p. 193. 74 Esta breve definio no faz jus complexidade explicativa da autora, em cuja extensa bibliografia busquei

    compreender a concepo da categoria legitimidade. Adiante, ainda neste item do Projeto, dediquei um subitem exclusivamente para melhor explicar as idias da referida autora.

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    realizamos. Antes de esclarec-la, porm, segue uma pequena digresso sobre legitimidade

    nos diversos pensadores pesquisados.

    Para Rousseau, em uma tese contratualista, o poder s legtimo se for exercido pelo

    povo (soberano com natureza coletiva), ou seja, se emergir diretamente do conjunto de todos

    os participantes do vnculo social; e da decorre o carter inalienvel da soberania, a qual,

    sendo uma vontade em ao, certamente no pode ser transferida. 75 Atravs de assemblias

    populares, os cidados deliberariam consubstanciando uma legitimidade decorrente da

    vontade geral. Desnecessrio argumentar que, na complexidade do mundo moderno, essa

    forma de poder democrtico de improvvel efetividade.

    Em Max Weber a legitimidade construda a partir de uma relao em que a crena

    um componente intrnseco da dominao. A obedincia silenciosa (crena) dos governados

    para com aquele que manda um elemento essencial para compreenso de sua teoria da

    legitimidade. Porm, salienta que o poder em si no perpetua a legitimidade pois, muito

    comum que as minorias, atravs de( ...) meios violentos( ...), imponham uma ordem que venha

    a ser considerada legtima ao fim de algum tempo. 76 A submisso voluntria pode ser

    desencadeada pela justificativa legal-racional, pela tradio ou pelo carisma. A dominao

    legal-racional decorre (...) das estruturas das regras e no direito de que as autoridades, sob

    estas regras estabelecidas, efetivamente exercem o comando 77, sendo, portanto, impessoal.

    A dominao tradicional deriva dos costumes solidificados em condutas ao longo de geraes.

    A dominao atravs do carisma efetiva-se na figura de um lder constitudo pela confiana e

    sem limites ou regras a cercear as suas aes.78

    Considerando a dominao legal-racional de Weber incompleta, Niklas Luhmann

    ambienta sua teoria na sociedade moderna, onde a hipercomplexificao das relaes sociais

    um dado de realidade, colocando o Direito em face de um dilema: a contingncia de ter que

    decidir e esta deciso produzir consenso, extirpando o dissenso contenudstico.79 O funcional-

    estruturalismo de Luhmann identifica legitimidade enquanto efetividade do procedimento.

    75 MELQUIOR, Jos Guilherme. Rousseau e Weber: dois estudos sobre a teoria da legitimidade. Rio de Janeiro:

    Ed. Guanabara, 1990, p. 22. 76 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Braslia: Ed. Universidade

    de Braslia, 2000, p. 140. 77 MELQUIOR, Jos Guilherme. Rousseau e Weber: dois estudos sobre a teoria da legitimidade. Op. cit., p 107. 78 Idem, ibidem, p. 108. 79 LUMHANN, Niklas. Legitimao pelo Procedimento. Braslia: Universidade de Braslia, 1980.

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    Considerando que a construo do consenso decorre da crena em um procedimento

    composto por uma sucesso de etapas em igualdade de condies e que ter como produto

    uma deciso justa. Identificando o sistema jurdico como um sistema fechado (autopoitico)

    80, Luhmann, conclui pela independncia deste da interferncia dos operadores do sistema (o

    ser humano).

    Positivista normativista, Hans Kelsen elabora a Teoria Pura do Direito, definindo o

    direito como um sistema escalonado e gradativo de normas: umas encontrando fundamento de

    validade nas outras, formando um todo harmnico e dependente de uma norma fundamental.81

    Para Kelsen, a legitimidade de uma norma decorre de sua validade82 produzindo eficcia,

    sendo que o fundamento desta validade est sempre em outra norma jurdica. A legalidade a

    legitimidade, sendo a Constituio uma norma pura tomada no sentido lgico-jurdico e

    jurdico-positivo.83 Mitigando a importncia dos sistemas polticos em criar e legitimar o