CAPÍTULO UM - Pitoresco - A Arte dos Grandes Mestres · Web viewO comandante do navio argumentou...

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1889-1930 - PRIMEIRA REPÚBLICA A REPÚBLICA ARMADA (DE DEODORO A WASHINGTON LUÍS) 001 1889 - Assim nascia a República Antecedentes - A Abolição da Escravatura - A Questão Religiosa - A Questão Militar - A Proclamação da República. 002 1889-1894 - Primeiros tempos - Deodoro e Floriano Governo Provisório - Assembléia Constituinte - A eleição do primeiro Presidente da República - Deodoro, o marechal impulsivo - O fechamento do Congresso - Floriano, o "Marechal de Ferro" - A Revolta da Armada, na baía da Guanabara - A Revolução Federalista no Rio Grande do Sul - A Consolidação da República. 003 1894-1898 - A Pacificação - Prudente de Morais E deixaram Prudente sozinho - Pacificação interna: a anistia geral - Pacificação externa: reatando com Portugal; os ingleses e a ilha de Trindade; enfim, solução para Missões; o território do Amapá - Ainda a pacificação interna: Vitorino e o Florianismo - A Guerra de Canudos - O atentado - A pacificação do Exército - De volta ao interior paulista. 004 1898-1902 - A recuperação financeira - Campos Sales A hora de pagar a conta - O desafio do orçamento - Implicações políticas da crise - Os anos de vacas magras - O coronelismo - A Comissão Verificadora - Fim de Governo. 005 1902-1906 - Saneamento e desenvolvimento - Rodrigues Alves O poder sem fim do Presidente - Candidatos em penca - O consenso e a eleição - Rio, uma cidade doente - Osvaldo Cruz - A febre amarela - A peste bubônica - A varíola - A "Guerra da Vacina" - Urbanização do Rio de Janeiro - O barão do Rio Branco - A questão do Acre - Fim de governo. 006 1906-1910 - Um mandato e dois Presidentes - Afonso Pena e Nilo Peçanha Fim da "Política dos Governadores" - Postulantes à Presidência - O "Jardim da Infância" e o "Bloco do Morro da Graça" - O governo de Afonso Pena - Rondon, o "Marechal da Paz" - Imigração e progresso - Rui Barbosa, a "Águia de Haia" - A morte de Afonso Pena - O governo de Nilo Peçanha. 007 1910-1914 - A Política de Salvação Nacional - Hermes da Fonseca Civilismo versus militarismo - O movimento civilista - E Hermes ganhou a eleição - Durante a festa, um canhonaço - A "Revolta da Chibata" - A vitória aparente - A repressão severa - A "Política de Salvação Nacional": no Estado do Rio de Janeiro; no 1

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1889-1930 -PRIMEIRA  REPÚBLICAA REPÚBLICA

ARMADA(DE DEODORO A

WASHINGTON LUÍS)

001 1889 - Assim nascia a RepúblicaAntecedentes - A Abolição da Escravatura - A Questão Religiosa - A Questão Militar - A Proclamação da República.002 1889-1894 - Primeiros tempos - Deodoro e FlorianoGoverno Provisório - Assembléia Constituinte - A eleição do primeiro Presidente da República - Deodoro, o marechal impulsivo - O fechamento do Congresso - Floriano, o "Marechal de Ferro" -  A Revolta da Armada, na baía da Guanabara - A Revolução Federalista no Rio Grande do Sul - A Consolidação da República.003 1894-1898 - A Pacificação - Prudente de MoraisE deixaram Prudente sozinho - Pacificação interna: a anistia geral - Pacificação externa: reatando com Portugal; os ingleses e a ilha de Trindade; enfim, solução para Missões; o território do Amapá - Ainda a pacificação interna: Vitorino e o Florianismo - A Guerra de Canudos - O atentado - A pacificação do Exército - De volta ao interior paulista.004 1898-1902 - A recuperação financeira - Campos Sales A hora de pagar a conta - O desafio do orçamento - Implicações políticas da crise - Os anos de vacas magras - O coronelismo - A Comissão Verificadora - Fim de Governo.005  1902-1906 - Saneamento e desenvolvimento - Rodrigues

AlvesO poder sem fim do Presidente - Candidatos em penca - O consenso e a eleição - Rio, uma cidade doente - Osvaldo Cruz - A febre amarela - A peste bubônica - A varíola - A "Guerra da Vacina" - Urbanização do Rio de Janeiro - O barão do Rio Branco - A questão do Acre - Fim de governo.006 1906-1910 - Um mandato e dois Presidentes - Afonso Pena e Nilo PeçanhaFim da "Política dos Governadores" - Postulantes à Presidência - O "Jardim da Infância" e o "Bloco do Morro da Graça" - O governo de Afonso Pena - Rondon, o "Marechal da Paz" - Imigração e progresso - Rui Barbosa, a "Águia de Haia" - A morte de Afonso Pena - O governo de Nilo Peçanha.007 1910-1914 - A Política de Salvação Nacional - Hermes da FonsecaCivilismo versus militarismo - O movimento civilista - E Hermes ganhou a eleição - Durante a festa, um canhonaço - A "Revolta da Chibata" - A vitória aparente - A repressão severa - A "Política de Salvação Nacional": no Estado do Rio de Janeiro; no Estado de Pernambuco; no Estado da Bahia; no Estado do Ceará; no Estado de Alagoas; outras salvações - O governo Hermes da Fonseca.008 1914-1918 - O caminho para a paz - Venceslau BrásEm busca de um sucessor (Pinheiro Machado) - A segunda vertente (olgarquias São Paulo/Minas) - Os vícios da República (intervenções) - O caso do Estado do Rio - A crise em nível federal - O epílogo, com Nilo Peçanha - O Brasil e a 1ª Guerra Mundial - A Ronda da Morte (gripe espanhola) - A Guerra do Contestado - Fim de governo.009 1918-1922 - As estruturas do poder - Delfim Moreira e Epitácio PessoaEleitos Rodrigues Alves e Delfim Moreira - Fim da bonança - Morre Rodrigues Alves (e depois Delfim) - A nova campanha presidencial - Aí vem o

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Presidente! - O Ministério - Obras do Governo - A sucessão - As cartas de Artur Bernardes - A questão de Pernambuco - O motim - As revoltas de 5 de julho: na Vila Militar; na Escola Militar; no Forte de Copacabana - O mito dos 18 do Forte - Independêmcia e Morte.010 1922-1926 - A Revolução dos "Tenentes" - Artur BernardesA campanha eleitoral - Nilo Peçanha e a sucessão fluminense - Borges de Medeiros e a sucessão gaúcha - A revolução gaúcha de 1923 - Reina a paz nos pampas - Militares de 1922 são julgados - A revolução de 1924 em São Paulo - Os azares do levante - A retirada dos civis - Sublevação no Sul - O encontro das duas frentes - Surge a Coluna Prestes - A longa marcha pelo Brasil - Notas à margem - Um governo sem obras.011 1926-1930 - O canto do cisne - Washington Luís   Consertando as finanças públicas - Café em crise - O navio segue seu curso - Churrasco com leite - Surge a Aliança Liberal - Um comício na Esplanada - A "Tomada da Bastilha" - Nas eleições, o de sempre - Revolução em marcha.

FIM DA PRIMEIRA REPÚBLICA

1930-1945 - SEGUNDA REPÚBLICAA REVOLUÇÃO

TRAÍDA(GETÚLIO ASSUME E FICA)

001 1889-1930 - A República Armada (Recapitulação)A Proclamação da Independência (1822) - A Proclamação da República (1889) - Deodoro e Floriano (1889-1993) - Revolução Federalista (1893-1895) - Guerra de Canudos (1895-1897) - Guerra da Vacina (1904) - A Revolta da Chibata (1910) - A Guerra do Contestado (1912-1916) - A Revolta dos

Tenentes (1922) - A Revolução Gaúcha (1923) - A Revolução Paulista (1924) - A Coluna Prestes (1924-1927).002 1930 - O fim da Primeira República (República Velha)O problema de quorum na Câmara Federal - Assassinato do deputado Souza Filho - O episódio que mudou a História - A República de Princesa (Paraíba) - Enfrentando João Dantas - Confronto com o Governo Federal- O assassinato de João Pessoa - A marcha da Revolução - Imprevistos enfraquecem o comando - O levante no Rio Grande do Sul - O Cavalo de Troia - Relógios fora de sincronia - Do sul, a marcha para o Rio de Janeiro - Do nordeste, a marcha para o sudeste - O beijo contido por trinta anos - A Batalha de Itararé - Minas Gerais na Revolução - Epílogo.003 1930 - O naufrágio do "Titanic" (Um presidente é deposto)A Junta Militar - A interferência do Cardeal - O "Titanic"começa a afundar - O fim da Primeira República.004 1930-1932 - A revolução traída (Getúlio assume e fica)Instalação do novo governo (Junta Militar) - A participação popular da Revolução - As preocupações dos revolucionários - Faltava só um detalhe - A situação em São Paulo - A posse de Getúlio e as interventorias - Quem era Getúlio Vargas - Limpando a área (A Chefatura de Polícia) - Primeiras medidas do Governo - Recomposição das forças revolucionárias - O ataque ao "Diário Carioca" - O "empastelamento" do jornal.005 1932 - Revolução ConstitucionalistaSão Paulo queria separa-se do Brasil. Verdade? - As facções em confronto - Uma no cravo, outra na ferradura (a política de Getúlio Vargas) - O novo Código Eleitoral - Voltando ao caso de São Paulo (uma situação complicada) - Pela Constituição (os comícios) - A conspiração - Como tudo começou - O apoio esperado não vem - O fim da luta

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armada - Precisava haver revolução?006   1934 - Um sopro de democracia (A Constituição de 1934)Querem Constituinte ? Toma Constituinte - Os representantes classistas - De volta ao passado - A eleição do Presidente - A sucessão ao governador de Minas - Solução à moda da casa - O caso do Estado do Rio de Janeiro - As eleições nos demais Estados.007   1935 - A Intentona comunista (o que é fato e o que é boato)Um resumo dos acontecimentos - Os antecedentes - Ação Integralista Brasileira (AIB) - Aliança Nacional Libertadora (ANL) - A questão dos soldos militares - A questão dos cabos e sargentos - Conspiração em marcha - Getúlio sabia de tudo - Em Natal (Rio Grande do Norte), o movimento é antecipado - Recife (Pernambuco) seguiu na esteira de Natal - Tragédia na Praia Vermelha (Rio de Janeiro) - O outro lado da história.008   1935-1937 - Vira, Vira, Vira... Virou! (A Constituição Descartável)O tribunal revolucionário - A ação policial - A caça aos "comunistas" - Prisão e julgamento de Prestes - Fechando o processo - Um novo capítulo na vida do país - Retrato de Góis Monteiro - A sucessão presidencial - O caso do Rio Grande do Sul - O candidato José Américo - O candidato Plínio Salgado - O candidato Armando de Sales - O Plano Cohen - Tudo está consumado.009   1938 - O Levante Integralista (Ataque ao Palácio Guanabara)Quem era Plínio Salgado - O golpe do Estado Novo - A Constituição do Estado Novo (Polaca) - A decepção dos Integralistas - Conspiração e Ação - Nem tudo deu certo - O levante, visto por Góis Monteiro - Reação aos ataques - Outra visão, de dentro do Palácio - Como se deu a invasão - A defesa

improvisada - A espera angustiante - O desfecho, visto de dentro do Palácio - O destino dos revoltosos - Tratamentos diferenciados.010    1939-1942 - A Segunda Guerra Mundial (Posição do Brasil no conflito)A guerra começou com o acordo de paz - Inglaterra e França invadidas - Entre a cruz e a espada - O caso com a Inglaterra - O Brasil no sistema panamericano - A Quinta Coluna no Brasil - Nossos navios são bombardeados.011    1944-1945 - Os "pracinhas" na guerra (A cobra fumou na Itália)Treinamento de oficiais - Mãos à obra - Nova vida em terra estranha - Prontos para a luta - A cobra está fumando - A FEB conhece sua primeira derrota - Primeiro ataque a Monte Castelo - Segundo ataque a Monte Castelo - Terceiro ataque a Monte Castelo - Enfim, Monte Castelo é nosso - Conquista de Castelnuovo - A tomada de Montese - Em Fornovo, a consagração - O desfecho da guerra.012    1945 - Liberdade, ainda que tardia (O fim do Estado Novo)A trilha aberta pelos democratas - Manifesto dos Mineiros - Vencida a força da inércia - A entrevista de José Américo - Os movimentos conspiratórios - Simbiose entre Dutra e Góis - A Sociedade dos Amigos da América - Góis Monteiro volta ao Brasil - Góis e Dutra juntos outra vez - A outra face da conspiração - Os avanços registrados - A volta dos partidos políticos - A campanha eleitoral - O golpe que falhou - Os acontecimentos se precipitam - O desfecho - Considerações finais.

FIM DA SEGUNDA REPÚBLICA

1945-1964 - TERCEIRA REPÚBLICA

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QUE  PAÍS  É  ESTE ?(LIBERDADE SEM ADJETIVOS)

001    1945 - Transição de Regime - Governo José LinharesTestando a Democracia - A troca de governo - A escolha tumultuada do Gabinete - E Góis permanece no Ministério - A sombra de Getúlio Vargas - Um banho de prestígio - As eleições.002    1946 - Os três pedidos de D.Santinha (Governo Eurico Gaspar Dutra)O gênio da lâmpada - Início de governo - A composição da Assembléia Constituinte - O Ministério - O jogo na ilegalidade - Constituição promulgada - O Presidente e o trabalhador - Trazendo o inimigo para casa - As eleições de 1947 - O PCB na ilegalidade - O alinhamento aos Estados Unidos - Desenvolvimento interno - Nem um minuto mais, nem um minuto menos.003    1951-1954 - Um tiro no peito (Governo Getúlio Vargas)O anúncio da volta - Os candidatos - As eleições - O tapetão - Getúlio no retiro de São Pedro (RS) - A posse e o Ministério - Nacionalistas, versus "entreguistas" - A guerra da Coréia - A idéia de criar a Petrobrás - "O Petróleo é Nosso!" - A guarda pessoal do Presidente - Lacerda, o demolidor - O espancamento e morte de um reporter - O crime da rua Toneleiros - Poderes paralelos (A República do Galeão) - O mar de lama - A última reunião do

Ministério - Fecham-se as cortinas.

LEIA TAMBÉM:SUICÍDIO   -   O   GOLPE   GENIAL   QUE ANULOU E LIQUIDOU SEUS INIMIGOS

004    1954-1955 - Conspirar é preciso (Governo Café Filho)A "patota" de Getúlio Vargas - Preparando a sucessão - O gosto amargo da vitória - Quem era Café Filho - Obras do governo - As eleições de outubro de 1954 - Primeira crise no governo - Juscelino na mira dos conspiradores - O PSD e a candidatura JK - As eleições presidenciais (outubro de 1955) - Juscelino ganha... e vem a reação - O caso do coronel Mamede.005    1955 - Quatro dias de glória (Governo Carlos Luz)Um problema que vem de longe - Juscelino ganhou, mas será que leva? - Cheiro de fumaça e ameaça de incêndio - O caso Mamede e a posição do ministro da Guerra - A posição do chefe do EMFA - A posição do Consultor Geral da República -  Área de turbulência (o Ministro se demite mas não sai) - Começa o enfrentamento (golpe e contra-golpe) - O problema estava em São Paulo (e era Jânio) - Café Filho em cárcere privado - O governo Nereu Ramos - Você decide.

006    1956-1961 - Administração turbinada (Governo Juscelino Kubitschek)O perfil de JK - Havia pedras no caminho (os percalços até a posse) - Quem era Juscelino Kubitschek - O Ministério - A eminência parda do regime - As "Revoltas dos Escoteiros" - As metas de governo - Automóvel, o símbolo da riqueza - Um pouco de folclore: o porta-aviões e o FMI - Prós e contras no governo JK.

007    A atração da selva (Surge Brasília, a nova capital)Quem pergunta, quer resposta - Um

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sonho que vem de longe (O marquês de Pombal e a Nova Lisboa) - A "Novacap" no Império - As constituições e o mudancismo - As primeiras providências - O "avião" de Lúcio Costa - A importância dos "candangos" - Enfim, a inauguração - O mapa de Brasília, hoje.

008    1960 - Valsa da despedida (A última eleição para Presidente)Uma eleição e três candidatos - O mundo em 1960 - O candidato Ademar de Barros - O candidato Teixeira Lott - O candidato Jânio Quadros - Quem apoiava quem - Cuba é o primeiro desafio - Eleição e posse.

009    1961 - Ser ou não ser (Governo Jânio Quadros)A posse e a falta de apoio parlamentar - Confetes e serpentinas (O primeiro discurso) - Metralhadora giratória (o segundo discurso) - Um certo capitão Galvão (a crise com Portugal) - O Ministério - Um banho de marketing (A campanha moralizadora) - Enfrentando a realidade (A reforma cambial) - O encaminhamento da crise (Rolando a dívida externa) - O governo itinerante - Cuba, o princípio do fim - Lacerda volta a atacar - A renúncia de Jânio - A carta-renúncia - A reação do Congresso - As causas da renúncia - Epílogo.

010    1961 - Parlamentarismo já (Jango assume, mas sem poderes)Ranieri Mazzilli (Presidente da Câmara) assume interinamente a Presidência - Amigos, mas não tanto (governadores isolam o ex-Presidente) - A posição dos ministros militares sobre a posse de Jango - Marechal Lott vai para a prisão - A reação no Rio Grande do Sul para garantir a posse de Jango - A Rede da Legalidade - A posição do governador da Guanabara, Carlos Lacerda - A posição do 3º Exército (Rio Grande do Sul) - Parlamentarismo Já - Os ministros militares também contra a emenda parlamentarista - Uma esperança de

entendimento - O difícil caminho do entendimento - Sublevação na FAB: Parlamentares impedidos de viajar - João Goulart volta e toma posse.

011    1961-1964 - O fim da Terceira República (Governo João Goulart)O Brasil experimenta o parlamentarismo - A posse de Jango (chefe de Estado) e o Gabinete de Tancredo Neves (chefe de Governo) - Quem era João Goulart - Quem era Tancredo Neves - O Plano Trienal - A vida na música popular - A volta do presidencialismo - A caminho do caos - A ação conspiratória - O comício das reformas - A revolta dos marinheiros - Cabo Anselmo, o agente-duplo - Os sargentos e o fim do governo.

FIM DA TERCEIRA REPÚBLICA

1964-1985 - QUARTA REPÚBLICA

O PODER POLÍTICO-MILITAR(UM "PROVISÓRIO" QUE

DUROU 21 ANOS)

001    1964 - Revolução ou Golpe ? (A queda de João Goulart).A conjuntura político-militar - Como era estranho esse general Mourão - Em Santa Maria (RS), o Plano Junção - Parlamentarismo instável - Testando o Plano Junção - Em São Paulo, o blefe - A posição dos governadores - A ação das esquerdas - A articulação da direita - Os acontecimentos se precipitam - Voltando a Minas Gerais - Tropas na rua! - "Tio Sam" na batucada (A participação dos Estados Unidos). VEJA TAMBÉM: Cronologia do movimento.

002    1964 - Como se faz um Presidente (A eleição de Castelo Branco).

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Competência, versus desorganização - A revolução vista por dentro - A visão de dentro do Palácio presidencial - As últimas tentativas de reação - O embate no Congresso Nacional (em Brasília) - O povo nas ruas (do Rio de Janeiro) - Na UNE (União Nacional de Estudantes), a situação é crítica. - Preparando o caminho de Castelo (à Presidência) - Uma concentração pró Castelo - Três vezes me negarás - De como um Ato Adicional é maquiado e se transforma em Ato Institucional - E o Brasil tem seu novo Presidente.

003    1964-1967 - O Presidente estadista (Governo Castelo Branco)Castelo e Alkmin são empossados - Entre a espada e a Constituição - Quem era Castelo Branco - O Ministério - Varre, vassourinha (as cassações) - Ah, "Minas Gerais"! (O caso da aviação embarcada) - Soa o sinal de alarme (nas eleições para governador) - O Ato Institucional n.2 - O embaixador americano é consultado - Quase que o Brasil ganha um "Partidão" - Planos para uma nova Constituição - O Congresso é posto em recesso - A reforma financeira - A reforma fiscal e e tributária - A reforma agrícola (não agrária) - Conclusão (O estranho fim do marechal Castelo Branco).

004    1967-1969 - O fim da esperança (Costa e Silva, o AI-5 e a Junta Militar)A caminhada, de 64 a 69 - Passo a passo, fecha-se o cerco - Quem era Costa e Silva - 1968-Um divisor de águas - Preparando-se (o governo) para a ação - Com vocês, o AI-5 - Costa e Silva adoece - Assume a Junta Militar - Como se faz um Presidente (Médici é escolhido) - Epílogo (A morte de Costa e Silva).

005    1966-1968 - Conversar é preciso (A Frente Ampla, de cabo a rabo)Os primeiros contatos - Unindo os desiguais - Um caminho de pedras - As

idéias básicas do movimento - As idas e vindas- Relatório secreto ou história policial? - O fim da Frente Ampla - Encontro com o destino - E os outros?

006    1969-1974 - Ninguém segura este país (Governo Médici)A contradição dos anos setenta - O apogeu do Sistema (Como se faz um Presidente) - Quem era Médici - O Ministério - Os anos de progresso econômico - A realidade, por trás da fantasia (Crescimento e empobrecimento) - A taça do mundo é nossa (Brasil tri-campeão) - A ilusão da Transamazônica - Esse mar é meu (mar das 200 milhas) - Estudantes enfrentam o regime - A juventude insatisfeita - Os estudantes e a cavalaria - Perguntas sem resposta - Conclusão.

007    1974-1979 - Abertura a conta-gotas (Governo Ernesto Geisel)Geisel, Golberi e Figueiredo - O caminho da Presidência - A oposição participa das eleições - Quem era Ernesto Geisel - O Ministério - A crise mundial do Petróleo (Oriente Médio) - Os confrontos decisivos (Guerras entre árabes e judeus) - O embargo do Petróleo - Em busca de alternativas - Os contratos de risco - Surge o Proálcool - As eleições gerais de 1974 - As eleições municipais de 1976 - Cortando as asas da oposição - O pacote de abril - As eleições gerais de 1978 - A sucessão presidencial e o fim do AI-5.

008    1979-1985 - A democracia "relativa" (Governo João Batista Figueiredo)Uma estranha vocação democrática - Quem era Figueiredo - A difícil graduação do processo (anistia geral) - Economia em declínio - Volta o pluripartidarismo - As eleições de 1982 - Terror à sombra do poder - O atentado ao Riocentro (e a investigação oficial) - Uma investigação extra-oficial (coronel Grael) - O Presidente vacila - Isolando o vice-Presidente - O governo e o

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trabalhador (o DL 2065 e as greves do ABC) - Conclusão

009    1984 - O despertar da cidadania (A campanha das "Diretas-Já")O veio dagua que se transforma em rio caudaloso - Vox populi, vox Dei (o povo toma as rédeas do movimento) - Vai-não-vai (O governo despista) - Pacaembu é o marco inicial - A morte de Teotônio Vilela - Em Curitiba, um novo alento - Em São Paulo, o comício-monstro - O movimento no Rio de Janeiro - Minas Gerais acorda - Em São Paulo, um milhão e meio nas ruas - Uma proposta indecente (Diretas em 88) - 25 de abril, o dia da decisão - Brasilia declara guerra ao Brasil (As medidas de emergência) - Diga "sim", diga "não" - A vitória de Pirro (Os estragos no PDS, após a vitória governista).

010    1985 - O fim da República Militar (Tancredo derrota o sistema e se elege)O funeral das Diretas-Já e a participação da oposição nas Indiretas - Oposição em dificuldades (como eleger o Presidente?) - A situação no PDS (excesso de candidatos) - A noviça rebelde (A contribuição de Maluf para a redemocratização do país) - Uma virada de 180 graus (a Convenção do PDS) - A equação resolvida (oposição ganha reforços) - Surgem a Frente Liberal (FL) e a Aliança Democrática (AD) - Um trabalho de engenharia política (como a Aliança, que não é partido, se habilita para as eleições) - Índio quer apito (a presença do cacique-deputado Mário Juruna) - Maranhão quase desafina (a rebeldia da Assembléia Legislativa) - Eleições: uma festa como antigamente - Como o governo recebe os resultados - Seria Figueiredo um democrata? - As origens de um golpe - Conspiração à sombra do poder - Enfrentando a crise (Tancredo e seu Estado Maior) - Conclusão (Figueiredo perdeu o bonde da História).

011   13.12.68 a 01.01.79 - Os anos de chumbo (A vigência do Ato Institucional nº5)A Operação Bandeirante (OBAN) e o nascimento do DOI-CODI - A legitimação da repressão - A legitimação dos movimentos armados - A escalada da violência - O macartismo (Que diabo é isso?) - O macartismo no rádio - Missão quase impossível (A "Operação Murundu") - Vida e morte de Lamarca - Relembrando "Os Sertões" - Vida e morte de Marighela - O macartismo volta em São Paulo - A morte de Vladimir Herzog - Não souberam montar a cena - Epílogo (Democracia em questão).

012   40 ANOS DEPOIS(Editorial da Folha de S. Paulo publicado em 31 de março de 2004)Um ciclo encerrado - O panorama internacional nos anos 60 - A conspiração - O caminho tortuoso e acidentado - O declínio econômico - O declínio militar - O cenário internacional no governo Collor - O Brasil que não mudou - O grande desafio.

FIM DA QUARTA REPÚBLICAE FIM DA OBRA EM 03.05.2000

BRASIL – 100 ANOSDE REPÚBLICA

EXPLICAÇÕES NECESSÁRIAS

Precisando de um texto de História do Brasil para incluir em minha página na Internet, servi-me de uma obra escolar publicada por Rocha Pombo em 1919, poucos anos antes de sua morte, e nunca reeditada. Nada a opor. O autor é hoje de domínio público e pode ser transcrito sem qualquer impedimento legal ou ético. Mas Rocha Pombo se limita ao Brasil-Colônia e ao Brasil-Império, faltando, pois, a seqüência histórica através do fascinante período republicano. Aqui é que surge o problema, pois, embora exista um farto material a respeito, todo ele está protegido por direitos autorais.

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Só havia, pois, um caminho possível, qual seja, realizar a pesquisa e preparar um texto próprio. Ao fazê-lo, fugi tanto quanto possível dos textos oficiais (a História contada pelos vencedores), procurando, de preferência, os depoimentos, memórias e biografias autorizadas dos próprios personagens. Se isto trouxe, creio eu, maior brilho ao texto, por outro lado, tornou-o polêmico. Como diz a sabedoria popular, «quem conta um conto, aumenta um ponto». Quem quer que narre sua própria aventura, dará a ela uma versão pessoal, sem a presumível isenção do historiador, distorcendo algumas passagens, por vezes inconscientemente, e por outras premeditadamente. A História é documental; a anti-história é testemunhal. Aquela, busca a verdade na frieza dos documentos disponíveis; esta se serve da tradição da palavra. Nesse sentido, a presente obra pode ser classificada como anti-história. Não é uma apostila para vestibulares, é antes uma narrativa para quem pretenda conhecer a República fora dos cânones oficiais; brilhante sim, mas por vezes imprecisa ou controversa. Na elaboração do texto, todavia, valeram-me também consultas que fiz à obra do político e historiador pernambucano José Maria Belo, bem como ao irreprimível trabalho do jornalista e historiador Hélio Silva, ambos também testemunhas oculares da História e fontes indispensáveis em qualquer pesquisa sobre o período republicano. Conquanto o texto procure ser coerente, mantendo a unidade do conjunto, cada capítulo é independente dos demais, podendo ser consultado separadamente, sem prejuízo para o entendimento da matéria. É assim que funciona a Internet e assim a obra foi projetada.

São Paulo, novembro/2000Paulo Victorino

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Primeira República(1889-1930)

Capítulo UmASSIM NASCIA A REPÚBLICA

  

A história da independência das colônias americanas começa bem distante da América, do outro lado do Atlântico, no coração da velha Europa. Pouco mais de dez anos haviam se passado desde o início da Revolução Francesa, e uma sucessão atropelada de acontecimentos levou a França de volta à monarquia com Napoleão Bonaparte, cuja ambição não tinha limites que não pudessem ser ultrapassados. Pois foi invasão das tropas napoleônicas à Península Ibérica, em 1807, que criou um reboliço nas colônias latino-americanas, gerando, primeiro, desorientação total; depois, uma reação natural de fidelidade à coroa espanhola, com a formação de governos provisórios e, por fim, o despertamento da consciência de que, subjugada a Espanha por Napoleão, surgia uma oportunidade única para que os vice-reinos assumissem seus destinos, declarando a própria independência. De como o processo se efetivou, das lutas fraticidas e da divisão dos vice-reinos em uma porção de pequenas repúblicas, isso é assunto para uma História das Américas, que não cabe neste trabalho. Basta registrar que a inexistência de um rei a quem servir e a repulsa ao império invasor criaram condições para que praticamente toda a América Latina se tornasse republicana, seguindo o exemplo dos Estados Unidos, que já tinham feito sua opção em 1776.    Não foi o caso do Brasil, que as circunstâncias encaminharam para um processo histórico totalmente diferente. Com Portugal invadido, a família real e a nobreza se instalaram em sua antiga colônia, que passou a ser a sede de reinado, oficializada com a criação do Reino Unido Portugal-Brasil-Algarves. Esse elemento distinto alterou a nossa história, pois evitou fracionamento do país em vários pequenos territórios e, a par disso, garantiu a permanência do regime monárquico após a Independência, contrariando a opção do restante das três Américas. Garantiu, ainda, uma relativa estabilidade, que permitiu a D. Pedro 2º, primeiro monarca nascido no Brasil, ficar no poder por meio século, sem maior contestação, seja ao regime, seja à pessoa do Imperador.    Todavia, o fim da Guerra do Paraguai levou o país a fazer uma reavaliação de seus próprios destinos. A guerra, ainda que inevitável, trouxe um custo elevado em vidas

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humanas, um preço pago com o sangue dos próprios soldados brasileiros, recrutados, sabe Deus em que circunstâncias, e utilizados como peças de guerra, sem maiores preocupações com a preservação das vidas. E, enquanto lá fora os soldados da pátria morriam na defesa das liberdades, aqui dentro permanecia a escravidão a serviço de uma oligarquia alheia aos problemas do povo, controlando o poder de forma absoluta pelo voto seletivo, restrito aos cidadãos de boa renda. Outro fator a interferir na vida nacional era a inconveniente união entre a Igreja e o Estado. De um lado, o clero recebia seus proventos dos cofres públicos; de outro, o Imperador tinha a prerrogativa de nomear bispos e interferir em assuntos administrativos da Igreja, a contragosto dos religiosos. Por fim, outra realidade passa a ser questionada, e esta na esfera militar. Cessada a guerra e não tendo mais com que se preocupar quanto à segurança nacional, os militares foram remanejados para serviços menores, fora de suas atribuições, como a caça de escravos foragidos. Contando com uma forte representação no Congresso, acharam eles que já era momento de ter uma participação política mais ativa, o que originou a criação do Clube Militar e a disposição manifesta de tornar públicas as suas opiniões, embora isto fosse vedado taxativamente pelo regulamento.    Assim, dentro da rediscussão dos problemas brasileiros provocada pelo reavivamento nacional, surgiram questões importantes, que puseram por terra toda a estrutura, aparentemente sólida, de nosso Império.

Abolição da Escravatura   Durante seu longo reinado, D. Pedro 2º, em harmonia com os gabinetes do parlamento, vinha tratando acabar, gradualmente, com o trabalho escravo, eliminando primeiro os navios negreiros, depois tornando livres as crianças nascidas de mãe escrava, por fim dando alforria aos escravos maiores de sessenta anos. Havia ainda a abolição feita em separado por algumas regiões e cidades brasileiras. Em março de 1884, foi extinta a escravidão no Ceará e, em julho do mesmo ano, o Amazonas lhe segue o exemplo. No Rio de Janeiro, em São Paulo e em outros Estados, a campanha abolicionista vinha ganhando força cada vez maior, e a voz de Castro Alves, nos anos sessenta, repercute

agora com nomes como o de José do Patrocínio, que não usa só o seu dom da palavra e do convencimento, como ainda presta ajuda na fuga de escravos e na proteção dos fugitivos.    A assinatura da Lei Áurea, pela princesa Isabel, representa uma arriscada manobra política, mas a única possível, na tentativa de salvar o trono. Todavia, se de um lado o ato aproxima o trono a uma larga parcela da opinião pública, de outro, enfurece as classes rurais dominantes, que dependem da mão-de-obra escrava para sustentação da lavoura. Agora, são as oligarquias que se rebelam e vão engrossar as fileiras dos republicanos, com seu apoio pessoal e financeiro, deslocando ainda mais o centro de equilíbrio do poder.

A Questão Religiosa   Sabe-se bem da grande influência política da maçonaria na vida brasileira, atuando primeiro no processo de Independência, depois,  nas revoluções que eclodiram durante a fase inicial do Império e, finalmente, registrando participação ativa no Congresso e em outros setores da vida pública. Como é natural, sua ação estende-se também sobre a vida religiosa, alterando o tradicional dia-a-dia dos conventos. Os padres defendem idéias francamente liberais e muitos deles acabam se identificando com os maçons, aderindo a eles, primeiro discretamente, depois, de forma escancarada, e contando, senão com o consentimento, pelo menos com a tolerância de seus superiores. A paz termina quando, numa homenagem prestada pelas lojas maçônicas do Rio de Janeiro ao seu grão-mestre, Visconde do Rio Branco, se registra um incidente de maior monta. O padre Almeida Martins, que também é maçom, se apresenta na cerimônia em seus trajes de sacerdote e faz um discurso de saudação, representando a loja do Grande Oriente do Lavradio, recebendo, por isso, uma punição do bispo diocesano, D. Pedro Maria de Lacerda. Reincidente em sua atuação, é então suspenso das ordens sacras. Começa aqui uma guerra surda em que os maçons passam a hostilizar a Igreja, enquanto esta, por seus bispos, age duro contra os religiosos renitentes na prática da maçonaria.    Ocorre, então, um incidente mais grave. O bispo de Olinda, D. Vital Maria Gonçalves de Oliveira, jovem de vinte e poucos anos, resolveu aplicar, na área sob sua jurisdição,

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as recomendações da Encíclica de 1864, do papa Pio 9º, proibindo o clero de participar de cerimônias patrocinadas por maçons. O bispo chama particularmente cada um dos sacerdotes envolvidos e ordena-lhes que se dediquem tão somente à vida religiosa, afastando-se de atividades estranhas aos conventos. Encontrando oposição, D. Vital acabou por suspender as irmandades recalcitrantes, impedindo-as de receber novos membros, de participar de ofícios religiosos e até de vestir os seus hábitos. Algumas dessas irmandades recorrem ao Governo e D. Vital, por sua parte, recorre ao Papa que lhe dá poderes para agir com rigor contra os rebelados.    Está formado o embrulho, provocado pela espúria união entre o Estado e a Igreja. O acordo entre o Governo e o Vaticano determinava que todas as bulas papais, para serem cumpridas no país, deveriam primeiro receber o "execute-se" do Governo brasileiro o que não acontecera com a Encíclica cujas recomendações o bispo insistia em aplicar. A crise agrava-se mais ainda quando o bispo do Pará, D. Antônio Macedo Costa, faz um protesto formal contra a maçonaria e se solidariza com D. Vital.    Foi a conta. O Governo apresenta ação criminal contra os dois religiosos, perante o Supremo Tribunal de Justiça, por desrespeito aos poderes do Império. Presos, os dois bispos são levados ao Rio de Janeiro, julgados e condenados a dois anos de prisão com trabalhos forçados, sendo instaurados processos também contra outros padres que lhes deram apoio. Isto ocorreu em 1º de julho de 1873 e só ao final da pena é que os dois bispos foram anistiados, por decreto do Gabinete presidido pelo Duque de Caxias. Mas o desastre já acontecera e seus efeitos são irremediáveis.

A Questão Militar   Dentre todos os problemas que o Governo vinha enfrentando, por certo, o mais grave de todos e o mais decisivo para o fim do Império foi a questão militar. Sob acusação de terem feito manifestações políticas, foram punidos os coronéis Sena Madureira e Cunha Matos, provocando descontentamentos no Exército e resultando num violento discurso do Visconde de Pelotas, que era um militar exercendo, naquele momento, um mandato de senador, o qual tomou a defesa dos militares punidos. O ministro que aplicou as punições, general Franco de Sá, que também

era senador, reassumiu sua cadeira no Senado e replicou às acusações no mesmo tom, reafirmando sua posição de manter os militares afastados de manifestações políticas.    Um dos coronéis punidos, Sena Madureira, se achava em Porto Alegre, sob o comando do marechal Deodoro da Fonseca. Sentindo-se ofendido com o discurso do ex-ministro, Sena foi aos jornais e publicou uma nota violenta contra o General Franco de Sá, com o que envolvia indiretamente o seu comandante, marechal Deodoro, que foi interpelado a respeito.    Agravava-se a crise. Deodoro enviou um ofício, por via marítima, manifestando sua opinião de que "não há questão disciplinar, porque o regulamento veda discussão entre o subordinado e seu superior. O senador Franco de Sá atuava como parlamentar e não como militar, não sendo, naquele momento, um superior se dirigindo ao coronel, mas sim um senador a emitir sua opinião".  Esse oficio cruzou com outro que veio do Rio de Janeiro, também por via marítima, aplicando punição a Sena Madureira por "referências inconvenientes a um membro do Parlamento e por ter criticado atos de um ex-Ministro da Guerra".    Deodoro recusou-se a aplicar a punição. Sena Madureira, longe de se acomodar, voltou à imprensa com nova manifestação. No Rio, o ex-ministro e senador exigiu explicações do Chefe do Conselho, Barão de Cotegipe. E, de Porto Alegre, Deodoro comunicava ao governo que havia autorizado outros oficiais a fazerem manifestações de solidariedade ao colega punido. No Rio de Janeiro, o jornal "O País", de Quintino Bocaiúva, publicava um manifesto de solidariedade a Deodoro, assinado por 150 oficiais e cadetes. E Benjamim Constant, que também era militar, conseguiu um manifesto, assinado por Deodoro e pelos oficiais sob seu comando, na defesa dos direitos da classe.    Na tentativa de debelar a crise, o governo manda vir ao Rio de Janeiro o marechal Deodoro e o coronel Sena Madureira, mas o tiro sai pela culatra, pois, ao chegarem à capital federal, em 26 de janeiro de 1887, os dois foram recebidos com entusiásticas manifestações de oficiais e cadetes.     Provocações de um lado e de outro, queda de Ministro, apelos a D. Pedro para que interferisse na questão, tudo foi

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experimentado, sem efeito, até surgir a figura conciliadora de Rui Barbosa, que, reunido com os militares na casa de Deodoro, redigiu um manifesto pacificador, assinado primeiro por Deodoro e pelo Visconde de Pelotas, em seguida pelos demais. Depois, em 18 de maio de 1887, o visconde de Pelotas fez um discurso no Senado, na presença do Barão de Cotegipe, pedindo a todos os envolvidos que, em nome da nação, a questão fosse encarada e resolvida de modo honroso e digno. Mas o mal já estava feito e não havia mais como restabelecer a confiança recíproca entre governo e militares. Aquele representava a ordem, estes detinham a força. O desfecho havia de ocorrer, apenas não se sabia quando.

Proclamação da República     O movimento de sedição que levou ao golpe de Estado, derrubando o Império e proclamando a República, não foi um acidente. Estava bem planejado e tinha até uma data para acontecer: 17 de novembro de 1889. A operação foi bem planejada e envolvia mesmo táticas de guerra, como a da contra-informação, isto é, a divulgação de boatos para criar um clima propício à ação. Falhou apenas na cronologia, pois Quintino Bocaiúva e o major Solon Ribeiro provocaram sua antecipação.    Deodoro adoeceu, e recolheu-se à sua casa. Coube, então ao major Solon espalhar a falsa notícia de que Deodoro estava preso, juntamente com Bocaiuva, e que, por ordem do ministro Visconde de Ouro Preto, vários batalhões seriam removidos da capital para pontos distantes do país. Esse alarme falso provocou a rebelião imediata de dois batalhões da Cavalaria, aquartelados em São Cristóvão, aos quais se juntou, logo em seguida, todo o Regimento de Cavalaria e, pouco depois, várias outras unidades militares.     Isso aconteceu no dia 14 de novembro de 1889. Logo na manhã do dia seguinte, foram buscar Deodoro em sua casa, o qual, apesar de doente, assumiu prontamente o comando das Forças Armadas. O ministro Ouro Preto avisou o Imperador sobre o movimento e, em seguida, tentou juntar forças para a resistência, reunindo, no pátio do Quartel General, no Campo de Santana, todo o destacamento policial ao seu alcance, e mais a Brigada de Infantaria, sob o comando do general Almeida Barreto, ficando a cargo de Floriano Peixoto (até então aparentemente

legalista) comandar ambas as forças para o contra- ataque.     Faltou disposição, tanto aos comandados, quanto ao comandante, para que esse contra-ataque se realizasse. As tropas rebeldes invadiram o edifício do Ministério da Guerra, entre vivas e aclamações dos soldados que deveriam defendê-lo. Ali mesmo, após um diálogo "ligeiro e ríspido", o Marechal Deodoro determinou a prisão do Visconde de Ouro Preto, dirigindo-se depois ao Arsenal da Marinha, para confirmar o apoio da Armada, consumando, assim, o golpe.    Não houve participação popular. O povo olhava, indiferente, as tropas que circulavam pela rua do Ouvidor e outras ruas da cidade. Ainda na tarde do dia 15 de novembro de 1889, José do Patrocínio conseguiu reunir um pequeno agrupamento popular que, de tão pequeno, coube dentro da Câmara Municipal. À noite, o mesmo Patrocínio foi à casa de Deodoro para levar um manifesto com as poucas assinaturas que conseguiu obter. E é só o que registra a história, quanto ao envolvimento popular no ato de Proclamação da República.    O Presidente do último gabinete parlamentar, Visconde de Ouro Preto, foi deportado para a Europa. O major Sólon Ribeiro, já referido acima, entregou ao Imperador uma mensagem do Governo Provisório, que o obrigava a deixar o Brasil, o que aconteceu na madrugada do dia 17. Toda a família imperial foi transportada para a corveta "Parnaíba", de onde ocorreu o transbordo para o vapor Alagoas.    Segue, para o exílio, o Imperador, e com ele, meio século de história do Brasil imperial. Estava proclamada a República e voltavam as esperanças de se construir uma nova nação, dentro dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

* * *Capítulo Dois

PRIMEIROS TEMPOS DA REPÚBLICA

Deodoro e Floriano – 1889-1894

   No mesmo dia 15 de novembro de 1889, após a Proclamação da República, é editado o Decreto nº1 do Governo Provisório, traçando as diretrizes básicas do regime que se iniciava. Fica instituída a República dos Estados Unidos do Brasil, adotando como

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forma de governo a República Federativa, isto é, o poder passa a ser compartilhado com as vinte unidades provinciais, ao contrário da Monarquia, onde o sistema era unitário e centralizado. O Rio de Janeiro, que era designado "Município Neutro da Corte" passa a ser  "Distrito Federal". As províncias, agora, chamam-se "Estados". Deodoro é o chefe do Governo Provisório, enquanto se estabelece a nova ordem para a convocação de eleições constituintes.    Já pela manhã do dia 15, logo após o golpe, o tenente Vinhais apodera-se do telégrafo, enviando mensagem a todos os Presidentes de Província, na qual anuncia a implantação do novo regime e a deposição do ministério monárquico, "pelas forças de terra e mar". Ao contrário do que ocorrera por ocasião da Independência, desta vez não há qualquer reação à mudança, registrando-se até uma certa apatia, como se estivesse administrando um fato esperado há algum tempo, e agora apenas consumado. Somente a Bahia esboça um sinal de reação, para voltar logo à normalidade, ao saber que o Imperador cedera à imposição das circunstâncias, e que a tomada do poder deu-se sem derramamento de sangue.     Diante da transição pacífica de regime, cuida-se de tomar as providências para sua consolidação. Deodoro organiza seu primeiro Ministério, formado com os civis e militares mais envolvidos com o processo de mudança: Justiça, Campos Sales; Guerra, Benjamin Constant; Marinha, contra-almirante Eduardo Wandenkolk; Relações Exteriores, Quintino Bocaiúva; Interior, Aristides da Silveira Lobo; Fazenda, Rui Barbosa; Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Demétrio Ribeiro. Este último foi nomeado por indicação dos positivistas e Deodoro sequer o conhecia [o positivismo é sistema filosófico materialista, que se apoia exclusivamente nos fatos e experiências práticas, repelindo por inteiro os princípios de fé. É partidário de um governo forte e centralizado].     No dia 17, após a partida de D. Pedro 2º, os positivistas, por sugestão de Benjamim Constant, vão ao Palácio, em passeata,  para prestar solidariedade ao novo governo, levando à frente uma faixa com os dizeres "Ordem e Progresso", frase criada por essa corrente filosófica e incorporada em seguida à nova Bandeira Nacional, criada por decreto de 19 de novembro. Com dois

representantes no pequeno Ministério, esperavam eles direcionar o governo e a constituição na trilha de suas idéias. Se não o conseguiram de todo, pelo menos deixaram presença marcada por toda a República Velha e na outra subseqüente, perdendo, porém,  gradativamente, o fascínio que despertavam no final do império.    Dentre as primeiras medidas do Governo Provisório, destacam-se a separação entre a Igreja e o Estado, a secularização dos   cemitérios, e a instituição do registro civil de nascimentos, casamentos e óbitos, o que, até então, era validado pela Igreja. Ficou acertado também, que, no primeiro aniversário da República, se instalaria a Assembléia Constituinte, segundo convocação a ser feita oportunamente.

Assembléia Constituinte    As providências para a instalação da Constituinte já iam adiantadas. Em 3 de dezembro de 1889, dezoito dias após a Independência, o governo nomeava uma comissão, presidida por Saldanha Marinho e composta de cinco juristas, com a missão de elaborar um anteprojeto a ser encaminhado aos constituintes, em seu tempo oportuno, para análise e aprovação. Essa comissão apresentou, não um, mas três anteprojetos, redigidos respectivamente por Américo Brasiliense, Rangel Pestana e Magalhães Castro. Esses três trabalhos são, agora, entregues a um outro jurista, Rui Barbosa, que, com sua proverbial habilidade, reuniu as idéias em um único texto, unificando conceitos, aprimorando a forma e, além do que lhe fora pedido, alterando até o conteúdo dos textos iniciais, ao acrescentar, na consolidação, vários dispositivos que não estavam nos anteprojetos originais.     Se, em teoria, tudo estava correndo dentro do concertado com os republicanos, na prática, a coisa era diferente. Como dissemos, no Ministério, havia dois positivistas, Benjamin Constant e Demétrio Ribeiro, ambos defensores de um governo forte e centralizado e, sobretudo este último, tudo fazia para que fosse protelada a convocação da Assembléia. Dentro do Exército, também, surgia uma corrente, sustentada por destacados militares, que defendia a manutenção de todo o poder com o Governo Provisório. O próprio marechal Deodoro relutava em fazer a convocação, irritando os republicanos mais exaltados, os quais se manifestavam pela imprensa,

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reclamando o prosseguimento da democratização do e lembrando que a indefinição do governo já vinha causando desconfianças em países amigos, que retardavam em reconhecer o novo regime, trazendo dificuldades para o comércio exterior.    Prevaleceu o bom senso e, em 22 de junho de 1890, finalmente, realizou-se a convocação da Constituinte para a data já estabelecida, com eleições a se realizarem dois meses antes. Com efeito, as eleições se realizaram em 15 de setembro de 1890, porém,  em ambiente tumultuado e com sérias acusações quanto à lisura do pleito, já que nomes totalmente desconhecidos  conseguiram um número expressivo de votos, incompatível com sua pouca ou nenhuma projeção junto ao eleitorado. Mas, pelo menos, houve eleições, e grandes inteligências nacionais conseguiram se sobressair, impondo sua força de liderança e neutralizando a vulgaridade dos demais. Com exceção de Benjamim Constant, que não se candidatou, os demais ministros (Campos Sales, almirante Wandenkolk, Quintino Bocaiúva,  Silveira Lobo, Rui Barbosa e Demétrio Ribeiro) foram todos eleitos. O anteprojeto, com a nova redação proposta por Rui Barbosa, foi então encaminhado à Assembléia Constituinte que, como previsto, se instalou no dia 15 de novembro de 1890.

Nova Constituição   Em um ano e dois meses, o projeto final estava pronto, discutido, emendado e votado. A Constituição, em sua redação final, foi promulgada pelo Congresso em 24 de fevereiro de 1891, entrando imediatamente em vigor. No dia seguinte, seria eleito o presidente da República, nesta primeira vez, excepcionalmente, por via indireta, com o voto dos parlamentares. Somente a partir do segundo Presidente é que as eleições passariam a ser por voto direto.    A nossa Carta Magna, embora incorporando as várias medidas já tomadas pelo Governo Provisório, era inspirada na Constituição norte-americana, estabelecendo no país um regime republicano, com governo presidencialista e sistema federativo. (O contrário disto seria regime monárquico, com governo parlamentarista e sistema unitário). Na prática, os governos que se seguiram adotaram apenas um presidencialismo forte e centralizado, dificultando ao máximo a

aplicação do princípio federativo, já que os Estados sempre foram dependentes, política e financeiramente, do governo central. O fiel da balança pendeu, agora, para as oligarquias rurais, principalmente de São Paulo e Minas Gerais, gerando a política que ficou sendo conhecida como de “café com leite”, com o poder se alternando entre esses dois Estados até o fim da República Velha, em 1930.    Porém, em relação à Constituição de 1824, a nova Carta representou considerável avanço. As eleições para a Câmara, Senado e Presidência da República passaram a ser diretas e universais. Na Carta anterior somente os deputados eram eleitos e, assim mesmo, por voto censitário, isto é, segundo a renda de cada um. Os senadores deixaram de ser vitalícios. O voto era livre (não obrigatório) e universal (cada eleitor, um voto, sem contar a renda de cada um) mas somente para homens, maiores de 21 anos, e com uma série de outras restrições, pois estavam proibidos de votar, além das mulheres, também os analfabetos, os militares e os religiosos. Com todas essas limitações, e não sendo obrigatório o voto, o número de eleitores era muito pequeno, representando muito pouco o universo populacional, em torno de 40 milhões de almas. As mulheres ganharam direito a voto na Constituição de 1934, os militares e os religiosos, na de 1945 (com idade reduzida para 18 anos) e os analfabetos, na de 1988 (com idade reduzida para 16 anos). Nos cem anos de República ampliou-se, pois, passo a passo, o contingente eleitoral, tornando-o mais expressivo com relação ao conjunto da população. Todavia, o que jamais se conseguiu eliminar, foram a fraude, sempre presente nas eleições brasileiras, a influência do poder econômico nas mais variadas formas e o uso da “máquina” em favor dos candidados do governo.

Eleição do primeiro Presidente

   Enquanto se discutia a nova Constituição, eram feitas articulações para a eleição presidencial. Como se recorda, Deodoro era chefe do Governo Provisório e urgia eleger o presidente da República para um mandato regular, previsto para quatro anos. Na oposição, lançaram-se as candidaturas de Prudente de Morais e do marechal Floriano Peixoto, respectivamente para presidente e vice; pelo governo, aparecia o nome do

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próprio marechal Deodoro para presidente, tendo como companheiro de chapa o almirante Eduardo Wandenkolk.  Deodoro permaneceu candidato sem se afastar do governo, o que o mantinha como chefe das Forças Armadas e, literalmente, com maior poder de fogo. O ambiente era pesado e a discussão transcorreu por todo o período constituinte, em clima tenso e no meio da boataria. Ninguém em sã consciência acreditava que, perdendo as eleições, Deodoro consentisse entregar o poder aos seus opositores. E o rumo tomado pelos acontecimentos mostrava a realidade da situação, como conta o historiador Hélio Silva: "Corria entre os Congressistas rumores de que as tropas sairiam dos quartéis, no caso de o marechal Deodoro não ser eleito. Alarmados com o que se dizia, Floriano, Campos Sales, José Simeão e outros, resolveram se reunir na casa deste último para planejar as providências que deveriam tomar no caso de vitória de Prudente [oposição]. Proclamado o presidente da República, o Congresso deveria dar-lhe posse imediatamente, no próprio edifício onde funcionava. O Ministério, também, já deveria estar organizado. Passariam a aguardar os acontecimentos em sessão permanente, enquanto se trataria de angariar reforços. O almirante Custódio de Melo [também da oposição] já tinha armado um esquema para reagir. Eleito Prudente, o militar  iria a toda pressa para o cais novo, embarcaria num escaler à sua disposição a caminho do cruzador Primeiro de Março. Seu plano era levantar as forças de mar".    Percebe-se o ambiente em que transcorreram as eleições. Acordos de bastidores, porém, garantiriam a eleição do marechal Deodoro para Presidente, enquanto que os governistas se propuseram em eleger para vice o candidato da oposição, marechal Floriano Peixoto. Foram, em conseqüência, sacrificadas as candidaturas de Prudente (oposição) e Wandenkolk (governo), numa dobradinha que procurava misturar óleo e água, na esperança de obter uma substância homogênea. "Votaram 234 representantes. Prudente passa a presidência [do Congresso] a Antônio Euzébio Gonçalves de Almeida para fazer a apuração. O marechal Manuel Deodoro da Fonseca é eleito por 129 votos, contra 97 dados a Prudente de Morais.

Depois, é feita a eleição para vice-Presidente. O marechal Floriano Peixoto, candidato da oposição, é eleito por 153 votos, contra 57 dados ao almirante Eduardo Wandenkolk." Com o "jeitinho brasileiro", estava vencida a primeira crise. Outras mais estavam por vir.

Quem era Deodoro   Manuel Deodoro da Fonseca, agora Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, nasceu em Alagoas em 1827, participou da repressão a revoltas contra o Império e esteve presente nas guerras do Prata e do Paraguai, chegando ao posto de marechal em 1884, após o que foi nomeado comandante-de-armas no Rio Grande do Sul, onde se envolveu nos acontecimentos, que, à sua revelia, colocaram-no na liderança do movimento que pôs fim ao Império.     Há muitas semelhanças entre o comportamento de Deodoro, nosso primeiro Presidente, e D. Pedro 1º, nosso primeiro Imperador. Os dois eram liberais, mas apolíticos, tinham uma formação voltada para o militarismo, eram temperamentais e impulsivos, defendiam suas idéias até o uso extremo da força, mas um e outro revelavam ingenuidade total no que se refere ao jogo político. D. Pedro prosperou enquanto tinha ao seu lado o hábil José Bonifácio, que lhe moldava as idéias e sugeria os caminhos a percorrer, mas deu-se mal quando os Andradas passaram para a oposição.     Já o velho marechal (Deodoro assumira o governo com 62 anos)   não tinha quem exercesse uma influência maior dentro do governo e lhe dirigisse as ações no trânsito pela complicada teia da vida pública, em que é preciso administrar, ao mesmo tempo, várias correntes antagônicas. Foi assim que, logo no início do Governo Provisório, comprou o plano mirabolante de seu Ministro da Fazenda, Rui Barbosa, que consistiu na emissão desenfreada de moeda sem lastro, originando a especulação, gerando inflação e piorando a situação financeira do país, que já se tornara ruim no final do Império. Como agravante, consentiu com a exigência de Rui para que o plano fosse posto em prática sem discussão prévia com o restante do Ministério, com o que assumiu individualmente as conseqüências pelo seu fracasso. Como quebra, criando um clima de animosidade entre Rui e seus auxiliares diretos, acrescentou ao governo mais dificuldades do que podia administrar.

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    No mais, sua inexperiência política era proverbial. Ao receber, mais tarde, o anteprojeto da Constituição, consolidado pelo próprio Rui, reclamou da inexistência, nele, de um Poder Moderador, dando ao Executivo a prerrogativa de dissolver o Congresso e convocar novas eleições. Achava que era impossível governar, se não tivesse controle pessoal sobre o parlamento. Por fim, eleito Presidente, transferiu para o barão de Lucena a incumbência de organizar um novo Ministério, como se ainda estivéssemos no regime parlamentarista.     Tal como aconteceu com D. Pedro, essa inexperiência, aliada à impulsividade, colocou-o, por fim, em confronto aberto com seus opositores, até criar uma situação irreversível, fechando todos os caminhos para o diálogo e ficando sem alternativas para enfrentar uma crise por ele mesmo criada. Deodoro era casado com dona Mariana Cecília de Sousa Meireles e não tinha filhos.

O fechamento do Congresso e a renúncia

   O acordo emergencial, feito por ocasião das eleições presidenciais, desgostou profundamente a oposição e estabeleceu as raízes da instabilidade política, pois, junto com Deodoro, também foi eleito o marechal Floriano Peixoto que, além de oposicionista, era inimigo pessoal do Presidente. Inicia-se logo uma conspiração para a derrubada do governo,  com a participação pouco velada do próprio vice-Presidente, enquanto, no Congresso, uma oposição persistente praticamente obstruía a ação presidencial.     Por outro lado, decretos governamentais polêmicos causavam péssima repercussão junto ao Congresso e à opinião pública. Um deles, foi a concessão do porto de Torres a empresa privada, com empréstimos em condições especiais e outras facilidades. Mais concessões se fizeram da mesma maneira, uma delas envolvendo a Companhia Geral de Estradas de Ferro. A reforma do Banco do Brasil deu margem a favorecimentos que acabariam envolvendo nomes importantes da vida nacional, entre empresários e políticos influentes. Não havia, entretanto, má fé do Presidente, que acreditava piamente estar colaborando para acelerar o desenvolvimento nacional.    No meio de tantos "amigos", Deodoro nem precisava de inimigos, se bem que os tinha, e muitos, principalmente dentro do Congresso

Nacional, onde a situação se tornou insustentável. Impossibilitado de governar, tomou uma medida de extrema gravidade, cujas conseqüências nem de longe podia imaginar: por decretos presidenciais, fechou o Congresso Nacional, estabeleceu estado de sítio e mandou que forças militares cercassem os edifícios da Câmara e do Senado. Embora a maioria dos parlamentares aceitasse a situação de fato, retirando-se para seus Estados de origem, um grupo de deputados, de pequeno número mas de grande força, intensificou o movimento conspiratório e conseguiu levantar a Marinha, sob o comando do almirante Custódio José de Melo, colocando em cheque o governo. Este inicialmente pensou em resistir, mas depois desistiu, temendo que o choque de tropas militares viesse levar o país a uma guerra civil de conseqüências imprevisíveis, porém, certamente, desastrosas..     Doente, cansado e desiludido, Deodoro manda chamar Floriano, a quem entrega o governo, assinando o ato de renúncia, em 23 de novembro de 1891, com uma frase que deixou para a História: "Assino o decreto de alforria do último escravo do Brasil.."  Morre nove meses depois e, conforme seu desejo expresso, é enterrado em trajes civis, dispensadas as honras militares. Os que o conheceram, sempre elogiaram sua integridade. O grande mal de Deodoro foi que, durante toda vida, preparou-se para a guerra, mas estava despreparado para a paz. Sua formação era de caserna e o ambiente político exige um jogo contínuo de simulações, de avanços e recuos, que não condiziam nem com o temperamento, nem com a personalidade do marechal, dotado de uma espinha dorsal inflexível.

Quem era Floriano   Floriano Vieira Peixoto, que assume a presidência da República após a renúncia de Deodoro,  nasceu em Vila de Ipioca, Alagoas, em 1839. Filho de uma família pobre e numerosa (tinha outros nove irmãos), seus pais o entregaram aos cuidados de um tio, senhor de engenho no litoral alagoano. Patrocinado pelo tio, estuda no Rio de Janeiro e, terminado o colégio, assenta praça num quartel de Infantaria para, em seguida, matricular-se no Colégio Militar. Teve participação ativa na Guerra do Paraguai, atuando nas batalhas de Tuiuti, Itororó, Lomas Valentinas e outras. Paralelamente à

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vida militar, sempre manifestou especial interesse pela política, sendo filiado ao Partido Liberal, que fazia oposição ao governo imperial. Em seu Estado natal, tornou-se proprietário de dois engenhos, o que lhe deu contato com a vida rural, a pobreza e a injustiça social, rotinas bem conhecidas do povo nordestino. Mesmo sendo senhor de engenho, tinha uma posição francamente abolicionista. Em 1884, foi nomeado presidente da Província de Mato Grosso, onde ficou por um ano. Chegou ao topo de sua carreira militar em 1888, ao ser promovido a marechal-de-campo. No  último gabinete do Império, foi nomeado ajudante geral do Exército. Nessa condição, em 15 de novembro de 1889, coube a ele comandar as tropas que, dentro do Campo de Santana, deviam preservar o Quartel General do Exército contra a investida dos soldados do marechal Deodoro, protegendo a autoridade do Chefe de Governo ali asilado. Recusou-se, porém, a ordenar o contra-ataque, permitindo que Deodoro invadisse o quartel, com a subsequente prisão do ministro Visconde de Ouro Preto, chefe do Conselho de Ministros do Império.    Essa traição jamais for perdoada pelos seus inimigos que lhe apontam, também, outras fraquezas de caráter, como relaciona Iberê de Matos: "a traição a Ouro Preto [mencionada acima]; a aversão que lhe tinham Deodoro e Benjamin Constant, que não podiam ser gratuitas; a atitude dúbia ou traiçoeira no episódio da eleição [à Presidência]; o apego ambicioso a um poder que não lhe pertencia; a impiedosa repressão, com requintes de maldade, culminando com as tentativas de assassinato, pelo desterro para regiões inabitáveis, de homens como José do Patrocínio, e os massacres no Paraná e Santa Catarina; seu desprezo pela dignidade de homens como Gaspar da Silveira Martins, Custódio de Mello, Saldanha da Gama, Wandenkolk, José do Patrocínio, Olavo Bilac e tantos outros que foram vítimas de processos infamantes e perversos..." Outro autor, José Maria Bello, faz sua análise da personalidade de Floriano: "Não se distinguia Floriano por nenhum dom exterior de fascínio ou de domínio. Descuidado de si mesmo, máscara medíocre, de traços inexpressivos e adoentados. Falta-lhe, por exemplo, o porte marcial, o élan, o olhar lampejante de

Deodoro. Não lhe vibra a voz arrastada de caboclo do Norte; não se lhe impacientam jamais os gestos e as atitudes. Pela perfeita impassibilidade, como por outras virtudes e defeitos, lembra Benito Juarez [presidente mexicano do Século 19], vindo da mesma origem ameríndia. Não tem brilho a sua inteligência que é, especialmente, a intuição divinatória dos homens. Escassa a sua cultura, quase reduzida aos vulgares conhecimentos técnicos da profissão. Não revela curiosidades intelectuais, dúvidas, aflições de vida interior. Desdenha o dinheiro. Deixam-no completamente indiferente as comodidades materiais da vida. Despreza a humanidade e, por isso mesmo, nivela facilmente todos os valores que o cercam. Confundindo-se de bom grado nas multidões humildes das ruas, conserva-se, entretanto, impenetrável a qualquer intimidade. A família, de pequeno estilo burguês, esgota-lhe, porventura, a capacidade afetiva. Como os de sua raça cabocla, é um irredutível desconfiado. Não se expande nunca. Simples e acessível embora, é incapaz de intempestivas familiaridades, de grossas e alegres pilhérias, tão fáceis, sempre, em Deodoro. No fundo, um triste. A sua ironia, tão frisante no vasto anedotário que corre por sua conta, tem sempre alguma coisa do gélido e do cruel dos temperamentos ressentidos e amargos." Este homem, cujo perfil o aproxima mais a uma máquina do que a um ser humano, chegava agora ao governo propondo consolidar a República com sua mão de ferro. Era casado com dona Josina Vieira Peixoto e tinha oito filhos: Ana, José, Floriano, Maria Teresa, José Floriano, Maria Amália, Maria Josina e Maria Anunciada.

A questão constitucional    Começa bem o governo. Logo ao assumir, em 23 de novembro de 1891, Floriano procura restabelecer a ordem constitucional quebrada por Deodoro. Convoca, para o dia 18 de dezembro, o Congresso fechado por seu antecessor e acaba com o estado de sítio, restabelecendo todas as garantias constitucionais Mas, por outro lado, intervém no sistema federalista, depondo, em nome da ordem, quase todos os governadores de Estado que apoiaram Deodoro quando este decretou a dissolução do Congresso.    Criou, porém, outra crise institucional. O artigo 42 da nova Constituição determinava

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que, "se no caso de vaga, por qualquer causa, da Presidência ou vice-Presidência não houverem ainda decorridos dois anos do período presidencial, proceder-se-á a nova eleição". Floriano recusou-se a fazê-lo, alegando que a Constituição se referia a eleição presidencial pelo voto direto, sendo que Deodoro e ele foram eleitos em condições excepcionais, por voto indireto do parlamento. Com efeito, por um cochilo de redação, as Disposições Transitórias estabeleciam que a primeira eleição seria indireta e que "O Presidente e o vice-Presidente eleitos na forma deste artigo [por via indireta] ocuparão a Presidência e a vice-Presidência da República por quatro anos". Ora, Deodoro renunciou e Floriano não, permanecendo válido seu mandato. Eis o ardil utilizado. Sendo "vice" por todo o período de quatro anos, cabia a ele, Floriano, substituir o Presidente enquanto durasse sua ausência, ou seja, até o final do mandato.     Verificaram-se intensos e polêmicos debates, tanto na imprensa como no Congresso, ficando este com a responsabilidade de resolver a questão. Numa solução essencialmente política, o Congresso se manifestou favoravelmente à permanência de Floriano na presidência até o final do período. Essa solução foi defendida como saída pacífica para a crise, dado que, num clima de efervescência política, qualquer outra conclusão poderia trazer conseqüências funestas para a incipiente democracia brasileira. Para cumprir a Constituição, durante todo o mandato, Floriano se considerava "vice-Presidente, em substituição ao Presidente ausente".

Revolta da Armada (1892)    No dia 6 de abril de 1892, é lançado um manifesto, assinado por treze generais e almirantes, exigindo que Floriano convoque novas eleições, nos termos da Constituição. Entre os signatários, está o contra-almirante, Eduardo Wandenkolk, que nas eleições indiretas, teve de engolir a derrota, em favor do acordo de bastidores que entregou a vice-Presidência ao marechal Floriano. Paralelamente, ocorrem manifestações populares nas ruas do Rio de Janeiro, enquanto a imprensa incendeia os ânimos, alimentando a polêmica em torno de tão controvertida matéria. Floriano, então, apela à força bruta, reprimindo com energia os protestos de rua, decretando estado de sítio e colocando na indisponibilidade os oficiais

insubordinados, através de aposentadoria compulsória que os retirou do comando, solucionando, momentaneamente a crise. Não contente com a vitória, manda castigar severamente os envolvidos, deportando-os para as selvas inabitadas da Amazônia, e condenando-os a viver como bichos do mato, distantes da civilização. Não foram poupados jornalistas, homens de letras e até congressistas, que estavam protegidos com imunidades parlamentares. Entre estes se encontrava José do Patrocínio, o homem que se empenhou na libertação dos escravos e, depois, se entregou à causa republicana.    No ano seguinte, porém, o contra-almirante Custódio de Mello, ministro da Marinha, se desentende com o marechal e demite-se, sublevando grande parte da Armada, estacionada na baía da Guanabara, e recebendo reforços com o apoio do almirante Saldanha da Gama, em dezembro de 1893. Ambos tinham pretensões diferentes, já que Saldanha continuava monarquista mas, neste momento, a aliança convinha a um e outro. A seu lado, está também o almirante Wandenkolk que, por razões pessoais, desejava ver o marechal fora do poder. Felizmente para o marechal, a sublevação não atingiu o Exército, que permaneceu fiel ao governo, o qual contava ainda com o apoio da nova classe dominante na República, a oligarquia formada pelos ruralistas.    Como resposta imediata, Floriano ordenou à artilharia um contra-ataque que atingiu pesadamente os rebelados. Não encontrando maior receptividade no Rio de Janeiro e fracassando em sua tentativa de tomar a cidade, uma boa parte da Armada se retirou para o sul do país com o fim de reforçar a Revolução Federalista iniciada no Rio Grande no ano anterior. Desembarcou na cidade de Desterro, Santa Catarina (hoje, Florianópolis, em homenagem a Floriano) e procurou contato com os revolucionários gaúchos que, entretanto, não viram com bons olhos esse apoio inesperado e não solicitado. Enquanto isso, o Governo central consegue restabelecer sua frota, enviando-a também para o sul e sufocando a Revolta da Armada.

Revolução Federalista no Sul (1893)   A par com a eleição para a criação da Assembléia Nacional Constituinte, elegia-se, também os representantes que iriam cuidar de redigir, votar e promulgar, em seu Estado,

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a Constituição Estadual. Assim se fez, também, no Rio Grande do Sul e, em 14 de julho de 1891, exatamente na data do centenário da promulgação da Carta Magna da França, era proclamada a Constituição gaúcha, reproduzindo, quase na íntegra, o anteprojeto redigido por Júlio de Castilhos, com o auxílio de Assis Brasil e Ramiro Barcelos, com teor fortemente centralizador, concentrando grande parte dos poderes nas mãos do governador do Estado.    Com efeito, a partir desta data, o Governador passava a ser eleito por cinco anos, com direito a reeleição (mais tarde, Borges de Medeiros, usando deste dispositivo, ficou no poder por 28 anos). Além disso, podia governar por decreto e tinha a prerrogativa de nomear, ele próprio, o vice-Governador. Havia um legislativo, mas sua ação se restringia à elaboração e aprovação do orçamento.   Prevaleciam, pois, no Rio Grande, as idéias dos positivistas, aliados de um governo forte, centralizado e ditatorial. Assim, eleito governador, Júlio de Castilhos, nos seus 31 anos de idade e amigo do então Presidente Deodoro da Fonseca, passou a ser o mais jovem ditador no Brasil. Acontece que, à semelhança de seus vizinhos uruguaios, o Rio Grande do Sul possuía duas correntes políticas fortes e claramente definidas: de um lado os "blancos", republicanos, também conhecidos como "chimangos"; de outro, os "colorados", federalistas, também conhecidos como "maragatos". Júlio de Castilhos era um republicano e, com a Constituição que ele mesmo preparou, garantiu-se perpetuamente no poder, afastando a chance de seus opositores. Estava espalhada a semente da discórdia que levaria o Rio Grande do Sul a dois anos e meio de uma guerra sangrenta e fratricida.    A revolta explode em 1893 e os combates se espalham por todo o Estado. Enquanto isso, no Rio de Janeiro, sai Deodoro, entra Floriano. Este, pela lógica deveria aliar-se aos federalistas, contudo achou-os perigosos ao novo regime, por defenderem, ainda, ideais monarquistas. Assim, o novo Presidente optou por apoiar os republicanos, liderados pelo governador Júlio de Castilhos, apesar de este ser amigo de Deodoro e haver, tempos atrás, assumido posição contra a permanência de Floriano no poder. Política tem dessas coisas...

    No início de 1894, os federalistas avançam sobre Santa Catarina, seguem até a cidade de Desterro (Florianópolis) e vão se juntar aos revoltosos da Armada, que vieram do Rio de Janeiro (ver tópico anterior), seguindo depois para o Paraná, onde tomam a cidade de Curitiba. Não havia, porém, fôlego para continuar. Uma revolução, naquela época, com grande limitação de recursos técnicos, exigia quantidade apreciável de homens, por conseguinte, armamento e munição para todos eles, o que faltava aos revoltosos. Com prudência, então, recuaram, concentrando-se apenas no Rio Grande do Sul e mantendo sua posição até a saída de Floriano e a posse do novo Presidente, Prudente de Morais, que consegue um acordo honroso para ambas as partes.    O governo de Júlio de Castilhos saiu fortalecido com o apoio que recebeu de Prudente de Morais, ao mesmo tempo em que o Congresso Nacional, participando dessa obra de pacificação, votou a anistia total aos participantes do movimento revolucionário. Estava superada a crise, mas não permaneciam as divergências. Os "blancos" e os "colorados" tinham ideais quase irreconciliáveis e marcavam suas posições políticas até pela cor dos lenços que amarravam ao pescoço. Os mais fanáticos, cuidavam também da cor das roupas usadas em casa e pelos familiares. A propósito, comenta D. Alzira Vargas do Amaral Peixoto, em seu livro "Getúlio Vargas, meu Pai": "Comecei a observar em torno de mim e a fazer perguntas. Por que havia desespero e ódio em tantas fisionomias? Por que não podia cumprimentar certas pessoas? Por que janelas se fechavam silenciosamente e outras se abriam ostensivamente? Por que não podia usar vestidos de cor vermelha? Por que uma cidade pequena como São Borja se dava ao luxo de possuir dois clubes sociais? Por que só podíamos entrar em um e devíamos virar o rosto quando éramos obrigados a passar em frente ao outro? Por que somente uma parte da família de minha avó, do ramo Dornelles, tinha relações conosco? Por quê?"    Essa situação perdurou até 1928, quando Getúlio Vargas (um "blanco" casado com uma "colorada") assumiu o governo do Rio Grande do Sul e iniciou um processo de união entre as duas facções, mostrando que aquele Estado não conseguiria sair de suas

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fronteiras para abraçar o resto do país, enquanto se ocupasse inteiramente com lutas internas. Por fim, unidos os destinos, em 1930, Getúlio, um "blanco", colocou em seu pescoço um lenço vermelho e subiu com destino ao Rio de Janeiro para a derrubada do Presidente Washington Luís e a tomada do poder, no qual permaneceu 15 anos!

Consolidou-se a República    Os anos do governo Floriano foram difíceis para ele e, sem dúvida, muito mais difíceis para seus opositores, perseguidos sem trégua e castigados na forma da lei e muito além do que a lei permitia... Seu governo, longe de ser pacificador, foi um agente multiplicador de ódios, de tal maneira que a posse de Prudente de Morais, em 15 de novembro de 1894, trouxe a todos um alívio geral, mesmo com o conhecimento de que os dois eram amigos e correligionários. Floriano deixou uma terrível marca em sua passagem pela Presidência e os historiadores lhe reservam, no inferno, um apartamento perpétuo, sem ar condicionado. Todavia, foi o marechal tudo o que dele falam?    O processo histórico é extremamente lógico, não se guia por princípios de ética. Herói é o vencedor, subversivo é quem perde. E Floriano ganhou a luta, cumprindo seu objetivo, qual seja, o de consolidar a República, permitindo que os seus sucessores (à exceção do marechal Hermes) fossem todos civis e, até o fim da República Velha, a sociedade teve sua participação no governo, ainda que de forma limitada, representada pelas suas oligarquias. Mas o poder político-militar se manteve afastado durante esse período de quarenta anos. Ou se não afastado, pelo menos controlado em todas as tentativas para a retomada do poder.    Grupos interessados na perpetuação do regime forte, representado pelo marechal, até que tentaram mantê-lo no poder, gerando forte boataria, em meio à qual se realizaram as eleições. E mesmo depois de empossado o novo presidente da República, o primeiro eleito por voto direto, continuou a conspiração dos saudosistas, mais realistas que o rei, e que desejavam a volta do florianismo. A tudo Floriano assistia com desprezo, como conta Hélio Silva: "Quando, meses depois, um grupo de jovens oficiais da Escola Militar vai visitá-lo em seu retiro, na Fazenda Paraíso, na antiga Estação da Divisa, hoje município de

Deodoro, Estado do Rio de Janeiro e lhe dirige um apelo como a única esperança da República, Floriano sorri, respondendo com sua frase famosa e derradeira: ‘Eu sou um inválido da Pátria...’ Não sairá mais dali, até 29 de julho de 1895, quando termina sua vida."     O velho e bravo guerreiro não durou nove meses após sua última batalha, mais violenta que todas as outras de que participara na Guerra do Paraguai. E como naquela, conquistou a vitória, apesar da barbárie e das marcas de sangue e violência que deixou em sua passagem. Ao menos para ele, a missão estava cumprida. Descanse em paz.

* * *Capítulo Três

O CAMINHO DA PACIFICAÇÃOPrudente de Morais – 1894-1898

    Floriano Peixoto, o Presidente que está terminando seu mandato, e Prudente de Morais, o Presidente eleito e em vias de tomar posse, vieram do mesmo partido e até caminharam juntos nos primeiros tempos da República. Ambos haviam sido candidatos de oposição a Deodoro da Fonseca, nas eleições indiretas que se seguiram à promulgação da Constituição de 1891. Naquela época, todos se lembram, Prudente aceitou o sacrifício de ver queimada sua candidatura ao mais alto cargo da nação, para que se tornasse possível uma composição, elegendo Deodoro (Presidente) e Floriano (vice). Com todo esse passado de afinidades, o resultado das novas eleições presidenciais, dando vitória a Prudente, deveria despertar o maior entusiasmo nos gabinetes do Palácio Itamarati, onde se achava instalada a sede do governo federal.    Entretanto, nada disso aconteceu. Não era do feitio do marechal animar-se com qualquer acontecimento, por importante que fosse e, no caso da indicação do candidato governista, sua atitude foi de prevenção e desconfiança. Quando sondado por Francisco Glicério a respeito do nome de Prudente, o marechal fez sérias ponderações, alertando que uma vez no governo, Prudente se sentiria fortalecido para perseguir até os seus próprios companheiros de partido. Ainda assim, tranqüilizou o chefe republicano, dando sua garantia pessoal de que o eleito, quem quer que fosse, tomaria

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posse normalmente, em respeito à Constituição.    As eleições, efetivamente, se realizaram em 1º de março de 1894 e, conforme o previsto, ganhou o partido governista, com   Prudente de Morais, paulista, e Manuel Vitorino Pereira, baiano, respectivamente para Presidente e vice.  Embora assumindo o compromisso de garantir a posse, o que realmente fez,  Floriano não tomou qualquer iniciativa para facilitar a transição de governo, como costuma acontecer, até mesmo quando o eleito seja um adversário político, que não era o caso.

Deixaram Prudente sozinho   Nem o próprio eleito imaginava o caminho que teria de trilhar para assumir o cargo e iniciar o seu governo. A desfeita, ou grosseria, que seria o termo mais apropriado, começou em sua chegada ao Rio de Janeiro, por estrada de ferro, num significativo dia de Finados. Nenhuma comitiva oficial para recebê-lo, nem mesmo alguém que, isoladamente, se apresentasse em nome do governo. Nada. Apenas um amigo pessoal, que o ajudou a sair com a bagagem e chegar até o hotel. Mais tarde, um pedido de desculpas. Floriano estava doente e não pôde dar-lhe a atenção que merecia, mas o receberia em audiência quando quisesse. Prudente apressou- se, pois, a enviar um telegrama ao Chefe da Nação solicitando a prometida audiência, tendo como resposta o silêncio total e absoluto.    A posse se daria no dia 15 de novembro de 1894 e, desde a sua chegada ao Rio, foram duas semanas de isolamento. No dia 15, Prudente e o seu futuro Chefe de Polícia, André Cavalcanti, esperaram, sem sucesso, pela condução oficial, que não apareceu. Às pressas, alugaram uma carruagem, a única disponível no largo do Machado, toda velha e desconjuntada, e foi com isso que o novo Presidente chegou ao Palácio dos Arcos, onde o Congresso estava reunido para empossá-lo, na presença de representantes de vários países amigos, mas com a ausência notada do antecessor. Não houve, pois, a cerimônia tradicional de transmissão de faixa.    O representante da Inglaterra, presente à solenidade, percebeu de imediato a situação vexatória em que se encontrava o Presidente empossado e ofereceu-lhe a própria carruagem, luxuosa, para fazer o trajeto até a sede do Governo. Um piquete de alunos do

Colégio Militar, reunido às pressas, formou a escolta presidencial, emocionando o novo Presidente. Mas, no palácio, também, ninguém o esperava. As portas estavam abertas, à disposição do primeiro que chegasse.   Prudente, então, mandou chamar o chefe-geral da Diretoria dos Negócios do Interior, funcionário de carreira, o qual, no exercício de suas funções, ratificou os primeiros atos do Presidente, inclusive a nomeação do novo Ministro do Interior, com o que o Governo ficou legalmente constituído.    Contornando as dificuldades, mas já Presidente, organizou o seu ministério, que ficou assim constituído: Guerra, general Bernardo Vasques; Relações Exteriores, Carlos Augusto de Carvalho; Justiça, Interior e Instrução Pública, Antônio Gonçalves Ferreira; Viação e Obras Públicas, Antônio Olinto dos Santos Pires; Fazenda, Francisco de Paula Rodrigues Alves, conterrâneo e amigo fiel, que lhe foi útil, durante parte do governo, até ser substituído por Bernardino de Campos; Marinha, contra-almirante José Alves Barbosa.

Quem era Prudente de Morais   Prudente José de Morais e Barros, era descendente de uma família de ruralistas da cidade de Itu, onde nasceu em 1841. Embora pertencendo a uma família influente, o que lhe permitiria queimar etapas em sua carreira política, preferiu subir pelo próprio esforço, desde os primeiros degraus, elegendo-se à Câmara Municipal, aos 24 anos, após concluir o curso na Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1868, elege-se deputado pela Província de São Paulo pelo Partido Liberal (oposição ao Império).     Em 1873, com a fundação do Partido Republicano (ainda dentro do período Imperial), adere a essa nova legenda, passando a ser um propagandista e defensor do regime que viria a ser instalado em 1889. Assim, após a Proclamação da República, Deodoro nomeia-o Presidente do Estado de São Paulo. Realizando-se as eleições para a Constituinte, elege-se senador e torna-se o presidente do Senado. Perdeu as eleições indiretas à presidência da República, em 1891, para eleger-se, finalmente, por via direta, em 1894.    Com a instalação de seu governo é que, de fato, começa a influência da aristocracia rural, sobretudo de São Paulo, Minas Gerais

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e Rio de Janeiro, com destaque para os dois primeiros Estados, numa alternância de poder que deu origem à chamada política do "café com leite".    Observe-se que essa "dobradinha" referia-se à maior influência dos dois Estados na política nacional e não necessariamente à origem dos candidatos. Deodoro e Floriano eram de Alagoas; Hermes da Fonseca, do Rio Grande do Sul; Epitácio Pessoa, da Paraíba; Washington Luís, do Estado do Rio. Por São Paulo, tivemos Prudente de Morais, Campos Sales, Rodrigues Alves e Júlio Prestes, sendo que este último não chegou a tomar posse. Por Minas, os presidentes foram Afonso Pena, Venceslau Brás, Delfim Moreira e Artur Bernardes. Prudente de Morais era casado com dona Adelaide Benvinda da Silva Gordo, tendo oito filhos: Maria Amélia, Gustavo, Júlia, Prudente, Carlota, Antônio Prudente, Maria Teresa e Paula.

Anistia geral    Instalado o governo, o problema que se afigurava mais urgente era o da pacificação nacional. No Rio Grande do Sul, a luta entre as duas facções políticas continuava, ameaçando a unidade do país e até a sua soberania, pelo envolvimento indireto das potências vizinhas que, a qualquer pretexto, poderiam intervir, com consequências imprevisíveis, mas fáceis de imaginar, vivas que ainda estavam na memória as guerras cisplatinas e seu trágico desdobramento com a Guerra do Paraguai.     No Rio de Janeiro, a situação não era menos grave. Floriano Peixoto sobreviveu apenas alguns meses mais, após o término de seu governo, mas o florianismo estava vivo e atuante, incendiado por militares desejosos de um governo forte, no que eram acompanhados pelos positivistas, partidários da centralização de todo o poder nas mãos de um só homem. Uns e outros não eram muitos, no conjunto da população, mas conseguiam fazer barulho, o suficiente para aparentar uma certa força, criando instabilidade e dificultando a consolidação de um governo democrático, com o respeito devido à Constituição e aos poderes instituídos por ela. Havia, ainda os restauradores, com esperanças de restabelecer o Império, extinto há pouco mais de cinco anos e, portanto, mantendo-se ainda como uma ameaça em potencial.

    Urgia, pois, controlar as paixões, criar um ambiente de transigência e uma vontade nacional de buscar o entendimento, tarefa nada fácil, naquele turbilhão de idéias, aspirações e ambições, acrescidas ao regionalismo cerrado, que impedia aos rebeldes enxergar um palmo além das próprias fronteiras para contemplar a realidade de todo o conjunto do país. Iniciando a missão a que se havia proposto, já em 1º de janeiro de 1895, Prudente de Morais assina um decreto, indultando as praças do Exército e da Guarda Nacional que aderiram à revolta contra o governo Floriano. Tratava-se de um gesto de boa vontade para conseguir que os revolucionários, ainda em armas no sul, se dispusessem a negociar. Diga-se, a bem da verdade, que estes também já estavam cansados da guerra e esperavam por um fato novo que lhes desse uma saída honrosa para a entrega das armas.

Fim da Revolução Federalista    Para o Rio Grande do Sul, segue o general Francisco Moura, com instruções expressas de se manter afastado de Porto Alegre, evitando influências do governo estadual em seu trabalho, o que poderia comprometer a aproximação dos dois lados em conflito. Este preposto não obedeceu as ordens, insistindo em ficar na capital do Estado, e por isso foi substituído pelo general Inocêncio Galvão de Queirós, nomeado comandante da Região Militar, que instalou seu quartel general em Pelotas, ao sul do Estado e distante da capital, procurando atrair para lá os representantes de ambos partidos, a fim de tratar com eles as condições para a paz.    Já há algum tempo, o almirante Custódio de Melo, vencido na Revolta da Armada e levado até a Argentina por um navio de bandeira portuguesa, havia cruzado as fronteiras e se achava outra vez no Brasil, assumindo o comando da Revolução Federalista, mesmo a contragosto de alguns de seus chefes. Foi uma injeção de ânimo nos revoltosos, escondidos no Uruguai, os quais voltaram, reorganizando as frentes de ataque, sem, entretanto obter sucesso nas suas investidas guerrilheiras. Saldanha da Gama, com setecentos homens, entre guerrilheiros e desertores da Marinha, atravessa o rio Quaraí e põe-se em confronto com as tropas do general Hipólito Ribeiro, numa operação suicida, dado que as proporções em homens e armamentos eram

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altamente favoráveis às tropas legalistas que defendiam o governador Júlio de Castilhos. O resultado não podia ser mais trágico. Em 1º de junho de 1895, o almirante foi morto a lancetadas e teve seu corpo mutilado. Perdendo o comandante, seus homens foram facilmente dispersados, sem condições de se reorganizar.    Da outra parte, o governador Júlio de Castilhos, que, ao início havia manifestado seu desejo de chegar a um acordo, agora rompe com o general Galvão de Queirós, ao tomar conhecimento dos termos em que este colocava o armistício e que aquele considerava desonrosos para seu governo. Então, resolve o governador chamar para si a responsabilidade da pacificação e permite o retorno dos exilados, entre eles o líder dos primeiros momentos, Gaspar Silveira Martins.     Meses depois, em 11 de outubro de 1895, após prolongado e polêmico debate, com vários incidentes entre os parlamentares, o Congresso nacional vota um projeto de Campos Sales, concedendo anistia plena a todos os envolvidos em movimentos revolucionários, colocando fim à guerra que, desde há muito, vinha infelicitando o sul do país. Quanto ao Rio de Janeiro, a agitação prosseguia e tentava abalar os alicerces do governo, vindo a contar, mas tarde, até com a conivência do vice-presidente da República, Manuel Vitorino Pereira.

Questão com Portugal   Voltemos um pouco no tempo para relembrar o fim da Revolta da Armada, ainda no governo de Floriano Peixoto. Como se recorda, a forte reação do Exército, fiel ao governo federal, impediu o sucesso do movimento e uma parte da esquadra revoltosa se dirigiu ao sul a fim de unir-se ao movimento federalista, ficando uns poucos navios na baía da Guanabara, sendo estes facilmente dominados.    Na medida em que a tensão foi aumentando, alguns países mandaram navios para a baía, sob o pretexto de proteger seus cidadãos residentes no país. Inevitavelmente, passaram a ter um envolvimento claro e ameaçador no conflito. De um lado, se encontravam os Estados Unidos, que viam na República uma possibilidade de maior aproximação com o Brasil, ampliando, pois, sua área de influência nas Américas. Estes, por conseqüência, se colocavam favoráveis a Floriano. De outro, a Inglaterra, para a qual

seria preferível o retorno da monarquia, regime mais compatível com a Europa, facilitando a manutenção da hegemonia britânica que, desde 1807, se fazia bem visível no Brasil. Suas simpatias se voltavam, assim, para os revoltosos, que combatiam o governo republicano. Por último, estava presente Portugal, com quatro séculos de história ligados à nossa terra. Lembremo-nos, além do mais, de que o Brasil, por treze anos, abrigou a sede do reinado; em nosso país, por meio século governou um descendente da família imperial; e aqui, como é natural, se formou numerosa colônia lusitana. Assim, mais do que na defesa de seus cidadãos, foi nesse sentimento de irmandade que uma corveta portuguesa, ancorada na baía, abrigou o almirante Saldanha da Gama e outros combatentes vencidos no choque com as tropas legalistas.    Foi o bastante. Floriano, impassível, não conseguia ver no gesto, uma colaboração para pôr fim ao conflito, achando mais que se tratava de uma ingerência indevida de uma potência estrangeira nos negócios brasileiros. O comandante do navio argumentou com o sagrado direito de asilo, reconhecido por todos os países do mundo. Floriano retrucou, alegando que não se tratava de asilados, mas de insubmissos que deveriam ser entregues às autoridades brasileiras para julgamento e punição. As precárias condições de higiene do navio não permitiam manter a bordo, por muito tempo, essa população adicional e, para evitar o pior, o comandante mandou levantar âncoras e seguir para o sul, onde os asilados seriam desembarcados em um país vizinho.     Já Floriano achava que a intenção portuguesa era colocar os revoltosos perto da outra área de conflito, permitindo o engajamento dos revoltosos à Revolução Federalista, o que realmente acabou acontecendo. Floriano não teve dúvidas em romper relações com Portugal. Este era mais um assunto que Prudente de Morais, agora Presidente, tinha a resolver. Em março de 1895, quatro meses após a posse do novo governo, foram reatadas as relações com Portugal, ficando superado o incidente que, diga-se de passagem, podia de todo ter sido evitado.

Política internacional   Outros problemas envolvendo disputas territoriais preocuparam, ainda, o governo de Prudente, e foram resolvidos com a  

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participação do Barão do Rio Branco, habilidoso em tratar de assuntos internacionais. Entre eles se inclui a invasão da ilha da Trindade pelos ingleses, o caso do território de Missões e a questão do Amapá.    As ilhas da Trindade foram descobertas em 1501 pelo navegante português João da Nova e estiveram sempre incorporadas ao território brasileiro. Embora de terreno inóspito e impróprio para qualquer atividade produtiva, sua posição dentro do oceano Atlântico é estratégica e isso levou a Inglaterra a invadi-la, assumindo posse no ano de 1895. Sentindo-se ferido em sua soberania, o Brasil, representado pelo ministro do Exterior, Carlos de Carvalho, formalizou um protesto junto ao governo inglês, que não devolveu o território, nem aceitou qualquer proposta de arbitramento. Entrou no assunto, então, o governo português que realizou gestões a favor do Brasil, logrando bons resultados. Pelo Brasil, as tratativas foram levadas a efeito pelo Barão do Rio Branco.    Quanto ao território das Missões, as disputas vinham já desde o início do Século 19 e os inúmeros tratados assinados entre o Brasil e o Uruguai acabaram não sendo obedecidos, principalmente, porque as partes sempre deixaram de levar em conta os interesses dos espanhóis e portugueses residentes nas áreas de conflitos. Agora, o problema foi levado ao arbitramento do presidente dos Estados Unidos, Stephen Grover Cleveland, que em definitivo, considerou o território como sendo brasileiro.     Restava ainda uma área de litígio que era o Amapá, ocupada por brasileiros mas reivindicada pela França como parte integrante da Guiana Francesa. Os dois países recorreram, desta vez, ao arbitramento do presidente da Suíça e a defesa brilhante do Barão do Rio Branco deu convencimento de que as terras pertenciam ao Brasil, recebendo decisão favorável do presidente suíço.

O problema era o vice-Presidente   Em novembro de 1896, portanto, há um ano da posse, Prudente de Morais entregou o governo ao seu vice, enquanto convalescia de uma intervenção que sofreu para a retirada de cálculos renais e que o deixou mais enfraquecido do que seria natural para uma operação tão simples. O que se veio a saber mais tarde era que sua resistência estava minada, já, com os primeiros efeitos

de uma tuberculose, doença fatal, naqueles tempos em que não se dispunha de recursos técnicos, nem para o diagnóstico, nem para o tratamento.    Na forma constitucional, em 10 de novembro de 1896, assume Manoel Vitorino Pereira que, mesmo no exercício interino da presidência, achou por bem reformar o ministério e praticar atos administrativos mais consistentes, pois não havia uma previsão clara do tempo em que o titular ficaria afastado. Diplomaticamente, Bernardino de Campos, amigo de Prudente, obteve uma solução intermediária, conseguindo do governante provisório uma lista de candidatos possíveis, para ser submetida ao Presidente que, dentre os vários nomes, indicaria aqueles que desejaria ver no Ministério.     Vitorino era um opositor de Prudente, participando veladamente da agitação promovida por florianistas, positivistas e restauradores e via no afastamento temporário do Presidente a oportunidade para criar uma situação de fato que o levasse à renúncia, tal como havia acontecido com Deodoro no período anterior. Contava, para isso, com o apoio de uma expressiva parcela dos congressistas, com os quais se reuniu, apresentando seu programa de governo, e insistindo em que não seria possível ao país suportar uma paralisia mais demorada naqueles graves momentos da vida nacional.    Investido de sua missão, vai Bernardino à casa de Prudente. Não foi fácil o trabalho de convencer o Presidente a aceitar a proposta para trocar o ministério. O Presidente enfermo achava que o ato de seu substituto era uma traição que não podia ser aceita. Retrucou Bernardino que a negociação de um novo ministério era o melhor que se podia conseguir naquele momento e que a recusa daria aos seus inimigos o pretexto que estavam procurando para aplicar um golpe de estado. Disse mais que ele, Bernardino, fora convidado para ocupar a pasta da Fazenda, o que lhe permitia acompanhar os acontecimentos e estar atento a uma eventual conspiração. Só assim Prudente concordou em escolher, entre os nomes listados, os que achava melhores para o novo Ministério.    Cabe ponderar que, apesar de sua infidelidade, Vitorino não estava de todo errado quando insistia que era preciso assumir o governo na sua totalidade. Havia

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tarefas que exigiam inteira dedicação e total mobilidade e, entre elas, estavam os graves acontecimentos que se desenvolviam na Bahia.

Guerra de Canudos    Foi numa época bem distante que, nos sertões do nordeste brasileiro, onde o rio São Francisco separa os Estados de Pernambuco, Alagoas e Bahia, surgiu Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido simplesmente como Antônio Conselheiro, nascido em 1828 na pequena cidade de Quixeramobim, Ceará. Com mais de sessenta anos, “meio louco”, como registra a história oficial, encontra na extrema miséria da região, aliada a uma profunda ignorância do roceiro quanto às coisas mais rudimentares da vida, um campo propício para sua pregação política e religiosa. Suas idéias eram um emaranhado quase incompreensivel, misturando um catolicismo caboclo com a profecia da restauração do trono e a volta de D. Pedro II, que, a essa altura, já havia até falecido.    Era mais uma manifestação do sebastianismo que, séculos atrás, já tinha levado o próprio padre Vieira aos tribunais da Inquisição e que a tradição fez criar raízes profundas e perenes de norte a sul do Brasil, impressionando os homens mais simples, que nunca ouviram falar no rei D.Sebastião, mas que, respeitosos e atemorizados, esperavam o evento de acontecimentos fantásticos que revolucionariam suas próprias vidas. É nesse caldo de cultura que se desenvolvem as idéias de Antônio Conselheiro o qual, reunindo uma pequena multidão de ignorantes e desvalidos da sorte, convenceu-os a acompanha-lo na busca de um paraíso terrestre. Foi assim que, após longa peregrinação, fundaram a comunidade de Canudos ao nordeste da Bahia.    Uma análise superficial da situação já permitiria ao governador da Bahia, Luís Viana, perceber que esse punhado de fanáticos não se constituía em ameaça ao regime. Seu problema era a fome, a miséria, a desinstrução, a falta de perspectivas com relação ao futuro, a procura de um melhor porvir, já que o presente nada lhes oferecia. A própria pregação de Antônio Conselheiro sobre a restauração da monarquia era vaga, não tendo ele qualquer possibilidade de coordenar forças para uma ação prática. Era um problema social, não era um caso de polícia. Assim não pensou o governador, que

tratou de aniquilar sem demora aquele foco de revolta, contando com o apoio do novo governo federal, agora nas mãos do Presidente interino, Manuel Vitorino Pereira, também um baiano e com predisposição para o uso da força, como melhor argumento que o convencimento.    Se o governo contava com a força, os fanáticos contavam com sua suposta predestinação. As duas primeiras expedições que o governador enviou contra o arraial de Canudos, a partir de 1896, fracassaram. No ano seguinte, foi o governo federal que enviou tropas de reforços, que também foram aniquiladas. Alarmado com a situação, o governo central ordena ao Exército que prepare um contingente especial, com 6 mil homens que, finalmente, consegue tomar e arrasar o arraial, morrendo Antônio Conselheiro e, praticamente, toda a população. De 10 mil habitantes, aproximadamente,  ficaram vivos não mais que 400 prisioneiros, entre velhos, mulheres e crianças. Antônio Conselheiro teve a cabeça decepada e transformada em troféu. Essa última fase da guerra ocorreu já com Prudente de Morais de volta ao governo.    Da parte do governo, o saldo da guerra também foi estarrecedor. Mais de cinco mil homens morreram nas quatro investidas à cidadela. Os que voltaram, na sua maioria, tiveram que suportar não apenas as seqüelas da guerra, como o abandono das próprias autoridades.

Prudente reassume o governo    Aflito e angustiado com os rumos que iam tomando as coisas na Bahia, Prudente de Morais, ainda em casa, preocupava-se também com a conspiração em andamento para afastá-lo definitivamente do governo. Não teve dúvidas. No dia 4 de março de 1897, sem aviso prévio, apareceu no Palácio, não encontrando o vice. No uso de suas prerrogativas, simplesmente assumiu o governo e mandou entregar a Manuel Vitorino um comunicado de que cessara sua interinidade e que, desde aquele momento, ele não era mais o Presidente em exercício. Assim conta Helio Silva a chegada do Presidente: "À saída da estação, toma um carro de praça. A carruagem roda pela cidade, no passo tardo de suas velhas alimárias, no rumo do Catete. A sentinela, surpreendida, alerta a manhã de sol com sua clarinada estridente, chamando a guarda para a

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continência presidencial. Mas não é o vistoso landau da Presidência que entra, e sim um modesto fiacre de aluguel, descendo dele, magro e ereto, na verticalidade que o caracteriza, Prudente de Morais. Minutos depois, um cabo da guarda leva a Manuel Vitorino o ofício em que o presidente comunica haver reassumido o Governo."     Aparado, desta forma, o golpe em andamento, o próximo passo era resolver a crise na Bahia e acalmar os ânimos no Rio de Janeiro. Sobre Canudos, já fizemos o relato sucinto no tópico anterior. Quanto ao Rio de Janeiro, o retorno inesperado de Prudente ao Governo trouxe espanto, mas não arrefeceu os ânimos. Durante sua ausência, se formaram brigadas paramilitares com nomes patrióticos, como Brigada Tiradentes, ou Benjamin Constant ou Frei Caneca, ou Deodoro, ou Moreira Cesar. Prudente tinha dificuldades em contê-las. A todo momento, essas milícias fardadas apareciam nas ruas, sendo dissolvidas pela polícia, mas em pouco, voltavam à carga. O presidente se achava no ponto mais baixo de sua popularidade e a desordem parecia totalmente fora de controle, até que um trágico incidente veio reverter a situação.

Atentado   Em 5 de novembro de 1897, Prudente de Morais, em companhia de seu ministro da Guerra, marechal Carlos Machado Bittencourt, vai ao cais do porto para receber, em pessoa, alguns batalhões que voltavam da guerra de Canudos. Em certo momento, repentinamente, um anspeçada [soldado, aspirante a cabo] aponta uma pistola ao Presidente mas a arma falha no tiro. Então, o ministro da Guerra e mais o coronel Mendes de Morais tentam dominar o rebelde, mas, na luta que se segue, o soldado consegue sacar um punhal, atingindo mortalmente o general Bittencourt.     A tragédia comoveu a cidade do Rio de Janeiro e a imprensa, que se voltaram, quase unânimes, no apoio ao Governo e ao restabelecimento da ordem. Com o assentimento do Congresso, foi decretado o estado de sítio. Calam-se os jornais, desaparecem as milícias. Passeatas se fazem nas ruas, mas, desta vez para dar apoio ao Governo. Alguns políticos da oposição, como o deputado Pinheiro Machado, são presos, ignorando-se novamente a imunidade parlamentar. Francisco Glicério (que indicou Prudente

como candidato em 1894) teve de fugir para São Paulo, onde permaneceu escondido. Manuel Vitorino é denunciado à Justiça. Fecha-se o Clube Militar.     O atentado de 5 de novembro deu ao Presidente os poderes extraordinários de que ele necessitava para ficar acima dos conspiradores e dispor de instrumentos que possibilitassem o esmagamento total do golpe em andamento. A cidade, antes em polvorosa, voltou à paz. Os correligionários rebeldes reaproximam-se do presidente. O Exército, extremamente sensibilizado com a morte do marechal Bittencourt, tomou medidas rígidas para restabelecer a disciplina na sua forma mais ortodoxa, livre da contaminação política e voltando-se exclusivamente para suas atividades profissionais. A última etapa da pacificação nacional teve um preço alto, com o sacrifício de um dos mais valiosos auxiliares do Presidente, mas, finalmente, esse trabalho estava terminado. O país voltou à paz e à ordem. Restava, agora, cuidar das finanças públicas, mas isso é tarefa que só o próximo governo conseguirá realizar. A missão a que se propôs o Presidente estava cumprida. Prudente de Morais termina seu mandato e volta para Piracicaba, onde morre, em 3 de dezembro de 1902, vitimado pela tuberculose que o atingira e que foi o ponto inicial de todo o drama por que atravessou o país durante o seu governo.

* * *Capítulo Quatro

RECUPERAÇÃO FINANCEIRACampos Sales – 1898-1902

    Passada a turbulência que se seguiu à Proclamação da República, e serenados os ânimos, após o governo de Prudente de Morais, o Brasil tinha seu acerto a fazer com a comunidade financeira, uma decisão que estava sendo protelada desde os tempos do Império.     Com efeito, a Guerra do Paraguai exigiu enormes gastos com a formação e deslocamento de tropas, com a compra de material bélico, com a construção de navios para reforçar a Armada. Passada a guerra, as despesas tiveram de continuar, para permitir recomposição da vida nacional, após a desmobilização das tropas, e para resolver os problemas de um batalhão de mutilados ou de portadores de outras seqüelas

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deixadas pelas condições da vida em campanha. Os gabinetes que se seguiram, até o último deles, chefiado pelo Visconde de Ouro Preto, só fizeram piorar a situação.      A República recebeu do Império essas pesada herança e, como se não lhe bastasse tudo isso,  meteu-se na malfadada experiência do encilhamento, que descontrolou definitivamente a economia do país. O plano de Rui Barbosa, ministro da Fazenda do Governo Provisório, até que era simples e, pelo que diziam, até já tinha dado certo em outros países, como na vizinha Argentina. Primeiro, ignora-se o padrão monetário, que tem o ouro como lastro. Segundo, emite-se a descoberto uma certa soma de dinheiro, colocando-o na praça sob a forma de empréstimos para a criação e fomento de novas empresas, capazes de produzir riqueza. Terceiro, a riqueza gerada equilibra a oferta e a procura, permitindo a recomposição do padrão monetário e, como num passe de mágica, o país se enriquece e se solidifica, permitindo o reinício do círculo vicioso, já ampliado na forma de uma espiral. Como o coelho surgiu da cartola vazia, isso ninguém se preocupou em perguntar. Então, o sonho virou pesadelo. O empréstimo fácil gerou empreendimentos igualmente fáceis e mal estruturados, que jamais poderiam dar certo. Os bem intencionados se puseram em aventuras fantásticas, cujos resultados ficaram longe do retorno esperado. Os mal intencionados (e quantos!) se aproveitaram da situação para projetar empresas fantasmas ou para especular na Bolsa de Valores. Na hora da verdade, as empresas não produziram e os negócios mirabolantes estouraram tal qual uma bolha de sabão. Caiu a Bolsa e desequilibrou-se o mercado, gerando uma espiral inflacionária, com a desvalorização da moeda interna e o aumento da dívida externa do país.    O governo de Floriano Peixoto, que se seguiu a Deodoro, não pôde deter-se no problema, pois havia uma questão emergente a resolver, qual seja, o restabelecimento da ordem pública, que ameaçava a estabilidade do regime. Se por um lado obteve sucesso, agindo com mão de ferro para aplacar a rebeldia, por outro, gerou ódios contra o poder constituído, entregando ao sucessor uma panela de pressão entupida e pronta para explodir.

Prudente de Morais também não pôde cuidar da dívida externa, pois cabia a ele outra tarefa, ainda mais importante, qual seja, a de desobstruir as válvulas desse enorme caldeirão, cuidando de promover a pacificação nacional. Assim, ficou para Campos Sales, o quarto Presidente do Brasil, a missão de atacar os problemas econômico-financeiros que afligiam o país e impediam o seu desenvolvimento.

Quem era Campos Sales    Manuel Ferraz de Campos Sales nasceu em Campinas, no ano de 1841. Formou-se em Direito na Faculdade do largo de São Francisco, elegendo-se deputado provincial em 1867. Era um republicano histórico, tendo promovido e participado da organização do Partido Republicano que, por um quarto de século, marcou sua presença no parlamento do Império, vindo a se tornar, a partir de 1889, na principal vertente política da República. Em 1885, elege-se deputado federal e, em 1889, integra o ministério de Deodoro, ocupando a pasta da Justiça. Em 1896, torna-se presidente do Estado de São Paulo mas, já no ano seguinte, se desemcompatibiliza, para atender o chamado do partido, candidatando-se à presidência da República.    Eleito, passa a ser o quarto presidente do Brasil e o segundo indicado por São Paulo, representando os interesses da aristocracia rural paulista e mineira. Assim, ao mesmo tempo em que manteve um favorecimento à agricultura, com protecionismo e com uma política de valorização do café, por outro lado, colocou em segundo plano o setor industrial, que sobreviveu à custa de muitos sacrifícios, sofrendo violentamente o impacto da política de estabilização financeira do país.     A opinião de Campos Sales se traduz na declaração de que o Brasil tem uma vocação voltada para a agricultura, devendo dedicar-se àquilo que sabe fazer, e importando tudo o mais. Esse preconceito prevaleceu até o governo de Juscelino Kubitschek (1955-1960), quando um plano de desenvolvimento pôs a indústria nacional em seu lugar merecido. Até então, a expressão "indústria brasileira" era sinônimo de produto de segunda categoria. Casou-se com Ana Gabriela de Campos Sales e teve dez filhos: Adélia, Vítor, José Maria, Maria Luísa, Helena, Manuel, Sofia

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(morta aos dez meses de idade), Leonor, Sofia e Paulo.

O desafio da proposta orçamentária   O orçamento proposto pelo Congresso para o ano de 1898 apresentava um quadro sombrio da situação financeira. Mesmo limitando-se à previsão das despesas essenciais de governo, deixando de lado a pretensão ao desenvolvimento, ainda restava um déficit de cinco milhões de libras esterlinas (cerca de 60 milhões de dólares). Transcorriam negociações para a venda de uma parte de nossa esquadra para os Estados Unidos, que, na época, estavam em guerra com a Espanha, pela libertação de Cuba. Admitindo-se que esse negócio pudesse render  um milhão de libras, teríamos ainda de buscar no mercado financeiro internacional outros quatro milhões para fechar as contas, operação quase impossível, em face da desconfiança dos banqueiros com relação à capacidade do Brasil em saldar os compromissos de uma nova dívida.    Foi do próprio Campos Sales a idéia de fazer uma viagem à Europa, como Presidente eleito, para sondar a receptividade de nossos credores quanto ao estabelecimento de um “funding loan” [contrato de consolidação de dívida] renegociando os débitos já contraídos e fazendo um novo empréstimo para enfrentar o déficit orçamentário. Embora difícil, não era de todo impossível sensibilizar os banqueiros, aos quais não interessava uma situação de insolvência do país, pois isso dificultaria o recebimento dos atrasados e ainda colocaria em sério risco o intercâmbio comercial e abalaria os investimentos estrangeiros já realizados no Brasil. Ademais, esse tipo de solução já havia contemplado a Argentina, a mesma que, ao tempo do encilhamento, se dizia ter encontrado sucesso na ciranda financeira. Pois a Argentina não só teve de refinanciar sua dívida externa como, mais tarde, ainda denunciou o contrato assinado pelo governo anterior, conseguindo um adendo com a redução dos juros inicialmente previstos. Prudente de Morais, em fim de mandato, já pensava mesmo em enviar um emissário ao velho continente e o oferecimento de Campos Sales veio a calhar, não só pela sua capacidade e habilidade de negociador, mas também pela autoridade que lhe dava a  condição de Presidente eleito. Era ele que

pretendia negociar a dívida, e era ele mesmo que deveria tirar o país de seu estado de insolvência, criando condições para o pagamento de um novo débito consolidado.

Viagem e negociações   Em abril de 1898, um mês após sua eleição, parte Campos Sales para a Europa, visitando Paris e depois Londres, encontrando receptividade à proposta de uma renegociação. Essa vinha sendo também a idéia dos credores, aos quais uma concordata, em último caso, seria melhor que o estado de total bancarrota. Uma minuta de contrato para o “funding loan” já se achava até preparada, nas mãos dos credores e, em cima dela é que se desenvolveram as negociações.     Como início, o Banco Rothschild oferecia um empréstimo de emergência de 10 milhões de libras, exigindo como garantia todas as rendas alfandegárias, mais as receitas da Estrada de Ferro Central do Brasil e do serviço de abastecimento de água do Rio de Janeiro. Em contrapartida, o Brasil deveria retirar do mercado e incinerar igual quantidade de moeda brasileira, considerando a taxa de conversão do dia. Os bancos credores organizariam um trust [coligação para uma ação conjunta] e fariam a moratória da dívida consolidada até que o empréstimo de emergência fosse pago, comprometendo-se o Brasil a não recorrer a novos saques financiados enquanto durasse a moratória.    A solução proposta interessava a Prudente de Morais, que se vexava em passar ao sucessor um país em estado pré-falimentar. Interessava também a Campos Sales, que, assim, assumiria o governo com um problema não resolvido mas, pelo menos encaminhado para uma solução, a qual, já se sabia, viria a custar um enorme sacrifício à nação. Apesar da tragédia social proporcionada por qualquer ajuste feito com seriedade, era do temperamento do novo presidente o ataque frontal aos problemas, dispensando soluções de fachada. Não ignorava ele que, com o aperto financeiro, o maior sacrifício seria exigido daqueles que menos tem a dar, transformando o empobrecimento em miséria, e tornando a miséria em indigência. Mas não havia outro caminho possível para restabelecer a saúde financeira do país.

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Implicações políticas    O medo da doença acaba levando as pessoas a aceitar, mesmo a contragosto, o remédio amargo e as restrições que o médico lhes impõe. Pelo menos era o que pensava o novo Presidente, empossado em 15 de novembro de 1898. Assim, ao formar o seu Ministério, esperava contar com a submissão da sociedade à nova emergência e descartou as indicações políticas, dando ao seu gabinete uma característica puramente técnica. Foram escolhidos os seguintes nomes: Guerra, marechal João Nepomuceno de Medeiros Mallet; Relações Exteriores, Olinto de Magalhães; Justiça, Interior e Instrução Pública, Epitácio da Silva Pessoa; Viação e Obras Públicas, Severino dos Santos Vieira; Marinha. almirante Carlos Baltazar da Silveira.    O novo Presidente introduziu em seu governo outra modificação que deveria ter acontecido desde os tempos de Deodoro: determinou que, doravante, todos os despachos com os ministros seriam feitos isoladamente, acabando de vez com as reuniões coletivas do Ministério. É até curioso que essa medida não houvera sido tomada pelos governos anteriores. Em 1889 o regime passou a ser republicano e presidencialista, mas as reuniões com os ministros continuaram a parecer mais as de um gabinete   parlamentarista. O Presidente sentava-se à cabeceira de uma grande mesa, com os ministros à sua volta, participando eles de todas as discussões e influindo naquelas decisões que em nada diziam respeito à sua pasta. Campos Sales, afinal, assumiu a postura de um governo presidencialista, reafirmando sua prerrogativa de admitir e demitir ministros, de tratar com cada um os problemas da respectiva pasta, e de assumir o bônus ou o ônus pelas decisões.    Ao contrário do que esperava, porém, o novo Ministério não foi bem aceito. Reservas se faziam principalmente com relação aos dois ministros militares, general Mallet e almirante Baltazar. Dentro do Exército houve pressão, dentre os mais graduados, para a substituição de ambos os nomes por outros de maior confiança da alta oficialidade. Era o florianismo, ainda presente nos quartéis. Ainda no seio militar, surgiram restrições ao nome de Epitácio Pessoa, acusado de ser antiflorianista e antimilitarista, sendo seu nome vetado, apesar de tratar-se de  uma

pasta de natureza civil. Campos Sales, porém, estava determinado a aplicar rigidamente o princípio presidencialista, segundo o qual quem governa e escolhe seus ministros é o Presidente.

Anos de vacas magras   E começaram os tempos difíceis. Em janeiro de 1899, dois meses após a posse, o governo teve de cumprir uma das cláusulas contratuais do “funding loan”, que era a retirada de circulação de papel moeda no valor do empréstimo de emergência, para incineração, evitando que tal empréstimo viesse a ser um dinheiro a mais para realimentar a inflação. O programa incluía também o aumento de impostos, sempre recebido com descontentamento geral. Havia ainda o aumento de taxas aduaneiras e outras, uma forma indireta de se retirar o dinheiro da circulação. O universo de contribuintes foi aumentado com a taxação de todas as fontes visíveis de produção e trabalho.     Era a deflação que chegava, abalando o comércio e o crédito, bem como onerando nossos dois principais produtos de exportação, o café no sudeste, e a borracha, que ainda era uma fonte de sustentação da economia no norte do país. Vieram as falências de empresas até então respeitáveis. O próprio Banco da República, restringida sua capacidade de emissão de moeda, viu-se em dificuldades financeiras, suspendendo pagamentos e criando pânico na praça. Parecia o fim do mundo que chegava, naquele sombrio final de século.

O "coronelismo" a serviço do país   Maquiavel, político, historiador e filósofo (1469-1527) sustentava a tese de que os políticos devem ter em mente, objetivamente, os fins a atingir, colocando em segundo plano os preconceitos de ordem moral, já que a eles foi dada a tremenda responsabilidade de apresentar resultados que contemplem o bem estar do povo sob seu governo. É certo que o pensador florentino sempre teve seus discípulos no Brasil, ainda que não se confessassem como tal.    Em efetivo, o próprio Campos Sales, no objetivo nobre de criar raízes nos Estados brasileiros, deu uma ajeitada na Constituição brasileira, criando uma Comissão Verificadora, com poderes para alterar, à vista de todos, os resultados consagrados nas urnas.

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    Para entender melhor o assunto, voltemos aos tempos do Império, mais precisamente ao período regencial, quando foram criadas as Guardas Nacionais. Diferentemente do Exército, que tem seu corpo efetivo e profissional, as Guardas se apoiavam nas polícias militares dos municípios, organizadas e mantidas pelos latifundiários, que as usavam, como é natural, para a defesa de seus próprios conceitos de ordem pública. Essas guardas foram incorporadas à Guarda Nacional e os latifundiários que as controlavam receberam a patente de “coronel”. Foi a origem dos “coronéis” do sertão, e de sua política de ação, que passou a ser conhecida como coronelismo e que, até os dias de hoje, se faz presente na vida nacional.    Não nos apressemos a condenar os governos regenciais por essa arbitrariedade. Na ausência de um policiamento eficaz e centralizado, o coronelismo simbolizava a ordem pública e o “coronel”, descontados os abusos sempre cometidos, era a garantia de estabilidade social, contra a desordem que se instalaria por todo país se não existisse essa figura de autoridade. Não demorou que o coronelismo se consolidasse, também, como uma força política, influindo nos destinos de sua cidade e, se possível, no destino de seu Estado. Pois era essa força emergente que Campos Sales pretendia usar, prestigiando a autoridade estadual e trazendo o apoio dos Governadores ao governo central.

Comissão de Reconhecimentode Poderes

    Foi nessa intenção, pois, que o presidente da República criou a Comissão de Reconhecimento de Poderes, com objetivo simples e claro de fortalecer os poderes estaduais. Essa Comissão se reuniria logo após as eleições, antes da diplomação dos eleitos, e sua missão era a de filtrar os nomes escolhidos pelo eleitorado, dando às bancadas de cada Estado a feição do Governador eleito, ou seja, representando os “coronéis” que, naquele Estado e naquele momento, eram o símbolo da ordem política e social.    A Comissão era formada pelo presidente da Câmara Federal da legislatura anterior e por mais três deputados por ele mesmo escolhidos. Tinha como objetivo examinar a lista dos candidatos que receberam maior votação, riscando dessa relação todos os

inimigos políticos do Governador de seu Estado que, por serem adversários, poderiam dificultar os atos administrativos do governo estadual, prejudicando, em conseqüência, o conjunto da população. Os que não estivessem sintonizados com o Governador de seu Estado, simplesmente eram impedidos de tomar posse, sendo substituídos por outros mais afinados com a administração.    Em contrapartida, os governadores eleitos se propunham apoiar irrestritamente o presidente da  República em todos os seus atos, garantindo a execução das decisões federais em seus respectivos Estados, sem contestação. Era uma política de compadres, um acordo espúrio que fraudava a vontade das urnas, e que recebeu a denominação de Política dos Governadores. Moral à parte, como aconselhava Maquiavel, o princípio fortaleceu os governos estaduais e, por tabela, criou um governo central forte e autoritário, capaz de enfrentar a oposição às duras medidas de ordem econômica, necessárias para vencer a crise financeira.

Fim de Governo   Com o artifício da Comissão Verificadora e com a firmeza na aplicação das medidas solicitadas para tirar o país do lodaçal em que estava atolado, Campos Sales chega ao fim de seu mandato com economia do país plenamente restabelecida e com as finanças em ordem o suficiente para permitir ao seu sucessor um governo de desenvolvimento.    Conquistou tudo o Presidente, menos a simpatia popular. Campos Sales terminou seu governo com o menor índice de popularidade jamais registrado pelos seus antecessores, fato que os jornais de oposição faziam questão de alardear,  e que a população do Rio de Janeiro não fez por esconder.    No dia 15 de novembro de 1902, a faixa presidencial é transferida para o novo Presidente, Rodrigues Alves, e Campos Sales se retira com a consciência tranqüila de um dever cumprido. Mas. no trajeto, desde o palácio presidencial, até a estação da Central do Brasil, onde tomaria o trem de volta para São Paulo, nos dois lados das ruas, uma multidão se comprimia fazendo-se ouvir uma estridente vaia que, pela voz do Rio de Janeiro, representava sentimento do povo de todo o Brasil. O historiador José Maria Bello sintetiza a passagem de Campos Sales pela Presidência:

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"Depois de um longo e penoso sacrifício exigido da comunidade brasileira, transmitia ao seu sucessor uma casa em ordem, com a escrita equilibrada. Degradara-se ainda mais a política republicana, com a Política dos Governadores; aviltara-se a significação democrática do Parlamento; diluíam-se as derradeiras esperanças no livre jogo das instituições representativas; o seu confessado suborno a imprensa, como que oficializara a corrupção jornalística; à sombra de seu plano de extrema deflação monetária, tinham feito excelentes negócios banqueiros e especuladores estrangeiros e nacionais. No entanto, ao seu saldo, levava Campos Sales a sua perfeita probidade pessoal, a sua tolerância e a firmeza com que respeitara os seus compromissos de governo. Sem os seus quatro anos de compressão fiscal, seria muito difícil a Rodrigues Alves iniciar um grande programa de obras públicas."        Quem não conhece a História, está fadado a repeti-la, é o que diz a voz popular. E alguns acrescentam que está fadado a repeti-la, sim, mas em tom de farsa. Viu como o estudo da História do Brasil é importante para o conhecimento atual do país em que vivemos?    Só para fechar este capítulo. Campos Sales voltou para São Paulo, onde grupos adrede preparados se concentravam para aplaudi-lo. Em 1905, estudantes da Faculdade de Direito tentaram articular, sem sucesso a sua volta à presidência da República. Não fez fortuna na presidência, embora outros tantos tenham enriquecido com suas medidas de contenção. Em 1909, voltou à política, como senador e foi no exercício desse cargo que a morte veio encontrá-lo para dar-lhe o descanso final, no ano de 1913.

* * *Capítulo Cinco

SANEAMENTO E DESENVOLVIMENTO

Rodrigues Alves – 1902-1906

   Um grande mal, que assolava o Brasil republicano, era a ausência de partidos fortes, que tivessem um contingente eleitoral capaz de se fazer representar com energia e eficácia, de norte a sul do país. Com o surgimento da República, e facilitados pela nova Constituição, fundaram-se partidos estaduais que se coligavam para participar

de pleitos nacionais, mas sem perder sua face provinciana. Francisco Glicério até tentou reunir todas essas forças numa grande corrente de união nacional, fundando o PRF-Partido Republicano Federal, que elegeu Prudente de Morais e Campos Sales, mas, tirando-se dele o envólucro federalista, por dentro permaneciam as mesmas correntes estaduais com as quais se tinha de negociar para eleger um Presidente da República.    Aproveitando-se dessa inexistência de unidade partidária, Campos Sales criou uma força política sob o comando do governo central e representada pela Política dos Governadores, já vista no capítulo anterior, mas que sempre é oportuno recapitular. O artifício consistia em nomear uma Comissão de Verificação, que analisava os nomes de todos os deputados eleitos, descartando aqueles que faziam oposição em seu próprio Estado, e substituindo-os por suplentes que rezavam pela cartilha do Governador de plantão. Com isso, fortalecia-se os governos estaduais que, em reciprocidade, apoiavam, com restrições mínimas, os atos do governo federal. A unidade nacional, polarizada em torno do presidente da República, supria a lacuna deixada pela fraqueza dos partidos, criando-se, assim, um quarto poder, inconstitucional mas efetivo, que lembrava muito o Poder Moderador dos tempos do Império. Assim, aproximando-se o fim do mandato de Campos Sales, com esse poderoso instrumento nas mãos, foi ele que assumiu a tarefa de coordenar sua própria sucessão, dentro do partido governista.

Candidatos em penca   Muitos eram os postulantes à candidatura presidencial dentro da ala governista, todos apresentando suas credenciais de republicanos históricos, os que, de longa data firmaram sua posição a favor da República e, por fazerem oposição ao Império, não usufruíram, naquela época, as vantagens proporcionadas pelo poder. Proclamada a República, foram vozes destacadas na defesa do novo Regime e, nessa condição, se julgavam aptos a pleitear a homologação de sua candidatura.    Entre eles, estavam Quintino Bocaiuva, presidente do Estado do Rio de Janeiro, Francisco Silviano Brandão, presidente de Minas Gerais, Bernardino de Campos, um fiel amigo e colaborador do governo de Prudente de Morais, Rui Barbosa, ilustre jurista,

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responsável pelo texto final do anteprojeto da Constituição de 1891 e José Gomes Pinheiro Machado, correligionário do presidente do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos, um nome que vinha se projetando na política nacional.    Com o poder decisão em suas mãos, o presidente da República examinou todos os nomes propostos, descartando-os um a um, sempre no objetivo de encontrar um candidato de consenso entre os governadores. Quintino Bocaiúva não tinha sido feliz em seu governo e o Estado do Rio se achava em estado pré-falimentar; Silviano Brandão não encontrava muita ressonância em alguns Estados, sendo entretanto um bom nome para compor a chapa como vice, representando a aristocracia mineira; Bernardino seria uma boa escolha, porém, seu espírito independente e resoluto ameaçava a política de austeridade que marcou o governo Campos Sales, e que tanto sacrifício custou à nação; Rui Barbosa tinha tudo a seu favor, mas lhe faltava projeção política junto aos governadores, cuja atuação, como vimos, era fundamental para o sucesso da nova política. O mesmo acontecia com Pinheiro Machado, excessivamente regionalista.

Consenso e eleições   Em seu gabinete, silenciosamente, Campos Sales costurava uma outra aliança, que apontava para outro nome, fora do círculo dos intitulados republicanos históricos. Era o presidente do Estado de São Paulo, Rodrigues Alves, um político que desenvolveu sua carreira dentro da monarquia e que só aderiu à causa republicana no último momento, quando percebeu que o Império vivia seus últimos dias, uma evidência que naquela altura, já havia sido constatada até pelo Imperador. Contra seu nome, levantaram-se vozes consagradas da política paulista, como as de Prudente de Morais, Adolfo Gordo, Cerqueira Cesar, Júlio de Mesquita e Alfredo Pujol, os quais, juntamente com outros próceres paulistas, lançaram dois manifestos contra o candidato escolhido pelo governo central. Todavia, esses protestos não ultrapassaram as divisas do Estado, sinal de que, como previra Campos Sales, o nome apresentado estaria recebendo um apoio quase unânime dos governadores.    Dentro da chamada política do café com leite, foram, pois, lançadas as candidaturas

do paulista Rodrigues Alves, para presidente, e do mineiro Silviano Brandão para vice, ambos eleitos em 1º de março de 1902. Quis o destino que Silviano Brandão morresse antes da posse. Com esse imprevisto, Rodrigues Alves tomou posse sozinho, no dia 15 de novembro de 1902, e um novo vice foi eleito em 18 de fevereiro de 1903, recaindo a escolha sobre outro mineiro, Afonso Pena, ex-deputado e ex-presidente de Minas Gerais.

Quem era Rodrigues Alves    O Conselheiro Francisco de Paula Rodrigues Alves nasceu em Guaratinguetá no ano de 1848 e pertencia a uma família de latifundiários. Completou os estudos de 2º grau no Colégio Pedro 2º, sendo colega de turma de Joaquim Nabuco. Na Faculdade de Direito de São Paulo teve forte liderança entre seus pares, escreveu artigos para vários jornais da época e chegou a dirigir um deles, do Partido Conservador em São Paulo. Já formado em direito, acabou ingressando nesse partido, deixando a banca para dedicar-se exclusivamente à política.     Embora pertencendo à ala conservadora, tinha idéias avançadas. Em 1872, como deputado provincial, apresentou um projeto que estabelecia o ensino público, obrigatório e gratuito, para o primeiro grau, provocando um saudável debate em torno do assunto. Em 1887 era deputado federal e tinha seu nome indicado para Presidente de São Paulo, ganhando as eleições. Quando governador, já fervilhava o ambiente, agitado pela causa abolicionista. As opiniões se dividiam e os conflitos mais exaltados entre defensores do abolicionismo e do escravagismo eram reprimidos com energia pelo novo presidente da Província. De sua parte, embora freando os excessos, Rodrigues Alves se confessava abolicionista, mas defendia uma política gradual para a extinção do trabalho escravo, como, aliás, já vinha sendo adotada pelo Império.    Sua presença política era constante e notável. Por duas vezes foi ministro da Fazenda, por duas vezes ocupou o Senado Federal, fez parte da Assembléia Constituinte e, em 1902, já no período republicano, voltou ao governo do Estado de São Paulo. A princesa Isabel, quando regente do Império, concedeu-lhe o título de Conselheiro, que ficou como que incorporado ao seu nome próprio. Essa designação lhe cabia muito bem e fazia jus ao seu temperamento

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"discreto, sereno, liberal e sincero, mais atento à realidade das doutrinas, austero e respeitável, sabendo sobrepor os interesses públicos aos partidários ou particulares."    Empossado, tornou-se o quinto presidente da República. Originário da aristocracia rural e proprietário de fazendas de café, encarnava bem a política agrária imposta por São Paulo e Minas Gerais, embora com uma visão bem mais ampla dos problemas nacionais. Seu casamento com dona Ana Guilhermina de Oliveira Borges deu-lhe onze filhos: Maria (morta com um ano de idade). Guilhermina (morta aos dois anos), Francisco, Ana, Maria, Oscar, José, Celina, Zaíra. Guilherme e Isabel.

Ministério   Tal como seu antecessor, Rodrigues Alves dispensou a participação política na organização de seu ministério, preferindo escolher pessoalmente cada nome, seguindo critérios estritamente técnicos. Mas, ao contrário de Campos Sales, era sua intenção dar maior mobilidade aos ministros, fixando linhas gerais e deixando aos seus auxiliares uma ampla liberdade de decisão.     O governo se iniciou com o seguinte Ministério: Relações Exteriores, José Joaquim Seabra (J.J.Seabra), que o exerceu interinamente até a nomeação subsequente do Barão do Rio Branco;   Justiça, Interior e Instrução Pública,  Felix Gaspar de Barros e Almeida;  Fazenda,  José Leopoldo de Bulhões Jardim;   Viação e Obras Públicas,  general Lauro Severiano Müller, ex-governador de Santa Catarina;  Guerra,  marechal Francisco de Paula Argollo;  Marinha,  contra-almirante Júlio Cesar de Noronha.    É preciso dar um destaque especial para a nomeação do engenheiro Francisco Pereira Passos para prefeito do Distrito Federal, pois sua atuação foi muito importante dentro do projeto de saneamento e desenvolvimento dessa cidade.

Rio, uma cidade doente   Quem conhece a cidade do Rio de Janeiro hoje, com toda sua pujança e beleza, inscrita entre as primeiras no roteiro turístico internacional, nem sequer imagina o estado deplorável de abandono em que ela se achava no início do Século 20, a despeito de ter abrigado o reinado e de ser a sede do governo presidencial republicano. Suas ruas eram estreitas e sujas. Os casarões, velhos e

mal construídos, se transformaram em grandes cortiços, onde se apinhava a população carioca, num ambiente de promiscuidade e sem qualquer preocupação com a higiene. Aos donos de tais cortições, o objetivo principal era arrancar o dinheiro que pudessem, trazendo retorno rápido ao investimento, totalmente despreocupados com higiene e saúde.    Facilitadas pelo ambiente contaminado, as pestes corriam soltas pelas casas e ruas, não distinguindo os amontoados populares, das casas mais abastadas, atingidas pela sujeira geral que se espalhava por tudo, terra, mar e ar. Rodrigues Alves, quando morava em seu palacete da rua Senador Vergueiro, assistiu a morte da própria filha, atingida pela febre amarela. E além da febre, havia a peste bubônica, a varíola...    A situação chegou a tal ponto que os navios estrangeiros puseram o porto do Rio sob quarentena, passando ao largo, com medo de que o ar doentio pudesse contaminar sua tripulação ou seus passageiros. Aportar no Rio era sinônimo de morte. E se isso acontecia com o viajante acidental, imagine-se, então com a população, obrigada a conviver dia e noite com esse tenebroso ambiente. Era preciso fazer alguma coisa, e imediatamente. Assim desejava o Presidente e esse era, também, o anseio da população do Distrito Federal.

Osvaldo Cruz   Para sua sorte, a cidade contava com um homem sob medida para aquele momento e para aquela missão. Osvaldo Cruz, então na juventude de seus trinta anos, apresentava já um currículo apreciável. Cientista, médico e sanitarista, teve a oportunidade de fazer um estágio no Instituto Pasteur, em Paris, especializando seus estudos em bactereologia.    Quando o Diretor do Serviço de Saúde Pública do Distrito Federal necessitava nomear um técnico para o Instituto Soroterápico de Manguinhos, escreveu para a França, consultando o Dr. Émile Roux, discípulo de Pasteur e um dos nomes mundialmente consagrados em soroterapia, pedindo que lhe indicasse alguém confiável para essa função. E o dr. Roux respondeu que no Brasil havia um cientista plenamente capaz para se desincumbir da tarefa, que outro não era senão o próprio Osvaldo Cruz. Foi ele nomeado e desenvolveu seu trabalho com competência, sendo promovido a diretor

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do próprio Instituto, onde o novo presidente da República foi buscá-lo para assumir a difícil tarefa de saneamento da cidade.    Osvaldo Cruz já havia estudado detidamente o assunto. Opondo-se às crenças ainda alimentadas pela medicina tradicional, acompanhara atentamente o trabalho desenvolvido pelo médico e cientista cubano, dr. Carlos Finlay (1833-1915), que identificou o mosquito transmissor da febre amarela, desenvolveu um trabalho eficiente em sua própria terra e erradicou essa doença em Cuba. Tinha pleno conhecimento, também, dos estudos do cientista inglês Edward Jenner (1749-1823), que desenvolvera uma vacina contra a varíola, já conhecida no Brasil, pois D.João 6º, em 1811, fizera sua importação, mandando vacinar toda a cidade do Rio. Assim, dominada a técnica, o que se necessitava para iniciar o saneamento, era a planificação, com a criação de leis que lhe dessem o amparo e de equipes que realizassem o trabalho.

A febre amarela   Tudo parecia, pois, muito simples. O Presidente desejava sanear a cidade, contava com recursos para realizar a obra, tinha a colaboração de um cientista respeitável e, finalmente, era desejo de toda a população que melhorassem as condições de saúde no Distrito Federal.    Mas até na classe médica havia correntes que negavam ser a febre amarela transmitida por mosquitos. Outros aceitavam a tese, mas não concordavam com a vacina, achando que o caminho único e possível para a erradicação estava na desinfeção do solo, idéia que chegou até a sensibilizar Rodrigues Alves, por ser mais simples e causar menos danos políticos. Sondado a respeito, Osvaldo Cruz rechaçou a idéia e ameaçou pedir demissão se o projeto fosse alterado. Assim, o Presidente concordou em que o plano se desenvolvesse como fora concebido, isto é, com a aplicação obrigatória da vacina.    Quanto se fez de oposição ao governo durante a execução do plano, nem é bom contar. A população se sentiu atingida em sua liberdade de decisão, a oposição encontrou um motivo sólido para atacar o governo e se colocar ao lado do povo e os jornais, muito interessados em aumentar sua tiragem, atingiram duramente, tanto o Presidente como o responsável pela campanha de erradicação. E todos tinham

bons motivos para isso. Quando recebida uma denúncia de doença, não se deixava por menos: as brigadas sanitárias invadiam a casa suspeita, isolavam o doente, faziam a limpeza e desinfeção do local e eliminavam os focos de mosquitos por toda a vizinhança, recebendo em troca o ódio daqueles que tiveram seu domicílio violado.    Vencida a resistência, ainda que pelo uso da força e ao arrepio da Constituição, a verdade é que os casos de morte pela febre foram diminuindo ano a ano. De 584 óbitos em 1903, esse número caiu para 4 em 1908 (já no governo de Afonso Pena). Em 1909, não se registrou nenhum caso de morte pela febre amarela. Estava vencida a luta contra a doença, mas o desgaste político fora imenso.

A peste bubônica   Velha conhecida dos marinheiros, a peste bubônica era típica da sujeira e proliferação de ratos e insetos, muito comum nos navios, e agora comum também no Rio de Janeiro. Havia até um calendário de alternância entre a febre amarela e a peste bubônica: aquela era comum nos dias quentes e úmidos do verão; esta se desenvolvia principalmente no inverno, facilitada pela sujeira generalizada dos portos e dos casarões, onde proliferavam os ratos e insetos de toda espécie.    A eliminação da peste bubônica, pois, dependia da mudança das condições de higiene nas ruas e nas casas e o ataque a ela se deu com a realização de obras públicas pela Prefeitura, assunto que é tratado em outro tópico.

A varíola e as desordens   Vimos a energia que teve de ser aplicada pelo Governo para garantir o processo de erradicação da febre amarela e soubemos da invasão de domicílios e do processo violento para subjugar a população aos intentos do governo, causando uma revolta íntima e dando combustível suficiente para políticos e jornais da oposição. Apesar dos protestos e das revoltas, a ordem pública foi, entretanto, mantida.    Pretendia o governo repetir o mesmo processo para o combate à varíola e, desta vez, precaveu-se com uma lei específica, votada a duras penas no Congresso Nacional, e regulamentada pela mão de Osvaldo Cruz  Previa essa lei a aplicação de vacina obrigatória nas crianças, com doses de reforços, de período em período. Era também obrigatória a vacinação de adultos, não se admitindo nem em pensamento que

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alguém se recusasse a recebê-la, dado que a erradicação do mal somente seria possível se toda a população fosse imunizada.    O grande erro, em ambas as campanhas foi que substituiu-se a força do convencimento pela força da lei, aplicada pela coerção, se necessária, até com o uso do contingente policial. Já escaldada pela primeira experiência, a população do Rio de Janeiro não estava disposta a ser usada, outra vez, como cobaia de experimentos, tanto mais que a vacina consistia na inoculação, no organismo humano, de germes da própria doença, algo que, ao cidadão comum, parecia um contra-senso e um perigo à saúde pública.    Ao coro de protestos que se seguiu, juntaram-se, alegremente as vozes da oposição e da imprensa, com destaque especial ao “Correio da Manhã”, bem como de positivistas, infiltrados em todos os setores da vida pública, inclusive na esfera militar. Entre pessoas de cultura, inclusive médicos, encontravam-se muitos que duvidavam da eficácia da vacina, outros aceitavam sua eficácia mas se insurgiam contra a obrigatoriedade da aplicação e muitos, simplesmente, encontravam na ocasião um pretexto para a insurreição.    O movimento anti-vacina começou com protestos de rua, logo descambando para a desordem.  No dia 10 de novembro de 1904, bandos de arruaceiros, insuflados por agitadores profissionais, tomaram as ruas da cidade, provocando depredações e destruindo principalmente os lampiões a gás usados na iluminação da cidade. A agitação durou três dias, com a perturbação do trânsito e a destruição de ruas, de onde foram arrancadas as pedras para formar barricadas e, por fim, os revoltosos se puseram em confronto as forças policiais.    Não tardaria que o movimento se alastrasse, atingindo uma situação incontrolável, quando a ele aderiram, também, as forças do Exército.

"Guerra da Vacina"    A participação militar, que deu proporções maiores ao descontentamento popular, envolveu substancialmente as escolas militares do Realengo e da Praia Vermelha. Na primeira, a sedição foi logo sufocada pelo general Hermes da Fonseca. Já na segunda o movimento tomou vulto com a rebeldia do general Travassos e do senador Lauro Sodré, que também era um oficial-militar.

    No dia 14 de novembro, Rodrigues Alves recebeu em audiência o general Olímpio da Silveira que, fazendo uma ponte entre os militares revoltosos, trouxe algumas reivindicações, incluíam o afastamento do ministro da Justiça, J.J.Seabra. Entendeu o Presidente que não havia campo para negociações e advertiu que usaria todos os recursos à sua disposição para garantir a manutenção da ordem.    Chegada a noite, o general Travassos e o senador Sodré tomaram um bonde e se dirigiram para a Escola Militar da Praia Vermelha onde depuseram o seu comandante. Então, o primeiro assumiu o comando dos militares sublevados e no dia seguinte, 15 de novembro de 1904, levou-os à rua intentando tomar de assalto o Palácio do Catete. Antes de lá chegarem, porém, houve um choque frontal com as tropas legalistas, comandadas pessoalmente pelos ministros da Guerra e da Viação, respectivamente general Argolo e general Lauro Müller.    Não tiveram sucesso os chefes do levante. O general Travassos foi ferido na perna e morreu dois dias depois, vítima de um choque pós-operatório. Lauro Sodré escondeu-se em casa de um amigo mas foi localizado e preso. Dominada a rebelião, começaram as prisões, centenas delas. Decretou-se o estado de sítio. A Escola Militar da Praia Vermelha foi fechada e seus alunos expulsos. O jornal “Correio da Manhã”, tido como incitador da revolta, teve sua publicação suspensa e a imprensa em geral passou a ser censurada.    Ficaram, pois, prejudicadas as comemorações do 15º aniversário da Proclamação da República. Nem havia o que comemorar.  Com a sublevação militar e o envolvimento de oficiais graduados, quebrou-se a disciplina, comprometendo a unidade militar e, ademais, ainda havia focos de insurreição civil nas ruas. Soube-se mais tarde que a "Guerra da Vacina" era um pretexto para uma revolução de âmbito nacional, envolvendo outros Estados, notadamente Bahia e Pernambuco. A determinação do Governo em dominar a revolta no Rio de Janeiro e punir com rigor os amotinados, impediu que o movimento se alastrasse por outras partes do país.

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Limpeza e urbanizaçãodo Rio de Janeiro

   Já dissemos atrás, quando nos referíamos à peste bubônica, que nenhum plano de saúde daria certo sem a higienização da cidade, retirando-lhe o aspecto doentio e criando condições sanitárias que impedissem o desenvolvimento de epidemias. Para isso, era necessária a realização de obras públicas de vulto, que o governo, sozinho, não teria como fazer, seja pela falta de uma estrutura de engenharia especializada, seja pela falta de recursos financeiros para um empreendimento dessa monta.    De sua parte, o governo não podia buscar esses recursos no exterior, pois, por cláusula contratual, o país estava proibido de realizar novos empréstimos enquanto perdurasse a moratória da dívida externa. Essa situação não servia ao Brasil, que precisava de capitais para o desenvolvimento, nem agradava aos banqueiros, aos quais interessava reiniciar seus empréstimos ao país, agora que as finanças estavam em ordem. Como sair dessa situação?    Para equacionar o problema, desenvolveu-se um projeto que matava dois coelhos com uma só cajadada, e este consistia em entregar a execução das obras públicas a empresas privadas. Com efeito, várias empreiteiras foram organizadas como sociedades anônimas de construção, ficando encarregadas de arregimentar mão-de-obra adequada e, como empresas privadas, esses empreiteiros negociaram empréstimos diretamente com os banqueiros internacionais, permitindo o aporte de dinheiro, sem a quebra das regras contratuais da moratória assinada pelo governo.    Foi assim que o prefeito Francisco Pereira Passos pode remodelar a cidade, derrubando velhos casarões, construindo largas avenidas e realizando obras de infra-estrutura para controlar o meio ambiente. Esse trabalho iniciou-se logo na primeira fase do governo de Rodrigues Alves, em 1903.  Para dar mobilidade ao prefeito, foi assinada uma uma lei específica, concedendo-lhe amplos poderes de ação. Essa extensão de poderes não encontrou unanimidade. Rui Barbosa criticou o que considerava excesso de poderes nas mãos de um só homem e outros o seguiram em discursos que foram se tornando mais inflamados, à medida em que o próprio direito de propriedade ia sendo

questionado com a desapropriação de imóveis para andamento do projeto.

Mudando a cara da cidade       Foi assim, pois, que o Rio de Janeiro conseguiu ser reurbanizado. Ao término do mandato, o prefeito havia mudado a cara da cidade, conforme descreve Hélio Silva: "Mas quando Passos leu, perante o Conselho Municipal, a sua última mensagem de prefeito, a cidade tinha mudado, com as aberturas das avenidas Mem de Sá, Salvador de Sá, Gomes Freire, Passos, Beira Mar, Atlântica; o alargamento das ruas Trezes de Maio, Carioca, Assembléia, Sete de Setembro, Marechal Floriano, Visconde de Inhaúma, Acre, Visconde do Rio Branco, Frei Caneca, Camerino, Catete, Laranjeiras, bulevar 28 de Setembro; construção ou reconstrução do cais Pharoux e dos Mineiros, largo da Glória, do Róssio, do Machado, de São Domingos, do Passo e do campo de São Cristóvão. Cortavam-se ou arrasavam-se os morros do Castelo e do Senado, para abrir novas vias de comunicação. A velha metrópole desaparecia, dando lugar ao Teatro Municipal, à Escola de Belas Artes, à Biblioteca Nacional, todo o conjunto de novos edifícios da avenida Central, as redações do Jornal do Comercio, do Jornal do Brasil, de O País. As sedes do Clube Naval, Militar, Jockey Club Brasileiro. Em 1906, Copacabana surge no plano da cidade, a avenida Nossa Senhora de Copacabana, as ruas Santa Clara e Barroso (Siqueira Campos), Salvador Correia (Princesa Isabel). Ainda não figura o traçado da Vila de Ipanema, com a sua praia do Arpoador. Nem Leblon e a Lagoa Rodrigo de Freitas tinham sido incluídos no processo de urbanização.   Houve, também, a reconstrução do cais do porto, outro foco de doenças, eliminando-se as pontes e plataformas de madeira e substituindo-as pelo concreto. Cuidou-se do aprofundamento das águas, permitindo que navios de grande calado pudessem chegar até o cais, evitando o trabalho e o custo do transbordo para embarcações menores. Enfim, o Rio de Janeiro ganhou nova aparência e nova vida, num projeto de longo prazo, que colocou a cidade entre as maiores, mais importantes, e mais belas do mundo.    Embora com menor alarde, outras obras se realizaram pelo país afora, dentro de um programa integrado de desenvolvimento. Não chamaram tanto a atenção quanto as do Rio

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de Janeiro, por ser este a capital do país, e por ter um considerável aglomerado populacional. Nessa época, eram 700 mil habitantes, amontoados no centro e circunvizinhanças. Assim, os problemas ali tornavam-se mais complicados que em outros lugares. Na contrapartida, quando solucionados, os resultados se faziam ouvir aos quatro cantos do país.

Diplomacia de Rio Branco   Outro homem ajustado seu tempo, foi José Maria da Silva Paranhos Junior, barão do Rio Branco, nascido no Rio de Janeiro em 1845, filho do Visconde do Rio Branco. Ainda criança, acompanhou o pai ao sul do país, quando se negociava com a Argentina e o Uruguai a adesão do Brasil à guerra contra o Paraguai. Interessou-se logo pela carreira diplomática e foi nesse campo que prestou inúmeros serviços à pátria, recebendo até uma citação elogiosa do próprio Rui Barbosa que o chamou de Deus Terminus (nos limites de Deus).    No governo Prudente de Morais, já havia resolvido algumas questões territoriais envolvendo a disputa com a Guiana Francesa pelo Amapá, a solução definitiva com relação ao território das Missões, na divisa com a Argentina e a questão levantada com a invasão, pela Inglaterra, da ilha da Trindade. Assumindo agora o Ministério da Justiça, em substituição a J.J.Seabra, resolveu outra pendência territorial, desta vez envolvendo questões de divisa com a Guiana Inglesa.    Mas nenhum problema deu tanto trabalho e envolveu tantas negociações como a questão territorial entre Brasil e Bolívia pela posse do território do Acre.

Questão do Acre   Não era uma simples disputa por questões de limite. O território do Acre envolvia problemas econômicos, que recrudesceram com o ciclo da borracha e a solução era difícil, mesmo em se contando com a cooperação das partes envolvidas, e se constituía em desafio até para o hábil e experiente Rio Branco.    No princípio, era apenas uma selva, que os brasileiros foram invadindo e povoando, sem maiores transtornos. A povoação se fez sob as vistas do governo boliviano que não encontrava motivos para disputa. Os limites entre os dois países nem estavam claramente definidos naquela região. Um tratado diplomático chegara a ser assinado

em 1867 pelo governo imperial mas não foi aplicado por qualquer das partes.    As dificuldades maiores começaram em 1895, quando um aventureiro espanhol se dispôs a levantar os moradores da região, acenando-lhes com a possibilidade de criar ali um território autônomo, o que ameaçava a integridade territorial tanto do Brasil como da Bolívia. Ambos os países reiniciaram as conversações, resultando em um novo tratado, assinado no mesmo ano. Em 1899 esse tratado foi consolidado por outro, envolvendo terras mais ao norte do Acre, o que gerou protestos do Peru, pois a área agora envolvida era limítrofe aos três países. Assim, a questão ficou em suspenso por tempo indeterminado, até que uma atitude inusitada e intempestiva da Bolívia elevou a temperatura ao nível da fervura.

Envolvimento dos Estados Unidos    Aconteceu que, em 1901, o governo boliviano, com o assentimento do Congresso daquele país, e no desprezo total pelos interesses dos seus vizinhos, entregou todo o território do Acre ao Bolivian Syndicate, um cartel formado de capitalistas norte-americanos, ao qual cabia explorar e administrar a área com plenos poderes, com o que ficava ameaçada a soberania não só do Brasil, da Bolívia e do Peru, como de toda a região norte do nosso continente, incluindo Equador, Colômbia e Venezuela. Na época, os Estados Unidos manifestavam abertamente sua vocação imperialista, retirando Cuba da influência espanhola e envolvendo-se em conflitos na América Central. Pode-se imaginar o perigo que representava a existência de um Estado independente americano em região tão estratégica e envolvendo a borracha, matéria prima essencial, encontrada só na Amazônia. Aumentava a preocupação, porque esses  Syndicates [cartéis], proliferavam em outras partes do planeta e tinham um claro objetivo de firmar presença americana em áreas do interesse daquele país, garantido sua influência cultural, política e econômica..    Enquanto o Brasil estudava a melhor maneira de enfrentar o problema, aconteceu que a reação veio espontaneamente dos brasileiros ali residentes, chefiados por Plácido de Castro, nascido no Rio Grande do Sul, mas com residência fixada no Acre. Foi em agosto de 1902 que Plácido levantou o patriotismo dos brasileiros ali residentes e iniciou um movimento armado contra a

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Bolívia. A guerra se espalhou por todo o território, conseguindo os patriotas expulsar as forças bolivianas estacionadas em Puerto Alonso. A essa altura, a Bolívia preparava uma reação, com o envio de mais tropas para a região, objetivando dominar o conflito. Por sua vez, tropas brasileiras também foram deslocadas para a área, visando proteger a   população e os nossos interesses na região.    Enquanto, por um lado, as partes conflitantes tomavam uma posição de força, por outro lado, o ministro da Justiça, Barão do Rio Branco agia, por via diplomática, procurando fazer com que a Bolívia cancelasse o contrato assinado com os empresários ianques. Depois, o Barão, por sua conta e risco, cuidou de afastar da disputa o sindicato americano, conseguindo sua desistência do empreendimento, em troca de uma indenização, pelo Brasil, no valor de 126 mil libras.. Por fim, intensificou suas gestões com a diplomacia boliviana para liquidar de vez a questão do Acre, evitando que o problema voltasse à tona no futuro. Em 17 de novembro de 1903, finalmente, foi assinado o Tratado de Petrópolis, em que ficava validada a posse e soberania do Brasil sobre todo o território do Acre.    Não saiu barato, para o Brasil, o tratado de paz. Como indenização, a Bolívia recebia dois milhões de libras. Ademais, o Brasil se comprometia a efetivar a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, cortando a floresta amazônica. Mas a compensação era grande, pois ficavam anexados ao território brasileiro mais 180 mil quilômetros quadrados de terra rica em seringais e, com os impostos arrecadados nos anos seguintes, foi possível ressarcir o país das despesas havidas. Além do mais, e não é pouco, evitou-se uma guerra entre Brasil e Bolívia, a qual, envolvendo também interesses americanos, ninguém sabe como iria terminar.    Outras questões de menor importância, envolvendo conflitos com o Peru (divisas com o Acre), Equador, Colômbia, Venezuela e  Guiana Holandesa, foram resolvidas com a ação paciente desse hábil negociador.

Fim de governo   O tempo é o melhor juiz. Administrando os problemas nacionais com determinação, Rodrigues Alves conseguiu colocar contra si setores expressivos da sociedade brasileira e despertar a ira da população, principalmente

do Rio de Janeiro. Ao fim de mandato, ainda não estava assentada a poeira, mas as vozes dissidentes não encontravam a mesma repercussão dos primeiros tempos.    A obra de saneamento e desenvolvimento estava realizada. O Rio de Janeiro renasceu e o país permanecia em paz. A despeito das grandes despesas realizadas durante a gestão, em conseqüência das obras contratadas, a situação econômica do país era boa e o plano de estabilização de seu antecessor permanecia firme. Realizou-se um bom trabalho, mas os cofres públicos não foram delapidados.    Mais uma etapa da vida nacional estava cumprida. Rodrigues Alves, deixando a presidência, ainda se elege, uma vez mais, governador do Estado de São Paulo, e depois, senador da República. Em 1818, volta a ser eleito presidente da República, mas, desta vez, não chega a tomar posse. As razões você conhecerá quando chegar o momento.

* * *Capítulo Seis

UM MANDATO E DOIS PRESIDENTES

Afonso Pena e Nilo Peçanha - 1906-1910

Não há mal que sempre dure, nem há bem que nunca acabe. Sobretudo em política, que tem uma dinâmica própria, capaz de fazer implodir os planos mais consistentes, reduzindo-os, num piscar de olhos, a um monte de entulho. E um projeto para durar mil anos, desaparece instantaneamente, como num passe de mágica, assim que mudem os fatores que lhe davam sustentação. Dois governos atrás, o Presidente Campos Sales criara a Política dos Governadores, que, fraudando a vontade das urnas, permitia aos governos estaduais comandar bancadas fortes dentro do Congresso Nacional e, em troca, essas bancadas eram colocadas a serviço dos interesses do governo central. Foi assim que o Presidente conseguiu levar adiante seu rígido plano de recuperação financeira, para em seguida comandar o processo de sucessão e, por fim, pôde entregar ao presidente eleito uma casa em ordem. Foi também da mesma maneira que Rodrigues Alves suportou a tremenda pressão da sociedade contra seu plano de erradicação dos surtos epidêmicos que

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atingiam o Rio de Janeiro e, também em nível nacional, encetar a política de desenvolvimento que o país estava a reclamar. Para um e outro estadista, não lhes faltou o apoio dos caciques estaduais, e das bancadas que eles comandavam. Todavia, a força da Política dos Governadores, em muito se assemelha à dureza dos diamantes, capazes de cortar os mais rígidos materiais mas que, a um toque bem dado, perdem sua estrutura, estilhaçando-se em milhares de pedaços. E foi o que aconteceu quando a oligarquia cafeeira pretendeu transferir para os cofres do governo os prejuízos que se anunciavam com a superprodução e a ameaça de baixa dos preços do café. Acenaram eles para a política de proteção aos investimentos, um vício de que o capitalismo brasileiro não con-seguiu se livrar até os dias de hoje. Com as vacas gordas, se faz a capitalização dos lucros, no melhor estilo liberal; com as vacas magras, promove-se a socialização dos prejuízos, com uma volúpia que não se encontra nem nos regimes de economia estatal centralizada.

Convênio de TaubatéA crise do café era um acontecimento previsível a quem acompanhasse o desenvolvimento dessa cultura. A lavoura cafeeira, que estava concentrada no Estado do Rio de Janeiro, atravessou as fronteiras e caminhou por São Paulo, em direção ao vale do Paraíba. Avançando mais, encontrou as terras roxas, ainda virgens, que seguindo por Campinas em direção à Alta Paulista, pretendiam alcançar as barrancas do rio Paraná e, de Sorocaba, iam em direção à Alta Sorocabana, num caminho que parecia nunca mais ter fim. O Brasil era um país de vocação agrícola, como já o dissera um Presidente, todavia, sequer tínhamos um ministério da agricultura para prover a diversificação das plantações de forma a garantir várias culturas, com perspectivas de encontrar mercado que as absorvesse. Deixando na conta dos agricultores, num liberalismo perigoso e inconseqüente, a corrida se deu exclusivamente em favor do café, sem levar em conta que o mercado tem uma capacidade limitada de compra. E aconteceu que, em 1905, São Paulo tinha plantados já 600 milhões de pés de café, com uma produção pronta e encalhada de 11 milhões de sacas de 60 quilos.

Alarmados com a bomba que estava para explodir, reuniram-se na cidade de Taubaté, vale do Paraíba, os presidentes do Estado de São Paulo, Jorge Tibiriçá, de Minas Gerais, Francisco Sales, e do Rio de Janeiro, Nilo Peçanha, resultando desse encontro um convênio, assinado em 26 de fevereiro de 1906, pelo qual se iniciava uma política de preços mínimos, lastreados em ouro, sobretaxando o valor-ouro, e recomendando empréstimos para a estocagem do produto com objetivo de forçar a alta no mercado. Previa, também, uma política de contenção de plantio, taxando-se violentamente qualquer novo empreendimento nesse setor. Quem pagaria essa conta? Ah, sim, a execução do projeto era transferida ao governo federal, que nem fora consultado a respeito, o qual deveria arrecadar a taxa-ouro e aplicá-la no pagamento das dívidas contraídas pelo Estado. Rodrigues Alves, já em fim de governo, ao saber do convênio, manifestou-se contra ele e, no que toca ao governo federal, não tomou qualquer providência para tornar possível sua execução. Em represália, os cafeicultores resolveram interferir diretamente na sucessão presidencial, articulando, eles mesmos, as candidaturas do mineiro Afonso Pena, para presidente, e do governador fluminense Nilo Peçanha, para vice. São Paulo, que já tinha feito três presidentes consecutivos, preferia abrir a mão de um quarto candidato para evitar que o nome escolhido pelo Presidente viesse a contrariar os seus interesses. Afonso Pena, o escolhido, estava comprometido com a política do café, e Nilo Peçanha, como governador do Rio, era um dos signatários do Convênio de Taubaté. Falhou a  Política dos Governadores e Rodrigues Alves, deixou, assim, de fazer o seu sucessor.

Postulantes à presidênciaO candidato presidencial do gosto do Presidente seria Bernardino de Campos, mas este praticamente queimou sua candidatura com uma entrevista contundente dada ao jornalista Alcindo Guanabara, do jornal O País, em que criticava o presidente Rodrigues Alves e pedia uma revisão constitucional para reorganizar a nação, atingindo também, em sua fala, outras forças presentes na vida nacional, como a oligarquia rural. O gaúcho Pinheiro Machado, a esta altura, já tinha domínio político amplo, era líder de

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uma forte bancada no Congresso Nacional e pretendia se lançar candidato, levantando a bandeira de seu Estado, o Rio Grande do Sul. Sua estratégia, bem sucedida, foi usar o apoio dos estudantes de Direito de São Paulo para lançar a candidatura de Campos Sales, com o objetivo de dividir os paulistas e, assim, enfraquecer a pré-candidatura de Bernardino de Campos. Resultou que os três saíram enfraquecidos e, nessa situação, não lhes restou alternativa senão apoiar Afonso Pena. Para os articuladores desta opção, só faltava agora neutralizar a candidatura de Rui Barbosa, pleiteada pelo Estado da Bahia. Mas ele próprio se convenceu da inviabilidade de seu nome e, por fim, resolveu, também apoiar Afonso Pena, que foi eleito em março e tomou posse em 15 de novembro de 1906. Note-se que, com a máquina dominando tudo, o eleitorado tinha muito pouco a decidir, pois já recebia da cúpula um prato-feito e a opção era pegar ou largar. As forças políticas se aglutinavam em torno de um único nome, limitando ou eliminando  a liberdade de escolha. Ademais, o voto não era obrigatório, as mulheres não votavam e o alistamento dos eleitores era feito pelos próprios partidos, através de seus cabos eleitorais. Nesse processo de alistamento eleitoral, criava-se facilidades para os correligionários e dificuldades à oposição. Por fim, se tudo isso falhasse, havia o voto a descoberto, ou a bico de pena permitia o controle da vontade dos eleitores. E, se ainda assim a votação estivesse apertada, era possível falsear as atas eleitorais, até chegar ao resultado pretendido. Com todos esses recursos, durante a primeira República, o sistema nunca perdeu uma eleição. E, como se viu, “na mais completa lisura”.

Quem era Afonso Pena Afonso Augusto Moreira Pena, nascido em Minas Gerais em 1847, não era um republicano histórico. Toda sua carreira política se desenvolveu à sombra do Império, ao qual serviu até o último momento. Estuda na Faculdade de Direito do largo de São Francisco, junto com Rodrigues Alves. Ingressa depois no Partido Liberal e, em 1874, se elege deputado provincial. Quatro anos mais tarde, vai para a Câmara de Deputados, onde cumpre quatro legislaturas, de 1878 a 1889, quando houve a mudança do regime.  Servindo o Império, foi ministro

da Guerra, em 1882, da Agricultura, em 1883 e da Justiça, em 1885.Proclamada a República, elege-se deputado constituinte em 1890. Depois, em 1892, passa a ser o presidente do Estado de Minas Gerais. Terminado o mandato, torna-se, por três anos, presidente do Banco da República. Em 1899 elege-se senador, voltando ao parlamento. Quando se tornou Presidente do Estado, em 1892, a capital de Minas Gerais ainda era a Vila Rica do Ouro Preto. Cuidou, pois, de construir, 40 quilômetros ao norte, uma nova cidade, planificada, destinada a ser em definitivo a capital de Minas Gerais. Foi assim que surgiu Belo Horizonte, inaugurada na passagem de governo ao seu sucessor. Em sua homenagem, a via principal da cidade tem o nome de avenida Afonso Pena. Mergulhado de corpo e alma na política brasileira, por mais de 30 anos, em contato diuturno com os problemas nacionais, parecia ser, dentre todos, o mais apto a galgar o posto mais alto da vida pública, qual seja, a Presidência da República. Afonso Pena era casado com dona Maria Guilhermina de Oliveira Pena, tendo doze filhos: Maria da Conceição, Albertina (que morreu no primeiro dia), Maria Guilhermina (morta com três dias), Afonso, Álvaro, Salvador, Alexandre, Manuel (morto com três dias), Otávio, Regina, Dora e Olga.

As forças políticasTomando-se como exemplo os Estados Unidos da América, constatamos a existência, naquele país, de duas correntes de opinião, que se aglutinam, respectivamente, em torno do Partido Repúblicano e do Partido Democrata. Há centenas de minorias com liberdade para se expressar politicamente, mas, na essência, os únicos que tem peso suficiente para influir são os republicanos e os democratas, dominando o cenário em um bipartidarismo natural, posto que representam, em sua quase totalidade, as correntes de opinião nacional.Já a cultura política do Brasil (e isto vale até os dias de hoje) nunca proporcionou a criação de partidos políticos fortes, com ideologia marcante, capazes de representar as várias correntes de opinião pública. Na prática, a política brasileira não se desenvolve em torno de partidos, mas de blocos de interesse que, ao sabor dos acontecimentos, se formam e se

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desmancham, para voltar mais tarde com nova composição e novos interesses. Durante o período de Afonso Pena, havia também dois blocos em destaque, que influíam nos destinos do governo. Um deles era formado por jovens entusiasmados mas românticos e inexperientes e, por isso, ficou conhecido como o “Jardim da Infância”. Era comandado pelo mineiro Carlos Peixoto Filho, presidente da Câmara, de 35 anos. O outro tinha como líder inconteste o gaúcho José Gomes Pinheiro Machado, sexagenário,  no auge de sua carreira política, e formava o “Bloco do Morro da Graça”, onde residia o chefe. Já vimos, em tópico anterior, a habilidade de Pinheiro Machado em atrair Campos Sales para a disputa eleitoral, dividindo São Paulo e permitindo a eleição de um mineiro para a Presidência. E é ele que vem dar trabalho ao novo governo que, para não perder sua sustentação no Congresso, teve de apoiar-se no “Jardim da Infância” de Peixoto Filho.

Ministério O primeiro ministério de Afonso Pena ficou assim formado: Relações Exteriores, José Maria da Silva Paranhos Junior, o Barão do Rio Branco, 61 anos, nome incontestável mesmo entre os oposicionistas do governo; Justiça, Interior e Instrução Pública, Augusto Tavares Lima, 47 anos, ex governador de Minas; Fazenda, Davi Moretzson Campista, carioca, 43 anos, deputado federal; Viação e Obras Públicas, Miguel Calmon du Pin e Almeida, baiano, descendente do Marquês de Abrantes; Guerra, marechal Hermes Rodrigues da Fonseca, 51 anos, sobrinho do marechal Deodoro. Este foi, mais tarde, substituído pelo general Luís Mendes de Morais, primo do ex-presidente Prudente de Morais; Marinha, Almirante Alexandrino de Alencar, gaúcho, 58 anos, um dos participantes da Proclamação da República.

Governo de Afonso Pena Com a casa deixada em ordem pelos seus antecessores e com o crédito exterior reabilitado, Afonso Pena não tinha qualquer compromisso com a austeridade econômica, e tinha todos os compromissos com a minoria que lhe propiciou a candidatura e garantiu sua eleição. O Convênio de Taubaté, que alterara os rumos das eleições presidenciais, estava agora aprovado pelo Congresso Nacional, por maioria esmagadora. Na Câmara, a aprovação se

deu por 107 contra 15 votos e no Senado, por 31 contra 6 votos. Essa votação tinha acontecido ao final do governo de Rodrigues Alves, e a revelia deste. Como a criação de uma Caixa de Conversão, conforme previsto no Convênio, dependia de leis complementares, os interessados esperaram a mudança de governo para concluir os trâmites, o que aconteceu sem maiores problemas. Afonso Pena, que, quando governador de Minas, já construíra uma cidade para abrigar a nova Capital do Estado, sonhava agora em marcar sua passagem pela Presidência da República com a realização de grandes obras, abrangendo o país inteiro. Incluia, em seus planos, ferrovias cortando o Brasil por todos os quadrantes, e a tão sonhada ferrovia Norte-Sul, ligando Belém do Pará a Porto Alegre. Num primeiro momento, as linhas já existentes seriam prolongadas, ao norte, até as barrancas do Rio São Francisco e, ao sul, partindo de São Paulo, pela Alta Sorocabana, e atravessando os Estados do Paraná e Santa Catarina, até a capital do Rio Grande do Sul. Na Alta Paulista, partindo de Bauru, um novo ramal seguiria a noroeste, atravessando o Estado do Mato Grosso, até chegar a Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. E projetava, mais, reforma de portos, melhoria da vida nas cidades, subsídio às indústrias, etc., etc. O Brasil vivia um daqueles momentos de euforia, esquecendo-se de um detalhe muito importante: todo o progresso vinha sendo conseguido com o dinheiro fácil dos empréstimos no exterior, ou seja, sacava-se outra vez sobre o futuro, deixando as dívidas para serem pagas pelos governos seguintes. Pondo-se de lado esse fato, no mais, o quadriênio foi profícuo em obras, embora não tenha conseguido levar a efeito todo o plano, por demais ambicioso para um período tão curto.

Rondon, o marechal da pazDentro do plano de expansão e desenvolvimento do governo Afonso Pena, surge mais um nome para a página de heróis brasileiros: Cândido Mariano da Silva Rondon, nascido em 1865 na cidade de Mimoso, Estado do Mato Grosso. Estudou na Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro e, em 1890, formou-se em Ciências Físicas, Naturais e Matemáticas. Em 1894 ingressa para a comissão construtora de linhas telegráficas que ligam Goiás a Mato

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Grosso. É nessa atividade que surge sua primeira oportunidade de contato com rudes fazendeiros, escravos maltratados e índios desconfiados e hostis para com o homens brancos. Desenvolve, então um trabalho de pacificação, conseguindo dos órgãos governamentais a demarcação de terras de vários povos indígenas. Sem esse programa paralelo de relacionamento com as tribos selvagens, seria impraticável a instalação das linhas telegráficas em pleno sertão, e menos ainda, garantir o seu funcionamento regular, evitando depredações. Assim, em 1910, conseguiu que o governo promovesse a criação do Serviço de Proteção ao Índio, que ficou sob sua direção. Com esse processo integrado de engenharia e de socialização dos selvagens, foi possível fazer com que a rede de telégrafos chegasse até o Estado do Acre, atravessando quase dois mil quilômetros de florestas e desenvolvendo uma riquíssima experiência  com a participação, também, de geógrafos e naturalistas. Seu trabalho foi, finalmente, reconhecido quando, em 1955, o Congresso Nacional aprovou uma lei especial que lhe dava o posto de marechal do Exército. Rondon veio a falecer em 1958.

Imigração e progresso No governo Afonso Pena surgiu uma nova onda migratória, de várias nacionalidades e para diversos pontos do país. Os italianos foram para o interior de São Paulo, os alemães, para Santa Catarina e Rio Grande do Sul, os poloneses e russos, para o Paraná, Chegam novas levas de portugueses e também de libaneses, os quais a população se habituou chamar de turcos. A economia continuava centralizada no café e na borracha, produtos dos quais ainda éramos os grandes exportadores. Da borracha por exemplo, o Brasil conseguia suprir 80 por cento das necessidades do mercado internacional. Uma situação que não perduraria por muitos anos, pois, dependendo exclusivamente de seringueiras nativas e sem que os produtores se preocupassem em fazer uma plantação regular e ordenada, acabamos perdendo mercado para outros novos países, especialmente a Malásia. O país podia contar, afinal, com um modesto desenvolvimento industrial, com tecelagens e indústrias de bens de consumo,

tudo para venda no mercado interno. O  futuro da indústria era promissor, pelos incentivos oficiais que recebia e pela chegada de imigrantes que vinham reforçar a mão-de-obra nas cidades.

Diplomacia O Barão do Rio Branco, confirmado uma vez mais na pasta de Relações Exteriores, prosseguiu em seu trabalho diplomático de resolver questões com os países vizinhos, atuando no sentido de delimitar as fronteiras passíveis de litígio, especialmente com a Colômbia, a Venezuela, o Peru e o Uruguai.Em 1907, Rui Barbosa foi indicado para representar o Brasil na Conferência de Paz de Haia (Holanda), defendendo ardorosamente o princípio de igualdade de todas as nações soberanas, independentemente de sua projeção. Impressionou a todos com sua oratória e, num feito extraordinário, obteve a aprovação de seu projeto de criar uma Carta Internacional de Arbitragem para resolver conflitos internacionais. Tamanha a impressão causou que seu nome foi incluído entre os Sete Sábios de Haia, assim escolhidos: Rui Barbosa, Barão Marshal, Nelidoff, Choate, Kapos Meye, Léon Bourgeois (Prêmio Nobel da Paz em 1920) e Conde Tornieli. Para nós, Rui ficou para sempre conhecido como “A Águia de Haia”.

Sucessão presidencialDescuidando-se do fato de que o poder central já não tinha mais aquela força que lhe era dada pela Política dos Governadores, Afonso Pena, pretendendo seguir o exemplo de seus antecessores, assumiu a tarefa de coordenar a escolha de um candidato às próximas eleições presidenciais e jogou todas as cartas sobre o nome de seu ministro da Fazenda, o jovem Davi Campista, contrariando, com isso, as pretensões veladas de outros auxiliares e, o que é pior, levantando a fúria do todo poderoso Pinheiro Machado, que detinha o controle do Congresso Nacional. O escolhido pelo Presidente, como se recorda, era um dos egressos do “Jardim da Infância” e não tinham, nem ele, nem seus companheiros, lastro político para sustentar uma luta dessa envergadura. Entre os governistas, a candidatura não despertou interesse maior. Se os caciques republicanos não lhe faziam franca oposição, também não tinham motivos para cruzar lanças nesse terrível embate que é o

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processo eleitoral, menos ainda se dispunham a queimar seu prestígio por um nome de menor projeção, e que não tinha qualquer identificação com as forças políticas dominantes. Já o grande opositor, Pinheiro Machado, viu nesse lance a grande oportunidade de provocar uma cisão dentro do governo e, manhosamente, insinuando-se entre oficiais militares de prestígio, conseguiu convencer o seu conterrâneo marechal Hermes da Fonseca, então ministro da Guerra, a se lançar candidato, reavivando o saudosismo dos governos fortes de Deodoro e Floriano. Os acontecimentos se precipitam. Em 12 de maio de 1909, aniversário de  Hermes, o capitão Jorge Pinheiro lança a candidatura do marechal, fazendo, em presença do ministro, severas críticas ao governo. Animado, o marechal apresenta  a Afonso Pena uma carta seca e ríspida, pedindo demissão do Ministério. Na ocasião, assegurou ao Presidente que não se envolveria no processo eleitoral mas, no dia seguinte, enviou outra carta a Afonso Pena, retificando sua posição. Rui Barbosa, sondado a respeito por Pinheiro Machado, descarta seu apoio, não por ser o candidato um militar, mas pelo tom militarista com que a campanha havia sido lançada. Finalmente, no dia 19, em protesto contra tal candidatura, o deputado Carlos Peixoto Filho, renuncia à presidência da Câmara, solidarizando-se com o presidente da República.. Com essa renúncia,  bem intencionada mas ineficaz, desfaz-se também o bloco de apoio presidencial, o chamado Jardim de Infância. O Presidente ficou só, completamente só. O golpe foi pesado demais, levando-o à depressão, à doença e ao fim. No dia 14 de junho de 1909, após dois meses de crise política, morria Afonso Pena, assumindo em seu lugar o vice, Nilo Peçanha.

Quem era Nilo Peçanha Nilo Procópio Peçanha nasceu em Campos, Estado do Rio, em 1867. Vindo de origem humilde, lutou muito para realizar seus estudos, na própria cidade natal. Concluído o colégio, foi para Recife, onde matriculou-se na Faculdade de Direito. No ano de 1887, já advogado, retornou à cidade de Campos onde montou um escritório de advocacia. Idealista e vivamente interessado pela política e pelos problemas sociais do país, participou da campanha abolicionista e,

depois, lutou pela Proclamação da República. Foi deputado constituinte, deputado federal e, em 1903 elege-se governador do Rio de Janeiro, em substituição a Quintino Bocaiúva. Em 1906, elege-se vice-presidente da República. Assumindo o governo, pela morte de Afonso Pena, reorganizou o gabinete, criando um novo Ministério para cuidar de assuntos da agricultura, indústria e comércio. Foram seus ministros: Relações Exteriores, Barão do Rio Branco; Justiça, Esmeraldino Bandeira; Fazenda, Leopoldo de Bulhões; Viação, Francisco de Sá; Guerra, Carlos Eugênio de Andrade Guimarães; Marinha, Alexandrino de Alencar; Agricultura, Indústria e Comércio, Antônio Cândido Rodrigues. Embora sendo um político habilidoso, não teve como registrar sua passagem pelo governo, tanto mais que assumiu para si a responsabilidade de prosseguir o plano traçado por seu antecessor. Ademais, além do curto tempo que lhe restava, pouco mais de um ano, recebeu o governo embaralhado com a disputa presidencial, que se desenvolvia com dinâmica própria, afetando a presidência da República, sem que o Presidente pudesse fazer alguma coisa para mudar o rumo dos acontecimentos. Como se não bastasse, havia desentendimentos entre ruralistas mineiros e paulistas sobre a execução do Convênio de Taubaté, ocasionando disputas que se prolongaram até o fim do mandato. Honra lhe seja feita, teve a humildade de dar continuidade ao governo anterior, não se induzindo à tentação de criar novos planos para um período tão curto (faltavam 15 meses para se encerrar o mandato), o que seria ineficaz e custoso para o país. Entregue a faixa ao sucessor, permaneceu na vida política, tendo sido uma vez mais Governador do Rio de Janeiro; elegeu-se duas vezes senador, foi Ministro das Relações Exteriores no governo de Venceslau Brás e tentou voltar à presidência em 1921, sendo derrotado. Faleceu no Rio de Janeiro, em 31 de março de 1924. Era casado com dona Anita Belisário Peçanha e as três filhas do casal nasceram mortas.

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Capítulo SeteA POLÍTICA DE SALVAÇÃO

NACIONALHermes da Fonseca - 1910-1914

    Os acontecimentos que levaram à candidatura de Hermes da Fonseca foram antes o resultado de uma “trapalhada” aprontada pelo próprio presidente Afonso Pena, ao apresentar o nome de seu jovem ministro, Davi Moretzson Campista como candidato oficial do governo, sem fazer antes qualquer sondagem às forças que lhe davam sustentação. Maior prudência seria necessária, não apenas em atenção aos seus aliados, mas porque Campista era egresso do “Jardim de Infância” e tal indicação ia bater de frente contra a bancada controlada pelo seu opositor, Pinheiro Machado, provocando um terremoto no Congresso.    Ainda em tempo de recuar, Afonso Pena insistiu em manter essa indicação, e não foi por falta de aviso. Consultado, Rui Barbosa expôs sua opinião com franqueza e clareza, alertando o Presidente sobre a imaturidade do candidato, além do que este não tinha tradição para conseguir se impor às correntes políticas nos vários Estados. Tentou o chefe do governo obter apoio de São Paulo e Minas mas só recebeu evasivas. Consultando Rio Branco, este escusou-se diplomaticamente de se envolver no assunto. Que mais faltava, a guisa de sinalização, para indicar ao Presidente que o caminho escolhido era tão incerto quanto perigoso e deveria ser abandonado? Pois o recuo, lamentavelmente, não estava em seus planos, e aconteceu o previsível.    No Congresso, Pinheiro Machado, que era militar, começou, então, a articular a candidatura do Ministro da Guerra, marechal Hermes da Fonseca, o que levou Carlos Peixoto Filho a renunciar à presidência da Câmara, perdendo o Presidente a sua já precária base parlamentar. No Exército, militares saudosos do florianismo, lançaram a candidatura do marechal como representativa das Forças Armadas, dando-lhe, pois, um caráter militarista, mal disfarçado com o nome do civil Venceslau Brás, apontado para Vice.

Civilismo versus militarismo    Forma-se, então, um movimento oposicionista, com a candidatura civil de Rui Barbosa, tendo como Vice o ex-Governador

de São Paulo, Albuquerque Lins, ambos sustentados, em sua campanha, com o dinheiro dos cafeicultores paulistas e, portanto, sujeitos a um esquema político pré definido. Viajando pelo Brasil, Rui Barbosa se atirou à sua pregação com um fervor missionário, levantando multidões, ao denunciar a máquina política montada desde os primórdios da República, que impunha nomes, controlava a votação e, como se não bastasse, fraudava as atas, para garantir a eleição de seu escolhido.    Procurando isentar-se de qualquer preconceito contra o Exército, Rui Barbosa, em carta a Hermes da Fonseca, deixa claro que "...a farda de que veste [o marechal] não constitui objeção ao exercício dessa magistratura suprema. Nada exclui, entre nós, o militar, de servir ao país nesse posto, uma vez que ele se não confira ao militar, mas ao cidadão. (...) Assim, se o honrado marechal saísse do Congresso, do seio de um partido, ou de um passado político para a situação de chefe do Poder Executivo, o fato seria natural e a sua candidatura teria sido acolhida com o meu imediato assentimento".    Posta nestes termos, a campanha deixava de ser um embate entre dois candidatos à Presidência, transformando-se claramente em confronto entre o civilismo, representado por Rui Barbosa, e o militarismo, na pessoa do marechal Hermes da Fonseca. Assim se desenvolveu a propaganda e a pregação de Rui deu origem ao chamado Movimento Civilista, que levantou o país durante todo o ano de 1909, até as eleições de 1910.

Movimento Civilista   Um dos pontos positivos da candidatura Hermes foi a reação do Movimento Civilista que, pela primeira vez na História da República, levou o povo às ruas, pelo país afora, ouvindo e aplaudindo a oratória brilhante de Rui Barbosa e criando um divisor de águas na política nacional. Como o voto era facultativo e sabidamente fraudado, o alistamento da classe média era insignificante, já que ninguém se propunha a entrar num jogo de cartas marcadas, referendando um processo inválido.    A situação não mudou e o próprio Rui antecipava isso nas campanhas, deixando claro que a possibilidade de ganhar nas urnas e ser validado pelo pela Comissão Verificadora era praticamente nula, mas a voz que não se conseguia ouvir nas urnas tinha agora a possibilidade de se fazer ouvir

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nas ruas. Os eternos ausentes, desta vez, se alistaram e incentivaram outros a fazê-lo. A classe média começou a exercer sua função na política nacional, como formadora de opiniões e multiplicadora de idéias. E Rui Barbosa lançou o seu Credo Político, como base de sustentação ao governo, que vale à pena ler: "Creio na Liberdade onipotente, criadora das nações robustas; creio na Lei, a primeira das suas necessidades; creio que, neste regime, soberano é só o Direito, interpretado pelos tribunais; creio que a República decai porque se deixou estragar, confiando-se às usurpações das forças; creio que a Federação perecerá se continuar a não acatar a justiça; creio no Governo do povo pelo povo; creio, porém, que o Governo Popular tem a base da sua legitimidade na cultura da inteligência nacional, pelo desenvolvimento nacional do ensino, para a qual as maiores liberdades do erário constituirão sempre o mais reprodutivo emprego da riqueza comum; creio na Tribuna sem fúrias, e na Imprensa sem restrições; porque acredito no poder da razão e da verdade; Creio na moderação e na tolerância, no progresso e na tradição; no respeito e na disciplina, na impotência fatal dos incompetentes e no valor insuprível das capacidades." [as letras capitais e os negritos foram acrescentados.]

Hermes ganhou a eleição...   Tudo aconteceu direitinho como Rui antecipara em sua campanha. Em 1º de março de 1910 um novo eleitorado foi às urnas para registrar a sua vontade e, mais uma vez, a escolha popular foi fraudada, deste o sufrágio até a confirmação pela Comissão Verificadora.    A principal concentração eleitoral do país estava nas capitais e foi nelas que Rui conseguiu arregimentar a maior quantidade de novos eleitores. No interior, o voto de cabresto e o poder sem fim dos coronéis impediam maior avanço da oposição. Pois foi nas capitais que as sessões eleitorais, na sua maioria, não se abriram, seja pela falta de mesários, ou por conflitos que impediram seu funcionamento. O próprio Rui Barbosa e seus assessores passaram o dia procurando por uma sessão que estivesse aberta e na qual pudessem votar.     Durante a apuração, as fraudes ocorreram de um lado e do outro. Partidários da oposição, tal qual seus adversários,

souberam bem manipular as atas, falseando-as em proveito próprio. O jornal “O País” fez vazar uma circular endereçada aos chefes civilistas, na qual se recomendava que, ao preencher as atas nas sessões eleitorais sob seu controle, fizessem diminuir 20 por cento no total de votos de Hermes, acrescentando-os ao total de votos de Rui.    Rui Barbosa ganhou, com pequena vantagem, no Distrito Federal, em sua terra natal, a Bahia, e nos Estados sob o controle da oligarquia que o apoiou, como em São Paulo e Minas Gerais. No restante do país,  o resultado a favor de Hermes da Fonseca foi acachapante. Por exemplo, no bloco de Estados formado por Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí e Rio Grande do Norte,  95 por cento dos votos válidos foram para Hermes da Fonseca.    A luta de Rui Barbosa prosseguiu no Congresso Nacional, junto à Comissão Verificadora e, mais tarde, na Justiça, procurando provar a inelegibilidade do vencedor, já que ele era um candidato sem título de eleitor, não estando, pois, no gozo de seus plenos direitos políticos, conforme determinava a lei. O marechal era alistável (tinha direitos) mas não se alistou (perdeu esse direitos).     Toda retórica foi nula. O nome de Hermes foi homologado e em 15 de novembro de 1910 era o marechal empossado na presidência da Republica, em substituição a Nilo Peçanha.

Quem era Hermes da Fonseca     Hermes Rodrigues da Fonseca nasceu em 1855 na cidade de São Gabriel, Rio Grande do Sul,  300 quilômetros a sudoeste de Porto Alegre. Era sobrinho do marechal Deodoro e, bem cedo, abraçou a carreira militar. Mantendo-se afastado da política, seu nome não alcançou, durante o Império e no início da República, a notoriedade do tio. Em 1906, foi ministro da Guerra do governo Afonso Pena e só então obteve o posto de marechal do Exército.     Foi eleito Presidente em março de 1910 e, como ainda faltavam mais de oito meses para a posse, aproveitou esse lapso para fazer uma tumultuada viagem à Europa. Nessa ocasião, foi convidado pelo Kaiser Guilherme 2º para visitar a Alemanha e teve oportunidade de assistir a manobras militares. Esse ato provocou protestos de seus adversários e uma reação negativa por parte da França, pois o treinamento de nosso

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pessoal de Exército e Marinha era feito pela missão militar francesa, surgindo, então, a desconfiança de que o interesse de Hermes era romper o contrato vigente e assinar um acordo com a Alemanha para prosseguir na tarefa. Já em Portugal sua visita trouxe uma infeliz coincidência, pois, quando era recepcionado pelo rei, chega a notícia de que se iniciara a revolução republicana que pôs fim ao Império. Casado, em primeiras núpcias, com dona Orsina Francioni da Fonseca, teve com ela seis filhos: Mário, Leônidas, Euclides, Maria, Manuel e Hermes.    Durante seu governo, falece-lhe a esposa, e Hermes vem a contrair núpcias com a jornalista e caricaturista Nair de Teffé, que não perdoava, na ironia de seus traços, as figuras mais representativas da política (diz uma piada que Hermes se casou com ela só para se livrar dela...) Foi uma das mais avançadas figuras femininas da primeira República. Introduziu nos salões a música popular brasileira, numa época em que nossas modinhas eram consideradas música de taverna. E não teve dúvidas em apoiar a vilipendiada compositora Chiquinha Gonzaga, levando-a para tocar e cantar no palácio. Pelos anos sessenta, já viúva, e com a parca aposentadoria que recebia dos cofres públicos, dedicou-se a criar algumas crianças que adotara. E, presente a um programa de TV, não hesitou em fazer uma caricatura do então presidente Costa e Silva. Nair de Tefé não teve filhos naturais.    O novo ministério ficou assim constituído: Relações Exteriores, José Maria da Silva Paranhos, Barão do Rio Branco; Justiça, Interior e Instrução Pública, Rivadávia da Cunha Corrêa; Fazenda, Francisco Antônio de Sales; Viação e Obras Públicas, J.J.Seabra; Agricultura, Pedro de Toledo; Guerra, general Emilio Dantas Barreto; Marinha, Almirante Joaquim Marques Batista de Leão.

Durante a festa, um canhonaço    No dia 22 de novembro de 1910, sete dias após a posse, quando se verificava uma recepção a bordo do navio português Adamastor, com a presença do novo Presidente e de todo o Ministério, ouve-se um sonoro troar de canhão, vindo de uma das peças da esquadra brasileira, causando preocupação e alarme entre os presentes.    A mudança de governo não se fazia em clima de absoluta tranqüilidade. O

Presidente, se contava com ampla cobertura das Forças Armadas, não era unanimidade entre os militares e, como já se viu, tinha uma oposição consistente, vinda de interesses contrariados e momentaneamente fora do poder. Além do mais, na formação de seu Ministério, foi afastado o nome do anterior ministro da Marinha, almirante Alexandrino de Alencar, despertando animosidade nos meios castristas.    Tudo isso passava instantaneamente pela cabeça daqueles que participavam da festividade, menos a verdadeira razão daquele tiro inusitado, que nada tinha de saudação ao novo governo. Não era a Marinha, como arma, que se revoltava, mas sim os marinheiros da esquadra, sob a chefia de João Cândido, marinheiro de primeira classe. A sedição envolvia os navios Minas Gerais (sede da revolta), São Paulo, Deodoro e Bahia,   ameaçando se alastrar pelos demais vasos de guerra. Em radiograma ao presidente da República, transmitiram suas reivindicações: queriam a abolição do castigo da chibata, humilhante, doloroso e mutilador.

Revolta da Chibata   O castigo pela chibata (chicote com pregos) não era coisa nova, pois vinha desde os tempos do Império. Abolido pelo Governo Provisório, foi reintroduzido por um decreto, ainda no mesmo governo, dado que os oficiais da Marinha consideravam impossível manter a ordem dentro da corporação, se não tivessem um meio eficaz de coerção à indisciplina dos marinheiros.    E não era para menos. À falta de voluntários, os marinheiros eram recrutados pelos processos mais variados e muito à revelia dos escolhidos, para um período de serviço de quinze anos. Entre eles havia tanto gente da pior espécie, recolhida a bordo, como até meninos de doze ou treze anos, expulsos de casa pelos pais, e que iniciavam o aprendizado da profissão como grumetes. A disciplina se fazia rígida até para os padrões militares, com trabalho pesado e prolongado, e com raríssimas folgas para pisar em terra firme. Era a escravidão, abolida no fim do Império, mas que permanecia com todos os seus horrores a bordo dos navios, recebendo a chancela da lei.    Qualquer marinheiro faltoso, dependendo da gravidade de sua falta, recebia desde uma pena leve, como prisão numa solitária por três dias, até a pena de 25 chibatadas, limite

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raramente respeitado, podendo a violência ser estendida até a inconsciência e a morte do infeliz. A aplicação da chibata era tão frequente que havia até mesmo carrascos designados dentro de cada navio, para a aplicação do castigo.    Os protestos dos marinheiros já vinham sendo feitos veladamente por bilhetes anônimos, que na verdade eram redigidos por um marinheiro intelectual, Francisco Dias Martins, conhecido como “mão negra”. Não sensibilizando os oficiais, agora, a revolta estoura com toda sua fúria, ficando o “mão negra” encarregado da comunicação escrita. O comando permaneceu nas mãos de João Cândido, rude marinheiro, incapaz de medir as conseqüências de cada ato e de deter as mãos assassinas que, com seus atos de barbárie, iam criando uma situação irreversível e tornando impossível a conciliação.

Vitória aparente    Para se ter idéia da violência, nenhum oficial a bordo, do mais graduado, ao mais simples, ficou vivo. Foram todos mortos e colocados em câmara-ardente. Depois, os marinheiros, em radiogramas enviados à terra, exigiam, além da eliminação da chibata, também a anistia geral pelos crimes cometidos. Exigiam mais - pasmem! - a presença, a bordo, do próprio presidente da República, para completar as negociações, ameaçando destruir a cidade, se não fossem atendidos em seus desejos.    A situação era tensa. Com o poder de fogo que tinham, os rebelados podiam, de fato, destruir qualquer alvo à sua volta, dentro da baía da Guanabara. Uma reação pelas forças de terra não ajudaria muito, na medida em que muitas vidas seriam perdidas, além do que estaríamos destruindo o melhor do nosso patrimônio naval. O deputado José Carlos de Carvalho, oficial da Marinha, com autorização do Congresso, vai a bordo e constata a gravidade da situação. De lá traz para a terra o último marinheiro chicoteado, que foi estopim da revolta, deixando-o em estado grave num hospital. No depoimento do próprio deputado, "...as costas desse marinheiro assemelham-se a uma tainha lanhada para ser salgada".   Estamos no dia 25 de novembro de 1910. No palácio do Governo, reúnem-se o Presidente, os ministros e gente experiente da política, analisando a situação. Foi o conselheiro Rodrigues Alves que,

perguntado, deu a palavra final. Se não havia outro caminho, que então se concedesse a anistia, não porque a merecessem, mas para não mergulhar o país em tragédia ainda maior. O Congresso, a contragosto e sob protestos de muitos, votou favoravelmente. Ao cair da tarde, o Presidente assinou a anistia, coadjuvado pelo ministro da Marinha, pelo chefe de Polícia e pelo deputado José Carlos de Carvalho.    Ainda nesse dia, a anistia foi aceita a bordo, contrariando a muitos, pois o objetivo central, que era a eliminação da chibata, não havia sido atingido. Mesmo assim, uma mensagem enviada ao oficial da Marinha e deputado José Carlos de Carvalho, transmitia a concordância, anunciava a entrega da esquadra e fazia uma ameaça: "Entraremos amanhã ao meio-dia. Agradecemos os seus bons ofícios em favor da nossa causa. Se houver qualquer falsidade, o senhor sofrerá as conseqüências. Estamos dispostos a vender caro as nossas vidas - Os revoltosos."    Passaram-se poucos dias e nova rebelião estoura, pela mesma razão, mas esta de menores proporções, envolvendo pessoal de base na ilha das Cobras e mais os marinheiros de um vaso de guerra. Calcularam mal, os marinheiros, os efeitos de seu movimento, pois desta vez, não envolvendo a população da cidade, o Governo sentiu-se seguro para ordenar o bombardeio contra a ilha, morrendo quase todos, dentre os seiscentos revoltosos.

Repressão severa    Para o Governo, esta nova revolta resultou em lucro. Alarmado com a reincidência e com o temor de que a situação saísse do controle, o Congresso não teve dúvidas em aprovar o estado de sítio. A trágica ironia era que os mesmos que antes defendiam a anistia, incluindo Rui Barbosa, agora clamavam pela necessidade de medidas excepcionais para o controle absoluto da situação. E, suprema das ironias, no bombardeio contra ilha das Cobras, foram utilizados os navios Minas Gerais, São Paulo e Deodoro, os mesmos que, dias antes, haviam ameaçado a cidade do Rio, pondo em xeque as instituições.    Amparadas pela suspensão de parte das garantias constitucionais, as forças policiais foram às ruas fazendo uma operação de varredura, na qual prenderam indiscriminadamente marinheiros e civis, criminosos ou não. Muitos dos marinheiros

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presos estavam garantidos pela anistia concedida anteriormente, inclusive o chefe da revolta, João Cândido. Entre os civis se achavam desocupados inconseqüentes e um punhado de prostitutas.    O navio cargueiro "Satélite" partiu, então, para a Amazônia, levando, segundo relato de bordo, uma carga de "105 marinheiros, 292 vagabundos (sic), 44 mulheres e 50 praças do Exército". Seguindo instruções, a maior parte dos homens foi entregue à "Comissão Rondon" para trabalhos forçados. Os restantes, inaptos para o serviço, foram simplesmente abandonados na floresta, distantes um do outro, para não haver possibilidade de se reorganizarem. Os prisioneiros que ficaram no Rio de Janeiro foram, posteriormente, encerrados em uma cela solitária no presídio da ilha das Cobras, sendo que apenas dois sobreviveram, um deles, o próprio João Cândido que, mais tarde, fez a narrativa de toda a tragédia. Mas este já é um assunto que não cabe neste espaço.    Apenas um comentário final. Não se pode nem de longe inculpar Hermes da Fonseca pelos excessos cometidos. Os que conheceram o marechal apontam-no como brando, pacífico e bondoso, voltado para sua atividade militar e pouco afeito à política e às ações repressivas. Por outro lado, João Cândido e os demais líderes da primeira sedição não tinham a exata noção de proporções, quando chacinaram todos os oficiais dos navios rebelados, criando uma situação de todo irreversível. Daí para diante, o espírito corporativo no seio militar esperava apenas uma oportunidade para a desforra e esta apareceu com a suspensão das garantias constitucionais, pela decretação do estado de sítio. O resto, já se sabe.

Política de Salvação Nacional    Os problemas políticos nos Estados da Federação vinham de longe, desde as últimas eleições estaduais, ocorridas há três anos, nas quais os ganhadores jubilavam e os perdedores, sentindo-se esbulhados, esperavam a hora oportuna para uma revanche. Não eram forças populares em ação, mas oligarquias que lutavam com unhas e dentes para aumentar a sua fatia de poder.     O início do governo Hermes da Fonseca era um complicado tabuleiro de xadrez. No Congresso, permanecia o poder de Pinheiro Machado, que se estendia aos governadores

em sua órbita de influência. Havia também a presença do deputado Fonseca Hermes e do deputado capitão Mário Hermes. O primeiro era irmão do marechal e líder da maioria na Câmara. O segundo era filho de Hermes e líder da bancada da Bahia.     Dentro do Ministério, ponteavam, pelo menos, duas forças contrárias a Pinheiro Machado e com pretensões políticas em seus respectivos Estados. Eram o Ministro da Viação, José Joaquim Seabra, baiano, e o Ministro da Guerra, general Emilio Dantas Barreto, pernambucano. Ambos representavam correntes atuantes na capital federal, mas estavam vivendo seus momentos de ostracismo nos próprios Estados de origem.     Junte-se a tudo isso o fato de que, 1911, renovavam-se as Câmaras Municipais e 1912 era o ano de eleições para renovação dos governos estaduais, assembléias legislativas e, em alguns Estados, também, do senados estaduais. Envolvendo-se na política regional, o governo central interveio o quanto pôde, mudando os governos e alterando a composição de forças. Essas intervenções, referendadas pelo Congresso, receberam oficialmente o nome de re-saneamento político, mas a opinião pública, sarcasticamente, as chamou de "políticas de salvação".

Estado do Rio de Janeiro    A primeira “salvação” envolveu o Estado do Rio de Janeiro, onde a presença do governador Alfredo Backer era contestada pela oposição, surgindo em conseqüência duas Assembléias Legislativas, uma de apoio ao governador empossado e outra apoiando o governador em litígio. Alfredo Backer consegue um habeas-corpus, legitimando-o no poder, mas o Ministro da Justiça envia tropas federais àquele Estado sob a alegação de que era necessário garantir o patrimônio público e o bom funcionamento das repartições. Desta forma, impôs-se pela força e alterou o governo local, dando posse ao candidato de preferência do governo central.

Estado de Pernambuco    A política salvacionista em Pernambuco foi uma das mais complicadas, mas era também a mais compensadora, pela força que este Estado possuía no cenário nacional. O controle do Estado se achava com a família Rosa e Silva, mais particularmente nas mãos de Francisco Assis Rosa e Silva, nome de

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tradição e projeção, pois já fora conselheiro do Império e, na República, elegeu-se vice-Presidente, junto com Campos Sales.    Político hábil, não criou dificuldades a Campos Sales em seu governo. Diplomata, era adversário de Pinheiro Machado, mas foi favorável à candidatura de Hermes da Fonseca. E, desta maneira, ficou bem com ambas as forças dominantes, tanto no Congresso como na Presidência. Sabia avançar, mas tinha o bom senso de recuar, quando a situação assim o aconselhasse. Tal flexibilidade garantia a família na proeminência da política pernambucana.    Sua superioridade passou a ser contestada, entretanto, na formação do Gabinete, quando foi nomeado para o Ministério da Guerra o general Emilio Dantas Barreto, engrandecendo Pernambuco, mas diminuindo o campo de manobra dos Rosa e Silva. Candidatando-se a governador pela oposição, com o apoio do Barão de Lucena e José Mariano, o general Dantas Barreto desequilibrou as forças, provocando o embate das duas facções, nos moldes do coronelismo, com ocorrência de arruaças e lutas de emboscada. O Ministério da Guerra passou, então, para as mãos do general Vespasiano Gonçalves de Albuquerque e Silva, e Dantas Barreto seguiu para Recife, passando ele próprio a comandar a campanha.    As eleições em Pernambuco, dentro do sistema fraudulento em voga, deram vitória a Rosa e Silva, enquanto a oposição se declarava vitoriosa com Dantas Barreto. As lutas nas ruas se intensificaram, a policia estadual se rebelou, com apoio dos praças do Exército. O governador interino, Estácio Coimbra, não tendo condições de resistir, renunciou, deixando sem base política o seu padrinho Rosa e Silva.    Foi o momento para o bote final. O Congresso Estadual (Assembléia e Senado) considerou vitorioso o general Dantas Barreto, homologando seu nome. Trocado o comando militar, assumiu o coronel Abílio de Noronha, partidário do ex-ministro da Guerra, e permaneceu nesse posto até garantir a posse do general Dantas Barreto no governo do Estado. Estava, pois, concluída a segunda operação salvadora.

Estado da Bahia    A “salvação” na Bahia envolvia os interesses do ministro J.J.Seabra, a quem interessava reassumir o controle total da

política estadual, contando com o apoio aberto do presidente da República, o qual chegou a fazer uma visita à Bahia, acompanhado de seu ministro da Viação. A reação veio por José Marcelino e Severino Vieira, que controlavam o Congresso estadual (assembléia e senado) e o governo do Estado.     Pronto para a reação, o governo do Estado aumentou seu efetivo policial, recrutando jagunços, trazidos dos sertões e até retirados da cadeia, onde cumpriam penas pelos crimes cometidos. Ou seja, gente descompromissada com a vida e disposta ao que der e vier. Eram já 4.500 militares e mais de seiscentos policiais civis, todos de alta periculosidade.    Ocorridas as eleições municipais, em 1911, houve como de costume, divergência de resultados. Para garantir sua posição, o governo em exercício sitiou a cidade, interditando inclusive o Congresso e impedindo os parlamentares de exercer sua função. A justiça lhes concedeu o “habeas-corpus” e o governador Aurélio Viana recusou-se a cumprir a ordem judicial.    Estava aí o pretexto para a intervenção. O Governo federal ordenou que o general Sotero de Menezes pusesse suas tropas na garantia da lei, o que não aconteceu, pois o efetivo do Exército era menos de um terço do efetivo da polícia estadual. Dado que o governador insistisse em descumprir o mandado judicial, Sotero preferiu bombardear a capital, pelos fortes de São Marcelo e Barbalho, criando pânico na cidade e obrigando o governador Aurélio Viana a renunciar. No Rio de Janeiro, renunciava, também, o ministro da Marinha, em protesto pelo bombardeio. Reposto no governo, Aurélio Viana volta a renunciar, dias depois.     Realizaram-se, por último, as eleições para Governador e, contrariando a rotina, o nome do vencedor, J.J.Seabra, não foi contestado, sendo ele empossado, pacificamente, como governador da Bahia. A terceira “salvação” estava consumada.

Estado do Ceará   No Ceará, de há muito, a política era controlada pela família Accioly. Pressentindo que seu Estado seria o próximo a ser contemplado com a “salvação”, o governador Antônio Nogueira Accioly, que aspirava pela reeleição, cuidou de aumentar seu efetivo policial, nos mesmos moldes e pelo mesmo

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processo utilizado na Bahia. Em dezembro de 1911, desistiu da reeleição, mas impôs como candidato José Joaquim Domingues Carneiro, que lhe era obediente e continuaria a zelar pelos interesses da oligarquia que controlava o poder.    A oposição, apoiando-se no militarismo, apresentou um candidato saído dos quartéis, o coronel Marcos Franco Rabelo. A este candidato reuniram-se, também, todas as forças políticas que, por mais de vinte anos, se achavam afastadas do poder. Choques entre a polícia e a oposição passaram a ser freqüentes. Em 21 de janeiro de 1912, um domingo, a polícia dissolveu com extrema violência uma passeata de crianças e mulheres, que promoviam a campanha do coronel Rabelo.    Recusando-se, o governador, a entregar ao Exército o policiamento das ruas, foram convocados Tiros de Guerra de outras cidades para virem à capital para participar da luta. No dia 23, se concretizava a intervenção, com as tropas federais nas ruas. O governador tentou, então, outra manobra. Renunciou, entregando o governo ao sucessor legal,  Mauricio Gracho Cardoso, que era seu genro. A transferência foi impugnada e, no cargo, foi investido o dr. José Boaventura Bastos, em 24 de janeiro de 1912.    Em 12 de fevereiro, contrapondo-se à candidatura oposicionista do coronel Marcos Franco Rabelo, o grupo Accioly lançou, então, outro militar, o general Bezerril Fontenelle. Não ficou nem para um, nem para outro. Marcos Franco Rabello, da oposição, ganhou, tomou posse, mas não conseguiu maioria na Assembléia. Resultado: o grupo contrário obteve um “habeas-corpus”, instalou outra Assembléia paralela em Juazeiro e deu posse a Floro Bartolomeu, representante do Padre Cícero, que começava a despontar no cenário político. Reinou a paz no Ceará.

Estado de Alagoas   Era a família Malta que detinha o poder no Estado de Alagoas, protegida também por Pinheiro Machado e com uma solidez de concreto, que nenhuma política salvadora, aparentemente poderia derrubar. Embora o presidente da República fosse do Rio Grande do Sul, é bom que se lembre que sua família tem origem em Alagoas, onde nasceu o tio, marechal Deodoro, e onde vivia toda a sua parentela.

    Foi assim que, contra a vontade de Hermes, o grupo de salvadores, que representava a oposição, à procura de um nome para governador, resolveu lançar a candidatura do general Clodoaldo da Fonseca, um primo-irmão do Presidente, pouco afeito às lides políticas, mas que não resistiu ao convite para galgar tão alto cargo.    Os Maltas não deixaram por menos, e apresentaram a candidatura do general Olímpio da Fonseca, também parente do Presidente. Ficou então uma situação curiosa, que seria divertida, se não fosse trágica. Tínhamos agora dois candidatos, os dois militares, e os dois parentes do chefe da Nação que, a esta altura, ainda que quisesse, não teria mais condições para apoiar o candidato dos “salvadores”. Não durou muito a divisão. O próprio general Olímpio refletiu melhor e desistiu da candidatura, ficando a vaga em aberto. Enquanto se procurava um novo nome para substitui-lo, aconteceu que o governador Euclides Malta mandou reprimir uma manifestação de adeptos do general Clodoaldo, que se realizava na praça principal da cidade, com mortos e feridos de um e outro lado.    A reação popular a esse acontecimento foi grande e fortaleceu os oposicionistas. A essa altura, a vitória da oposição era tida como certa e ninguém queria queimar seu futuro político aceitando apresentar-se como candidato do governo, pelo que, à falta de um opositor, Clodoaldo da Fonseca foi eleito e empossado. Estava consumada outra “salvação”, e esta com sabor especial, por implodir a estrutura de concreto representada pela oligarquia dos Maltas.

Outras “salvações”   Vencida a força da inércia, o mecanismo das salvações passa a funcionar quase que automaticamente, e as oligarquias que dominavam os outros Estados foram caindo, uma a uma, sem grandes dificuldades. São Paulo livrou-se da ação “salvadora”, indicando para a sucessão do governador Albuquerque Lins, o respeitável nome do conselheiro Rodrigues Alves, ex-governador e ex-Presidente, contra o qual ninguém teria coragem de levantar a voz.     No Rio Grande do Sul, a presença de Borges de Medeiros, herdeiro político de Julio de Castilhos, não recomendava qualquer espécie de intervenção. Borges de Medeiros, através de sucessivas reeleições,

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vinha dominando o governo do Estado desde 1898 e, vamos adiantar, ainda ficará no poder até o ano de 1926, quando "blancos" e "colorados" se ajustam para um nome de consenso, o de Getúlio Dorneles Vargas. Mas isso é futuro. O importante é saber que, no Rio Grande do Sul, o status foi mantido.    O gaúcho Pinheiro Machado garantiu o prestígio no Estado natal, mas foi o grande perdedor na Política de Salvação Nacional, pois teve seu caminho cortado, passo a passo, em quase todos os Estados do país, tornando-se um gigante de pés de barro, imenso ainda, mas sem condições de se sustentar na nova ordem da política nacional.

Governo Hermes da Fonseca   Aos tantos problemas que atribularam o governo Hermes da Fonseca, ao final de mandato, pode-se acrescentar mais um, de caráter internacional, mas que viria afetar diretamente o Brasil. Em 1912, com a derrocada do Império Turco-Otomano, rebelam-se os povos iugoslavos, iniciando uma guerra local contra os turcos, numa coalizão formada por Montenegro, Macedônia, Sérvia, Grécia, Bulgária e Albânia. Derrotados os turcos, começam as lutas internas, o prenúncio da Primeira Guerra Mundial, que, em 1914, começaria bem ali, em Serajevo (Bosnia-Herzegovina).     Com o aumento da tensão internacional, os capitais externos começam a escassear, balançando a já precária situação financeira do Brasil, que se vê obrigado a recorrer a outra moratória. Os problemas econômicos se agravam com a queda na exportação da borracha, que agora enfrenta a concorrência asiática. Cai a renda proveniente da exportação do café, provocando um déficit na balança comercial. Concorrendo com a dívida externa, aumentam também os déficits orçamentários. O festival com dinheiro alheio, que começou no governo de Afonso Pena, mais precisamente a partir do Convênio de Taubaté, acabou.     Nesse quadro sombrio, nem era possível fazer uma administração grandiosa. Hermes da Fonseca se limitou a prosseguir as obras projetadas por Afonso Pena e continuadas por Nilo Peçanha, ampliando a rede ferroviária e estendendo, tanto quanto possível, a rede telegráfica. Foi em seu governo que se construiram os fortes de Copacabana, que, anos mais tarde, em 1922, viriam a ser palco de outra revolta militar, em

apoio ao próprio Hermes. Também esse é um assunto para o futuro.    Terminado o mandato, e passando o governo ao seu sucessor, Hermes envolve-se, pelo menos indiretamente, nas revoltas de 1922, é preso, depois é libertado, e retira-se para Petrópolis, onde morre, em 1923. Com o marechal Hermes, termina a participação da sua família na vida política nacional.

* * *Capítulo Oito

O  CAMINHO PARA A PAZVenceslau Brás - 1914-1918

   Transporte-se o leitor, por alguns momentos, para uma pacata cidade de interior. Por entre as árvores do bosque, um rio serpenteia, levando suas águas ao destino final de quase todos os rios, que é o imenso oceano. Numa curva, um pouco mais adiante, as águas se espraiam na várzea, formando um remanso. O curso de água, até então agitado, faz uma pausa, como se estivesse a tomar novo fôlego, antes de prosseguir sua longa viagem.    Numa de suas margens, encontramos um paciente pescador, que ajeita o caniço, coloca a isca que ele mesmo preparou e joga a linha sobre as águas. Em seguida, recosta-se ao tronco de uma árvore, cerra os olhos, como que dormitando, e põe-se a filosofar sobre a vida, o país, a política e o mundo em que vive, do qual participa intensamente, porém, num ritmo diferente de seus companheiros.    Se tal cena se passa nas primeiras décadas do século 20, se a região é o sul de Minas Gerais, e se a cidade escolhida para compor esta imagem for Brasópolis ou Itajubá, muito provavelmente, o tranqüilo pescador outro não é senão o sereno político mineiro Venceslau Brás Pereira Gomes.

Buscando um sucessor   Bem distante desse cenário, no Rio de Janeiro, na segunda metade do ano de 1913, o ambiente era totalmente diverso. Centro nervoso do país, a política do Distrito Federal fervilhava com as negociações para a escolha do sucessor do marechal Hermes da Fonseca. Um dos postulantes, pelos governistas, era Pinheiro Machado, embora negasse isso sistematicamente. O outro, representando a oposição, era, uma vez

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mais, Rui Barbosa, que sonhava em reencetar a campanha civilista de 1909.    Apesar de ter sido uma vítima indireta da Política de Salvação Nacional, que tirou do poder dos Estados os seus mais fiéis correligionários, Pinheiro Machado procurava, ainda,  articular sua própria candidatura. Para tanto, aplicava uma tática diversionista, lançando outros nomes que, em seguida, eram queimados, tal como já ocorrera em eleição anterior. Primeiro, ensaiou a candidatura de Rui Barbosa como nome de conciliação nacional. Rui aceitou estudar a proposta, mas encerrou o assunto, quando lhe foi colocada, como condição, a sua desistência a qualquer idéia de revisão constitucional. Pinheiro Machado já contava com essa recusa. Procurou, então o gaúcho Sabino Barroso, nome de prestígio e projeção, certo de que ele rejeitaria o convite. Como Sabino aceitou prontamente a candidatura, Pinheiro desconversou, encerrando o assunto.    O terceiro a ser consultado, e vetado em seguida, foi o mineiro Francisco Sales, que, quando ministro da Fazenda, teve um de seus atos questionado pelo Tribunal de Contas, o qual levantou suspeitas quanto à lisura do processo. Assim, a indicação do seu nome serviu apenas para tirá-lo da competição.  Passou, então, para o nome do governador do Rio de Janeiro, Oliveira Botelho, de quem obteve uma resposta negativa.

Uma segunda vertente    As forças de São Paulo e de Minas Gerais, adversas a Pinheiro Machado, e sonhando com o retorno da política do café com leite, reagiram às manobras citadas e apresentaram Venceslau Brás, como um nome de consenso. Era um político despretensioso, de gênio pacífico e conciliador. Quando vice-presidente do Estado de Minas, não criou dificuldades ao governador João Pinheiro. Por decisão própria afastou-se até a morte deste, em 1909, quando teve de assumir o governo e, ainda assim, manteve a política de seu antecessor, atraindo as simpatias daqueles que se achavam na órbita do poder. Eleito vice-presidente da República, em 1910, passou a ser oficialmente o presidente do Senado, conforme manda a Constituição. Preferiu, entretanto, retirar-se para Itajubá, afastando-se da política, com o que deu plena liberdade de movimentos, tanto ao

presidente da República, marechal Hermes da Fonseca, como ao senador Pinheiro Machado que, como vice-presidente do Senado, substituiu Venceslau no trabalho de articulação política.    Poderia haver melhor nome? O raciocínio dos governistas, tanto no bloco de Pinheiro Machado, quanto no dos adversários deste, era que, uma vez eleito Presidente, Venceslau Brás se renderia às articulações políticas vindas de fora, sem fazer oposição aos interesses dos grupos políticos dominantes. Não havia mais o que discutir. E assim, por unanimidade, escolheu-se o mineiro Venceslau Brás para Presidente, compondo chapa com o maranhense Urbano dos Santos, para vice.     Os adversários, por sua vez, firmaram posição, lançando o baiano Rui Barbosa e o paulista Alfredo Ellis, ambos apoiados pelo governador da Bahia, J.J.Seabra. Que não iam ganhar, já sabiam. O que verificaram logo é que não havia mais ambiente para arregimentar as massas, numa nova campanha civilista, como em 1909, até mesmo pela falta da motivação principal, que seria um opositor saído dos quartéis. Havia um protagonista, Rui Barbosa,  mas faltava o antagonista, um papel que, certamente, não cabia na personalidade de Venceslau Brás. Reconhecendo essa realidade, Rui anunciou sua desistência à candidatura, chegando-se, pois, às eleições, com uma chapa única.    Realizado o pleito, em 1º de março de 1914, contaram-se 532 mil votos para Venceslau Brás e 47 mil votos “de simpatia” para Rui Barbosa. Note-se que, para uma população em torno de 45 milhões de almas, o comparecimento às urnas foi insignificante, revelando, novamente, a desilusão dos grandes centros pela política nacional. No dia 15 de novembro de 1914, com apoio quase irrestrito, Venceslau Brás era empossado presidente da República para um mandato de quatro anos.

Quem era Venceslau Brás   Venceslau Brás Pereira Gomes nasceu na cidade de Brasópolis, próximo a Itajubá, em 1868. Na adolescência, mudou-se para São Paulo, onde completou seu curso secundário, matriculando-se, em seguida, na Faculdade de Direito do largo de São Francisco. Formado, volta ao interior de Minas, trabalhando, então, como promotor público.     Em Minas Gerais, elege-se deputado estadual por duas vezes e, em 1902, vai para

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a Câmara Federal. Em 1906, é eleito vice-Presidente de seu Estado e, em 1909, substitui o governador João Pinheiro, que falecera. Em 1910, é eleito vice-Presidente da República (por conseqüência, também presidente do Senado Federal), mas retira-se para Itajubá, onde passa a maior parte de seu mandato.    Agora, eleito e empossado presidente da República, Venceslau Brás organiza seu Ministério como segue: Justiça, Interior e Instrução, Carlos Maximiniano Pereira dos Santos, gaúcho e “colorado”; Exterior, Lauro Severiano Müller catarinense e descendente de alemães, que vinha já ocupando a pasta desde a morte do barão do Rio Branco; Fazenda, Sabino Barroso, gaúcho e homem de confiança do Presidente; Agricultura, João Pandiá Calógeras, engenheiro fluminense; Guerra, José Caetano de Faria, gaúcho e opositor de Pinheiro Machado; Marinha, almirante Alexandrino Faria de Alencar, gaúcho, que vinha do governo anterior; Viação, Augusto Tavares de Lira; Prefeito do Distrito Federal, Aurelino Leal, nome da confiança de Pinheiro Machado.    Como se percebe, uma boa parte do Ministério atendia a indicações do Rio Grande do Sul, fruto de entendimentos com o senador Pinheiro Machado e com o governador Borges de Medeiros. Venceslau Brás era casado com dona Maria Carneiro Pereira Gomes, tendo sete filhos: José Brás, Odete, Francisco, João Brás, Mário, Maria Isabel e Maria de Lourdes.

Vícios da República   Infelizmente, muito do tempo de um Presidente era tomado, não em atos administrativos do interesse da Nação, mas em resolver questões políticas e legais, resultantes do sistema eleitoral vigente.    Como se disse em capítulos precedentes, o voto de cabresto, as eleições abertas, registradas a bico de pena, as atas eleitorais falsificadas e, sobretudo, as Comissões de Verificação, formadas nos parlamentos para referendar ou modificar o resultado das eleições, acabavam por provocar batalhas judiciais, gerando sentenças que, na maioria das vezes não eram cumpridas pelos vencedores, os quais detinham o poder e a força policial para garantir suas posições.    Assumindo a Presidencia, Venceslau encontrou alguns desses casos pendentes e, com as eleições estaduais que se realizariam nos anos seguintes, outros novos casos

surgiriam, atormentando a vida do chefe da Nação e colocando-o entre dois fogos. O peso era maior para o novo Presidente, dado o compromisso assumido anteriormente, de que as forças policiais seriam colocadas para defender as decisões da justiça, ainda quando o governo não concordasse com elas.    Foi assim que se resolveram as questões surgidas nos Estados de Pernambuco, Piauí, Amazonas, Alagoas, Espírito Santo e Goiás. Mas houve um caso, o do Estado do Rio, envolvendo o ex-presidente Nilo Peçanha, que merece ser visto em separado, pela maneira inusitada com que ele se desenvolveu, comprometendo a independência dos três poderes da República.

O caso do Estado do Rio    O impasse criado no governo do Estado do Rio de Janeiro era uma bomba de efeito retardado que surgiu nas últimas eleições estaduais, dois anos atrás, e que Hermes da Fonseca vinha cozinhando, lentamente, em “banho-maria”, passando o explosivo ao seu sucessor, com todas as honras e glórias.    A querela vinha de longe e envolvia disputas pessoais, além do interesse puro e simples pelo poder. Nilo Peçanha, em 1908, elegeu seu sucessor no Estado, o correligionário Oliveira Botelho, contando com sua fidelidade. Botelho, entretanto,  rompeu com o chefe, passando a apoiar ostensivamente o bloco político do senador Pinheiro Machado.    Nas eleições a governador, em 1912, Oliveira Botelho, inopinadamente, lança o nome de Feliciano Sodré, figura pouco conhecida, mas do agrado de Pinheiro Machado. Furioso com a traição, Nilo Peçanha candidata-se, ele mesmo, para fazer frente aos seus desafetos.    Claro que, tendo sido governador do Rio de Janeiro e Presidente da República, enfrentando um adversário desconhecido do eleitorado, Nilo tinha todas as chances de vencer as eleições. Precavendo-se, o governador convoca a Assembléia Legislativa, onde conta com a maioria, e trata alterar a composição das forças na mesa da Assembléia que deverá julgar os resultados das eleições e determinar qual dos nomes será referendado. Retirando os nilistas dessa composição, o governador garante o sucesso das manobras que se farão na verificação dos resultados, momento em que a

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Assembléia deverá referendar o nome daquele que, segundo ela, foi o escolhido das urnas.    Indignada, a oposição nilista apresenta recurso junto ao Supremo Tribunal Federal, o qual anula o ato e manda restabelecer a antiga mesa da Assembléia. Orientada pelo governador, esta decide não cumprir a ordem judicial e impede a entrada da oposição em plenário. O governo, reforçando sua posição, manda cercar o prédio da Assembléia com tropas policiais. Como resultado, passa a haver, então, dualidade de Assembléias, uma apoiada pelo governador e outra firmada no acórdão do STF.

Crise que se espalha   A posse, sabe Deus de quem, deveria ocorrer a 31 de dezembro de 1914 e, como o marechal Hermes deixaria a Presidência em 15 de novembro, era preciso agir com rapidez. Os governistas, a 2 de outubro, solicitaram intervenção federal no Estado do Rio. O presidente da República, apoiando o candidato de Pinheiro Machado, aceita o pedido e envia mensagem ao Congresso, criticando a decisão do Supremo e solicitando estado de sítio para descumprir o mandado judicial. Na Câmara Federal, o deputado Fernando Mendes também critica o STF e pede que seja votada censura àquela Corte pela decisão tomada. Essa moção absurda é retirada do Parecer à mensagem sobre o estado de sítio, sob a alegação, mais absurda ainda, de que censurar o Supremo não é função da Câmara, mas do Senado!    Em 15 de novembro de 1914, sai Hermes e entra Venceslau, que havia jurado cumprir as decisões judiciais, sem entrar no juízo de valores das resoluções. Havendo interferido inicialmente na formação do gabinete, Pinheiro Machado pensava estar com força suficiente para acuar o novo presidente da República e vai ao Palácio, ameaçando retirar todo o Ministério sob seu controle e mais o apoio de suas bancadas na Câmara e no Senado, se o Presidente insistisse em enviar tropas na defesa da lei.    Nesse instante, Pinheiro percebeu que o mineiro sossegado e conciliador não era tão fácil de manobrar como havia parecido a princípio. Venceslau reagiu com energia, dispondo-se ele mesmo a demitir o Ministério, substituindo os nomes indicados pelo gaúcho por outros, vindos de outras partes do país, que fossem igualmente capazes, e que, diferentemente, estivessem

dispostos a servir a nação. Não havia mais o que conversar.    Em 27 de dezembro, quatro dias antes da posse, o grupo governista estadual manda ao Presidente uma representação pedindo providências contra a “indevida” interferência do Supremo Tribunal Federal em assuntos do Estado do Rio. Na forma da lei, o Presidente encaminha tal representação ao Congresso que, entretanto, caminhava para o recesso de fim de ano, pelo que houve muita agitação, mas nenhuma posição foi firmada.

Epílogo de uma crise    Havendo dualidade de Assembléias, em 31 de dezembro, passou a haver também uma dualidade de Governadores: Feliciano Sodré foi empossado pelos governistas, enquanto que Nilo Peçanha era empossado pela oposição. O Estado achava-se agora em ponto de confronto, numa tensão tal que qualquer incidente poderia levar à eclosão de  uma guerra civil.    O assunto arrastou-se por mais oito meses, até que, em 8 de setembro de 1915, ocorre o inesperado assassinato do senador Pinheiro Machado, que dava sustentação aos governistas fluminenses. Foi água na fervura. Perdendo sua base de apoio, os governistas desistiram da luta e Nilo Peçanha, por fim, é reconhecido como Presidente do Estado do Rio, para um mandato que vai até 31 de dezembro de 1918.    A crise que atingiu o Estado do Rio de Janeiro por mais de um ano não foi maior que as questões levantadas nos outros Estados, em disputas semelhantes. Ela é contada aqui para mostrar como, naquela época, era difícil a aplicação do princípio de independência entre os três poderes da República, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Usando de todos os estratagemas, cada um interferia abertamente na ação dos outros dois, causando desordens e tumultuando a vida do país.

O Brasil e a 1ª Guerra Mundial    O governo de Venceslau Brás se desenvolveu, todo ele, dentro do clima proporcionado pela Primeira Grande Guerra. Ela começou em 28 de junho de 1914, quatro meses antes da sua posse, e terminou em 11 de novembro de 1918, quatro dias antes do término do seu mandato, com a entrega da faixa ao seu sucessor. Assim, as diretrizes do governo ficaram limitadas e condicionadas a esse importante acontecimento histórico que,

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embora ocorrendo na Europa, influiu decisivamente na vida das três Américas.    Na primeira fase, participaram da guerra, como inimigos a Alemanha, a Áustria-Hungria, Turquia e Bulgária; como amigos, a Inglaterra (Império Britânico), a França e a Rússia czarista, acompanhadas, também, pela Sérvia e Montenegro (Iuguslávia) e pela Bélgica (Países Baixos) A Itália, embora aliada da Alemanha, acabou assinando um acordo secreto com a Inglaterra, passando para este segundo bloco. Em 1917, saiu a Rússia, premida pelos acontecimentos internos com a derrubada do Império e a instituição do regime soviético. Em compensação, entraram os Estados Unidos, seguidos pelo Brasil e pelos países da América Central. Permaneceram na neutralidade Argentina, México, Chile, Venezuela e Paraguai. Quanto ao Uruguai, Peru, Equador e Bolívia, estes ficaram em cima do muro, rompendo relações com os países inimigos, mas sem qualquer outro envolvimento. Parece complicado, não? Mas foram quatro anos, em que as forças se compuseram e se recompuseram, por ação de outros acontecimentos paralelos à guerra.    A partir de 1917, o Brasil teve bombardeados vários navios mercantes. Em represália, fez a apreensão de outros tantos navios alemães que se achavam na baía da Guanabara, bem como da canhoneira Eber, ancorada em Salvador. O ministro das Relações Exteriores, Lauro Müller, que vinha prestando bons serviços na diplomacia desde a morte do barão de Rio Branco, sofreu grandes pressões, por ser de origem alemã, e teve de renunciar, sendo substituído por Nilo Peçanha, que deixou o governo do Rio (depois de tanta disputa!) para atender a essa emergência.    O Brasil se manteve na neutralidade, em relação à guerra, até 1º de junho de 1917, quando foi decretado o Estado de Beligerância. Quatro meses depois, a situação se agravou e, em 26 de outubro de 1918, o Congresso Nacional "Reconhece e proclama o Estado de Guerra iniciado pelo Império alemão contra o Brasil".  Nossa participação efetiva foi o envio, ao campo de batalha, de médicos cirurgiões, auxiliados por um grupo de estudantes de medicina. Também enviamos soldados, mas apenas para guardar o hospital brasileiro de campanha.

    No plano interno, desde a retração dos capitais estrangeiros, no fim do governo Hermes da Fonseca, a situação ficou delicada, a ponto de termos de recorrer a uma nova moratória da dívida externa. Depois, com a guerra em andamento e o Brasil em neutralidade, aumentamos nossas exportações de produtos agrícolas e matérias primas. Impossibilitados de importar indiscriminadamente como fazíamos antes, tivemos que recompor a indústria nacional, azeitando as velhas máquinas enferrujadas e colocando-as novamente na produção de bens de consumo. Sem peças de reposição, tivemos de recorrer à mecânica nacional. Com isso, ativou-se a economia interna, resultando na geração de novos empregos. Como resultado de todas essas mudanças, ao término da guerra, nossa balança comercial tinha um apreciável saldo positivo.

Ronda da morte   O ano de 1918 foi marcado por outro acontecimento, paralelo à guerra, mas tão terrível como esta, como se a ira divina se abatesse sobre a humanidade com o intuito de destruí-la, antes que os homens o fizessem com suas próprias mãos. Falamos da gripe espanhola, importada da Europa, mas que chegou ao Brasil com toda a fúria, despertando horrores, causando desorientação geral, e enlutando centenas de milhares de famílias. Nem se sabe ao certo quantos morreram, pois não havia tempo nem condições para identificar os mortos. Nem as sete pragas do Egito, reunidas, causaram tanto estrago e geraram tamanho pavor quanto esta hecatombe, provocada pela epidemia, que chegou ao Brasil em março de 1918 e teve sua presença marcada nos meses seguintes.    As escolas fecharam, depois fechou o comércio e ficou semi paralisada toda a atividade produtiva. Todas as mãos disponíveis foram mobilizadas, de médicos e enfermeiros até voluntários que, a última hora, foram instruídos para prestar os mais elementares socorros. Nada disso evitou a imensa tragédia. Os mortos eram recolhidos pelas ruas, empilhados em caminhões e jogados em valas comuns, até que nem coveiros havia mais para abrir essas valas, tendo-se que mobilizar tropas militares para realizar o trabalho.     Ao fim, realizou-se a contagem dos prejuízos materiais, já que não se pôde contabilizar as perdas em vidas humanas.

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Houve depois o retorno das atividades econômicas. As férias escolares se prolongaram pelo ano inteiro e o Congresso Nacional aprovou um projeto, passando de ano todos os alunos da rede escolar, independentemente de exames. O Brasil sacudiu a poeira, deu a volta por cima, e reiniciou a vida, tal como havia feito após a guerra do Paraguai. Mas os que viveram, não esqueceram jamais, e contavam aos seus descendentes, com a vivacidade de quem esteve presente, o horror daqueles momentos.    Não que não tivéssemos, depois disso, outras gripes igualmente perigosas. Nos anos 50, por exemplo, registraram-se as epidemias da gripe coreana e, depois, da asiática. Mas, a esta altura, já havia meios rápidos para deter sua propagação, e o mundo contava, também, com poderosos remédios, capazes de cortar o mal antes que ele se agravasse. Já em 1918, houve a surpresa e o despreparo, além da  falta de saneamento básico, juntando-se, pois, vários fatores que contribuiram para transformar uma grande epidemia numa enorme tragédia.

Guerra do Contestado   Em 1912, a divisa entre Paraná e Santa Catarina era alvo de uma longa disputa entre os dois Estados. Tratava-se de uma vasta extensão de terras, indo desde o Rio Chopin, a oeste, até o Rio Negro, a leste. O governo de Santa Catarina apegava-se a uma documentação bastante antiga, que provava serem aquelas terras, originariamente, de seu Estado. O Paraná contestava com o conceito de posse efetiva, ou seja, mais importante que os títulos era a ocupação das áreas contestadas cujo desenvolvimento era fruto do trabalho deste Estado. A par da luta entre as duas unidades de uma mesma federação, eclodia outro movimento, de caráter popular e místico, resultante da miséria, do descaso social e de interesses econômicos, centralizados na produção da erva-mate.    Terminada a construção da estrada de ferro ligando São Paulo ao Rio Grande do Sul, os trabalhadores envolvidos nesse projeto foram simplesmente dispensados e abandonados ao desemprego. Com a valorização das terras às margens da nova ferrovia, estas foram concedidas a grandes companhias interessadas em projetos de colonização, trazendo, em conseqüência, a expulsão de posseiros que faziam nelas uma

agricultura de subsistência. A estes desocupados, junta-se uma terceira categoria, a dos jagunços, descompromissados com a lei e a ordem. Todo essa população de excluídos passa a afluir para as áreas em litígio, que não pertenciam nem ao Paraná, nem a Santa Catarina, já que sua posse estava sendo contestada por ambos os Estados.    Faltava apenas um líder carismático para levantar ali um movimento messiânico, como ocorrera em Canudos. Esse líder surgiu em 1912 na figura do monge José Maria, um biótipo do caboclo brasileiro que, à moda de Antônio Conselheiro, trazia também longos cabelos e barba espessa, dedicando-se a curas milagrosas e a pregar a restauração da monarquia.     Como em Canudos, também aqui o governo resolveu ignorar as questões sociais envolvidas no drama, preferindo atacar os rebeldes, de frente, com forças policiais. Mais infeliz que Antônio Conselheiro, o monge morre logo no primeiro embate com a polícia. Não obstante, os fanáticos prosseguem na empreitada, confiantes de que o líder ressurgiria dentre os mortos para retomar o comando. Quatro longos anos se seguiram, com os rebelados enfrentando as forças legais, quase sempre levando a melhor.    Decidindo liquidar de vez com o problema, o governo manda, então, formar um exército de sete mil homens, entregando-o ao comando do general Fernando Setembrino de Carvalho. A essa altura, começava-se a formar a nossa força aérea e os aviões fizeram sua estréia guerreando contra os próprios brasileiros. Era trabalho dos aviões dispersar os agrupamentos revoltosos, abrindo espaço para a penetração das forças de terra. Muitos desses infelizes, que não foram chacinados na operação de guerra, acabaram por morrer de doenças endêmicas como o tifo e a febre. Mas ainda sobrou um pequeno contingente, que se dispunha a prosseguir até a morte em sua guerra santa.     Em 1916, a situação começou a se acomodar, quando o presidente Epitácio Pessoa, agindo como árbitro da disputa entre os governos, levou-os a um acordo sobre os limites do Paraná e Santa Catarina, estabelecendo-se assim as responsabilidades de cada um pela ordem pública e social nos territórios. A paz com os revoltosos, passou, então, a ser uma questão de tempo, de firmeza e de habilidade na

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condução do assunto pelos próprios governos estaduais. Nem foi preciso convocar o Exército Nacional, como havia sugerido o general Setembrino, em seu relatório final.

Fim de governo   Considerados todos os componentes que limitaram a ação do governo central nesses quatro anos, especialmente o conflito mundial que afetou todos os países e, igualmente, o Brasil, o saldo do governo Venceslau Brás é, certamente, positivo. A moratória internacional já tinha sido acertada no governo Hermes da Fonseca. Coube a Venceslau fazer um governo de austeridade, cortando gastos, reduzindo cargos públicos ao mínimo e emitindo letras do tesouro para captação de recursos, as sabinadas, nome dado em alusão ao ministro da Fazenda, Sabino Barroso.    A guerra, longe de nos causar despesas, ajudou a consertar nossa precária situação econômico-financeira. Aumentamos as exportações, reativamos o setor produtivo, gerando novos empregos, e terminamos o período com um superávit em nossa balança comercial. O presidente maleável, como muitos achavam, mostrou que tinha energia e disposição suficiente para enfrentar os problemas, sem precisar de uma eminência parda a dirigir-lhe os passos e determinar seus atos.    Terminado o governo, e transferida a faixa ao seu sucessor, Venceslau Brás abandonou a carreira política e voltou para seu lugar de origem, a microrregião de Itajubá, onde o velho rio, descançando um pouco mais sobre o remanso, esperava pela volta do saudoso companheiro. O ex-Presidente, pôde, então, retornar ao habitual sistema de vida, ajustado ao ritmo da natureza, com a qual conviveu até os seus 98 anos de idade, muito bem vividos. Morreu de 1966, a tempo de ver caírem três repúblicas, e ainda a tempo de ver o surgimento de um Regime Militar, com o qual o país teve de conviver por 21 anos. Que Deus o tenha em sua companhia.

* * *Capítulo Nove

AS ESTRUTURAS DO PODERDelfim Moreira e Epitácio Pessoa

1918-1922

   O céu azul, com uma multidão de nuvenzinhas brancas, assemelhando-se a

um rebanho de carneiros pastando na imensidão das alturas, jamais faria prever a borrasca pronta a se desencadear sobre o país a partir de 1918, abalando as estruturas do poder, solapando rapidamente os alicerces da Primeira República, e fazendo com que, doze anos após, o imenso edifício viesse a desabar num só golpe, tal e qual um castelo de cartas.    Tudo ia muito bem. A 1ª Guerra Mundial permitiu restabelecer nossa balança comercial. Renasceu a indústria nacional, fazendo lembrar os tempos de Mauá, e aumentou a demanda por mão-de-obra nas cidades, originando uma nova classe de trabalhadores e desenvolvendo outro tipo de sindicalismo, mais consistente e organizado. No cenário mundial, os frágeis acordos entre os Estados, como a Tríplice Aliança e a “Entente Cordiale”, origens distantes do grande conflito, foram substituídos pela Liga das Nações, uma associação de todos os países em um único e sólido bloco, com um mesmo propósito e um só pensamento. As novas idéias entusiasmavam os acadêmicos.     O Brasil contava agora com sua grande oportunidade de se desenvolver e procurar um lugar entre os mais avançados países do globo. O governo de Venceslau Brás mostrou que era possível ao Presidente administrar o país com base na lei e no respeito à Constituição, sem se submeter a forças externas. Que mais faltaria para o país deslanchar rumo ao futuro?    Até mesmo a transição de governo parecia transcorrer calma e tranqüila. Morto Pinheiro Machado, vítima de mãos assassinas, no atentado ocorrido em 8 de setembro de 1915, a sucessão voltou ao âmbito da política do café com leite. A bola da vez volta para São Paulo e o conselheiro Rodrigues Alves é apontado para a sucessão presidencial, sem quaisquer contestações. Completando a chapa, entra o mineiro Delfim Moreira na vice-Presidência. As eleições transcorrem em clima de paz, no dia 1º de março de 1918, com chapa única, e a posse, conforme a Constituição, estava prevista para 15 de novembro de 1918.

Fim da Bonança   Os meses seguintes mostraram que a realidade não era assim tão colorida. Rodrigues Alves, como outros tantos, foi vítima da gripe espanhola, que eclodiu em março, logo após as eleições. Conseguiu recuperar-se desse mal, porém teve

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agravado o seu estado geral de saúde e não pode comparecer à posse, em 15 de novembro, assumindo o governo, provisoriamente, o vice-Presidente, Delfim Moreira.     Ciente de sua interinidade, o Vice confirmou o Ministério escolhido pelo titular, composto dos seguintes nomes: Relações Exteriores, Domício da Gama; Justiça, Interior e Instrução Pública, Urbano dos Santos da Costa Araújo; Fazenda. Amaro Cavalcanti, que declinou, sendo substituído por João Ribeiro; Viação e Obras Públicas, Afrânio de Melo Franco; Agricultura, Indústria e Comércio, Antônio de Pádua Sales; Guerra, Pandiá Calógeras; Marinha, Almirante Antônio Coutinho Gomes Pereira. Pela primeira vez, um civil é empossado no Ministério da Guerra, mas a situação transitória do governo não aconselhava contestação nos quartéis, ao menos naquele momento.    Rodrigues Alves muda-se de Guaratinguetá para o Rio de Janeiro, passando a morar numa casa da rua Senador Vergueiro, a mesma em que residira quando assumiu a Presidência pela primeira vez, de onde mantinha contatos diários com o seu vice. Por essa razão, a casa ficou conhecida carinhosamente como Catetinho, em alusão ao palácio presidencial. Quanto ao governo provisório, este foi ironicamente cognominado de Regência Republicana. O brasileiro não perde sua espirituosidade nem nos momentos mais difíceis...    Contrariando as previsões mais otimistas, em 17 de janeiro de 1919, dois meses após o dia em que deveria ter tomado posse, Rodrigues Alves veio a falecer e, como não havia transcorrido metade do mandato, a Constituição mandava convocar novas eleições. Sem problemas, dado que Delfim não ambicionava o continuismo e, por outro lado, sofria de esclerose, não tendo condições de enfrentar um mandato de quatro anos. Além disso, sem bases políticas, seu nome havia sido apontado apenas para compor a chapa e não exatamente para governar. Delfim Moreira, Presidente por acaso, era casado com dona Francisca Ribeiro de Abreu, tendo seis filhos: Antônio, Antonieta, Delfim, Alzira, Aída e Maria Anunciada.

Nova campanha presidencial   Encerrou-se, com este episódio, o curto período de tranqüilidade política, iniciado

com a escolha do Conselheiro. O presidente de São Paulo, Altino Arantes insistia em que o novo candidato também deveria ser paulista, com o que não concordava seu colega, o presidente de Minas, Artur Bernardes. Por outro lado, o Rio Grande do Sul passou a influir diretamente, pela figura mais representativa do Estado, o governador Borges de Medeiros, herdeiro político de Júlio de Castilhos, e tendo à sua volta o mais ferrenho conservadorismo e provincialismo do extremo sul.    No desempate, acorda-se em buscar um nome longe das influências sulistas e a escolha recai sobre um fazendeiro da Paraíba, Epitácio Pessoa. O novo candidato é um homem de imenso saber político e jurídico. Por sinal que, neste momento, se encontra na França, participando da Conferência de Paz, que se ocupava em dividir, entre as nações vencedoras, o espólio dos vencidos, mais especialmente da Alemanha e, discricionariamente, aplicava aos perdedores as sanções necessárias. O vice, já se sabe, continua sendo Delfim Moreira, já eleito e empossado no tempo devido.    Perdedor na Convenção que escolheu o candidato governista, Rui Barbosa parte para uma candidatura de oposição, apoiado por Nilo Peçanha, e lança-se, uma vez mais, na jornada cívica pelo país, sabendo, embora, que o jogo da sucessão já estava decidido. Realizadas as eleições, em 13 de abril de 1919, Epitácio Pessoa recebe 249.342 votos e Rui Barbosa, 118.303 votos.    Apenas para registro, Rui Barbosa pensou, inicialmente, em puxar o tapete do Presidente eleito, usando de todo o seu saber jurídico. Apegava-se ele ao fato de que Epitácio fora aposentado no STF por incapacidade física permanente. Ora, contestava Rui, se ele era fisicamente incapaz para exercer o cargo de juiz, como poderia ser considerado capaz para ocupar o mais alto cargo, que é a presidência da República? Afinal, Rui desistiu de sua retórica e aceitou a vitória do opositor.    A posse ocorre em 28 de julho de 1919 e, um mês depois, outra morte vem tumultuar o processo. Desta vez falecia o vice-Presidente, Delfim Moreira, e novas eleições foram realizadas para escolher seu sucessor, Francisco Álvares Bueno de Paiva, até então senador federal por Minas Gerais.

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Quem era Epitácio Pessoa    Epitácio Lindolfo da Silva Pessoa nasceu em Umbuzeiro, pequena cidade ao sul da Paraíba, na divisa com Pernambuco, sendo sobrinho do Barão de Lucena, político pernambucano e ex-ministro no governo de Deodoro da Fonseca. Estudou na Faculdade de Direito em Recife e, aos 25 anos, elegeu-se deputado constituinte Foi ministro da Justiça de Campos Sales, mas renunciou por desentendimentos com o Presidente que, apesar disso, indicou seu nome para ministro do Supremo Tribunal Federal, onde se aposentou por incapacidade física, conforme bem lembrou Rui Barbosa.    Na eleição, encontramo-lo na França, participando da Conferência de Paz, onde defendeu, com um brilhantismo que faz lembrar Rui, as duas reivindicações básicas do Brasil nas reparações de Guerra. Uma delas era o dinheiro que o Brasil tinha depositado no Banco alemão, proveniente da venda de quase dois milhões de sacas de café, depósito esse que a Alemanha bloqueou quando nosso país lhe declarou guerra. O crédito era incontestável, mas Inglaterra e França queriam que a indenização se fizesse pela conversão do marco de após guerra e não pelo marco no dia do depósito. Essa simples questão de câmbio daria ao Brasil um prejuízo em torno de 90 por cento do valor original. Com a interferência dos Estados Unidos, o Brasil conseguiu receber a indenização por seu valor real.    Outra questão que exigiu grande capacidade de negociação se referia aos navios apresados na baía da Guanabara, em represália ao afundamento, pela Alemanha, de vários navios mercantes brasileiros. O Brasil desejava ficar com as embarcações alemãs, mediante justa indenização, mas Inglaterra e França também tinham interesse de incorporá-las às suas frotas. Mais uma vez, a mediação dos Estados Unidos levou à vitória das posições brasileiras. Epitácio casou-se, em primeiras núpcias, com Francisca Justiniana das Chagas e, enviuvando, contraiu um segundo matrimônio com Maria da Conceição Manso Saião (Mary), com quem teve três filhas: Laura, Angelina e Helena.

Aí vem o Presidente!   Eleito presidente da República, e faltando quase três meses para a posse, Epitácio, com a família, resolve ficar na Europa,

recebendo homenagens e aproveitando convites que lhe foram feitos por vários chefes de Estado. Começa, então, uma viagem encantada, como só um príncipe dos velhos tempos sonharia ter. Primeiro vai à Bélgica, onde é recebido solenemente pelo rei Alberto e pela rainha Elisabeth, hospedando-se no palácio real. Regressando a Paris, recebe homenagens na Universidade de Paris e na Câmara de Deputados, além de ter um encontro com a colônia brasileira ali residente.      Em seguida, um trem real vem à França especialmente a buscá-lo para uma viagem à Itália, onde é recebido pessoalmente pelo rei, acompanhado da corte. Aproveitando o ensejo de sua presença na Península, faz uma visita protocolar ao papa Benedito 15. Voltando a Paris, é acolhido com pompa e recebe condecorações. Em seguida, um destróier inglês o leva a Londres, onde é recepcionado pela família real, visita o parlamento e cumpre um extenso programa.     Um cruzador inglês o leva, agora, até Lisboa, sendo recebido com entusiasmo pelo presidente da República, e com reservas pelos monarquistas. Volta, então, à França, onde o governo lhe coloca à disposição um cruzador para levá-lo aos Estados Unidos. O navio fica à deriva em pleno oceano. Grandes problemas ? De maneira alguma. Comunicado por telégrafo, o governo americano apressa-se em enviar um navio transporte, que recolhe toda a comitiva presidencial, transportando-a sã e salva para Nova York.     Sua chegada aos Estados Unidos faria inveja até ao Imperador D. Pedro 2º que, em seus melhores momentos, jamais tivera tão festiva recepção. O navio “Imperator”, transportando o Presidente eleito e sua comitiva, aproximou-se do porto de Nova York escoltado por uma esquadra de destróieres americanos, enquanto o forte anunciava a sua chegada com 21 salvas de canhão, representando os nossos 20 Estados, mais o Distrito Federal. Cada descarga era correspondida pelos canhões das outras fortalezas.      De Nova York, segue para o Canadá e, no início de julho, volta a Boston, ainda em tempo de assistir as comemorações do 143º aniversário da Independência dos Estados Unidos. Dois dias depois, usando um encouraçado que lhe fora colocado à disposição pelo governo americano, Epitácio

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Pessoa retorna, enfim, ao Brasil, fazendo uma escala no seu Estado natal para receber homenagens dos paraibanos. Prossegue, depois, na viagem, chegando triunfalmente no Rio de Janeiro, em 21 de julho de 1919, sete dias antes da posse. Então, navios de guerra do Brasil fazem escolta ao destróier americano, em sua entrada na baía da Guanabara.

Ministério   Anunciando seu Ministério, o Presidente, já empossado em 28 de julho de 1919, cria o primeiro confronto com as Forças Armadas, ao confirmar o nome de Pandiá Calógeras, um civil, para ocupar o Ministério da Guerra. E fez mais, confirmando também outro civil, João Pedro da Veiga Miranda, para o Ministério da Marinha. Foi o primeiro ministério da República que, ao seu início, não contou com a participação de militares.    Não tardou a reação. Logo após escolhido o Gabinete, Epitácio recebe em sua casa a visita do almirante Antônio Coutinho Gomes Pereira, ex-ministro da Marinha durante interinidade de Delfim Moreira, o qual manifesta sua preocupação com relação ao estado de ânimo dos quartéis, conforme depoimento do próprio Presidente: "Na véspera da minha posse, às 11h30 da noite, em minha residência, um dos mais prestigiosos generais da Armada me aconselhava a recuar daquele propósito, para não expor o país às vicissitudes de um movimento armado. Respondi-lhe como devia: 'Amanhã a imprensa publicará a nomeação de um civil para a Pasta da Marinha; a Armada, digo mal, os indisciplinados da Armada que tomem a responsabilidade de perturbar a ordem constitucional da República pelo fato de não querer o Presidente, no uso incontestável de seu incontestável direito, reconhecer-lhes título de propriedade sobre uma das Pastas do Governo. Resistirei e veremos como se comporta a nação'. No dia seguinte, com efeito, os jornais davam a nomeação de dois ministros civis para as Pastas militares."    O Ministério completo era assim formado: Relações Exteriores, José Manuel de Azevedo Marques, por São Paulo; Justiça, Interior e Instrução Pública, Alfredo Pinto Vieira de Melo; Agricultura, Indústria e Comércio, Ildefonso Simões Lopes, pelo Rio Grande do Sul; Fazenda, Homero Batista, pelo Rio Grande do Sul; Viação e Obras Públicas, José Pires do Rio, engenheiro

paulista; Guerra, João Pandiá Calógeras, por Minas Gerais; Marinha, Raul Soares, também por Minas Gerais.

Obras do governo    Sendo de origem nordestina, e conhecedor dos terríveis problemas gerados pela seca, que transformava a pobreza em miséria e a miséria em indigência total, Epitácio Pessoa cuidou de incluir, pela primeira vez na História da República, um programa sério de combate à seca. Não foi por acaso que pôs, no ministério da Viação, o engenheiro Pires do Rio, que já dirigira a Inspetoria de Obras contra as Secas, conhecendo os métodos empregados até então, que consistiam simplesmente em criar frentes de trabalho para minorar a tragédia durante os períodos críticos, sem nenhum trabalho de estrutura para assentar os retirantes em suas cidades de origem.     Infelizmente, muitas das obras iniciadas tiveram de ser interrompidas pela forte pressão dos barões do café que achavam um desperdício empregar verbas no cultivo da indigência, quando esse dinheiro, segundo eles, poderia ser melhor empregado no incremento da cultura cafeeira, gerando maior quantidade de empregos. E com a interrupção do programa, muitos dos empreendimentos ficaram inacabados, inutilizando os recursos despendidos.    No que tange às Forças Armadas, cuidou-se da remodelação do Exército, da reconstrução de unidades navais e do adestramento do pessoal. Redimindo uma dívida que vinha desde a Proclamação da República, Epitácio revogou o decreto de banimento da família real, fazendo trasladar para o Brasil os restos mortais do Imperador Pedro II e da Imperatriz Tereza Cristina. Uma das grandes obras de urbanização no Rio de Janeiro foi o desaterro do morro do Castelo com um avanço para o mar, formando uma explanada onde se construíram as obras para a exposição do 1º Centenário da Independência.    Mas também cometeu os mesmos erros de seus antecessores. Tentou suspender a sangria de recursos públicos com a valorização artificial do café, medida corretíssima. Mas, pressionado uma vez mais pela oligarquia cafeeira, voltou atrás, reavivando  o Convênio de Taubaté, que mantinha uma caixa de conversão com reservas para a sustentação dos preços. Ao contentar os fazendeiros, desgostou os

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industriais que, a esta altura, já tinham um peso político apreciável. Desvalorizou, também, a moeda, provocando a inflação. O aumento de custo de vida gerou manifestações de rua que foram reprimidas com violência.

Sucessão   Depois da posse, qualquer Presidente tinha de gastar a primeira metade de seu quadriênio resolvendo questões com os Estados, e a outra metade resolvendo questões com a sucessão presidencial. Para Epitácio, a primeira parte até que foi simples, resumindo-se a uma intervenção na Bahia para garantir a posse de seu correligionário, J.J.Seabra, cuja vitória era contestada pela oposição, liderada por Rui Barbosa.    O problema maior, estava na sucessão, cuja discussão incendiou o ambiente político dois anos antes das eleições. Lançou-se o nome de Artur Bernardes, governador de Minas, aceito sem restrições, sofrendo só a oposição feita pelo governador gaúcho, Borges de Medeiros. Quanto à vice-presidência, Epitácio sugeriu que o nome viesse do nordeste, o que provocou, desde logo, uma disputa pela indicação, entre J.J.Seabra, da Bahia, e José Bezerra, de Pernambuco. Epitácio optou por um terceiro nome, o do maranhense Urbano dos Santos, que já havia sido vice de Venceslau Brás.    Não se conformando com a solução, um grupo de políticos passou para a oposição, criando um movimento que ficou conhecido como “Reação Republicana”, e que lançou como candidatos o fluminense Nilo Peçanha para Presidente e, para vice,  o baiano  J.J.Seabra, que tanta celeuma causara há pouco, para empossar-se no governo da Bahia.

Cartas atribuídas a Artur Bernardes   Nunca uma campanha republicana se desenvolvera em nível tão baixo e jamais se utilizara de expedientes tão mesquinhos, nos quais o que menos influia eram os interesses da nação.    O episódio que mais agitou o período foi o de duas cartas, escritas em junho de 1921 e atribuídas a Artur Bernardes, nas quais este faz desconsiderações ao Exército e, especialmente, ao marechal Hermes da Fonseca, ao qual chama de "sargentão sem compostura". Os envolvidos no rumoroso caso foram os cidadãos Oldemar Lacerda e Jacinto Guimarães, desconhecidos dos meios políticos, que confessaram, mais

tarde, terem falsificado as missivas, a mando não se sabe de quem, porque a ninguém interessou investigar. O senador Irineu Machado acolheu os dois cidadãos e encaminhou as cartas, como verdadeiras, para o jornal “Correio da Manhã”. O jornalista Mário Rodrigues, diretor-substituto do jornal, não só publicou as cartas, como também fez pesados comentários contra Artur Bernardes.     De todos, o único a parar na cadeia foi o jornalista. O senador estava protegido por imunidade parlamentar. Os dois mentores da carta assinaram uma ata, em maio de 1922, confessando a falsificação. Logo em seguida foram liberados sem que se abrisse inquérito contra eles, nem tampouco foram julgados, a qualquer tempo, pelo crime supostamente cometido. Com isso, ficou a desconfiança, sempre presente, de que as cartas poderiam mesmo ser verdadeiras, e que a confissão teria sido um arranjo político. Se verdadeiras ou falsas tais cartas, jamais se saberá.    As eleições presidenciais se realizaram em 1º de março de 1922, com a vitória certa de Artur Bernardes. A partir daí, os acontecimentos, nas áreas política e militar, caminharam com a velocidade e a violência de um furacão.

Questão de Pernambuco   Era governador de Pernambuco Severino Pinheiro, apoiado por Rosa e Silva e Manuel Borba. A família de Epitácio Pessoa estava na oposição, apoiando o bloco político de Estácio Coimbra e Dantas Barreto. Na campanha pela sucessão estadual, os governistas apoiavam o senador José Henrique Carneiro da Cunha, enquanto a oposição se fixava no nome do prefeito de Recife, Lima Castro. No apoio à oposição, pretextando a preservação da ordem, o presidente Epitácio manda o coronel Jaime Pessoa para comandar as tropas aquarteladas em Recife. Foram, também, requisitadas forças da Paraíba para reforçar o efetivo pernambucano.    A campanha desenvolveu-se pelos mesmos caminhos tortos sobre os quais transitavam, corriqueiramente, as campanhas políticas no nordeste. As tropas iam à rua para manter a ordem e, na repressão havia tiroteios, invasão de jornais e atos de força que, em pouco tempo, criaram na população um estado de pânico.    Houve, então, um incidente maior, que serviu para jogar gasolina no fogo. Uma patrulha estacionada na entrada da cidade

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tinha como missão eliminar o governador do Estado, no caminho ao Palácio, sendo sua referência apenas a descrição do carro que seria usado pela autoridade. Por uma infeliz coincidência, no lugar certo mas na hora errada, passava outro carro semelhante ao do governador, que foi prontamente fuzilado, matando seu ocupante, Tomás Coelho, um advogado alheio a qualquer movimento político. Exames periciais comprovaram que o tiro partiu de uma carabina Mauser, de uso privado das Forças Armadas.

Motim    Iniciava-se o tumultuado mês de julho de 1922. Contrária às violências em que, involuntariamente, tinha que se envolver, rebelou-se a jovem oficialidade de Pernambuco e o tenente Oliveira Leite, em boa fé, enviou um telegrama ao Ministro da Guerra, denunciando seu superior, o coronel Jaime Pessoa. Em conseqüência de seu ato, foi punido com prisão.    Alguns de seus colegas, sentindo ser inútil qualquer reclamação ao Governo central, fazem um apelo ao presidente do Clube Militar, marechal Hermes da Fonseca, que vai ao socorro dos rebelados, enviando-lhes uma mensagem de ânimo, incitando-os à luta, e afirmando que "os governos passam, e o Exército fica". Interpelado pelo Ministro da Guerra, o marechal confirma a autoria do telegrama, recebendo voz de prisão e sendo mantido, quase que incomunicável, no quartel do 3º Regimento de Infantaria, sob o comando do Cel. Severino Correia. Note-se a inversão hierárquica, quando um coronel mantêm sob prisão um marechal. Ato contínuo, seus companheiros assumem, solidariamente a responsabilidade pelo teor do telegrama e, em represália, o governo manda fechar o Clube Militar.    O episódio, no início circunscrito ao Estado de Pernambuco, torna-se agora um problema nacional, levantando o ânimo da jovem oficialidade em vários pontos do país, sobretudo no Rio de Janeiro, Paraná e Mato Grosso. Jamais se apurou se as revoltas que se seguiram foram resultado de uma explosão imanente, ou se eram fruto de uma conspiração há muito engendrada, cuja senha foi o telegrama de Hermes aos jovens militares pernambucanos.

A revolta de 5 de julho de 1922   Começa aqui a rebelião que iria se desdobrar na formação do tenentismo, responsável por todo um ciclo revolucionário

que iria desaguar na Revolução de 1930, com o fim da Primeira República. O movimento deveria eclodir no Rio de Janeiro, na madrugada de 5 de julho de 1922, com uma operação coordenada, envolvendo a Vila Militar, a Escola Militar e o Forte de Copacabana, além de outros quartéis isolados. Merece registro, de passagem, a 1ª Cia. Ferroviária, instalada em Deodoro, cujo comando caberia ao capitão Luís Carlos Prestes, mas que não chegou a entrar em ação, dado que Prestes contraiu tifo, ficando preso ao leito. Entrariam em armas, também, os quartéis de Curitiba e as guarnições de Mato Grosso, estas últimas sob o comando do general Clodoaldo da Fonseca, primo-irmão do marechal Hermes.    No Paraná o movimento foi abortado desde o início, pela traição de um dos envolvidos no plano. No Mato Grosso, a  sublevação também não teve muito sucesso, e a rendição foi assinada, sem maiores danos. O grande problema, como não poderia deixar de ser, foi a cidade do Rio de Janeiro, sede do Governo central, do Clube Militar ora fechado, e onde se achava o marechal Hermes. Este, após 17 horas de prisão, foi libertado, indo para o hotel onde residia e depois, despistando os que o vigiavam, fugiu e abrigou-se na chácara de um de seus filhos, Mário Hermes, militar e deputado federal.

Na Vila Militar    Uma falha nas comunicações levou ao fracasso do levante na Vila Militar, uma das peças chaves da rebelião. Tinha ficado entendido que, uma vez liberto, o marechal acharia um meio de se deslocar até aquele local e a sua chegada seria a senha para que os dois regimentos revoltosos descessem à cidade.     Segundo um depoimento prestado muito recentemente pelo já então brigadeiro Eduardo Gomes, houve um mal entendido quanto ao teor da mensagem, achando o marechal que deveria aguardar na chácara pela passagem dos regimentos, quando lhe seria entregue o comando.    Esse desentendimento resultou fatal, pois a rebelião, contida a tempo, permitiu que se reorganizassem as forças leais ao governo, as quais foram, mais tarde, utilizadas na repressão à Escola Militar.

Na Escola Militar   A rebelião na Escola Militar contava com um comando selecionado, composto de

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vários instrutores e tinha tudo para dar certo. Entre os rebelados estavam Juarez Távora, Odilio Denys, Stênio Caio de Albuquerque Lima e Edmundo de Macedo Soares. O comando geral coube ao coronel José Maria Xavier de Brito, veterano da guerra de Canudos e, neste momento, dirigindo a Fábrica de Cartuchos do Realengo, também envolvida na conjuração. Na operação, cuidou-se de vigiar o comandante da Escola, general Monteiro de Barros, que foi impedido de sair de sua casa, após uma troca de tiros. Sob vigia estavam também os soldados suspeitos de contrariar o movimento.    Na hora combinada, a Escola saiu em direção à Vila Militar onde, pensavam, já encontrariam um contingente de rebelados aos quais deveriam se juntar. Ao caminho, receberam um mensageiro informando que a sublevação naquele local fracassou e a tropa estava de prontidão, sob o controle dos oficiais leais ao governo.    Para testar a real situação, os rebelados tiveram a infeliz idéia de disparar alguns tiros contra a Vila Militar. Foi como atirar pedras a um vespeiro. Unidades formadas em combate deixaram os quartéis e avançaram no contra-ataque, num confronto que, logo no início, deixou morto o cadete Irapuã Xavier, além de outro que ficou ferido.     Não havia condições de enfrentamento e a causa estava sabidamente perdida. Em ordem, os alunos voltaram à Escola por ordens do próprio coronel-comandante Xavier de Brito. No livro de ocorrências, o tenente Juarez Távora registrou os acontecimentos, segundo sua própria versão, e os amotinados ficaram no aguardo das conseqüências. Por volta do meio-dia houve prisões em massa, sendo os prisioneiros levados para vários locais, inclusive para a ilha das Cobras.

No Forte de Copacabana    O mais grave dos movimentos, nesse 5 de julho, foi o que ocorreu no Forte da Igrejinha, ou Forte de Copacabana, subordinado ao 1º Distrito de Artilharia da Costa. Era comandante da Artilharia o General Bonifácio da Costa e o Forte se achava sob o comando do capitão Euclides Hermes, filho do marechal. Ao raiar do dia, como já vimos, estavam debelados os movimentos da Vila e da Escola. Muitos dos oficiais que não tinham conseguido se juntar aos rebelados, mas que faziam parte da conspiração, trataram de buscar abrigo no único lugar seguro, que,

naquele momento, era o Forte. Assim, além de sua população habitual, achavam-se lá, homiziados, mais de trezentos oficiais e praças.     Cumprindo ordens do ministro Pandiá Calógeras, o General Bonifácio se dirigiu ao Forte com o capitão José da Silva Barbosa, a quem pretendia entregar o comando, substituindo o filho de Hermes. Ambos foram presos. Mais tarde, dois outros tenentes legalistas foram ao Forte ver o que acontecia e um deles, o tenente Mário Tamarindo Carpenter aderiu à revolta e lá ficou. Depois, outros sessenta militares que se achavam no Forte do Vigia comunicaram ao seu comandante que estavam aderindo à revolta. Sequestraram um bonde e foram se juntar aos companheiros de Copacabana.    Iniciou-se a ação armada, primeiro com tiros secos de canhão, apenas para permitir que a população fugisse. Depois, um novo canhonaço, desta vez com carga pesada, direcionado ao QG do Exército, mas que caiu na casa ao lado, matando três civis. O ministro da Guerra, em pessoa telefonou aos rebeldes e repreendeu-os pelo tiro errado que causou vítimas no edifício ao lado. Não devia ter feito isso. Corrigindo a posição do canhão, os rebelados mandaram novo tiro, certeiro, que atingiu em cheio o Quartel General, levando à retirada o Ministro e todo o seu Estado Maior.

Dezoito do Forte    Embora vitorioso, o Forte não podia se sustentar por muito tempo e os chefes tinham consciência de que a repressão aniquilaria a todos. O capitão Euclides Hermes saiu para parlamentar com o ministro Pandiá Calógeras. Foi preso. De toda aquele contingente abrigado na fortaleza, que já não era tão segura, a maioria resolveu se retirar, ficando apenas 28 homens: O 1º tenente Siqueira Campos, o 1º tenente Eduardo Gomes, o 2º tenente Newton Prado e o 2º tenente Mário Tamarindo Carpenter, mais soldados, praças e alguns civis.    A reação legalista começou a se fazer sentir, lenta e pesadamente, sobre o Forte, que se achava cercado e acuado, sem condições de luta contra todas essas forças de terra e de mar, dispostas a manter a ordem legal. Não adiantava prosseguir, pois a derrota era apenas uma questão de tempo.    Decidiram, então, ir à rua e marchar sobre o Palácio, de peito aberto, fazendo um avanço suicida e inconseqüente. Dos 28 que

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se achavam no Forte, apenas 17 se dispuseram ir ao sacrifício. A Bandeira Nacional foi, então, cortada em 18 pedaços (cortar em 17 era muito complicado). Cada um recebeu uma daquelas tiras e o 1º tenente Siqueira Campos ficou com duas delas. Caminhando pela rua, encontraram um cidadão gaúcho, Otávio Correia, que se juntou ao batalhão. Completaram-se, assim, os 18 que caminharam para a morte e que se transformaram nos heróis do Dezoito do Forte.    Sem proteção, e sem condições de ataque, pouquíssimos sobreviveram. Dos quatro tenentes, Carpenter morreu na hora, Newton Prado, gravemente ferido, morreu depois. Siqueira Campos, ferido, sobreviveu e ainda participou de outros movimentos, até 1930, quando morreu afogado, após voltar de um encontro com Luís Carlos Prestes. O único sobrevivente foi Eduardo Gomes, que participou do movimento tenentista e, na 2ª República, tornou-se Brigadeiro do Ar e fundador da Força Aérea Brasileira. Em 1946 foi candidato à Presidência da República e, até 1981, quando faleceu, teve participação ativa na vida política brasileira.

Independência e morte   Estavam comprometidas de vez as comemorações dos 100 anos de Independência do Brasil, cujas festividades vinham sendo ansiosamente aguardadas nos últimos anos. Não havia mais os cadetes da Escola Militar, com suas fardas imponentes para brilhar na abertura dos desfiles. Parte da jovem oficialidade, e dos soldados que aderiram a ela, se viu envolvida em grossos processos judiciais, que ainda se arrastariam por muitos anos, antes de chegar à anistia geral.    A grande exposição planejada para o pavilhão na esplanada do Castelo se realizou, mas sem o mesmo brilho. Os desfiles também aconteceram, mas o que se passava pela cabeça daqueles jovens, depois de todos os acontecimentos vividos há pouco mais de um mês ? Como se sentia o Governo, incluídos, nessa expressão, também o Senado e a Câmara, caixas de repercussão da opinião nacional, incluídos ainda a Justiça e o Ministério Público, envolvidos no desenrolar dos processos contra os jovens militares? E como se sentia, toda ela, a cidade do Rio de Janeiro, depois desses acontecimentos ?

O movimento de 5 de julho de 1922, marcado pela morte, foi na verdade o nascimento de uma nova mentalidade, dentro e fora da caserna, gerando a continuidade de movimentos revolucionários que enfraqueceram as oligarquias dominantes, minando  a base de sustentação dos governos fortes, os quais, a partir dessa data, tiveram conviver com um poder paralelo que, poucos anos mais tarde, chegaria ao governo.    Quanto a Epitácio Pessoa, completou seu mandato em 15 de novembro de 1922, sendo, logo após, nomeado juiz da Corte Permanente de Justiça Internacional de Haia, onde permanece até a queda da Primeira República, em 1930. Então, retira-se à vida privada e morre, em 1942, aos 77 anos, vítima do mal de Parkison.

* * *Capítulo Dez

A REVOLUÇÃO DOS"TENENTES"

Artur Bernardes - 1922-1926

    O ano de 1922 foi um divisor de águas, dentro da Primeira República. Não que a classe política, de alguma forma, tenha se reabilitado. Os métodos de ação continuavam os mesmos: eleições fraudadas, dualidade de poderes, interferências do poder central nas unidades da federação, decretação freqüente de estado de sítio, enfim, os mesmos velhos costumes que iam passando de um governo para outro, transformando a democracia numa ficção.    Todavia, o episódio das cartas supostamente escritas pelo candidato à Presidência, Artur Bernardes, aviltando o Exército e seus oficiais, coloca em marcha um processo revolucionário que se estende por oito anos, minando as estruturas da República Velha e provocando sua queda. Não importa se tais escritos são verdadeiros ou falsos. Vale sim que o episódio é o combustível de faltava para atear fogo ao sistema político e social vigente, a busca de outro que contemple, com novas regras, as multidões condenadas a uma vida de pobreza, por vezes, indigente. Pelo menos, a intenção confessa era essa.    O mentor do processo, em seu início, foi o ex-Presidente marechal Hermes da Fonseca, entusiasmando a jovem oficialidade e motivando-a a empreender as mais rebeldes

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e impensadas revoltas, todas elas derrotadas no campo militar, mas trazendo aos governos um desgaste político irreparável.. Começou por Pernambuco, espalhou-se para o Rio de Janeiro, Paraná e Mato Grosso. Ao morrer o marechal, em 1925, a ação tinha já moto próprio,  gerando um movimento guerrilheiro que, durante dois anos e meio, percorreu o país, para se auto-dissolver, quando concluiu que os resultados políticos da operação já estavam alcançados.    Esses jovens, que promoveram o processo conhecido como tenentismo, atravessaram os anos vinte e marcaram sua presença nas décadas seguintes. Dois deles, bem mais tarde, foram candidatos à presidência da República. Eduardo Gomes chegou até a patente de marechal-brigadeiro e coube a ele fundar a Força Aérea Brasileira, da qual é patrono. Os nomes de muitos outros nos são familiares e aparecem, ora ocupando ministérios, ora envolvendo-se em acontecimentos mais recentes da vida nacional. Vale à pena, pois, conhecer o fascinante trajeto do tenentismo e ver como ele mudou a história do país.

Campanha eleitoral   Artur Bernardes já era candidato à presidência da República quando, a 10 de outubro de 1921, surgem as cartas a ele atribuídas, tendo como destinatário o líder político mineiro Raul Soares. Todo o escândalo em torno do assunto não impediu o prosseguimento da campanha eleitoral, como não evitou, também, que Bernardes ganhasse as eleições, que se realizaram em 1º de março de 1922, derrotando Nilo Peçanha, seu opositor na Reação Republicana.    O restante do ano desenvolveu-se em tumulto generalizado, com revoltas militares e prisões em massa, conforme já foi contado no capítulo anterior. Dentro desse clima tumultuado é que se deu a posse, na data prevista, ou seja, em 15 de novembro de 1922.    O vice-Presidente eleito, Urbano dos Santos, morreu dois meses após a eleição. Aproveitando-se disso, J.J.Seabra, o candidato a vice pela oposição, vai ao Supremo Tribunal Federal para pleitear sua posse no lugar do falecido, já que ele foi o segundo mais votado. Só poderia ser, pois havia apenas dois candidatos... O STF negou provimento ao recurso e a manobra não logrou êxito. Então, foi eleito para o cargo o

deputado Estácio de Albuquerque Coimbra, que era o líder do Governo na Câmara Federal.

Quem era Artur Bernardes    Artur da Silva Bernardes nasceu em 1875 em Viçosa, 150 quilômetros a sudeste de Belo Horizonte. Formado em Direito, inicia sua carreira pública como vereador em sua pequena cidade e logo demonstra sua capacidade de comunicação e arregimentação política. Torna-se primeiro deputado estadual e, depois, deputado federal. Destaca-se como secretário de Finanças do governo de Minas e acaba se elegendo presidente do Estado.    Sua projeção em nível nacional se dá com a candidatura à presidência da República, dentro do esquema São Paulo-Minas Gerais, mas enfrenta uma forte oposição, tanto durante a campanha, como no decorrer de seu quadriênio. Basta lembrar que, dos 48 meses de governo, 44 se desenrolaram sob estado de sítio, com a suspensão de garantias constitucionais.    Dois de seus opositores morrem logo no primeiro ano de governo: o marechal Hermes da Fonseca, pivô das revoltas militares, e o tribuno Rui Barbosa. Os outros adversários, quando pôde, ele não perdeu oportunidade de neutralizá-los, de modo a não atrapalhar sua gestão. Entre eles, Nilo Peçanha, líder da Reação Republicana, e Borges de Medeiros, que se manifestou contra sua candidatura.    Formou seu primeiro Ministério com os seguintes nomes: Relações Exteriores, José Felix Alves Pacheco, piauiense; Justiça, Interior e Instrução Pública, João Luís Alves, mineiro; Fazenda, Rafael de Abreu Sampaio Vidal, paulista; Viação e Obras Públicas, Francisco Sá, cearense, que já havia ocupado o cargo na gestão de Nilo Peçanha; Agricultura, Indústria e Comércio, Miguel Calmon du Pin e Almeida, baiano; Guerra, general Fernando Setembrino de Carvalho, gaúcho; Marinha, almirante Alexandrino Faria de Alencar, gaúcho. Este último veio a falecer em 1926, sendo, então substituído pelo almirante Arnaldo Siqueira Pinto da Luz.

Nilo Peçanha e a sucessão fluminense   Assumindo a Presidência, Bernardes sente sua autoridade contestada no outro lado da baía da Guanabara, no Estado do Rio de Janeiro, quando são eleitos governador e vice, respectivamente, Raul Fernandes e Artur Leandro de Araújo Costa, ambos

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apoiados por seu opositor na campanha federal, Nilo Peçanha. Os candidatos da simpatia do Presidente eram Feliciano Pires de Abreu Sodré e Paulino de Souza (governador e vice).    Seguiu-se o de sempre. As eleições foram fraudadas, sob o controle nilista. Então, instalaram-se duas Assembléias Legislativas, cada uma com sua Comissão de Verificação de Poderes. A primeira reconheceu e empossou Raul Fernandes, nilista; a segunda fez a mesma coisa com Feliciano Sodré, bernardista. O advogado do primeiro, Assis Chateaubriand, obtém um habeas-corpus no Supremo Tribunal Federal. Bernardes encaminha o caso ao Congresso para que este se incumba de referendar um dos nomes, logicamente, o de sua escolha.    Então, como ocorressem distúrbios nas ruas de Niterói, o presidente da República decreta intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, dissolve as Assembléias Legislativas e convoca novas eleições, nas quais teve o cuidado de garantir a vitória de seu preferido, Feliciano Sodré. Estava anulada no Estado, pelo menos em seu governo, a interferência política de Nilo Peçanha.

Borges de Medeiros e a sucessão gaúcha

   No Rio Grande do Sul, é exagero falar em sucessão, pois, desde 1898 que Borges de Medeiros vem sendo o sucessor dele mesmo, permanecendo continuamente no poder, salvo em raros momentos em que teve de se licenciar, quando, então era substituído pelo vice, por sinal, nomeado pelo próprio governador.    Na campanha sucessória de 1922, entretanto, o caudilho teve de enfrentar um forte opositor, Assis Brasil, que saiu de seu exílio voluntário no Castelo de Pedras Altas, para dar-lhe combate franco e aberto, numa aliança popular que recebeu o nome de Aliança Libertadora.     As eleições se deram em 25 de novembro de 1922. De um lado e do outro a fraude foi utilizada sem cerimônias. Como conta o escritor gaúcho, Mem de Sá, "todos podiam votar. Podiam e votavam umas dez vezes, em mesas eleitorais diferentes, em municípios próximos. Os mortos, quisessem ou não, votavam também, engordando as urnas..."    Venceu Borges de Medeiros, cujo nome foi, a contragosto, chancelado pela Comissão

de Constituição de Poderes, formada pelos deputados Getúlio Vargas, Ariosto Pinto e José Vasconcelos Pinto. Como não alcançasse os três quartos do eleitorado, conforme mandava a Constituição, Borges não titubeou em fazer sua interpretação pessoal da Carta. Para ele, bastava eliminar os eleitores inscritos, mas que não votaram, que o quorum seria alcançado. E todos os que lhe eram fiéis disseram Amém.

A revolução gaúcha de 1923   Desta vez, a reeleição não foi assimilada pacificamente. Estourou uma revolução, com Assis Brasil ao centro, mas retirando de suas tocas as velhas raposas que dominavam em várias regiões do Estado, muitas delas vindas da Revolução Federalista de 1893. Destaca-se o general Honório de Lemes. Ignorante, semi-analfabeto, mas com uma habilidade inata para a guerra, conhecedor da topografia como nenhum outro, o general tinha seu próprio exército, formado principalmente de lanceiros, homens que ninguém vencia no combate corpo a corpo ou à pequena distância, até onde alcançassem suas longas e poderosas lanças. E depois, a degola dos feridos, conforme tradição gaúcha, para que estes não lhes viesse interceptar o caminho mais tarde.    O grito de guerra partiu de Passo Fundo, dado pelo deputado Artur Caetano que, em 24 de janeiro de 1923, enviou um telegrama ao presidente da República, informando que estava se movimentando com 4.000 revolucionários os quais só deixariam as armas quando Borges, por sua vez, deixasse o poder.    Essa guerra civil, como conta Batista Luzardo, "alimentada a churrasco, fumo e mate, e cuja característica foi a mobilidade das unidades em campanha, teve como chefes supremos Borges de Medeiros, do lado governista, assessorado pelo comandante da Brigada Militar, Cel. Afonso Emilio Massot, e por vários oficiais de Exército, instrutores; e do lado revolucionário, Assis Brasil, na liderança teórica, e os caudilhos Honório de Lemes (fronteira do sudoeste), Leonel Rocha (região norte), Estácio Azambuja (região centro-sul), José Antônio Neto (Zeca Neto, região sul). Os comandantes republicanos foram Firmino de Paula, Flores da Cunha, Juvêncio Lemos, Firmino Paim Filho e Claudino Nunes Pereira."

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Reina a paz nos pampas    Renascia, assim a luta entre os “blancos”, donos do poder desde a Proclamação da República, e os “colorados”, sempre na oposição. A intervenção conciliatória do governo federal não poderia tardar, pois a guerra, tal como estava colocada, fazendo renascer ódios antigos, não terminaria "enquanto não tombasse o último gaúcho".     Primeiro, Bernardes envia para o Rio Grande do Sul o ex-ministro da Justiça, o potiguar Augusto Tavares de Lira que, estranho ao ambiente sul-riograndense, não obteve êxito. Depois, segue para o sul o próprio ministro da Guerra, general Setembrino de Carvalho, este sim, gaúcho, conhecedor do estado de espírito dos contendores e hábil negociador. O trem do general foi estacionado num desvio em Bagé, bem distante de Borges e de Assis, para evitar influências indesejáveis em sua missão. Funcionou como importante elemento de ligação entre o general e as partes, o major Euclides de Oliveira Figueiredo que, em momento crucial, chegou a salvar as negociações, discutindo com o governador, sem prévia anuência, algumas cláusulas da minuta, recusadas por este.    Finalmente, em 14 de dezembro de 1923, após onze meses de luta sangrenta, foi assinada a "Ata de Pacificação do Rio Grande do Sul", que ficou conhecida como Pacto de Pedras Altas. Tinha dez cláusulas e estabelecia o seguinte: a) O governador empossado permanece no cargo até o final do mandato; b) não haverá mais reeleição; c) o vice-Governador, até então nomeado pelo titular, passará a ser eleito por voto direto; d) a Constituição será modificada para se adaptar às normas federais. Por último, contempla o acordo com uma anistia geral aos revoltosos, selando a pacificação do Estado.    Contidas as lutas regionais, ainda que sem eliminar totalmente ódios e prevenções, os “chimangos” e os “maragatos”, talvez sem o saber, estão prontos para uma investida maior nos próximos anos, que é a derrubada da Primeira República e a tomada do Poder Central, onde Getúlio Vargas permaneceria, depois, por quinze anos.

Militares são julgados    Desde as fracassadas revoltas de 5 de julho de 1922, o processo militar contra os vencidos ia se encaminhando para um desfecho satisfatório a todas as partes. Os

militares revoltosos, presos em quantidade, foram bem tratados na prisão e, depois de algum tempo, receberam liberdade condicional, enquanto prosseguia o julgamento. A despeito da ação judicial, o 1º tenente Juarez Távora chegou a ser promovido a capitão, fazendo antever que, uma vez julgados, as penas seriam brandas.    Os jovens militares até concordavam com as penalidades previstas em lei, mas esperavam ser capitulados no art. 111 do Código Penal Militar, com aplicação de pena de prisão por dois anos, sem perda de patente, e com readmissão à ativa do Exército. Para surpresa geral, porém, o enquadramento se fez pelo art. 107, sendo eles condenados a três anos, com expulsão do Exército e cassação dos postos e das divisas.    Nessa situação, não tendo mais nada a perder, os envolvidos passaram para a clandestinidade, iniciando uma conspiração contra o governo central, procurando atrair sobretudo as forças militares e estaduais do sul e sudeste do país. As sondagens se fizeram inicialmente em Ponta Grossa-PR e Florianópolis-SC, onde se estabeleceu contato com os sobreviventes da guerra do Contestado (1912-1916).    No Rio Grande do Sul se achava em atividade normal o capitão Luís Carlos Prestes. Como se lembra, ele não chegara a participar das revoltas de 1922 por estar doente. Assim, não envolvido no processo, pediu sua transferência para o Batalhão Ferroviário em Santo Ângelo, onde servia como engenheiro, mantendo a patente de capitão. Osvaldo Cordeiro de Farias, também em cômoda situação, servia em uma unidade de Artilharia, em Santa Maria. Havia articulações por toda a corporação com o objetivo de fazer um levante em data a ser combinada. Para o sul seguiu também Juarez Távora que, em momento oportuno, regressou a São Paulo, onde se achavam seus irmãos Joaquim e Fernando.

Revolução de 1924 em São Paulo   Em São Paulo, no bairro do Pari, próximo aos quartéis da Luz, morava Joaquim Távora. Em sua casa, reuniam-se os principais líderes da conspiração no Estado, entre eles o major Miguel Costa, comandante da Força Pública, Newton Estilac Leal, Filinto Müller e Diogo de Figueiredo, este último, irmão de Euclides Figueiredo, que encontramos há pouco como emissário no

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Rio Grande do Sul. Os conjurados mantinham contato com as guarnições de Pouso Alegre, Três Corações e Itajubá, no sul de Minas. Em situação de suspeita neutralidade ficava o major Bertoldo Klinger, que achava prematuro desencadear um processo revolucionário apenas com os elementos de que dispunham.    Estávamos em março e o levante em São Paulo deveria ocorrer em 5 de julho de 1924, dia em que se comemorava o segundo aniversário das revoltas de 1922. Cabia ao Paraná e Santa Catarina deter o avanço de tropas legalistas pela serra do Mar, especialmente as que fossem desembarcadas no porto de Paranaguá. O Rio enfrentaria, no próprio local, as forças governistas, impedindo seu avanço. O Rio Grande do Sul esperaria seu momento para se manifestar revoltoso. Bloqueios seriam feitos, ainda, na subida de Santos e no vale do Paraíba, neutralizando-se, assim, de todos os lados, os reforços que os legalistas pretendessem enviar à capital paulista.    Cabia a São Paulo o peso maior das manobras, mas algumas pedras surgiram no caminho. O 4º Regimento de Infantaria de Quitaúna resistia em aderir ao plano. Por outro lado, o major Klinger, até então neutro, dava sinais de impaciência, podendo inesperadamente tornar-se um delator, fazendo fracassar a conspiração. Nos outros flancos, tudo parecia em ordem. O major Miguel Costa comandaria o Regimento de Cavalaria da P.M., apoiado pelo 4º Batalhão de Cavalaria em Santana.     O 2º Grupo de Artilharia Anti-Aérea e o 4º Regimento de Infantaria, ambos em Quitaúna (zona oeste da Capital paulista), avançariam até Pinheiros, ficando mais próximos da cidade. Seriam tomados depois o Palácio dos Campos Elísios, sede do governo estadual, as estações da São Paulo Railway e da Sorocabana, ambas no bairro da Luz, a poucos quarteirões da cadeia pública e dos quartéis da Força Pública. Ao mesmo tempo, se tomaria o telégrafo nacional, no centro da cidade, e a estação da Central do Brasil, no Brás. O vale do Paraíba se rebelaria com os 5º e 6º R.I.s, em Lorena e Caçapava, fechando o caminho entre São Paulo e Rio.    Um novo nome aparece agora, o do general Isidoro Dias Lopes, já reformado, até então desconhecido do grande público e até mesmo de alguns setores mais informados, como a imprensa. Após encontro com ele,

Júlio de Mesquita Filho, do jornal O Estado de São Paulo o descreve como uma "figura pequenina e enxuta de um velho vestido à paisana e protegido contra o frio, que era intenso, por um sobretudo preto com a gola levantada e trazendo na cabeça um chapéu de pano preto com a aba descida sobre os olhos. Vinha fazendo um cigarro de palha. Ao ver-nos, levantou a cabeça, deixando-nos ver dois olhos verdes e faiscantes de vivacidade e malícia".    Como lugar-tenente, estava o major Miguel Costa, comandante da Força Pública do Estado de São Paulo. Outro nome de prestígio, o major Klinger, permaneceu numa duvidosa neutralidade.

Azares do levante    Ao final da noite de 4  de julho, o general Abilio de Noronha, comandante da 2ª Região Militar achava-se no Consulado Americano, participando das comemorações do “Independence Day”, quando tomou conhecimento da rebelião a estourar à zero hora do dia 5. De imediato, dirigiu-se aos quartéis da Força Pública no bairro da Luz e, chegando antes que os revoltosos, assumiu o comando dos soldados que ali estavam, aos quais se acrescentavam os que chegavam para a mudança de turno.     No Corpo Escola, o general encontrou o capitão Joaquim Távora, ao qual deu ordem de prisão, originando um bate-boca entre os dois. Chega, então o general Isidoro Dias Lopes, comandante da Revolução, que prende o general Abílio e seu Estado Maior fazendo cessar, momentaneamente, a reação ao movimento. Todo o restante das tropas estava nas ruas cumprindo, cada uma, a tarefa que lhe foi entregue.    Falhou, entretanto o bloqueio das tropas legalistas e estas conseguiram se instalar ao leste da Capital, iniciando o bombardeio à cidade. Numa das missões a que fora incumbido, o capitão Joaquim Távora saiu gravemente ferido, morrendo dias após. Assim, logo ao início, a revolução perde um de seus mentores e peça importante no comando.    Sendo difícil atingir a todos os agrupamentos revoltosos, as forças legalistas, a partir de 12 de julho, passaram a bombardear a população civil, de forma a estabelecer um estado de pânico, bem como assestaram contra o parque fabril, na zona leste da Capital, visando destrui-lo. O objetivo era o de provocar a rendição dos

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revolucionários, obrigando-os a encerrar a ação para não ver a perda inútil de vidas humanas e a destruição do patrimônio econômico da cidade.

Retirada dos civis    Quem viu as imagens, sempre impressionantes, de retirantes num país em guerra, pode fazer idéia do que se seguiu. Milhares de pessoas apavoradas caminhavam pelas ruas, transportando como podiam crianças, velhos e doentes, bem como carregando os poucos pertences que podiam levar.  Esses infelizes seguiam para o outro lado da cidade (zona sul e zona oeste), invadindo bairros mais distantes, onde os residentes procuravam dar-lhes abrigo e conseguir o alimento, a essa altura difícil, pela falta de abastecimento.     O governador Carlos de Campos retirou-se para Guaiauna, lugar seguro e até confortável ao leste da cidade, onde reuniu-se às tropas governistas. O prefeito Firminiano Pinto permaneceu em seu posto. Juntou-se ao presidente da Associação Comercial, José Carlos de Macedo Soares e a outros nomes ilustres de São Paulo, tentando organizar a sociedade, quanto possível, no socorro emergencial aos desabrigados, fugitivos dos próprios lares, e atirados à rua em pleno inverno.   A tática das forças legalistas contra a cidade deu certo. Para não causar maiores danos à população civil, e para evitar que todo o parque industrial fosse destruído, os revoltosos não tiveram outra solução a não ser a retirada das tropas, o que ainda pôde ser feito em boa ordem. Controlando parte das ferrovias (Sorocabana e São Paulo Railway), as tropas seguiram para Itirapina e Bauru. Depois, dispersando-se por vários itinerários, reuniram-se outra vez às barrancas do rio Paraná, apresando vários vapores e conduzindo o pessoal, rio abaixo, para a foz do rio Iguaçu, e depois para Guaíra.    Estamos, agora, em 26 de setembro de 1924. Ali, nas margens do rio Paraná, os revoltosos aguardam a definição das lutas que vão se desenrolar no sul do país, de cujo andamento depende a estratégia a ser traçada para os meses futuros.

Sublevação nos pampas    No início de outubro,  chegam a Foz do Iguaçu vários elementos de ligação, vindos do Rio Grande do Sul, entre eles, o tenente Siqueira Campos, um dos sobreviventes dos

Dezoito do Forte; Alfredo Canabarro, representando o general Honório de Lemes, de quem já ouvimos falar na guerra civil do ano anterior;  e Dr. Anacleto Firmo, representando o lider da Aliança Libertadora, Assis Brasil. Ficou decidido que Juarez Távora partiria incógnito para o Sul,   a fim de estabelecer os contatos com a resistência civil e, principalmente, na área militar, onde tinha bons relacionamentos.    Na madrugada de 29 de outubro de 1924, iniciou-se o movimento revolucionário, simultaneamente nas guarnições de Uruguaiana, São Borja, São Luís e Santo Ângelo, acompanhadas depois por Alegrete e Cachoeira do Sul. Em Uruguaiana, chegou, depois, o general Honório de Lemes, a quem foi entregue o comando da praça.    A luta prosseguiu por alguns meses, com algumas vitórias e uma série de insucessos, de tal sorte que, ao findar-se o mês de março de 1925 os rebeldes contavam com um insignificante contingente, para lutar contra as tropas legalistas, que tinham efetivo dez vezes maior e provisão regular de munição e de víveres. Não havia, pois, condições de se prosseguir no confronto, e a decisão foi a de bater em retirada, subindo em direção a Sete Quedas e Foz do Iguaçu, para encontrar-se com os remanescentes da revolução paulista. Essa decisão foi tomada num encontro, em São Borja, de três lideranças: o capitão Luís Carlos Prestes, o tenente Siqueira Campos e o tenente João Alberto. Sendo Prestes o mais graduado entre os três, coube a ele assumir o comando.

Encontro das duas frentes   Iniciou-se, pois, a marcha em busca do novo destino. Em verdade, seria fácil às tropas legalistas liquidar de vez com os rebeldes, tanto mais que alguns prisioneiros conseguiram fugir e, ao se apresentarem de volta, deram ao comando legal várias informações sobre o contingente revoltoso, que, sabemos, era pequeno, estava cansado e praticamente sem munições.    Seguindo ao novo destino, um fator influiu a favor dos rebeldes. As tropas legalistas eram do Exército e este, como se sabe, tinha sérias restrições ao presidente Artur Bernardes, desde o episódio das cartas apócrifas. Cumprindo sua obrigação, os legalistas atacaram os focos revolucionários, extinguindo a revolução no sul, mas não pretendiam ir muito além disso. Apenas, vez por outra, fustigavam os retirantes, quando

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poderiam simplesmente massacrá-los. Com isso, deram a eles a oportunidade de uma retirada sem maiores complicações.    Juntas as forças de São Paulo e dos Estados sulinos, especialmente do Rio Grande do Sul, ficou decidido empreender, a partir daquele momento, uma luta de movimentos usando a tática de guerrilha, mais adequada em face da desproporção de recursos materiais e humanos. Aos revoltosos, daqui em diante seria difícil renovar homens, armamentos e munições.

Coluna Prestes   O general Isidoro Dias Lopes, comandante da revolução, tinha já idade avançada para dirigir operações de guerrilha, combinando-se, então, que ele se internaria em um país vizinho (o local escolhido foi Paso de los Libres, Paraguai), sendo o comando efetivo entregue então a Miguel Costa. Isidoro permanecia comandante geral mas sem participar da ação direta.    As patentes militares dos participantes, a partir deste momento, foram alteradas com "promoções" para estabelecer uma hierarquia de comando dentro da tropa, e foi nomeado um Comando Maior, assim constituído: general Miguel Costa, comandante da Divisão; coronel Luís Carlos Prestes, chefe da Divisão; tenente-coronel Juarez Távora, sub-chefe; major Paulo Krügger, assistente; capitão Geri Aldo, assistente; capitão Lourenço Moreira Lima, ajudante-secretário.    Estamos, então, em 13 de maio de 1925. Mais tarde, objetivando eliminar dissidências entre os comandados, especialmente, desentendimentos entre gaúchos e paulistas, a Divisão foi separada em quatro destacamentos, assim comandados: 1º Destacamento, tenente-coronel Cordeiro de Farias; 2º Destacamento, tenente-coronel João Alberto; 3º Destacamento, tenente-coronel Siqueira Campos; 4º Destacamento, tenente-coronel Djalma Dutra.    Inicia-se, então, o deslocamento, em direção ao centro-oeste e nordeste do país, num movimento que duraria até 3 de fevereiro de 1927. Pela sua grande habilidade tática, Prestes logo se destacou entre os demais. Pela primeira vez na história da República, um movimento revoltoso apaixonou a opinião pública, que, geralmente, permanecia alheia a esses acontecimentos. Muitas lendas surgiram, misturando a verdade histórica e o mito e

dificultando distinguir um do outro. A guerrilha ficou conhecida como “Coluna Prestes” e seu mentor, Luiz Carlos Prestes recebeu o cognome de “O Cavaleiro da Esperança”.

Atravessando o Brasil    A quilometragem feita nessa marcha, contando-se desde a partida do Rio Grande do Sul, passando pela junção das tropas no rio Paraná, e indo até a desmobilização é bastante discutida. O historiador José Maria Bello fala em 10 mil quilômetros, o general Miguel Costa estabelece 16 mil quilômetros e Prestes, mais entusiasmado, chega a falar em 26 mil quilômetros. Mais cautelosos, fiquemos com o primeiro número, que já é uma caminhada e tanto...    Com algumas reservas, pode-se estabelecer o seguinte roteiro, desde o sul: Rio Grande do Sul, Paraná, Paraguai, Mato Grosso, Goiás, norte de Minas, Bahia, Goiás novamente, Maranhão (atravessando o atual Estado de Tocantins), Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Bahia, Piauí, Goiás, e, finalmente, Mato Grosso, onde a Coluna se dissolveu, buscando asilo na Bolívia. De lá, eles emigram, aos poucos, para a Argentina, onde seria mais fácil arrumar trabalho para garantir a sobrevivência.

Notas à margem    Impossível narrar todos os acontecimentos dessa jornada. No nordeste, o Governo pretendeu conseguir o apoio do Padre Cícero, o qual, acompanhando a euforia da população, recusou-se a combater os revoltosos. No norte de Minas, a Coluna atraiu as forças legalistas para as margens do rio São Francisco. E, enquanto estas esperavam que os guerrilheiros atravessassem o rio para dar-lhes combate, estes já haviam retornado pelo mesmo caminho, fazendo sua travessia no ponto original.    Em Arraias-MT, Siqueira Campos entrou em uma igreja, a pretexto de rezar e, usando um papel amarelado e gasto, desenhou um "mapa do tesouro guardado nos alicerces do prédio" E colocou-o em um canto qualquer, certo de que, um dia. algum fiel o encontraria e não resistiria à tentação de derrubar o templo para descobrir a fortuna. Em Carolina-MA, o bacharel Lourenço Moreira Lima, cartorário, se entusiasmou de tal maneira que resolveu queimar todos os processos de

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cobrança de impostos atrasados, recebendo aplausos dos devedores.    Próximo a Teresina-PI, Juarez Távora é aprisionado por forças legalistas, ficando definitivamente fora da campanha. Foi encaminhado para a prisão em um quartel do Rio de Janeiro, onde tentou uma fuga, sendo recapturado. Foi, então, com dezenas de outros detidos, colocado em um navio, que  ficou à deriva, esperando por novas instruções. Finalmente, estabeleceu-se como destino final a ilha da Trindade, a mais isolada de todas as prisões. Entre os companheiros de prisão estava o 1º tenente Eduardo Gomes, sobrevivente dos Dezoito do Forte.    Washington Luiz assumia a presidência da República. No Rio Grande do Sul, estourava outra revolta, liderada por Alcides e Nelson Etchegoven, no Regimento de Artilharia Montada de Cruz Alta, logo sufocada. O ambiente fervilhava por toda parte. Começara a contagem regressiva para o fim da República Velha.

Governo sem obras    Costumava-se dizer, na época, que Artur Bernardes conseguiu ser o pior dentre todos os Presidentes que passaram pela República. Por certo não sabiam tudo o que viria depois... Talvez tivesse razão Epitácio Pessoa quando, em uma reunião de cúpula, meses após a eleição de 1922, deixou implícita sua opinião de que a renúncia de Bernardes antes da posse poderia ser uma solução para os males que, naquele momento, afligiam o Brasil.    Com efeito, afora a tremenda agitação que cercou todo o quadriênio, não se consegue encontrar nada de importante que marque a passagem de Artur Bernardes pelo poder. Apenas ligeiras modificações na Constituição de 1891, restringindo o uso do “habeas-corpus” e aumentando-lhe o poder presidencial. O que não evitou que, em quase todo o período de governo, vigorasse um permanente estado de sítio, com a suspensão de garantias constitucionais. Estabeleceu férias de 15 dias por ano para os trabalhadores mas, na ausência de uma legislação trabalhista consistente, nada impedia o empregador de despedir, sem ônus, o empregado que estivesse chegando no tempo de aproveitar esse direito.    Em 1927, elege-se senador. Em 1934 faz-se deputado federal para uma Câmara que Getúlio Vargas fechou três anos depois.

Volta a se eleger em 1946 e em 1954 para, em seguida exercer uma função burocrática na Comissão Nacional do Petróleo, onde morre, logo após, em 1955. Não deixou saudades.

* * *Capítulo Onze

O CANTO DO CISNEWashington Luís - 1926-1930

    "Governar é construir estradas". Com esta frase, Washington Luís sintetiza sua passagem pela Presidência do Estado de São Paulo, entre 1920 e 1924, quando, findo o mandato, transferiu o poder para Carlos de Campos (Este último viria enfrentar, pouco depois, a revolução comandada pelo general Isidoro Dias Lopes, conforme já foi contado no Capítulo 10). Bem antes, em 1921, pouco depois de empossado governador, Washington já tinha seu nome cogitado para a sucessão presidencial de 1926. De acordo com a política do café com leite, em 1914 coube a Minas Gerais ocupar a presidência da República, com Venceslau Brás. Em 1918 foi eleito um paulista, Rodrigues Alves, que morreu sem assumir. Então, o mineiro Delfim Moreira, Presidente em exercício, convocou novas eleições. Os Estados de São Paulo, Minas e, agora, também o Rio Grande do Sul, pelejaram para ter a primazia da indicação. Para baixar a temperatura, que se achava em ponto de fervura, foi acertado o nome do paraibano Epitácio Pessoa, como consenso.    Tudo isso já foi comentado em capítulos anteriores. Falta acrescentar que, em 1921, para concordar com o lançamento do mineiro Artur Bernardes, os caciques paulistas exigiram que, desde aquele momento, se firmasse um compromisso, aceitando o nome do então governador Washington Luís como candidado à sucessão presidencial de 1926. Com este arranjo, foi possível saber, com uma antecipação de quatro anos, quem seria o príncipe eleito para a sucessão de um governo que ainda nem tomara posse, e nem  sequer tinha começado a campanha eleitoral.    Chegamos, enfim a 1926. Washington Luís elegeu-se sem enfrentar qualquer oposição. Rui Barbosa, o tribuno das grandes campanhas civilistas havia morrido, e assim também Pinheiro Machado, cuja influência,

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antes, se fizera sentir em todos os cantos do país. Nilo Peçanha, por sua vez, fora anulado politicamente pela ação do presidente Bernardes. Desta maneira, no pleito ocorrido em 1º de março de 1926, venceu a chapa única, com Washington Luís para Presidente e Fernando de Melo Viana (mineiro) para vice.    A posse ocorreu em 15 de novembro de 1926. Se não houve aplausos, ocorreu pelo menos alívio geral com a saída de Artur Bernardes, cujo poder plenipotenciário não era mais suportado por ninguém, seja na sociedade civil, na política ou nos quartéis. Seu governo havia sido de tal forma desastrado que qualquer que viesse a substituí-lo, por pior que fosse, deveria trazer uma mudança de ares. Usando uma expressão popular, com a saída de Bernardes, tirou-se da sala o velho e cheiroso bode. Com isso o ar se tornou mais respirável e até dava para suportar as goteiras e rachaduras que comprometiam esse velho casarão chamado Brasil.

Quem era Washington Luís   Washington Luís Pereira de Sousa nasceu em Macaé, Estado do Rio, em 1869, mas toda sua atividade política esteve ligada a São Paulo. Fez seus primeiros estudos no Colégio Pedro 2º, do Rio de Janeiro, transferindo-se depois para a capital paulista, onde cursou a Faculdade de Direito do largo de São Francisco. Terminado o curso, tornou-se promotor público em Barra Mansa, Estado do Rio, para voltar, mais tarde, a São Paulo, montando um escritório de advocacia na cidade de Batatais. Iniciou a carreira política como vereador e, depois, como prefeito. Exerceu cargos públicos no governo estadual e, em 1914, elegeu-se prefeito de São Paulo. Finalmente, em 1920, assume o governo do Estado, de onde sai para a presidência da República.    Tinha o porte de um nobre. Vestia-se bem, aparecia em público com freqüência e dava ao seu governo um toque de autoridade aristocrática, uma autoridade que não admitia ser contestada e que também não delegava seus poderes a ninguém. Essa independência começa a se notar já na formação do primeiro Ministério, escolhido por intuição própria, sem interferências políticas.    Estes foram os auxiliares nomeados: Relações Exteriores, Otávio Mangabeira; Justiça, Interior e Instrução Pública,

Augusto Viana de Castelo; Fazenda, Getúlio Dorneles Vargas; Viação e Obras Públicas, Victor Konder; Agricultura, Geminiano Lira de Castro; Guerra, general Nestor Sezefredo de Passos; Marinha, Arnaldo de Siqueira Pinto da Luz. Washington Luís era casado com dona Sofia de Oliveira Barros, tendo quatro filhos: Florinda, Rafael, Caio e Vitor Luís.

Consertando as finanças públicas   O novo Presidente saiu com uma vantagem sobre seus antecessores, pois teve a oportunidade de iniciar o mandato governando de fato. Nenhuma pendência ficara do quadriênio anterior. Não havia dualidade de Assembléias Legislativas, nem disputas judiciais para a conquista do poder nos Estados. Mudanças na Constituição, formuladas por inspiração de seu antecessor, limitaram o uso do habeas-corpus, de que se lançava mão para defender cargos ou posições.    O primeiro ato do novo Presidente foi suspender o estado de sítio. Depois, voltou sua atenção para o eterno problema nacional, que é o descontrole das finanças públicas. Epitácio Pessoa (1918-1922) realizara obras por todo o país e, de quebra, mesmo que a contragosto, sustentara os preços do café, dentro do estabelecido pelo Convênio de Taubaté, provocando uma sangria nos cofres públicos. Artur Bernardes (1922-1926) passou os quatro anos de seu governo combatendo movimentos revoltosos, o que ocasionou despesas com armas e munições, bem como com deslocamento de tropas de um ponto a outro do território. O resultado foi que, ao fim de tudo, mais uma vez, o país se achava endividado e inadimplente.    Com Getulio Dorneles Vargas no Ministério da Fazenda, iniciou-se, então, uma política contencionista para equilibrar o volume de moeda em circulação com as reservas de ouro que lhe serviam de lastro. Foi aprovado no Congresso Nacional o projeto de reforma monetária proposto pelo governo. Em substituição ao padrão real foi criada uma nova moeda, o cruzeiro, cuja circulação começaria quando se tivesse concluído o processo de estabilização.    Entretanto, vários fatores contribuíram para deter o andamento do plano. Um deles foi proporcionado pelo próprio ministro da Fazenda, Getúlio Vargas, que se afastou do Ministério para concorrer ao governo de seu

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Estado, o Rio Grande do Sul, onde as mudanças na Constituição puseram fim aos 28 anos de reinado de Borges de Medeiros. Substituído no ministério por Francisco Chaves de Oliveira Botelho, prosseguiu-se na aplicação do plano até que, em 1929, sofremos as repercussões do “crack” na Bolsa de Nova York. Essa quebra originou depressão nos Estados Unidos, com reflexos em todo o mundo, atingindo particularmente o Brasil, que dependia, e muito, da importação, tendo como produto de troca quase que tão somente o café.    O equilíbrio financeiro veio a ser alcançado muitos anos depois, já na Segunda República, após um longo período de crise, que levou a população a um empobrecimento ainda maior, trazendo desemprego em massa e contenção dos salários. Assim, a nova moeda, criada neste quadriênio, só viria a circular, de fato, em 1943.

Café em crise   A economia nacional sempre se ressentiu de uma política global, com planificação adequada, capaz de criar, dentro do país, uma estrutura suficiente para enfrentar as idas e vindas da economia mundial. Os bons preços encontrados no mercado internacional para nosso produto básico de exportação, o café, criavam a ilusão de uma segurança duradoura e, a cada crise, o governo federal acabava por sustentar o prejuízo dos produtores, às custas do resto do país.    Essa política de sustentação do café, feita pelo governo central, foi extinta em 1924, quando Artur Bernardes transferiu para os Estados a responsabilidade de estabelecer, cada um por sua conta, um sistema garantidor de preços. São Paulo, principal produtor, criou, então, o Instituto do Café do Estado de São Paulo.     Nesta nova entidade, vieram a se repetir os mesmos erros do passado. Os produtores, a cada ano, estabeleciam as cotas de exportação e o excedente era estocado. Para garantir a manutenção desses estoques, o Instituto fazia empréstimos no exterior e esse dinheiro, repassado ao Estado, financiava os agricultores, como se o produto tivesse sido, de fato, vendido.    A mágica era engenhosa, mas ilusória, como todo o trabalho de prestidigitação. A crise mundial de 1929 veio acabar com a farra. Cessou o empréstimo feito por bancos estrangeiros. Os preços, conseguidos, não pelo abastecimento do mercado mas pela

especulação, repentinamente, despencaram ao seu nível mais baixo. Como se não bastasse a queda na demanda, naquele momento, tínhamos retidas em estoque 22 milhões de sacas de café, estoques que, é bom lembrar, estavam sendo mantidos com empréstimos bancários.    Rapidamente, a situação se deteriorou, atingindo os Bancos, repercutindo no comércio e na indústria, causando primeiro demissões em massa, depois falências, depois mais demissões. Era o caos que se instalava, desta vez, sem que se conseguisse enxergar uma luz ao fim do túnel..    Esse momento, embora sofrido, e até por causa disso, serve como um tratamento de choque para a nação. Habituadas a assistir passivamente os erros e abusos de governos e/ou de classes dirigentes, as vítimas saem agora para a reação, culpando o poder público por todos os males de que padece o país. Surge um sentimento generalizado de revolta, que se espalha e contamina a todos. A crise polariza as correntes de opinião e as centraliza num só pensamento. É o material combustível que se acumula e que, a uma centelha, pode-se inflamar, causando grande incêndio. É nesse estado de espírito, perigoso mas desafiante, que encontramos o Brasil, ao final da década de vinte.

O navio segue seu curso   As oligarquias permanecem refratárias aos problemas nacionais. O assunto em pauta agora, com a antecedência costumeira, é a sucessão presidencial. O nome que desponta é o do governador de Minas, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, descendente do patriarca José Bonifácio. Professor, advogado, jornalista, com uma carreira política respeitável, ele apresenta quase todos os qualificativos para assumir a presidência da República. Só há um problema, um único problema, mas que se revela o ponto fraco de seu brilhante curriculo. As idéias econômicas de Antônio Carlos seguem o caminho oposto às do Presidente, e a conjuntura, delicada e grave, não aconselha mudar um programa de saneamento que vem dando certo.    Washington Luís mostra-se inclinado, pois, a escolher um outro paulista, de sua inteira confiança, que possa garantir a continuidade de sua política. As atenções voltam-se para o governador de São Paulo, Júlio Prestes, filho do coronel Fernando Prestes, que havia sido

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vice-Governador na gestão de Carlos de Campos. O governador tinha, pois, tradição política e estreita convivência com a administração pública. O problema consiste em que ele era paulista e a vez era dos mineiros.    A decisão foi considerada por Washington Luís uma questão fechada, não sendo passível de entendimentos que contemplassem outras alternativas. Então, por imposição, foram homologadas as candidaturas do paulista Júlio Prestes de Albuquerque, para Presidente, e do baiano Vital Henriques Batista Soares, para vice. Este último já havia sido deputado federal e senador da República e era, no momento, governador de seu Estado.    Embora não desejassem um enfrentamento direto com o poder central, vários próceres políticos mineiros fechavam em torno do nome de Antônio Carlos. Em último caso, até aceitariam outra solução alternativa, buscando-se nomes em outros Estados, mas sempre sob orientação e chancela de Minas Gerais.

Leite com churrasco   Em 17 de junho de 1929, reúnem-se no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, de um lado, o deputado José Bonifácio de Andrada e Silva, irmão do governador Antônio Carlos e líder da bancada mineira na Câmara Federal; de outro, o deputado João Neves da Fontoura, representante do governador Getúlio Vargas, e líder da bancada gaúcha na Câmara Federal. Devidamente autorizados por seus respectivos caciques, os dois firmam um pacto político nos seguintes termos:     a) se o presidente da República indicar o nome de Antônio Carlos, os gaúchos o aceitarão sem restrição; se o Presidente indicar um outro mineiro que não Antônio Carlos, os gaúchos aceitarão, desde que a vice-Presidência caiba ao Rio Grande do Sul; se o Presidente se fixar em nome de outro Estado qualquer, o Rio Grande do Sul lançará sua própria candidatura de oposição, na pessoa de Getúlio Vargas ou na de Borges de Medeiros, comprometendo-se Minas Gerais a aceitar irrestritamente qualquer um dos dois nomes.    Este acordo ficou conhecido como o “Pacto do Hotel Glória” e, embora firmado pelos dois líderes de bancada, tinha o pleno assentimento das lideranças políticas nos respectivos Estados, dispostos que estavam a fazer oposição ao governo central, se este

insistisse no propósito de impor um nome paulista para a sucessão.

Aliança Liberal   Formalizada a candidatura oficial, formou-se logo um bloco de oposição, reunindo as correntes contrárias num enorme saco de gatos que foi batizado como “Aliança Liberal”. Este bloco lançou as candidaturas do governador gaúcho Getúlio Vargas para Presidente e do governador paraibano João Pessoa, sobrinho de Epitácio, para vice. A Aliança surgiu no Rio de Janeiro em 5 de agosto de 1929, numa grande concentração, à qual compareceu o que havia de mais expressivo na oposição à candidatura oficial.    A nova frente reunia o apoio de correntes as mais diversas. Por Minas Gerais, tínhamos os ex-Presidentes Venceslau Brás, Epitácio Pessoa e Artur Bernardes; o tenentismo se fazia representar com Juarez Távora, João Alberto, Eduardo Gomes, Juraci Magalhães e outros; no Rio Grande do Sul, “blancos” e “colorados”, pela primeira vez, estavam juntos: Borges de Medeiros, João Neves da Fontoura, Osvaldo Aranha, Flores da Cunha, Lindolfo Collor e Batista Luzardo, entre outros, apoiavam seu conterrâneo.    Claro está que cada um deles tinha motivação própria, tratando-se de uma mistura ocasional, feita ao sabor dos acontecimentos, sem a química que a transformasse numa substância homogênea. Num processo de decantação, todos os elementos apareceriam, de novo, cada um formando sua própria camada. Se Minas Gerais apoiava a candidatura gaúcha e dispensava até a indicação da vice-Presidência, que foi entregue a um paraibano, isso não quer dizer que se contentavam, os mineiros, com um segundo plano na política nacional. Esperavam apenas por um momento para se projetar novamente no cenário com o destaque a que Minas tinha direito.    Por outro lado, pode parecer estranho que os tenentes se entregassem, repentinamente, às oligarquias que ousaram combater a ponto de sacrificar sua carreira, seu futuro e sua tranqüilidade. É que, por detrás da candidatura oficial, os líderes tenentistas, tanto os que se estavam no país quanto os exilados, retomavam a conspiração revolucionária. Juarez Távora, por exemplo, já fora da prisão, de onde havia novamente fugido, recebeu do general

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Isidoro Dias Lopes um comissionamento na mesma patente e, nessa condição, articulava a conspiração no norte e nordeste, aguardando a senha para sublevar os quartéis militares.     O mesmo acontecia no sul do país, até com o conhecimento do governador e candidato a Presidente, Getúlio Vargas, o qual, entretanto, oficialmente, se manifestava contra a rebelião armada, jurava fidelidade ao presidente da República, e proibia os seus correligionários políticos de fazer, nos palanques, qualquer propaganda subversiva. A candidatura Vargas, assim, era uma cortina a encobrir o processo revolucionário que estava em andamento e que, no momento oportuno, deveria eclodir.

Comício na Esplanada   A plataforma de governo do candidato deveria ser lida por Getúlio Vargas em recinto fechado, na Capital Federal, com a presença das classes políticas e empresariais que lhe estavam dando apoio. Não havia intenção de se fustigar o presidente da República com uma manifestação popular diante de suas próprias barbas. A capital fora escolhida porque ela era o caldeirão político onde fervilhavam as idéias e criavam-se os fatos políticos.    A tolice do governo central foi tentar impedir que o ato político acontecesse dentro de seu território. Os locais públicos dependem de alvará de funcionamento e de outras facilidades concedidas pelo governo. Assim, se tornam dependentes do poder público, não lhes sendo conveniente desagradar àqueles que, em última instância, devem recorrer. Foi assim que, por toda a cidade do Rio de Janeiro, não se encontrou um lugar fechado onde realizar a reunião. Decidiu-se, assim, fazer o comício em local aberto, sendo escolhida para a concentração a esplanada do Castelo, local que fora recentemente remodelado para as comemorações do 1º Centenário da Independência.    Noticiado o comício para o dia 1º de janeiro de 1930, grande multidão se concentrou nas calçadas para dar vivas a Getúlio e João Pessoa, que seguiam em um mesmo carro. Ao chegar na Esplanada o povo que seguia a comitiva se juntou a outra multidão que lá se encontrava para aplaudir o futuro presidente da República.    Foi assim que um ato solene e restrito se transformou em uma manifestação popular

jamais vista por essa geração. Acontecimento semelhante, no Rio de Janeiro, só no longínquo ano de 1820, quando o povo, reunido em frente ao palácio real, exigia que D. João 6º assinasse a Constituição Espanhola até que fossem convocadas as cortes de Lisboa para preparar a primeira Constituição da Revolução Liberal portuguesa.

"Tomada da Bastilha"   Washington Luís respeitava profundamente Getúlio Vargas que, por sua vez, se dizia fiel ao Presidente, a despeito de estar candidato pela oposição. Havia até um acordo secreto, pelo qual um e outro se comprometiam a respeitar os territórios políticos de cada um. Durante a campanha, Washington proibiria o candidato oficial de visitar o Rio Grande do Sul e, por sua vez, Getúlio não visitaria o Estado de São Paulo.    Acordos existem para serem rompidos. Convidado por jovens políticos paulistas, Vargas arriscou-se a fazer uma visita protocolar a São Paulo, para ser recebido por líderes oposicionistas, em manifestação singela e reservada. Escolheu-se uma praça, ao lado do Pátio do Colégio, onde não caberia mais de uma centena de pessoas.    O candidato chega de trem em 3 de janeiro de 1930 tendo, no desembarque, a sua  primeira surpresa. A praça fronteiriça à Estação do Norte achava-se tomada por uma multidão, esperando pelo candidato. Contrafeito, Getúlio atravessa o aglomerado, conseguindo entrar no carro que o levaria ao centro da cidade, assim que o povo se dispersasse. Nada. Ao contrário, o povo seguia entusiasmado, fechando a marcha atrás da comitiva.    A grande e imprevista passeata seguiu pela avenida Rangel Pestana, o parque D.Pedro e a ladeira general Carneiro, num percurso de aproximadamente dois quilômetros, durante o qual outras pessoas abandonavam as casas ou deixavam as calçadas, juntando-se ao cortejo, que ia se engrossando à medida que chegava a cidade.    Qual não foi o susto dos políticos reunidos na pracinha, quando viram aquela massa humana, subindo a ladeira em sua direção, logo atrás da comitiva. Pouco acostumados ao contato com o povo, não tinham a menor idéia das reações que se seguiriam ao encontro das duas procissões.

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    Chegando, finalmente ao local, com os políticos na praça e o povo tomando a ladeira, alguém tentou inutilmente, pronunciar um discurso de saudação. Outros procuraram, também, discursar, sem qualquer resultado. A multidão, uníssona e constante, gritava uma palavra de ordem, surgida de momento e sem ensaio prévio: "Nós queremos Getúlio... Nós queremos Getúlio".    Estava registrada a consagração popular da candidatura Getúlio Vargas, de forma imanente, sem qualquer coordenação política e, mesmo, à revelia dos políticos. A campanha fugia às mãos das lideranças, menos às de Getúlio, que tinha um sexto sentido para perceber o nascimento de uma nova corrente, firmada no apoio popular. Tal manifestação de apoio, que se prolongou até sua morte, recebeu o nome de “Queremismo”.     Dentro do Queremismo, Getúlio construiu uma nova maneira de se fazer política, conhecida por “Populismo”, que consistia em manipular a opinião pública, dizendo ao povo aquilo que ele quer ouvir e criando a impressão de que o governo está trabalhando com finalidade principal de atender aos seus anseios. No correr dos tempos outros líderes políticos seguiriam a mesma tática, mas não como Getúlio, que, somando seus dois governos, ficou no poder central por quase duas décadas, sendo odiado por muitos, mas venerado pela classe trabalhadora, cognominado por esta como o Pai dos Pobres.

Nas eleições, o de sempre   Em 1º de março de 1930 ocorreram as eleições e os políticos tiveram sua última oportunidade de falsear os resultados através da fraude. De um e outro lado, repetiu-se, com grande desfaçatez, a operação mistificadora, com os votos “clonados”, as atas falsificadas, e os resultados proclamados sem o menor escrúpulo. Era a República destruindo-se a si mesma em atos de corrupção, de pretensa esperteza e de completa deterioração moral.    O resultado, já previsto, foi a eleição de Julio Prestes. Na oposição, Getúlio se conformara com as regras do jogo e chegara até a aceitar oficialmente a derrota quando, em 26 de julho de 1930 uma notícia percorre as linhas telegráficas, de norte ao sul, colocando em comoção o país inteiro: João

Pessoa, o companheiro de chapa de Getúlio fora assassinado em Recife!    Não se sabia ainda as causas do crime, que tinha motivação na política regional, e com desdobramentos de um crime passional. A primeira impressão causada nos políticos e na opinião pública era que se tratava de contenda ligada à campanha presidencial. Depois, a comoção, transformada em revolta contra o governo federal, foi suficientemente explorada pelos opositores para acelerar o processo revolucionário.

Revolução em marcha    No sul, os preparativos para a revolução iam adiantados, com Getúlio no centro da conspiração, muito embora ele, com extrema habilidade, mantivesse a aparência de ordem, prosseguindo no seu dia-a-dia como governador do Estado. Para comandar o levante, um revolucionário de última hora, o tenente-coronel Góis Monteiro, que não havia participado de nenhum dos movimentos anteriores, mas cuja patente era importante para impor respeito e garantir a hierarquia, dentro do movimento. No nordeste, estabelecido em Paraíba, Juarez Távora, com uma patente comissionada de general, fazia as articulações por toda a região.    A data finalmente acertada era 3 de outubro de 1930. O início estava marcado para as 17h30, já que o expediente nas repartições se encerrava às 17h00, diminuindo a movimentação nesses locais. Por um mal entendido na troca de telegramas cifrados, Juarez Távora entendeu que o sul havia aceito sua sugestão para iniciar o movimento só na madrugada do dia 4, causando com isso uma defasagem de horário que quase põe a perder o levante, por eliminar o efeito surpresa.    Em Porto Alegre, o movimento sedicioso começou com a Guarda Civil, tomando de assalto o Quartel General da 2ª R.M. e prendendo seu comandante, o general Gil de Almeida. No norte, ainda que com atraso, foram tomadas as praças de Recife e a capital da Paraíba, espalhando-se a rebelião, em seguida, para o restante da região.    Por ser mais apropriado, este assunto será comentado na segunda parte deste trabalho, dedicado à Segunda República, ou República Nova. Por ora, basta deixar registrado que nos dois flancos, do sul e do nordeste, a revolução se espalhou rapidamente, surpreendendo os próprios líderes. No norte, o comando militar era de Juarez Távora,

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enquanto que a liderança civil era do Dr. José Américo. No Sul, a revolução seguiu para o Rio de Janeiro comandada pelo tenente-coronel Góis Monteiro e a liderança civil incontestável era a do governador gaúcho Getúlio Vargas.    Quando as tropas sulistas se aproximavam do entroncamento de Itararé, onde deveria ocorrer a mais sangrenta de todas as batalhas, no confronto com as tropas legalistas ali acantonadas, chega a notícia surpreendente: Washington Luís renunciara à presidência da República, assumindo o poder uma Junta Militar, chamada de Junta Governativa, formada pelos generais Tasso Fragoso e Mena Barreto, e pelo almirante Isaias de Noronha.

Conclusão    Encerra-se aqui a primeira parte da História do Brasil Republicano. A nova fase que se inicia muda radicalmente a maneira de se fazer política, alterando os costumes e modificando os métodos empregados. Isso não quer dizer que a nova República seja melhor que o período que a antecedeu. Apenas mudaram-se os hábitos e deslocou-se o eixo de influência, contudo o povo permaneceu afastado das decisões. Na primeira havia corrupção eleitoral, na segunda não havia eleições. A peça teatral intitulada “Um Tiro no Peito” cunhou uma fala reveladora da cidadania cassada: "O povo entra na História pela porta dos fundos". É isso aí.

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Segunda República(1930-1945)

Capítulo DozeFIM DA PRIMEIRA

REPÚBLICAA Revolução de 1930

   O presidente Washington Luís (1926-1930) tinha tudo para ser um monarca. Fosse ele nascido de uma daquelas dinastias que dominavam a Europa do Século 18, por certo faria boa figura entre os  déspotas esclarecidos. Tinha a finura de um nobre, a inteligência viva e o raciocínio límpido. Mas era também inflexível em suas decisões. Uma vez determinado o caminho a seguir

para a equação de um problema, não vacilava, não admitia interferências, não negociava.     Foi com esse personalismo, próprio de seu temperamento, que ele, no momento em que julgou oportuno, assumiu a decisão de apresentar, como candidato à sucessão presidencial, o governador de São Paulo, Júlio Prestes de Albuquerque.  por achá-lo em condições de prosseguir a política econômica iniciada em seu governo, que vinha corrigindo distorções deixadas pelos governos anteriores.     A manutenção do plano econômico precisava ser feita com todo rigor para não por a perder todos os sacrifícios já feitos. Isso tornava-se ainda mais importante, naquele momento, porque a crise mundial, desencadeada pela quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, atingiu o Brasil de forma dramática, fechando as portas dos Bancos estrangeiros para novos empréstimos e paralisando os embarques de café, nosso produto básico de exportação.    Todavia, sua insistência em considerar questão fechada o nome de  Julio Prestes   causou descontentamentos e ocasionou o surgimento de uma candidatura de oposição, que apresentou, para Presidente, o nome de  Getúlio Dorneles Vargas, governador gaúcho, e para vice,  João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, governador paraibano, ambos contando com o apoio de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, governador de Minas Gerais. Esse movimento de oposição tomou o nome de Aliança Liberal  e os  aliancistas se tornaram a base civil do futuro movimento revolucionário.    A partir daí, o ambiente torna-se tenso. Os partidários de uma e outra candidatura fustigam uns aos outros, gerando violentas discussões que, não raro, descambam para o enfrentamento físico. Sendo a Câmara Federal uma caixa de ressonância do que acontece nas ruas, não é de estranhar que tais lutas repercutam no plenário e nos corredores do parlamento, com acusações mútuas e pedidos de satisfações pela parte que se sente atingida. A  paixão leva ao descontrole, e o descontrole leva à tragédia.

Problemas do quorum na Câmara Federal

     Hoje, a facilidade do transporte aéreo permite que deputados e senadores viajem semanalmente aos seus Estados de origem para um contato com as bases, retornando à

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capital federal no início de cada semana. Naquele tempo, isso não era possível, pois o transporte se fazia principalmente por trem, raramente por rodovia, e, nos Estados mais longínquos, até por navio. Assim, por razões de ordem prática, o período legislativo se iniciava somente no mês de maio, para encerrar-se em 31 de dezembro.   Outro detalhe característico de nossos parlamentos: no mundo inteiro, a obstrução dos trabalhos é uma arma das minorias, que se valem desse recurso para retardar a ação da maioria, geralmente governista, obrigando-a buscar um entendimento com a parte mais fraca. No Brasil é diferente. É a maioria que, pelas mais diversas razões, usa o recurso da obstrução.   O final de 1929 veio encontrar o Congresso, sobretudo a Câmara Federal, na efervescência de uma campanha eleitoral exaltada, que era levada ao plenário na forma de inflamados discursos. Para evitar que a oposição usasse a tribuna como palanque eleitoral, os governistas obstruíam a abertura das sessões, negando o quorum para a realização dos trabalhos. Era comum estar o plenário cheio, mas a contagem de votos atingir apenas 20 ou 30 deputados, aqueles que responderam a chamada.    Os populares que acompanhavam a campanha de Getúlio Vargas logo se aperceberam disso e passaram a ir, todas as tardes, à Câmara. Como as galerias estavam interditadas ao público, a oposição vinha, então, às escadarias, onde realizava comícios, atingindo, com sua retórica, os candidatos governistas. Era a rotina. A oposição falava, o povo aplaudia os  mocinhos e vaiava os bandidos. Não faltavam os agitadores de plantão, que, no meio da platéia, provocavam confusão e desordem. Na sacada, em tom de deboche, alguns deputados governistas sempre acompanhavam o ato.

Assassinato do deputado Sousa Filho    No dia 26 de dezembro de  1929, num desses comícios, o filho do deputado Luís Simões Lopes, em inflamado discurso, fez algumas referências irônicas e desairosas sobre o deputado governista Sousa Filho, arrancando aplausos do público. O parlamentar, que se achava na sacada, ouviu e não gostou.    Mais tarde, quando os oposicionistas se recolhiam ao interior do prédio, Souza Filho interpelou o moço, agressivamente, dirigindo-

lhe uma série de impropérios. No ardor da mocidade, Simões Lopes (filho) rebentou sua bengala nas costas do agressor que, em revide, sacou de um punhal.    Numa reação instintiva, Simões Lopes (filho) deu alguns passos atrás mas, tendo sido interceptado em seu caminho, sabe-se lá por quem, caiu, ficando à mercê do agressor, pronto para fincar-lhe o punhal. Nesse momento, então, o velho deputado Simões Lopes, acorrendo ao socorro do filho, sacou de um revolver e deu um tiro certeiro e fulminante no desafeto. Na confusão, os deputados  aliancistas Plínio Casado e Adolfo Bergamini retiraram do local o agressor e o levaram para lugar seguro.    No dia seguinte, pela primeira vez em muito tempo, houve quorum na Câmara Federal, para a sessão de homenagem ao deputado assassinado, cujo velório acontecia no salão nobre. Apesar de ameaçados, os aliancistas também compareceram, já que Souza Filho era um grande adversário, mas um bom amigo de todos eles. Em nome da Aliança Liberal, discursou o deputado Lindolfo Collor, lamentando o acontecimento e enaltecendo a personalidade do falecido.    O trágico acontecimento arrefeceu os ânimos da campanha no edifício da Câmara Federal, mas não diminuiu as atividades de um e outro lado para fazer de seu candidato o escolhido das urnas. Cinco dias depois, encerra-se o período legislativo e cada um viaja ao seu Estado para acompanhar as eleições, que ocorreriam em  1º de março de 1930.

Um episódio que mudou a História    Realizadas as eleições, ganha o candidato governista, sem que houvesse maior contestação pelos adversários. Pelo contrário, Getúlio aceitara a derrota como normal no jogo do poder e até reconhecera a vitória de Júlio Prestes.  Aparentemente, tudo se encaminhava para a posse, em 15 de novembro de 1930, até que um incidente da maior gravidade veio tumultuar o processo e desencadear uma série de acontecimentos, que culminaram com a queda de Washington Luís e o fim da República Velha.    No dia 26 de julho de 1930, é assassinado o governador da Paraíba e ex-candidato à vice-Presidência da República, João Pessoa. O mandante era seu desafeto, João Dantas, um dos caciques da política paraibana. Sua morte trouxe um forte abalo nos meios políticos e junto ao povo, em todo o país.

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Cresceu, então, um sentimento de ódio e revolta contra o governo federal, por se imaginar tratar-se de um crime ligado às recentes eleições presidenciais. Em realidade, esse desenlace, que já era previsto, tinha motivos passionais e, também, raízes na política regional, contrariada pela administração estadual.

República de Princesa (Paraíba)    Ao término do mandato do governador paraibano, João Suassuna, em 1926, João Pessoa assume o cargo e constata que os cofres do Estado estão vazios, o pagamento a fornecedores não vem sendo feito, o funcionalismo não recebe seus proventos há algum tempo e o Estado se encontra-se em situação pré-falimentar.    Com energia e determinação, o novo governador começa um processo de saneamento financeiro, combatendo a sonegação e obtendo, assim, de imediato, um desafogo que lhe permitiu cobrir parte dos salários atrasados e programar o início  do pagamento dos fornecedores. Todavia, essa  fúria arrecadadora desagradou aos caciques políticos do Estado que, como os marajás da antiga Índia, não se achavam na obrigação de recolher impostos ou, pelo menos, não pretendiam fazê-lo com tamanha religiosidade.    Com isso, o clima de tensão entre o governador e as forças político-econômicas do Estado manteve-se tenso durante todo o governo. O ponto de explosão foi atingido em 1929, quando João Pessoa, já candidato à vice-presidência da República, baixou um decreto que impedia, no Estado, a reeleição de deputados federais, limitando, assim, a ação de seus opositores. Como se tal não bastasse, abriu uma odiosa exceção ao seu primo, Carlos Pessoa, que, este sim, poderia recandidatar-se.    A sudoeste da Paraíba ficava a pequena cidade de Princesa, feudo do  coronel José Pereira, que controlava, com seu poder e seus jagunços, todo o oeste do Estado, de cima a baixo. Fraudando o resultado das urnas, mantinha ele não só um elenco de deputados estaduais como, também, controlava uma pequena bancada na Câmara Federal, conhecida como  os deputados de Princesa. Atingido frontalmente em seus interesses, o chefe político protesta junto ao governador, sem resultado.     Sentindo-se prejudicado com o resultado das eleições, João Pereira se rebela e, em 

1º de junho de 1930, assina o   Decreto nº1, proclamando a Independência de Princesa, que se considera, a partir de então, separada da Paraíba. Por conseqüência, inicia-se uma guerra civil dentro do Estado, que o governo legal tinha dificuldades de reprimir, pois o ministério da Guerra lhe recusava a compra legal do material bélico necessário, enquanto seu opositor conseguia armas e munições no mercado do contrabando.

Enfrentando João Dantas   Outro chefe político de prestígio era João Dantas, que dominava parte do sertão paraibano e tinha parentesco com o ex-Governador João Suassuna. João Dantas se sentia agastado e diminuído, e o governador João Pessoa nada fazia para melhorar seu relacionamento com este poderoso adversário, pelo contrário, não perdia oportunidade para atingi-lo. Foi assim que, em uma diligência policial, sob um pretexto qualquer, mandou prender familiares de Dantas, entre eles várias mulheres, provocando indignação, ódio e um sentimento de vingança.    Algum tempo depois, a polícia recebeu um comunicado de suposto assalto no escritório de João Dantas e, comparecendo ao local, constatou que não havia ninguém. Mesmo assim, arrombou a porta e apreendeu livros, armas e documentos. Muitos dos papéis recolhidos eram particulares e confidenciais e, entre eles, haviam algumas cartas denunciadoras de um romance entre João Dantas e a poetisa Anaíde Beiriz, com uma linguagem bastante escandalosa para a época.    Melhor é ter bons inimigos do que maus amigos. Pois não é que pessoas ligadas ao Governador, desejando agradá-lo, fizeram publicar uma dessas cartas na primeira página do Jornal Oficial do Estado?   O romance, até então velado, passou a ser do conhecimento geral, causando transtornos a João Dantas e obrigando Anaídes a mudar-se para Pernambuco, onde a repercussão, imaginava-se, seria menor. Mesmo assim, para João Dantas, tratava-se de uma questão de honra, e como tal tinha que ser tratada. Era só esperar o momento, que não tardaria.

Confronto com o governo federal    Voltemos, outra vez, à campanha eleitoral. Sendo candidato a vice-Presidente pela oposição, João Pessoa não teve escrúpulos em barrar a propaganda do candidato

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governista, Julio Prestes, dentro do Estado da Paraíba. Assumiu a direção dessa campanha o desembargador Heráclito Cavalcanti. Em represália, o governador baixou um decreto afastando-o de suas funções públicas, sob a alegação de que, ao adotar uma corrente política, deixou ele de ter a isenção requerida a um juiz. O Presidente da República, então, manda um telegrama ao desembargador, transmitindo-lhe sua solidariedade, sendo rebatido pelo governador.    Houve então as eleições federais, em 1º de março de 1930 e, como se esperava, João Pessoa conseguiu reverter a seu favor a nova bancada paraibana, graças ao artifício já mencionado em tópico anterior. Pelo menos aparentemente ele tinha ganho, porque, dentro do sistema montado pelo presidente Afonso Pena (1906-1910), a votação de cada candidato deveria ser submetida logo após a uma Comissão de Verificadora de Poderes, para analisar cada nome, antes de confirmá-lo eleito.    Essa comissão, formada pelo Presidente da antiga legislatura, mais dois de seus deputados, analisou com especial carinho os deputados eleitos pelos três Estados que comandaram a oposição ao governo federal, ou seja, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba. Foram, então, cortados e substituídos todos aqueles nomes que o governo federal considerou inconvenientes, alterando a seu favor as bancadas dos três Estados.    Coube à Paraíba uma atenção maior, dado as provocações havidas durante a campanha. Desse Estado foram cortados praticamente todos os aliados de João Pessoa, enquanto se considerava legitimamente eleitos os deputados da  República de Princesa.   João Pessoa estava duplamente derrotado: perdera a eleição presidencial, na qual formava a chapa com Getúlio Vargas, e perdera sua bancada na Câmara Federal, com o corte de todos os seus correligionários.

Assassinato de João Pessoa   Foi nesse clima que, em 26 de junho de 1930, João Pessoa viajou a Recife, ao que se sabe, para visitar um amigo doente e, ao mesmo tempo, manter alguns contatos políticos. Ao fim da tarde, encontrava-se na Confeitaria Glória, tomando sorvete em companhia do jornalista Caio de Lima Cavalcanti, quando um desconhecido pára à

sua frente e descarrega uma arma a queima-roupa, fulminando-o instantaneamente.    O desconhecido, bem como um acompanhante, foram prontamente dominados e presos. O crime, soube-se depois, teve como mandante João Dantas, que foi recolhido à prisão, onde, meses depois, apareceu morto. Estava completada a tragédia, em que um crime de natureza passional se misturava a todo um emaranhado político, envolvendo tramas, violência, fraude, muita esperteza e, por fim, a justiça feita com as próprias mãos.    Pela precariedade do telégrafo, a notícia levou algumas horas para se espalhar pelo país, mas, ao chegar a cada ponto, causava comoção e revolta, criando sempre a idéia de crime político, ligado às eleições presidenciais. Especialmente na Paraíba, o povo foi às ruas à caça de adversários de João Pessoa. Muitos tiveram tempo de fugir, outros foram duramente atingidos. Quase todos tiveram suas casas saqueadas e, depois, incendiadas.    Em São Borja, no outro extremo do país, conta Alzira Vargas, filha de Getúlio, então com 15 anos: "Uma noite, fomos ao cinema com papai e mamãe, como de costume. Noite de 26 de julho. Mal havia começado o filme, acenderam-se as luzes e, do palco, alguém comunicou ao público a dolorosa notícia: 'João Pessoa foi assassinado!' (...) A indignação foi geral. Nada mais podia impedir a marcha da Revolução. Toda a nação estava chocada."    A questão da Presidência já tinha se encerrado, a partir do momento em que Getúlio Vargas reconheceu sua derrota e a eleição de Júlio Prestes. Agora, reacendiam-se os ânimos. Os cronômetros eram novamente ajustados e recomeçava, pela ultima vez, a contagem regressiva para o início da Revolução.

Marcha da Revolução   Verdade seja dita, se o assassinato de João Pessoa trouxe novo alento aos revolucionários, na realidade a conspiração já vinha sendo desenvolvida há bom tempo, antes mesmo de se realizarem as eleições, cujos resultados, já se sabia, seriam, como sempre foram, favoráveis ao governo. A derrota nas eleições, com as fraudes do sistema, seria apenas uma bandeira da oposição, pretextando a renovação dos costumes políticos.

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    Vejamos como andava a conspiração. Durante o trajeto da Coluna Prestes (1924-1927) Juarez Távora, que fazia parte de seu Estado Maior, foi detido no Piauí e, em seguida, remetido ao Rio de Janeiro, onde ficou prisioneiro, primeiro na ilha de Trindade e, depois, na ilha das Cobras, de onde conseguiu fugir, viajando incógnito para Montevideu onde devia encontrar-se com exilados da Coluna. Nessa ocasião, obteve do general Isidoro Dias Lopes um comissionamento na patente de  general e, nessa condição, tratou de chegar ao nordeste, onde começou as articulações com as forças políticas e militares da região. Seria ele o comandante da operação no nordeste.    Em Minas Gerais, havia o apoio furtivo do governador Antônio Carlos, que não queria se comprometer com um movimento de contestação ao governo federal, antes de ter segurança de que a ação pudesse trazer um resultado eficaz. Em  7 de setembro de 1930, Antônio Carlos transfere o governo de Minas a Olegário Maciel, que havia sido eleito, ao mesmo tempo, presidente do Estado e senador da República. Assim, após assumir o governo de Minas, Olegário Maciel viaja para o Rio de Janeiro para tomar posse no Senado e, nessa ocasião, mantém contato com um dos articuladores da revolução, o gaúcho João Neves da Fontoura, ao qual empenha a palavra de que dará, em seu Estado, toda a cobertura que se fizer necessária.    No Rio Grande do Sul estava o núcleo principal da sublevação. Primeiro, porque ali o governador continuava sendo Getúlio Dorneles Vargas; depois, porque o Estado contava com um bom número de revolucionários de movimentos anteriores;  por fim, porque nos países limítrofes, Argentina e Uruguai, se encontravam asilados os participantes do movimento de 1924 e da  Coluna Prestes. Aliás, o próprio Luís Carlos Prestes vinha sendo cogitado para assumir o comando da nova revolução, caso em que seria comissionado, também, na patente de general.

Imprevistos enfraquecem comando   No decorrer da conspiração, que, como dissemos, começara bem antes da morte de João Pessoa, dois acontecimentos inesperados surpreendem os  tenentistas e vem enfraquecer as articulações na área militar. Embora sem comprometer o movimento em seu conjunto, esses fatos

trouxeram um enfraquecimento na liderança e um abalo junto aos tenentes comprometidos com a revolta.    No início de maio, ainda exilado na Argentina, Luís Carlos Prestes comunica sua intenção de aderir ao comunismo, partindo para a luta revolucionária contra todo o sistema capitalista e não apenas contra o governo Washington Luís. Segundo seu próprio depoimento, a longa marcha pelo Brasil, comandando a  Coluna Prestes, trouxe-lhe a convicção de que não era possível montar um novo governo, apoiado nas mesmas oligarquias que controlam cada parte do país.     Preocupados com o rumo em que seguiam as coisas, os   tenentes Siqueira Campos e João Alberto viajam para Buenos Aires e, no dia 7 de maio de 1930, participam, eles e outros exilados, de uma reunião com Luís Carlos Prestes, em que este apresenta seu  Manifesto Socialista,  que iria divulgar nos próximos dias. Em vão tentaram seus companheiros fazê-lo desistir de seu propósito e, como ninguém aderisse a suas idéias, a reunião tornou-se de todo inútil para ambos os lados.    No dia 9, pretendendo voltar rapidamente a Montevideu, os dois  tenentes conseguiram um espaço no avião do Correio Aéreo, que decolou perigosamente, à noite, sem instrumentos, com cinco pessoas a bordo, mais a carga normal de correio. Não se sabe qual a causa, o avião caiu nas águas geladas do mar, já em território uruguaio. Dos cinco passageiros, somente João Alberto conseguiu alcançar a praia. Siqueira Campos sentiu o choque térmico provocado pela água gelada, teve cãibras e não conseguiu se movimentar, morrendo afogado.    Perderam-se, pois, de uma só vez, dois elementos de proa na causa revolucionária, um por deserção e outro por acidente. Prestes foi o artífice da Coluna que percorreu o Brasil. Siqueira Campos participara de quase todos os movimentos, desde a Revolta do Forte de Copacabana, em 1922, a qual comandou, em companhia de Eduardo Gomes.

Levante no Rio Grande do Sul    Depois de várias datas marcadas e desmarcadas, ficou finalmente decidido que o movimento se iniciaria no dia 3 de outubro de 1930 às 5h30 da tarde, após o fechamento das repartições civis e militares, quando o movimento nesses locais se

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tornava insignificante. Por uma falha de comunicação, Juarez Távora, no nordeste, entendeu que a marcha se iniciaria à zero hora do dia 4 e esse mal entendido quase pôs a perder a revolução.    Neste ponto, entra em cena um revolucionário de última hora, o tenente-coronel Pedro Aurélio de Gois Monteiro, cuja biografia assinala uma constante mudança de posições, segundo suas próprias conveniências. Em 1930, sentindo a fraqueza do governo Washington Luís, aderiu aos revolucionários; Em 1932, lutou contra a Revolução Constitucionalista, em São Paulo; Em 1937 aderiu ao golpe de Estado que restabeleceu plenos poderes ao ditador Getúlio Vargas; em 1945, aderiu a outro golpe, que derrubou o mesmo Getúlio. Neste momento, porém, em que o movimento revolucionário ia ter início, sua presença era indispensável, pela patente militar que lhe dava supremacia de comando.    De sua parte, o governador Getúlio Vargas cuidava de manter um jogo duplo. No palácio, mantinha o ritmo de trabalho normal, fazendo com que a rotina parecesse inalterada, tanto no gabinete, quanto nos quartéis das policias estaduais. Paralelamente, utilizava seus auxiliares diretos na articulação do movimento, entre eles, o principal articulador, Osvaldo Aranha. E, para completar, dava ao comandante da 3ª Região Militar, general Gil de Almeida, a segurança de estar cuidando da ordem, não havendo qualquer fundamento os boatos sobre uma possível revolução.     No dia 3 de outubro de 1930, a data fatal para o levante, um acontecimento inesperado facilitou os preparativos finais. No dia anterior, falecera o grande herói das revoluções de 1893 e 1923, o general Honório de Lemes. Como era de se esperar, os jornais deram destaque e repercussão a esse fato, desviando, assim, a atenção da população e das autoridades. Não houve sequer desconfianças quando os alunos das escolas de Porto Alegre foram dispensados das aulas mais cedo que de costume.     No palácio, Getulio despachava como se fosse mais um dia de trabalho. Nos bastidores, tudo estava preparado para o levante. A não ser que surgisse algum outro fato novo e inesperado, a articulação, muito bem cuidada, oferecia todas as condições de sucesso.

Cavalo de Tróia   Já há algum tempo, para iludir a vigilância militar, a Guarda Civil do Estado, todas as tardes, ao encerrar seu expediente, entrava em forma, desfilando em frente ao Quartel General, prestando continência ao comandante da 3ª Região Militar, general Gil de Almeida.    Diariamente, repetia-se a mesma rotina. Por volta das cinco horas, encerrava-se o expediente. Às cinco e quinze, pontualmente, o general, de sua janela, acompanhava a passagem do desfile e se tranqüilizava. Se algum movimento estivesse sendo articulado em Porto Alegre, por certo que não teria a colaboração do governo estadual. Naquele dia 3 de outubro de 1930, no mesmo horário de sempre, as tropas passaram em frente ao QG, só que, enquanto o primeiro grupo continuava o desfile, o segundo saiu de forma, tomou de assalto a portaria e invadiu o quartel, aprisionando o General-Comandante.    Em seguida, ao sinal dado por um foguete, ocorreu o levante nos demais quartéis, que foram tomados sem maiores dificuldades. Por todo o Rio Grande do Sul, assim como em Santa Catarina e no Paraná, a revolução obedeceu o horário determinado. Isso só não aconteceu no nordeste, onde o comando estava nas mãos de Juarez Távora.

Faltou sincronia   Como no sul, a articulação também seguia seu curso no norte e nordeste. Ao aproximar-se a data fatal, já havia um comprometimento, maior ou menor, de quartéis na Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas. Toda a região estava, pois fechada e parecia não haver maiores problemas.    Em 25 de setembro de 1930, Juarez Távora recebeu um telegrama cifrado de Osvaldo Aranha (Rio Grande do Sul), informando que   o início do levante estava marcado para 3 de outubro, às 5h30 da tarde. A data era ótima, pois nesse dia estavam escalados para o serviço em suas unidades militares os tenentes Agildo Barata e Juraci Magalhães, ambos comprometidos, e  elementos importantes do esquema na Paraíba, onde se achavam Juarez e o comando revolucionário.    O problema estava no horário, pois dificilmente se conseguiria sublevar os quartéis em plena luz do dia, sendo

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conveniente que o início acontecesse na calada da noite. Juarez pretendia iniciar o levante na madrugada do dia 4 e propôs que a data fosse mudada também no sul do país, todavia foi infeliz na redação do telegrama, que saiu nos seguintes termos: "ciente pt peço licença iniciar  marcha dia 4". Aí estava o erro. Iniciar o levante é uma coisa, iniciar a marcha é outra totalmente diferente. A autorização do sul veio, mas referindo-se à alteração do horário para a movimentação das tropas, que já deveriam estar sublevadas no final da tarde!     Ao fim do dia 3, havendo chegado ao Recife, onde pretendia acompanhar o início das operações, Juarez Távora foi surpreendido com a notícia de que o levante já se iniciara no sul e que o governo federal expediu um alerta a todos os Estados para se prevenirem contra qualquer alteração de ordem, colocando as tropas em prontidão.    Daí por diante, tudo correu mais por conta da capacidade de avaliação e iniciativa de cada comandante. Por sorte, as reações se fizeram atropeladas, mas a tempo certo. Em Recife, foi destruída a Central Telefônica cortando as comunicações. Depois, retornando a Paraíba, Juarez encontrou as tropas rebeladas e o povo nas ruas. Dos outros Estados, foram chegando, aos poucos, notícias animadoras sobre o resultado das operações. A primeira batalha estava vencida.

Do sul, a marcha para o Rio de Janeiro

    No sul, como vimos, tudo caminhou como o previsto e as praças foram tomadas sem resistência. Em seguida, formaram-se comboios ferroviários, que subiriam em direção a São Paulo e, depois, seguiriam ao Rio de Janeiro, para a tomada do poder. De Porto Alegre, as tropas saíram com o tenente-coronel Góis Monteiro, o governador Getúlio Vargas e o vice-governador, João Neves da Fontoura. Somente Osvaldo Aranha teve de ficar, assumindo o governo estadual.    De Uruguaiana, divisa com a Argentina, parte o  Destacamento Batista Luzardo. Como a cidade fica a sudoeste do Rio Grande do Sul, o comboio fez um itinerário diverso, sem passar em Porto Alegre, ficando de encontrar-se com os demais num entroncamento ferroviário, já no Estado de São Paulo. O trem seguiu, pois, por Alegrete, São Gabriel, Santa Maria, Tupanciretã, Júlio

de Castilhos, e Cruz Alta, até atravessar a fronteira com o Paraná, por Iraí.     Parando na estação em Santa Maria, segundo conta Luzardo, houve uma invasão ao trem pela entusiasta garotada do Colégio Santa Maria, que queria participar da guerra. Foi um custo para retirar os alunos e convencê-los de que sua missão, naquele momento era estudar. Ainda assim, reiniciado o trajeto, descobriu-se mais alguns  clandestinos, que foram deixados na próxima estação, para  repatriamento. O trajeto das duas caravanas, tanto a de Getúlio quanto a de Luzardo, era interrompido, em cada parada, por multidões que se postavam nas estações, de lenço vermelho ao pescoço, saudando os revolucionários. Em Santa Catarina, no próprio dia 3 de outubro, o general Felipe Portinho havia dominado a situação a favor dos rebeldes. Blumenau foi instituída capital provisória do Estado, assumindo, como interventor, o tenente-coronel Arnoldo Mancebo. No Paraná, a luta foi vencida sob o comando do major (agora comissionado como general) Plínio Tourinho, que há meses vinha cuidando da articulação e, em 3 de outubro, colocou-se à frente dos revoltosos. Assumiu o governo o seu pai, general (da reserva) Mário Alves Monteiro Tourinho.   Restava, pois, a grande batalha que deveria ocorrer em São Paulo, no entroncamento de Itararé, onde o governo federal concentrara a maior parte de suas tropas, para barrar o avanço da frente revolucionária. A Batalha de Itararé, todos já sabiam, seria a mais dura e sangrenta dentre todas aquelas de que já participaram os   tenentistas, já diremos a razão.

Do nordeste, a marcha para o sudeste

   Voltemos ao nordeste, onde a situação já era de quase completo domínio, após a perigosa oscilação causada pela desinteligência quanto aos horários de início do levante. A esta altura, as notícias que chegavam ao comando indicavam que os revolucionários dominavam a maior parte da região, devendo-se partir, assim, para o trabalho de consolidação.    Juarez Távora, no comando geral do nordeste, nomeia o dr. José Américo de Almeida como interventor da Paraíba e Chefe do Governo Provisório no norte e nordeste, estabelecendo, assim, as bases civis do

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movimento. Isto posto, passaram a ser nomeados os interventores nos Estados onde a luta estava encerrada, quais sejam:  Alagoas, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe.     Os interventores, à falta de normas definidas em lei, passaram a governar discricionariamente. A única orientação, de caráter geral, estava no telegrama enviado pelo comandante militar, Juarez Távora, ao comandante civil, José Américo, nestes termos:  "(...) Desaconselho dissolução imediata do poder judiciário que, nesta fase transitória, deverá continuar funcionando normalmente, apenas se reservando o Executivo Revolucionário o direito de discutir suas decisões contrárias ao espírito da revolução. Todo Poder Legislativo deve ser considerado inexistente, desde a data do início da Revolução, como dupla medida, de moralização e economia. Saudações. General Távora."    Mais coerente, o interventor do Maranhão, de uma vez, extinguiu o Poder Judiciário, já que, na prática, ele deixa de existir se as suas decisões tiverem de ser submetidas à aprovação ou não do interventor.

Um beijo contido    Um registro à margem da História. Juarez Távora e José Américo seguiam, por trem, de Recife para Maceió, a fim de resolver problemas surgidos, e, como o tempo era curto, havia ordem para manter a estrada de ferro desobstruída, a fim de que o carro-de-linha  pudesse transitar sem paradas.     Todavia, ao aproximar-se da estação de Quipapá, na zona da mata, divisa de Pernambuco com Alagoas, uma pequena multidão se aglomerava sobre o leito ferroviário, obrigando o carro-de-linha a parar, para não ocasionar um múltiplo atropelamento. Irritado, Juarez desce do veículo mas, antes de qualquer reação, uma jovem  professorinha, sai da multidão e diz: "General Juarez, como prova de gratidão do povo desta terra ao libertador do norte, quero somente dar-lhe um beijo!"    Beijo? Aquilo era uma revolução, não era uma maratona! Imediatamente o comandante revolucionário mandou que a linha fosse desobstruída, retomou seu lugar no carro e prosseguiu a viagem, deixando para trás toda uma população desapontada.    O incidente ficou martelando em sua cabeça por um longo tempo. Trinta anos

depois, tendo de fazer uma viagem oficial ao nordeste, procurou saber se a  professorinha  de Quipapá ainda existia. Existia, sim, morava na mesma cidade e ainda lecionava numa escola primária.    Foi assim que, no dia 16 de agosto de 1971, o general Juarez Távora compareceu ao Grupo Escolar de São Benedito, distrito de Quipapá e, na presença de todos os professores e alunos da escola, prestou uma homenagem à professora Maria José Ramos, entregando-lhe uma "Rosa de Prata", condecoração oferecida pelo comando da Escola Superior de Guerra. A homenagem, na pessoa da  professorinha, era estendida  "a todas as professoras primárias que se dedicam à benemérita tarefa de abrir os primeiros caminhos à inteligência de nossas crianças, no interior do Brasil".

Batalha de Itararé    No sul, os comboios prosseguiam em direção ao Estado de São Paulo, com encontro previsto no entroncamento de Itararé, divisa entre São Paulo e Paraná, onde a paisagem muda bruscamente, e a terra fértil cede lugar a um grande penhasco, às margens do rio, formando uma fortaleza natural, de onde um exército dificilmente seria desalojado. Era ali, em Itararé, que o governo federal mandara concentrar o maior peso de suas tropas, esperando a chegada dos rebelados para o ataque fatal.    Já no dia 3 de outubro de 1930, na hora marcada para o início do levante, a vanguarda revolucionária, estacionada naquelas imediações, iniciara o ataque, obrigando o delegado de polícia a pedir reforços nas cidades vizinhas, tanto de São Paulo como do Paraná. A luta se desenvolveu na forma de guerrilha, enquanto, do lado inimigo, tropas legalistas iam chegando e tomando posição na fortaleza, sob o comando do general Pais de Andrade. Ao final, juntaram-se cerca de 2.400 soldados, bem armados e municiados.     A ação revolucionária tinha de ser muito bem planejada. Os revolucionários possuíam um efetivo de 4.200 homens, mas faltava armamento leve (armas automáticas), necessário para uma operação de deslocamento ligeiro. Havia apenas uma arma para cada quinze homens, o que diminuía consideravelmente seu poder de ataque.    Formaram-se, então, quatro destacamentos, sob o comando geral do

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general Miguel Costa, com missões bem definidas. O coronel Silva Junior, bem como Batista Lusardo (1º e 2º Destacamentos) fariam o ataque pela vanguarda; Flores da Cunha e Alexandrino Bitencourt (2º e 3º Destacamentos) dariam a cobertura de retaguarda.     O ataque estava programado para as 12 horas do dia   25 de outubro. Porém, logo ao raiar desse dia, soa o toque de um clarim e um mensageiro atravessa a linha de combate, com uma bandeira branca nas mãos levando mensagem para ser entregue ao general Paes de Andrade. Não era rendição dos revolucionários, pelo contrário, estes é que ordenavam a rendição incondicional das tropas legalistas.    O mensageiro era o deputado federal Glicério Alves e a mensagem, logo a seguir confirmada, dava conta de que Washington Luís renunciara à presidência da República na noite do dia 24. Estava terminada assim, de forma decepcionante, a Batalha de Itararé, o grande embate que não chegou a acontecer.

Minas Gerais na Revolução   A missão de Minas Gerais, dentro do plano global, se restringia ao próprio Estado e os Estados limítrofes. Como o governador Olegário Maciel era já um ancião de 75 anos de idade, essa condição transmitia ao presidente Washington Luís um sentimento de tranqüilidade, todavia, nos bastidores, a conspiração prosseguia intensa.    Ao cair da tarde de  3 de outubro, iniciou-se o levante, com a prisão do comandante interino da guarnição federal, que era o tenente-coronel José Joaquim de Andrada, mas a rendição das tropas não se fez senão depois de uma resistência que durou vários dias e ocasionou inúmeras baixas de ambos os lados.    Tomada a praça de Belo Horizonte, o restante do Estado foi sendo rapidamente dominado. Paralelamente, outros contingentes seguiram para a Bahia, o Espírito Santo e Estado do Rio de Janeiro, saindo vitoriosos em suas investidas, inclusive pelo fato de que o governo federal concentrara suas tropas em Itararé, faltando reforços para outros pontos de luta. Mesmo assim, a renúncia do presidente Washington Luís ainda colheu os revolucionários de Minas em plena luta.

Epílogo   No nordeste, um  teco-teco revolucionário, comandado pelo aviador naval Djalma Petit, desde o inicio do levante, vinha sendo usado para jogar folhetos sobre as capitais, anunciando a tomada da praça e pedindo ao governador que entregasse o cargo. Foi este o único avião da   frota revolucionária.    O mesmo teco-teco levantou vôo, em 27 de outubro de 1930, partindo de Salvador, e levando Djalma Petit, Juarez Távora, seu secretário, tenente Mirocem Navarro, e o comandante da Vanguarda Revolucionária, tenente Agildo Barata Ribeiro (que, mais tarde, a exemplo de Prestes, bandeou-se para o comunismo). Chegaram estes ao Rio de Janeiro no meio de aplausos de populares.    No dia 30, desembarcam no Rio, também, os revolucionários vindos do sul, tendo à frente seu líder, Getúlio Dorneles Vargas, que seria empossado como Chefe do Governo Provisório. Isto já é assunto para um próximo capítulo.

* * *Capítulo Treze

NAUFRÁGIO DO “TITANIC”Um Presidente é deposto

“O pensamento até parece coisa à-toa, mas como é que a gente voa, quando começa a pensar...” Este trecho de uma música popular, bastante conhecida, destaca o poder da imaginação para nos transportar, numa fração de segundos, para os lugares mais distantes do universo, colocando-nos, com absoluta segurança, dentro dos recintos mais bem policiados, onde ninguém mais entraria impunemente. Valendo-nos desse veículo, seguro e rápido, vamos, com o leitor, fazer uma viagem no tempo e no espaço. Estamos agora na madrugada de 24 de outubro de 1930, uma sexta-feira, na cidade do Rio de Janeiro, capital da República. Nas ruas, um movimento desusado de tropas e viaturas militares, bem diferente do dia anterior, quando havia apenas uma calmaria tensa, sinal das grandes tempestades. Estamos agora em frente ao Palácio Guanabara, onde é total o bloqueio, com soldados fortemente armados, que não permitem a ninguém entrar ou sair do prédio. Usando de nossa faculdade, proporcionada pela imaginação, entramos sem ser vistos ou barrados, subimos ao primeiro andar e

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passamos à sala de reuniões da presidência da República. Ao extremo da longa mesa retangular, com sua majestade, se acha sentado o presidente Washington Luís. Nos demais assentos, à sua esquerda e à sua direita, o pequeno ministério (eram apenas sete ministros), mais os chefes do gabinete civil e do gabinete militar.

Junta Militar A porta da sala se abre e, sem audiência marcada, entram, eretos, com porte marcial, os generais Tasso Fragoso e Mena Barreto, juntamente com o almirante Isaias de Noronha. O Presidente se levanta e encara os três visitantes. Todos os ministros, ficam, também, em pé, e voltam-se para o centro da cena, onde se inicia um embaraçoso diálogo entre o general Fragoso e o Presidente: “O senhor deve compreender”, começa o General, “a imensa mágoa com que viemos aqui: o patriotismo nos ditou a atitude que assumimos. Aqui estamos, porém, para fornecer-lhe todas as garantias...” O Presidente rebate: “Não as preciso. Dispenso-as.” E o General prossegue, ignorando a interrupção: “...porque sua vida esta correndo perigo, e queremos preservá-la.” “Nunca fiz caso da vida e, neste momento, desprezo-a, mais do que nunca”, replica o Presidente. “Neste caso, o senhor responderá por todas as conseqüências”, ameaça o General. “Por todas”, conclui o Presidente, com firmeza. O Presidente trazia ao coldre uma pistola. Os militares, como é natural, também estavam armados. O Presidente, aparentemente sereno, encara com firmeza seus interlocutores que, surpresos, ficam sem saber o que fazer. Por fim, dão meia-volta e se retiram da sala. Todos, então, voltam a sentar-se e a reunião prossegue do ponto em que havia sido interrompida. Na parede, o relógio de pêndulo, marca, segundo a segundo, o tempo que falta para o desfecho do drama. Este diálogo, e as cenas que se seguem, foram emprestados de uma testemunha viva dos fatos, o então ministro de Relações Exteriores, Otávio Mangabeira.

Interferência do Cardeal Mangabeira, sentindo inútil a resistência, pede licença, se retira da sala e vai tomar

providências que permitam uma saída honrosa a Washington Luís. Tenta ligar para o Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme, mas as linhas telefônicas estão cortadas. Aceita, então, o oferecimento de Tasso Fragoso, que manda um oficial buscar o Cardeal, mas quem vem em seu lugar é o vigário geral Monsenhor Costa Rego, para inteirar-se do que está acontecendo. Foi uma inútil perda de tempo. O carro volta ao Palácio São Joaquim, sede da Diocese, enquanto, no Palácio Guanabara, chega o 3º Regimento, comandado pelo coronel José Pessoa, que toma todos os corredores e salas, tornando prisioneiros os ocupantes do prédio. Antes não se podia entrar ou sair; agora, não era nem possível circular de uma sala a outra. Melhor para nós, que, estando invisíveis, não somos molestados por ninguém. Assim, depois de longo e sofrido tempo, podemos ver o carro militar chegando de volta e trazendo, desta vez, o próprio Cardeal, acompanhado do Monsenhor, já nosso conhecido, e também de D. Benedito, Arcebispo de Vitória, e amigo particular de Washington Luís. Não subiu direto, o Cardeal. Ficou no saguão, reunido com o Comando Maior, procurando assimilar os fatos e encontrar uma resposta à ansiedade de todos, inclusive a dele mesmo. Os três generais, que procuravam uma solução mais branda para o Presidente, com uma prisão domiciliar na casa de D. Sebastião, foram contrariados pelos demais oficiais, que desejavam prisão em quartel. Por fim, chegaram a uma fórmula, ruim, mas a única admitida pelos militares.

“Titanic” começa a afundar D. Sebastião, então, subiu à sala de reuniões e comunicou o resultado das conversações. Washington Luís ficaria preso no Forte de Copacabana; o ministro da Guerra, no Forte São João; e o ministro da Justiça, no Quartel do 1º Regimento da Cavalaria, em São Cristóvão. “O Presidente abraçou, um por um, os seus ministros, o prefeito, os membros de sua casa civil e militar, os seus filhos, em suma, os que lhe foram companheiros naquela triste jornada. Tinha, no rosto, o custumado sorriso. Não manifestava emoção. Houve, entretanto, mais de um grupo que não

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conteve as lágrimas. (...) O palácio, iluminado, era um grande navio sossobrando. Aqueles automóveis que partiam, eram como embarcações que conduzissem náufragos à terra.” Uma esponja foi passada sobre o quadro negro, apagando toda a Primeira República e deixando-o pronto para receber uma nova História, a História de uma Revolução Traída.

Fim da Primeira República Eis como terminou o episódio: Formou-se uma comitiva de dois carros. No primeiro ia o Presidente deposto, mais o Cardeal Arcebispo, D. Sebastião Leme, o general Tasso Fragoso e o Arcebispo de Vitória, D. Benedito. No segundo, partiam o monsenhor Costa Rego e alguns militares de proa. Como, a despeito do forte policiamento, ainda assim, se ajuntasse uma pequena massa popular em frente o palácio, as viaturas sairam pelo portão dos fundos, seguindo pelo túnel velho até o Forte de Copacabana. Aquele mesmo local que viu nascer a revolução tenentista, em 1922, com o episódio dos Dezoito do Forte, agora assistia o epílogo, com a prisão do Presidente deposto. Washington Luís, pouco tempo depois, foi deportado para a Europa, amargando 17 anos de exílio. Só voltou ao Brasil em 1947, quando a Segunda República também já era morta. Ficou residindo em São Paulo, sua terra por adoção, e passou o resto da vida dedicando-se a estudos históricos, havendo publicado um livro e vários trabalhos de pesquisa. Faleceu dez anos depois, com 87 anos de idade. Crucificado em seu Governo, Washington Luiz, que não era melhor nem pior que os outros que o precederam, carregou sobre suas costas todos os pecados da República Velha, mal começada com um golpe de Estado, mal continuada com um desrespeito sistemático à ordem constitucional, e mal terminada com um novo golpe, que viria implantar 15 anos de ditadura civil. A História que o julgue.

* * *Capítulo Quatorze

A REVOLUÇÃO TRAÍDAGetúlio assume e fica

A conspiração contra o governo de Washington Luís era um “segredo de

polichinelo”. Não se articula um movimento de tamanha amplitude, envolvendo todos os Estados, e com infiltração nos quartéis, sem deixar no ar a fumaça denunciadora de um pavio aceso, marcando o tempo para que o explosivo seja detonado. Armava-se, como que uma farsa, em que cada um representava seu papel. De um lado, uns fingiam não saber de nada; de outro, os demais fingiam que nada estava acontecendo. Enquanto isso, prosseguiam os preparativos para a revolução, e contatos se faziam até no Rio de Janeiro, nos sítios mais próximos ao poder central. Com efeito, já a algumas semanas da data marcada para eclosão do movimento, o deputado Lindolfo Collor percorria a Capital Federal, sondando o animo de oficiais graduados para sentir a reação destes em face de um levante. Nessa missão, chegou ele a conversar com o próprio general Tasso Fragoso, que, mais tarde, seria o chefe da Junta Militar Governativa. Ouviu deste uma negativa, mas colocada no condicional. Não participaria de nenhum movimento, era frontalmente contrário à subversão da ordem, todavia, diante de um fato consumado, não se omitiria, tomando, de sua parte as medidas que julgasse convenientes para o país. A alto comando não só tinha ciência dos acontecimentos, como se sentia preocupado com o entusiasmo que uma revolução dessa natureza poderia despertar na jovem oficialidade, com sérios prejuízos à disciplina. Estavam vivas, na memória, as revoltas de julho 1922, com uma inversão total da hierarquia, que é um elemento essencial à vida militar. Naquela ocasião, embora derrotados, os sublevados organizaram os levantes de 1924, em São Paulo e no Rio Grande do Sul; mais tarde, formaram a Coluna Prestes, que durante dois anos e meio percorreu o país, usando, com sucesso, a tática de guerrilhas; e, ainda agora, tinha-se notícia da participação dos “tenentes”, associados ao poder civil, no movimento que se organizava. Desta maneira, entendiam os chefes que, se a tomada do poder fosse inevitável, a iniciativa deveria partir do alto escalão, antes que a situação se degenerasse, contaminando os jovens oficiais. Isso explica, de certa maneira, a ação militar paralela desenvolvida na cidade do Rio de Janeiro, sem qualquer ligação com o movimento

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revolucionário, o qual, ao fim de outubro de 1930, já havia se disseminado por quase todo o país.

Instalação do novo governo Ainda que operando em campos opostos, os revolucionários e os legalistas, mesmo sem dar-se à conta, operavam de forma sincronizada, como se houvessem concertado entre si todos os movimentos da operação. Itararé foi o momento para a ação final. A alta concentração de tropas governistas, de um lado, e o ânimo dos revoltosos para o ataque, do outro, faziam prever que uma batalha sangrenta se travaria, com grandes perdas de vidas humanas e sem proveito nenhum para o país. Foi assim que, no dia 24 de outubro de 1930, véspera do grande confronto, o general Tasso Fragoso, o general Mena Barreto e o almirante Isaias de Noronha, procederam a deposição do presidente Washington Luís, formando os três uma Junta Governativa, ou Junta Pacificadora, como eles próprios preferiram chamar. Com isso, cessaram as hostilidades nas duas as frentes, a legalista e a revolucionária. Como providência imediata, visando restabelecer a ordem, foram nomeados os ministros da Guerra, da Marinha e de Relações Exteriores, respectivamente, general José Fernandes Leite de Castro, almirante Isaias de Noronha (componente da Junta) e Afrânio de Melo Franco. Nas demais pastas foram colocados Ministros interinos, apenas para responder pelo expediente, até que um governo efetivo tomasse posse. A nomeação de um titular para a pasta de Relações Exteriores atendeu a uma necessidade premente, pelos desdobramentos diplomáticos causados com a alteração da ordem constitucional. Tinha ele a missão de estabelecer contato com as embaixadas, desfazendo as preocupações de outros governos e administrando eventuais problemas decorrentes do asilo político oferecido por estas. Um primeiro incidente já havia ocorrido, quando um navio de bandeira alemã tentou sair da baía da Guanabara, sem autorização, e foi atingido por nossa Marinha de Guerra, originando protestos da Embaixada alemã. Já se vê por aí que a presença de um chanceler, naquele momento, era tão importante quanto a dos ministros militares.

Participação popular

Ao contrário da Proclamação da República, em 1889, quando o povo acompanhou indiferente ao desfile das tropas, desta vez, houve intensa participação popular. Este é o detalhe que diferencia uma revolução de um golpe. Tanto as tropas que desciam do nordeste, quanto as que subiam do sul eram aclamadas em todos os lugares por onde passavam. No Rio de Janeiro, naquele dia 24 de outubro, antes que os três oficiais generais chegassem ao Palácio Guanabara, uma multidão já se acotovelava na frente dos portões, muitos trazendo lenços vermelhos amarrados ao pescoço. À frente deles, se encontrava o líder socialista e deputado Maurício de Lacerda (pai de Carlos Lacerda, então um simples estudante). Era ele um líder popular, com uma folha de trabalhos apreciável na área trabalhista, artífice de estudos e projetos, alguns dos quais influíram decisivamente nas conquistas operárias da década de vinte. O próprio general Tasso Fragoso, ao vê-lo em frente ao palácio, pediu-lhe prudência, aconselhando-o a conter o povo, para evitar que este tentasse arrombar os portões e invadir o prédio, o que traria conseqüências imprevisíveis. Na cidade de São Paulo, quando Getúlio e sua comitiva desembarcaram na Estação da Sorocabana, em fins de outubro, uma multidão o esperava, a maioria com lenços vermelhos ao pescoço. O trajeto até o Palácio dos Campos Elísios, a cerca de quatro quarteirões, se fez no meio de aclamações. Conta Hélio Silva: “Bandeiras pelas ruas, colchas e tapetes nas janelas, em todo o trajeto, até o Palácio dos Campos Elísios, cujos portões Aureliano Leite [delegado auxiliar] mandou fechar. Vargas determinou que fossem abertos. O povo invadiu os jardins e exigiu que Getúlio falasse. E ele falou comovidamente.” Esse entusiasmo popular vinha desde a guerrilha da Coluna Prestes (1924-1927), acompanhada com o maior interesse pelas massas; foi tal o respaldo popular que, firmado nele, Getúlio Vargas ganhou autoridade moral para exigir sua posse em substituição à Junta Militar que se formou.

As preocupações dos revolucionários A deposição de Washington Luís veio encontrar a Revolução no seguinte ponto: no Nordeste, a situação estava sob total controle revolucionário, com interventores, quase

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todos tenentes, nomeados na maioria dos Estados. No Rio Grande do Sul, permaneceu no governo Osvaldo Aranha; no Paraná e em Santa Catarina, dois interventores foram nomeados pelo comando revolucionário. Em Minas Gerais, continuava o governador Olegário Maciel, fiel à Revolução, e os mineiros prosseguiam a luta no Espírito Santo e no Estado do Rio de Janeiro Mas uma grande tragédia marcou as hostes revoluvionárias, quando o grande líder revolucionário Djalma Dutra foi morto, por engano, por sua própria sentinela. Era mais complicada a situação do Estado de São Paulo, onde estava no poder o vice-Governador, Heitor Penteado, mas cujo governo era realmente controlado pelo ex-Governador Júlio Prestes, pivô da insurreição. A frente revolucionária, sob o comando de Miguel Costa, se achava estacionada em Itararé, divisa de São Paulo com o Paraná, aguardando o momento para o ataque aos legalistas, estes últimos comandados pelo general Pais de Andrade. Quanto a Getúlio Vargas e Góis Monteiro, respectivamente líderes civil e militar da Revolução, estes se estavam na retaguarda, em Ponta Grossa, Estado do Paraná, aguardando o desfecho dos acontecimentos em Itararé. A súbita derrubada do Presidente, seguida da posse do Governo pela Junta Militar, causou natural preocupação no comando revolucionário, tanto mais que os novos governantes passaram a editar uma série de medidas, como se houvessem assumido o poder em caráter definitivo.

Faltava só um detalheA presença da Junta Militar, naquela conjuntura, tinha um significado importante, pois apresentava a transição como um imperativo de segurança nacional e não como o resultado de um conflito armado. Não era a vitória dos revolucionários contra as tropas legalistas, mas a posse de um governo provisório, que iria pôr em ordem o processo, restaurando a normalidade constitucional. Aí estava o ponto de discordância entre a Junta Militar e o Comando Revolucionário. Getúlio Vargas perdera para Júlio Prestes as eleições de 1º de março de 1930, dentro de um processo fraudulento, como, aliás acontecera com todas as eleições durante a Primeira República. Desta maneira, queria

assumir o poder como Presidente legítimo, esbulhado durante a realização e apuração do pleito. Já, os militares, até aceitavam sua posse, como fruto da vontade popular, porém, somente na condição de Chefe de Governo Provisório, com o que não concordavam, nem Getúlio, nem Góis Monteiro, nem os demais líderes do movimento. Osvaldo Aranha, interventor no Rio Grande do Sul, seguiu, de avião, para o Rio de Janeiro e, servindo de almofada entre os cristais, funcionou como intermediário entre as duas frentes, conseguindo, finalmente, o assentimento dos revolucionários às exigências dos militares. Prevaleceu, assim, o bom senso, e ficou acertado que a posse do chefe máximo da Revolução se daria logo após sua chegada ao Rio de Janeiro, o que demoraria alguns dias, já que ele passaria primeiro pela capital paulista, antes de tomar o trem da Central do Brasil em direção ao Rio.

A situação em São Paulo Além do tradicional Partido Repúblicano, que elegeu Júlio Prestes e se pôs junto aos legalistas, contra o levante, São Paulo contava agora, também, com o Partido Democrático, formado principalmente por jovens idealistas da classe média, que apoiaram francamente a Revolução e se achavam, assim, com direito de assumir a Interventoria naquele Estado. Prudentemente, a Junta Militar determinou que o poder fosse entregue, provisoriamente, ao comandante da 2ª Região Militar, general Hastínfilo de Moura, incumbido, também, de nomear um secretariado composto somente de civis, escolhidos dentro do Partido Democrático. Em seguida, coerentemente, a Junta sondou Francisco Morato, do mesmo partido, sobre seu interesse em assumir a Interventoria. Num ato falho, Morato, embora manifestando interesse no assunto, respondeu que só aceitaria o cargo se contasse com a aprovação de Getúlio Vargas. Este, por sua vez, quando consultado, usou de tática protelatória, respondendo que o assunto seria tratado quando de sua chegada a São Paulo. Tivesse aceitado imediatamente o oferecimento, Francisco Morato talvez evitasse uma sucessão de acontecimentos desastrosos. Ao protelar a decisão, permitiu que uma agitação desordenada se fizesse

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em torno do assunto, pondo em choque interesses dos mais variados. O “tenente” João Alberto tinha notório interesse em assumir o cargo; de por sua vez, Batista Luzardo interferiu junto a Getúlio, propondo o nome de Miguel Costa, comandante, primeiro, da Revolução de 1924; depois, da Coluna Prestes; por fim, da vanguarda das tropas que se achavam, agora, estacionadas em Itararé. Eram, em efetivo, três postulantes, além de outros nomes que circulavam nos bastidores. Destarte, a solução final foi protelada, mais uma vez, para após a sua posse no Governo Provisório.

Posse e as interventoriasNo dia 3 de novembro, exatamente um mês após a eclosão do movimento, Getúlio Vargas tomava posse como Chefe do Governo Provisório, recebendo o poder da Junta Governativa. Entre as inúmeras providencias a serem tomadas, urgia referendar a nomeação dos interventores, feita durante a marcha da Revolução. O governo mineiro, como vimos anteriormente, ficou ao lado da revolução e, em homenagem a essa fidelidade, Olegário Maciel foi o único que, não sendo substituído, permaneceu com o título de Governador (ou Presidente do Estado, que é como se designava na época). São Paulo, sem definição, estava sendo governado pelo secretariado, civil e paulista, como queriam os democráticos. Getúlio, contemporizando, enviou para lá o “tenente” João Alberto (militar e pernambucano) como seu preposto. João Alberto, se não era interventor, agia como se assim o fosse. Em 7 de novembro, autorizou o Partido Comunista a instalar sua sede em São Paulo, já que não havia disposição legal em contrário. Dias depois, fundou uma “Legião Revolucionária” para defender os objetivos da Revolução, lançando um manifesto popular, assinado por ele, por Miguel Costa e por Mendonça Lima. Essas Legiões começavam a ser organizadas em alguns pontos do país, e outro motivo não tinham senão o de conservar o poder dos “tenentes” nos Estados, em detrimento do poder civil, intenção que não faziam por esconder. Em São Paulo, os Democráticos estavam irritados com tamanha interferência, enquanto que, de sua parte, João Alberto insistia com Getúlio para que apressasse sua

nomeação. Do Rio Grande do Sul, Oswaldo Aranha manda ao Rio de Janeiro João Batista Lusardo para conversar com Getúlio e “arrancar” deste a nomeação de João Alberto. Por seu lado, os Democráticos também não perdiam tempo. Como se sabe, o Governo Provisório em São Paulo estava nas mãos de um secretariado cujo Presidente era José Maria Witaker, que foi, depois, convidado por Getúlio para assumir o Ministério da Fazenda. Com isso, a chefia do Governo estadual passou para as mãos de Plínio Barreto, redator-chefe do jornal “O Estado de São Paulo”, o qual começou a reclamar da interferência indevida de João Alberto nos assuntos de governo. Getúlio, então, desejando liquidar de uma vez o assunto, nomeou João Alberto, em definitivo, como Interventor no Estado de São Paulo. As conseqüências de tal ato serão narradas no capítulo relativo à Revolução Constitucionalista de 1932. Por ora, basta adiantar que, em pouco mais de dois anos, São Paulo teve oito interventores: O general Hastínfilo de Moura, João Alberto (agora nomeado), Laudo de Camargo, general Manoel Rabelo, Pedro de Toledo, depois o general Valdomiro Lima, o general Manoel Cerqueira Daltro Filho e, por fim, Armando de Sales Oliveira.

Quem era Getúlio Vargas Getúlio Dorneles Vargas nasceu em 1883 em São Borja, na divisa entre o Rio Grande do Sul e a província de Corrientes, ao norte da Argentina. Seu pai, Manuel Vargas, lutou na Guerra do Paraguai e depois na Revolução Federalista de 1893, tomando nesta o partido de Julio de Castilhos. Portanto, Getúlio tinha origem em família tradicional republicana (“blancos”). Em 1900, foi estudar em Ouro Preto, Estado de Minas, onde se achavam, também, seus dois irmãos mais velhos, Viriato e Protasio. Um dia, os três e mais outros se envolveram num sério conflito entre estudantes, ocasionando morte de um dos colegas, não se sabe por quem. Em conseqüência, foram todos expulsos da escola, retornando ao Rio Grande do Sul. Entrou, então, para a Escola de Cadetes de Rio Pardo, mas, em 1902, solidarizou-se com um grupo de colegas que haviam se rebelado contra seu superior. Os colegas foram expulsos e ele, achando injusta a

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pena, pediu demissão da Escola, voltando ao Exército, desta vez, como simples soldado. Nesse mesmo ano, surgiu a “Questão do Acre”, envolvendo o Brasil, a Bolívia e uma companha americana (Bolivian Syndicate). Tropas foram mobilizadas, e o 25º Batalhão de Infantaria, de que Getúlio fazia parte, seguiu para Corumbá, a defender nossas divisas. Resolvido o conflito, voltou ele para o Rio Grande do Sul, matriculando-se na Faculdade de Direito de Porto Alegre, onde concluiu o curso e foi orador oficial dos bacharelandos. Durante esse período acadêmico, fez suas experiências como jornalista, fundando um periódico junto com alguns de seus colegas. Foi também aí que iniciou sua carreira política, atuando em movimentos do Partido Republicano. Getúlio Vargas, até 1930, sempre foi um político regional, sem maior projeção no cenário federal. Foi deputado estadual e, como presidente da Assembléia Legislativa, referendou o nome de Borges de Medeiros para mais um mandato como Governador, originando, com isso, a Revolução de 1923. Aceitando o convite de Washington Luís para assumir o Ministério da Fazenda, logo demitiu-se para candidatar-se a Presidente de seu Estado, ganhando as eleições. Nesse cargo é que fomos encontrá-lo quando candidatou-se a presidente da República (sem interromper o mandato de Governador). Daí saiu para a marcha revolucionária, em 3 de outubro de 1930 e, um mês depois, assumia a chefia da Nação. Seu Ministério ficou assim constituído: Relações Exteriores, Afrânio de Melo Franco, mineiro; Justiça, Osvaldo Aranha, gaúcho e “blanco”; Agricultura, Joaquim Francisco de Assis Brasil, gaúcho e “colorado”; Fazenda, José Maria Witaker, paulista; Educação e Saúde (desmembrado da Justiça), Francisco Luís da Silva Campos, mineiro; Guerra, general José Fernandes Leite de Castro; Marinha, almirante José Isaias de Noronha, fluminense. Foi criado o Ministério do Trabalho, entregue a Lindolfo Color, gaúcho. Getúlio, sendo um “colorado”, ignorou os preconceitos e casou-se com uma “blanca”, dona Darci Sarmanho, com quem teve cinco filhos: Lutero, Jandira, Alzira, Manuel Antônio e Getulio.

Limpando a área

O primeiro problema a resolver era dar um destino à grande quantidade de prisioneiros feitos nesses dez dias que se seguiram à deposição de Washington Luís, até a posse de Getúlio Vargas. Prendiam-se pessoas por qualquer motivo ou por motivo nenhum e, vivendo-se em regime de exceção, a decisão sobre o destino de cada um era sobretudo política, dependendo das boas graças do chefe de Polícia ou da influência de pessoas ligadas ao novo governo. Nessas circunstâncias é que João Batista Lusardo foi chamado ao Rio de Janeiro sendo empossado no cargo de chefe de Polícia. Velha raposa política, conhecedor de todos e conhecido por todos, bem relacionado com políticos e personalidades, era a pessoa ideal para fazer a seleção dos atingidos pela Revolução, dando a cada um o destino que julgasse conveniente. Getúlio era um calculista. Não era um vingativo nem pretendia cometer injustiças, mas o estado emocional nas lides revolucionárias impedia qualquer julgamento dentro da absoluta neutralidade. Foi assim, por exemplo, que o chefe de Polícia concedeu liberdade ao escritor Gilberto Amado, que acabara de chegar da Europa e fora preso, com sua mulher, logo ao descer do navio. Não só o libertou, como fez questão de levá-lo pessoalmente à casa, tecendo-lhe os maiores elogios e assegurando-o de que era desse tipo de homens que a Revolução estava precisando. Nada a contrariar sobre o reparo à injustiça cometida contra o escritor sergipano. Mas o mesmo Lusardo, poucos dias depois, manda prender o ex-ministro de Relações Exteriores, Otávio Mangabeira, conduzindo-o para o quartel do 1º Regimento de Cavalaria do Exército. Como se lembra, fora ele que, nos momentos dramáticos que antecederam deposição, cuidou de todas as negociações com a Junta Militar, conseguindo a vinda do Cardeal Arcebispo ao Palácio, o qual convenceu Washington Luís a renunciar. Não fora a ação equilibrada de Mangabeira e as coisas, talvez, não terminassem de maneira tão pacífica. Pois agora o ex-Ministro estava preso e tinha como destino final a deportação para a Europa, de onde só voltaria em 1934, com a reconstitucionalização do país. A propósito, se expressa Mangabeira: “Acabo de ser intimado para retirar-me do Brasil. Que tristeza! Não se me perguntou

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quais os recursos de que para tal dispunha. Como se a deportação, ela própria, não tivesse suas regras. Como se os países estrangeiros fossem postos de degredo! Como se a eles não assistisse o direito de não receber tais imigrantes. Quão excessivo o desconhecimento de coisas tão comezinhas! Falou-se em um tribunal que vai julgar as autoridades depostas. Que retrocesso! Que abismo! Quanto trabalho perdido para aumentar, no estrangeiro, nosso conceito internacional!” Como acontece em tais momentos, muitas outras injustiças foram cometidas, muitos foram presos e fichados, sem ter como reclamar, pois o próprio judiciário estava manietado. O novo ministro da Justiça, Osvaldo Aranha, em entrevista à imprensa, diz: “Estamos diante de uma situação de fato e não de direito. Estamos, enfim, numa situação revolucionária plenamente vitoriosa.”

Primeiras medidas de governo Num momento crítico como esse, não pode haver um instante de imobilidade. O governo tem que agir rápida e eficientemente para que os problemas não se acumulem ao ponto de causar uma paralisação total do país. Começaram por despachar para o exterior os homens do antigo regime, que lotavam as prisões e as embaixadas, na maioria políticos e homens de confiança do governo anterior. Numa primeira leva, seguiram figuras bastante conhecidas, como a do o senador Irineu Machado, do Rio de Janeiro; do deputado e historiador José Maria Belo, de Pernambuco; do deputado Paim Filho, do Rio Grande do Sul; e do deputado Miguel Calmon, da Bahia. Ao mesmo tempo em que o governo ia se desvencilhando dessa carga incômoda de adversários, um decreto era assinado, beneficiando os novos donos do poder com uma anistia ampla e irrestrita, determinando “silêncio perpétuo” sobre todos os crimes cometidos desde a revolta de 1922 e fazendo retornar para a ativa das Forças Armadas, em seus antigos postos, todos aqueles que se rebelaram contra os governos de Epitácio Pessoa, Artur Bernardes e Washington Luís. Voltavam, pois, à legalidade, os “tenentes” e os demais que participaram das revoluções de 1922, 1923 e 1924, da Coluna Prestes e da revolução agora vitoriosa. Voltavam à legalidade, também, o general Isidoro Dias

Lopes e seu lugar-tenente, o major Miguel Costa, este último reassumindo, o comando da Força Pública do Estado de São Paulo. Foram dissolvidos o Senado Federal, a Câmara Federal, todas as assembléias legislativas e senados estaduais, bem como as câmaras municipais, passando o país a ser governado por decretos, assinados pelo Presidente, ou pelos interventores, nomeados ou confirmados pelo poder central. Alterou-se a estrutura do Supremo Tribunal Federal, diminuindo de treze para onze o número de Ministros que compunham esse órgão máximo da Justiça. Aliás, o Supremo, guardião da Carta Magna, nem tinha mais o que fazer, pois o Governo Provisório revogou a Constituição de 1891 e nenhuma outra foi outorgada em seu lugar. O governo, à falta dessa baliza fundamental, passou a atuar discricionariamente, ao sabor dos acontecimentos e do humor dos governantes. Estava criada a máquina que entregava o poder absoluto a Getúlio Vargas e que, bem azeitada, iria funcionar até 1934. Mais um detalhe: como a situação do Brasil setentrional era complicada e Getúlio não tinha familiaridade política com os núcleos do poder naquela parte do país, nem conhecia os interventores nomeados por Juarez Távora, este foi designado coordenador político e administrativo da região, desde a Bahia até o Pará e Amazonas. Por isso, ironicamente, a opinião pública passou a considerá-lo como o “Vice-Rei do Norte”, numa alusão à divisão administrativa das antigas colônias espanholas.

Recomposição das forças revolucionárias

A composição de forças que se uniram para fazer a Revolução de 1930 era por demais heterogênea para que pudesse se manter coesa depois de alcançados os objetivos. Lá estavam os “tenentes” de 1922, que lutaram contra Epitácio Pessoa e Artur Bernardes; lá estavam também Epitácio Pessoa e Artur Bernardes, que derrotaram os “tenentes” e jogaram-nos na clandestinidade. Encontravam-se no movimento os homens que lutavam contra as oligarquias e pela renovação dos costumes políticos; juntas se achavam outras oligarquias, sedentas de substituir as anteriores e se beneficiar das vantagens oferecidas pelo poder.

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É natural e compreensível que todos esses elementos discrepantes venham agora a se reorganizar, buscando seus próprios caminhos, tentando cada um influir no poder, ou passando para a oposição, quando não conseguem impor seus objetivos. As forças de apoio influentes no Governo provisório, logo lhe dão uma face própria, com traços facilmente identificáveis. Uma dessas características é a influência militar, com destaque para os “tenentes”, agora de volta à legalidade, uns com influência nos quartéis, e outros ocupando interventorias ou postos-chave no governo; outra, igualmente importante, é a consolidação de forças civis de extrema direita, de tendências nazi-fascistas, sofrendo influência sobretudo dos movimentos italianos. Foi assim que começaram a se formar as “Legiões Revolucionárias”, em alguns pontos do país. Além disso, para aglutinar as lideranças, fundou-se o “Clube 3 de Outubro”, reunindo a fina-flor do “tenentismo”, com participação do próprio coronel Góis Monteiro, e com um apoio ostensivo de Getúlio Vargas, que lhe fez várias visitas e pronunciou discursos de preocupante teor totalitário. A corrente civil logo passou à organização de milícias, usando uniformes especiais, à semelhança dos “camisas-negras” de Mussolini e os “camisas-pardas” de Hitler. Uma dessas milicias era a dos “camisas-cáqui”, fundada em Minas Gerais pelo Ministro da Educação e Saúde, Francisco Campos, conhecida como “Legião Mineira”. Outra, que permaneceu por anos e influiu pesadamente na Segunda República foi a dos “camisas verdes” do escritor Plínio Salgado, reunida em torno da “Ação Integralista Brasileira”. A existência dessas forças em recinto fechado já era um elemento conspiratório à ordem; a presença delas nas ruas levava inevitavelmente à pressão psicológica e física, limitando ou inibindo a liberdade de pensamento. Todavia, não se pode atribuir o surgimento dessas agremiações apenas à revolução vitoriosa. Havia por toda parte uma descrença pelas idéias liberais e, desde o surgimento da União Soviética, o mundo começou a se radicalizar em dois blocos distintos, de esquerda e de direita, ambos buscando o confronto e abominando o diálogo.

Ataque ao “Diário Carioca”Era da personalidade de Getúlio Vargas incentivar sorrateiramente as forças que, de alguma forma, pudessem ajudá-lo na realização de seus planos, para depois, no momento próprio, anular essas forças colocando-as, se preciso, fora da lei. Não inibindo tais movimentos, permitia implicitamente os abusos sem que, entretanto, tivesse de se responsabilizar pessoalmente pelas arbitrariedades cometidas. Com freqüência desusada e preocupante, ocorriam atentados à ordem pública, sem que os responsáveis fossem punidos, ou sequer identificados oficialmente, muito embora fossem de todos conhecidos. O mais grave desses incidentes foi o empastelamento do jornal “Diário Carioca”, ocorrido em 24 de fevereiro de 1932. Naquela época, a rotina de produção de um jornal era, mais ou menos, a seguinte: a matéria, chegada da redação ia para a composição nas linotipos, onde se fundiam as linhas do texto. Os títulos eram compostos à mão, letra a letra, usando-se fontes metálicas. As manchetes igualmente montadas à mão, se faziam com tipos de madeira (letras garrafais). Na bancada, todo esse material era reunido, de forma artesanal, formando as páginas (ramas) que, depois, eram colocadas em uma prensa (calandra), produzindo-se um molde em relevo sobre uma folha de papelão (flan). Esse molde era, então, vergado em semi-circulo, fundindo-se uma placa de chumbo (telha), que era a matriz definitiva, depois fixada na impressora. Facilmente se percebe que o “calcanhar-de-Aquiles”, em toda essa operação, era a fase de paginação, ou seja a formação das páginas dentro das ramas, reunindo-se as linhas da linotipo com os títulos, clichês, enfim o que se referia à composição do jornal, numa massa mole que, jogada ao chão, em uma fração de segundo se decompunha, inutilizando o trabalho de um dia inteiro. Era o “pastel”, que inibia os demais processos de feitura do jornal e, por consequência, suspendia a sua circulação. Já após a deposição de Washington Luís, grupos enfurecidos, em várias partes do país, percorreram jornais simpáticos ao governo deposto, provocando seu “empastelamento”. Tal atitude, anti-social, anti-democrática e criminosa, continuou se verificando, de

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quando em quando, e recrudesceu com o surgimento de milícias e grupos políticos radicais. A impunidade gerava novos atos de intimidação criando uma escalada da violência.

“Empastelamento” do jornalQuem melhor pode testemunhar sobre o “empastelamento” do Diário Carioca, ocorrido a 25 de fevereiro de 1932, é João Batista Lusardo, então Chefe de Polícia do governo Vargas e ele o fez, três anos depois, em discurso na Câmara Federal: “Estava em minha residência quando, por volta das 23 horas, recebi um comunicado, pelo telefone especial, de que algo de anormal se passava na praça Tiradentes, porque se ouviam descargas sobre descargas. Telefonei, como era de meu hábito, para a 4ª Delegacia Auxiliar, à frente da qual se encontrava o Sr. Salgado Filho, perguntando o que ocorria. Sua excelência não se achava na Repartição. “Tomei, então, providências imediatas para que o delegado de serviço corresse à praça Tiradentes, enquanto eu mesmo me movia, de casa, diretamente ao local do crime. Quando cheguei à praça Tiradentes, encontrei três caminhões, todos cheios de praças do Exército, que debandavam. (...) “Dez minutos depois, chegavam também o Sr. Flores da Cunha e o Sr. José Américo, ministro da Viação. Ainda encontramos cinco homens, empregados da redação, caídos, dois gravemente e três levemente feridos por armas de guerra, os quais enunciavam os nomes das pessoas que haviam comandado a escolta ou força atacante das oficinas do matutino carioca.” Lusardo não tem dúvidas de que o chefe do Governo Provisório tinha conhecimento prévio do atentado. Informando da ocorrência, no próprio gabinete presidencial, Getulio teria respondido ao Ministro da Justiça: “Mas o que queres que eu faça? Pois os rapazes fizeram isso porque o ‘Diário Carioca’ estava me atacando? Não posso ser contra eles!” E prossegue Lusardo: “O senhor Getúlio Vargas, forçosamente, deveria ter sido previamente informado desse assalto, se é que não foi ele o seu próprio idealizador. As precauções e cautelas tomadas pelo sr. Osvaldo Aranha, ao informá-lo do ocorrido, bem demonstram que sua missão foi a de comunicar-lhe, não uma novidade ou

surpresa, mas sim a maneira pela qual suas ordens haviam sido cumpridas.” Ficou patenteado que o grupo atacante do jornal era constituído por oficiais do 1º Regimento de Cavalaria Divisionária, sediado na avenida Pedro Ivo, com o concurso de outras unidades e departamentos. A reação ao atentado foi tamanha que em alguns Estados todos os jornais decidiram fazer um ato de protesto, suspendendo sua circulação por um dia. O episódio, sem maiores desdobramentos, é registrado para dar idéia do clima existente na época quando, após quase dois anos de Governo provisório, tudo se fazia para protelar a convocação de uma Assembléia Constituinte, permitindo a radicalização cada vez maior do regime. Foi nesse ambiente tenso que se desenrolaram os acontecimentos que levaram à Revolução Constitucionalista de 1932, cuja trama envolvia inicialmente os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul mas que, ao fim, eclodiu apenas em São Paulo, ganhando na contra informação do Governo Provisório a classificação de “movimento separatista”.

* * *Capítulo QuinzeA REVOLUÇÃO

CONSTITUCIONALISTAFim do poder discricionário

Costuma-se dizer que, em uma guerra, a primeira vítima é a verdade. Uma das mais poderosas armas de combate é a contra-informação, isto é, a propagação de informações distorcidas ou inverídicas, que lancem dúvidas sobre os acontecimentos ou falseiem a verdade, criando clima psicológico para justificar a ação. Esse recurso é muito usado em qualquer embate, seja no terreno das idéias, na atuação política, ou na operação armada. Conquistar a opinião pública para seus objetivos, causando a confusão mental, é meio caminho andado para a vitória. Não é por acaso que os governos e as forças militares ou revolucionárias de todo o mundo tem setores especializados nos serviços inteligência, buscando a informação e divulgando a contra-informação, manipulando dados com a mesma eficiência com que manejam as armas.

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Ao estourar o movimento constitucionalista de 1932, o Governo Provisório fez espalhar a versão oficial de que o verdadeiro objetivo de luta no Estado de São Paulo era o de separar-se do Brasil. Paralelamente, boatos davam conta de que o ex-presidente do Estado, Altino Arantes, reunia forças para dar um golpe de Estado, derrubando o Governo Provisório e transferindo a capital da República para São Paulo. O ano de 1932 já vai longe. Documentos que antes eram secretos ou pertenciam a arquivos particulares, inclusive os do Sr. Getúlio Vargas, vieram à tona e foram analisados minuciosamente pelos estudiosos da História do Brasil. Nada, nada mesmo, foi encontrado nestes setenta anos de pesquisa, que possa levantar a mínima suspeita quanto a pretensões separatistas, menos ainda, que, em algum momento, se tenha pretendido transformar São Paulo na capital da federação. Mas a mentira, repetida várias vezes, adquire sabor de verdade. Tal foi, por exemplo, o boato propalado em 1989, de que Deodoro estava preso e que tropas seriam removidas do Rio de Janeiro para pontos distantes do país. Descoberta a mentira, o imperador Pedro II já havia sido derrubado e exilado. Tal foi o episódio das cartas apócrifas de Artur Bernardes, pretexto para a subversão dos quartéis em 1922. E, percorrendo a História, encontraremos, a todo o momento episódios em que a contra-informação cria justificativa para uma ação, nem sempre bem intencionada, de quem a divulga. Antes de se fazer juízo sobre os pontos positivos e negativos da Revolução de 1932, vale à dar uma vista aos acontecimentos, à luz da documentação existente sobre o assunto. Até porque, numa guerra, não existem santos. Ela é a negativa da lógica, ou a lógica do absurdo, que pretende substituir a força da verdade pela verdade da força.

Facções em confronto O Governo Provisório instalado em 3 de novembro de 1930 era um mar de contradições. Seu chefe supremo, Getúlio Vargas, positivista dos velhos tempos de República, sonhava com um governo forte e, se possível, permanente. Sereno e equilibrado, movimentava, uma a uma, pacientemente, as pedras desse complicado

tabuleiro de xadrez, que é a vida pública. Não descartava a violência, mas preferia o caminho da paz para atingir seus objetivos. Se possível, cedia, senão investia usando todos os recursos à sua disposição. Paralelamente, para o bem ou para o mal, os “tenentes” de 1922 assumiram o poder com Getúlio, e até antes dele, já que os interventores militares iam sendo nomeados assim que cada Governador era deposto, criando uma rede poderosa a se contrapor com o governo central. Os “tenentes” passaram oito anos no exílio ou no anonimato, expulsos do Exército, afastados da família, banidos da sociedade, comendo o pão que o diabo amassou e se esqueceu de assar, e não pretendiam entregar o poder a revolucionários de última hora nem era sua intenção a redemocratização do país para entregá-lo às mesmas forças que haviam combatido. Para eles, melhor do que movimentar as peças no xadrez, seria virar de uma vez o tabuleiro. Por outro lado, no Brasil inteiro, as oligarquias reinantes foram derrubadas e alijadas do governo. O impacto era sentido especialmente em São Paulo, onde os ruralistas, reunidos em torno do Partido Republicano (PRP) perderam a chance de desenvolver a política de sustentação do café à custa do dinheiro público. Em São Paulo, havia, também, desde alguns anos, o Partido Democrático (PD), que participara da Revolução da revolução vitoriosa e esperava receber sua fatia de bolo na distribuição do poder. Por fim, em São Paulo, como no restante do país, os “tenentes” tratavam de instalar suas bases permanentes valendo-se de João Alberto e do major Miguel Costa. Assim é que, seguindo a orientação do “vice-rei do Norte”, Juarez Távora, promoveram a fundação da Legião Revolucionária, de tendências totalitárias, como o eram o Clube dos Tenentes e outras associações paramilitares. Outra força emergente e de peso era também a da classe operária. A Abolição da Escravatura, em 1888, arrasou com a economia dos Estados brasileiros, menos com a de São Paulo, que já vinha se utilizando do braço imigrante e adaptou-se facilmente à situação. As novas imigrações ocorridas na virada de século, puseram no Estado uma mão-de-obra diversificada, da qual parte seguia para a lavoura, outra se

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fixava nas cidades, especialmente na capital, incrementando a indústria e formando um operariado lutador, consciente de seus direitos. Muitos desses trabalhadores, como os italianos, traziam de sua terra natal uma experiência de lutas, criando base para formação de movimentos reivindicatórios, trabalhistas e/ou políticos. Todos esses blocos compactos atuavam na condição franco atiradores, cada um defendendo seus interesses específicos, mas reunindo ocasionalmente as forças, quando o objetivo era impossível de conquistar com a luta individualizada.

Duplo jogo de Getúlio VargasO centro do poder legal era o Governo Provisório, cuja política Getúlio administrava com rara habilidade. Não pretendia abandoná-lo tão cedo, mastambém não comprava problemas além daqueles que tinha condições de administrar. Getúlio não via com bons olhos o poder paralelo dos “tenentes”, menos ainda a concentração destes em associações, como o Clube 3 de Outubro (data de início da Revolução de 1930), ou as Legiões Revolucionárias, estas inspiradas por Juarez Távora. De bom grado, Getúlio substituiria os militares incrustados nas interventorias. Legalmente, podia fazê-lo mas, para evitar as repercussões de tal ato, contemporizava, usando em seu favor a força dos “tenentes”. Do Clube 3 de Outubro, conhecido como Clube dos Tenentes, fazia parte até o tenente-coronel Góis Monteiro, chefe militar da Revolução e homem forte do poder. Como escreveu Alzira Vargas, “ser tenente era mais importante que ser general.” Getúlio reconhecia esse poder paralelo e várias vezes visitou o clube, fazendo discursos e transmitindo as mensagens que eles queriam ouvir. Dentre elas a de que não era conveniente reconstitucionalizar o país enquanto não se eliminasse as “ervas daninhas” do regime anterior. Incomodavam ao Chefe do Governo Provisório os movimentos pela nova Constituição, mas tinha em sua sacola um jogo de ferramentas de que faria uso, cada uma a seu momento próprio. Assim, no dia 24 de fevereiro de 1932, quando estavam programados comícios pró-constituinte em São Paulo e Rio de Janeiro, não tibubeou em usar uma delas, assinando um Decreto, já prontinho, que estabelecia o novo Código Eleitoral, com regras para uma futura e

incerta convocação de Assembléia Constituinte. Em conseqüência, os comícios foram parcialmente neutralizados em seu conteúdo. Todavia, no dia seguinte, com a mesma rapidez e eficiência, forças paramilitares atacavam as oficinas do “Diário Carioca”, que, entre outras coisas, vinha cobrando do Governo a convocação da Constituinte. O jornal foi “empastelado” e vários funcionários ficaram feridos, dois em estado grave. O incidente nunca chegou a ser apurado convenientemente, mas ficou patente que homens-chave do governo, senão o próprio Chefe, tinham envolvimento no atentado.

Novo código eleitoralO novo código eleitoral não foi um trabalho de improvisação. Guardado para uso no momento apropriado, que ora chegou, era um estudo muito bem feito, que modernizava o sistema eleitoral vigente na Primeira República, dando-lhe maior representatividade e expurgando os vícios que vinham transformando as eleições em uma farsa para referendar os candidatos previamente escolhidos pelos donos do poder. Uma das modificações introduzidas foi o voto secreto. Com o sistema vigente, de voto a descoberto, ou a “bico-de-pena”, o eleitor era policiado e estava mais sujeito às pressões dos candidatos, não podendo manifestar livremente sua opinião. O limite de idade, anteriormente de 21 anos, baixou para 18 anos, ampliando apreciavelmente o contingente eleitoral. O jovem, por natureza, é mais interessado na renovação política e, se o deixam, comparece mais facilmente às urnas, sempre motivado em reformar o mundo. Sem conhecer os meandros do poder, calcula as distâncias em linha reta, ignorando os volteios que tornam o caminho mais longo e demorado. Mas comparece, e a ampliação da faixa etária foi, pois, um elemento altamente positivo para a autenticidade da consulta popular. Dava-se, também, o direito de voto à mulher. Com a Proclamação da República, o voto censitário (segundo a renda) foi transformado em voto universal (cada eleitor, um voto). Depois disso, em quatro décadas de República, nenhuma outra alteração significativa aconteceu, até porque faltava povo, ou seja, uma pressão da opinião pública para que as coisas acontecessem. A

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conquista do voto, pela mulher, veio corrigir, e não sem tempo, essa injustiça. Por fim, como medida mais eficaz, foi criada a Justiça Eleitoral para organizar o processo das eleições, fixando as juntas, fornecendo os títulos, organizando as votações, etc. Por incrível que pareça, a maioria dessas providências era tomada pelos próprios partidos políticos, que faziam a inscrição dos eleitores e participavam da criação das seções eleitorais. Com isso, os partidos controlavam o processo. Getúlio Vargas, quando candidato à Presidência, em 1930, estando no Rio de Janeiro, passou o dia à procura de uma seção aberta, onde pudesse votar e só ao fim do dia pôde fazê-lo. Umas seções abriam, outras não e, nas que estavam abertas, imagine-se as pressões a que o eleitor comum era submetido. Quase tudo estava organizado para trazer o país de volta à normalidade. Mas faltava o essencial, que eram as eleições. Uma das primeiras providências do Governo Provisório foi revogar a Constituição de 1891 e, depois disso, e nenhuma outra foi colocada em sua substituição, objetivando delimitar os poderes da Republica. Era, pois, de extrema urgência, a eleição de uma Assembléia Constituinte para fazer a nova Carta Magna e recolocar o Brasil entre os países civilizados do mundo. Mas as providências do Governo Provisório pararam por aí. Nem por um momento se pensou em assinar outro Decreto, marcando data para a realização da Assembléia Nacional Constituinte. Assim, o Código Eleitoral não passou de um código de boas (ou más) intenções. Neutralizou a campanha pró-constituinte, mas não deu a menor garantia de que, em tempo razoável, as eleições seriam realizadas.

Voltando ao caso de São PauloDentre 20 Estados brasileiros, nenhum apresentou tantos problemas como São Paulo, na criação da interventoria. A Revolução, descendo do norte ou subindo do Sul, foi deixando em seus lugares os interventores nomeados, geralmente militares comprometidos com o movimento, mas sempre enraizados no Estado em que assumiam. No Rio Grande do Sul, assumiu o gaúcho Flores da Cunha; em Santa Catarina, o tenente-coronel Arnoldo Mancebo, ali radicado; no Paraná, o general da reserva Mário Alves Monteiro Tourinho, que era o pai do chefe da Revolução naquele Estado,

major Plínio Tourinho. Nos Estados do norte e nordeste, seguiu-se a mesma regra e, em Minas Gerais, permaneceu Olegário Maciel, com a prerrogativa de usar o título de Governador. Assumindo provisoriamente o poder, a Junta Militar Governativa ordenou ao comandante da 2ª Região Militar que ocupasse o Governo de São Paulo até a nomeação de um interventor. O poder cabia ao Partido Democrático, que já tinha indicado para o cargo o nome de Francisco Morato. Este só não foi nomeado imediatamente porque preferia esperar pela chegada de Getúlio a São Paulo. Foi o seu erro, pois deu tempo a toda sorte de manobras, envolvendo os nomes dos “tenentes” João Alberto e Miguel Costa, ambos com forte apadrinhamento junto ao Governo Provisório que se formava. Miguel Costa era um argentino radicado em São Paulo e já habituado aos usos e costumes locais. João Alberto, porém, caiu de paraquedas e nenhuma afinidade tinha com o Estado, seu povo e sua política. Era, pois, um estranho no ninho. Surpreendendo os democráticos, Getúlio, em 25 de novembro de 1930, optou por nomear João Alberto. Sem lastro político, não conseguiu governar e renunciou, entregando o poder a Laudo de Camargo, probo Juiz de Direito, bom administrador, mas de pouca maleabilidade política. Laudo não aceitou interferências na nomeação de seu secretariado, depois, extinguiu a Secretaria da Segurança Pública, cujo titular era o major Miguel Costa, um dos pilares da Revolução. Este foi convidado para assumir o comando da Força Pública, porém, com a condição de se desligar imediatamente da Legião Revolucionária, a outra força que almejava controlar o poder. A polêmica teve seus desdobramentos, com o envolvimento de outras forças estranhas a São Paulo: o tenente-coronel Góis Monteiro, homem forte do Governo Provisório; o interventor do Rio Grande do Sul, Osvaldo Aranha, gaúcho mas cuja descendência materna era paulista; e o ex-Interventor João Alberto que, mesmo afastado do governo, exercia suas pressões através da Legião Revolucionária. Sem condições de governar, Laudo de Camargo renunciou, transferindo suas atribuições, em caráter provisório, ao novo comandante da 2ª Região Militar, general Manuel Rabelo.

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O problema ficou, aparentemente, solucionado com a posse de Pedro de Toledo, em 25 de fevereiro de 1932. A essa altura, já havia um clamor nas ruas pela convocação da Assembléia Nacional Constituinte, atingindo sobretudo as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, fortemente politizadas. No dia anterior ocorreram os comícios pró-constituinte a que nos referimos há pouco e o dia da posse coincidiu com o “empastelamento” de jornal no Rio de Janeiro, também narrado linhas atrás. Esse era o ambiente político-militar em que se dava a posse.

Pela Constituição Já no mês de janeiro, a pretexto de se comemorar o 378º aniversário da fundação da cidade, tinha havido uma grande concentração na praça da Sé, usando como mote a reconstitucionalização do país. Depois, a multidão se dispersou em várias passeatas dirigidas a pontos diferentes da cidade, mobilizando a população. Os comícios passaram a ser freqüentes, promovidos sobretudo por jovens acadêmicos da classe média e mais politizados, que procuravam passar a mensagem da Constituinte ao cidadão comum. Esse clima de efervescência nas ruas, se juntava à agitação tumultuosa dos gabinetes, em busca da autonomia do Estado, dentro do princípio federativo. E aos dois fatores, se acrescentava outro, igualmente preocupante, a insatisfação nos quartéis da polícia estadual. A decretação do Código Eleitoral, em 24 de fevereiro, não diminuiu a ansiedade, já que, como não se marcou a data efetiva para as eleições, ele se tornou apenas uma peça de retórica, sem maiores resultados práticos. A convocação da Assembléia Constituinte era o objetivo central dos manifestantes em São Paulo e em outros Estados e, pela inércia do poder central, começou a surgir movimento de articulação pela volta às armas, liderado por São Paulo, mas com ramificações em Minas Gerais e, principalmente, no Rio Grande do Sul. Em São Paulo, o Partido Democrático, no poder, aliou-se ao Partido Republicano, seu adversário, passando a conspirar juntos.

Conspiração Na articulação revolucionária, fazia falta, e muito, a experiência dos “tenentes” que ajudaram a preparar o movimento de 1930. Mas, como bem observa Alzira Vargas, agora

“os rebeldes de 1930 combatiam os rebeldes de 1932.” Os primeiros, antes subversivos, agora transformaram-se em heróis, os segundos eram neste momento os subversivos. A total falta de experiência levou, algumas vezes à imprecaução, outras à confiança ingênua em juras de políticos matreiros. Feitos contatos com o governador mineiro, Olegário Maciel, este garantiu que, havendo revolução, não usaria as tropas de Minas no combate aos revolucionários. Talvez até ajudasse o movimento. Não se levou em conta que Olegário Maciel, o único governador entre 19 interventores, conservara esse título pela fidelidade à revolução que colocou Getúlio no poder e jamais assumiria, seriamente, um compromisso dessa natureza. Mais adiante, estabeleceu-se uma ligação com o coronel Eurico Gaspar Dutra, comandante do 4º Regimento de Cavalaria no Sul de Minas, que, honestamente, recusou aderir, justificando sua atitude legalista por formação. No Rio Grande do Sul, foi estabelecido um contato com o comandante da 3ª Região Militar, general Eurico de Andrade Neves, convidando-o a participar do levante. O resultado não só foi uma recusa, como também deixou-o alertado para o movimento que se preparava. O interventor Flores da Cunha aceitou participar, sendo demovido pelo ministro da Justiça, Osvaldo Aranha, que o aconselhou a “não fazer burrada.” Mais curioso era o caso de São Paulo, cujo interventor, Pedro de Toledo, foi o último a saber. Até foi ele que indicou o nome do general Pereira de Vasconcelos para o comando da 2ª Região Militar, em substituição ao general Manuel Rabelo. Getúlio concordou e procedeu a nomeação, No dia 9 de julho, data marcada para o levante, Pedro de Toledo acompanhou o ministro Salgado Filho até a estação da Central, para embarcá-lo de volta ao Rio, depois de uma visita à capital bandeirante. Pediu a este que levasse a Getúlio a certeza de que manteria a ordem em São Paulo, eliminando os focos de intranqüilidade. Estava sendo sincero em tudo o que dizia. Ao chegar ao Palácio dos Campos Elísios, encontrou o secretariado reunido e, ao perguntar do que se tratava, foi informado de que a revolução se iniciara. A luta verbal que se seguiu foi imensa, como conta Hélio Silva:

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“Pedro de Toledo não queria ouvir. E, para não ouvir, afastou-se. Penetrou em uma das salas, onde se fechou a chave, enquanto outros prosseguiam o apelo, agora ouvido através da porta. A cena demorou bastante. A insistência do secretariado foi mais duradoura do que a resistência do interventor sexagenário. A porta abriu-se. Horas depois, Pedro de Toledo enviava um telegrama demitindo-se da Interventoria para ser o governador de Estado insurreto.”

Começa o levante O comandante honorário da revolução é, uma vez mais, o velho general Isidoro Dias Lopes. O comando efetivo está entregue ao General Bertoldo Klinger, ora servindo em Mato Grosso. A divisão paulista fica a cargo do coronel Euclides Figueiredo. O comandante da Força Pública, Júlio Marcondes Salgado Filho, permanece no cargo. Em 28 de junho de 1930, o ministro da Guerra, general José Fernandes Leite de Castro, por razões outras, demite-se, e é substituído pelo general Augusto Inácio do Espírito Santo Cardoso, simpático ao “tenentismo”, o que poderia trazer a leitura significativa de que o Governo Provisório estava congelando a idéia propalada de se convocar uma Assembléia Constituinte para a redemocratização do País. No dia 8 de julho, em Mato Grosso, o general Bertold Klinger (comandante da revolução planejada) deu o sinal para a deflagração do movimento, ao enviar um ofício ao ministério da Guerra, recusando subordinação ao novo Ministro, com o que recebeu ordem para passar o comando, imediatamente ao seu substituto legal. O que se dá a seguir é de causar estranheza, em se tratando de um chefe de levante. Klinger cumpre docilmente a ordem, transmitindo o comando e despedindo-se de seus comandados, recomendando-lhes disciplina e união. Em seguida, retira-se para casa. Em São Paulo, o coronel Euclides Figueiredo já tinha tudo sob controle. “Senti-me senhor da situação. São Paulo inteiro estava em nossas mãos. Estradas de ferro, entroncamentos rodoviários, estações de rádio e estações telegráficas e telefônicas, a Guarda Cívica Paulista, a Inspetoria de Veículos, toda a Força Pública, com seu comandante à frente, coronel Marcondes Salgado, grande parte das unidades do Exército (...).”

No dia 9 de julho de 1932, dando início à revolução, o coronel Euclides toma o Quartel General do Exército, na rua Conselheiro Crispiniano (o local, hoje é uma praça fechada) e passa expedir telegramas aos demais quartéis, comunicando o início do movimento.

Apoio esperado não vem Figueiredo estava certo: ao sinal enviado pelo telégrafo, o Estado de São Paulo inteiro mobilizou-se com adesão maciça, como também não lhe faltou apoio da população. Desde a capital, até os pontos mais distantes do Estado, os homens válidos abandonavam suas ocupações habituais para alistar-se como soldados constitucionalistas. Se havia um bom contingente, por outro lado, faltavam as armas, o que inutilizava a boa vontade desses cidadãos. De Mato Grosso, chega o general Klinger, comandante da Revolução, com as mãos vazias, sem os soldados prometidos, nem as armas de que tanto se necessitava. Era um comandante sem comandados. Como conta Hernani Donato: “Ao deixar Campo Grande, o general Bertoldo Klinger traria claramente descortinado o quadro da situação. Nem mesmo as guarnições todas de sua circunscrição dispõe-se a acompanhá-lo. Terá por si algumas unidades federais, outras policiais e o entusiasmo civil dos sul-matogrossenses, que esperam alcançar, por prêmio da vitória, a realização do projeto secularmente acarinhado: a criação do Estado do Mato Grosso do Sul.” O mesmo não aconteceu com os outros Estados comprometidos. Em Minas, Olegário Maciel permaneceu fiel ao governo central e, vencidas as resistências, ofereceu forças estaduais para o combate aos rebeldes. No Rio Grande do Sul, Flores da Cunha desapareceu no dia do levante, para voltar uma semana após como legalista, passando a combater os velhos companheiros da revolução anterior, entre eles João Batista Lusardo e o já septuagenário Borges de Medeiros, líder incontestável dos gaúchos, que governou o Rio Grande por 28 anos. Por outro lado, a reação se fez sentir imediatamente. Getúlio Vargas, com a coordenação do coronel Góis Monteiro, mobilizou tropas de outros Estados que se juntaram aos contingentes do sudeste para debelar, o mais rápido possível, o movimento.

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Esperava-se a vinda de armas do Exterior, o que não aconteceu, pois não tendo sido reconhecido o estado de beligerância, o armamento não poderia ser comprado legalmente, tornando-se quase impossível fazê-lo pelo mercado paralelo. O parque manufatureiro paulistano transformou-se repentinamente em produtor de armamentos, indústria com a qual não tinha nenhuma afinidade, e os projetos de engenharia feitos à última hora nem sempre funcionaram a contento. Num dos testes realizados com lançamento de bombas, uma delas explodiu dentro do canhão, matando quase que instantaneamente o comandante da Força Pública, Salgado Filho. A concentração de tropas se fez, sobretudo, do vale do Paraíba até a divisa com o Rio de Janeiro. Havia tropas, também, ao norte de São Paulo, invadindo o sul de Minas Gerais, até Passa Quatro, onde o comando legalista estava nas mãos do coronel Eurico Gaspar Dutra. Dava-se cobertura ainda ao litoral norte de São Paulo, do alto da serra do mar, seguindo pela borda da praia até Parati, já no Estado do Rio de Janeiro.

“Frente Única” negou fogoCom o recuo do governador Olegário Maciel e do interventor Flores da Cunha os poucos revolucionários que se dispuseram ir a campo em Minas e no Rio Grande do Sul entraram em uma guerra perdida, apenas para atender um compromisso de honra junto à frente única que se formara entre São Paulo e os dois Estados. Cabe destaque ao ex-presidente do Rio Grande do Sul, Borges de Medeiros, homem de gabinete, que nunca participara de uma guerrilha, mas agora, pela primeira vez, aos setenta anos, experimentava a rispidez do campo de combate. E mais, se achava junto com seu maior inimigo, João Batista Lusardo, a quem jurara de morte há tempos. Um “blanco” e um “colorado”, lutando ambos pelo ideal comum. Após atravessarem de barco o rio Guaiba, escondidos sob uma tarimba em cima da qual havia latões de leite, fardos de alfafa e sortimentos diversos, Borges chegou ao abrigo passando muito mal. Como reanimante, lhe ofereceram um “rabo de galo”, coquetel à base de cachaça, incrementado com outros recursos mais explosivos da adega da fazenda onde se achavam.

De início, o velho caudilho resistiu em tomar aquela mistura. Depois de muita insistência, arriscou um trago. Fez uma pausa para sentir os efeitos, analisou, e foi para a segunda e a terceira talagadas, até esvaziar o copo, que foi enchido novamente e, desta vez, Borges o virou de uma vez só. Refeitas as forças e já a caminho, em busca das tropas que lhe foram prometidas, Borges de Medeiros parecia preocupado com alguma coisa, e não tardou em desabafar com Luzardo: “Ó homem, tu não esquecestes de trazer aquele ‘lambe-sola’ que eu tomei lá na fazenda?”

Fim da luta armadaFoge aos limites deste trabalho descrever as minúcias da revolução, nos seus quase três meses, já que o nosso objetivo é fixá-la dentro do panorama nacional naquele ano de 1932. Por parte do comando e dos comandados houve entusiasmo, dedicação, um sentimento de dever e honra, a certeza de que a causa era justa, quase tudo o que se precisa para dar sucesso ao levante. Faltava porém experiência para organizar e levar adiante uma empreitada dessa monta. Comparando com os jovens “tenentes” rebelados em 1922, aqueles também careciam dessa experiência e foram facilmente derrotados nos primeiros momentos de luta. Passaram-se oito anos de tentativas e de frustrações até que eles chegassem à Revolução de 1930, quando, finalmente, conseguiram seu objetivo. A Revolução Constitucionalista no Estado de São Paulo terminou em 2 de outubro de 1932, com derrota total no campo de batalha e tremendos prejuízos àqueles que foram atingidos pela força da lei, após a deposição das armas. Todavia, os objetivos da Revolução foram plenamente atingidos. Não dava mais para o Governo Provisório ignorar os anseios da população brasileira de retornar ao Estado de Direito. Era impossível esconder mais lixo sob do tapete. E, finalmente, foi organizado o calendário para a redemocratização do país: em maio de 1933, realizavam-se as eleições; em 16 de julho de 1934, era promulgada a nova Constituição do Brasil. Outra vitória da Revolução, esta não esperada, mas que aconteceu, foi o declínio do poder dos “tenentes” que, até então, vinham atuando como um quarto poder dentro da República brasileira. Os que

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continuaram atuando politicamente ou participando do governo passaram a fazê-lo de forma menos acintosa. Os “tenentes” voltaram a ser simplesmente tenentes, sem aspas. Ou capitães, majores, coronéis, restabelecendo-se a disciplina hierárquica, tão importante na vida militar. Será que valeu a Revolução de 1932, auto-intitulada de Constitucionalista ? Que cada um responda por si.

Precisava haver revolução? Getúlio Vargas, como bom enxadrista político, não era homem de desperdiçar pedras. Tudo era feito calculadamente, estudando o conjunto do tabuleiro, antes de dar um lance. No primeiro momento, agiu duro com os líderes da Revolução. Foi poupado apenas o velho caudilho Borges de Medeiros, no Rio Grande do Sul, por interferência do interventor Flores da Cunha. Conversando com Getúlio, Flores argumentou que o ex-governador, com mais de setenta anos e saúde precária, não resistiria o exílio e o afastamento da família. Além do mais, mesmo havendo governado o Estado por 28 anos, não fez fortuna e ainda perdeu o que tinha, sendo um homem sem recursos para se sustentar no exterior. Também não foi embarcado o general Ataliba Leonel, que se achava adoentado. Embora listado para o exílio, acabou sendo riscado e ficou no Rio de Janeiro. Os demais não tiveram perdão. Assim que detidos, foram aprisionados no navio-presídio “Pedro 1º” e transferidos, em seguida para o navio “Siqueira Campos” que, em 18 de novembro de 1932, chegava a Portugal, desembarcando, entre outros, os generais Bertoldo Klinger, Isidoro Dias Lopes (nos seus quase setenta anos), coronel Euclides Figueiredo, major Mena Barreto, o tenente Agildo Barata Ribeiro; os civis Álvaro de Carvalho, Altino Arantes, Austragésilo de Ataíde, Carlos de Souza Nazaré, Francisco de Mesquita, Guilherme de Almeida, Ibrahim Nobre, Júlio de Mesquita Filho, Luís de Toledo Pisa Sobrinho, Oswaldo Chateaubriand, Prudente de Morais Neto e Paulo Duarte, entre dezenas de outros mais. Eram ao todo 73 brasileiros banidos de sua pátria, que iam se juntar aos exilados de 1930. “O Siqueira Campos entrou na barra, de manhãzinha, na esteira de um imponente transatlântico inglês. Quando o barco atracou

à muralha de Alcântara, encontravam-se no cais, esperando os exilados, entre outras, as seguintes personalidades: Dr. Júlio Prestes, presidente eleito da República do Brasil; general Sezefredo Passos e Dr. Victor Konder, respectivamente ministro da Guerra e da Viação do governo do Sr. Dr. Washington Luís; antigo deputado federal Machado Coelho; Sr. Batista Lusardo [que viajara antes como clandestino no navio “Atlantic”]; coronel Pedro Campos, jornalista Casper Líbero...” Na contrapartida, em 16 de agosto de 1933, o mesmo Getúlio nomeava como interventor em São Paulo o político e administrador Armando de Sales Oliveira, “civil e paulista”, como queriam os democráticos ao início desta aventura. E o fez transmitindo ao novo governante a seguinte mensagem: “Quero que compreenda, em toda a sua amplitude o significado de meu ato: com este decreto, entrego o governo de São Paulo aos revolucionários de 1932.” Só ficou no ar uma pergunta, que jamais será respondida: se tivesse feito isso já no princípio, com a nomeação de Francisco Morato, como queriam os democráticos, teria havido revolução?

* * *Capítulo Dezesseis

UM SOPRO DE DEMOCRACIAConstituição de 1934

Uma das explicações possíveis para a permanência de Getúlio Vargas no governo, por tanto tempo, com um mínimo de desgaste e com uma aceitação popular raramente encontrada na vida pública, pode estar situada em seu profundo senso de realidade. Não era um idealista, disposto a reformar o mundo com o poder de sua presença, ou com a determinação de seus atos. Conhecia as limitações à sua volta e evitava o confronto além de suas forças, cedendo quando necessário e agindo com rigor implacável quando os ventos lhe eram favoráveis. Tinha uma forte intuição para identificar os componentes envolvidos em cada acontecimento, aplicando o golpe certo no momento exato, como um malabarista que vai dar seu salto mortal sobre a corda-bamba, sabendo que qualquer erro lhe pode ser fatal.

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Ao meio de manobras e volteios, o chefe do Governo Provisório fazia de tudo para que esse “provisório” durasse para sempre. O recuo, algumas vezes necessário, não era mais que uma tática para contornar as dificuldades do momento, permitindo um novo avanço, melhor estruturado. Foi assim que, de um simples político regional em 1926, Getúlio conseguiu destacar-se no cenário nacional, ocupando o proscênio por quase três décadas, até que, por decisão própria e de forma trágica, pôs um ponto final ao espetáculo. Parecia um ser robotizado, destituído de sentimentos. Com certeza os tinha mas suas mágoas e ansiedades, guardava-as para si, revelando apenas o lado racional e calculista. No meio de tantos amigos e servidores, alguns não muito fiéis, era apenas um solitário, incapaz de confiar a alguém o que lhe ia na alma. O certo é que, durante todo o tempo em que se destacou na política, sua história se confunde com a História do Brasil.

Toma Constituinte! Assumindo o poder em 3 de novembro de 1930, exatamente um mês após o início da revolução, Getúlio criou uma estrutura permanente para seu Governo Provisório. Em 24 de fevereiro de 1932, objetivando pôr fim a uma série de manifestações pró-constituinte, acedeu em editar um decreto, estabelecendo o Código Eleitoral, bem avançado para a época, e criando uma Junta Eleitoral que cuidaria dos procedimentos para uma eleição cuja data não fora determinada. Osvaldo Aranha, visitando São Paulo, na tentativa de solucionar o difícil problema da Interventoria no Estado, mandou um curioso bilhete para Getúlio Vargas: “Acautela-te, porque há mouros na costa!” E continua, narrando-lhe o clima de tensão que se escondia por trás de uma aparente calmaria, como os momentos que antecedem ao estouro de uma boiada. Ressalta a significativa paralisação das atividades econômicas, fazendo notar que o empresário é dotado de um sexto sentido: sempre que se retrai, fugindo do mercado e deixando de ganhar, é porque teme pelo pior. Em 14 de maio de 1932, dentro desse ambiente conturbado, Getúlio decide assinar mais um decreto, desta vez marcando data definitiva para a eleição da Assembléia Nacional Constituinte: 3 de maio de 1933. Essa medida não evitou a deflagração da

Revolução Constitucionalista, em 9 de julho, mas tirou-lhe o efeito, rachando a Frente Única formada pelos governos de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Nestes dois últimos Estados, o governador Olegário Maciel e o interventor Flores da Cunha, respectivamente, mudaram de posição, assumindo uma atitude anti-revolucionária, que facilitou às forças legalistas o rápido domínio da situação.

Representantes classistas O pleito foi realizado na data prevista, elegendo-se 203 deputados constituintes, que representavam, proporcionalmente as populações dos vários Estados brasileiros. Não deixou o governo de tomar uma série de providências para garantir-lhe a presença em plenário, evitando surpresas. Uma delas foi encaminhar um anteprojeto de Constituição como base para as discussões, sobre o qual seriam feitas as emendas julgadas necessárias. Foi instituída, também, uma representação classista, com 50 deputados, eleitos pelos sindicatos ou associações profissionais, classificados em quatro categorias: empregadores, empregados, profissionais liberais e funcionários públicos. O sindicalismo, atrelado ao governo central, garantia uma segurança a mais no controle dos parlamentares. Ao todo, pois, eram 203 deputados constituintes, que tomaram posse no ato de instalação da Assembléia, no Palácio Tiradentes, em 15 de novembro de 1933. Outro detalhe curioso é que, dentro das normas estabelecidas, os ministros do Governo Provisório também podiam comparecer à Assembléia Constituinte, tomando parte das discussões, embora sem direito a voto. Um desses freqüentadores habituais era o ministro do Trabalho, Agamenon Magalhães. Outro que se destacou durante os trabalhos foi Osvaldo Aranha, que, embora não sendo constituinte, tornou-se o líder da maioria, orientando a discussão e votação das emendas, fato que originou fortes protestos da oposição.

De volta ao passado Todas as precauções não foram suficientes para evitar o revés. Ainda que trazendo algumas inovações, a quantidade de emendas feitas ao documento original era tão grande que acabou por adulterar-lhe a forma e o conteúdo, limitando, e muito, a ação do executivo.

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Uma das inovações foi a extinção do cargo de vice-presidente da República que, no passado, tantos males trouxe à governabilidade. Na linha de sucessão ficavam, pela ordem, os presidentes da Câmara Federal, do Senado e do Supremo Tribunal Federal (Corte Suprema). O Senado foi reduzido a dois representantes por Estado, não podendo interferir na discussão e votação da lei orçamentária. O Supremo Tribunal Federal teve seu corpo reduzido de 13 para 11 Ministros. Criou-se a Justiça do Trabalho e a Justiça Eleitoral. O “habeas-corpus” ficou restrito à garantia da pessoa e nada mais. Anteriormente usava-se esse instrumento para garantir cargos, bens e tudo mais que dizia respeito ao cidadão. Para cobrir a lacuna, instituiu-se agora o mandado de segurança, que até então inexistia nas leis brasileiras. Por fim, lamentavelmente, as disposições transitórias estabeleciam que a redação da Carta Magna seria feita pelas regras ortográficas de 1891, que voltaria a ser oficial, revogando-se o acordo ortográfico de 1931, de tão curta duração. O escritor Humberto de Campos, um dos “imortais” que assinaram a nova ortografia, morreu logo em seguida à promulgação da nova Carta mas deixou consignado que toda sua obra deveria continuar sendo publicada dentro das regras de 1931. Concluídos todos os trabalhos de redação, a nova Constituição foi votada em 30 de junho de 1934 e promulgada em 16 de julho. No dia seguinte, procedeu-se à eleição do presidente da República, excepcionalmente, por via indireta.

Eleição do Presidente Como se sabe, por acordo com a Junta Militar que assumiu o governo após a deposição de Washington Luís, Getúlio Vargas só pôde tomar posse depois de aceitar a condição que lhe foi imposta, de assumir como chefe do Governo Provisório. Agora, promulgada a Constituição, era necessário confirmá-lo como presidente da República. Tratava-se, evidentemente de um jogo de cartas marcadas, não havendo qualquer possibilidade de substituí-lo por outro nome, sob o risco de surgir nova crise institucional com o inevitável golpe de Estado. Criou-se, entretanto, todo um clima formal para dar às eleições um caráter de plena legalidade, abrindo-se inscrição para os

postulantes à candidatura. Surgiram vários nomes, destacando-se o do velho caudilho Borges de Medeiros, do almirante Protógenes Guimarães, ministro da Marinha e até do ministro da Guerra, general Góis Monteiro. Claro está que Protógenes e Góis somente eram candidatos por consentimento, senão por determinação, de seu chefe supremo. Como os demais, estavam para concorrer, não para ganhar. Ao final da apuração, registraram-se 175 votos para Getúlio Vargas, 59 para Borges de Medeiros, 4 para Góis Monteiro, 2 para Protógenes Guimarães e 8 votos isolados, provavelmente de candidatos que votaram neles mesmos. Três dias depois, em 20 de julho de 1934, Getúlio Dorneles Vargas era empossado presidente da República, para um mandato de quatro anos. Ninguém, em sã consciência, apostaria um réis na durabilidade da nova Constituição e, menos ainda, acreditaria que Getúlio, findo o mandato, passaria a faixa presidencial ao seu sucessor. Era esperar para ver. Dentro do calendário estabelecido, restava realizarem-se eleições para a formação das Assembléias Constituintes estaduais, bem como para a nova Câmara Federal e Senado. Os governadores de Estado seriam eleitos, em tempo oportuno e por via indireta, pelas próprias Assembléias Legislativas.

Sucessão ao governador de Minas Mais fácil é mudar as leis do que os costumes. Bem cedo se percebeu que o simples processo constitucional para a eleição dos governadores não era suficiente para conter as ambições e acabar com o velho hábito de considerar a função pública, não como um bem comum a ser zelado, mas como um direito pessoal adquirido. Um exemplo do que estaria para acontecer foi o caso de Minas Gerais, ocorrido quando os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte ainda estavam em andamento. Em agosto de 1933, morreu o presidente do Estado de Minas, Olegário Maciel (o único que conservou esse título), abrindo-se as discussões para a nomeação de um interventor. Vários nomes circulavam com credenciais as mais diversas mas, entre eles, se destacavam dois jovens políticos, com bons serviços prestados à revolução e ambos bem apadrinhados.

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Um deles era Gustavo Capanema que, na qualidade de secretário do Interior, assumiu o governo provisoriamente, alimentando fortes esperanças de ser efetivado. Já no início do Governo Provisório, vamos encontrá-lo na companhia de seu conterrâneo Francisco Campos, fundando a Legião Mineira, uma associação paramilitar dentre outras tantas que surgiram para dar sustentação ao novo regime. Eram os “camisas-cáqui” a que nos referimos em outro capítulo. Fiel ao governo revolucionário, esperava encontrar agora sua compensação e contava, para isso, com o apoio do interventor gaúcho, Flores da Cunha. O outro era Virgílio de Melo Franco, filho do ministro das Relações Exteriores, Afrânio de Melo Franco. Nos preparativos para a revolução, em 1930, deslocou-se para o Rio Grande do Sul, onde permaneceu em atividade até a eclosão do movimento, quando se engajou às tropas que subiriam em direção a São Paulo e Rio de Janeiro, para a deposição de Washington Luís. Além do prestígio do pai, contava também com o apoio do ministro da Fazenda, Osvaldo Aranha, homem forte do governo e, neste momento, em velada oposição ao interventor gaúcho, que apoiava a outra candidatura.

Solução à moda da casa Como se vê, tratava-se de um problema de difícil solução, a desafiar a sagacidade do chefe do Governo. Getúlio nutria preferências pelo segundo nome, pois além de seus patronos serem ministros de Estado, tinha uma amizade pessoal muito forte com a família Melo Franco e com a família Aranha. Chegou até a comunicar-lhes sua tendência favorável à nomeação de Virgílio, pedindo, entretanto, segredo, até que o nome fosse publicado no Diário Oficial. Mais fácil é guardar um tesouro do que guardar um segredo. Em um ou dois dias, o nome escolhido já tinha sido divulgado, talvez na intenção de criar uma situação irreversível que favorecesse o candidato. O efeito foi oposto ao pretendido. Como secretário do governador falecido, Capanema já vinha governando o Estado, interinamente, e não se conformou, viajando para o Rio de Janeiro, onde veio a se encontrar com Flores da Cunha, recém chegado de Porto Alegre, ambos com a mesma finalidade de barrar a nomeação de Virgílio. As partes em conflito não contavam com o jogo duplo, tão comum na estratégia de

Getúlio. Negando que a nomeação estivesse decidida, declarou este que aguardava uma lista múltipla a ser entregue por Antônio Carlos, ex-Governador mineiro e presidente da Assembléia Nacional Constituinte ora em curso. A esta altura, interessava a Getúlio nomear um político capaz mas desconhecido, que pudesse ser assimilado pelos dois lados em litígio. A nomeação saiu, finalmente, publicada no Diário Oficial, e caiu como uma bomba sobre a cabeça, tanto dos pretendentes e seus padrinhos, como da comunidade política mineira. O novo Interventor em Minas Gerais passava a ser o deputado Benedito Valadares Ribeiro, um político de segunda linha dentro do Estado e quase que completamente desconhecido no restante do país. Mais tarde, promulgada a Constituição do Estado, Valadares se elege Governador e passa a ser um valioso auxiliar do presidente da República. Para Getúlio, a solução encontrada teve seus custos. Afrânio de Melo Franco, pai de Virgílio, entregou o ministério de Relações Exteriores, afastando-se do palácio e da vida pública. Também Osvaldo Aranha demitiu-se do Ministério da Fazenda, deixando, por conseqüência, de articular os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, onde era o líder da maioria. Gustavo Capanema conformou-se com a situação, mas seu padrinho, Flores da Cunha, esperava uma oportunidade para a revanche, o que veio a acontecer algum tempo depois, quando, nas eleições estaduais, surgiu o caso do Estado do Rio de Janeiro.

O caso do Estado do Rio O Interventor em exercício no Estado do Rio era Ary Parreras, expoente do tenentismo e de família bem situada no Rio de Janeiro. Fiel à revolução de 1930, aceitara a Interventoria provisoriamente mas, ao contrário dos demais interventores, não tinha qualquer interesse em permanecer no cargo após a promulgação da Constituinte. Sua ambição era retornar à sua bem sucedida carreira na Marinha, tanto mais que, durante a permanência no Governo, desiludiu-se quanto à possibilidade de renovação dos costumes, objetivo principal da revolução. O caminho estava aberto para duas correntes predominantes na política fluminense. O ex-governador do Rio de Janeiro e ex-Presidente da República, Nilo Peçanha, falecera em 1924 mas deixara uma poderosa

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força em seu Estado, conhecida como “nilismo” representada por nomes de peso, como Raul Fernandes, relator da Constituinte e José Eduardo de Macedo Soares, diretor do Diário Carioca. Este grupo, denominado de coligados, lançou a candidatura do almirante Protógenes Pereira Guimarães, ministro da Marinha do governo Vargas. O outro ajuntamento, que lhe fazia oposição, era liderado pelo general Cristóvão Barcelos, neste momento respondendo por uma posição de comando em Minas Gerais. Seguindo-lhe os passos está a família Prado Kelly, e, dentro dela, o deputado José Eduardo, que era o representante do movimento tenentista junto à Assembléia Nacional Constituinte. Eram os autodenominados progressistas. O candidato ao governo era o próprio general, que passou a receber o apoio ostensivo do Interventor no Rio Grande do Sul, Flores da Cunha. Como se isso não bastasse, o equilíbrio de forças entre os dois grupos era quase perfeito, havendo apenas um deputado a mais ao lado dos coligados. Isso acirrou a pressão das armas, com grupos de jagunços se confrontando nas ruas, resultando em tentativa frustrada de assassinato do deputado Arnaldo Tavares (coligado). Foi nesse ambiente conturbado que se iniciaram os trabalhos da Assembléia que iria eleger o governador. A votação ainda nem havia se iniciado quando um deputado coligado foi atingido por um tiro certeiro e conduzido ao Hospital. Com isso, os coligados perderam sua vantagem de um voto em relação aos progressistas. Não obstante, realizada a votação, venceu o almirante Protógenes (coligado), com certeza pela deserção de algum deputado progressista, que lhe emprestou o voto vencedor. A partir daí, nos dias que se seguiram, o Estado do Rio entra em total anarquia. O interventor gaúcho manda um telegrama ao general Barcelos (progressista), solidarizando-se com ele. O interventor mineiro, Benedito Valadares faz uso de sua amizade com o general Barcelos tentando uma conciliação que se afigurava impossível. As notícias davam conta de que verdadeiros arsenais se achavam espalhados por todo Estado do Rio, suficientes para a eclosão de uma guerra civil. Fala-se em se realizar novo

pleito com um nome de consenso, o do deputado César Marcondes Tinoco. Prevaleceu o bom senso. Os ânimos se acalmaram, tanto quanto possível e, não sem ressentimentos, os progressistas acabaram por aceitar um acordo, com o que foi possível a posse do governador eleito, Almirante Protógenes Guimarães.

Eleições nos demais Estados A crítica situação política no Estado do Rio dá bem idéia das tensões havidas no restante do país, onde os Interventores, quase todos “tenentes”, procuravam se manter no poder, enquanto que as oligarquias vindas da Primeira República tentavam reassumir o controle em seus Estados. A situação só não foi pior porque, felizmente, havia consenso nos três Estados mais importantes da Federação, onde os interventores foram eleitos governadores, permanecendo no poder e garantindo a continuidade do governo. Em São Paulo, foi confirmado o nome de Armando de Sales Oliveira, cuja presença na Interventoria garantiu a pacificação do Estado após a Revolução Constitucionalista. No Rio Grande do Sul, Flores da Cunha, embora ensaiando rebeldia com relação ao governo central, ainda era o elemento de ligação entre “blancos” e “colorados” e, na falta de outro, constituía-se numa garantia de estabilidade. Por fim, em Minas Gerais, permanecia o escolhido de Getúlio, Benedito Valadares, que, a esta altura, já se firmara no conceito de todos pela sua disposição e habilidade em favor da conciliação. Depois do Rio de Janeiro, os Estados que deram mais trabalho foram Santa Catarina, Espírito Santo, Ceará e Sergipe. Nada que não pudesse ser controlado, com a intervenção eficaz do presidente da República. Com a Constituição Federal e as Constituições Estaduais em plena vigência, com o presidente da República e os governadores de Estado empossados, parecia que tudo estava nos eixos e o país poderia buscar o caminho da normalidade, conquistando sua maioridade política e seu lugar de respeito entre as nações democráticas do mundo. Tudo iria bem, muito bem mesmo, não fosse aquela sinistra e fatídica madrugada de 27 de novembro de 1935, que iria mudar os destinos da nação, colocando sobre a

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cabeça de todos os brasileiros a sombra ameaçadora do comunismo, pretexto mais que suficiente para garantir a presença do poder político-militar no Brasil por meio século.

* * *Capítulo Dezessete

INTENTONA COMUNISTAO que é fato e o que é boato

O comunismo jamais, em qualquer momento, teve alguma chance de ser implantado no Brasil como um movimento popular, tal como aconteceu na Rússia de 1917. A população brasileira, da cidade ou do campo, sempre foi conservadora e, além do mais, faltava-lhe qualquer ambientação política, vivendo o dia-a-dia do trabalho e da vida familiar, sem se deixar envolver pela propaganda revolucionária, seja da esquerda ou da direita. Certo é que, na década de 30, o sudeste e o sul do Brasil já contavam com uma população imigrante mais esclarecida e capaz de responder a estímulos das lideranças, sobretudo os italianos e alemães, todavia, uns e outros vieram ao Brasil para vencer pelo trabalho, não lhes interessando, de forma alguma o envolvimento em questões políticas ou militares. Assim, tentativas de levante, em nosso país, sempre foram obra de uma classe média restrita, sem qualquer participação de base. Na madrugada de 27 de novembro de 1935 – é o que conta a história oficial – um grupo de militares rebeldes assassinou covardemente, pelas costas, seus companheiros de farda que se achavam dormindo, sublevando o 3º Regimento de Infantaria da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, e espalhando a revolta pelos quartéis vizinhos, chegando até o Campo dos Afonsos, onde se achava instalada a Escola da Aviação. É isso, talvez, e muito mais que isso. Muitos dos que participaram da Intentona silenciaram durante toda a vida e morreram sem deixar seu depoimento para a História. Mas, meio século depois, é possível traçar com alguma segurança a trilha que levou aos levantes de 1935 em Natal, em Recife e no Rio de Janeiro. Nesse propósito, a longa e paciente pesquisa realizada pelo historiador Hélio Silva, falecido em 1998, é um importante referencial, representando o que

de melhor temos para entender o que se passou naquele tumultuado período da vida brasileira. Se, de um lado, o levante de 1935 representou uma lamentável perda de vidas no cumprimento do dever, não é menos certo que o episódio foi usado como uma “espada de Dâmocles” pendente sobre a nação, transformando em subversivos todos aqueles que, em algum momento, ousassem ter opiniões divergentes. Foi a consolidação do poder político-militar, interferindo na vida nacional, algumas vezes se tornando uma sombra do poder constituído, outras, agindo ostensivamente contra esse mesmo poder. Como escreveu Otto Lara Resende (Folha de São Paulo, 27.11.91): “Hoje é de lastimar o vigoroso investimento político e emocional que foi feito nessa tal Intentona. 1935, quantos crimes foram cometidos em teu nome!” Este trabalho não pretende influir no julgamento do leitor. Ao contrário, procura colocar fatos relacionados com o levante, permitindo que cada um tire, por si mesmo, as conclusões.

Resumo dos acontecimentos Intentona é uma palavra que veio do castelhano, significando intento louco, ou plano insensato. Foi o nome usado para designar o levante militar deflagrado pelo Partido Comunista Brasileiro em 1935, tendo como objetivo a tomada do poder. O movimento previa, em sua primeira etapa, a instalação de um governo nacional revolucionário sob a chefia de Luís Carlos Prestes.

A eclosão do levante se deu no Rio Grande do Norte e depois em Pernambuco, mas a etapa mais importante era a sublevação da Vila Militar no Rio de Janeiro, um complexo de quartéis que representavam o centro nervoso das forças incumbidas de garantir a segurança nacional. Em Natal (Rio Grande do Norte), o movimento iniciou-se antecipadamente, em 23 de novembro de 1935, quando sargentos, cabos e soldados tomaram o 21º Batalhão de Caçadores e instalaram um Comitê Popular Revolucionário. Quatro dias depois, as tropas do Exército e polícias dos Estados vizinhos tomaram o quartel das mãos dos revoltosos, restabelecendo a ordem. Em Recife (Pernambuco), a revolta eclodiu no dia 24. Se é bem verdade que

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este levante foi dominado em apenas um dia, também é fato que a repressão deixou um saldo de 100 mortos entre os sublevados. Na Vila Militar do Rio de Janeiro (Praia Vermelha), o levante se deu na madrugada do dia 27, sendo completamente dominado em menos de dez horas, com um total de 20 mortos. Para o Exército, no balanço geral, esses acontecimentos custaram a vida de um tenente-coronel, dois majores, quatro capitães, um tenente, quatro sargentos, quatorze cabos e dois soldados, totalizando 28 militares mortos.

Antecedentes No dia 23 de fevereiro de 1917, na distante cidade de São Petersburgo, Rússia, um punhado de operárias, descontente com as condições de trabalho, recusou-se a entrar em serviço. A decisão dessas mulheres encontrou eco em outras fábricas e em outras cidades e, no final do dia, já eram 90.000 operários em greve. Três dias depois, perdendo por completo o controle do país, caia a dinastia dos Romanov, no poder há mais de 300 anos. Conquanto o movimento comunista se achasse bem organizado na Rússia, seus principais líderes estavam no exílio e os que se achavam no país, menos expressivos, rechaçavam qualquer idéia de ação revolucionária, temendo pela tragédia que um levante poderia proporcionar. Assim, a queda do csarismo foi resultado de um movimento imanente, partindo das massas, sem participação direta e até contra a vontade das lideranças. Isso deu nos líderes comunistas em outros países a falsa impressão de que o mundo estava “maduro” para o comunismo e que, a qualquer revolta, os governos então dominantes iriam caindo, um a um. Por conseqüência, o ano seguinte, chamado de “o ano vermelho”, foi pródigo em movimentos sediciosos, todos eles reprimidos com violência. O Brasil, como não poderia deixar de ser, viveu a mesma febre dos levantes operários de 1918. No Rio de Janeiro, as comemorações do 1º de maio lembraram o triunfo, pelo menos aparente, dos trabalhadores na Rússia. Embora com o Brasil em estado de sítio, os operários cariocas acorreram à praça Tiradentes, onde aconteceu ruidosa manifestação. As greves e tumultos, principalmente em São Paulo e no

Rio de Janeiro, se prolongaram por todo o ano. Em 1922, fundou-se o Partido Comunista Brasileiro, que viveu a maior parte da década na ilegalidade, impedido de fazer proselitismo, em face do esquema repressivo montado pelo governo contra lideranças operárias e sindicatos. Assim, em 1927, os líderes comunistas mudaram sua estratégia, fundando uma frente única, conhecida como Bloco Operário, ao qual, mais tarde, se acrescentou um movimento rural, passando a chamar-se Bloco Operário e Camponês (BOC). As células do BOC, espalhadas pelo país, tiveram a mesma sorte do Partido Comunista. Não existia no Brasil campo para o desenvolvimento de idéias políticas ou reivindicatórias e as manifestações, esporádicas e barulhentas, jamais representavam as massas. Nas cidades, o trabalhador estava mais interessado em garantir seu emprego e o sustento da família. No campo, reinava ainda o sistema feudal, onde o camponês tinha uma relação de total dependência com o fazendeiro, que lhe dava casa, comida, meia-dúzia de trocados e adiantamentos em dinheiro, para atender imprevistos, criando uma dívida impagável, que o sujeitava à propriedade, em regime de absoluta servidão.

Ação Integralista Brasileira (AIB)Como já tivemos oportunidade de ver, o sucesso da revolução de 1930, com a posse de Getúlio Dorneles Vargas, coincidiu com a busca mundial por regimes políticos radicais, de esquerda e de direita, retirando o espaço para o desenvolvimento de doutrinas liberais. Seguindo essa tendência, dentro do “tenentismo” e fora dele surgiram “Legiões” inspiradas nos agrupamentos paramilitares europeus, como os “camisas negras” do fascismo italiano ou os “camisas pardas” do nazismo alemão. Em tudo as legiões eram semelhantes: nos uniformes (mudando apenas a cor), nos símbolos, nos slogans e até na saudação com o braço erguido. No Brasil, a maioria dessas legiões teve curta duração, mas uma delas, a Ação Integralista Brasileira (AIB), conseguiu estabelecer bases sólidas e duradouras, aliando sentimentos comuns à população brasileira, quais sejam, a religião, a nacionalidade e a estrutura familiar. A Ação Integralista Brasileira, com tendências fascistas, foi idealizada pelo

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escritor Plínio Salgado em 1932. Usava camisas verdes, tinha como símbolo o sigma e, como lema, a trilogia “Deus Pátria e Família”. Dela participavam os elementos mais reacionários da classe média, sobretudo estudantes universitários, juntamente com militares. O integralismo pregava um “Estado Integral” sem explicar exatamente o que vinha a ser isso. Basicamente pregava um regime forte, substituindo a representação popular por corporações sindicais, estudantis e militares. Tinha um caráter profundamente nacionalista, defendendo fortemente a estatização das riquezas nacionais e, nos demais casos, assumindo a defesa intransigente da propriedade privada. Era elitizante e limitativo, pregando a idéia que o governo deveria ser entregue às “elites esclarecidas”, vale dizer aos que comungavam com suas opiniões. Não descartava o uso da força, em substituição ao convencimento, e, tal qual o comunismo, considerava a delação como uma virtude a ser cultivada pelos seus membros.

Aliança Nacional Libertadora (ANL) Em contraposição ao integralismo, não tardou em surgir uma frente ampla, igualmente radical, reunindo os mais variados setores da esquerda: sindicalistas, liberais a procura do espaço perdido, setores da classe média preocupados com o recrudescimento do fascismo no mundo e, é claro, os comunistas, frustrados em tentativas anteriores, que encontravam agora um caldo de cultura apropriado para o desenvolvimento de seus projetos. Foi assim que surgiu a Aliança Nacional Libertadora (ANL), firmada na trilogia “Pão, Terra e Liberdade”. Dela faziam parte vários “tenentes”, entre eles, Agildo Barata Ribeiro, um dos heróis da revolução de 1930 na ala norte do país; Benjamim Soares Cabelho, que veio a se tornar uma figura importante da Terceira República; operários e jovens acadêmicos, entre estes o estudante Carlos Lacerda (mais tarde jornalista e político de destaque), cujo pai, Maurício Lacerda, foi um dos precursores da legislação trabalhista no Brasil. Ao contrário do que muitos pensam, não tinha a participação física de Luís Carlos Prestes que, nesse momento, se encontrava em Barcelona (Espanha) sob o nome falso de Antônio Vilar, em companhia de Maria Bergner Vilar, que outra não era senão sua

mulher, Olga Benário. A direção da ANL estava entregue a Hercolino Cascardo, o mesmo que, na revolução de 1924, tentou, sem sucesso, sublevar a Marinha. Embora a frente ampla não fosse comunista, estes agiram rapidamente no sentido de se destacar entre as demais correntes, dominando a agremiação, aproveitando-se do idealismo dos outros participantes. No dia da fundação da ANL, Carlos Lacerda foi escalado para discursar em nome dos estudantes e, induzido por radicais, caiu em uma armadilha, lançando o nome do “Cavaleiro da Esperança” como presidente de honra da ANL. Foi assim que Prestes passou a figurar como Presidente de Honra da associação. Para o Brasil, o Comitê Internacional Socialista (Comintern) enviou o agitador alemão Ernst Ewert, com o nome falso de Harry Berger. Passo a passo, um movimento sério de combate ao fascismo ia sendo usado como plataforma para os planos sinistros (e mal calculados) visando a implantação do regime comunista no Brasil.

Questão dos soldos militares Paralelamente, reinava insatisfação nos quartéis pela deterioração salarial, um clima perigoso, na medida em que a impaciência da jovem oficialidade encontrava eco entre alguns oficiais superiores. Qualquer aumento dependia do sinal verde do ministro da Fazenda, o qual declarara, com firmeza, não haver dinheiro para cobrir as despesas com um eventual reajuste. Um projeto transitava na Câmara Federal, a passo-de-tartaruga, enquanto a crise seguia a galope. Não tardou em surgir uma rebelião na guarnição de Cachoeira, no Rio Grande do Sul, contando com apoio ostensivo do governador Flores da Cunha, a essa altura, de olho na sucessão presidencial. Getúlio repreende-o em telegrama: “Apelo para teu sentimento brasileiro evitar caia sobre ti a responsabilidade moral de uma guerra civil.” Nesse meio tempo, Getúlio Vargas, aconselhado pelo comandante da 1ª Região Militar, general João Gomes, decide demitir o comandante da Vila Militar, general João Guedes da Fontoura, sobre o qual recaiam suspeitas de infidelidade ao governo. Acontece que o general Fontoura era amigo particular do ministro da Guerra, Góis Monteiro. O problema repercute no ministério da Guerra, onde o general Góis Monteiro se

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demite, sendo substituído pelo general João Gomes Ribeiro Filho, até então comandante da 1ª Região Militar. Concomitantemente, o general Eurico Gaspar Dutra, que era comandante da Aviação, ocupa a vaga deixada na 1ª RM. Essas trocas de comando, anunciadas pela imprensa, aumentam a tensão reinante. Tais problemas, cozinhados em “banho-maria”, minaram a disciplina militar, facilitando a ação dos conspiradores, sobretudo no Rio de Janeiro.

Questão dos cabos e sargentos Modificações no regulamento militar reintroduziram um dispositivo que existia na Primeira República, pelo qual, completados dez anos na ativa, os militares que não tivessem atingido o oficialato seriam automaticamente jubilados, com o afastamento definitivo da vida militar. Nas grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, onde as possibilidades de acesso são maiores, essa alteração não trazia maiores problemas. Quem em dez anos não houvesse chegado a tenente, pelo menos, já teria desistido da carreira militar. O mesmo não acontecia em cidades menores, sobretudo do nordeste, onde muitos permaneciam estacionários na função de praça, por vezes até o limite de idade para a reforma. O retorno do jubilamento de praças, agora fortalecido pela nova ordem constitucional, era outra fonte de atritos, criando ambiente propício para aliciamento dos prejudicados, interessados que estavam na revogação da medida. Aliás, foram eles, no nordeste, os grandes responsáveis pelas sublevações.

Conspiração em marcha Foi dentro desse clima que se desenvolveu a conspiração comunista que levaria aos levantes de novembro de 1935. No momento oportuno, Prestes transferiu-se da Espanha para o Brasil, permanecendo em lugar ignorado, mas enviando ordens e manifestos, enfim, controlando, passo a passo, o desenrolar dos trabalhos. No dia 28 de abril, realizou-se em Madureira (subúrbio carioca) um comício da Aliança Nacional Libertadora, em afronta aos integralistas, do qual participaram oficiais, sargentos e cabos. Os identificados foram expulsos das fileiras do Exército e seus superiores, capitães Carlos da Costa e Trifino

Correia sofreram punições. O assunto repercute na Câmara Federal. No dia 9 de junho a ANL realiza outro comício, desta vez em Petrópolis, quase em frente à sede da Ação Integralista Brasileira, resultando em confronto entre as duas facções, com um morto e vários feridos. O morto era aliancista e o tiro partiu da sede dos integralistas. Sem o saber (ou sabendo muito bem) o comando militar contribuia para o desenvolvimento da ação aliancista. Assim é que o capitão Agildo Barata Ribeiro, conhecido como um dos conspiradores, foi transferido para uma unidade militar no Rio Grande do Sul, a pretexto de afastá-lo do Rio de Janeiro. Com isto, ele aproveitou a oportunidade para fundar em Porto Alegre um núcleo da Aliança Nacional Libertadora, realizando um comício no dia 5 de julho de 1930, data comemorativa das revoluções de 1922 e 1924. Por pura sorte, a manifestação transcorreu em paz, pois o interventor Flores da Cunha já avisara que, ao menor sinal de desordem, a polícia tinha ordem de “descarregar” sobre os manifestantes. Na mesma data, outro comício se realizou, este clandestinamente, no Rio de Janeiro, ocasião em que o acadêmico Carlos Lacerda leu um manifesto de Luís Carlos Prestes. A reação não tardou. Em 11 de julho um decreto do governo federal colocou a Aliança Nacional Libertadora fora da lei e, dois dias depois, sua sede era fechada. Paralelamente, procedeu-se o fechamento da União Feminina Brasileira, outro braço dos aliancistas. O presidente da ANL, Hercolino Cascardo, oficial marinheiro, foi removido para Santa Catarina, onde lhe deram o comando de uma base naval. Outra remoção igualmente inexplicável, pois se introduzia um elemento revolucionário, em posição de comando, num local até então desligado do movimento aliancista.

Getúlio sabia de tudo Se havia alguém bem informado de tudo o que se passava e dos planos em andamento, esse alguém era o presidente da República, Getúlio Dorneles Vargas. Seu serviço de inteligência mantinha-o a par dos mínimos detalhes, e agentes infiltrados no movimento colhiam dados significativos, possibilitando até uma ação preventiva. Como linha auxiliar, o Presidente recebia também ajuda internacional, por intermédio do “Inteligence

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Service”, infiltrado no Partido Comunista Brasileiro, ora na ilegalidade. Em certo momento, já se sabia até a data e hora do levante: 27 de novembro de 1930, às 2h30 da madrugada, tendo como centro de operações a Vila Militar, mais precisamente, o 3º Regimento de Infantaria. O governo não só deixou de cortar o movimento em marcha como algumas medidas permitem entrever que o próprio sistema ajudou para que as coisas acontecessem, dando margem, mais tarde, para o fechamento do regime. Assim, por exemplo, na madrugada do levante na Praia Vermelha, as tropas de reforço levaram duas horas para chegar ao local de conflito, porque não havia sido tomada a mais elementar das providências, qual seja, a requisição dos caminhões para o transporte dos soldados. Impossível que um descuido desses partisse logo do comando da 1ª Região Militar, e isso num momento em que os quartéis do Rio de Janeiro se achavam em regime de prontidão. Como se disse acima, o Capitão Agildo Ribeiro, bem quieto no Rio de Janeiro, foi transferido para Porto Alegre, onde aproveitou o ensejo para organizar um núcleo da ANL. Já no mês de novembro, o mesmo Agildo foi punido com 25 dias de detenção. Transferido para o Rio de Janeiro, ficou preso, adivinhe onde? Justamente no 3º Regimento de Infantaria, de onde deveria partir o movimento sedicioso. Juntou-se a fome com a vontade de comer. Próximo dos demais conspiradores, pode agir com o maior desembaraço. Sua pena deveria extinguir-se em 3 de dezembro. Foi reduzida de 25 para 20 dias, devendo terminar, então, em 28 de novembro. O levante estava marcado para 27 de novembro...

Movimento é antecipado Pelos planos, o levante deveria ocorrer na madrugada de 27 de novembro. Então, os responsáveis pela conspiração em Natal receberam um telegrama apócrifo, enviado talvez pelo serviço de contra-informação do governo, mas com a identificação da chefia do movimento. Esse telegrama informava que o início havia sido antecipado para 23 de novembro. Inexperientes, os líderes acreditaram na veracidade do telegrama. Foi assim que, na noite de 23 de novembro, um sábado, dois sargentos, dois cabos e dois soldados sublevaram o 21º Batalhão de Caçadores. Beneficiados pelo

elemento surpresa, conseguiram pôr em fuga o governador do Estado, que refugiou-se em um navio de bandeira francesa. Rapidamente, o movimento se alastrou por outras cidades do Rio Grande do Norte. Colunas rebeldes ocuparam Ceará-Mirim, Baixa Verde, São José do Mipibu, Santa Cruz e Canguaratema. Totalmente ingênuos em movimentos sediciosos, os sublevados acreditavam ter dominado a situação. Tomaram o palácio do Governo e instalaram um “Comitê Popular Revolucionário” com o “Ministério” assim constituído: Lauro Cortês Lago (funcionário público), Ministro do Interior; Quintino Clementino de Barros (sargento), Ministro da Defesa; José Praxedes de Andrade (sapateiro), Ministro do Abastecimento; José Macedo (carteiro), Ministro das Finanças; João Batista Galvão (estudante), Ministro da Viação. O cabo Estevão assumiu o comando do 21º Batalhão de Caçadores, enquanto o sargento Eliziel Diniz Henriques passou a comandar a Guarnição Federal. E depois? Depois, mais nada. Ninguém sabia o que fazer (se alguma coisa pudesse ser feita) para consolidar o movimento supostamente vitorioso. Nas ruas, a população exultava com aquele breve momento de anarquia. Durante alguns dias a capital virou terra de ninguém, com saques, roubos, invasões de domicílio, requisição de veículos particulares e tudo mais que passasse pela imaginação. Findos os acontecimentos, o “ex-Ministro da Viação”, estudante João Batista Galvão, desbafa: “Naquele tempo, todo mundo fez o diabo e depois botou a culpa em cima de nós. O povo topou a revolução por pura farra. Saquearam o depósito de material do 21º BC e todos passaram a andar fantasiados de soldado. Minha primeira providência como ‘ministro’ foi decretar que o transporte público seria gratuito. O povo se esbaldou de andar de bonde sem pagar.” Quatro dias depois de iniciado, o movimento foi contido por tropas do Exército e polícias de outros Estados, que invadiram o Rio Grande do Norte e restabeleceram a ordem.

Recife seguiu na esteira de Natal Em Recife, o levante ocorreu um dias após, quando chegaram notícias da rebelião em Natal. Tinha tudo para dar certo. O governador Carlos Lima Cavalcanti se achava na Alemanha, passeando de

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“Zepelim” (uma espécie de navio voador que pretendia substituir o avião). O general Manuel Rabelo (o mesmo que fora interventor em São Paulo) estava no Rio de Janeiro, cuidando de assuntos militares relativos ao seu comando. O comandante da Brigada Militar, capitão Jurandir Bizarria Mamede (que trinta anos depois seria o pivô de uma séria crise militar) estava no Rio Grande do Sul, comemorando o Centenário da revolução Farroupilha É surpreendente que num momento de apreensão nacional, com o Rio de Janeiro em prontidão, as principais autoridades de Pernambuco tenham se ausentado, as três ao mesmo tempo, para cuidar de assuntos secundários. Aparentemente, a cidade estava sem comando. Mas era apenas aparência. Na manhã do domingo, dia 24, um sargento, chefiando um grupo de civis, atacou a cadeia pública de Olinda. Logo depois, o sargento Gregório Bezerra tentava apoderar-se do Quartel General da 7ª Região Militar, matando o tenente José Sampaio e ferindo o tenente Agnaldo Oliveira de Almeida, antes de ser subjugado e preso. Na Vila Militar, o capitão Otacílio Alves de Lima, o tenente Lamartine Coutinho e o tenente Roberto Besouchet sublevaram o 29º Batalhão de Caçadores e se apossaram de todo armamento. Encontraram porém, uma reação imediata do tenente-coronel Afonso de Albuquerque Lima, sub-comandante da brigada policial, com a ajuda, também, da Guarda Civil. No dia seguinte, chegou o reforço da Artilharia e o único quartel realmente sublevado, o 29º BC sofreu intenso bombardeio, resultando em uma centena de mortos. Os que conseguiram fugir pelas estradas, deram de frente com tropas da polícia estadual, que se achavam em batida, à procura do cangaceiro “Lampião”. Em dois dias, pois, o movimento estava totalmente dominado.

Tragédia na Praia Vermelha Se o telegrama falso chegou rapidamente a Natal, o inverso não é verdadeiro. Os conspiradores no Rio de Janeiro não sabiam nada sobre o que ocorria no nordeste e entraram em armas no dia 27, desconhecendo que os movimentos em Natal e Recife haviam se iniciado fora de tempo e já estavam debelados. Funcionou mais uma vez o serviço de contra-informação, bloqueando a comunicação, tão importante

em operações de guerra. Vamos, aqui, seguir a narrativa do general Ferdinando de Carvalho, em seu livro “Lembrai-vos de 35!”: “Na Escola de Aviação, em Marechal Hermes, os capitães Agliberto Vieira de Azevedo e Sócrates Gonçalves da Silva, juntamente com os tenentes Ivan Ramos Ribeiro e Benedito de Carvalho assaltaram o quartel de madrugada e dominaram a unidade. Vários oficiais foram assassinados ainda dormindo. O capitão Agliberto matou friamente o seu amigo capitão Benedito Lópes Bragança, que se achava desarmado e indefeso. Em seguida, os rebeldes passaram a atacar o 1º Regimento de Aviação, sob o comando do coronel Eduardo Gomes que, apesar de ferido ligeiramente, iniciou a reação. (...) “No 3º Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha, acontecimentos mais graves ocorreram. Os rebeldes, chefiados pelos capitães Agildo Barata, Álvaro Francisco de Sousa e José Leite Brasil conseguiram, na mesma madrugada, após violenta e mortífera refrega no interior do quartel, dominar quase totalmente a unidade. Ao amanhecer, restava apenas um núcleo de resistência legalista, situado no Pavilhão do Comando, onde se encontrava o coronel Afonso Ferreira, comandante do Regimento. (...) “Nas últimas horas da madrugada, acionados diretamente pelo comandante da 1ª Região, general Eurico Gaspar Dutra, o Batalhão de Guardas e o 1º Grupo de Obuses tomaram posição nas proximidades do aquartelamento rebelado e iniciaram o bombardeio. (...) “Finalmente, às 13h30, bandeiras brancas improvisadas foram agitadas nas janelas do edifício, parcialmente destruído. Era a rendição. Presos, os insurretos apresentaram-se na praça em um compacto grupo. Muitos rebeldes adotaram uma atitude de zombaria, sorrindo cinicamente, em franco desrespeito àqueles que, naquele mesmo local, pouco tempo antes, haviam tombado em luta inglória.”

O outro lado da história Essa narrativa, apresentando a versão oficial, não encontra consenso entre os estudiosos da História do Brasil. Sobre o assunto, por exemplo, o professor Marco Aurélio Garcia, da Unicamp, em artigo publicado pela Folha de São Paulo em 18 de novembro de 1983, escreve:

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“Para as Forças Armadas, segundo reiteram as ordens do dia a cada ano, a Intentona apenas comprova o que de há muito se deveria saber: o caráter ‘apátrida e traiçoeiro do comunismo internacional’. Como prova, são exibidos cadáveres de oficiais e soldados ‘mortos enquanto dormiam’. A reiteração monótona desta versão não resiste aos fatos. Todas as pesquisas históricas sérias realizadas sobre o episódio, sobre as quais será difícil levantar suspeição, como é o caso do trabalho de Hélio Silva, desmontam, com o apoio dos laudos dos médicos legistas da época, a tese de ‘assassinato pelas costas’. “Em suma: não houve mortos enquanto ‘dormiam’, sem falar no absurdo que representaria soldados dormindo em quartéis submetidos a regime de prontidão, como era o caso da madrugada do levante. Mortos houve, e dos dois lados, como nos levantes de 22 e 24, na Coluna Prestes ou em 30, para não falar em 1932. (...) “As Forças Armadas, elas próprias, se viam afetadas pela polarização política que sacudia o país. Trinta e cinco, nesse sentido, pode ser visualizado, também, como mais um (e quem sabe o último) episódio tenentista, a despeito do revestimento ideológico mais preciso. (...) “Somente através destas e de outras pistas – afastando-se da propaganda anticomunista, ou da autocomplacência de certos setores à esquerda – é que o episódio de 1935 poderá ser restituído em toda sua integridade à História do Brasil.” Aí estão, pois, duas versões distintas de um mesmo episódio. Escolha a que melhor lhe convier ou tire, por si mesmo, as conclusões que julgar apropriadas.

* * *Capítulo Dezoito

VIRA, VIRA, VIRA... VIROU!Constituição descartável

Toda ação gera uma reação de igual intensidade. Os que se atiraram à aventura da Intentona Comunista, sabiam dos riscos que estavam correndo e da revanche a que seriam submetidos se, por alguma razão, o levante visse a fracassar, o que, por fim, acabou acontecendo. E, como ocorre freqüentemente, quando a razão e a emoção se misturam, a reação acaba indo muito além, gerando excessos difíceis de se evitar.

Assim é que, reprimido o golpe e presos os principais líderes da insurreição (contados como 36), iniciou-se uma temporada de caça em que qualquer suspeita era suficiente para colocar pessoas atrás das grades. Como na revolução de 1930, também agora, em 1935, as cadeias estavam atulhadas de presos, cujos destinos seriam decididos quando surgisse uma oportunidade. Pelas contas do chefe de Polícia, Filinto Müller, 7.056 suspeitos passaram pelos cárceres da repressão, entre eles, escritores como Graciliano Ramos, vários deputados, que tiveram sua imunidade violada, e o prefeito do Distrito Federal, Pedro Ernesto, médico e militar, alheio à conspiração. Também o governador de Pernambuco, Carlos Lima Cavalcanti, que se achava na Alemanha quando do levante naquele Estado, foi indiciado por facilitação. Vários professores, acusados de instilar idéias comunistas em seus alunos, foram parar na prisão. Também os militares que se achavam aquartelados, mas que não participaram do combate, nem de um lado nem de outro, foram considerados “réus da não resistência”. Preso por ter cão, preso por não ter cão... Alzira Vargas foi incumbida por seus colegas de Faculdade de interferir junto a seu pai em favor dos professores presos que, sabidamente, não tinham participado da conspiração. Não teve sucesso, conforme conta em seu livro “Getúlio Vargas, meu Pai”: “Papai meditou, relutante em me contar o resto. Levantou-se, acendeu um charuto, deu alguns passos em torno da mesa e depois me disse: ‘Foi uma exigência dos chefes militares. Consideraram uma injustiça serem punidos os oficiais presos de armas na mão, enquanto os instigadores de tudo, os intelectuais que pregavam as idéias subversivas, continuavam em liberdade. Foi alegado em favor da prisão imediata o fato de se utilizarem da cátedra, da pena e da imprensa para instilarem o comunismo na cabeça não suficientemente amadurecida dos jovens.” O estado de sítio que vigorava já antes da rebelião foi prorrogado por mais 90 dias, transformando-se depois em estado de guerra. Criou-se, à margem da Constituição, um tribunal revolucionário, com o nome de Tribunal de Segurança Nacional (TSN), cuja isenção era posta em dúvida pelo próprio caráter excepcional desse órgão. E como

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ninguém quer ser “advogado de traidor”, o defensor acabava sendo nomeado pelo juiz. Recursos poderiam ser interpostos a uma instância superior, justamente o Superior Tribunal Militar (STM), onde a emoção também era forte, abalados que estavam seus membros com a intentona de 27 de novembro. Nessa altura dos acontecimentos, uma estrela brilha na escuridão. É o Dr. Heráclito Fontoura de Sobral Pinto, constituído advogado dativo dos rebeldes. Católico, conservador, de formação jesuítica, parecia o oposto daquilo que os réus estavam precisando. Não obstante, logo se mostrou um fiel defensor da lei, interpondo-se aos abusos por vezes cometidos contra os réus e lutando com denodo para evitar que, pelo menos na esfera judicial, estes sofressem penas além dos crimes realmente cometidos.

Ação policial Já na esfera policial, não se pode dizer o mesmo. O chefe de polícia no Rio de Janeiro era Filinto Müller, mas isso não faz diferença: quem quer que estivesse em seu lugar lançaria mão dos mesmos meios excepcionais que ele autorizou seus agentes usarem para alcançar mais rapidamente os resultados pretendidos. Métodos conhecidos e pouco recomendáveis foram aplicados para arrancar confissões, promover delações, localizar fugitivos e outras operações atribuídas à polícia. Alguns presos morreram nas dependências policiais, não tendo sequer a oportunidade de um julgamento, enquanto a maioria ficou mofando nas prisões até que uma autoridade dispusesse de tempo para examinar cada caso. Um dos acontecimentos que chamou atenção, por repercutir no exterior, foi o do americano Victor Allan Barron, cujo único crime foi o de dar esconderijo a Luís Carlos Prestes. Pela versão oficial, Barron teria se atirado do segundo andar da sede da Polícia Central, vindo a morrer na ambulância em que foi transportado. O atestado, assinado pelo médico legista, confirmava a morte após a queda. Todavia, o advogado Joseph Brodsky, que veio de Nova York para fazer investigações, concluiu que o prisioneiro morreu vítima de torturas, simulando-se em seguida o suicídio para encerrar o processo. Outro caso menor, mas que chamou a atenção pública, foi o de “Miranda” cognome de Adalberto Andrade Fernandes (ou Antônio Maciel Bonfim) secretário do Partido

Comunista, que foi preso com sua companheira Elza Fernandes, cujo nome verdadeiro era Elvira Cupello Calonio, uma adolescente de 16 anos. Mantido preso, Miranda foi submetido a torturas e obrigado a denunciar vários de seus companheiros. Quanto a Elza Fernandes, foi solta e, pouco tempo depois, apareceu morta por estrangulamento. A versão oficial, de que ela teria sido assassinada por ordem de Luís Carlos Prestes não encontrou muita credibilidade. Mário Cupello Calônio, irmão da vítima, comentou, tempos depois: “Ela foi usada como chamariz para que a polícia chegasse a outros militantes comunistas.” A verdadeira história, nunca se saberá.

Caça aos “comunistas” As autoridades policiais, por si sós, não tinham condições de se infiltrar em tantos ambientes diferentes à procura de suspeitos de adesão ou simpatia aos comunistas. Assim, o ministério da Justiça, dirigido então por Vicente Rao, criou um órgão com o nome de “Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo”, entregando-o aos cuidados de Adalberto Correa, que pesquisava, verificava fichas, levantava o passado de homens públicos e sugeria prisões. No “listão” figuravam nomes conhecidos, como de Maurício de Lacerda, deputado socialista; Pedro Ernesto, prefeito nomeado do Distrito Federal, ou Virgílio de Melo Franco, jovem político mineiro. Nenhum deles, ao que se saiba, tinha qualquer envolvimento com o comunismo, apresentando, entretanto, o grande defeito de combater o fascismo, o que os classificava automaticamente no lado oposto. Nesses órgãos, criados às pressas, e com finalidade específica, o melhor método de trabalho era não ter método nenhum. O importante era mostrar serviço, apresentando relatórios conclusivos que justificavam o ato seguinte, ou seja, a prisão dos denunciados.

Prisão e julgamento de Prestes O ponto de honra era chegar à captura de Luís Carlos Prestes, o mentor intelectual da Intentona. Foi ele que, da Espanha, mandou as primeiras instruções para o levante. Depois, já no Brasil, sob nome falso, preparou e rubricou todos os planos que serviram de base para o ataque aos quartéis do Rio de Janeiro. Victor Allan Barron, um americano falastrão, após várias doses de uísque, acabou revelando a agentes secretos o local aproximado onde se achavam

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escondidos Prestes e sua mulher, Olga Benário, os quais foram presos, apresentados à imprensa e, depois, submetidos a interrogatório. Não tão simples assim. No dia 5 de março de 1936, com as garantias constitucionais suspensas, foram cercados vários quarteirões no bairro do Meier, no Rio de Janeiro, e a policia invadiu casa por casa, vasculhou o interior de cada uma, identificou todos seus moradores, até chegar à rua Honório, nº279, onde, finalmente, os dois foram encontrados. Em 13 de agosto, Prestes respondeu por crime de deserção que ocorreu durante a revolução de 1924, portanto, há doze anos. Absolvido em primeira instância, foi apresentado recurso ao Supremo Tribunal Militar que, em 1941, confirmou a sentença. Pela participação na intentona, Luiz Carlos Prestes e seu companheiro Harry Berger foram condenados a 16 anos. Berger, cujo verdadeiro nome era Artur Ernst Ewert, viera da Alemanha, a mando do Comintern para assessorar os comunistas brasileiros na preparação do levante. Quanto a Olga Benário, mulher de Prestes, seu destino é conhecido de todos. Deportada para a Alemanha, caiu nas mãos dos nazistas que, mais tarde, a executaram em um campo de concentração.

Fechando o processo Não obstante as limitações de um tribunal revolucionário, é preciso reconhecer que, na maioria dos casos, as penas aplicadas foram brandas, sendo que muitas das sentenças não ultrapassaram a um ano de prisão, o que dava aos condenados o direito de, cumprida a pena, serem reintegrados às Forças Armadas sem perda de patente. A denúncia contra o governador de Pernambuco, Carlos de Lima Cavalcanti, embora implicando em sua prisão, não surtiu maior efeito, sendo ele absolvido na primeira instância. Dos parlamentares presos, foram absolvidos os deputados Abel Chermont e Domingos Velasco, decidindo-se pela condenação dos deputados Otávio Silveira, Abguar Bastos e João Mangabeira. Apresentado recurso ao Superior Tribunal Militar, Mangabeira foi absolvido e os outros tiveram suas penas reduzidas. Em 7 de setembro de 1937, quase dois anos depois, os recursos foram julgados pelo Supremo Tribunal Militar, sendo confirmadas

as penas dos principais envolvidos e reduzidas as dos demais, em sua maioria. O ex-prefeito do Distrito Federal, Pedro Ernesto, sem culpa formada, foi absolvido, mas a um custo alto: teve de assumir um compromisso por escrito, perante o presidente da República, de que abandonaria, em definitivo a vida pública. Obtendo a liberdade, foi direto ao hospital que dirigia como médico e proprietário. Atrás de si formou-se um cortejo de populares, que vieram à rua para prestar-lhe solidariedade. Nunca ninguém conseguiu explicar direito a razão de sua prisão.

Novo capítulo na vida do país Com o julgamento dos recursos, em segunda instância, encerrou-se esse conturbado período da vida nacional e a paz voltou a reinar nos círculos políticos e militares. Ou, pelo menos, é o que se pensava. A intentota limitou o campo de ação dos comunistas mas, na contrapartida, trouxe maior liberdade de movimento aos fascistas, concentrados em torno da Ação Integralista Brasileira, dirigida por Plínio Salgado, cujos métodos eram simétricos aos da extrema esquerda. Na prática, pretendiam, também, chegar ao poder pela intimidação e, se necessário, pelo uso da força. De seu lado, Getúlio Vargas não tinha intenções de deixar o governo e, porque se sentia tolhido em seus movimentos pela constituição vigente, cuidava, secretamente, da preparação de uma reforma constitucional. A redação foi entregue ao jurista Francisco Campos, cuja ideologia ficou patente já em 1932, quando fundara, com Gustavo Capanema, a Legião Mineira. Estranhamente, contava ele com a colaboração do general Góis Monteiro, pouco afeito às leis, mas figura de projeção junto ao Clube dos Tenentes, partidário de um regime fechado, com o fortalecimento do poder executivo. Getúlio tinha por hábito dar o expediente de rotina no Palácio do Catete, transferindo-se, à tarde, para o Palácio da Guanabara (misto de residência e gabinete presidencial), onde despachava reservadamente com os ministros de Estado ou tratava de assuntos que recomendavam menor exposição pública. Se no Catete seus atos eram acompanhados de perto pelos burocratas e pela imprensa, já no Guanabara, sua residência oficial, entravam só os auxiliares

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diretos e de confiança, preservando-se o sigilo e a privacidade com que certos assuntos precisavam ser tratados. Pois foi o Palácio da Guanabara que passou a receber, semanalmente, a visita de Francisco Campos e Góis Monteiro. Sobre o primeiro, diz Alzira Vargas: “Vinha sempre com uma misteriosa pasta preta debaixo do braço. Nessa época, sempre que ele entrava na Secretaria, eu me retirava silenciosamente para não ter o desprazer de cumprimentá-lo. Em 1932, eu ainda era suficientemente jovem para ter ilusões e fé, por isso não havia entendido nem perdoado aqueles que não haviam tido fé e não haviam confiado em meu pai. Francisco Campos fazia parte desse grupo.”

Retrato de Góis Monteiro Sobre o general Góis Monteiro, Alzira é sarcástica: “Vinha sempre à paisana: terno de linho branco bem amassado, gravata sempre rebelde, uma grossa bengala, cor de canela, e um chapéu panamá que parecia ter sido usado antes como almofada ou travesseiro. Quando a conferência se prolongava demais e nossos estômagos reclamavam, em revide, jogávamos peteca com seu chapéu, de uma mesa para a outra, seguros de que nunca poderia ficar em pior estado do que já estava. Recompúnhamos a cena rapidamente, o chapéu sobre a bengala, assim que ouvíamos suas passadas inconfundíveis no corredor e, em silêncio, o esperávamos. Detinha-se alguns minutos a conversar com os ajudantes-de-ordens e auxiliares de gabinete. “Homem altamente inteligente, de prosa agradável e simples, quando o queria ser, fazia-nos prontamente esquecer a fome. Com remorsos, nos propúnhamos a organizar ‘uma ação entre amigos’ para comprar-lhe um chapéu novo. Deixava escapar meia gargalhada, sacudida, intermitente, e perguntava: ‘Este está muito ruim?’ Caso afirmássemos unanimemente que sim, ele alisava o desbeiçado panamá, punha-o à cabeça, de lado, em minha opinião, absolutamente de modo inapropriado, e se despedia oferecendo apenas metade da mão direita escorregadia e hesitante. Tenho a impressão que jamais conseguiu fazer alguma coisa por inteiro, nem mesmo um aperto de mão. Ficava na metade, como se lhe faltasse sempre a coragem de ir até o fim.”

Sucessão presidencial Paralelamente, confiantes de que as regras constitucionais seriam respeitadas, começavam a surgir os primeiros candidatos à sucessão presidencial, cujas eleições deveriam ocorrer a 3 de janeiro de 1938. Estávamos no final de 1936 e o prazo para desincompatibilização encerrava-se no último dia do ano. A primeira candidatura com alguma consistência era a do ex-interventor e ex-governador de São Paulo, Armando de Sales Oliveira, que, em seu Estado, contava com forte apoio dos democráticos, mas era alvo de restrições por parte dos republicanos. Insistindo em manter-se candidato, permitiu uma reaproximação dos republicanos com Getúlio Vargas, uns e outro interessados em liquidar as pretensões do candidato paulista. Outro nome de projeção era o do governador do Rio Grande do Sul, Flores da Cunha, que vivia naquele momento seu inferno astral. Perdera os apoios de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro e, ainda por cima, entrara em rota de colisão com o presidente da República. Preferiu, pois, seguir o caminho da conspiração, que lhe arruinou a vida pública. Um terceiro nome entra em cena: José Américo de Almeida. Líder civil da ala nortista na revolução de 1930, contava com o apoio do vice-rei do Norte, Juarez Távora. Em seu tempo, surgiu, também, o candidato dos integralistas, Plínio Salgado. Derrotado o comunismo, o integralismo surgia como uma solução para os problemas brasileiros, pelo menos é o que pensavam seus filiados. E estavam certos de contar com a simpatia, senão com o apoio de Getúlio Vargas. Getúlio deixou que a campanha seguisse seu ritmo, aceitando o jogo democrático e servindo-se das circunstâncias para armar o novo cenário dentro do qual se desenrolaria o último ato da grande comédia.

O caso do Rio Grande do Sul No Rio Grande do Sul, o governador Flores da Cunha, de há muito, vinha se indispondo com o governo central e procurava criar suas próprias bases nos Estados, com vistas a ganhar uma projeção que lhe permitisse lançar sua candidatura à presidência da República. Tinha como exemplo negativo o ex-Governador Borges de Medeiros, que se preocupou apenas com o governo local, entregando ao deputado

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Pinheiro Machado a formação de bases políticas no restante do território. Morto Pinheiro Machado, Borges descobriu-se só, dentro dos limites de seu Estado, o que lhe podou as asas, impedindo-o de sonhar com vôos mais altos. Evitando repetir o erro, Flores interferiu na política além-fronteiras, entrando em rota de colisão com o presidente da República e brincando com fogo em torno de um barril de pólvora, como foi o caso da sucessão no Rio de Janeiro, cuja inoportuna interferência quase faz desencadear uma guerra civil naquele Estado. No Rio Grande do Sul, chegara a ser a ponte de união entre “blancos” e “colorados”; agora, criava uma perigosa dissidência, formada por ex-aliados, que fazia aumentar a temperatura política. Entre outros, foram para a oposição Maurício Cardoso, ex-Ministro da Justiça do Governo Provisório, em 1930; Raul Pila, uma das mais fortes lideranças progressistas e Benjamim Vargas, irmão do Presidente. Corriam notícias de sua união com notórios comunistas para sublevar o Rio Grande. Dizia-se que, usando de um “caixa dois”, estaria ele procurando contrabandear armamentos para dentro do Estado. Também havia outras denúncias que, mesmo não confirmadas, inspiravam preocupação. Com efeito, Trifino Correia que, no Rio de Janeiro fugira da prisão após a Intentona, foi preso em Porto Alegre em 3 de outubro de 1937 em ação pré-revolucionária. Repentinamente, em meados de outubro, perdendo o controle da situação, Flores da Cunha abruptamente abandona o Governo, fugindo para o Uruguai. Em seu lugar, assumiu, como interventor, o General Manuel de Cerqueira Daltro Filho, comandante da 3ª Região Militar, promovendo a pacificação política na região.

O candidato José Américo Por sua ativa participação na revolução de 1930, José Américo de Almeida sempre esteve em alto conceito junto ao governo central. Naquela época, foi nomeado interventor da Paraíba e coordenador civil do norte e nordeste. Formado o ministério do Governo Provisório, coube a ele o Ministério da Viação. Deixando a vida política em 1934, Getúlio nomeou-o membro do Tribunal de Contas, cargo vitalício onde ele pretendia aposentar-se.

Aberto o processo sucessório, o governador mineiro, Benedito Valadares retira José Américo do ostracismo e convence-o a lançar-se candidato à presidência da República. Para uma campanha ganhar as ruas, de duas uma: ou alguém se fazia candidato oficial, ou partia para a oposição ao governo central. Como Getúlio deixou claro que não apoiaria ninguém, José Américo seguiu o segundo caminho. E o fez com tamanha sofreguidão, que acabou alarmando os próprios políticos mineiros que lançaram e apoiavam sua candidatura. Sem apoio de Minas Gerais, e sem conseguir alçar vôo em outros Estados, mesmo no seu sofrido nordeste, José Américo viu sua candidatura minguar até o desaparecimento total.

O candidato Plínio Salgado Dentre todos, Plínio Salgado era o que mais esperava obter o apoio final de Getúlio Vargas, acreditando piamente que as idéias integralistas tinham boa acolhida dentro do Palácio. Perdido no tempo, como se fora um legionário da Idade Média, percorria o país com sua cruzada mística, com o simbolismo de suas frases e com seus agrupamentos paramilitares. Era um cavaleiro andante, sem cavalo. Sem apoiá-lo, Getúlio lhe dava corda, até onde os atos deste novo Dom Quixote não viessem atrapalhar os planos do Presidente, que tinham motivação própria e uma cronologia que, de forma determinada, encaminhava-se para o dia fatal. Foi assim que, devidamente autorizados, os integralistas resolveram fazer uma manifestação de apoio ao governo, em frente ao Palácio da Guanabara, na noite de 1º de novembro de 1937. Horas antes, as autoridades policiais haviam sido encarregadas de interditar todas as ruas à volta do prédio, permitindo que os integralistas organizassem suas “tropas”. Da janela do palácio, Getúlio Vargas, Francisco Campos e todos os auxiliares diretos do Presidente assistiram à demonstração integralista, como conta Alzira Vargas: “Durante uma hora, desfilaram, ao som dos ‘tambores silenciosos’, perfiladas e tesas, como se fossem militares treinados, pessoas que eu conhecia de longa data, sem suspeitar que fossem apreciadoras desse tipo de atividade. O movimento havia ficado

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maior, muito maior do que eu supunha, e atingira as mais variadas categorias sociais. Havia marinheiros, oficiais de Marinha, soldados e oficiais do Exército, comerciários e comerciantes, industriários e industriais, pequenos funcionários e chefes de repartição, mocinhas da classe média e senhoras da alta sociedade. “Camisas verdes, anuês, três para o Chefe do Governo, braços levantados em continência, ritmados, enfrentando uma hostilidade latente, continuavam marchando através da rua Pinheiro Machado. Cheguei a temer que, intempestivamente, começassem a fazer o ‘passo de ganso’, tal a disciplina contida e a determinação que emanavam deles.”

O candidato Armando de Sales Se os casos Flores da Cunha, José Américo e Plínio Salgado se achavam já sob controle do Presidente, o mesmo não acontecia com Armando de Sales Oliveira. No início, como os dois últimos, tentara obter a concordância de Getúlio à sua candidatura. Não o conseguindo, prosseguiu, mesmo com a oposição que vinha enfrentando em seu próprio Estado. Menos ingênuo que os demais, começou a notar a presença de “mouros na costa”. Havia no ar um cheiro de golpe, e tão forte, que a explosão poderia se dar a qualquer momento. Urgia fazer alguma coisa, e já. Em 8 de novembro de 1937, Armando de Sales lançou um longo manifesto, em que alerta os militares para um golpe de estado em marcha, concitando-os a sair na defesa da nação: “Generaliza-se a convicção de que não haverá eleições a 3 de janeiro. Multiplicam-se, com engenho fértil, os pretextos para não cumprir a obrigação constitucional (...) Está em marcha a execução de um plano, longamente preparado, que um pequeno grupo de homens, tão pequeno que se pode contar nos dedos de uma só mão, urdiu para escravizar o Brasil. (...) A despeito dos atos notórios que se precipitam para o desfecho fatal, eu ainda confio. Confio na palavra dos chefes militares que assumiram compromissos de honra com a Nação. Ao Exército e à Marinha cumprirá montar guarda às urnas e velar por que o país obtenha, nelas, um governo de autoridade – de irrecusável autoridade moral, ao qual darão depois o seu firme apoio, não só para a luta

contra o comunismo, como para a obra de organização do Brasil. “A Nação está voltada para os seus chefes militares: suspensa, espera o gesto que mata ou a palavra que salva.” Esse manifesto foi lido na tribuna da Câmara pelo líder João Carlos Machado e, no Senado, pelo líder Moraes Barros. Não teve maior divulgação pela imprensa, temerosa de desafiar o poder central em momento político tão delicado.

Plano Cohen No arremate para seus planos, o governo precisava de um motivo para justificar o golpe e este surgiu com um pretenso plano comunista para a tomada do poder. Anos mais tarde, o próprio ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, reconheceu que o plano era apócrifo. Reconhecimento tardio, já que não era possível voltar ao ponto em que o processo democrático foi interrompido. O plano surgiu das mãos do capitão Mourão Filho, integralista, e o nome “Cohen” foi dado ao acaso, lembrando um antigo líder comunista húngaro, chamado Bella Kuhn. Segundo Góis Monteiro, na época chefe do Estado Maior das Forças Armadas, passava o coronel Caiado de Castro pela mesa do capitão Olímpio Mourão Filho, colhendo-o no serviço de datilografia de um plano terrorista. Interpelando o capitão, este lhe declarou, confidencialmente, que tratava-se de um plano terrorista para uma próxima subversão da ordem. Levado o fato ao conhecimento de Góis, este chamou o capitão à sua presença, obtendo informações detalhadas, que passou, imediatamente, ao ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra. Quando, em 1956, o general Góis publicou esta versão em livro, Mourão Filho, já coronel, pediu um Conselho de Justificação, ao qual foram convocados os envolvidos. Góis não compareceu para depor, mas Caiado de Castro sim. A farsa foi desmontada, Mourão foi absolvido e, pouco tempo depois, saiu sua promoção para o generalato. Segundo Mourão Filho, um militar que, como tantos outros, fazia parte do movimento integralista, esse trabalho foi desenvolvido como tese para estudos, dentro da AIB, sobre métodos de ação adotados pelos comunistas. Foi redigido na sede da Ação Integralista e não no Estado Maior.

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Aliás, o então capitão Mourão Filho nem sabia escrever à máquina. Hoje, conhecer datilografia é uma necessidade mas, naquela época, era uma especialidade. Ser datilógrafo era ter uma profissão, como outra qualquer. E Mourão Filho não escrevia à máquina. O serviço de copia foi entregue a vários datilógrafos, por ser um trabalho muito extenso. E, repetindo, foi preparado fora dos quartéis, invalidando, assim, a versão de Góis Monteiro sobre o episódio. Ao final, o chefe integralista, Plínio Salgado, não aprovou o plano como apostila para estudos. Como esse documento chegou, então, às mãos dos conspiradores? Foi o capitão Mourão Filho quem deu uma cópia, de presente, ao seu ex-comandante e padrinho de casamento, general Álvaro Mariante, na época Ministro do Supremo Tribunal Militar. E o fez em caráter particular, baseado na amizade entre os dois. O general Mariante, sem comunicar ao autor, passou o plano para o general Góis Monteiro.

Tudo está consumado O Plano Cohen era o detalhe procurado para arrematar o golpe e caiu como uma luva nas mãos dos conspiradores. Baseado nesse documento, o governo pediu ao Congresso e obteve a aprovação do estado de guerra, restringindo as garantias constitucionais. Sem o saber, os parlamentares deram ao Governo os elementos necessários para virar a mesa. Não imaginavam os congressistas que, ao aprovar o estado de guerra, estavam decretando a própria falência das instituições, incluindo o fechamento das casas legislativas. Os acontecimentos se precipitaram. Em 1º de outubro de 1937, é declarado o estado de guerra. Dia 13, são presos o ex-prefeito do Distrito Federal, Pedro Ernesto, e seu filho. Dia 18, o governador do Rio Grande do Sul, Flores da Cunha é levado à renúncia, retirando-se para o Uruguai. Dia 23, são fechadas todas as associações de caráter secreto, políticas ou não. Dia 28, a escritora Raquel de Queirós é presa, acusada de comunista. Dia 1º de novembro, os integralistas marcham diante do Palácio da Guanabara, na presença de Getúlio Vargas. A partir de 5 de novembro, a censura à imprensa, indústrias gráficas e rádio passa a ser feita pela polícia. Dia 8, Armando de Sales faz seu manifesto aos militares. Dia 9 o jurista Francisco Campos, que vinha

redigindo, secretamente, a nova Constituição, toma posse como ministro da Justiça. No dia seguinte, 10 de novembro de 1937, a cidade do Rio de Janeiro amanhece sitiada e cavalarianos cercam os prédios da Câmara Federal e do Senado, para impedir a entrada dos parlamentares. O presidente da Câmara, deputado Pedro Aleixo, tenta enviar telegrama de protesto ao presidente Getúlio Vargas, mas o correio recusa-se a transmiti-lo. Às 10 horas da manhã, nesse mesmo dia, é outorgada pelo presidente da República a Constituição do Estado Novo, que ficou conhecida como “Polaca”, dada sua semelhança, em muitos pontos, com a constituição fascista adotada pela Polônia. Ao fim do dia, Getúlio Vargas, falando à nação em rede nacional, termina seu discurso com esta frase: “Restauremos a Nação, deixando-a construir livremente a sua história e o seu destino.” O Novo Regime, enfim, coloca o Brasil entre os países mais adiantados na prática totalitária, com a supressão dos direitos individuais, com a supremacia do Estado sobre a Nação, e com a submissão da sociedade a um poder legal, mas ilegítimo, o qual constituiu-se a si mesmo, usando a esperteza como método de ação e a força como seu mais refinado argumento.

* * *Capítulo Dezenove

O LEVANTE INTEGRALISTAAtaque ao Palácio Guanabara

“Putsch” é uma palavra da língua alemã, usada para designar golpe de estado. Foi com esse termo que ficou conhecido o levante integralista de 11 de maio de 1938, que tinha como objetivo liquidar o presidente da República, seus ministros e auxiliares diretos, implantando no Brasil uma ditadura elitista e corporativista, à sombra de Deus, mas guardada pela força das armas. O “putsch” de 11 de maio não foi o início de uma nova era, mas o epílogo de um mal sucedido namoro entre o chefe dos integralistas, Plínio Salgado e o presidente da República, com falsas juras de uma união que Getúlio Vargas jamais pretendia realizar. Em realidade, o movimento conspiratório que culminou com o ataque ao Palácio Guanabara era uma frente ampla que reunia

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várias forças contrárias a Getúlio e que, após o golpe do Estado Novo, pretendera vê-lo fora do poder. Entre os descontentes estavam Otávio Mangabeira, ex-Ministro de Washington Luís, e Euclides Figueiredo, um dos comandantes da Revolução Constitucionalista de 1932, ambos na prisão. Insatisfeitos estavam também os candidatos frustrados de uma eleição que não se realizou: Armando de Sales Oliveira, José Américo de Almeida e o próprio Plínio Salgado, sem falar no ex-governador gaúcho Flores da Cunha, que, forçado à renuncia, asilou-se no Uruguai, esperando uma oportunidade para a refrega. Adversários eram também o ex-governador de Pernambuco, Carlos de Lima Cavalcanti, envolvido injustamente no processo da Intentona Comunista de 1935, e o ex-governador da Bahia, Juraci Magalhães, às turras com o ditador, assim como o ex-prefeito do Distrito Federal, Pedro Ernesto, também transformado em réu da Intentona. Havia, enfim, muita gente que, pelos mais variados motivos, desejava ver Getúlio longe do governo. Mas, sem sombra de dúvidas, eram os integralistas que possuíam a estrutura adequada, com uma vasta ramificação dentro das Forças Armadas e com uma milícia paramilitar supostamente bem treinada e em condições de realizar o golpe com pleno sucesso. Vale, pois, fazer um retrospecto da Ação Integralista Brasileira, da vida de seu chefe, Plínio Salgado, e dos acontecimentos que levaram à decisão de enfrentar o governo constituído, num ato de força em que todas as cartas eram jogadas de uma só vez.

Quem era Plínio Salgado Plínio Salgado nasceu em São Bento do Sapucaí, Estado de São Paulo, em 1895 e, dentro da escola modernista, desenvolveu sua carreira de escritor, publicando, entre outros livros, o romance “O Estrangeiro” e “Literatura e Política”, este último, um ensaio contra as idéias liberais. Tinha uma concepção espiritualista conservadora, deixando-se influir pelo pensamento de escritores como Farias Brito (1862-1917), Jackson de Figueiredo (1891-1928) e Alberto Torres (1865-1917). A partir de 1930, começam a surgir no Brasil legiões de extrema direita, baseadas no fascismo italiano e no nazismo. É então que Plínio Salgado, até então desconhecido do grande público e ainda novato na política

(foi deputado estadual em 1928, cassado em 1930), começa a organizar seu movimento, tendo como inspiração, nem Hitler nem Mussolini, mas o ditador português Antônio de Oliveira Salazar. Com sua pregação, Plínio consegue reunir em torno de si as correntes mais conservadoras na política, na religião e nas Forças Armadas. Em 1931, publica o “Manifesto da Legião Revolucionária” e cria o jornal “A Razão”. No ano seguinte, funda a Ação Integralista Brasileira (AIB), ainda sem grandes adesões. Em sua primeira marcha na cidade de São Paulo, já no ano de 1933, a AIB não consegue juntar mais que quarenta pessoas, as quais se achavam já devidamente uniformizadas com a camisa verde, cor que passou a distinguir a agremiação. Plínio Salgado era o cérebro e a alma do movimento integralista. Líder carismático, passou a atrair para si católicos praticantes preocupados com o desenvolvimento de seitas “espúrias”, militares saudosos do “florianismo” e, sobretudo, estudantes, entusiasmados com as novas idéias, os quais encontravam, afinal, um elemento de polarização à direita, para combater o comunismo. Desse ponto em diante, o integralismo cresceu de forma rápida e espantosa. Em 1935, ofereceu a Getúlio 100 mil milicianos para ajudar no combate ao comunismo. No ano seguinte, o movimento integralista já contava com 600 mil simpatizantes. Unindo-se à religião, defendendo ardorosamente o nacionalismo e a integridade familiar, representado pelo lema “Deus, Pátria e Família”, estendeu seus tentáculos por todos setores de atividade, representando um poder paralelo que o governo não podia mais ignorar.

Golpe do Estado Novo Rememoremos como se deu o golpe que implantou o Estado Novo no Brasil em 10 de novembro de 1937. Vários meses antes, o jurista Francisco Campos e o general Góis Monteiro passaram a freqüentar com assiduidade o Palácio Guanabara, acertando com Getúlio Vargas um novo texto de Constituição para a implantação de um regime forte, como o eram os regimes de vários países europeus: Itália, Alemanha, Polônia, Portugal, Espanha e outros. Para tomar pulso da situação, Vargas entrega ao jovem deputado Negrão de Lima a missão de percorrer o país, parlamentando

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com os governadores dos Estados – menos Bahia e Pernambuco, que lhe eram adversos – sondando-os sobre a possibilidade de apoio ao golpe palaciano, em troca da garantia de permanência em seus cargos. A missão deu bom resultado. Negrão voltou ao Rio no dia 3 de novembro com apoio maciço dos governadores. Dois dias depois, o Diário Carioca, furando o sigilo, publicou uma reportagem divulgando a “Missão Negrão de Lima”, o que obrigou o governo a um desmentido: Havia, sim, consultas, mas para uma reforma constitucional, na forma da lei. Dois meses antes, Plínio Salgado foi informado da reforma constitucional e prometeu seu apoio, em troca de garantias formais de que a Ação Integralista Brasileira, atuando como partido político, teria posição destacada no novo governo. De dentro da AIB surgiu, como se fora de encomenda, o Plano Cohen, um falso plano comunista para tomada do poder e, com base nele, o governo obteve do Congresso autorização para decretar o estado de guerra. Com o Presidente de mãos estendidas, Plínio julgava encontrar a grande oportunidade de se tornar um super-ministro, aplicando em efetivo as idéias difundidas pelo integralismo. Daí o apoio que emprestou ao governo com a grande demonstração de 1º de novembro, em frente ao Palácio Guanabara, perante Getúlio e seu “staff”, quando cem mil integralistas, ladeados por duas colunas de fuzileiros navais, desfilaram, de forma ordeira e disciplinada, como uma bem treinada corporação militar. Esses desfiles continuaram nos dias seguintes pelas ruas do Rio de Janeiro, com a complacência das autoridades. E note-se que há um mês estava em vigor o estado de guerra, suspendendo, entre outras coisas, o direito de manifestação. Não para os integralistas, é claro. No dia 8, Armando de Sales Oliveira envia um manifesto aos militares, alertando para a proximidade de um golpe e concitando-os a defender a ordem. Em 10 de novembro de 1937, com antecipação de cinco dias, as casas do Congresso amanhecem cercadas pela polícia. E às 10 horas da manhã é outorgada a Constituição que implanta no país o novo regime.

Surge a “Polaca” A Constituição outorgada por Getúlio Vargas ficou conhecida como “Polaca”, por

sua grande semelhança com a da Polônia. Era, todavia, uma colcha de retalhos, emendando trechos de Constituições totalitárias vigentes em outros países. De comum, suprimiam-se as liberdades individuais, colocando o Estado como poder supremo a dirigir os destinos da Nação. Não ficou pedra sobre pedra. O novo regime acaba com os partidos políticos, transformados em sociedades culturais ou beneficentes; fecha a Câmara Federal, o Senado, as Assembléias Legislativas e as Câmaras Municipais. Nomeia interventores nos Estados, subordinados diretamente ao presidente da República (Os governadores que lhe foram fiéis permanecem nos cargos. O do Rio Grande do Sul já fora obrigado à renúncia. Foram afastados os de Pernambuco e Bahia e, meses depois, Cardoso de Melo, em São Paulo, era substituído por Ademar Pereira de Barros). Institui a pena de morte para os crimes contra o Estado e a ordem pública, vale dizer, para os crimes chamados políticos. Os sindicatos são considerados livres, desde que reconhecidos pelo Estado, e com a sua diretoria aprovada pelo Ministério do Trabalho. Uma liberdade de canga, com o surgimento do “peleguismo”, que era uma falsa liderança atrelada ao poder central. Outra arma poderosa apareceu com a criação do DIP-Departamento de Imprensa e Propaganda, encarregado da censura à imprensa, bem como responsável, doravante, pela divulgação do noticiário oficial, cultural ou com notícias que o governo julgasse conveniente publicar. O DIP organizou um corpo de redação de primeira linha, com jornalistas altamente treinados, que entregavam aos jornais matéria pronta para publicação. Ou por comodidade, ou por falta de opção, essa matéria chegou a ocupar mais da metade do espaço que a imprensa usava para o noticiário.

Decepção dos integralistas A notícia da implantação do Estado Novo, nos moldes anunciados, caiu sobre a cabeça dos integralistas como um balde de água fria. A Ação Integralista Brasileira, a exemplo dos demais partidos, passava a ser uma simples associação. Nem Plínio Salgado, nem seus diretos colaboradores participaram da composição do ministério. Foram usados pelo governo para a consecução de seus próprios objetivos e depois jogados ao lixo, como peça descartável.

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O Estado Novo criou suas próprias bases de sustentação, que dispensavam, a partir de agora, a ajuda dos camisas verdes. E o fez com militares fiéis ao regime, reunidos em torno do Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, general Góis Monteiro; com setores rurais dedicados à exportação; com parte da classe média, simpática a regimes de natureza fascista; com empresários, aos quais se acenou com com créditos subsidiados e outras vantagens; e, principalmente, montou um sistema repressivo muito bem estruturado, que desestimulava qualquer reação. Os integralistas não conseguiram assimilar a derrota. Tão certos estavam de sua participação destacada no novo regime, que eles haviam até organizado seu ministério, em torno de Plínio Salgado. O integralismo tinha um governo pronto e acabado, esperando somente o apelo de Getúlio Vargas para se encaixar no poder e iniciar o trabalho. Não bastassem todas essas contrariedades, o governo acrescentou mais uma, que foi a gota a entornar a água do copo. No dia 3 de dezembro de 1937, um decreto de Vargas dissolve e coloca fora da lei a Ação Integralista Brasileira, que passa a viver na clandestinidade, sujeita às sanções da nova legislação, se insistir em sua atividade política.

Conspiração e ação Jogados ao ostracismo, os integralistas se unem a outros grupos descontentes com o governo e passam a conspirar pela queda do novo regime. Plínio Salgado, em sua residência em São Paulo, mantém reuniões com civis e militares fiéis a suas idéias, ou com descontentes com as novas regras do jogo, prontos a virar a mesa. Os meses que se seguem são de confrontos e escaramuças entre integralistas e forças policiais, mas um plano de maior consistência vinha sendo traçado por Plinio Salgado, seus auxiliares diretos e por outras forças fora do movimento integralista, porém, igualmente em confronto com o poder. O “putsch” se daria na madrugada de 11 de maio de 1938. Ficou entendido que o “Chefe” seria preservado, ficando afastado da rebelião planejada. O comandante geral seria, então, o general João Cândido Pereira de Castro Junior, tendo como imediato o médico Belmiro Valverde. O tenente Severo Fournier faria o ataque ao Palácio

Guanabara, com um grupo paramilitar, vestindo a farda dos fuzileiros navais. O tenente Júlio Nascimento, da Marinha, em plantão no Palácio Guanabara, abriria os portões para a entrada dos rebeldes. Do alto de uma árvore, um atirador procuraria atingir o Presidente em seus aposentos. Outros grupos foram designados para, na mesma hora, prender o ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, o chefe do EMFA, general Góis Monteiro, bem como outras autoridades militares em suas respectivas residências. Dois oficiais se apresentariam na prisão onde estavam Otávio Mangabeira e Euclides Figueiredo, levando ordem de soltura, após o que estes também assumiriam posições de comando. Por fim, seriam executados sumariamente ministros e membros destacados do governo, impedindo qualquer reação posterior. É preciso observar que, se de um lado o plano contava com a colaboração de outros setores descontentes com o governo, por outro ele causou uma cisão dentro do próprio integralismo, afastando uma grande parte de adeptos que era contrária à ação violenta, o que diminuiu o poder de Plínio Salgado. Em suma, nem todos os que participaram do levante eram integralistas e nem todos integralistas participaram do levante. Houve, sim, uma recomposição de forças em função dos interesses comuns naquele momento específico.

Nem tudo deu certo Na teoria é uma coisa, na prática é outra. Na noite de 10 de maio, quase na virada para o dia 11, a ronda policial estranhou a intensa movimentação nas ruas e tentou parar um caminhão repleto de “fuzileiros”, o qual saiu em desabalada carreira. Foi dado o alarme geral e aconteceram as primeiras prisões de revoltosos. Falhou, por conseqüência a tomada da Chefatura de Polícia e a prisão do Chefe de Polícia, capitão Filinto Müller. O outro caminhão conseguiu ingressar no Palácio Guanabara, dentro do planejado, mas um tiro disparado acidentalmente alertou os que se achavam no prédio, que se prepararam logo para a reação. Além disso, o plano continha uma omissão que lhes foi fatal. Conforme previsto, os telefones regulares foram todos silenciados, mas os integralistas se esqueceram de que o governo contava com uma rede telefônica oficial, baseada no PBX instalado no Palácio do Catete, o qual, pelo

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trabalho de um telefonista (era um homem que manejava o PBX) fazia a interligação dos palácios, dos quartéis, da Chefatura de Polícia e das casas dos ministros. Em suma, para cessar de todo a comunicação, era preciso tomar de assalto do Palácio do Catete e dominar o PBX, colocando-o a serviço da rebelião, detalhe não considerado nas planilhas de ataque. Foi pelo telefone oficial que o general Góis Monteiro deu alarme à Chefatura de Polícia e ao forte de Copacabana, quando revoltosos tentaram arrombar as duas portas de seu apartamento. Foi por esse telefone, também, que Alzira Vargas conseguiu se comunicar com o mundo externo, dando conta dos apuros por que passava o palácio residencial da Guanabara. A Chefatura de Polícia, pelo mesmo telefone oficial, alertou o ministro da Guerra, que conseguiu sair de casa sem ser visto pelos homens encarregados de prendê-lo. Dutra reuniu, então doze soldados, colocou-os num caminhão e furou o cerco ao Guanabara, debaixo de uma saraivada de balas. Dois de seus homens morreram, Dutra saiu levemente ferido, mas conseguiram entrar no edifício, enquanto que os rebeldes estavam sendo contidos nos jardins do palácio.

O levante, visto por Góis Eis a versão dada pelo general Góis Monteiro sobre os acontecimentos da madrugada de 11 de maio: “Cerca da meia-noite, dirigi-me ao meu apartamento, naquele tempo à rua Júlio de Castilhos, também em Copacabana. Aí chegando, entrei, por sorte minha, não pelo portão principal do edifício, mas por uma porta lateral de serviço. Creio que, assim, não pude ser visto pelos homens que então se encontravam nas imediações para me espreitarem. Precisamente à uma hora da madrugada, quando todos já adormecidos em meu apartamento, inclusive eu, fomos despertados por violentas pancadas nas portas, tanto na social como na de serviço. (...) Levantei-me sobressaltado e corri à porta social, mas fui detido por minha mulher que, não só apagou a luz, como pediu-me para que não a abrisse, pois as pancadas continuavam cada vez mais fortes. “Fui ao telefone. Estava cortada a linha. Corri à varanda que dava para a rua e pude ver automóveis e caminhões, com gente armada, tendo um dos carros, sobre o

estribo, granadas de mão, que pude reconhecer, do alto para baixo, devido à luz clara da lua. Entretanto, os assaltantes não se lembraram de que eu possuía um telefone oficial, com o qual pude comunicar-me com a Fortaleza de Copacabana, o Forte Duque de Caxias e a Polícia, solicitando o envio urgente de tropas de choque para acudir ao edifício onde me encontrava bloqueado. “Depois disso, telefonei ao Palácio do Catete, Palácio Guanabara e Ministério da Guerra, avisando da ocorrência. Vim a saber, então, que rompera um movimento integralista no Ministério da Marinha e em outros pontos da cidade, mas meus informantes não me deram pormenores. Do Palácio Guanabara, a Sra. Alzira Vargas comunicou-se comigo, dizendo que o palácio estava sendo atacado e que ela me falava debaixo de balas. Pedia-me para acudir, pois a guarda, ou tinha sido dominada, ou se acumpliciara, estando o Presidente, com sua família, em situação de perigo. Fiz-lhe ver que o mesmo estava acontecendo comigo, mas que eu já havia tomado providências para salvar-me e, logo que eu pudesse, tomaria as demais providências que o caso exigia.”

Reação aos ataques Ainda, segundo a narrativa de Góis Monteiro, as patrulhas do forte de Copacabana chegaram e dispersaram os rebelados, liberando o apartamento. Então ele, já uniformizado, acompanhado de Virgílio de Melo Franco e Adalberto Aranha, dirigiu-se ao Ministério da Guerra, onde encontrou o general Eurico Gaspar Dutra e outros comandantes na tarefa de acabar com a rebelião, que contaminara inclusive uma parte da Marinha. Góis permaneceu no Ministério, enquanto Dutra seguiu para o campo do Fluminense F.C., nos fundos do Palácio Guanabara, onde se achavam tropas legais, aguardando a oportunidade de entrar no palácio e expulsar os assaltantes. Foi nessa ocasião que, como vimos, Dutra e mais doze soldados entraram pela portaria dos fundos, apelidada de “Dondoca”, e conseguiram chegar ao edifício onde se encontravam sitiados os demais. O dia já clareava, cinco horas depois, quando, enfim, as tropas enviadas pela Chefatura de Polícia conseguiram penetrar no palácio, pondo em fuga o comandante revoltoso, Severo Fournier, que se homiziou nas montanhas e, mais tarde, pediu asilo à

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Embaixada da Itália. Não se sabe por que os dois contingentes, enviados pelo chefe da Polícia à uma hora da madrugada, levaram tanto tempo para entrar em ação. Nesse ponto, a milícia integralista dentro dos portões do Palácio Guanabara já ficara sem comando e sem ação. Os jovens idealistas, completamente dominados, foram acuados pelas tropas legais até os fundos do terreno e ali procedeu-se à execução sumária de todos eles, segundo a versão de Góis. Entre a ética e a força, prevaleceu a última.

Outra visão, de dentro do palácio

Os mesmos acontecimentos dessa tormentosa madrugada, são narrados por Alzira Vargas, então com 22 anos, que morava no Guanabara, com seu pai, sua mãe, sua irmã Jandira e alguns hóspedes ocasionais. “No silêncio da noite, ecoou um tiro. Nem me mexi. Minha cabeça estava começando a entrar em contato com o travesseiro para despedir a ameaça de enxaqueca. Além do mais, não era a primeira vez que isso acontecia. Um soldado sonolento apoiar-se à arma e, inadvertidamente, puxar o gatilho, era tão comum. Um segundo tiro me fez considerar que era muita coincidência: duas sentinelas distraídas, quase ao mesmo tempo. No entanto, só decidi renunciar ao meu repouso quando Jandira gritou assustada, abrindo a janela do quarto. Dois projéteis mais se alojaram, desta vez na parede, a poucos centímetros do batente de sua janela, em resposta imediata à sua imprudência. “(...) No jardim, às escuras, uma porção de homens a paisana corriam, dando tiros contra as paredes do palácio e jogando ao chão qualquer coisa explosiva que eu supus serem bombas de alarme, pois nenhum dano faziam. Creio que a janela de Jandira foi visada logo porque, mal-informados, julgaram ficar nesse ponto o quarto de papai. “(...) Com a mais absoluta inconsciência, saí feita uma flecha em direção à Secretaria. Por ser o caminho mais curto, desprezei o corredor e passei por dentro dos quartos, que se comunicavam todos. Papai estava colocando o revolver à cintura, por cima do pijama e perguntou onde eu ia. Eu também não sabia. “(...) O investigador de plantão, Manuel Pinto da Silva, estava em baixo, tentanto

fechar a grade de ferro. Também tinha sido despertado de surpresa e, de pijama, ainda, empunhava uma metralhadora. Disse-me: ‘Parece que estão atacando o palácio. (...)”

Como se deu a invasão Alzira apresenta sua versão dos acontecimentos: “A invasão se processara da seguinte maneira: pouco depois da meia-noite, dois enormes caminhões, cheios de homens disfarçados com o uniforme de fuzileiros navais, encostaram junto ao portão principal externo, entrada para a parte residencial. Estava fechado, como em todas as noites, pois o oficial-de-dia já dera ordem de recolher. “Dentro da ‘Dondoca’, nome pelo qual era conhecido o pequeno abrigo que serve de primeira portaria, ficava sempre de plantão um soldado da Guarda Civil para atender ao telefone, abrir o portão aos moradores noctívagos ou receber alguma mensagem urgente. Estava no seu posto o perspicaz Josafá, que se tornou conhecido e popular nessa noite por seu destemor e sagacidade. Desconfiado daquela chegada extemporânea e da inusitada ordem para abrir o portão, fechara-o a chave. “Os dois caminhões deram marcha-à-ré apressadamente e foram despejar sua carga em frente ao outro portão, igualmente de ferro, entrada da Casa da Guarda, onde foram fraternalmente recebidos por seu companheiro de traição, tenente Julio Nascimento. Invadiram o jardim com toda tranqüilidade, cercaram o palácio e ocuparam as posições estratégicas. “Dentro da Casa da Guarda, entretanto, uma desagradável surpresa os esperava. Alguns fiéis, conservadores da tradição de lealdade do Corpo de Fuzileiros, ofereceram resistência e se recusaram a acatar as ordens de seu comandante. Travou-se uma pequena luta, de curta duração, em face da superioridade de número dos invasores. Foram fuzilados, mortalmente feridos ou maltratados e aprisionados, aqueles poucos que puderam reagir.”

Defesa improvisada O investigador de plantão a que nos referimos acima foi à procura de um soldado, amigo seu, para obter detalhes e recebeu voz de prisão. O “amigo” também fazia parte do “putsch”. Todos os moradores do palácio, presentes naquele instante, procuraram se

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proteger ou organizar a defesa: Getulio, Manuel Antônio (Maneco), Sarmanho, comandante Isac Cunha e outros atiradores disponíveis. Alzira pegou também uma arma, que não chegou a usar. Lutero Vargas e Benjamin Vargas estavam fora do palácio. Os empregados que dormiam no palácio também receberam armas para a defesa. Alzira seguiu, rastejando, até o telefone convencional. Estava mudo. Tentou, em seguida a linha oficial e conseguiu contato com o PBX do Palácio do Catete, onde se achava de plantão o telefonista Floriano. Por meio dele, falou com o Chefe de Polícia, Filinto Müller que disse já ter mandado um contingente, comandado por Cordeiro de Farias, para cuidar do contra-ataque. Uma hora depois um carro entra sob rajadas de metralhadora. O ocupante era Benjamim Vargas, irmão de Getúlio, com dois amigos que trocaram informações sobre a situação. Benja ficou, enquanto os outros dois saíram, sob uma chuva de balas, em busca de ajuda, pois o reforço anunciado pela Chefatura não dera, até então, sinal de vida. Alzira continuou mantendo contatos pelo telefone oficial. Falou novamente com a Chefatura, que prometeu mandar mais um contingente. Falou com o general Góis Monteiro, que declarou-se sitiado em seu apartamento, nada podendo fazer. Falou com o ministro da Justiça, Francisco Campos, que declarou-se solidário com o Presidente, e só. Localizou Lutero Vargas, que disse estar à busca de reforços para invadir o palácio. Falou com o Posto da Polícia Militar, no alto do morro, o qual informou que cruzadores da Marinha estavam participando do levante e enviando sinais para os revoltosos em terra. Novas rajadas de metralhadora e outro personagem irrompe das salas do palácio. Era Júlio Santiago, um amigo da casa, para informar que o ministro da Guerra, general Dutra, havia conseguido entrar pelo portão da “Dondoca” e aguardava instruções. Todos os que tentavam, conseguiam entrar e sair, menos as tropas enviadas pela Chefatura de Polícia, das quais não se tinha notícias.

Espera angustiante A madrugada já ia avançada quando o Chefe de Polícia telefona a Alzira informando que Cordeiro de Farias, com seus homens, se achava acantonado no campo do Fluminense F.C., atrás do Palácio, aguardando o momento de entrar. Travou-se

um diálogo exasperante entre os dois: “Que estão esperando? – protestou Alzira – que subam para nos prender? A maioria já fugiu, o número de sitiantes no jardim é reduzido. Somente a Casa da Guarda continua em poder dos atacantes, e nós não dispomos de armas.” À resposta de que as tropas não conseguem sair do Fluminense F.C., ela replica: “O general Dutra atravessou só. Não é possível que com a tropa não possam entrar.” Informou ao Chefe da Polícia o lugar onde se encontravam os moradores do palácio e combinou de colocá-los todos atrás de uma parede mais grossa e resistente, para não serem atingidos pelos tiros. Disse que o palácio tinha uma entrada alternativa entre o campo de futebol e o jardim do palácio (a “Dondoca”). Minutos depois, Filinto volta a telefonar para dizer que o portão dessa entrada estava fechado e não havia chave para abri-lo... Alzira explode: “Pois então, que arrebentem a porta a bala. Não estão armados?” Finalmente, esse detalhe foi superado. O investigador Aldo Cruschen, que se achava dentro do palácio, se ofereceu para abrir a porta de comunicação e o fez, sem ser visto nem molestado. Cinco horas depois de acionadas, as tropas enviadas pela Chefatura de Polícia entravam, triunfalmente, nos jardins do palácio, quando já grande parte dos revoltosos já havia fugido, inclusive o tenente Fournier, que comandou o ataque, e o tenente Nascimento, que abriu os portões para a entrada dos revoltosos. Há uma contradição neste ponto. Enquanto Góis afirma que os rebeldes remanescentes foram sumariamente fuzilados, Alzira descreve sua prisão: “A resistência foi pequena, os que haviam agüentado entregaram-se quase que sem combate. Eram, em sua maioria, jovens quase imberbes e inexperientes, os que não haviam fugido. Os moços não fogem. A mocidade é que foge deles quando a voz da experiência começa a se fazer ouvir. Já tinham despido o simulado fardamento de Fuzileiro Naval e estavam à paisana. Traziam ao pescoço, como distintivo, um lenço branco, onde estava escrita a palavra ‘anauê’ ou ‘avante’, não lembro bem.”

Desfecho Alzira conclui sua visão dos acontecimentos:

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“Não fiquei sabendo nem como nem por que o general Eurico Gaspar Dutra foi o único membro do governo que conseguiu atravessar a trincheira integralista. (...) Não entendi, até hoje, embora os acontecimentos me tenham sido relatados por ele próprio, como conseguiu se libertar sozinho de seus atacantes, o general Góis Monteiro. Não sei como, nem por que, o general Canrobert Pereira da Costa foi raptado em trajes caseiros e apareceu prisioneiro na Esplanada do Castelo. Ignoro os motivos que obrigaram as tropas enviadas em nosso socorro gastar mais de cinco horas para percorrer menos de cem metros. “Gostaria de saber as verdadeiras razões que impediram o coronel Osvaldo Cordeiro de Farias de abrir uma porta. Muita coisa ainda está envolta em mistério e não me atrevo a tentar desvendá-lo. Mesmo dentro do Palácio Guanabara devem ter ocorrido outras cenas que não presenciei, outros sentimentos que não pressenti, outros conflitos íntimos que não percebi. “Acompanhei, sim, a luta surda que se processava em meu Pai, traduzida pelo ritmo inquieto de seus passos, marcando as perguntas sem resposta, que formulava sozinho. (...) Teria confiado demais? Valeriam a pena todos os sacrifícios que já havia feito? Sacrificara sua liberdade de pensar, seus sentimentos pessoais, suas convicções, para manter unido um país que teimava em se desunir. Valeria a pena?” Durante o dia, contrariando a opinião geral, o presidente Getúlio Vargas sai para dar o habitual expediente no Palácio do Catete. E o faz a pé, sem seguranças, caminhando entre as pessoas para mostrar que não temia povo. Ao saber disso, Alzira corre e vai alcançá-lo, alguns quarteirões adiante: “Alcancei-o quase na metade da rua Paissandu. Lentamente, em uma atitude mais do que de coragem, quase que de desafio, avançava em direção ao Catete. As janelas se encheram de fisionomias curiosas. Ninguém havia dormido nos arredores do Guanabara com o ruído das metralhadoras, à espera do inesperado. Das ruas laterais acorriam pessoas de todas as idades, que o seguiam. Durante todo o trajeto era saudado com palmas e exclamações de júbilo. Imperturbável, retribuía um aceno ou um sorriso, como se fora um fato comum o Chefe da Nação ficar cercado, prisioneiro, sem

defesa, durante toda a noite, e ainda estar vivo e de bom humor.” Era o carisma que o sustentou por tanto tempo no poder, à revelia de todas as forças que queriam derrubá-lo.

Destino dos revoltosos O tenente Severo Fournier, que comandou o ataque ao palácio, conseguiu escapar e asilou-se na Embaixada da Itália. Após demorados entendimentos, o governo brasileiro conseguiu a desqualificação de crime político e ele foi entregue às nossas autoridades para julgamento. O tenente Nascimento, que abriu os portões do palácio à invasão, não foi expulso da Marinha. Prosseguiu sua carreira com sucesso e, após o golpe de 1964, ainda conseguiu a patente de Almirante. O médico Belmiro Valverde, assessor do “Chefe”, assumiu sozinho toda a responsabilidade, foi preso, julgado e condenado. Quanto ao “Chefe”, Plínio Salgado, foi preso em 26 de janeiro de 1939 e enviado ao exílio, em Portugal. Em 1945, voltou ao Brasil, fundou o PRP-Partido de Representação Popular, mas foi punido pelo eleitorado, pois não conseguiu eleger nenhum representante à Assembléia Constituinte. Ainda em 1955 concorre à eleição para a presidência da República, ficando entre os últimos colocados. A sorte lhe sorriu, finalmente, em 1958, quando se elege deputado federal, conseguindo reeleger-se depois em 1962, 1966 e 1970. Fiel às suas idéias, apoiou o golpe de 1964 e, durante o governo Médici, foi relator do projeto que reformulava a censura aos meios de comunicação. Morreu em 7 de dezembro de 1975, num momento em que o Brasil enfrentava os dias mais negros do autoritarismo. Se era o que queria, morreu vendo realizada parte de seus sonhos.

Tratamentos diferenciados Tanto a intentona comunista de 1935, quanto o “putch” integralista de 1937, foram golpes armados, intentados contra as instituições, e executados de forma traiçoeira e covarde, à revelia da população brasileira, mas um e outro receberam tratamento diferenciado pelo poder. A intentona passou a figurar no “index” das Forças Armadas, relembrada durante meio século, e usada para apontar o perigo

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comunista a ameaçar permanentemente a vida das instituições democráticas. Já o levante integralista, igualmente radical, mas em posição simétrica ao comunismo, foi rapidamente absorvido e esquecido, tanto mais que as idéias propaladas por Plínio Salgado, em muito, coincidiam, não só com o esquema montado pelo trio Getúlio-Dutra-Góis para se garantirem no poder, como representavam, em linhas gerais o pensamento da caserna. Essa atitude de misericórdia, arbitrária e temerária, possibilitou, ao longo de nossa história, a tentativa seguida de golpes de direita, culminando com o atentado ao Riocentro, em 1981, até hoje não explicado suficientemente. Mas isso é outro assunto, para ser abordado em época oportuna. Como tentativa de explicação para a tolerância oficial ao integralismo, podemos admitir o fato de que ele era nacionalista, não se filiando a qualquer corrente internacional. Ao contrário, o comunismo tinha sua sede em Moscou e de lá foram emanadas as ordens a Luís Carlos Prestes e irradiadas aos militantes, resultando no plano que levou ao levante frustrado de 1935. Foi, também, o comunismo internacional que enviou para o Brasil agentes estrangeiros, da Alemanha e da Argentina, para subverterem a ordem em nosso território. Em resumo, o levante integralista de 1938, embora subversivo, ficou no mesmo plano das revoltas de 1922, 1924, da Coluna Prestes, da revolução de 1930 e do Estado Novo, em 1938, todos de cunho nacionalista e abominando a interferência estrangeira em negócios que só diziam respeito ao Brasil.

* * *Capítulo Vinte

A CAMINHO DA GUERRAPosição do Brasil no conflito

A Ação Integralista Brasileira, que tentou, sem sucesso, tomar o poder em 1938, e o Estado Novo, que nele se instalara um ano antes, eram verso e reverso da mesma medalha. Nacionalistas extremados, ambos perseguiam os mesmos propósitos dos regimes de direita que se popularizavam na Europa. Plínio Salgado era admirador do Primeiro Ministro de Portugal, Antônio de Oliveira Salazar, mas recebia apoio financeiro da Itália de Mussolini. Por seu lado, o ditador

Getúlio Vargas tinha laços de amizade com Benito Mussolini, mas recebia apoio bélico da Alemanha de Hitler. Na remessa de armas para o Brasil, a Krupp alemã utilizava simultaneamente os portos alemães, italianos e portugueses. Num mundo que priorizava a luta feroz entre fascismo e comunismo, tanto a AIB quanto o Estado Novo polarizavam em blocos da direita. Plinio Salgado por convicção, Getúlio Vargas por conveniência. Na outra ponta, à extrema esquerda, reinava absoluta, no mundo, a figura de Joseph Stalin (seu nome verdadeiro era Iosif Vissarionovich Dzhugashvili; melhor mesmo é ficar só com o apelido). Em 1922 tornou-se secretário do Partido Comunista. Em 1924, com a morte de Lenin, assume o comando do Partido e, para garantir-se no poder, foi eliminando um a um, todos os seus concorrentes: Trotsky foi exilado, Kamenov, Zinoviev, Rykiv e Bukharin foram executados. Todos os demais que se interpuseram em seu caminho tiveram idêntico destino. Finalmente, em 7 de maio de 1941, Stalin torna-se o todo poderoso Primeiro Ministro da União Soviética. Pela violência, pelo medo, e organizando uma rede de delação e espionagem, conseguiu dominar por completo a União Soviética e seus satélites, mantendo-se, até a morte, como o chefe incontestável do comunismo internacional. Ao centro, num equilíbrio muito precário, achavam-se a Inglaterra, cujo Primeiro Ministro era Arthur Neville Chamberlain; a França, que tinha como presidente do Conselho Édouard Daladier; finalmente, os Estados Unidos, cujo presidente era Franklin Delano Roosevelt, um dos maiores estadistas do mundo moderno. Todavia, num mundo ameaçado pelo radicalismo, não havia espaço para o liberalismo e não tardou que os três aliados tivessem que buscar apoio armado em um dos extremos, apresentando-se, então, como única opção, o poderio da União Soviética. Esse era o cenário ao final da década de trinta, quando nuvens negras turbavam o horizonte, preparando o palco onde se desenvolveria a Segunda Guerra Mundial. Não era apenas o confronto de armas mas, sobretudo o confronto de idéias, em que a democracia passava por sua prova de fogo, frente ao totalitarismo que se apresentava como a solução única para os problemas do globo.

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Paz gerou a guerra O pesado fardo colocado sobre a Alemanha, vencida na Primeira Grande Guerra, e a punição aplicada à nação alemã, com ocupação estrangeira de seu território, a destruição de sua marinha de guerra e a proibição de manter seu arsenal bélico, a não ser com armas defensivas, representou uma profunda humilhação à orgulhosa raça germânica. Nesse sentido, o Tratado de Paz de Versalhes, assinado em 28 de julho de 1919, marcou o início do caminho que levaria à Segunda Guerra Mundial. Em 1917, o comunismo, pela primeira vez, se instalara como regime, formando-se a União das Repúblicas Soviéticas, que passou a comandar e financiar a subversão da ordem no restante do mundo, provocando o surgimento de regimes militarizados no extremo oposto, para dar-lhe combate e evitar sua expansão. Nesse contexto, surge na Alemanha, Adolph Hitler, um austríaco filho de camponeses, que havia participado como voluntário na Primeira Grande Guerra. Em 1919 filia-se ao Partido Nacional Socialista (nazi), do qual se torna chefe. Em 1930 ganha a cidadania alemã, é nomeado chanceler e assume o poder em janeiro de 1933, fechando partidos políticos e perseguindo sem trégua os opositores do novo regime. Captando o sentimento do povo alemão, em favor de uma revanche em defesa do amor próprio ferido, Hitler passa a militarizar o país, restabelecendo o serviço militar obrigatório e incrementando a produção de armas de guerra. Embora isso contrariasse os termos do tratado de paz, os aliados ocidentais fizeram por não ver a expansão militarista da Alemanha, levando em conta que, por sua posição geográfica estratégica, ela serviria de barreira contra a expansão comunista na Europa. Essa tolerância, várias vezes repetida, custou caro ao mundo livre. Pressionadas por Hitler, e em nome da paz, França e Inglaterra convencem a Checoslováquia a entregar à Alemanha os sudetos na divisa entre os dois países. Sentindo-se fortalecido, o ditador alemão avança em suas pretensões, invadindo a Boêmia e a Morávia. Não encontrando reação, toma uma uma ofensiva maior, apossando-se da Checoslováquia inteira, que deixou de existir como país independente. Finalmente, em 1º

de setembro de 1939, as tropas nazistas invadem a Polônia, dando início à conflagração mundial, com a reação, já tardia, da Inglaterra e da França. Pouco depois, o ministro inglês Chamberlain perdia sua sustentação, entregando o governo a Winston Churchill.

Inglaterra e França invadidasNa preparação para o conflito, Hitler primeiro se une à Itália de Mussolini e, depois, aos generais do Imperador Hiroito, formando-se um eixo Berlim-Roma-Tóquio, que ficou conhecido simplesmente como “Eixo”. A Itália entra na guerra em 10 de junho de 1940, e o Japão, em 27 de setembro do mesmo ano. O avanço do Eixo é surpreendente. Em 19 de janeiro de 1940, Noruega e Dinamarca afirmam-se neutras; três meses depois, os germânicos invadem os dois países. Em maio inicia-se a invasão da Holanda, da Bélgica e do Principado de Luxemburgo. Em 14 de junho, as tropas nazistas invadem París, contando com a colaboração de um traidor, o marechal Petain que, em Vichy, se proclama Chefe da França. Em 8 de agosto, a Inglaterra também é invadida. A situação dos Aliados começa a ficar desesperadora. Paralelamente, a Itália avança para o norte da África, invadindo o Egito e a Líbia e seguindo em direção a Dacar, ponto estratégico no litoral Atlântico. Felizmente, seus exércitos são detidos por forças da Inglaterra e França que, se não os expulsaram daquele continente, pelo menos conseguiram deter o avanço. No Japão, em 18 de outubro de 1941, o ex-ministro da Guerra, general Hideki Tojo assume como Primeiro Ministro. É um acontecimento importante, pois o Imperador Hiroito era pouco informado das operações de guerra, sendo iludido por seus militares, que detinham a grande responsabilidade da ofensiva.

Estados Unidos na guerraAparentemente, as três Américas permanecem a salvo da guerra que grassava na Europa, até que, em 7 de dezembro de 1941, aviões japoneses fazem um ataque de surpresa à base naval de Pearl Harbour, no arquipélago do Havaí, destruindo toda esquadra americana ali fundeada. Para se ter uma idéia da destruição basta dizer que, neste único ataque, os Estados Unidos perderam mais navios que em toda a Primeira Grande Guerra, sem contar as baixas em soldados. Registraram-se 2.843

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mortos, 1973 feridos, com cerca de 1.000 desaparecidos. No dia seguinte, os Estados Unidos declaram guerra ao Japão e, em represália, a Alemanha e a Itália declaram guerra aos Estados Unidos. Se ainda havia alguma esperança de manter as Américas na neutralidade, esta foi por terra com o ataque à base americana. Querendo ou não, o mundo inteiro está agora envolvido e tem de tomar uma posição, ou a favor dos Aliados, ou a favor do Eixo. O grande poderio bélico se encontrava nas mãos dos norte-americanos mas a geografia do continente americano dava ao Brasil uma posição de destaque na estratégia da defesa do continente, pois o grande perigo se apresentava na ligação atlântica, entre a África e as costas brasileiras. Era para cá, pois, que se voltavam as atenções dos Estados Unidos, procurando atrair o governo do Estado Novo com agrados, mas, ao mesmo tempo, com pressões diplomáticas, às quais o Presidente vinha resistindo desde o início da guerra.

Entre a cruz e a espada Não era nada fácil a situação brasileira. A sagacidade e experiência de Getúlio Vargas em muito ajudaram a administrar, desde o início da guerra, o relacionamento duplo com a Alemanha e com os Estados Unidos, buscando o máximo de lucro, com um mínimo de prejuízo aos interesses nacionais. De um lado, dentro do panamericanismo, rebatizado como “Política da Boa Vizinhança” tínhamos compromissos de fidelidade com as nações americanas e particularmente com os Estados Unidos, a maior potência de nosso continente. Vínhamos sendo fiéis a esse compromisso, trocando informações e opiniões com o embaixador americano no Brasil, Jefferson Caffery, e com o Secretário de Estado americano Cordel Hull, ou com o sub-secretário, Summer Hills. Para nossa sorte, era embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Osvaldo Aranha, experiente, habilidoso, e prestigiado junto ao presidente Roosevelt, ajudando em muito nesses contatos. De outro lado, havia vários motivos para continuarmos mantendo relações diplomáticas e comerciais com a Alemanha, não convindo ao Brasil um rompimento com aquela nação. Primeiro, havia no sul do nosso país uma sólida colônia alemã com cerca de 1.900

escolas particulares, onde a língua utilizada era o alemão. Da Alemanha vinham, também, os livros e os professores. Em algumas pequenas cidades, os moradores até desconheciam o português. Secretamente, Hitler considerava essas colônias como sudetos que, no momento oportuno, pretendia incorporar à Alemanha. O problema era muito delicado e precisava ser tratado com sensibilidade, exigindo medidas corretas, na proporção exata, e no momento apropriado. Segundo, a Alemanha figurava como um parceiro comercial que o Brasil não podia desprezar, pois as duas economias eram complementares. Tínhamos para exportar os produtos primários de que a Alemanha necessitava e, em troca, eles nos vendiam produtos acabados em seu destacado parque industrial e que, a nós, faziam falta. Por último, o Brasil precisava desesperadamente de armamento para reforçar e atualizar nossas Forças Armadas e nenhum dos países aliados, preparando-se para a guerra, estava em condições de nos atender. Já a Alemanha fechou um contrato para fornecimento de armamento ao Brasil, no valor de três milhões de libras esterlinas, valor pago em sua totalidade, cujos embarques vinham se fazendo parceladamente. Quando o Japão atacou a base naval dos Estados Unidos, em 7 de dezembro de 1941, trazendo a guerra para nosso continente, este último problema já estava resolvido, não obstante as dificuldades impostas pela Inglaterra, que estabelecera um bloqueio marítimo, apreendendo o navio “Siqueira Campos”, que transportava a última remessa dessa encomenda.

Caso com a Inglaterra Com o avanço rápido das tropas germânicas sobre a Europa, Inglaterra e França ficaram em situação difícil, na perspectiva de invasão e dominação estrangeira. Usando de uma estratégia que já dera certo em outras ocasiões, a Inglaterra estabelece no Atlântico um bloqueio ao comércio exterior alemão, impedindo o trânsito de mercadorias destinadas à Alemanha, ou embarcadas de seus portos em direção a outros países. O Brasil já havia recebido um terço do armamento encomendado, retirando-o do porto de Gênova, na Itália, para despistar a

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procedência. Todavia, o navio “Almirante Alexandrino” viveu uma odisséia para fazer seu trajeto até o Brasil. Como a Inglaterra vinha aumentando o policiamento nessa área, procurou-se fazer o novo embarque em Lisboa, Portugal. Não deu certo. O navio “Siqueira Campos”, pronto para zarpar, ficou retido no porto, aguardando uma ordem de “livre trânsito”, solicitada à Inglaterra e, como essa autorização não chegasse, partiu assim mesmo, sendo apreendido pelos ingleses, com o que se criou um incidente internacional de gravidade, e justo com um país Aliado. Todo mundo intervêm. O embaixador do Brasil na Inglaterra, Muniz Aragão, o embaixador inglês no Brasil, Geoffrey Knox, O embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Osvaldo Aranha, e até o general Góis Monteiro, chefe do EMFA, que ameaça com represálias contra bens ingleses no nosso país. O Brasil explicou à Inglaterra que, por razões de segurança, em face da guerra, nos primeiros embarques, as armas vieram todas incompletas. O “Siqueira Campos” trazia agora as partes faltantes para que, no Brasil, fosse realizada a montagem. Assim, sem este embarque, o armamento da remessa anterior estaria todo inutilizado. Não obtendo resultados, o Brasil apela para a interferência diplomática americana e, finalmente, em 15 de dezembro de 1940, sai a licença de “livre trânsito”, permitindo que o “Siqueira Campos” prossiga em paz sua viagem.

Brasil e panamericanismo No mais, o Brasil cooperou com o sistema de defesa do continente, desde os primeiros dias da guerra. Participou das conferências realizadas em Lima, em Havana e, finalmente, no Rio de Janeiro. Cedeu bases navais em Salvador e Recife para navios americanos. Permitiu a instalação de bases aéreas, sobretudo em Natal e Recife, e assentiu com a possibilidade de utilização, para o mesmo fim, da ilha de Fernando de Noronha, meio caminho entre Natal (Brasil) e Dacar (Senegal), que eram os dois pontos avançados do Atlântico Sul. Quando a base americana de Pearl Harbour foi atacada pelos japoneses, o Brasil mostrou-se solidário aos Estados Unidos, acelerando também as providências para

defesa do próprio território e, por conseqüência, do continente sul-americano. Em janeiro de 1942, um mês após esse ataque, o arquipélago de Fernando de Noronha foi declarada Zona Militar, enviando-se para lá um contingente do Exército brasileiro, que ficou estacionado numa das ilhas por três anos e oito meses. A pena de morte, que se destinava apenas a crimes políticos, foi estendida também a sabotadores. No decorrer da guerra, outras providências foram sendo tomadas, limitando-se a movimentação de estrangeiros no território nacional e, a mais polêmica de todas, a obrigatoriedade e uso do idioma nacional nas escolas, causando a maior revolta nas colônias alemãs. Em resumo, o Brasil não faltou com suas obrigações junto ao sistema panamericano. O mesmo não se pode dizer de todos os países sul-americanos, alguns dos quais tiveram comportamento dúbio em face dos acontecimentos.

Quinta-coluna no Brasil Quinta-coluna é um termo surgido durante a Guerra Civil Espanhola, em 1936, atribuído a uma suposta frase do general Francisco Franco: “Se minhas quatro Colunas fracassarem, ainda disponho de uma “Quinta-Coluna” para ganhar a guerra.” Referia-se ele à rede de espiões e sabotadores, infiltrados junto aos guerrilheiros comunistas, para minar-lhes a ação. Conquanto todos os estrangeiros residentes no país sofreram limitações, dependendo de um salvo-conduto para deslocar-se de um a outro ponto do país, o governo pouco teve a temer, a não ser por ações isoladas de japoneses, italianos e espanhóis, ligados ao Eixo. O próprio Mussolini lamentou não estar conseguindo montar, entre a colônia italiana, uma rede eficaz de colaboradores do fascismo. Sobre os italianos, escreve “O Estado de São Paulo” em 4 de abril de 1942: “Prendendo todos os indivíduos de comprovada ação nefasta ao nosso país, a polícia não tem encontrado súditos da Itália entre os espiões totalitários, detendo, entretanto, vários espanhóis articulados com os enviados das nações agressoras. Essa observação deve ficar registrada em homenagem à verdade dos fatos e à

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lealdade dos elementos italianos radicados em nosso país.” O mesmo não se pode dizer dos alemães, bastante atuantes e infiltrados até o âmago de setores importantes do governo. O jornalista David Nasser, em seu livro “Falta Alguém em Nurenberg” lança um libelo contra o chefe de Polícia, Filinto Müller, homem de confiança do Presidente: “O chefe de Polícia não fazia esse trabalho de colaboração com o inimigo desorganizadamente, sem plano certo. Possuía um mentor nazista, ao qual ele prestava conta de seus atos e de quem ele recebia instruções. Tratava-se de um conselheiro da Embaixada Alemã. (...) O Filinto não saía de lá. Fazia visitas freqüentes e demoradas, mesmo no tempo em que devia atender aos interesses do Brasil na chefatura de polícia. Preferia resolver com o tal conselheiro as dificuldades da embaixada de Hitler, representada nas pessoas de Von Cossel e outros seus amigos. Esses agentes secretos nazistas já nem eram mais secretos, tal a liberdade de movimento que possuíam nas dependências da polícia, como se fosse um território alemão. E não era?” Sobre a presença alemã no Brasil, o observador estrangeiro Ewart Turner, escreve a obra “German Influence in South Brazil” nesse mesmo ano de 1942, informando que os imigrantes alemães somavam um milhão de pessoas, em sua quase totalidade simpatizantes do nazismo. Os mais influentes e atuantes, segundo ele, eram os pastores protestantes, e cita um caso curioso: “O pastor de Nova Breslau foi apanhado em atividades subversivas. A polícia ordenou sua prisão. Ao ouvir isso, o Consulado Alemão de Florianópolis avisou-lhe por telefone que ele estava contratado como vice-cônsul. Isso lhe propiciou imunidade diplomática, com a qual passou a desafiar quem o prendesse. Quando o assunto veio a público, os nazistas mandaram-no de volta à sua paróquia. Desde então, o nome da cidade mudou de Nova Breslau para Getúlio Vargas.” E Turner, já citado acima, escreve sobre a ação de agentes alemães no Brasil: “Os recém desembarcados professores, todos homens, foram descobertos, organizando a juventude em unidades paramilitares.” Eram as AS(Sturmabteilung), ao pé da letra, “Seção de Assalto”, organizações que os

nazistas organizavam em países inimigos para facilitar a tomada do poder.Esse é o grau de dificuldade que o governo brasileiro enfrentava, internamente, para a defesa nacional, em face da Segunda Guerra Mundial.

Navios bombardeados Desesperançado de obter o apoio do Brasil às potências do Eixo, Hitler começa a tomar medidas de provocação, mandando afundar navios mercantes brasileiros, numa freqüencia que punha em teste a paciência do nosso governo. Em 15 de fevereiro de 1941 era torpedeado o navio mercante brasileiro “Buarque”. Segue-se uma série de ataques, feitos por submarinos alemães e, seis meses depois, já tínhamos 22 embarcações atingidas, todas da marinha mercante, vale dizer, sem condições de envolvimento na guerra. E os ataques continuaram, entrando pelo ano de 1942. Era a velha tática. Contemporizando com intuito de apaziguar, o Brasil estava aumentando o poder de fogo dos agressores. Em 22 de agosto de 1942, o Brasil reconhece o Estado de Beligerância com a Alemanha. Neste ponto, Osvaldo Aranha deixa a Embaixada do Brasil nos Estados Unidos e, em solidariedade, Góis Monteiro se demite da chefia do Estado Maior das Forças Armadas. Em 31 de agosto o Brasil, finalmente, declara Estado de Guerra em todo o território nacional. Não era momento para ilusões. Ou os problemas, todos eles, eram atacados de frente, com energia ou determinação, ou chegaríamos a um ponto onde não haveria mais condições para conter a escalada da subversão dentro do país, e o recrudescimento dos ataques alemães aos navios de bandeira brasileira. A declaração de guerra à Alemanha era apenas um primeiro passo, de todo inútil, se não fosse acompanhado de medidas efetivas visando reagir às hostilidades do governo germânico contra o Brasil. Getúlio Vargas, pois, fez ver ao presidente Roosevelt que tínhamos todo interesse em enviar ao campo de batalha uma força militar para participar, ao lado do Exército americano, na expulsão do inimigo, dos territórios por ele invadidos. A formação da força expedicionária, a partir desse instante, é a prioridade do governo brasileiro.

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* * *Capítulo Vinte-e-um

“PRACINHAS” NA GUERRAA cobra fumou na Itália

O Decreto nº10.358, de 31 de agosto de 1942, declarando Estado de Guerra em todo território nacional seria mera peça de retórica, se a ele não se seguissem medidas efetivas objetivando a participação do Brasil no esforço conjunto para deter as ambições do Eixo, que pretendia estender seu império a todos os quadrantes do globo terrestre. Foi do próprio presidente Getúlio Vargas a declaração, feita em 31 de dezembro do mesmo ano, de que o Brasil forneceria tropas em quantidade para marcar presença no combate ao inimigo, do outro lado do Atlântico. Com efeito, a posição do Brasil perante a comunidade mundial, e diante dos próprios brasileiros, era, naquele momento, deveras embaraçosa. Ao abrir seu território para a instalação de bases de guerra norte-americanas, sem efetivamente participar do conflito, o país ganhou uma feição de “terra ocupada”. Assim, pois, enviar uma força expedicionária para combater, par a par com os Aliados, era importante para dar uma satisfação à opinião pública nacional e internacional, assim como aos militares, que estavam, de há muito, inconformados com a passividade aparente de nosso governo. Nesse propósito, alguns atos públicos selam os entendimentos entre Brasil e Estados Unidos. Em 12 de setembro de 1942, a Marinha de Guerra brasileira é posta sob o comando do almirante americano Jonas Ingram, integrando-se ao esforço conjunto de guerra. No dia 29 do mesmo mês, vem ao Brasil, para inspeção, o secretário da Marinha dos Estados Unidos, Frank Knox. Em 25 de janeiro de 1943, após participar da Conferência de Casablanca, o presidente americano não volta aos Estados Unidos, mas viaja diretamente para a base militar americana em Natal, Rio Grande do Norte, onde se encontra com Getúlio Vargas, que está acompanhado do embaixador americano Jefferson Caffery, do almirante Jonas Ingram, acima citado, e do chefe da Missão Naval americana, Augusto Beauregard, onde são discutidos assuntos relativos à defesa das nações ameaçadas pelo Eixo.

Treinamento de oficiais Desde os primórdios, nossas forças militares vinham sendo treinadas por missões militares francesas, incutindo, tanto no Exército quando na Marinha, uma filosofia tipicamente européia não só nas táticas operacionais como no conceito de segurança nacional. O acordo com os Estados Unidos veio provocar um giro de 180 graus nesses conceitos. Militares em postos de comando, como Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, Humberto de Alencar Castelo Branco, Floriano de Lima Brayner e Amauri Kruel viajaram para o Fort Leavenworth, onde ficava a Escola de Comando e Estado Maior americano, para participar de cursos de atualização. O conceito francês de guerra em trincheiras foi substituído pela tática de avanços rápidos e fulminantes, típico da escola americana. As marchas da Infantaria eram substituídas pelo transporte motorizado de soldados; o uso de cavalos, ainda em voga, era desaconselhado, a não ser em casos muito especiais. O contato com novo material bélico deu-lhes a noção de que o armamento brasileiro tornava-se inútil para a guerra, dado que os Estados Unidos haviam padronizado o uso de armas de 105 mm e 155 mm., de que não dispúnhamos. Assim, nossos soldados deveriam ir à Europa desarmados e lá receberiam as armas apropriadas e o treinamento adequado, antes de serem incorporados ao Exército americano.

Mãos à obra! O próximo passo é a formação da Força Expedicionária Brasileira (FEB). O ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, pretendia criar um efetivo de 100.000 homens, mas acabou se rendendo à realidade. A situação financeira do país e a impossibilidade de os Estados Unidos absorverem todo esse contingente conteve a audácia e o total de nossas forças se reduziu a um quarto do anteriormente proposto. Para sermos precisos, o Brasil enviou à Guerra, com a Força Expedicionária Brasileira (FEB), 25.334 soldados e oficiais. Além destes, foi também um contingente da Força Aérea Brasileira (FAB), principalmente para missões de reconhecimento. E, é claro, seguiram também, médicos, enfermeiras e pessoal de apoio de retaguarda. Se os oficiais eram quase todos da ativa do Exército, cerca de metade dos soldados

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eram reservistas, convocados para servir a pátria nesse grave momento. A convocação se deu em todos os Estados, principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo, que forneceram os maiores contingentes. Todos os Estados brasileiros, com exceção do Maranhão, tiveram alguns de seus filhos sepultados no cemitério de Pistóia, Itália. Ao final, foram 443 homens que deixaram sua pátria para nunca mais voltar. A FAB, que atuou não só na Itália como no sul da Áustria, perdeu 8 aviadores em combate. Para comandar a 1ª Divisão de Infantaria foi indicado o general João Batista Mascarenhas de Morais, já então com 60 anos de idade. Ao todo, o Brasil preparou cinco escalões de embarque, que partiram nas seguintes datas:02.07.44 – 1º Escalão, comandado pelo general Zenóbio da Costa;22.09.44 – 2º Escalão, comandado pelo general Cordeiro de Faria;22.09.44 – 3º Escalão, comandado pelo general Olímpio Falconiere;23.11.44 – 4º Escalão, comandado pelo coronel Mário Travassos;08.02.45 – 5º Escalão, comandado pelo coronel Iba Jobim Meireles. Os dois primeiros escalões seguiram no navio “General Mann” e os demais no “General Meigs”. Todos eles foram escoltados até o estreito do Gibraltar por belonaves americanas e destróieres brasileiros. Ingressando no mar Mediterrâneo, essa escolta passou para a responsabilidade de navios americanos e ingleses. Quanto ao pessoal de apoio (médicos, enfermeiros, etc.), este seguiu por via aérea. Durante a Guerra, a FEB esteve incorporada ao 5º Exército Americano, comandado pelo general Mark Clark. Durante todo o tempo, operou em coordenação com o 4º Corpo do 5º Exército, comandado pelo general Willis Crittenberg. É com este último que mantínhamos contato permanente e é dele que emanavam as ordens de comando.

Nova vida em terra estranha O embarque do 1º Escalão se faz no mais absoluto segredo. As janelas dos vagões ferroviários são vedadas para isolar o contato com o mundo exterior e os soldados recebem a informação de que estão sendo transferidos para outro campo de treinamento. Tudo era disfarce. Quando se

deram pela conta, estavam no porto do Rio de Janeiro, embarcando no navio-transporte americano “General Mann”. Antes da partida, Getúlio Vargas vai a bordo para deixar-lhes uma palavra de despedida. E só. Não houve sequer oportunidade de se despedir dos parentes, que só souberam da viagem quando o navio já ia em mar alto.A bordo, para surpresa geral, ia também o comandante da 1ª Divisão de Infantaria, general Mascarenhas de Morais, com seu estado maior. Na prática, era ele o comandante efetivo, dono da situação e senhor único de um segredo, que lhe fora passado pelo general Kroner, adido militar americano. Só ele, e mais ninguém, nem o general Zenóbio, que comandava o escalão embarcado, sabia qual o porto de destino da embarcação. Assim, a preocupação se instalou a bordo quando o navio ignorou todos os portos do norte da Itália, onde se achava o campo de guerra, rumando para o sul. Há algum tempo, os Estados Unidos insinuaram a possibilidade de fazer o treinamento dos pracinhas no norte da África, bem distante do campo de batalha, transformando a FEB em uma força de contingência, a ser usada no decorrer da guerra, se isso se tornasse imperioso. Foi nesse momento de tensão que o general Mascarenhas tranqüilizou a todos, esclarecendo que o desembarque se daria em Nápoles, ao Sul da Itália, por razões de segurança. Nem por isso, as coisas foram mais fáceis. Chegando a Nápoles, numa bela manhã de sol, os soldados não encontraram os caminhões prometidos para o deslocamento até o norte do país. Finalmente, informou-se que o transporte estaria disponível em Agnano, a trinta quilômetros de distância, percurso que teve de ser feito à pé. Caminhando em passo de estrada, desarmados, e com fardamento semelhante ao dos nazistas, os soldados brasileiros chegaram até a ser confundidos com prisioneiros de guerra. No local de destino, outra surpresa os esperava. Os brasileiros não levaram barracas de campanha já que os americanos asseguraram o suprimento delas na Itália. Ali, não havia barracas para o alojamento. Esses foram os primeiros maus momentos de uma campanha que lhes reservaria, ainda, muitas outras surpresas.

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Prontos para a luta Diga-se, a bem da verdade, que o comando americano não via com bons olhos a participação de brasileiros na guerra, achando-os despreparados e sem espírito de combate. Assim, a presença da FEB no campo de treinamento de Tarquinia se deu mais por motivos circunstanciais do que pela vontade do comando do 5º Exército. Com efeito, a defesa no norte da Itália acabara de sofrer grandes desfalques. A França, àquela altura, havia retirado seu contingente juntando-o ao restante do Exército francês, numa nova ofensiva para expulsar os nazistas de seu país. A Inglaterra mandou parte de suas tropas para auxiliar os franceses e outra parte para reforçar a linha de defesa na Grécia. Só um pequeno grupo permaneceu na Itália. Assim, a chegada dos brasileiros vinha a calhar, para fechar as brechas deixadas com essas perdas. No mais, foram os pracinhas que tiveram de mostrar sua bravura e tenacidade, nivelando-se aos mais corajosos e experientes soldados americanos e merecendo, por fim, um registro elogioso do próprio general Mark Clark, comandante do 5º Exército. Talvez tenha sido melhor assim. Desacreditados ao início, tudo fizeram para marcar sua presença de forma inequívoca. E conseguiram. Em 5 de agosto de 1944, o Primeiro Escalão da FEB foi, finalmente, incorporado ao 4º Corpo do 5º Exército e transferido para Vada, um local mais acidentado e semelhante ao campo de batalha, onde se iniciou a segunda fase de preparação. Todo esse treinamento, bastante útil, não pode ser dado, mais tarde, aos outros quatro escalões, que aprenderam as táticas de enfrentamento já no campo de batalha, no rude confronto com os experientes germânicos.

A cobra está fumando Procuremos entender o contexto em que os brasileiros são postos à luta no norte da Itália. O ditador italiano Benito Mussolini havia sido deposto em 25 de julho de 1943 e, embora preso, fora resgatado pelos alemães, achando-se em lugar incerto e não sabido. Em 8 de setembro do mesmo ano, a Itália se rende, mas alguns rebeldes, como a Divisão Bersagliari, se juntam aos nazistas, prosseguindo na guerra. Os alemães, que haviam chegado até o norte da África, foram obrigados a recuar,

deixando livre o continente africano e o sul da Itália, indo se alojar, agora, em posição defensiva, ao norte da península itálica. Chegando primeiro, tomaram as melhores posições defensivas, no alto das montanhas. Estavam em seu poder os montes Belvedere, Gorgolesco, Mazzancana, La Torrachia, Della Croce, Torre de Nerone, Soprassasso, e, entre outros mais, o diabólico Monte Castelo, uma fortaleza natural e inexpugnável. Esse cordão de defesa era a chamada “Linha Gótica”, que ia desde Spezia, no mar Ligúrico, até Rimini, no mar Adriático, cortando o país de oeste a leste. Os aliados, ao contrário, se achavam nos vales, totalmente desprotegidos e à vista do inimigo, cabendo-lhes avançar até as montanhas, para desalojar as tropas adversárias, uma operação que exigia muita experiência, coragem e predisposição para a morte, já que esse avanço seria feito sempre ao alvo da artilharia germânica. Os brasileiros eram os únicos latino-americanos a participar da guerra e cabia-lhes cobrir um trecho da Linha Gótica numa extensão de 18 quilômetros. A 15 de setembro de 1944, a FEB entrou em operação, sob o comando do general Zenóbio da Costa, em coordenação com três companhias norte-americanas, substituindo outra força, também americana, que, por razões internas, havia sido desligada do 4º Corpo. Não era, ainda, o teste de fogo. Enfrentando pouca resistência, em dois dias, foram conquistadas as localidades de Massarosa, Bozzano e Quiesia, merecendo um telegrama de congratulações do general Mark Clark e cumprimentos do general Crittenberg. Prosseguindo no avanço, as armas brasileira e norte americana desalojaram os nazistas de Monte Prano e outros locais de menor importância, seguindo depois para o vale do rio Serchio, em direção à importante fortaleza representada por Castelnuovo di Garfagnana. Estávamos já no mês de outubro e, com ele, chegava um novo inimigo: a chuva, que enlameava os caminhos e tornava quase impossível o avanço. A exemplo dos americanos, que possuíam um sinal de identificação na farda, o general Mark Clark sugeriu que os brasileiros criassem seu próprio distintivo, facilitando o reconhecimento. Coube a Sena Campos fazer o desenho que, depois de sofrer

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algumas modificações, se tornou em uma serpente, com um cachimbo na boca, encimados pelo nome “Brasil”. Esse distintivo passou a ser usado em todo o fardamento da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Quanto à Força Aérea Brasileira (FAB), esta passou a usar outro distico, bem mais complicado, em que entravam uma ema, uma serpente, o Cruzeiro do Sul e a expressão “Senta a Pua”.

A FEB conhece sua primeira derrota Enquanto isso, os alemães estavam reforçando sua posição em Castelnuovo de la Garfagnana. Zenóbio pediu e lhe foi concedida autorização para atacar aquele ponto, antes que o inimigo conseguisse torná-lo uma fortaleza impenetrável. Não obstante as chuvas que não paravam de cair, as tropas avançaram em direção ao alvo proposto, conquistando pequenos pontos, como Lama di Soto, Monte San Quirico e Somocolonia. Isso foi a 30 de outubro de 1944. Os sucessos deram ânimo para o ataque maior e fulminante a Castelnuovo, que deveria ser realizado no dia seguinte. Mas, antes disso, os alemães contra-atacaram com todo seu poder de fogo, obrigando os brasileiros a recuar a Somocolonia. Depois desse insucesso, Zenóbio permanece com a Infantaria, mas sob as ordens de Mascarenhas de Morais, que assume em definitivo o comando da 1ª Divisão. Os brasileiros foram transferidos, então para o vale do rio Reno a 120 quilômetros do vale do Serchio (Trata-se do Reno italiano. Não confundir com o outro rio Reno, que nasce na Suiça, atravessa a Alemanha e deságua na Holanda). A essa altura, tínhamos feito 208 prisioneiros e os alemães aprisionaram 10 dos nossos. Mas o insucesso da última batalha nos custou 13 mortos e, desde o início de nossa participação, contabilizávamos 183 feridos em acidentes e 87 em combate. A guerra começava a pesar, e não era nem uma amostra do que estava por acontecer.

Primeiro ataque a Monte Castelo De todas as batalhas travadas pela FEB na Itália, nenhuma se compara aos sucessivos ataques para a conquista do Monte Castelo, e às tentativas frustradas de desalojar os alemães daquele refúgio, que era considerado a mais importante fortaleza de toda a Linha Gótica.

O primeiro desses ataques envolvia o complexo Belvedere-Castelo e se deu a partir do dia 24 de novembro de 1944, sob a responsabilidade da Força-Tarefa 45, do Exército Americano, com a participação de dois batalhões brasileiros a ela agregados. Foram três dias de insucessos e pesadas baixas, quando o poderoso contra-ataque germânico obrigou as tropas aliadas a recuar ao ponto de origem. O general Crittenberguer, decidiu, então pelo deslocamento da FEB mais para o oeste, de maneira que a tomada do Monte Castelo passou, a partir daquele momento, a ser responsabilidade da nossa força expedicionária, com o apoio da aviação e de tanques americanos. Um novo contingente, descansado, estava sendo trazido para o campo de batalha. Estávamos ao final de novembro e o frio do inverno que se aproximava já era sentido pelos nossos pracinhas, acostumados que estavam ao clima tropical.

Segundo ataque a Monte Castelo No segundo ataque ao Monte Castelo, que começou na manhã de 28 de novembro, tudo conspirou contra os brasileiros. Na noite passada, as tropas americanas foram rechaçadas do Monte Belvedere, ao lado, deixando aquele flanco a descoberto, em poder dos alemães, o que tornava mais arriscada a aventura. Durante o dia todo o avanço se deu bem, tão bem que valia à pena desconfiar que alguma surpresa estava sendo preparada. Com efeito, ao final do dia, acelerou-se o contra-ataque alemão, acompanhado de pesados bombardeios, obrigando as tropas brasileiras a um recuo rápido e inesperado. O avanço mal-sucedido deixou um triste resultado: 34 mortos e 133 feridos. A operação toda fora planejada pelo tenente-coronel Castelo Branco, ao qual foram debitados os maus resultados. O Monte Castelo permanecia um desafio e não deixava escolha: ou se fazia uma nova tentativa para conquistar a fortaleza, ainda que com perdas sensíveis em homens, ou o fantasma continuaria a perseguir os brasileiros, minando o ânimo e dificultando, senão impedindo o ataque a outros alvos.

Terceiro ataque a Monte Castelo Os próximos dias foram de avaliação e, testando o poder do inimigo, houve algumas escaramuças entre forças brasileiras e alemãs, sem que qualquer dos lados se

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aventurasse a um ataque mais consistente. Aliás, a essa altura, os alemães já compreendiam bem a importância de Monte Castelo. Assim, sua intenção não era a de avançar, mas sim de manter, a todo custo, essa posição privilegiada. Informações colhidas de prisioneiros e de guerrilheiros (partegiani) davam conta de que os alemães estavam recebendo reforços, o que tornava cada dia mais difícil e incerta a tomada de Castelo. Como se não bastasse, as chuvas frias e constantes enlameavam as estradas e tornavam difícil o abastecimento. Já ocorriam as primeiras nevascas, anunciando um inverno que, nos meses seguintes, faria os termômetros baixarem a 20 graus negativos. O novo ataque estava programado para 12 de dezembro de 1944. Nesse dia, chuvas nublaram os céus, impedindo as incursões da Força Aérea. E muita lama, inutilizando as estradas, impediu o avanço dos tanques, presos em atoleiros. Ali pelas seis horas da manhã, a artilharia americana começa a bombardear o Monte Belvedere, enquanto tropas brasileiras avançam em direção ao pé do Monte Castelo. É então que a artilharia alemã se faz sentir sobre os pracinhas, em toda sua intensidade, e com o contra-ataque vindo de todos os lados do monte. Impedidos de prosseguir, os brasileiros receberam ordem de bater em retirada, para evitar maiores baixas, além dos mortos e feridos já registrados naquele início de noite. O recuo não foi bem recebido pelo comando americano, sendo opinião de alguns de seus comandantes de que o Brasil deveria ser afastado das linha de ataque, por falta de espírito ofensivo. Com efeito, nos meses de dezembro e janeiro, a FEB ficou com tarefas menores, apenas acompanhando a movimentação inimiga.

Enfim, Monte Castelo é nosso Uma outra data foi marcada para a tomada do Monte Castelo: 21 de fevereiro de 1945. Nas primeiras horas da manhã, a Divisão da Montanha (americana) marchou sobre o Monte della Torraccia, ao norte do Monte Castelo, depois de guarnecido o Monte Belvedere e montanhas próximas a ele. Cumprindo seu papel, a FEB, partindo de suas posições, desfechou um formidável ataque ao Monte Castelo, movimentando toda a artilharia e dois terços da infantaria. O

ataque cerrado se prolongou pelo resto do dia. Às quatro horas da tarde, o posto de observação do general Mascarenhas recebeu uma visita em peso do comando americano, incluindo o comandante do 4º Corpo, general Crittenberg e o próprio comandante do 5º Exército, general Mark Clark. Alem de seu apoio moral, estes deixaram a recomendação para que o ataque fosse intensificado, evitando serem apanhados de surpresa com a chegada da noite, que favoreceria mais aos alemães, familiarizados com o local. Assim se disse, e assim se fez. A artilharia intensificou o bombardeio, enquanto a infantaria avançou ao cume da montanha, que foi dominado pelos soldados do general Zenóbio da Costa, às seis e meia da tarde. Finalmente, Monte Castelo era nosso e iniciavam-se os preparativos para a manutenção do ponto conquistado. Se este foi o mais pesado de todos os ataques a Castelo, nem por isso produziu maiores baixas que os anteriores, pelo contrário, o balanço geral nos foi bastante favorável, com apenas 41 feridos. Refeito o moral das tropas brasileiras, sanado o orgulho, duramente atingido com as derrotas anteriores, os pracinhas se dedicaram a outra missão igualmente importante, que era resgatar os corpos dos 14 companheiros que ficaram insepultos quando da derrota de 12 de dezembro, os quais se achavam espalhados pelas encostas, cobertos de neve, em terreno minado. Deu muito trabalho, mas a missão foi cumprida. Estava dada a resposta aos comandantes americanos que insistiam pelo afastamento do Brasil dos campos de batalha. Monte Castelo já estava conquistado, enquanto que, até aquele momento, a 10ª Divisão da Montanha ainda não havia conseguido dominar um alvo mais fácil que lhe foi atribuído, o Monte della Torraccia.

Conquista de Castelnuovo O próximo alvo a ser atingido era Castelnuovo, a noroeste do Monte Castelo, no caminho em direção a Bolonha. O cerco foi planejado para o dia 5 de março de 1945, quinze dias após a tomada do Castelo. Como da outra vez, a operação envolvia a Força Expedicionária Brasileira, em conjunto com a 10ª Divisão da Montanha.

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O cerco se iniciou pela manhã, quando o 1º Batalhão do 11º Regimento de Infantaria obteve o controle de Precária, ao sul de Castelnuovo. Logo depois, o 2º Batalhão domina também o Sudeste. Horas depois, os norte-americanos dão sinal combinado para o avanço geral e o cerco vai se fechando sobre o inimigo, de forma quase que perfeita. Ainda assim, o general Crittenberg telefonou, reclamando do vagar com que avançavam os brasileiros e alertando que, nesse caminhar, a noite os pegaria ainda na luta. Desnecessária era a reclamação. Se as tropas tiveram seu avanço retardado pelo terreno cheio de minas, não é menos verdade que, pelas seis horas da tarde, Castelnuovo já estava conquistado. Foram aprisionados 98 alemães, com registro de 70 baixas em conseqüência de ferimentos. Durante o restante de março, e ao início de abril, dentro da “Ofensiva da Primavera”, as tropas conseguiram um avanço relativamente fácil, até se depararem com outro alvo complicado, que exigiria novos atos de heroísmo. Era a tomada de Montese.

A tomada de Montese Em 8 de abril de 1945, os generais ligados ao 4º corpo se reúnem em torno do general Crittenberg para estudarem, juntos, os planos de ataque a Montese, a noroeste de Castelnuovo, onde era grande a concentração de tropas alemãs. No dia 12 de abril, inicia-se um ataque conjunto em toda a região. A FEB avança sobre Montese e Sorreto, enquanto que a 10ª Divisão da Montanha persegue seu objetivo, alcançando Monte Pigna, Le Coste e Tole, com a cobertura de aviões de combate. Ainda que não tendo o mesmo simbolismo da conquista de Monte Castelo, as batalhas em Montese foram árduas, situando-se entre as mais difíceis que os pracinhas enfrentaram nos campos da Itália. A resistência inimiga foi feroz e infernizou a vida dos brasileiros. Se, de um lado, conseguimos fazer 452 prisioneiros, de outro, tivemos 426 baixas, incluindo-se nelas 34 mortos. Igualmente heróica foi a operação da Divisão da Montanha que abriu um flanco na unidade alemã, deixando uma brecha para a passagem de forças em direção ao noroeste, onde se acham os Montes Apeninos.

Em Fornovo, a consagração É na região dos Apeninos que fica Fornovo, para onde seguem, agora os

brasileiros, com a missão de impedir o avanço da 148ª Divisão Alemã, que se acha ali acantonada, juntamente com remanescentes da 90ª Divisão Blindada e da Divisão de Atiradores (Bersagliari), que prosseguiram na luta junto aos alemães, mesmo depois da rendição da Itália. Era uma força considerável, reunindo perto de 15.000 homens em condições de combate. Desta vez, não havia qualquer apoio externo, seja da Divisão da Montanha, ou dos aviões de combate, ou dos tanques. A estratégia de ataque e o pessoal envolvido era todo da FEB. O inicio do avanço estava programado para 28 de abril de 1945. As tropas brasileiras se concentraram ao norte, na área de Collechio, que acabaram de conquistar, e dali partiram em três alas, atacando simultaneamente pelo norte, pelo sudeste e pelo sudoeste de Fornovo e, não obstante a resistência enfrentada, os alemães permaneceram encurralados, mantendo sua praça, mas sem condições de avanço ou recuo. Contando com o auxílio do vigário da localidade de Neviano di Rossi, o comando brasileiro mandou um ultimato ao comandante da 148ª Divisão alemã, general Otto Fretter Pico intimando-o a render-se para evitar um desnecessário derramamento de sangue. Este tentou ganhar tempo, dizendo que iria consultar seus superiores. Pode parecer audácia brasileira, ou pelo menos um blefe, a intimação enviada ao comando alemão, ratificada depois como ordem de rendição incondicional. Não era, todavia um ato impensado. As coisas não iam bem para as forças do Eixo. No dia anterior, Benito Mussolini fora preso e fuzilado. Nos campos da Europa, a Alemanha perdia terreno a olhos vistos e a luta dos alemães na Itália não oferecia, àquela altura, grande motivação. O momento era, assim, propício para deter aquela valiosa concentração de soldados alemães. Nessas circunstâncias, os inimigos, finalmente, renderam-se aos brasileiros, depondo suas armas. Tanto o general Otto Fretter Pico, comandante da 148ª Divisão alemã, quanto o general Mário Carloni, comandante da Divisão Bersagliari italiana, foram escoltados até Florença e ali entregues ao comando do 5º Exército americano.

Desfecho da guerra Os brasileiros improvisaram um campo cercado, onde foram abrigados, como

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podiam, os 14.779 alemães e italianos, feitos prisioneiros após a rendição. Poderiam até fugir se quisessem. Para onde e para que ? Três dias depois, morria Adolph Hitler e, em 8 de maio de 1945, era assinado o armistício, dando fim à guerra na Europa. Restava apenas o Japão que se renderia em 14 de agosto de 1945. O mundo respira aliviado. Os pracinhas também, carregando consigo as marcas indeléveis da guerra, mas trazendo no peito o orgulho de um dever cumprido. O Brasil estava esperando por eles. Primeiro, os que tiveram a felicidade de voltar vivos. Depois, os que estavam no cemitério de Pistóia, que foram, a seu tempo repatriados e ganharam uma digna sepultura em sua própria terra. Lá fora, a liberdade, fora conquistada. Aqui dentro, permanecia a ditadura do Estado Novo.

* * *Capítulo Vinte-e-doisLIBERDADE, AINDA

QUE TARDIAO fim do Estado Novo

O caminho do Brasil rumo à democracia, após quinze anos de Getúlio Vargas, não foi uma dádiva do Estado Novo, mas uma conquista da sociedade. Não se fez por decreto, mas pela atuação das elites, dentro e fora do governo, as quais, a duras penas, foram cortando o cipoal de regras e proibições criado pela ditadura, e construíram uma trilha que permitiu chegar, com segurança, às eleições gerais. Fatores externos contribuíram para a formação de um consenso entre civis e militares sobre a necessidade da abertura política. O Brasil estivera em guerra contra o fascismo e o nazismo desde 1942 e, em 1944, a Força Expedicionária Brasileira partiu para a Itália, a fim de defender as democracias confiscadas pelas ditaduras nazi-fascistas aos países do velho mundo. Lutando pela democracia, centenas de pracinhas morreram longe de sua pátria e, os que voltaram, trouxeram dos campos de batalha seqüelas que os acompanhariam pelo resto de suas vidas. Tudo para, de volta ao Brasil, encontrar aqui, ainda em pleno funcionamento, uma ditadura igual às que foram combater lá fora. O impacto provocado por essa disparidade, se foi grande entre os pracinhas

que, terminada a missão, tiraram a farda e voltaram à atividade civil, maior ainda se tornou no espírito dos oficiais, que permaneciam nas atividades de caserna, dando retaguarda ao Estado Novo. Assim, era natural que os militares, tal como os civis, se engajassem na luta pela restauração das liberdades no país, dando ao Brasil condições de participar da Conferência de Paz, de cabeça erguida, par a par com as demais democracias ocidentais.

Trilha aberta pelos democratas Já no início dos anos quarenta, Getúlio Vargas, com o apoio de seu ministro das Relações Exteriores, Osvaldo Aranha, incentivara a criação da UNE - União Nacional de Estudantes, na qual esperava introduzir pelegos, como o fizera nos sindicatos, de maneira a controlar a atividade estudantil. O tiro saiu pela culatra, pois a UNE, desde cedo, manifestou o espírito rebelde da juventude, disposta sempre a reformar o mundo, e sem perda de tempo. Com o afundamento dos primeiros navios mercantes brasileiros, feito por submarinos alemães, em 1942, começaram a surgir manifestações pela entrada do Brasil na guerra contra o nazi-fascismo, as quais desaguavam, quase sempre, no protesto contra o fascismo de Getúlio Vargas. Dentro desse contexto, no Rio de Janeiro, a UNE promoveu uma grande passeata de estudantes, cuja guerra era o assunto menor. O tema que dominou as manifestações foi o combate ao totalitarismo do Estado Novo no Brasil. O chefe de Polícia, Filinto Müller tentou, sem sucesso, dissolver a passeata. Fracassando em sua missão, foi afastado da Chefatura de Polícia. Outros protestos semelhantes aconteceram por todo o país, pondo em cheque a capacidade do governo em continuar contendo as manifestações de massa contrárias à ditadura.

Manifesto dos Mineiros Em 1943, surgiram pronunciamentos de vários setores da vida nacional. A Ordem de Advogados do Brasil, por exemplo, protestou contra as arbitrariedades que vinham sendo praticadas por alguns setores do governo. No mesmo ano, foi lançado o Manifesto dos Mineiros, assinado sobretudo por banqueiros de Minas Gerais, com data de 2 de novembro de 1943 (Dia de Finados). Nesse documento, os signatários louvavam a coragem dos homens que fizeram a

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revolução em 1930, mas lastimavam que muitos dos vícios da Primeira República acabaram sendo incorporados ao novo regime, que governava de cima para baixo, impedindo a nação brasileira de participar na formação de seu próprio destino. Em certo ponto, diz o documento: “Não foi esse o espírito de vida que aspiramos no passado e não é o que almejamos no futuro. A prosperidade nos negócios, o êxito nas atividades profissionais, a riqueza, o conforto, o gozo de tranqüilidade fácil todos os dias, mesmo que existissem, não esgotariam as nossas aspirações, nem resumiriam a nossa concepção do destino humano.” A distribuição do manifesto foi realizada em segredo, chegando a vários setores de liderança da vida nacional, mas todo cuidado não impediu a reação do governo central, punindo severamente os signatários. O Banco Hipotecário, de que Pedro Aleixo e Afonso Pena eram diretores, foi encampado pelo valor nominal das ações, com sérios prejuízos aos acionistas, já que o valor patrimonial era bem mais elevado. José de Magalhães Pinto teve de demitir-se do Banco da Lavoura, para evitar que este sofresse o mesmo tipo de intervenção. Virgílio de Melo Franco foi exonerado do Banco Alemão Transatlântico. Adauto Lúcio Cardoso foi aposentado compulsoriamente no Lóide Brasileiro. E assim por diante. O maior divulgador desse documento foi, sem dúvida, o próprio governo federal, pois se a censura, de um lado, tinha poder para vetar a publicação do manifesto, de outro lado, não conseguia evitar a divulgação destes acontecimentos, já que se tratava de atos de governo, publicados no Diário Oficial. O manifesto, pois, graças à reação do Estado Novo, ganhou uma notoriedade bem maior que a prevista inicialmente. Custou muito aos signatários mas, depois da reação oficial, não era mais possível tapar o sol com uma peneira, cuja malha se tornava cada vez mais ampla, deixando passar com energia os raios prenunciadores de uma liberdade não muito distante.

Vencida a força da inércia O ano de 1944 prossegue com contínua efervescência, mas a atenção maior está voltada para a Força Expedicionária Brasileira, que parte para a Itália, onde vai participar da guerra ao lado da 5ª Divisão americana.

Ao contrário, no ano seguinte, o aparentemente indestrutível dique autoritário, obra da engenharia do Estado Novo, começa a rachar, gerando por todos os lados a vazão incontrolável da vontade das elites pelo retorno à democracia. Dizemos “das elites” porque, excetuando-se ação da UNE, não há qualquer movimentação popular pela queda de Getúlio e o retorno à normalidade, muito ao contrário, o Estado Novo tinha pleno controle das atividades sindicais e do operariado. Em 27 de janeiro, publica-se a Declaração de Princípio dos Escritores; depois, o Manifesto dos Jornalistas, em 10 de março; no dia seguinte, outro manifesto no mesmo sentido, este assinado pelos artistas plásticos. A imprensa oposicionista, ainda sob o regime de censura, não mais se cala e passa a noticiar os fatos, comentando-os com ousadia. A polícia, encarregada de conter esses abusos, evita agir contra todos os jornais de oposição, para não provocar uma repercussão maior, principalmente junto às embaixadas estrangeiras sediadas no Rio de Janeiro, que acompanhavam com atenção a evolução dos acontecimentos, de tudo informando aos seus respectivos governos. Entre março e abril, a UNE, juntando-se a dezenas de outras entidades estudantis, promove a Semana Pró-Anistia e realiza um grande comício no Rio de Janeiro. A força da inércia estava vencida e a campanha pela redemocratização caminhava com motivação própria, à revelia do Estado Novo e de suas leis de arrocho.

Entrevista de José Américo Foi ainda pelo mês de março de 1945 que o jornalista Carlos Lacerda procurou José Américo convencendo-o a dar uma entrevista para o “Diário Carioca”, na qual aquele político, líder de proa na revolução de 1930, contesta a legitimidade do Novo Regime. O jornal não a publicou de imediato, achando não ser aquele o momento oportuno. José Américo procurou, então outros órgãos de imprensa, propondo uma divulgação simultânea, o que dificultaria uma eventual punição. O assunto transpirou e a idéia teve de ser arquivada, para a satisfação do chefe de Polícia, Benjamim Vargas, que acreditava ter dominado a insubordinação apenas com o ar de sua presença. Ledo engano. O Diário Carioca vinha apenas tomando medidas de precaução para

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garantir-se contra qualquer represália. Como a importação de papel dependia de autorização do governo, tratou de abastecer-se o suficiente para poder enfrentar os dias de “retranca” que, por certo, viriam. Então, um dia, inesperadamente, a entrevista saiu, mas publicada pelo Correio da Manhã. A edição esgotou-se antes que pudesse ser apreendida pela polícia. E, sinal dos tempos, não houve repressão ostensiva ao jornal.

Movimentos conspiratórios Nesse meio tempo, três movimentos conspiratórios se desenvolviam, cada um com motivação diferente, mas todos caminhando irreversivelmente para a mudança do regime. O primeiro tinha ao centro o próprio presidente Getúlio Vargas, cercado por alguns amigos que lhe eram realmente fiéis. Outros, como Osvaldo Aranha e Virgílio de Melo Franco já haviam bandeado para a oposição. Até o jurista Francisco Pinto, autor da Constituição do Estado Novo, havia abandonado o chefe. Mas Getúlio ainda contava, por exemplo, com o interventor de Minas, Benedito Valadares, com o interventor de Pernambuco, Agamenon Magalhães e com alguns militares da alta oficialidade. Uniu-se aos pelegos sindicais e conseguiu que fossem realizadas manifestações de rua pela nova constituição, usando o slogan “Constituinte com Getúlio”. Era o continuismo no governo. A 180 graus, se achavam os que se opunham a Getúlio pelas mais diversas razões: antifascistas, socialistas, comunistas não ligados a Prestes, ou líderes que, por qualquer outra razão, desejavam ver Getúlio fora do poder. Estes pediam a imediata renúncia do ditador, exigindo a entrega do poder, sem demora, ao presidente do Supremo Tribunal Federal. Estavam reunidos em uma frente partidária ampla, a União Democrática Nacional (UDN) e usavam como mote a frase “Constituinte com o STF”. A terceira corrente era formada pela alta oficialidade das Forças Armadas e tinha como mentores nada menos que o ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, e seu fiel escudeiro, Pedro Aurélio de Góis Monteiro. Este último, a pretexto de solidarizar-se com o ministro demissionário Osvaldo Aranha, renunciou igualmente a uma função oficial no Uruguai e voltou ao Rio de Janeiro, a tempo de ser recebido com

tapete vermelho, banda de música e a presença dos mais altos oficiais das Forças Armadas, entre eles, o próprio ministro da Guerra.

Simbiose entre Dutra e Góis Quem quer que se ponha a estudar a história da Segunda República (1930-1945), ficará impressionado com a perfeita simbiose entre Eurico Gaspar Dutra e Góis Monteiro. São dois temperamentos e personalidades totalmente distintos, mas que se somam e se completam, formando uma unidade monolítica. Dutra e Góis se conheciam desde a infância e mantinham uma amizade que já durava mais de quarenta anos. Góis atingiu o generalado após a revolução de 1930, de que foi comandante. Dutra tornou-se general após a revolução de 1932 quando, à frente das tropas legalistas na divisa Minas-São Paulo, impediu o avanço dos soldados constitucionalistas através de Minas Gerais. Quando Góis era ministro da Guerra, em 1935, Dutra comandava a aviação militar. Góis renunciou, sendo substituído pelo general João Gomes Ribeiro Filho. No mesmo instante, Dutra assume o comando da 1ª Região Militar, onde combate a Intentona Comunista de 27 de novembro. Pouco depois é nomeado Ministro da Guerra, em substituição a João Gomes. Com Dutra no Ministério da Guerra, Góis Monteiro se reaproxima do governo. Estava formada a dupla. Em 9 de agosto de 1945, Dutra, candidato às eleições, deixou o ministério, assumindo em seu lugar Góis Monteiro. Ambos continuavam agindo em pleno acordo. Dutra era um militar com espinha dorsal inflexível. Andava quase sempre fardado. Assumia suas posições sobre um determinado assunto e, a partir daí, não arredava pé. Por fidelidade ao governo de Washington Luís, combateu a revolução de 1930. Por fidelidade ao governo Getúlio Vargas, combateu a Revolução Constitucionalista de 1932 e, depois, a Intentona Comunista, em 1935. Tinha uma só palavra, era confiável, mas o problema é que não conseguia colocar suas idéias. Sentia enormes dificuldades para se expressar, gaguejava quando precisava falar de improviso e, a duras penas, expunha seus pensamentos nos despachos com o Presidente, ou no contato com seus subordinados.

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Góis era o avesso de tudo isso. Bem aparentado, andava quase sempre em trajes civis, geralmente um terno de linho amassado e um chapéu panamá que lhe completava o figurino. Tinha plena fluência verbal, uma fala amistosa e atraente, capaz de conquistar amigos e iludir com suas palavras a mais desconfiada das criaturas. Mas sua personalidade era titubeante. Nunca se sabia o que de fato passava pela sua cabeça, nem os planos, por vezes diabólicos, que se escondiam por trás de suas cativantes mensagens. Eram, pois, duas metades que se completavam, formando um bloco sólido e arrasador. Sozinhos, a ação era dificultada pelas limitações de cada um. Juntos, todas os limites eram ampliados até o infinito. Nesta conspiração, vamos encontrá-los, uma vez mais, juntos. Ambos perseguiam um objetivo muito bem identificado, que era o da redemocratização do país sem mais demora, com o fim da era Vargas. Se possível, por bem. Se necessário, por mal.

Sociedade dos Amigos da América Mostrado o cenário e apresentados os principais personagens, vamos à peça, desde o princípio. Osvaldo Aranha, que era nosso embaixador nos Estados Unidos, retorna ao Brasil e assume o Ministério das Relações Exteriores. Pela mesma época, Pedro Aurélio de Góis Monteiro é nomeado representante do Brasil no Comité de Emergência e Defesa Política da América, com sede no Uruguai. No final de 1942, o general Manuel Rabelo (que foi interventor em São Paulo no atribulado ano de 1932) fundou a Sociedade dos Amigos da América, que pretendia exaltar vultos históricos que contribuíram para a independência dos países latino americanos, entre eles, o próprio “Patriarca da Independência” do Brasil, José Bonifácio. Cumprindo determinações legais, foi obtida permissão do chefe de Polícia, coronel Alcides Etchegoyen para funcionamento. Rabelo tornou-se Presidente da entidade, ficando o chanceler Osvaldo Aranha como vice. A iniciativa contou com a simpatia, quando não com apoio ostensivo de vários embaixadores, entre eles, Jefferson Caffery, da Embaixada americana. Passado algum tempo, na Chefatura de Polícia, sai Etchegoyen e entra Coriolano de Góis. Com este, em 11 de agosto de 1944, a sede da Sociedade foi, inopinadamente,

invadida e fechada, sem que houvesse um motivo sério para isso. Como seus participantes, desafiando a ordem policial, resolveram levar a efeito um almoço no salão de festas do Automóvel Clube, a polícia agiu com maior rigor, esvaziando o local e fechando também esta associação. Osvaldo Aranha, que era vice-Presidente da entidade, demite-se do Ministério de Relações Exteriores, rompendo com o governo. Muito embora a Sociedade dos Amigos da América tenha recebido autorização para reabrir, em 5 de abril de 1945, as relações entre Aranha e Getúlio ficaram estremecidas por longos anos, privando o ditador de seu melhor amigo e conselheiro, justamente quando mais precisava dele.

Góis Monteiro de volta ao Brasil Góis Monteiro, já sabemos, estava em missão oficial no Uruguai. Ao ser comunicado por Aranha dos últimos acontecimentos, demite-se e volta ao Brasil, passando primeiro por São Paulo e seguindo depois ao Rio de Janeiro, onde é recebido com uma pompa inusitada. É ele mesmo quem conta: “Ao desembarcar na ‘gare’ Pedro 2º, tive a surpresa de uma recepção festiva, fato raro no transcurso de minha vida. Todos os generais de serviço no Rio de Janeiro, à frente do Ministério da Guerra, estavam presentes, em uniforme militar, banda de música, guarda de honra, etc. Não deixei de ficar sensibilizado, mas pude logo compreender que ainda esperavam de mim alguma atuação no cenário nacional.” A chegada de Góis ao Rio de Janeiro coincidiu com um almoço no Iate Clube em homenagem ao ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, contando com a presença maciça dos generais em atividade no Distrito Federal. A ele compareceu Góis Monteiro, como convidado especial. Quebrando o protocolo, o ministro Eurico Gaspar Dutra foi saudado, não pelo chefe do EMFA, mas pelo general Cristóvão Barcelos, o mesmo que, dez anos antes, havia sido o pivô da querela em torno das eleições no Rio de Janeiro, quase provocando uma guerra civil naquele Estado. A estranheza foi maior, porque o orador não só era adversário do Presidente, como também do próprio Ministro, ao qual saudava naquele momento.

Góis e Dutra juntos outra vez Em encontro informal, já que Góis Monteiro não exercia naquele momento

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qualquer cargo de governo, o ministro da Guerra relata a ele a evolução dos acontecimentos no Brasil e lhe pede que interceda junto a Vargas para a convocação de uma Assembléia Constituinte. Acentuou que, ao clamor da sociedade civil, se opunha a atitude do Presidente, que caiu num mutismo total, deixando sua equipe desorientada, por não saber quais eram suas reais intenções, se pretendia a abertura, em que grau essa abertura se daria, se ele seria candidato a uma reeleição, ou se indicaria outro pretendente. Essa falta de informações em nada ajudava uma transição pacífica do regime. Góis tinha mesmo um pretexto para aparecer no Palácio, pois pretendia justificar seu pedido de demissão e abandono da missão no Uruguai. Esse era o momento para levantar o assunto e manifestar seus pontos de vista. Aliás, Getúlio apreciava a fluência e a clareza de raciocínio do general e não se furtava à troca de idéias com ele, permitindo sempre uma conversa franca, ainda que, ao final, fizesse aquilo que tinha em mente, sem influências externas.

Outra face da conspiração Realmente, em audiência com Getúlio, dias após, Góis Monteiro comentou o almoço do Iate Clube e transmitiu-lhe suas apreensões sobre o ânimo nos altos escalões do Exército, aconselhando-o a se antecipar aos acontecimentos, convocando uma Assembléia Nacional Constituinte. Nem era preciso o palpite de Góis. O Presidente já sentira de há muito a mudança de ares e tinha dado mais um avanço em sua estratégia para conservar-se no poder. Com a saída de Francisco Campos do Ministério da Justiça, essa pasta foi entregue interinamente ao ministro do Trabalho, Alexandre Marcondes Machado Filho, incumbido também de preparar um anteprojeto de Constituição. Não que Getúlio pretendesse realmente convocar uma Constituinte, pelo contrário, seus planos contemplavam uma constituição novamente outorgada por ele, como a de 1937, que mudasse o regime, mas sem os inconvenientes de um parlamento a lhe atalhar os passos e dificultar a administração do país. A escolha do ministro do Trabalho se fez sob medida e estava dentro do figurino, pois era intenção do ditador fazer renascer os planos do integralista Plínio Salgado, ora no

exílio, o qual preconizava o país governado por um homem forte, com o apoio de um Congresso eleito por sindicalistas e não por um eleitorado de universo mais amplo. Aliás, Juan Domingo Peron acabara de implantar algo semelhante na Argentina, com o mais absoluto sucesso. Assim, colocando Marcondes Filho como interino no Ministério da Justiça, o anteprojeto poderia ser desenvolvido sem despertar suspeitas, por se tratar de assunto ligado a esta Pasta. Paralelamente, ia tomando medidas de distensão política, para deixar patente sua boa fé no processo de democratização.

Avanços registrados Marcando intenção governamental de liberar o regime, em 15 de março de 1945, é criada uma comissão para elaborar a legislação eleitoral. No que tange à anistia, Getúlio declarou que o assunto, por envolver vários problemas correlatos, não seria objeto de estudo agora, ficando para o Congresso a ser eleito oportunamente. Era uma tentativa de protelação. Todavia, o Supremo Tribunal Federal, em 11 de abril de 1945, assegurou aos exilados políticos o direito de retornarem ao país, abrindo uma brecha para reivindicações em favor dos que se achavam encarcerados por motivos políticos. Assim, em 18 de abril, o Presidente assina o Decreto-lei 7.474, que concede anistia aos presos políticos. Com esses dois acontecimentos, voltam à atividade velhos adversários do Estado Novo, reforçando ainda mais a idéia da convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. Apenas causou estranheza o apoio que os comunistas “de carteirinha”, comandados por Luís Carlos Prestes, emprestaram ao governo Vargas, após serem libertados os seus líderes. Eram todos remanescentes da Intentona de 1935, que pretendia derrubar Getúlio, e agora estavam ao seu lado, sob o pretexto de defender a causa operária. Nunca se soube ao certo, mas comentários surgiram sobre um acordo entre Prestes e o Estado Novo, em que o líder comunista evitaria hostilizar o governo e, em troca, este permitiria a legalização do partido para concorrer as eleições, o que, de fato, acabou acontecendo. Pressionado, Getúlio Vargas finalmente convoca eleições, fixando a data de 2 de dezembro de 1945 para a escolha do Presidente e Congressistas, bem como o dia 6 de maio de 1946 para as eleições

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estaduais. Não satisfez os anseios políticos e, assim, recuou uma vez mais, transformando o dia 2 de dezembro em eleições gerais, para Presidente, Congresso, Governadores e Assembléias Legislativas. Ficavam de fora apenas os pleitos para prefeito e vereadores. Por fim, para acalmar descontentes, traz Agamenon Magalhães para o Rio de Janeiro, nomeando-o Ministro da Justiça, com o que Marcondes Filho volta a cuidar apenas da pasta do Trabalho. Isso acaba com os atritos entre o Ministro e a dupla Dutra-Góis Monteiro, facilitando assim a aproximação do governo com os militares. Tendo Agamenon à frente da Pasta, foi redigido o Ato Adicional nº9 (em realidade tratava-se uma emenda à Constituição mas as modificações eram tantas que a imprensa denominou-a como Ato Adicional, ou Lei Constitucional, e assim era ela referida no noticiário).

Voltam os partidos políticos Com a fixação da data para as eleições, a edição do Ato Adicional e a publicação da legislação eleitoral, iniciou-se a formação dos partidos políticos, que, por dispositivo da lei, precisavam ter âmbito nacional, sendo vedada a formação de agremiações estaduais, como acontecia na Primeira República. Assim, juntaram-se os remanescentes dos vários partidos republicanos estaduais da República Velha, representando a mais genuína expressão conservadora no país. Com esses velhos caciques, fundou-se o PSD – Partido Social Democrático. Era um bloco heterogêneo, em que as correntes estaduais se mantinham vivas e atuantes e, por isso, tornou-se comum a referência ao PSD gaúcho, ou PSD paulista, ou PSD mineiro, revelando as tendências políticas de cada bloco. Getúlio Vargas foi eleito presidente de honra do PSD. Como esse partido trazia de volta as oligarquias, sendo, pois, incompatível com as massas populares das grandes cidades, tornava-se necessária outra organização voltada para o trabalhismo, não um partido de trabalhadores, mas um partido para trabalhadores, que pudesse atuar junto a eles e exercer-lhes domínio. Surgiu, assim, o PTB – Partido Trabalhista Brasileiro, do qual o ditador tornou-se, também, presidente de honra.

Por fim, os adversários de Vargas, de todas as tendências políticas e com as mais variadas motivações, reuniram-se em torno de uma frente única, a UDN – União Democrática Nacional. A UDN saiu adiante de todos, lançando a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da República. O PSD e o PTB permaneceram em compasso de espera, aguardando uma definição de Getúlio que, ao fim, optou pelo nome de seu ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, enquanto nos bastidores jogava sua última cartada para embaralhar o processo, como o fizera em 1937. De menor repercussão, o Partido Comunista Brasileiro, outra vez na legalidade, lança o nome do engenheiro Yedo Fiuza, totalmente desconhecido do grande público, não querendo jogar a sorte com seu maior trunfo, o legendário Prestes. Surgiu também o Partido Agrário, com o nome de Rolim Teles, que não disse a que veio.

Campanha eleitoral Após longos anos, a população viu, novamente, a movimentação das ruas, com passeatas e comícios políticos, aos quais o povo acorria com grande entusiasmo, embora a presença curiosa a essas manifestações não representasse necessariamente uma intenção de voto por este ou aquele candidato. Quem tem maior facilidade de comunicação é o brigadeiro Eduardo Gomes, o último representante da Revolta do Forte, em 1922. Dos quatro tenentes que participaram da marcha dos “Dezoito do Forte”, Carpenter e Newton Prado morreram naquele confronto; Siqueira Campos sobreviveu até 1930, quando morreu, vitimado por um desastre aéreo. Eduardo Gomes ressurge agora como um símbolo de união entre o eleitorado de hoje e os movimentos tenentistas dos anos vinte. A experiência veio mostrar que essa candidatura tinha livre acesso à classe média, mas era enorme a sua dificuldade em repercutir nas camadas mais humildes. O trabalhismo voltava-se para Getúlio Vargas e, na sua ausência, para a candidatura do general Eurico Gaspar Dutra. A população rural permanecia sob a influência dos “coronéis”, que ressurgiam com o Partido Social Democrático, voltado igualmente para o candidato oficial. Assim, pois, o espaço

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deixado à União Democrática Nacional e ao seu candidato era muito pequeno. A campanha eleitoral ficou polarizada entre as duas candidaturas militares e, confrontando Eduardo Gomes e Eurico Gaspar Dutra, este último ganhava terreno na disputa. Ao lado dos dois, por fora da raia, corria o presidente Getúlio Vargas, tentando uma última cartada para permanecer no poder.

Golpe que falhou Em outubro de 1945, era ministro da Guerra Góis Monteiro, em substituição a Eurico Gaspar Dutra, que se desencompatibilizou do cargo para assumir a candidatura à presidência da República. Na Chefatura de Polícia, estava João Alberto, revolucionário de 1930 e pivô da revolução de 1932. O ministro não confiava no ditador do Estado Novo e tinha convicção de que, por trás da abertura política, se escondia uma conspiração para garantir a permanência de Vargas no poder. A presença de João Alberto na Chefatura dePolícia era uma garantia da ordem e os dois (Góis Monteiro e João Alberto) tinham entre si um compromisso pessoal de trocar informações, permitindo detectar qualquer tentativa de minar o caminho rumo às eleições. No dia 29 de outubro de 1945, uma segunda-feira, logo pela manhã, João Alberto telefona a Góis Monteiro e lhe pede que, de caminho ao Ministério, o apanhe à porta de sua casa, pois necessita falar-lhe urgentemente. No automóvel, João Alberto revela ao ministro que estava sendo substituido na Chefatura de Polícia, pois o Presidente desejava nomeá-lo Prefeito do Distrito Federal, em substituição a Henrique Dodsworth. Tal substituição contrariava toda a lógica, pois João Alberto desempenhava satisfatoriamente suas funções na polícia e Dodsworth era um dos melhores prefeitos que o Rio de Janeiro já teve, tanto que se achava no cargo desde a implantação do Estado Novo. A informação que se seguiu, completou o quebra-cabeças. Para o lugar de João Alberto, na Chefatura de Polícia, estava sendo nomeado Benjamim Vargas, o irmão do presidente da República. Era o sinal esperado. Reforçando posições estratégicas, o Presidente se preparava para um novo golpe de Estado, e

Góis bem o sabia, partícipe que fora do golpe de 1937.

Muito perto do fim Ao chegar ao gabinete, lá pelas oito horas da manhã, o ministro da Guerra pôs em marcha todo um plano de defesa já traçado e debatido com os chefes de comando. Primeiro, preparou uma carta, demitindo-se do cargo. Essa carta jamais foi entregue, mas era a primeira providência para começar as articulações contra o governo, que não poderiam ser feitas ocupando oficialmente o Ministério. Em seguida, ordenou que fossem remetidos telegramas criptografados a todos os comandantes de Regiões Militares, avisando-os de que deveriam pôr em vigor a “Diretiva nº1” que era um plano, previamente traçado, para garantir a ordem, quando esta fosse ameaçada pela subversão. Ao comandante da 1ª RM, sediada no Rio de Janeiro, as instruções foram mais específicas: Deveria estabelecer regime de prontidão e, em coordenação com as outras duas forças, a Marinha e a Aeronáutica, assumir o controle da Polícia Militar, da Light (serviços de força e luz), dos Correios e Telégrafos, das vias férreas e de todos os setores estratégicos à segurança. Pela manhã, Dutra foi chamado ao Ministério e, ciente das medidas tomadas, colocou-se à disposição, dirigindo-se às unidades militares de São Cristóvão, em companhia do general Canrobert Pereira da Costa, para ultimar outras providências. O segundo candidato à presidência, Brigadeiro Eduardo Gomes, também foi chamado ao Ministério da Guerra, só podendo comparecer no período da tarde, já que não tinha sido localizado antes.

Desfecho Foi à tarde que o clima se tornou mais tenso no Ministério, com a presença de várias personalidades civis e militares, tentando colocar-se a par da situação e tomar uma posição. Entre os visitantes, se achava Benjamim Vargas, para comunicar ao Ministro da Guerra que acabara de assumir a Chefatura de Polícia, colocando-se à sua disposição. Porém, ao tomar conhecimento dos fatos, retirou-se precipitadamente, seguindo para o Palácio Guanabara, residência oficial do presidente da República. E o fez bem a tempo, pois, logo em seguida, as tropas do

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Exército começaram a fechar as ruas que davam acesso ao prédio. Tentando retomar o controle da situação, o presidente Vargas, por intermédio do general Firmino Freire, convida Dutra e Góis para uma conversa no palácio, o primeiro às 19 horas e o segundo às 21 horas. Somente Dutra compareceu, em companhia do general Osvaldo Cordeiro de Farias. Cordeiro, na qualidade de chefe do EMFA, tinha a missão de levar a Vargas a mensagem do general Góis Monteiro, pedindo ao Presidente que tomasse a iniciativa de renunciar ao governo, em troca de garantias de vida e segurança a ele e sua família. Exerceu sua tarefa no estrito cumprimento do dever, pois era amigo do Presidente e, pessoalmente, estava solidário com ele. À noite, a situação no Palácio Guanabara era caótica. Todas as comunicações estavam cortadas, o edifício ficara sem luz e sem água e os serviçais se retiravam em paz, enquanto os jardins à volta do prédio começavam a ser ocupados pelas tropas. Aproximadamente às nove horas da noite de 29 de outubro de 1945, o presidente da República renuncia. Horas depois, o presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares, comparece ao Ministério da Guerra e é investido, oficiosamente no cargo de presidente da República. Às 14 horas do dia 30, em cerimônia oficial, José Linhares torna-se, em efetivo, Presidente do Brasil, com a incumbência de garantir as eleições gerais, marcadas para o dia 2 de dezembro.

Considerações finais Sobre o Cordeiro de Farias, uma nota digna de registro. Após a renúncia do Presidente, o general voltou à sede do Ministério e atuou incansavelmente na comunicação social, atendendo jornalistas e políticos, e dando a cobertura de retaguarda, enquanto o Ministro da Guerra consolidava a operação de rescaldo. Amizades à parte, embora leal ao presidente deposto, não recusou o cumprimento do dever. Registre-se, também, em favor do general Góis Monteiro, que sua serenidade em face dos acontecimentos evitou qualquer tipo de abuso. Pessoalmente, e com sua autoridade, deu ao ex-presidente todas as garantias que Vargas sempre recusou aos seus adversários, vítimas de foram de prisão, perda de direitos políticos e exílio.

Getúlio Vargas pediu um prazo de 48 horas para retirar-se do palácio, o que lhe foi concedido. Ele e sua família saíram em paz e segurança. Contrariando o desejo de muitos militares da linha dura, ninguém foi exilado, nenhum mandato foi cassado e o próprio Getúlio candidatou-se às eleições como senador e deputado, saindo vitorioso e permanecendo na vida pública. As eleições de 2 de dezembro foram realizadas com plenas garantias, não ocorrendo maiores incidentes que não ser aqueles comuns de toda eleição. O presidente interino, José Linhares, exerceu, sem embaraço, o seu cargo, com pleno controle do governo, que transferiu, no devido tempo, ao novo Presidente, escolhido pelas urnas. Em toda a História da República, desde sua proclamação, nenhuma transição se fez com tamanha tranqüilidade e segurança, contrariando boatos e afastando todos temores de interferências indevidas na vontade da Nação. Dava a impressão de que o Brasil havia, finalmente, alcançado sua maturidade política. Mas o futuro se encarregaria de mostrar que não era bem assim.

Fim da Segunda Parte____________________________________

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Terceira República(1945-1964)

* * *Capítulo Vinte-e-três

TRANSIÇÃO DE REGIMEO Governo José Linhares

A queda de Getúlio Dorneles Vargas, em 29 de outubro de 1945, e a posse de José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal, como seu sucessor imediato, com a ordem constitucional garantida pelas Forças Armadas, era um fato novo na História do Brasil e trouxe um novo alento ao povo brasileiro, confiante de que a Nação, finalmente, poderia fazer uso de sua maioridade, construindo, sem sustos, a Democracia de seus sonhos. Democracia, com “d” maiúsculo tem um valor intrínseco e absoluto, não admitindo adjetivos que a qualifiquem ou restrinjam a plenitude de seu significado. Mas as várias forças políticas que reinaram na Terceira

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República teimavam dar a esse termo uma feição particular, segundo suas próprias conveniências. Para o general Góis Monteiro, mentor do golpe de 1937 e, agora, o fiador do novo regime, ela precisava ser uma democracia “plena”; para o general Eurico Gaspar Dutra, partícipe daquele golpe, teria de ser uma democracia “constitucional”; Getúlio Vargas, o Presidente deposto, preferia uma democracia “personalizada”, em que poderia continuar exercendo sua influência; para as “viúvas” do Estado Novo, havia de ser uma democracia “relativa”, conduzida de maneira a bloquear a ação daqueles que, a seu julgamento particular, poderiam ser perigosos ao regime. Já o povo brasileiro, vencidas as desconfianças, passou a testar até que ponto as garantias democráticas seriam mantidas pelos detentores do poder, saindo-se bem nesse teste, pois, de fato, não havia qualquer limite à liberdade de opinião e de expressão. A partir daí, assimilou por completo o conceito de Democracia, passando a opinar sobre tudo e falar abertamente de seus mandatários, numa liberdade que assustava os estrangeiros recém-chegados ao país, especialmente nossos irmãos portugueses, que vinham da ditadura de Salazar e até se alarmavam pela forma descontraída com que os brasileiros criticavam os governantes, como se estivessem numa conjuração. Assim, o espaço entre 1945 a 1964, pelo qual se espraia a Terceira República, destacou-se como um período de liberdade e, ao mesmo tempo, de confronto, em que a nação não abria mão de seu direito de opinar, enquanto as forças dominantes, dentro e fora do governo se degladiavam, procurando restringir a cidadania, sob o pretexto de garantir a segurança do Estado. É nesse oceano de contradições que a nação vai navegar por todo o período, à procura de um porto seguro.

Troca de Governo Na noite de 29 de outubro de 1945, premido pelas circunstâncias, e sob as garantias de vida e segurança para si e para sua família, o ditador Getúlio Vargas renuncia, pondo fim a quinze anos ininterruptos de governo, sendo os quatro primeiros com a constituição rasgada, os três subseqüentes com a constituição ignorada e oito últimos sob o totalitarismo do Estado Novo.

José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal se achava em uma festa, em companhia de seus familiares e foi solicitado a comparecer, com a máxima urgência, no Ministério da Guerra, onde era esperado pelo ministro, general Pedro Aurélio de Góis Monteiro. Assim foi que, pelas duas horas da madrugada, já no dia 30, ficou sabendo do acontecimento, e de que deveria tomar posse, como Presidente interino, às duas horas da tarde, cabendo-lhe garantir a estabilidade do país e presidir as eleições gerais, marcadas para o dia 2 de dezembro. Não faltou quem achasse, sobretudo nos setores mas duros das Forças Armadas, que tais eleições devessem ser suspensas, até a normalização da vida democrática, para evitar distorções nos resultados. Não obstante, Góis Monteiro, garantidor da transição, fez questão fechada de que o calendário eleitoral deveria ser mantido. Apenas foram canceladas, até segunda ordem, as eleições regionais, ficando o pleito de 2 de dezembro restrito à eleição do presidente da República e do Congresso Nacional (Câmara Federal e Senado), com poderes de Assembléia Nacional Constituinte. Como a Constituição vigente ainda era a do Estado Novo, com as alterações da emenda nº9, e dado que esta não previa a existência de um vice-Presidente, ficou entendido que, se a nova Constituição criasse tal cargo, a eleição do vice se faria por via indireta.

A escolha tumultuada do gabinete Respeitando o calendário de transição, o presidente José Linhares deve ficar no poder até 31 de janeiro de 1946, data da posse do seu sucessor, ou seja, por um período de exatos 93 dias, com o que o seu governo ganha um caráter de transitoriedade, sem grandes projetos ou marcos a assinalar. Não obstante, poucos presidentes tiveram tanto embaraço em escolher seus auxiliares diretos. Era como se estivesse formando um ministério para durar muitos e muitos anos. Em verdade, as dificuldades já começaram no dia seguinte à posse, quando Linhares apareceu no Ministério da Guerra com a lista dos que pretendia escolher para formar o gabinete. Não fora isso o combinado. Segundo Góis Monteiro, a lista deveria ser organizada de parceria entre o Presidente, o Ministro da

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Guerra e os dois candidatos militares, para evitar melindres e para eliminar futuras acusações de que o Governo Provisório estaria favorecendo uma ou outra candidatura. Já que se achava diante de um fato consumado, Góis pediu a presença, também, do brigadeiro Eduardo Gomes e do general Eurico Gaspar Dutra, para examinarem, em conjunto, os nomes sugeridos. Aconteceu o que se previra. O brigadeiro aprovou a lista sem objeções. Já o general não gostou, dizendo que os nomes indicados eram desfavoráveis à sua candidatura, no que foi contestado pelo Presidente José Linhares, originando um clima desconfortável, para dizer o menos. Por sua parte, Góis Monteiro vetou seu próprio nome, apontado novamente para o ministério da Guerra, e o nome de seu auxiliar direto, general Cordeiro de Farias, indicado para o Ministério da Viação. Este último não desejava fazer parte do governo e pedira ao general Góis que não permitisse sua inclusão entre os ministeriáveis. Por fim, a lista foi aprovada, com a exclusão destes dois últimos nomes, que seriam, oportunamente, substituídos.

Góis permanece no Ministério Depois disso, eis como se deram os acontecimentos. Não interessava a Dutra o afastamento de Góis Monteiro, seu fiel companheiro, e, assim, secretamente, pediu a vários generais que, se convidados a ocupar a pasta, recusassem o convite. O primeiro a faze-lo foi o general Salvador Obino, comandante da 3ª Região Militar, acontecendo o mesmo com Ari Pires, Amaro Bittencourt e outros nomes consultados. Foi assim que, sem saber do estratagema, o general Góis Monteiro consentiu em permanecer na Pasta da Guerra. O Ministério completo, ficou assim constituído: Relações Exteriores, Pedro Leão Veloso, substituído subseqüentemente por João Neves da Fontoura e Samuel de Sousa Leão Gracie; Justiça, Antônio Sampaio Dória; Viação e Obras Públicas, Mauricio Joppert da Silva; Fazenda, José Pires do Rio; Trabalho, Indústria e Comércio, Roberto Carneiro de Mendonça; Educação e Saúde, Raul Leitão da Cunha; Agricultura, Theodureto Leite de Almeida Camargo; Guerra, Pedro Aurélio de Góis Monteiro; Marinha, almirante Jorge Dodsworth Martins; Aeronáutica, brigadeiro

Armando Trompowsky de Almeida. Este último revelou extrema habilidade no trato dos assuntos relacionados à sua pasta e, fato raro, permaneceu Ministro por mais de cinco anos.

A sombra de Getúlio Vargas Alguns dias depois de renunciar, Getúlio Vargas seguiu para um exílio voluntário na sua Estância de Itu, situada na pequena cidade de São Borja, no extremo do Rio Grande do Sul, já na divisa com a Argentina. Era um excelente esconderijo para quem, supostamente, desejasse se afastar da vida política. Logo se percebeu, porém, que Getúlio permanecia no centro dos acontecimentos e que não era possível fazer política sem ele. Com o afastamento do ex-Presidente, a candidatura de Eurico Gaspar Dutra começou a fazer água e seus correligionários, alarmados, passaram visitar constantemente São Borja, implorando por uma palavra de Getúlio que salvasse a situação. O ex-ditador não se achava propenso a auxiliar o candidato em apuros. Ainda quando era seu Ministro, e já postulante à Presidência, Dutra mantivera reuniões secretas com adversários de Getúlio, o que chegou ao conhecimento deste, causando aborrecimento. Depois, foi o próprio Dutra que, aliado a Góis Monteiro, participou da derrubada do Estado Novo. Como, pois, tinha ele coragem de solicitar seu apoio nesta hora de dificuldades ? Argumentou-se, então, que, ao silenciar, o ex-Presidente estaria favorecendo a candidatura de Eduardo Gomes, seu maior inimigo, e isso poderia trazer-lhe transtornos no futuro. Finalmente, Getulio decidiu-se e, muito a contragosto, entregou ao líder “marmiteiro” Hugo Borghi uma mensagem, dirigida aos trabalhistas, apoiando o general Eurico Gaspar Dutra. Foi o bastante: nos panfletos e outdoors, nas estações de rádio e nos jornais aparecia a expressão: “Ele disse: vote em Dutra.” Não era uma sugestão era uma ordem, que rapidamente inverteu a situação, deixando em apuros, desta vez, o brigadeiro Eduardo Gomes, que já se considerava eleito.

Um banho de prestígio Paralelamente, Getúlio foi registrado como candidato a deputado federal por cinco Estados, e a senador por dois Estados (Rio Grande do Sul e São Paulo.

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Não saiu, um dia que fosse, de São Borja. Não deu entrevistas a jornais, não enviou mensagens ao eleitorado, não participou de qualquer comício, enfim, não moveu uma palha em favor de sua candidatura. Abertas as urnas, constatou-se que Getúlio saiu-se vitorioso, com expressiva votação, nos cinco Estados em que se candidatou a deputado, e nos dois Estados em que se candidatou a senador. Ainda que permitidas pela legislação eleitoral vigente, alguém se perguntará qual a razão de tantas candidaturas se, na diplomação, ele só poderia optar por uma cadeira. A resposta é simples: a soma de votos representa o quociente eleitoral da legenda e indica o número de cadeiras a que este ou aquele partido tem direito. E, embora a eleição fosse nacional, as representações eram divididas por Estados. Assim, ao candidatar-se várias vezes, o Presidente de Honra do PTB garantiu a esta legenda uma bancada que, embora pequena, ia muito além à capacidade eleitoral do partido. Quanto a si mesmo, Getúlio optou por ser senador pelo Rio Grande do Sul, tomando posse, mas indo muito pouco ao plenário da Assembléia Nacional Constituinte. Terminados os trabalhos, foi o único senador que não compareceu sequer para assinar a promulgação da Constituição de 1946. Iniciados os trabalhos legislativos regulares da Câmara Federal e do Senado, simplesmente passou sua vaga para o suplente, Camilo Mércio, desconhecido do grande público. Vargas tinha a capacidade de manter-se no noticiário e no primeiro plano da vida política, mesmo quando estivesse fisicamente distante. Ainda que fossem cassados os seus direitos políticos, e ainda que estivesse exilado nos confins da terra, mesmo assim exerceria sua influência na vida política brasileira. E assim o fez até após a morte, deixando uma carta-testamento que era vibrada a todo o momento contra seus adversários e trazia sempre dividendos ao partido que ajudou a fundar.

Eleições Em clima de festa, mais do que de temor, realizaram-se as eleições de 2 de dezembro de 1945. Para a Presidência da República, concorriam Dutra, apoiado por Getúlio Vargas; Eduardo Gomes, representando a oposição a Vargas; Yedo Fiúza, um candidato tirado do bolso do colete e que,

sem ser comunista, fora lançado pelo PCB; e, finalmente, Mário Rolim Teles, vindo não se sabe de onde nem para que, sustentando uma gloriosa lanterninha. Abertas as urnas, foi apurado o seguinte resultado: Eurico Gaspar Dutra (PSD-PTB):

3.251.507 votos (55,39%); Eduardo Gomes (UDN): 2.039.342 votos

(34,74%); Yedo Fiúza (PCB): 569.818 votos

(9,70%); Mário Rolim Teles (Part.Agrário): 10.001

votos (0,17%). Os comunistas preservaram o nome de seu líder máximo, Luís Carlos Prestes, elegendo-o senador pelo Estado do Rio de Janeiro. Ressalte-se que, durante toda sua existência, ainda que clandestina, mas protegida por algum partido legal da esquerda, o Partido Comunista Brasileiro raramente alcançou 10% da votação total, demonstrando que a população brasileira é avessa a radicalismos. Prestes era uma exceção, porque carregava consigo, ainda, o carisma do “Cavaleiro da Esperança”, herói que fora do movimento guerrilheiro que precedeu a revolução de 1930. As 264 cadeiras da Assembléia Nacional Constituinte, formada pela conjunção do Senado e da Câmara Federal, foram assim distribuídas: Partido Social Democrático (PSD), 151; União Democrática Nacional (UDN), 77; Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), 22; Partido Comunista Brasileiro (PCB), 14. Aqui surge outro fato que se repetiria ao longo da história: a força do PDS, ressurgente dos antigos partidos estaduais da Primeira República, contrastando com a votação singela do Partido Trabalhista Brasileiro, ambos fundados por Getúlio Vargas. O primeiro era um fator de peso nas decisões congressuais. O segundo funcionava como o fiel da balança em casos polêmicos, em que a decisão se dava por poucos votos. Nestes casos, a vitória pendia para onde fossem os trabalhistas. Assim, o poder de negociação do PTB era enorme eseus votos eram disputados com afinco pelos governos e tinham, como moeda de troca, cargos e favores. No dia 31 de janeiro de 1946, conforme calendário estabelecido, José Linhares entrega a faixa presidencial ao general Eurico Gaspar Dutra, encerrando-se a fase

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transitória da República nascente. No mesmo dia, instalam-se os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte que, nos próximos meses, iria preparar a nova Carta Constitucional. Através de seus representantes, a Nação começa a traçar o seu futuro. Linhares, cuja passagem pelo governo foi episódica, era casado com Luzia Cavalcanti e teve três filhos: Lea, Amaro e José Carlos.

* * *Capítulo Vinte-e-quatro

OS TRÊS PEDIDOS DE DONA SANTINHA

Governo do general Dutra

Conta-se que, tal qual o gênio da lâmpada, Eurico Gaspar Dutra concede à sua esposa, Carmela Leite Dutra (Dona Santinha) o direito a três desejos, que lhe serão atendidos. Católica, devota, ligada à ala mais conservadora da Igreja, Dona Santinha pede: primeiro, o fechamento de todos os cassinos e a proibição dos jogos de azar; segundo, a extinção do Partido Comunista Brasileiro; terceiro, a construção de uma capela no Palácio Guanabara, residência oficial do Presidente e sua família. O primeiro desejo é o mais fácil de se realizar. A 30 de abril de 1946, três meses após a posse, um decreto proibe os jogos de azar em todo o território nacional. O segundo demora um pouco mais, mas, em 7 de maio de 1947, o PCB é posto fora da lei e, em 7 de janeiro de 1948, são cassados os mandatos de todos os seus representantes. Por último, a capela, o terceiro voto de Dona Santinha, lá se encontra, até hoje, nos jardins do Palácio Guanabara. Se nem tudo foi obra pessoal e exclusiva do Presidente, o episódio ilustra bem o dilema do general. Disposto a governar democraticamente, com respeito severo à Constituição, sua formação militar, entretanto, o prevenia de que nem todos os problemas devem ser resolvidos politicamente, havendo que preservar a autoridade, se preciso, com o exercício eventual do autoritarismo. A construção da capela contrariava o princípio da separação entre a Igreja e o Estado, uma das pedras basilares da República, mas este, todavia, foi o mal menor. Serviu para estabelecer um elo entre duas instituições caras à vida brasileira, as

quais, embora não devam se misturar, cabem em um mesmo vasilhame. Já o fechamento do PCB trouxe malefícios ao país, na medida em que formou um caldo de cultura próprio para o desenvolvimento do comunismo, que se sente melhor na clandestinidade, onde encontra motivação para desenvolver sua retórica em favor das liberdades democráticas, quando, na prática, seu objetivo maior é acabar com elas. Encoberto pelas nuvens da clandestinidade, nos anos que se seguiram, o PCB sempre apresentou candidatos próprios, infiltrados em outros partidos, e, se os resultados efetivos foram desprezíveis, valeram como forte propaganda anti-capitalista. Além do mais, como seus jornais não foram banidos, sempre havia um público certo para assimilar a doutrina da pseudo-democracia vermelha. Por último, a proibição dos jogos de azar, fez originar uma rede clandestina, corrupta e corruptora, sobretudo no “jogo do bicho”, que, quase sempre, transitou livremente à margem da lei, dominando políticos e/ou governantes, com seu poder de aliciamento, à custa de um dinheiro que entrava sem controle e saía segundo a conveniência dos banqueiros dessa atividade, ilegal, mas visível por toda parte. Após cinco anos de governo (nenhum dia a mais, nenhum dia a menos), Dutra afastou-se da política, mas não dos quartéis, permanecendo teimoso embora incorruptível, um dogmático disposto a quebrar lanças na defesa de suas convicções. Era um raro espécime de governante que jamais se deixou seduzir pelo poder e pelas facilidades que este oferece, preferindo a simplicidade rude da caserna ao conforto ilusório dos palácios.

Início de governo Em 31 de janeiro de 1946, o general Eurico Gaspar Dutra tomava posse no governo e, dias após, no Palácio Tiradentes, era instalada a Assembléia Nacional Constituinte, sob a direção do presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Valdemar Falcão. Efetivada a posse dos constituintes, passou-se à indicação do Presidente da Assembléia, recaindo a escolha sobre o senador mineiro Fernando de Melo Viana. O próximo passo é a escolha de uma comissão, composta de três membros para organizar um regimento interno, com base no

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qual se desenvolveriam os trabalhos posteriores. Assim, enquanto a comissão desenvolvia seus trabalhos em outra sala, o plenário fica livre para discursos e debates em torno de assuntos diversos, não necessariamente ligados ao trabalho constituinte. De sua parte, até que a nova Constituição fosse elaborada e promulgada (e isso levou vários meses), o presidente da República guiava-se pela Constituição do Estado Novo, alterada pela emenda nº9. Com ela dispunha ainda dos poderes de exceção, inclusive o de governar por decretos, que tinham força de lei, ad-referendum do Congresso. Embora os poderes fossem enormes, permitindo até a decretação da pena de morte para crimes políticos, o uso da lei foi limitado ao necessário para garantir a governabilidade. Com relação à pena de morte, diga-se de passagem, nem o ditador Getúlio Vargas fez uso dessa prerrogativa, que tinha mais um efeito intimidação para conter movimentos políticos armados.

Composição da AssembléiaA Assembléia Nacional Constituinte era composta de 320 parlamentares, entre senadores e deputados, cuja representação, por partidos, estava assim distribuída: PSD – Partido Social Democrático

(governo): 173; UDN – União Democrática Nacional

(oposição): 85; PTB – Partido Trabalhista Brasileiro

(governo): 23; PCB – Partido Comunista Brasileiro: 15; PR–Partido Republicano: 12 PSP – Partido Social Progressista

(facção de integralistas): 7 Outros: 5 O Partido Social Democrático e o Partido Trabalhista Brasileiro elegeram Dutra e eram, pois, bancada governista. Na oposição feroz se achava a União Democrática Nacional, disposta a varrer da nova Constituição qualquer resíduo do Estado Novo. O Partido Social Progressista, fundado por Ademar Pereira de Barros, nasceu em São Paulo e arregimentou uma boa parte dos integralistas moderados, dissidentes. Plínio Salgado, o “chefe” do integralismo mais radical, tinha sua própria legenda, o PRP-Partido de Representação Popular, mas não conseguiu eleger nenhum constituinte. O eleitorado ainda se lembrava bem do ataque ao Palácio Guanabara, em 1938, feito pela

ala radical da Ação Integralista Brasileira, causando uma cisão no próprio integralismo.

Quem era Dutra Eurico Gaspar Dutra, ora empossado na presidência da República, nasceu em Cuiabá, Estado do Mato Grosso, em 18 de maio de 1883, tendo iniciado seu preparo militar em 1902, na Escola Militar de Porto Alegre, de onde foi expulso em 1908, juntamente com outros companheiros, por ter se manifestado contra a vacinação obrigatória imposta pelo presidente Rodrigues Alves. Anistiado, mais tarde, foi para o Rio de Janeiro, onde matriculou-se na Escola Militar do Realengo. Dutra não tem um passado revolucionário, dado que, em toda sua vida, se manifestou contrário a qualquer movimento de contestação ao poder. Não participou, pois, dos movimentos tenentistas de 1922 e 1924, nem da Coluna Prestes (1924-1927). Permaneceu legalista durante a revolução de 1930 e combateu a Revolução Constitucionalista em 1932, o que lhe valeu a promoção a general de Brigada. Mais tarde, já general de Divisão e comandante da 1ª Região Militar, sufocou a Intentona Comunista. Da mesma maneira, já ministro da Guerra, combateu o “putsch” integralista de 1938, arriscando a própria vida para defender o Palácio Guanabara, onde se achavam o presidente Vargas e sua família. Em 1944, como ministro da Guerra, teve a incumbência de organizar a Força Expedicionária Brasileira (FEB), cujo comando foi entregue ao general Mascarenhas de Morais. Destoando em sua biografia, foi um dos participantes do golpe de 1937, que implantou o Estado Novo e, em 1945, participou também da derrubada do ditador Getúlio Vargas. Como presidente da República, defendeu ardorosamente a Constituição, o “livrinho vermelho” do qual nunca se separava. Na vida particular, era uma pessoa dócil, gostando de caminhar pela zona Sul do Rio de Janeiro, afagando crianças e nunca recusando uma conversa com quem dele se aproximasse. Assim o descreve o historiador José Maria Belo: “Simples, despretensioso, calado, polido, bravo sem alarde, de hábitos modestos, um fundo de timidez que dá por vezes a impressão de hesitação, tenaz todavia em certos objetivos, como no de

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colocar o Partido Comunista fora da legalidade, sem irradiação pessoal, de imperturbável sangue frio, mais sagaz no trato dos homens do que aparenta, sem treino político e administrativo, salvo nos negócios da sua antiga pasta.” Assim era Dutra. Casou-se com Carmela Leite Dutra, tendo dois filhos: Emília e Antônio João.

Ministério No início de seu governo, Dutra formou o Ministério só com nomes de correligionários seus. Tempos depois, pretendendo um governo de coalizão, acabou por fazer uma reforma ministerial, atraindo para o Gabinete alguns nomes da oposição, sobretudo da UDN. Seu primeiro Ministério estava assim formado: Relações Exteriores, João Neves da Fontoura, que se achava chefiando a delegação brasileira na Conferência de Paz de Versalhes; Justiça, Carlos Coimbra da Luz; Fazenda, Gastão Vidigal; Agricultura, Manuel Neto Campelo Junior; Viação e Obras Públicas, Edmundo de Macedo Soares e Silva; Trabalho, Indústria e Comércio, Otacílio Negrão de Lima; Educação e Saúde, Ernesto de Sousa Campos; Guerra, general Pedro Aurélio de Góis Monteiro; Marinha, almirante Jorge Dosdwort Martins; Aeronáutica, Armando Figueiredo Trompowsky de Almeida. Este último viera do Gabinete de José Linhares e permanecerá no cargo até o final do governo.

Jogo na ilegalidade Foi a 30 de abril de 1946 que o presidente da República assinou o decreto-lei nº9.215, colocando na ilegalidade os jogos de azar, representados principalmente pelos cassinos, freqüentados pela alta roda, e pelos chalés onde eram apontados os volantes do “jogo do bicho”. Este último, logo se recompôs na clandestinidade, voltando a funcionar, senão com força total, pelo menos desembaraço e com uma suspeita tolerância das autoridades estaduais, às quais cabia cuidar da execução da lei. Já a “alta jogatina” jamais se recuperou, pois os freqüentadores dos cassinos encontraram um caminho paralelo, em excursões que os levavam aos paraísos da jogatina do exterior, numa rota que ia, desde Buenos Aires até Las Vegas. Sobre os cassinos, escreve o jornalista Sérgio Augusto, na “Folha de São Paulo” de 8 de maio de 1991:

“Pressionado pela carolice de sua mulher, dona Santinha, e pela matreirice de seu ministro da Justiça, Carlos Luz – de olho no eleitorado conservador de Minas Gerais –, o marechal Dutra pôs a jogatina na ilegalidade, a 30 de abril de 1946. No dia seguinte, havia pelo menos 40 mil novos desempregados na praça. “Também aqui, o jogo era um negócio fabuloso. Havia cassinos por toda a parte. Nas principais capitais (o Pampulha, em Belo Horizonte; o Central, em Salvador; o Grande Hotel, em Recife), nas estâncias hidrominerais, na costa paulistana (Guarujá, São Vicente, Santos), mas só os que ficavam no Rio e seus arredores alcançaram, por motivos óbvios, status internacional. “(...) Quando da abertura do Quitandinha, havia mais astros de Hollywood no eixo Rio-Petrópolis que estrelas no céu carioca. Inaugurado em 1944, o Quitandinha só teve dois anos de glória. Depois, resignou-se a ser, como o Copacabana-Palace, um simples hotel de luxo.” A partir dos anos sessenta, a cultura popular voltada para o jogo foi aproveitada pelo governo federal para a arrecadação de impostos, primeiro, muito timidamente, com a loteria esportiva, depois com uma infinidade de jogos, os mais variados, que transformaram o Brasil de hoje num grande cassino oficial, patrocinado pelo poder público. Tudo isso ao lado do jogo clandestino, que teima em subsistir, juntamente com outras atividades legais como o bingo e, até recentemente, o telejogo, feito pelos telefones “0900”, envolvendo quase todas as redes de TV e movimentando altas quantias, sugadas da economia popular. O jogo é proibido no Brasil desde 1946. Você acredita ?

Constituição PromulgadaEleita em 2 de dezembro de 1945, a Assembléia Nacional Constituinte foi instalada em princípios de fevereiro, nomeando de imediato uma comissão para redigir o regimento interno. Em 14 de março, já aprovado esse Regimento, nomeou-se outra comissão para elaborar um anteprojeto da Carta. Em 3 de junho iniciou-se a fase de análise e votação das emendas ao anteprojeto e, em 13 de agosto, passou-se à votação dos artigos, com as emendas que foram aprovadas.

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Finalmente, em 18 de setembro de 1946, quase oito meses depois de instalada a Assembléia, foi promulgada e posta em vigor a nova Constituição dos “Estados Unidos do Brasil”. Em seu texto, a nova Carta mantinha o princípio federativo (20 Estados e um Distrito Federal), com regime presidencialista, adotado desde a Proclamação da República. Garantia, também, a ampla autonomia política e administrativa, não só dos Estados, como dos municípios. Estes, a menos que fossem considerados de segurança nacional, tinham a prerrogativa de eleger seu prefeito. Conservava, igualmente a independência e harmonia entre os três poderes da República: Executivo, Legislativo e Judiciário. O voto era secreto e universal (um eleitor é igual a um voto, independente de sua importância econômica, política ou cultural). Podiam votar e ser votados os maiores de 18 anos, no gozo de seus direitos políticos, exceto os analfabetos, os soldados e cabos. A nova Constituição assegurava a plena liberdade de opinião e pensamento que, salvo raras exceções, sempre foi garantida. Não se livrou, porém, de alguns vícios do Estado Novo, pois a “plena liberdade” encontrava em seu caminho a censura obrigatória a espetáculos públicos e teatrais, estendida mais tarde às radionovelas, que nessa época foram introduzidas no Brasil pelo dramaturgo Oduvaldo Viana (pai). Havia alguns dispositivos maliciosos. Ao defender o sagrado direito da propriedade, conservava a estrutura da propriedade da terra, ou seja, ficava descartado qualquer programa de reforma agrária para resgatar o homem do campo, prevalecendo o princípio de suserania e vassalagem vigente nas fazendas, o que permitia a exploração de mão-de-obra barata, para não dizer escrava. Por outro lado, assegurava o direito de greve e da livre associação sindical, mas mantinha os sindicatos como órgãos de colaboração do Estado, podendo este intervir nas entidades sindicais. Outro dispositivo remanescente do período autoritário que, com pequenas modificações, se mantêm até os dias de hoje, é o direito de o presidente da República nomear os membros do Supremo Tribunal Federal (Pela atual Constituição, o Presidente indica o nome, que é aprovado pelo Senado, o que, no fim, vem a ser a mesma coisa. Não se conhece um caso em

que o Senado tenha negado essa aprovação). Mas o dispositivo mais polêmico é o que reduz o mandato do presidente da República de seis para cinco anos, com efeito retroativo, ou seja, valendo também para o atual presidente, cuja duração de governo foi reduzida em um ano. Embora Dutra não objetasse quanto à redução de seu mandato, isto veio trazer problemas de ordem legal que, suscitados após a eleição de 1950, poderiam ter originado um impasse constitucional. Por fim, criado o cargo de Vice-Presidente da República, a própria Assembléia elegeu, por via indireta, o senador catarinense Nereu Ramos, da UDN, que concorreu com Pedro Américo, do PSD. Foi, como se vê, uma política de boa vizinhança, procurando atrair as simpatias da UDN para o governo federal. Encerrados os trabalhos constituintes, os parlamentos se desdobraram naturalmente em suas funções naturais: a Câmara Federal, com 278 membros, permaneceu no Palácio Tiradentes, e Senado, com 42 membros, se deslocou para o Palácio Monroe.

O Presidente e o trabalhador Apesar de eleito com a participação do Partido Trabalhista Brasileiro, o relacionamento entre o presidente Dutra e os trabalhadores sempre foi tumultuado. Logo após sua posse, o presidente foi surpreendido com uma onda de greves, que procurou reprimir com o uso legal, mas discutível, do decreto-lei. Não conseguindo conter os movimentos reivindicatórios, passou a reprimir com violência as manifestações operárias. A nova Constituição, longe de inovar, manteve a atividade sindical atrelada ao Estado, permitindo aos trabalhadores eleger seus líderes, mas garantindo o direito de intervenção estatal nos sindicatos; permitia a livre negociação sindical mas o governo contava com instrumentos para conter as reivindicações salariais; era assegurado o direito de greve, que só poderia ser deflagrada após parecer (leia-se “autorização”) da Justiça do Trabalho. Persistindo no sofisma de que o salário é o responsável pela inflação, o governo procurou conter o surto inflacionário que vinha desde Estado Novo, congelando os salários dos trabalhadores. E ante as manifestações de protesto, agora organizadas em torno dos sindicatos, o

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governo respondeu com autoritarismo e repressão. Isso permitiu que, nas eleições de 1947, a que iremos nos referir mais adiante, o Partido Comunista Brasileiro, ainda na legalidade, conseguisse fazer a maior bancada nas Câmaras Municipais de São Paulo, Santos e Rio de Janeiro, os três maiores redutos de trabalhadores na época. Embora esses resultados fossem desprezíveis no conjunto da votação daquela legenda, foi um dos pretextos utilizados para, mais tarde, colocar o PCB na ilegalidade, cassando o mandato de todos os seus representantes.

Trazendo o inimigo para casa Ao final de julho de 1946, antes mesmo de a nova Carta ter sido promulgada, mas sentindo-se já firme no governo, Dutra iniciou a reforma ministerial, trazendo nomes de sua arqui-inimiga, União Democrática Nacional, para compor seu ministério. Não lhe saiu de graça. A principal exigência da UDN era que os elementos mais chegados ao Estado Novo fossem afastados do Governo. A primeira vítima foi seu ministro da Guerra, general Pedro Aurélio de Góis Monteiro, que teve de renunciar, sendo substituído pelo general Canrobert Pereira da Costa. Sua volta à vida política ocorreria nas eleições do ano seguinte. Todavia, a principal alteração se deu no Ministério de Relações Exteriores, que foi entregue ao udenista Raul Soares, substituindo João Neves da Fontoura, que se achava chefiando a delegação brasileira na Conferência de Paz de Versalhes. Ato contínuo, em 24 de julho, o novo ministro afastou João Neves da delegação, assumindo ele mesmo a chefia. Não tardou que outros personagens ligados a Getúlio Vargas fossem removidos de seus lugares. O embaixador brasileiro na Argentina, João Batista Luzardo, tinha vários “crimes” em suas costas: o de ter sido amigo de Getúlio, o de ter atacado com tenacidade a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes e, de quebra, o de ter um bom relacionamento com o ditador argentino Juan Domingo Perón, de resto compreensível pois ele cuidava da diplomacia brasileira na Argentina. Em 6 de fevereiro de 1947 foi afastado do cargo, voltando ao Brasil, onde assumiu sua vaga de deputado federal pelo PSD. É ele mesmo quem conta:

“Eu ainda não sabia de nada, quando recebi uma ordem: teria de ir ao Rio para uma conversa com o presidente da República. Ele queria me ver. Recebeu-me no Catete com uma expressão... Pedia que eu o compreendesse: havia feito um acordo vital para o governo e a UDN exigia... O Brigadeiro... Os ataques que eu fizera a ele... Minhas ligações com Perón... Minha saída era uma das poucas exigências que eles faziam. Que eu o perdoasse: não poderia continuar...” A presença do novo ministro nas Relações Exteriores esfriou o relacionamento entre Brasil e Argentina. Os dois presidentes (Dutra e Perón) se encontraram oficialmente na inauguração da Ponte Internacional Uruguaiana-Paso de los Libres e o contato foi meramente protocolar. Terminada a cerimônia, cada um voltou à sua origem, sem trocar uma palavra sobre assuntos de interesse dos dois países.

Eleições de 1947 Como se recorda, em 1946, as eleições ficaram restritas ao presidente da República e Assembléia Nacional Constituinte, aguardando-se o novo texto constitucional para proceder o preenchimento dos demais cargos. Agora, são marcadas novas eleições para 10 de janeiro de 1947, envolvendo governos estaduais, assembléias legislativas, prefeituras (menos nas cidades consideradas de segurança nacional) e câmaras municipais. Por outro lado, como a nova Constituição aumentou a representação estadual no Senado Federal, de dois para três senadores, foi incluída também a eleição de mais um senador por Estado, para completar o número exigido. Tal como no pleito anterior, as eleições de janeiro também ocorreram em ambiente festivo, tendo como característica as coligações mais disparatadas possíveis, onde partidos de ideologias conflitantes se juntavam para garantir resultados em seus municípios ou em seus Estados. No Amazonas, a UDN antigetulista conseguiu a vitória unindo-se ao PTB de Getúlio Vargas; no Espírito Santo, a mesma UDN juntou-se ao PSD, também fundado pelo antigo ditador; e assim por diante. Todavia, nenhuma coligação se mostra tão absurda como a que elegeu Ademar Pereira de Barros governador do Estado de São Paulo: A composição reune o Partido

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Social Progressista, com os remanescentes do integralismo, e o Partido Comunista Brasileiro. É a ultra direita que se junta à extrema esquerda, para defender um mesmo propósito. Pior para o PCB que, meses depois, teve a polícia de Ademar em seu encalço para prender os ativistas comunistas, assim que o partido teve sua existência cassada. No frigir dos ovos, o PSD fez seis governadores, a UDN cinco e o PTB apenas um, o do Estado do Maranhão. Os restantes governadores resultaram de coligações não permitindo determinar a influência de cada partido no conjunto dos votos. O general Góis Monteiro volta ao senado pelo PSD de seu Estado natal, Alagoas. O Partido Comunista, como dissemos, conseguiu representação majoritária nas câmaras municipais de São Paulo, Santos e Rio de Janeiro, assinando com isso sua pena de morte.

Comunistas na ilegalidade Em realidade, a rapidez com que ocorreu o golpe pondo fim ao Estado Novo pegou de surpresa os inimigos de Getúlio, que não tiveram tempo de criar uma democracia pré-condicionada a uma série de salvaguardas, entre elas o banimento de Getúlio e seus auxiliares mais próximos, bem como a proibição de partidos radicais, como era exemplo o Partido Comunista Brasileiro. Sem essas restrições, deu no que deu. Vargas e seus amigos continuaram no cume do poder e, de quebra o PCB participou até da elaboração da Carta Magna, com 14 deputados e um senador (Luís Carlos Prestes). E entre os deputados havia nomes de peso, como Carlos Mariguela, Jorge Amado e Gregório Bezerra. Embora este contingente representasse menos de cinco por cento da Assembléia Nacional Constituinte, era uma bancada barulhenta, que deu muito trabalho, tentando impugnar emendas como a que punha fora da lei partidos que atentassem contra as liberdades democráticas. O início da guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética levou o Brasil a se posicionar ao lado dos americanos, rompendo relações com os soviéticos, o que colocou os comunistas brasileiros em situação bastante delicada. O PCB teve ainda a seu desfavor a descoberta da existência de dois estatutos paralelos, um usado para efeito de registro, e outro que,

supostamente, regia as atividades do partido. E entre as normas de conduta, proibia seus afiliados de manterem relações de amizade com inimigos da causa comunista. Tudo isso foi brandido nos processos que correram pelo Tribunal Superior Eleitoral pedindo a extinção da legenda . A 7 de maio de 1947, o TSE decide pela extinção do partido, sem entrar em considerações quanto a seus representantes na Câmara Federal, Senado, Assembléia Legislativa e Câmaras Municipais que, pela legislação vigente, poderiam filiar-se a outras legendas e completar seus mandatos. O Congresso Nacional reage e, a 7 de janeiro, aprova um projeto de lei cassando todos os mandatos políticos dos eleitos pelo PCB. Sancionado, em seguida, pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, este ordena aos governos estaduais que cuidem de executar a lei em seus Estados, enquanto o governo federal toma idênticas providências no Distrito Federal. Inicia-se um novo período, em que o PCB continua agindo infiltrado em partidos de esquerda, como o PSB - Partido Socialista Brasileiro, sempre apoiando nomes sem envolvimento anterior com o comunismo. Os períódicos continuam com sua circulação liberada e usam de maior ou menor agressividade, dependendo da situação política em cada momento. Em São Paulo, por exemplo, o jornal “Notícias de Hoje” tinha circulação diária, com uma linguagem desabrida, sendo vendido livremente nas bancas. Essa situação dúbia perdurou até os anos oitenta, quando o partido voltou à legalidade, sem que nenhuma liberdade fosse ameaçada, e sem causar os problemas que foram uma constante durante o período em que esteve à margem da lei.

Alinhamento aos Estados Unidos Uma das marcas que distinguiram o governo do general Eurico Gaspar Dutra foi o alinhamento do Brasil aos Estados Unidos em todos os setores da vida nacional. Politicamente, essa posição resultou no rompimento das relações diplomáticas com a União Soviética, representando uma decisão natural dentro do contexto, já que o Brasil é um país americano e vinha dando seus primeiros passos na redemocratização, tendo os Estados Unidos como parceiros. Economicamente, o Brasil sofreu pressões dos Estados Unidos para utilizar os

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créditos acumulados com exportações feitas durante a Segunda Guerra, o que mantinha nossa balança comercial com um saldo altamente favorável. Liberado o câmbio, o país passou a importar tudo, principalmente aquilo que não precisava, prejudicando a economia interna. Era possível comprar caixinhas de uva-passa americana em qualquer vendedor ambulante. E entravam no país, sem dificuldade carros, barcos, motocicletas, bicicletas, peças talhadas em marfim e até palha para enrolar cigarros, coisa que o caboclo sempre soube fazer muito bem sem ajuda externa. A maior invasão foi a de “matéria plástica” a novidade de após guerra, que o brasileiro nunca tinha visto antes, e que parecia substituir todo tipo de material. Rígida, substituía a baquelita; flexível imitava o celulóide; em filmes, encapava livros e cadernos com a mesma eficiência do celofane. E venha plástico! Brinquedos, pratos, xícaras, material de péssima qualidade, que se encardia rapidamente, mas que nas lojas aparecia colorido e lustroso. Esses desvios trouxeram uma perda irrecuperável de divisas em prejuízo à indústria nacional, incapaz de concorrer com importados que chegavam como novidades, com preços aviltados, tal como acontece hoje com os produtos vindos dos “tigres asiáticos”. Quando o governo, finalmente despertou e reassumiu o controle do câmbio, a grande parte de nossas divisas, acumuladas durante anos, já tinha virado pó. Outra conseqüência do alinhamento foi a criação de uma Comissão Mista Brasil-Estados Unidos (Missão Abbink), que planejou a adaptação da economia brasileira às necessidades dos Estados Unidos, sob supervisão de instituições internacionais, como o Eximbank e o Banco Mundial. Foi um filão para as esquerdas brasileiras, que denunciavam o “entreguismo” do governo Dutra, gerando nas massas um clima de anti-americanismo. A expressão: “calma, que o Brasil é nosso...” recebeu uma réplica: “calma, que o Brasil é dos americanos...”

Desenvolvimento interno No mais, o governo Dutra foi marcado por uma série de realizações, que representaram uma plataforma importante para o desenvolvimento ocorrido na década seguinte. Com a criação Plano Salte (Saúde, Alimentação, Transporte e Energia),

desenvolveu-se grande trabalho pelo desenvolvimento do país. Com efeito, foi neste governo que se completou a construção da Companhia Siderúrgica Nacional; A rede rodoviária foi ampliada, destacando-se a inauguração da Rodovia Rio-São Paulo (Via Dutra). Outros Estados fizeram sua parte, construindo vias estaduais, como a Anhanguera e a Anchieta em São Paulo; a Rodovia Rio-Bahia, iniciada no governo anterior, foi concluída. Lembrando os tempos de Rodrigues Alves, as obras públicas se espalharam por todo o país: a criação da CHESF (Centrais Hidroelétricas do São Francisco), com a subseqüente inauguração da Usina de Paulo Afonso; a eletrificação da Estrada de Ferro Central do Brasil; ampliação do porto do Rio de Janeiro; construção de 50 mil casas populares; construção do oleoduto Santos-São Paulo; construção de duas refinarias, na Bahia e em São Paulo. Criou-se uma bem sucedida campanha de alfabetização de adultos, campanhas pela erradicação da malária e da tuberculose, reformulação do ensino primário, etc. Renovaram-se as Forças Armadas, com a reformulação de seu Estado Maior e a criação do Conselho de Segurança Nacional e da Escola Superior de Guerra. Nossas fronteiras foram reforçadas com aumento de efetivos e compra de novos equipamentos. A Aeronáutica recebeu 300 novas aeronaves e ganhou a Escola de formação de cadetes de Barbacena. A Marinha foi reestruturada, com a ampliação de sua frota. E, dentro da política de realinhamento, militares das três armas fizeram estágios nos Estados Unidos. O desenvolvimento integrado do país afastou os ressentimentos mesmo dos adversários mais ortodoxos. Otávio Mangabeira, por exemplo, foi perseguido nos 15 anos da ditadura Vargas. Esteve exilado duas vezes nesse período, a última das quais, em função do golpe do Estado Novo, perpetrado por Eurico Dutra e Góis Monteiro. Vale à pena registrar, pois, um trecho do discurso de despedida feito pelo governador Otávio Mangabeira, na Assembléia Legislativa da Bahia, em 27 de janeiro de 1951, fazendo referência a Dutra: “Governador do Estado – quero dizer aqui mais uma vez – nunca lhe pedi qualquer favor de ordem pessoal ou partidária. Nunca, entretanto, lhe bati à porta, em nome dos

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interesses da Bahia, que não a encontrasse aberta, e ele infatigável em servir-nos. “A Refinaria de Mataripe; a conclusão, custasse o que custasse, das obras ferroviárias e rodoviárias, para a ligação entre a Bahia e o Rio de Janeiro; a usina termo-elétrica de 20 mil kilowatts; as obras de Paulo Afonso e do vale do São Francisco; as da Universidade da Bahia; o início da construção da Base Naval de Aratu; o combate à malária e os diferentes convênios entre a União e o Estado, graças aos quais tanto se executou em Educação e Saúde e, se bem que em menor escala, na agricultura; as variadas realizações dos diversos Institutos de Previdência; a estação de passageiros do Aeroporto de Ipitanga: a ajuda, direta ou indireta, de caráter financeiro – mais não fora preciso indicar para que, ao apagar das luzes, ponhamos bem ao vivo e bem ao claro o que lhe devemos, e ao governo da República, e nunca deveremos esquecer.”

Conclusão Presidente da República, com o “livrinho vermelho” às mãos, Dutra não participou do processo sucessório. Não escolheu nem apoiou oficialmente qualquer um dos candidatos e, abertas as urnas, garantiu até o último momento a posse do presidente eleito, afastando com decisão os golpistas que procuravam formulas jurídicas miraculosas para mantê-lo no poder por mais um ano. “Nem um minuto mais, nem um minuto menos”, foi a resposta do general que, em 31 de janeiro de 1951, passou a faixa presidencial a Getúlio Dorneles Vargas, de volta ao poder. Dutra afastou-se definitivamente da vida política, mas não da atividade das casernas. Em 1964 participou do golpe que derrubou o presidente João Goulart e, desde então até sua morte, em 1974, permaneceu alinhado sistema que dominou o poder. Era firme em suas convicções e, se não pôde ser coerente em todos os momentos – e de resto ninguém o é – foi porque sua vida teve sempre que dividir-se em dois campos extremos, representados um pela rigidez da vida militar e outro pela tolerância exigida na vida política, especialmente em um regime de amplas liberdades democráticas.

* * *

Capítulo Vinte-e-cincoUM TIRO NO PEITO

O trágico fim de Vargas

Terminados os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, dos quais pouco participou, Getúlio Dorneles Vargas assume como Senador da República, mas deixa em seu lugar o suplente, Camilo Mércio, ilustre desconhecido fora das fronteiras do Rio Grande do Sul e, talvez, até dentro de seu próprio Estado. Foi uma dádiva que lhe caiu às mãos, eleito pela força irrefreável do titular que, aparentemente, cansado da política, retira-se, para sempre, da arena, retornando ao seu refúgio na Estância de Itu, dentro da pequenina cidade fronteiriça de São Borja. A abertura da temporada sucessória, por volta de 1949, fez renascer a romaria a São Borja. Eram os correligionários do trabalhismo, eram pessedistas preocupados com a incógnita que representaria uma eleição sem Getúlio e era, também, o Partido Social Progressista, interessado numa composição nacional com o Partido Trabalhista Brasileiro, para reforçar sua posição nos Estados, especialmente em São Paulo, onde se lançava a candidatura do engenheiro Lucas Nogueira Garcez, competente, mas desconhecido. Ademar Pereira de Barros, chefe do PSP, até pensou em candidatar-se à Presidência da República, mas recuou ante o perigo de deixar o governo do Estado de São Paulo nas mãos de seu vice, Novelli Junior, que poderia detonar a máquina eleitoral tão cuidadosamente montada pelo governador. Novelli era genro do presidente Eurico Gaspar Dutra e estava mais afinado com este do que com o governador. A certa altura, segue para São Borja o jovem jornalista Samuel Wainer, a mando de seu patrão, Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, levando a missão de conseguir uma entrevista com Getúlio Vargas. Mais precisamente, quem o enviou foi Fred Chateaubriand, sobrinho do poderoso Assis, ex-diretor da revista “O Cruzeiro” e que, naquele momento, dirigia o Diário da Noite, onde trabalhava Wainer. Trata-se de um desafio, pois a imprensa era mantida à distância do refúgio do velho ditador. Depois de três dias de persistente trabalho junto à assessoria, consegue, finalmente, que Vargas se disponha a atendê-lo.

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Os dois, que não se conheciam, começam um trabalho de mútuo reconhecimento. A charla gaúcha se alterna com o linguajar carioca, trocando informações, opiniões, idéias. Getúlio era um observador perspicaz e não tardou em reconhecer Samuel Wainer como um homem em quem poderia confiar. Abriu-se, então, numa entrevista ampla, terminando por dizer que, se o povo pedisse sua volta, ele não deixaria de ouvir o apelo popular. A publicação da matéria nos jornais de propriedade de Chateaubriand traz uma reviravolta nos conchavos das cúpulas partidárias. Os fiéis seguidores de Getúlio espalham cartazes pelo país inteiro com a frase: “Ele Voltará”. Não é preciso dizer quem. “Ele” deixa de ser pronome pessoal para transformar-se em substantivo próprio de especial significado, que todos entendem, sem precisar de maiores explicações. O reboliço causado nas hostes oposicionistas e o entusiasmo incontido dos correligionários trouxeram à luz o que todos sabiam há tempos: não havia como fazer política sem Getúlio, e não havia como afasta-lo do cenário político, a não ser por métodos não reconhecidos em um regime de plenitude democrática. A luta que vai se travar, primeiro durante o período eleitoral, depois no interregno que o separa da posse, prossegue por todo o período de governo, desaguando, por fim, na grande tragédia de 24 de agosto de 1954. É dessa luta que trataremos no presente capítulo.

Tomem seus lugares e boa viagem Deixando a porta entreaberta, assinalando a possibilidade de retorno, Vargas, entretanto, nomeou Salgado Filho como seu preposto no Rio de Janeiro, encarregando-o de manter entendimentos com o PSD e a UDN para a escolha de uma candidatura de consenso, não encontrando retorno em sua proposta. A UDN admitiu uma união de forças, desde que ela se desse em torno do seu líder maior, o brigadeiro Eduardo Gomes. E como essa exigência, logicamente, não fosse aceita pelas partes, saiu à frente, lançando, por conta própria, a candidatura do brigadeiro, disposta a liquidar com Getúlio e o getulismo, num trabalho de restauração política que não dispensava, se preciso fosse, o concurso de métodos menos ortodoxos. Com efeito, num ato de evidente

provocação, o lançamento da candidatura de Eduardo Gomes se deu em 19 de abril de 1950, data do aniversário de Getúlio Vargas. Para bom entendedor, meia palavra basta. Descartada a possibilidade de entendimentos com a oposição, o PSD resolveu adotar também candidatura própria, saindo à luta com Cristiano Machado, cujo nome foi lançado em 16 de maio de 1950, um mês após a definição da UDN. A esta altura, ainda não havia surgido a revelação de Getúlio, que continuava afastando seu nome da disputa. Assim, desejando sair do impasse, alguns trabalhistas mais apressados começaram a pensar em uma candidatura saída do Exército para se opor à do brigadeiro, surgindo articulações em torno do nome do general Canrobert Pereira da Costa, então ministro da Guerra do governo Eurico Gaspar Dutra. Então, vem a público a entrevista dada por Getúlio Vargas a Samuel Wainer, renovando esperanças do PTB, e causando confusão no PSD, onde o candidato Cristiano Machado começou a perder suas bases de apoio. No PTB de São Paulo, o coronel-deputado Porfírio da Paz propõe que a candidatura varguista seja lançada mesmo à revelia do candidato. No Rio Grande do Sul, o jovem político João Goulart lança, por conta própria, a candidatura de Getúlio. No Rio de Janeiro, Danton Coelho segue pelo mesmo caminho. Ademar de Barros vai a São Borja, determinado a fechar acordo apoiando Vargas, formando a coligação PTB-PSP, em troca de cargos no ministério e com a indicação de seu correligionário Café Filho para compor a chapa, como vice. Aconteceu o previsto. Em 8 de junho era lançada a candidatura de Getúlio Dorneles Vargas, cujo registro, vencidas as impugnações, se deu em 14 de setembro. O Partido Socialista Brasileiro, de pequena expressão eleitoral, decidiu, assim mesmo, lançar candidatura própria e registrou o nome do político baiano João Mangabeira.

Eleições de 1950 Desfazendo os temores do governo federal, que ameaçou lançar paraquedistas em qualquer parte do país onde se pretendesse tumultuar as eleições, a verdade é que o pleito de 3 de outubro de 1950 transcorreu em grande festa, sem que qualquer problema maior se registrasse.

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Abertas as urnas, apurou-se o seguinte resultado: Getúlio Dorneles Vargas: 3.849.040

votos (48,70%); Brigadeiro Eduardo Gomes: 2.342.384

votos (29,70%); Cristiano Machado: 1.697.193 votos

(21,50%) João Mangabeira: 9.466 votos ( 0,02%) Cristiano Machado foi abandonado pelos seus próprios correligionários, que descarregaram sua votação em Getúlio Vargas, fundador do PSD e seu presidente de honra. Surgiu daí o verbo “cristianizar”, significando o apoio formal a um candidato já previamente descartado. Durante a campanha, Vargas dissera, no Rio de Janeiro: “Se eu for eleito, no ato da posse, o povo subirá comigo as escadas do Catete e ficará comigo no governo”. Ele voltou, “nos braços do povo, escolhido em eleição direta, no pleito mais disputado até aquela data.”

Tapetão Dispostos a fazer o jogo democrático, seus adversários não dispensaram, entretanto, a chicana, recursos com apoio legal, mas de discutida validade moral. Já durante o período pré-eleitoral, corria pelo congresso uma emenda constitucional que pretendia prorrogar em um ano o mandato do presidente Eurico Gaspar Dutra, a qual foi sustada pelo suposto interessado, já que Dutra afirmou que não ficaria no poder “nem um dia a mais, nenhum dia a menos” do que o previsto na constituição vigente. A inegibilidade de Vargas é também questionada pelo dr. José Tomás Nabuco, do Instituto de Advogados. Essa posição é corroborada pelo Correio da Manhã, insinuando que o TSE impugnaria a candidatura Vargas, por ele ter-se desfeito de duas Constituições (a de 1991 e a de 1934), além do que recusou-se a assinar a de 1946. Paralelamente, o advogado paranaense Álvaro Vale deu entrada no TSE com um pedido de impugnação da candidatura Vargas, apresentando todo um arrazoado com que esperava convencer os desembargadores. E não faltou quem pretendesse a anulação do pleito, por não ter-se registrado maioria absoluta (50% dos votos). Nada disso deu resultado. Ao analisar o registro das candidaturas, o Tribunal desconheceu a questões preliminarmente,

considerando-as ilegítimas, já que uma impugnação só poderia ser feita por outro candidato ou por delegado de partido político, não cabendo, no caso, uma ação popular. E, em 19 de agosto, a candidatura foi registrada. Uma última tentativa foi aventada, logo após as eleições e só não ganhou força porque foi descartada com vigor pelo presidente Dutra, caso contrário, poderíamos entrar numa crise difícil de ser solucionada. Entendiam alguns juristas de plantão que o mandato de cinco anos estabelecido na Constituição de 1946 não poderia ser aplicado para Eurico Gaspar Dutra, já que ele foi eleito pela Constituição de 1937, alterada pela emenda nº9, que fixava o mandato do Presidente em seis anos, detalhe que constava de seu diploma. Assim, cumprindo o dispositivo constitucional, querendo ou não, Dutra era presidente da República até 31 de janeiro de 1952. Como o Presidente garantiu que, em qualquer circunstância, deixaria o poder em 31 de janeiro de 1951, haveria vacância do cargo, a ser preenchida por seu sucessor legal imediato. É aí que surge o embrulho, pois, a vencer essa tese, não há sucessor legal que preencha os requisitos. O vice, Nereu Ramos, foi eleito pelo Congresso Constituinte e seu mandato se vence em 31 de janeiro de 1951, a data em que Dutra deixa o poder. O mesmo ocorre com o presidente da Câmara Federal e com o presidente do Senado, ficando pois disponível apenas o presidente do Supremo Tribunal Federal, que deveria assumir no lugar de todos os antecedentes na escala sucessória. Felizmente, o expediente foi abandonado, pois uma hipotética posse do presidente do STF, após eleições realizadas dentro da lei e da ordem, das quais participaram candidatos devidamente registrados, representaria um golpe de difícil assimilação no país e, principalmente, no exterior, onde nossa imagem ficaria irremediavelmente comprometida.

Getúlio no retiro de São Pedro Sendo avesso a viagens, Getúlio preferiu aguardar no Brasil o dia de sua posse, retirando-se para seu Estado natal, o Rio Grande do Sul. Todavia, como a cidade de São Borja era uma trilha marcada pelos peregrinos da política, o local foi desaconselhado e o presidente eleito seguiu,

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então, para a Estância de São Pedro, propriedade de Batista Luzardo, na cidade de Uruguaiana, na divisa com a Argentina e a uns 30 quilômetros do Uruguai. Em verdade, seguiu para lá dias antes das eleições, acompanhando, distante, os últimos comícios e o desenrolar do pleito. Sobre esse curto período, escreve Glauco Carneiro, biógrafo de Luzardo: “Pois foi nesse cenário histórico que Getúlio Vargas viveu os agitados meses que precederam a sua derradeira ascensão ao Catete. Na alta e larga varanda, ele entrevistou-se com centenas de candidatos a cargos políticos. Andou muito a cavalo, contemplou a Argentina do outro lado do rio Uruguai; recebeu e despachou emissários para Perón; repousou e brincou com as crianças na Ilha dos Amores – uma pitoresca construção no centro do jardim da Estância. Provou da boa culinária de D. Adelaide [mulher de Luzardo] e, por muito tempo, deu impressão para os outros de que o proprietário da casa seria seu futuro ministro da Agricultura. “À noitinha, atravessava o corredor sombreado de árvores que leva ao “Castelinho” (um apartamento algo retirado, imitando um pequeno castelo), esquentava os pés na lareira, corria uma roda de chimarrão e recomeçava a conversa política. Só altas horas da noite ia procurar o repouso da cama de metal, colocada ao fundo do aposento. Cerrava o cortinado que separava o quarto da sala, enquanto lá fora o tenente Gregório dispunha a guarda pessoal para velar pelo sono do amo e senhor Getúlio Dorneles Vargas. “(...) Getúlio levantaria vôo dali somente a 17 de janeiro de 1951 para dar entrada no Palácio do Catete, que viria a ser, a 24 de agosto de 1954, cenário de um tiro que varou seu peito e atravessou a História.” Sobre o estilo de vida do Presidente eleito, conta D. Adelaide, mulher de Luzardo, o dono da estância: “Não era exigente em matéria de comida. Dizia: ‘Ó D. Adelaide, de banquete estou até aqui... Quero feijão, arroz, canjica.’ Gostava muito do peixe que eu fazia. Naquele tempo não era como agora; o rio Uruguai dava cada dourado... Eu fazia ensopados, com bastante molho, pimenta, tomate, mangerona. Quando Getúlio via o peixe pronto, comia demais. Depois, tomava um cafezinho e ia se deitar...”

A Estância de São Pedro foi o último instante de paz em sua vida. Ao remanso do rio, seguem-se águas velozes por um leito pedregoso e encachoeirado, exigindo nervos fortes, determinação, raciocínio rápido, manobras precisas e confiança, muita confiança no seu próprio destino que, a partir desse momento, se confunde com os destinos da nação brasileira.

Posse e ministério A despeito de todos subterfúgios utilizados pelos seus inimigos, antes e depois das eleições, para impedir-lhe o caminho, em 18 de janeiro de 1951 Getúlio Vargas foi reconhecido e proclamado pelo TSE como o novo presidente da República, juntamente com seu vice, Café Filho. No dia 22, ambos comparecem ao TSE para a diplomação e, em 31 de janeiro, Eurico Gaspar Dutra, tal como prometera, deixa o governo, passando a faixa presidencial para Getúlio Dorneles Vargas. Era o início de uma longa e encarniçada luta, com seus inimigos alojados no seio da União Democrática Nacional, em parte das Forças Armadas e na maioria dos jornais brasileiros, que lhe abriram feroz perseguição, ignorando os atos de governo e pinçando os desacordos para transforma-los em cavalos-de-batalha, como se a sobrevivência da nação dependesse da eliminação, para todo sempre, do Presidente. Getúlio vivia um dilema. Calcando sua campanha eleitoral no nacionalismo fanático, recebia das mãos de Dutra um governo alinhado com os Estados Unidos e sofria uma pressão, de dentro e de fora do país, para uma abertura do mercado, buscando na iniciativa estrangeira os capitais que nos faltavam. Seu ministério, que pretendia ser de coalizão, procurava compor esses dois fatores antagônicos. Trouxe para perto de si militares da ala nacionalista, buscou apoio em outros partidos e, a despeito de a UDN recusar-se a participar do governo, houve um udenista, João Cleofas, que aceitou o Ministério da Agricultura. Era difícil, mas tentava-se governar com os partidos políticos, base sólida de qualquer democracia. O ministério, chamado de “experimental”, ficou assim formado: Relações Exteriores, João Neves da Fontoura (PSD, Rio Grande do Sul); Justiça, Francisco Negrão de Lima (PSD, Rio de Janeiro); Fazenda, Horácio

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Lafer (PSD/PSP, São Paulo); Agricultura, João Cleofas de Oliveira (UDN, Pernambuco); Educação e Saúde, Ernesto Simões da Silva Freitas Filho, ex-diretor do jornal “A Tarde”, da Bahia; Trabalho, Indústria e Comércio, Danton Coelho (PTB-Rio de Janeiro); Viação e Obras Públicas, Álvaro Pereira de Sousa Lima; Guerra, general Estillac Nilton Leal; Marinha, almirante Renato de Almeida Guillobel; Aeronáutica, brigadeiro Nero Moura. Nos demais cargos de primeiro escalão: Gabinete Militar, general Ciro do Espírito Santo Cardoso; Gabinete Civil, Lourival Fontes, o criador da Agência Nacional; Chefe de Polícia, general Ciro de Resende e Banco do Brasil, Ricardo Jaffet.

Nacionalistas versus “entreguistas” Na defesa apaixonada de suas idéias, formaram-se dois grupos de opiniões bem definidos: de um lado, os “nacionalistas”, reunidos em torno de Getúlio Vargas, mas com ramificações em agrupamentos de esquerda, como os socialistas e os comunistas, estes últimos fora da lei, mas em plena ação; de outro, os auto-intitulados “democratas”, que defendiam ampla abertura do Brasil ao capital externo para acelerar o desenvolvimento nacional. Seus adversários preferiam chamá-los de “entreguistas” e assim ficaram sendo conhecidos. O “ninho de serpentes” dos democratas era a União Democrática Nacional, todavia suas idéias se propalavam também na Aeronáutica, sob a forte influência do brigadeiro Eduardo Gomes, e no Exército, rachado ao meio entre oficiais que defendiam o nacionalismo e outros que não encontravam perspectiva de progresso ao país, a não ser com a internacionalização de nossa economia. O presidente da República jamais dispensou o capital estrangeiro para a realização de seus projetos, porém lutou para que esse aporte se desse na forma de empréstimos e não na instalação de empresas internacionais no Brasil. Esse posicionamento azedou nosso relacionamento com outros países, privou o país de capitais de que tanto necessitava e acabou ganhando novos e fortes inimigos, quando limitou a remessa de lucros ao exterior a 20 por cento do capital das empresas multinacionais aqui instaladas. Medida, por sinal, inútil, já que existem muitos caminhos pelos quais os lucros

podem se evadir, de maneira que, fechado um canal, o fluxo continua pelos outros que continuam abertos. Pelo menos no que tange às indústrias de base, a promessa de nacionalização total foi mantida. A Cia. Siderúrgica Nacional foi construída com base em empréstimos feitos por ocasião da Segunda Guerra Mundial, durante o Estado Novo, sendo o capital 100 por cento nacional. A propósito, a Siderúrgica foi inaugurada no governo Dutra e, no ato de inauguração, nenhuma palavra foi dita em lembrança ao seu idealizador, Getúlio Vargas. Neste novo mandato, o Presidente atira-se com vigor na criação da Petrobrás e, já no final de governo, na implantação da Eletrobrás, ambas estatais e sem interferência de participação acionária estrangeira. No mais, teve de ceder, entregando os anéis para ficar com os dedos.

Guerra da Coréia Uma amostra do que estava por vir foi o episódio criado com a guerra da Coréia, entre 1950 e 1953, desdobramento (quente) da guerra fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, envolvendo de permeio a China comunista e a Organização das Nações Unidas (ONU). Após a Segunda Guerra Mundial, a Coréia foi dividida em dois territórios, tendo como divisa o paralelo 38, ficando a parte setentrional com a União Soviética, que organizou ali um governo comunista; a parte meridional permaneceu com as demais potências aliadas e, quando estas se retiraram, os Estados Unidos consolidaram nela um governo capitalista sob sua influência. Em 25 de junho de 1950, a Coréia do Norte, num ato de provocação, atravessou o paralelo 38, levando o presidente dos Estados Unidos, Harry Truman a enviar tropas àquele país, ad-referendum do Congresso Americano, ou seja, sem declaração formal de guerra. O conflito se expandiu com a entrada da China a favor dos norte-coreanos, levando a ONU a tomar partido, declarando a China como “potência agressora”. Esta era a situação quando os Estados Unidos apelaram aos países pan-americanos, entre eles o Brasil para que enviassem tropas na defesa das liberdades ameaçadas.

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Getúlio Vargas não entrou nessa armadilha. Já que os Estados Unidos não foram atacados por uma potência estrangeira, não havia como falar na aplicação do tratado pan-americano. Em represália, os Estados Unidos ameaçaram suspender as negociações, quase concluídas, para um empréstimo de 500 milhões de dólares ao Brasil. O Ministro da Fazenda e o de Relações Exteriores eram a favor do envio de tropas. Getúlio não, e enviou aos Estados Unidos o general Góis Monteiro, com a missão de convencer o governo americano a separar as coisas, que nada tinham em comum: guerra é guerra, empréstimo é empréstimo. Alegava Getúlio que “possuímos vários minerais estratégicos de que os americanos necessitam e não se faz referência a essa colaboração, que podemos dar, em vez de sangue dos brasileiros, para lutar na Coréia.” Os brasileiros não foram à luta, e isso evitou a perda de vidas inúteis por uma causa que não era nossa. A guerra da Coréia, pelo balanço final, teve, entre os aliados, 118.515 mortos, sendo a maioria deles sul-coreanos; os Estados Unidos perderam 33.729 soldados e os países que enviaram contingentes, atendendo o apelo americano, deixaram 4.786 homens em campo de batalha.

Petrobrás Uma luta feroz, em que o presidente se empenhou até o fim, se deu a favor da criação do monopólio estatal do petróleo. Não que Vargas fosse um histórico defensor do petróleo brasileiro, muito pelo contrário. Quando do primeiro governo (1930-1945), sua visão de estadista levava-o a acreditar que o mais proveitoso ao Brasil seria a compra do combustível das companhias estrangeiras, evitando o trabalho de prospecção e refino, para o qual o Brasil não dispunha de capitais nem tinha conhecimentos técnicos. Com o petróleo a dois dólares por barril, era mais econômico nos servirmos do produto acabado e não desviar nossas atenções para uma tecnologia que não dominávamos, e cujo controle mundial estava nas mãos de umas poucas empresas. Pelo menos, esse era o pensamento do ditador, tanto que não entrou em seus planos sequer a construção de usinas de refino, preferindo importar o produto pronto para o uso, exportando em troca, minerais e outros

produtos primários que o Brasil tinha em abundância. Ao fim do Estado Novo, o país possuía apenas três pequenas refinarias, respectivamente em Uruguaiana (RS), Rio Grande (RS) e São Paulo, cuja produção era insignificante. Um único poço aberto na Bahia, segundo narrativa de Monteiro Lobato, só gerou petróleo por descuido do ditador, que mantinha técnicos encarregados de boicotar os trabalhos de prospecção. Durante o período de Carnaval, quando esses técnicos se achavam de folga, o pessoal prosseguiu nos trabalhos e conseguiu fazer jorrar o petróleo há tanto procurado. Sabedor do acontecimento, Getúlio Vargas mandou lacrar o poço e procedeu sua estatização. Assim conta Lobato, cujo nome foi dado ao primeiro poço, em homenagem à sua luta em favor do petróleo, que lhe valeu uma temporada na Casa de Detenção em São Paulo, a mando do chefe do Estado Novo. Nos anos cinqüenta a situação mudara bastante. O petróleo continuava barato, mas deixou de ser um simples produto de consumo para transformar-se em material estratégico, cujo domínio ou não, poderia significar o progresso ou a estagnação de um país. Daí o interesse do Presidente, e mais, sua determinação de que, tal como na siderurgia, o capital estrangeiro deveria entrar na forma de empréstimos, jamais como participação acionária. Em 8 de dezembro de 1951, o Presidente envia ao Congresso Nacional mensagem com projeto de lei para a criação da sociedade por ações Petróleo Brasileiro S/A, com o objetivo de levar a efeito a pesquisa, a extração, o refino, o transporte do petróleo e seus derivados. A captação dos recursos para a integralização do capital seria feita: a) com bens da União adquiridos no correr dos tempos para prospecção de petróleo; b) com receita federal sobre parte do imposto de combustíveis líquidos e consumo de automóveis; c) com taxação de artigos de luxo (inclusive os próprios carros); d) com parte da receita estadual oriunda de impostos sobre combustíveis líquidos; e) com empréstimo compulsório a ser cobrado por ocasião do licenciamento de veículos; f) por subscrição voluntária de particulares e entidades públicas interessados no empreendimento.

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“O Petróleo é Nosso” Como previsto, a reação dos adversários é imediata e violenta. A proposta do governo atingia de morte pelo menos dois axiomas do liberalismo econômico, o primeiro ao criar uma empresa de caráter estatal, descartando a iniciativa privada e o segundo ao recusar o aporte de dinheiro internacional na formação do capital e condução da empresa, desprezando a tecnologia desenvolvida pelo bloco que domina o mercado petrolífero. Na contrapartida, o projeto sensibilizou não só os aliados do governo, como sindicatos, associações e entidades as mais diversas, e até os comunistas que, embora adversários do governo, lançaram-se na campanha pela nacionalização do petróleo. Surgiu, então, a divisa que ecoou por todo o país e que foi divulgada de norte a sul, em manifestações públicas e em campanhas: “O Petróleo é nosso”. A opinião pública ficou dividida entre “nacionalistas” e “entreguistas”, estes últimos apoiados abertamente pelos americanos e pelos simpatizantes dos Estados Unidos no Brasil, entre eles empresários com interesses voltados para aquele país. A luta atingiu em cheio o Clube Militar, onde as duas correntes tentavam fazer valer as suas opiniões. Dentro do governo a divisão entre ministros era clara e, no Congresso, a base de apoio se fracionou ameaçando a tramitação e aprovação do projeto. No trabalho de convencimento, muito ajudou a campanha popular, que tomou um vulto considerável, não podendo ser ignorada pelos parlamentares. Por fim, o projeto foi aprovado. Em 3 de outubro de 1953, aniversário da revolução de 1930, Getúlio Dorneles Vargas sanciona a Lei nº2004, criando a Petrobrás. Estava vencida a batalha. Getúlio não teria a mesma sorte com a criação da Eletrobrás. Enviando um projeto de lei ao Congresso em 10 de abril de 1954, pouco depois se viu envolvido no mar de lama que inundou o Palácio do Catete e pôs fim ao seu governo.

A guarda pessoal do Presidente Empossado no Governo em 1930, Getúlio Vargas não possuía nem pretendia ter guarda pessoal. A segurança do Presidente era garantida pelas Forças Armadas, alternando-se ora soldados do Exército, ora os Fuzileiros Navais.

Assim foi até 11 de maio de 1938, quando se deu o “putch” integralista, com a invasão do Palácio da Guanabara, em coordenação com os fuzileiros que, naquela noite estavam dando plantão. Foi o tenente Nascimento que abriu os portões do palácio para entrada dos atacantes, e foram os fuzileiros em serviço que prenderam ou executaram aqueles que se recusaram participar do levante. Naquela noite, é bom que se lembre, um franco-atirador, do alto de uma árvore, enviou um tiro certeiro em direção à mesa de despachos do Presidente, transpassando a cadeira onde ele deveria estar sentado. Tudo com a ajuda daqueles militares que se encontravam no Palácio para garantir-lhe a segurança. Superado o episódio, Getúlio pede ao seu irmão, Benjamin Vargas, que lhe selecione homens competentes e confiáveis para a formação de uma guarda pessoal sobre a qual seja possível exercer influência direta. É aí que entra em cena a figura estranha e comprometedora do tenente Gregório Fortunato. Homem rude e ignorante, tinha, todavia, uma virtude, apreciada por Getúlio: seguia as ordens de seu amo como um cão fiel, executando-as ao pé da letra, custasse o que custasse, contando para isso com uma equipe de jagunços que obedeciam cegamente seu comando. Não tardou que Getúlio lhe entregasse missões mais amplas para as quais, seguramente, ele não estava preparado. Ao final da campanha de 1950, por exemplo, foi Gregório Fortunato que escolheu a Estância de São Pedro, em Uruguaiana, dentre tantas outras, para abrigar o candidato e depois Presidente eleito, até o dia da diplomação. E era ele que fazia a triagem de políticos que podiam adentrar à estância para parlamentar com seu amo. Com tal poder nas mãos, não é de se surpreender que venha a ser assediado por interesseiros que, a troco de propinas, utilizavam seus serviços para obter favores ou ganhar as boas graças do Presidente. Gregório enriqueceu rapidamente e, como era rude e ignorante, não tomou medidas de precaução para salvaguardar a si mesmo e ao Presidente, a quem servia. Manobrado com astúcia por gente palaciana, cometeu deslizes, um após outro, até chegar ao crime da rua dos Toneleiros, começo do fim do presidente Getúlio Vargas.

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Lacerda, o demolidor Filho do renomado político socialista Mauricio de Lacerda, o jovem estudante Carlos Frederico Werneck Lacerda fez sua estréia política aos 21 anos, meses antes da Intentona Comunista de 1935, quando, em emocionado comício, lançou o nome de Luís Carlos Prestes como presidente de honra da Aliança Nacional Libertadora. Semanas antes da Intentona, quando Prestes já se achava no Brasil, em lugar incerto e não sabido, coube a Carlos Lacerda fazer a leitura pública de um manifesto do líder comunista, detonando os acontecimentos que levaram até a rebelião de 27 de novembro de 1935. Em 1947, filiado à União Democrática Nacional, Lacerda elege-se vereador pelo Distrito Federal, com expressiva votação. Em 1951, assume uma cadeira na Câmara Federal, passando a conciliar suas atividades políticas dentro da UDN e no Congresso, com as atividades jornalísticas na “Tribuna da Imprensa”, jornal do qual era proprietário. Com uma metralhadora giratória, representada pelo poder extraordinário de sua palavra, pelo raciocínio claro e límpido, e pela determinação demolidora de seu temperamento, Carlos Lacerda passa a atacar incessantemente o palácio presidencial, procurando atingir o presidente Getúlio Vargas, atingindo, indistintamente, todos os que estão ao redor. Uma de suas primeiras vítimas foi o jornalista Samuel Wainer que, protegido pelo dinheiro fácil oriundo de empréstimos oficiais, começou a montar uma rede de jornais para a defesa do Presidente, destacando-se a “Última Hora” no Rio de Janeiro, sua congênere de São Paulo, e a revista “Flan”, de circulação nacional. Ao mesmo tempo que atacava Wainer, procurando atingir Vargas, Carlos Lacerda passou a investigar a vida pregressa de seu adversário, obtendo uma revelação que caiu como bomba: Samuel Wainer não era brasileiro nato, condição essencial para ser proprietário ou diretor de órgão de imprensa. Com efeito, pelos documentos levantados, Wainer nasceu na Bessarábia (Rússia Européia) havendo entrado no Brasil, ainda infante, pelo vapor “Canárias”. Chegando a São Paulo, seus pais o registraram como nascido na capital paulista e, portanto, brasileiro nato. Havia, então, uma série de crimes, suficientes para leva-lo aos tribunais: falsa

identidade, falsa nacionalidade, atuando ilegalmente como proprietário e diretor de órgãos de imprensa, e mais, os empréstimos irregulares em Bancos oficiais, assim como isenções fiscais para importação de maquinário e papel de imprensa, colocando-o em vantagem sobre os demais concorrentes. Ao final, Wainer foi condenado a uma pena de um ano e nove meses de prisão. A revista sob sua direção deixou de circular, os jornais entraram em declínio e, mais tarde, os títulos foram vendidos. Ao atingir o jornalista, Carlos Lacerda acertou seu alvo máximo, o presidente Getúlio Vargas.

Espancamento e mortede um jornalista

O ano de 1954 já começara com um triste presságio. Por ordem não se sabe de quem, o jornalista Nestor Vaz Moreira foi apanhado numa emboscada e surrado até a morte por policiais. Investigando por conta própria, a imprensa descobre como principal autor do espancamento um policial, cujo nome se perdeu no tempo, mas que era conhecido pela sugestiva alcunha de “Coice de Mula”. Ante os protestos da imprensa, da oposição e da própria sociedade civil, foi aberto um inquérito na Chefatura de Polícia, então comandada pelo general Armando de Morais Âncora. Os dias passam e o inquérito se arrasta, para ao final encerrar-se de forma inconclusiva, com respostas que não aclaravam nada, nem tranqüilizavam a quem quer que fosse. A Chefatura de Polícia voltava a lembrar os velhos tempos em que era ocupada por Benjamin Vargas, quando as arbitrariedades eram cometidas com a conivência, quando não com ordens expressas de sua autoridade maior. A morte de Nestor Vaz Moreira foi um assunto que rendeu meses de ataques à polícia de Getúlio Vargas e a falta de solução valeu como combustível para alimentar as críticas muito além do que o episódio, em si, poderia suscitar, se esclarecido a tempo. Nem bem o assunto começava a esfriar e outra notícia volta a alarmar a sociedade carioca: Carlos Lacerda fora vítima de um atentado.

Morte na rua Toneleiros Com os amigos que tinha à sua volta, Getúlio Vargas nem precisava de inimigos. O general Mendes de Morais e um deputado federal, ambos íntimos do palácio presidencial, sugeriram ao chefe da guarda

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pessoal do Presidente, Gregório Fortunato, que ele estaria prestando um excelente serviço ao seu amo se eliminasse Carlos Lacerda. Gregório deixou-se envolver pelo canto da sereia e, acreditando, realmente, que a morte do jornalista traria bem-estar ao Presidente, não teve dúvidas em contratar um pistoleiro para executar o trabalho. Não se sabe bem por que, Carlos Lacerda, jornalista e deputado tinha como guarda pessoal um oficial graduado da Aeronáutica, major Rubens Vaz. Na noite de 5 de agosto de 1954, os dois desceram do carro na rua dos Toneleiros, nº180, residência de Lacerda, quando foram interceptados por um desconhecido que atirou contra o major, ferindo-o mortalmente, voltando-se depois contra o jornalista, que ainda teve tempo de se defender, levando apenas um tiro no pé. Socorrido por populares, o major Vaz veio a morrer em seguida, antes mesmo receber atendimento médico. No hospital, chega o brigadeiro Eduardo Gomes, arqui-inimigo de Getúlio Vargas e, sob comoção, declara: “Para a honra da nação, confio que este crime não ficará impune.” Uma placa de carro, anotada durante a fuga, forneceu a primeira pista, a partir da qual foi se desfazendo, aos poucos, a trama. O motorista do veículo, Nelson Raimundo apresentou-se à polícia e revelou ter sido contratado por Climério Eurides de Almeida, integrante da guarda pessoal do palácio. A missão do motorista era transportar o pistoleiro Alcino João do Nascimento, contratado para consumar o atentado. Tomando conhecimento do fato, Getúlio Vargas manda dissolver imediatamente a guarda pessoal, o que não impede que os acontecimentos se desdobrem, descontroladamente, e com extrema rapidez.

Poderes paralelos É difícil, muito difícil mesmo, descrever o que se passou após a morte do major Vaz e a criação da “República do Galeão”, uma comissão de inquérito formada na Aeronáutica ao arrepio da Constituição. A comoção pelo trágico acontecimento envolveu por completo as Forças Armadas e minou a autoridade do presidente da República, tirando-lhe as condições essenciais para continuar governando. Quem conta é Hélio Silva:

“Ao mesmo tempo que a Polícia, conhecendo o caso através da delegacia em cuja jurisdição o fato ocorreu, tomava providências adequadas, a Aeronáutica designou um oficial superior para acompanhar o inquérito. “Não parou a interferência da Aeronáutica. A oficialidade reuniu-se em assembléias ruidosas no Clube da Aeronáutica. No Clube Militar, oficiais da Marinha e do Exército se solidarizavam com seus oficiais aviadores no repúdio ao crime e na exigência de uma repressão violenta imediata. “Formaram-se bandos punitivos, que realizavam, por sua conta e risco, toda espécie de diligências, ocupando estações rodoviárias, ferroviárias e aeroviárias, identificando quem saísse da capital, empregando cães amestrados na busca dos fugitivos. “Esse trabalho varava os dias e as noites e, enquanto uma equipe exausta era substituída por outra, descansada, os foragidos vinham sendo submetidos a uma perseguição sem trégua, cujos resultados logo se iam apresentar.”

República do Galeão A Aeronáutica tomou a frente, instalando uma comissão de inquérito para investigar o presidente da República, chefe supremo das Forças Armadas. Pela arbitrariedade que representava essa Comissão, funcionando como um um tribunal à margem da Constituição, a sede da Aeronáutica ficou conhecida como a “República do Galeão”. Ato primeiro foi a prisão de Gregório Fortunato. Logo em seguida, é preso Climério o outro componente da guarda pessoal. Dois dias depois, acuado como fera, rende-se o pistoleiro Alcino. Getúlio nem tinha idéia do que se passava à sua volta e, de moto próprio, abriu os portões do Palácio do Catete para que a Aeronáutica fizesse ampla investigação. Seu objetivo, certamente, era o de provar que se tratava de um ato isolado, que não podia ser generalizado, comprometendo a seriedade de sua equipe. Enganava-se. À sua volta, sem o seu conhecimento, as irregularidades vinham sendo praticadas há tempos, envolvendo todos os escalões e comprometendo por completo o governo e seu titular, o Presidente. Todos sabiam, o Presidente não. Vargas confiava demais nos seus auxiliares. E,

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registre-se a seu favor, nenhum indício sequer foi encontrado de que o Presidente tenha, alguma vez, utilizado o poder em proveito próprio. Seus assessores o faziam, à sua sombra, sem o seu conhecimento e sem o seu consentimento.

Mar de lama A cada investigação, novos e surpreendentes fatos iam aparecendo, como uma operação de compra e venda de uma fazenda: vendedor, Getúlio Dorneles Vargas; comprador, Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal e sem renda suficiente para participar de uma operação dessa natureza. Há tempos, Getúlio, envolvido em dívidas contraídas durante a campanha eleitoral, passara uma procuração ao seu filho Manuel Vargas (Maneco) para vender alguns de seus bens, a fim de saldar compromissos. Maneco recebeu a procuração, cuidou de executar o mandato e, sobre o assunto, nada mais disse nem lhe foi perguntado. Surgindo agora essa embaraçosa revelação, Getúlio entra em contato com Maneco, que se achava em viagem pela Europa, ordenando-lhe que volte imediatamente para esclarecer o assunto. A conversa entre Getúlio e seu filho dá a verdadeira dimensão do escândalo. Maneco confessa. Vendera, sim, a fazenda, para Gregório Fortunato, e parte desse dinheiro serviu para custear a viagem que estava fazendo à Europa, agora interrompida. Batista Luzardo conta o que ouviu de Osvaldo Aranha, ministro da Fazenda, a propósito: “Só aí o Presidente tomou consciência dos problemas bárbaros que derrocavam seu governo. Mandou então chamar Osvaldo Aranha com urgência (eu transmito o episódio como me foi narrado pelo próprio Osvaldo, na manhã de 24 de agosto). Osvaldo subiu e encontrou Getúlio debruçado numa janela do Catete, óculos escuros e uma fisionomia tristonha, denotando que havia chorado. ‘Mas o que há, ‘seu’ Getúlio?’ O Presidente fez uma pausa e só fez dizer: ‘Osvaldo, está confirmado. Debaixo do Catete há um mar de lama. O Maneco chegou e confirmou que vendeu a propriedade.’ Dito isso, voltou a chorar.” Segundo narrativa de Luís Alberto, filho de Luzardo, que se achava no Catete, com seu pai, no dia 22 de agosto, chegou a notícia de que a Aeronáutica ia atacar o

palácio e, então, o general Caiado de Castro, chefe da Casa Militar, distribuiu armas a todos os presentes para organizar a defesa. Com efeito, aviões da FAB passavam sobre o Catete em vôos razantes, com o objetivo de achincalhar o Presidente. Após um manifesto de almirantes, segue-se outro, assinado por brigadeiros e transmitido, como o primeiro, por todas estações de rádio. O brigadeiro Nero Moura, ministro da Aeronáutica desde o início do governo, demite-se, retirando apoio ao Presidente, sendo substituído pelo brigadeiro Epaminondas Gomes dos Santos. Dia 23, no Hotel Serrador, em encontro secreto, Carlos Lacerda e Café Filho conversam durante duas longas horas, acertando detalhes sobre a sucessão, na hipótese da renúncia de Getúlio. Em seguida, Café Filho pronuncia um discurso no Senado, previamente redigido, mimeografado e distribuído aos parlamentares, em que considera a hipótese de assumir o governo. Soldados da Aeronáutica cercam o Ministério e impedem a entrada do novo ministro nomeado. Por sua vez, a polícia ocupa a Companhia Telefônica e impõe censura às estações de rádio e agências telegráficas. Por fim, também o Exército se manifesta, solidarizando-se com a Marinha e a Aeronáutica, em documento assinado por oficiais generais. Entre as assinaturas, encontra-se os nomes de Canrobert Pereira da Costa, o primeiro dos signatários. Seguem-se nomes de peso, como Juarez Távora, Alcides Etchegoyen, Pery Bevilacqua, Castelo Branco, Teixeira Lott e Jair Dantas Ribeiro. O cenário estava armado, o roteiro da peça ainda não era conhecido por ninguém.

Última reunião do Ministério Tarde da noite de 23 de agosto, realiza-se a última reunião ministerial de Getúlio Vargas, uma reunião pouco ortodoxa, segundo expressão de Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Lá se encontrava todo o Ministério e mais pessoas ligadas ao Palácio, que nada tinham a ver, mas que lá ficaram, porque o Presidente não lhes pediu que se retirassem. Entre elas, a própria Alzira que se postou junto ao pai e que interferiu, recriminando os ministros militares. A reunião teve lances dramáticos e uma discussão entre os ministros militares, como conta Alzira:

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“Estabelecera-se um atrito entre o ministro da Guerra e o da Aeronáutica, o qual seria o maior responsável pela situação: o manifesto dos generais ou a república do galeão. O brigadeiro Epaminondas [Ministro da Aeronáutica] declarou que bastava prender os dois principais cabeças do movimento, Eduardo Gomes e Juarez Távora, e toda a pendenga estaria terminada. Zenóbio [Ministro da Guerra], irritado, perguntava: É por que você não os prende?’ ‘Porque não disponho de tropas’, respondia Epaminondas. ‘Forneça o local para prende-los e eu vou’. “Interpelado, Guilhobel [Ministro da Marinha] disse duramente: ‘Presidente, parece que seu destino é ser traído pelos seus chefes militares.’ O general Caiado de Castro [chefe da Casa Militar] que, um tanto surdo, em pé, atrás do ministro da Marinha, tentava acompanhar os debates, levou as sobras. O ministro da Guerra [Zenóbio] o interpelava brutalmente, perguntando por que não ia ele comandar as tropas de defesa. Caiado, quando entendeu, aceitou o desafio e pediu que lhe desse as tropas. A confusão ameaçava tornar-se total quando a voz de Vargas, serena e clara, novamente restabeleceu a ordem e o silêncio, um silêncio tétrico.”

Fecham-se as cortinas Na madrugada do dia 24, encerrada já a reunião ministerial, Getúlio Vargas dá suas últimas instruções, assina alguns documentos, e recolhe-se aos seus aposentos. Os participantes da reunião, retiram-se quase todos. Apenas alguns permanecem no palácio, entre eles o ministro da Justiça, Tancredo Neves. No silêncio da madrugada, um tiro ecoa. O capitão Hélio, responsável pelo plantão chega esbaforido: “O Presidente suicidou-se!”. O historiador Helio Silva narra: “Subiram, correndo, Alzira, Tancredo e todos os que se achavam no hall. Vargas estava recostado, na posição confirmada por todos, a perna para fora da cama. O coração sangrando aos borbotões. Tancredo conta que procurou ampara-lo, enquanto Alzira abraçava-o. Ele procurava alguém com o olhar, que se fixou em Alzira, mais demoradamente, até que faleceu.” Ao seu lado, um papel cuidadosamente datilografado, em linguagem clara e com os pensamentos muito bem formulados. Era a carta testamento, cuja autenticidade foi contestada por muitos. Quando mais não

fosse, por um detalhe: Getúlio não sabia escrever à máquina. João Batista Luzardo, em depoimento a Glauco Carneiro, protesta contra essa versão: “Mas, meu Deus, quem pode dizer isso? Está ali a idéia, o feitio dele; o pensamento, a plataforma do que queria e do que procurava fazer, quando fundou o PTB... Ali está a sua reação contra as pressões que sofria, contra os inimigos que o assediavam – quem pode contestar uma certeza destas? Não posso dizer que tenha sido ele quem escreveu as palavras, mas o conteúdo é dele, é dele. “Todo mundo sabia que o Maciel Junior era quem melhor expressava o pensamento dele, por escrito – o emprego dos termos, a maneira de falar do Getúlio. Captava até aquela linguagem coloquial do Getúlio, que tinha muito sucesso ao falar de improviso, porque não se alongava e era feliz – com expressão, com sentimento, com precisão, aferrando-se a idéias determinadas e as transmitindo muito bem ao público. Além do mais, o Maciel Filho, que penso ser o escrevinhador da carta, mas não o seu autor, era confidente de Getúlio, vivia com o Getúlio dia e noite. Se o Getúlio deu as idéias gerais, e o Maciel os alinhou, onde é que o Getúlio deixa de ser o autor?” Verdade é que, se o tiro da rua dos Toneleiros, acertando o major Vaz atingiu Getúlio Vargas, o tiro no peito de Vargas atingiu em cheio a União Democrática Nacional e seu porta-voz máximo, o jornalista Carlos Lacerda. O impacto do suicídio e o teor da carta-testamento sensibilizaram o trabalhador brasileiro, que voltou-se contra a UDN, retirando-lhe qualquer chance de chegar ao poder e dele participar. Seu destino, até que foi extinta pelo Ato Institucional nº2, foi permanecer na oposição, uma oposição violenta e, por vezes, consistente, mas afastada das massas populares, cuja confiança jamais chegou a conquistar.

* * *Capítulo Vinte-e-seis

CONSPIRAR É PRECISOGoverno Café Filho

Peço vênia ao leitor para voltar, talvez pela última vez, ao tema do capítulo anterior, registrando uma característica peculiar da personalidade de Getúlio Dorneles Vargas, que era seu forte apego a algumas figuras

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que passaram pela vida pública, em contraposição com o desprezo votado a outras, nas quais nunca se dispôs a confiar, ou chegou a confiar uma vez para depois afasta-las de seu convívio. Entre estas últimas, inclui-se o general Eurico Gaspar Dutra, por oito anos seu ministro da Guerra, ao qual nunca se atreveu pedir um conselho ou comentar assuntos alheios ao Ministério. A contragosto, consentiu dar-lhe apoio na campanha às eleições presidenciais, só para evitar a eleição do brigadeiro Eduardo Gomes, mas, depois disso, manteve-se afastado e só veio a encontrá-lo em 31 de janeiro de 1951, para arrebatar-lhe a faixa presidencial. Nesse “index” se achavam também Flores da Cunha, Juarez Távora e Francisco Campos (o “Chico Ciência”) que, protestando votos de amizade, acabaram bandeando-se para uma oposição ferrenha, ao esgotar-se o prestígio do Estado Novo. E foi para o purgatório até o jornalista Samuel Wainer, que, descobriu-se, usava de seu prestígio pessoal junto a Vargas para alavancar os negócios que dirigia. Com relação a este, o Presidente não teve dúvidas, mesmo, em ordenar a execução das dívidas de sua empresa jornalística junto aos bancos oficiais. Mas havia um grupo seleto, a sua “patota”, que mereceu confiança irrestrita, o qual ele sempre se esforçou para manter junto de si, até quando circunstâncias especiais levaram-nos a um eventual afastamento. Neste grupo, primeiro que tudo, inclui-se sua filha Alzira. Ainda adolescente, ela sentava-se ao chão do gabinete presidencial do Palácio como se fosse extensão de sua própria casa. Nem bem completara seus dezoito anos e já era nomeada funcionária do palácio, dando expediente no Catete e na Guanabara. Era a primeira a saber de fatos ocorridos ou de decisões que seriam tomadas. Getúlio observava-lhe as reações, como se estivesse procurando detectar nela a repercussão que haveria de encontrar, mais tarde, junto aos demais. Ela acompanhou o “Patrão”, como o chamava, durante a vida inteira. Na última reunião ministerial, ficou de atrevida na sala e, de quebra, passou uma descompostura nos ministros militares ali presentes. Após o tiro fatal, foi sobre ela que pousaram os olhos do Presidente, segundos antes de fecha-los para sempre.

Nessa lista de “confiáveis” estavam também Lourival Fontes, fundador da Agência Nacional e seu último chefe do Gabinete Civil; Maciel Junior, que lhe redigia os discursos; João Batista Luzardo, o caudilho dos pampas; Oswaldo Aranha, sempre ocupando os mais altos cargos do governo; e até o general Góis Monteiro, que comandou o golpe de 1945, pondo fim ao Estado Novo e obrigando Vargas a assinar sua própria renúncia. Depois da deposição do ditador, Getúlio e Góis nunca mais se viram, mas em 1950, quando Ademar Pereira de Barros lhe impunha o nome de Café Filho como candidato a vice-Presidente, Getúlio contemporizou e enviou vários emissários a Góis Monteiro, buscando uma reaproximação. Por fim, Góis concordou em reunir-se com seu antigo chefe, num encontro em que ambos se emocionaram bastante. Vargas fez questão de declarar que não guardava qualquer mágoa com relação ao episódio de 29 de outubro de 1945, quando fora obrigado a deixar o governo, por ultimato de Góis Monteiro, então seu ministro da Guerra, entendendo que este fez o melhor, dentro do grave momento político-militar em que a decisão foi tomada. E, neste encontro, lhe transmitia um pedido de amigo: queria que Góis Monteiro aceitasse figurar em sua chapa como vice-presidente da República, livrando-o da incômoda presença de Café Filho. Continuava a confiar no seu ex-Ministro, companheiro de lutas desde a Revolução de 1930, que ambos comandaram, um como líder civil e outro como líder militar. Inútil a insistência. O general deixou claro que, após a cisão ocorrida com o fim do Estado Novo, não havia ambiente para uma reaproximação e menos ainda para um acordo político, sentindo-se sem condições para, se eleito, ser um colaborador e eventual substituto do Presidente. Pretextou, também, seu precário estado de saúde para manter-se afastado das lides políticas. Foi assim que, na ausência de outra alternativa confiável, Getúlio acabou por aceitar a proposta de Ademar de Barros. Eis por que Café Filho se tornou vice-Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil. Ele jamais ganhou a confiança do Presidente e acontecimentos posteriores mostraram que

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Vargas não estava de todo errado nas restrições que fazia ao seu substituto legal.

Preparando a sucessão Estamos em 13 de agosto de 1954, onze dias antes do fim inesperado do governo Getúlio Vargas. É meio-dia. O vice-presidente da República é procurado em seu gabinete pelo jornalista Murilo de Melo Filho, com o objetivo de agendar um encontro entre Café Filho e Carlos Lacerda, este último fazendo-se porta-voz das Forças Armadas e articulando a sucessão presidencial, após a vacância da Presidência da República, que já era contada como certa. Relutando a princípio, o vice-Presidente, por fim, acede ao convite, sendo escolhido um local neutro, o Hotel Serrador, onde se achava hospedado um comum amigo, recém vindo do Nordeste. Um e outro deveriam chegar separadamente, a fim de preservarem-se incógnitos, livrando-se de especulações. Às 14h30, Café Filho chega ao Hotel Serrador. Uma hora depois, entra Carlos Lacerda, acompanhado do jornalista que agendou o encontro. Vinha em uma cadeira de rodas, em virtude do tiro que recebera no pé por ocasião do atentado da rua dos Toneleiros. Conversaram por duas horas e dez minutos e acertaram os detalhes para a transferência de governo, no momento em que isso devesse acontecer. Dias depois, agravando-se a crise, o vice-Presidente procurou Vargas e lhe propôs a renúncia de ambos, hipótese em que a vaga seria preenchida pelo presidente da Câmara Federal, até que se convocassem novas eleições. Getúlio não aceitou e, de quebra, a proposta inusitada acabou gerando um atrito entre o ministro da Guerra, general Zenóbio da Costa e o ministro da Marinha, almirante Renato de Almeida Guilhobel, ambos com opiniões antagônicas sobre o assunto (Guilhobel dava apoio irrestrito a Vargas e desconfiava que este estava sendo traído pelos outros dois ministros militares, o da Guerra e o da Aeronáutica). Dez horas da noite de 22 de agosto. O brigadeiro Eduardo Gomes telefona ao general Juarez Távora (ambos no pico da conspiração) e informa-o de que Getúlio se recusara a aceitar a renúncia coletiva. Surge, então, o manifesto dos generais a que nos referimos no capítulo anterior, solidarizando-se com a Aeronáutica e a Marinha, que já haviam se manifestado contra a permanência

do presidente da República no poder. Era a autoridade do Chefe Supremo das Forças Armadas que vinha sendo contestada por seus subordinados, invertendo-se a ordem constitucional. Dia 23 de agosto, segunda-feira, à tarde. O vice-presidente da República, que pela Constituição de 1946 era também presidente do Congresso Nacional e do Senado, pronuncia um discurso nesta Casa, considerando já a hipótese de vir a assumir a presidência da República em substituição a Getúlio Vargas. No mesmo 23 de agosto, à noite. O manifesto dos generais já contava com 27 assinaturas e estava apto para divulgação. Não foi preciso publicá-lo, pois, como já sabemos, horas depois, na madrugada de 24 de agosto, Getúlio Vargas pôs termo à própria vida, deixando vago o cargo para seu sucessor imediato, o vice-Presidente, João Café Filho.

O gosto amargo da vitória A morte do Presidente não trouxe a pacificação, pelo contrário, iniciou um novo período turbulento na vida do país, pois seu substituto tinha poderes constitucionais que não podia usar em sua plenitude, refém que era das mesmas forças que acuaram Getúlio Dorneles Vargas até além dos limites da própria vida. Getúlio Vargas morrera entre duas e três horas da madrugada do dia 24. Nesse mesmo dia, entre dez e onze horas da manhã, João Café Filho toma posse, sentindo o gosto amargo da vitória, sem ministério, sem palácio, sem gabinete, sem povo. O evoluir dos acontecimentos acabou trazendo uma cisão na cúpula militar, como conta Hélio Silva: “Também os chefes militares foram traumatizados, porque não pretendiam ir tão longe, nem haviam previsto as conseqüências de uma crise que se desencadeava além de seu controle. Os ministros militares não foram facilmente substituídos, porque as divisões nas Forças Armadas iam se acentuar, culminando com os acontecimentos de 64 [golpe militar]. O titular da Guerra, general Zenóbio da Costa, foi ultrapassado em suas previsões. Outro chefe militar de atuação destacada no episódio, o general Juarez Távora, tomou a deliberação, e a manteve, de ‘nunca mais se envolver em tentativas de corrigir, pela força,

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os erros ou omissões de nossos governantes.’ “O vice-presidente era conduzido pelas circunstâncias e seria dominado por elas. A autenticidade de seu mandato e a autoridade de sua investidura, por imperativo constitucional, nada mais valiam, depois da imposição feita a um presidente da República. A intangibilidade da Constituição desaparecera. Erigira-se uma ‘lei de necessidade pública’, de que eram legisladores e intérpretes os militares e os políticos.” O Palácio Guanabara ainda era residência da família Vargas. As massas populares, sofrendo a dor da perda, naquela hora, pelo correr do dia, pela noite adentro e pelo dia seguinte, se aglomeravam em frente ao Palácio do Catete, onde se deu a tragédia, chorando a morte do “pai dos pobres” e tentando chegar até a urna funerária, para vê-lo uma última vez. Nas grandes cidades, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo, turbas avançavam pelas ruas e clamavam por justiça. Batalhões de soldados, usando balas de festim, aumentavam o tumulto, tentando acabar com as passeatas. E como nem todas balas eram realmente de festim, várias pessoas saíram machucadas. No dia seguinte, multidões acompanharam a urna funerária, numa homenagem póstuma, até o avião que levaria o chefe de volta a São Borja, sua primeira e última morada. Temendo pelo pior, as forças militares evitavam entrar em choque com aqueles aglomerados que, no jargão militar, costuma-se classificar de “baderneiros”. Café Filho surgia nesse cenário como um Presidente solitário, esquecido das massas que se voltavam para o Presidente morto, e fiscalizado pela UDN e pelas Forças Armadas, que lhe encaminhavam os passos, donas que eram da situação. Não restou ao novo Presidente senão acomodar-se como pôde no Palácio das Laranjeiras, o único disponível, para tomar, a partir dali, os primeiros atos do governo, em circunstâncias tão graves que não admitiam sequer um minuto de paralisação. A propósito de João Café Filho, sabe-se hoje que ele não teve, por vontade própria, nenhuma participação na conspiração que levou à derrubada do presidente Getúlio Vargas. Seu encontro com Carlos Lacerda, proposto por este, aconteceu por um erro de

avaliação de Café, pois ele acreditava estar ajudando a administrar a crise. Ao contrário, assumindo o compromisso de subir à Presidência assim que se desse a vacância, sua posição fez recrudescer a ação dos adversários de Vargas, apressando o fim do governo já cambaleante. Tentando depois se explicar com um discurso no Senado, na véspera do desfecho, complicou ainda mais sua delicada posição. Tomava posse, pois, numa situação em que a hierarquia se achava perigosamente invertida. No Palácio das Laranjeiras, o Presidente constituído, Chefe Supremo das Forças Armadas, se tornara refém dessas mesmas forças, que lhe delineavam os caminhos, sem deixar campo de manobra para suas próprias decisões. Essa interferência se deu na preparação do Ministério e nos subseqüentes atos de governo, sempre em coordenação com Prado Kelly, presidente da União Democrática Nacional, que fazia os contatos e a intermediação. Café Filho, desde o início, tornara-se apenas um espectro de Presidente. E assim seria até o fim.

Quem era Café Filho João Fernandes Café Filho nasceu em Natal, Rio Grande do Norte, em 3 de fevereiro de 1899, formando-se advogado e constituindo banca especializada em assuntos de natureza trabalhista. Dedicando-se a essa causa com ardor, fundou um jornal em que fazia ampla oposição ao governo e aos patrões. Sua posição de defensor dos humildes lhe trouxe constantes problemas. Em 1934 elegeu-se deputado federal, mas já no ano seguinte, enfrentou perseguições por ter-se manifestado contra as restrições impostas à Constituição, após a Intentona de 1935, da qual não participou. Em 1937, insurge-se contra o Estado Novo implantado por Getúlio Vargas, Góis Monteiro e Eurico Gaspar Dutra, tendo de fugir para a Argentina, onde ficou por mais de um ano, até que a situação no Brasil se acalmasse. Reconquistadas as liberdades democráticas, em 1946, filiou-se ao Partido Social Progressista de Ademar Pereira de Barros, juntando-se aos populistas e integralistas que se aninhavam nessa legenda. Foi por ela que se candidatou a vice-Presidente, na chapa de Getúlio Vargas, dentro da coligação PTB-PSP.

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A partir daí, sua atuação política ganhou uma feição mais conservadora, que o colocou em oposição ao governo de Getúlio Vargas, na medida em que se manifestava contra o progresso da legislação trabalhista, contra a nacionalização da economia, etc. Seu novo posicionamento em face da administração colocava-o agora mais próximo da UDN que do trabalhismo. Como vice-presidente da República, cabia-lhe, segundo a Constituição de 1946, presidir o Senado e o Congresso Nacional (Senado e Câmara Federal reunidos). Não freqüentava o Palácio do Catete nem tinha presença no governo, mas foi convidado, algumas vezes para participar de reuniões ministeriais. Não era íntimo do Palácio, mas também não se incluía entre os ferrenhos opositores de Vargas. É este homem que encontramos no meio da crise que se desenvolveu em agosto de 1954 e que, ao final, assumiu a presidência da República. Orientado e pressionado por forças externas, e necessitando formar uma base governista no Congresso, teve de ceder, e muito, formando um ministério conservador, com forte influência udenista. Salvou-o, pelo menos, a indicação de seu ministro da Guerra. Havendo uma forte cisão na cúpula militar, o resultado de consenso foi a nomeação de um militar apolítico, voltado exclusivamente para suas atividades profissionais, o general Teixeira Lott. O Ministério ficou assim constituído: Relações Exteriores, Raul Fernandes; Justiça, Miguel Seabra Fagundes; Fazenda, Eugenio Gudin; Agricultura, José da Costa Porto; Educação e Cultura, Cândido Mota Filho; Saúde, Raimundo de Brito; Trabalho, Indústria e Comércio, Napoleão Alencastro Guimarães; Viação e Obras Públicas, Lucas Lopes; Guerra, general Henrique Batista Duffles Teixeira Lott; Marinha, almirante Saladino Coelho (interino), logo substituído pelo almirante Edmundo Jordão Amorim do Valle; Aeronáutica, brigadeiro Eduardo Gomes. Para chefe da Casa Militar foi nomeado o general Juarez Távora, que, com Eduardo Gomes e Carlos Lacerda, foi um dos pivôs da crise de agosto. Carlos Lacerda impôs um nome para a Prefeitura do Distrito Federal: Alim Pedro, que iria substituir Dulcídio Espírito Santo Cardoso.

Café Filho era casado com Jandira Carvalho de Oliveira Café e tinha um único filho, Eduardo Antônio.

Obras de Governo Por tratar-se de um mandato-tampão, e envolvido permanentemente em questões políticas de menor ou maior gravidade, o governo de Café Filho não realizou obras dignas de registro, completando apenas aquelas que já se achavam em fase final quando assumiu a Presidência. Uma delas é a Estrada de Ferro Brasil-Bolívia, de Corumbá a Santa Cruz de la Sierra, inaugurada conjuntamente pelo Presidente brasileiro, João Café Filho, e pelo Presidente boliviano, Victor Paz Estenssoro. Com a interligação à Estrada de Ferro Sorocabana, tornou-se possível transportar passageiros e mercadorias de São Paulo (Capital) até Santa Cruz de la Sierra (Bolívia), atravessando todo o Estado do Mato Grosso, passando por Campo Grande e Corumbá. Era um percurso de quase dois mil quilômetros, que levava vários dias, sem qualquer conforto, valendo-lhe o cognome de “O Trem da Miséria”. Foi em seu governo, também, que se inaugurou a Refinaria de Cubatão, conhecida oficialmente como Refinaria Presidente Bernardes. No dia 3 de agosto de 1955, já ao final do governo, assinou um Acordo de Cooperação Atômica com os Estados Unidos. No mais, já não era Café Filho que conduzia o governo, era o governo que o conduzia, ao sabor dos acontecimentos e da turbulência que se fez presente durante todo o período.

Eleições de outubro O primeiro problema a enfrentar era vencer a resistência que começava a se formar contra as eleições de 3 de outubro de 1954, para preencher os cargos de governadores de Estado, prefeitos e vereadores, deputados estaduais, deputados federais e renovação de parte do senado. Tratavam-se, pois, de eleições gerais, excluída apenas a escolha do Presidente. Não faltaram as Cassandras da política a prenunciar possíveis tumultos na campanha, no pleito e na apuração. Falava-se do estado emocional em que vivia o país, que poderia influir negativamente nos resultados, trazendo de volta um passado que se pretendia enterrar em definitivo. Argumentos eram enfileirados, justificando uma

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suspensão das eleições para remarcá-las em data mais oportuna. Esse novo golpe não chegou a se consumar. As candidaturas foram registradas normalmente, as campanhas aconteceram com grande participação popular e as eleições se realizaram na data prevista, 3 de outubro de 1954, com a apuração dos resultados e a posse aos eleitos sem que a segurança nacional fosse sequer arranhada. Em São Paulo, onde concorreram ao governo do Estado o ex-governador Ademar Pereira de Barros e o prefeito-renunciante Jânio da Silva Quadros, deu-se um fato curioso: quem detinha a máquina política e quem elegera Getúlio Vargas era Ademar; quem ganhava terreno, atraindo para si o eleitorado trabalhista e manobrando com habilidade a opinião pública, era Jânio, usando novamente o mote do “tostão contra o milhão”, que já se mostrara eficiente na campanha anterior, em que ganhou a Prefeitura de São Paulo. Renunciando à Prefeitura um ano depois da posse, Jânio levou a tiracolo também o vice-prefeito, coronel Porfírio da Paz, agora candidato a vice-Governador. Dentro da linha sucessória o presidente da Câmara Municipal, Willian Sallem, foi obrigado a assumir a Prefeitura, para não deixar o município à deriva. Não obstante, os dois (Jânio e Porfírio) repetiram o sucesso das eleições de 1953, destroçando uma vez mais a máquina política montada pelo seu adversário. Carlos Lacerda, desta vez, candidatou-se à Câmara Federal e, como previsto, ganhou as eleições, passando a contar agora com duas tribunas: a do seu jornal e a do parlamento. Mais um fato curioso e surpreendente: João Goulart, suposto herdeiro político de Vargas, perdeu as eleições para senador em seu próprio Estado, o Rio Grande do Sul. Não sobreviveu sem a presença de seu chefe e padrinho.

Primeira crise no governo Ainda nem haviam tomado posse os eleitos em 1954 e as atenções em todo o país começaram a se voltar para as eleições presidenciais de 1955, quando se esperava levar o país de volta aos caminhos da democracia. A sucessão era assunto de todas as rodas, gerando especulações e alimentando as redações de jornais com a mais variada boataria.

Não é de estranhar que o governo central se visse logo envolvido nesse processo, sob pressão das forças reacionárias, que lhe cobravam a iniciativa de ordenar o processo sucessório, antes que este se degenerasse. Acontece, então, que seu ministro da Justiça, Seabra Fagundes é convidado a participar do encerramento das comemorações do 4o Centenário da Cidade de São Paulo, a acontecer em 25 de janeiro de 1955. Desembarcando na capital paulista, sofre o natural assédio de repórteres que lhe fazem várias perguntas, caindo inevitavelmente no tema do dia, que é a sucessão presidencial. Orientado pelo presidente da República, o ministro tem resposta na ponta da língua: A sucessão é um problema dos partidos políticos e entre eles deve ser resolvida, não cabendo ao governo federal interferir no processo, mas cuidar para que a ordem seja mantida na campanha, nas eleições, na apuração e na posse do eleito. Dois dias depois, o presidente Café Filho faz um discurso na Voz do Brasil, pressionado pela cúpula militar, em que toma uma posição antagônica à de seu ministro, manifestando o indeclinável dever do Presidente de interferir para garantir a harmonia e a concórdia. Foi mais que suficiente. Seabra Fagundes se sente desautorizado e pede demissão, sendo substituído por Alexandre Marcondes Machado Filho. A emenda foi, sem dúvida, bem pior que o soneto. Quem acompanha este trabalho de História desde o início, há de lembrar-se que Marcondes Filho era o Ministro de Trabalho do Estado Novo, ocupando interinamente, também, o Ministério da Justiça. Naquela época, por encomenda do ditador Getúlio Vargas estava preparando um anteprojeto de constituição para a implantação de uma república sindicalista, como aquela criada por Perón na Argentina. Nomeá-lo agora Ministro da Justiça, foi como usar gasolina para apagar o fogo. Criou-se desde logo uma agitação no seio ministerial, obrigando o Presidente a sustar a nomeação até segunda ordem. Dentro do governo, um veto completo ao nome do ministro. Fora dele, a desconfiança sobre as verdadeiras razões dessa nomeação. E de quebra, o novo governador do Estado de São Paulo, Jânio da Silva Quadros, sentiu-se

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agastado pela nomeação de um paulista sem que ele tivesse sido previamente consultado. No meio de tanta discórdia, Café Filho desiste e retira-se para o palácio de férias, em Petrópolis, pretendendo descansar uns dias e refazer os pensamentos que, a esta altura, se achavam um tanto quanto embaralhados. Conversa vai, conversa vem, os ministros acabam concordando com a posse do novo companheiro, porém, condicionando-lhe os movimentos e, pior ainda, censurando previamente o discurso que Marcondes Filho deveria fazer no ato da posse. Um discurso que se tornou água com açúcar, falando em recuperação moral do país e, a pedido não se sabe de quem, imiscuindo-se no processo eleitoral, ao propor que seja procurado um candidato de conciliação nacional. O texto do discurso não combinava em nada com o perfil do orador.

Juscelino na mira dos conspiradores

Desfeita com absoluto sucesso a síndrome das eleições gerais, começou a surgir um novo fantasma, representado, desta vez, pela aproximação das eleições presidenciais a se realizarem em 3 de outubro de 1955. Alguns nomes começavam a despontar e, entre os postulantes, ganhava força, dentro do PSD, a indicação do ainda governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek de Oliveira. Médico, sua presença começou a ser notada na Revolução de 1932, quando serviu em Hospitais de Sangue. Pelas mãos de Benedito Valadares foi conduzido à política, elegendo-se sucessivamente deputado federal, prefeito de Belo Horizonte e, por fim, governador do Estado. O sucesso de JK não era bem aceito pelas forças reacionárias, que viam no político mineiro o retorno do getulismo. Café Filho foi, então, incumbido de estabelecer contato com o político mineiro para dissuadi-lo de aceitar qualquer proposta visando sua candidatura à Presidência. Não tardou que ele fosse chamado ao Palácio do Catete para uma longa conversa com o Presidente, que retomou o tema levantado pelo ministro Marcondes Filho, qual seja, o de uma candidatura de coalizão. E o Presidente foi mais adiante, achando que essa coalizão somente seria possível com um candidato militar, como acontecera nas

eleições de 1945, quando foi vencedor o general Eurico Gaspar Dutra. Como ambos não chegassem a um consenso, a conversa foi encerrada por aí, sem que qualquer dos lados arredasse o pé em sua posição inicial.

O PSD e a candidatura JK Alertado sobre as manobras de bastidores que ocorriam no Distrito Federal visando barrar Juscelino Kubitcheck, o PSD tratou de viabilizar essa candidatura, tornando-a irreversível. O primeiro passo foi buscar sua aceitação dentro da própria legenda. O segundo, conseguir o apoio do PTB, por intermédio de Tancredo Neves e de Osvaldo Aranha, este último exercendo o cargo de presidente nacional da entidade. Se, de um lado, a idéia de coligação foi bem aceita pelos trabalhistas, de outro, causou três dissidências dentro do próprio PSD, por questões regionais, envolvendo Etelvino Lins (Pernambuco), Nereu Ramos (Santa Catarina) e Peracchi Barcelos (Rio Grande do Sul). De qualquer maneira, estava lançado o primeiro nome à sucessão, e com ele, aberta a discussão em torno do assunto, na área política e nas casernas. Partidos populistas receberam a indicação com simpatia; a UDN, como era de se esperar, acenou com o perigo do retorno ao passado. Prado Kelly, porta-voz do partido, colocou restrições, dizendo: “É de se esperar que todos os elementos que consideram a candidatura Juscelino como a expressão de um sentimento sebastianista [o retorno de Getúlio na pessoa de JK] quanto aos rumos da política brasileira, congreguem em torno de um programa que corresponda às esperanças de uma reforma pela qual anseia a opinião brasileira. Nesta fase dos acontecimentos, há mais necessidade de traçar bases de uma política orgânica, de solução do problema nacional, de reconhecida relevância, de afirmações de teses moralizadoras, do que o debate de nomes.” Menos diplomáticos e mais pragmáticos, os chefes militares assinaram um manifesto, que entregaram ao presidente da República, como instrumento de pressão a ser usado contra o recém lançado candidato. Alarmado, Café Filho chama Juscelino ao Catete para mais uma conversa, mostra-lhe o manifesto, ainda não divulgado, e concita-o a desistir da candidatura, colaborando assim para a

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pacificação nacional. Não obteve sucesso e, de imediato, JK distribui uma nota à imprensa, típica de político mineiro, fazendo referência ao encontro e terminando com esta frase: “Os propósitos revelados por s. exa. [Café Filho] encontraram, em princípio, o melhor acolhimento de minha parte, pois nunca foi outro o meu propósito, já várias vezes manifestado, e que manterei integralmente, no decorrer da campanha, se for homologada a minha candidatura na convenção do meu partido.” Nem a favor, nem contra, muito pelo contrário... Em 27 de janeiro, Café Filho se utiliza da Voz do Brasil para criticar a posição de JK em manter a candidatura e, no dia seguinte, este dá o troco, em entrevista ao Correio da Manhã: “Deus poupou-me do sentimento do medo, como da arrogância e da vaidade. Quaisquer que sejam os rumos dos acontecimentos, saberei ser digno das minhas responsabilidades, assumindo-as com ânimo firme e sereno, ao mesmo tempo.” Nessa noite, em discurso pronunciado no Rio de Janeiro, Juscelino retoma o tema, desta vez mais claro e contundente: “Tenta-se formar um círculo de ferro em torno de mim, para me obrigar a renunciar. (...) Não me pedem uma paz política, mas uma capitulação. Querem um gesto de submissão. E este gesto eu não terei. (...) Nada mais estou fazendo senão acreditar na legalidade. A duração da minha candidatura está condicionada à duração da própria democracia no Brasil.” A questão estava posta. A incipiente e frágil democracia brasileira iria passar por sua prova de fogo. Tudo estava a indicar que o processo sucessório, neste ano de 1955, não seria pacífico, havendo enfrentamento entre as garantias da Carta Magna e o poder paralelo que a elas se opunha.

Eleições presidenciais Chegamos às eleições de 3 de outubro de 1955. O período de campanha fora bastante tumultuado e indeciso. JK permanece candidato. Jânio Quadros lança-se concorrente, mas renuncia à candidatura meia hora antes de terminar o prazo para desencompatibilização, permanecendo, pois, no governo do Estado de São Paulo. A UDN lança Etelvino Lins, dissidente do PSD pernambucano, mas logo se retrai, ante

a pouca aceitação desse nome. Também não arrisca mais submeter às urnas o nome do brigadeiro Eduardo Gomes, duas vezes derrotado, e resolve sair à luta apoiando outra candidatura militar: a do general Juarez Távora, inicialmente lançada pelo PDC. Uma estranha composição da democracia cristã com as forças reacionárias, só possível mesmo num país onde os partidos não conseguem encontrar sua própria identidade. Ao final, são quatro os candidatos: Juscelino Kubitchek de Oliveira (PSD-PTB), fazendo dobradinha com João Belchior Goulart como vice; Juarez do Nascimento Fernandes Távora (UDN-PDC) e seu companheiro de chapa, o mineiro Milton Soares Campos; Ademar Pereira de Barros, lançado pelo seu partido, o PSP, e o integralista Plínio Salgado, pelo PRP. Nestas eleições, uma novidade, lançada pelo Tribunal Superior Eleitoral: a cédula única, que substituía o “voto-marmita”, feito com cédulas que eram impressas pelos próprios candidatos e que o eleitor levava no bolso ou na bolsa, prontinhas para serem colocadas no envelope e depositadas na urna. Agora não mais seria assim. A cédula única era impessoal, trazendo o nome de todos os candidatos. Depois de rubricada pela mesa eleitoral, era entregue ao leitor para assinalar, na cabine secreta, nome de sua preferência. Terminada a apuração, venceu Juscelino Kubitscheck, com 3.077.411 votos; Juarez Távora segue-o de perto com 2.610.462 votos; Ademar obtém 2.120.785 votos. A votação de Plínio Salgado é desprezível.

A reação Seria muita ingenuidade acreditar que os resultados apresentados fossem aceitos pacificamente, tanto mais que o veto a JK havia sido feito ostensivamente pelas forças reacionárias desde que se aventou a possibilidade de sua candidatura. E se a UDN, na eleição de Getúlio Vargas, contestou os resultados porque este havia obtido apenas 48 por cento dos votos, e não maioria absoluta (50%), imaginem só agora, em que a diferença entre JK e Juarez era insignificante e o vencedor conseguira pouco mais de 30 por cento dos votos... Numa atitude digna e elogiável, os outros dois candidatos, Ademar de Barros e Plínio Salgado reconheceram a legitimidade dos resultados, aceitando como válida a eleição de Juscelino. Também o PSD, o PSP, o

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PRP, o PTN e o PST, como partidos políticos, lançaram um manifesto, lido na Câmara Federal por Arnaldo Cerdeira, declarando respeitar a legitimidade das urnas. Enfatizando que qualquer objeção ao processo deveria ter sido apresentada antes das eleições, e não depois delas, o manifesto declara peremptoriamente: “Todos os partidos do país, sem exceção, se acham lógica e irrefutavelmente comprometidos no sentido de sustentar a validade das eleições, conformando-se com a decisão da justiça eleitoral que, neste momento, é a autoridade cujo pronunciamento a nação espera para acatá-lo com todo o respeito, dentro das tradições de rigorosa integridade, independência e imparcialidade que norteiam a magistratura brasileira.” Nem todos pensavam dessa maneira e a manifestação desse inconformismo não tardaria a se fazer, jogando o país em uma crise de sérias proporções.

Coronel Mamede Em 31 de outubro de 1955, uma segunda-feira chuvosa, 28 dias após as eleições, morria, subitamente, o general Canrobert Pereira da Costa, chefe do Estado Maior das Forças Armadas (EMFA). Na tarde do dia 1o, diante da sepultura, no Cemitério São Francisco Xavier, discursaram o ministro da Guerra, general Teixeira Lott, o novo chefe do EMFA, brigadeiro Gervásio Duncan, o almirante Borges Fortes, pela Marinha e o major Faria Terra, pelo Clube da Aeronáutica, todos escalados para prestar sua homenagem ao militar falecido. Repentinamente, e para a surpresa de todos, apresenta-se para falar, dizendo-se em nome do Clube Militar, o coronel Jurandir Bizarria Mamede. Pelas circunstâncias do momento, e para evitar um tumulto maior, o militar não foi contido e leu, não uma homenagem mas um discurso de conteúdo fortemente político, fazendo referências à participação do general Canrobert nos acontecimentos que levaram à queda de Vargas e questionando a validade das últimas eleições presidenciais, em que o vencedor não obteve maioria absoluta. Com efeito, em certo trecho do discurso Mamede diz: “Não será por acaso indiscutível mentira democrática um regime presidencial que, dada a enorme soma de poder que concentra em mãos do Executivo, possa vir a consagrar, para a investidura do mais alto

mandatário da nação, uma vitória da minoria?” Embora oficial do Exército, o coronel Mamede estava em serviço temporário na Escola Superior de Guerra, órgão ligado ao EMFA que, por representar as três Forças Armadas, estava diretamente subordinado ao presidente da República. Diante dessa circunstância, o ministro da Guerra acha por bem relatar a ocorrência ao Presidente para que este decida sobre a punição a ser aplicada. Infelizmente, o dia seguinte, 2 de novembro, era Finados e não havia expediente, nas repartições e no Palácio. Assim, no dia 3, quinta-feira, o general Teixeira Lott entra em contato com o chefe do Gabinete Militar da Presidência, coronel José Canavarro Pereira para saber se Café Filho tinha conhecimento do incidente ocorrido no féretro do general Canrobert. Café Filho sabia de tudo, sim. E nesta mesma madrugada, talvez em conseqüência dos acontecimentos, sofreu um enfarte, tendo de ser internado, às pressas, no Hospital dos Servidores do Estado. Era o começo de uma grave crise político-militar que colocaria o país em sobressalto no restante do mês de novembro.

* * *Capítulo Vinte-e-sete

QUATRO DIAS DE GLÓRIAGoverno Carlos Luz

Carlos Coimbra da Luz, presidente da Câmara Federal, registrou um feito jamais conseguido por qualquer um dos presidentes da República no Brasil: ficou no poder por apenas quatro dias. Com efeito, assumindo o governo no dia 8 de novembro de 1955, permaneceu Presidente, também, nos dias 9, 10 e 11, quando teve de renunciar, por haver-lhe faltado, literalmente, terra aos pés. Instalou um governo de emergência no Cruzador Tamandaré, mas não conseguiu aportar em Santos, onde pretendia permanecer, valendo-se do apoio que lhe foi dado pelo Governador de São Paulo, Jânio da Silva Quadros. Também não pôde voltar ao Rio de Janeiro, para reinstalar-se no Catete, pois tropas do Exército dominavam a cidade. Golpe ou contragolpe? Essa foi a discussão apaixonada que envolveu todos os setores da vida pública por vários meses,

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indo repercutir no Supremo Tribunal Federal. Coube a este julgar, não o impedimento a Carlos Luz, que era um substituto eventual à Presidência, mas outro fato mais grave, ocorrido dez dias depois, quando o Presidente efetivo, João Fernandes Café Filho, foi sitiado em seu apartamento e impedido de retomar as atividades, após a alta que lhe foi dada por uma junta médica, declarando-o restabelecido do enfarte de que fora acometido. A grave crise, que atravessou o mês de novembro e prolongou-se até a posse de Juscelino Kubitchek de Oliveira, em 1º de fevereiro de 1956, pôs à mostra um poder político-militar momentaneamente dividido, mas que, anos mais tarde, voltaria a se unir para realizar, desta vez com sucesso, o movimento de 31 de março de 1964. Tais acontecimentos não são isolados. Fazem parte de problemas mal resolvidos, que começaram em 1889, com a queda do Império, e atravessaram o século 20, ora envolvendo o poder civil, representado pelas oligarquias de São Paulo e Minas Gerais, ora comprometendo a hierarquia dentro das Forças Armadas, como aconteceu com as revoltas de 1922 e o subsequente movimento tenentista que liquidou com a Primeira República (1989-1930). Essa situação anômala prosseguiu após a revolução vitoriosa de 1930, que manteve Getúlio Vargas no poder até ser deposto por seu ministro da Guerra, pondo fim à Segunda República (1930-1945). Por fim, a Terceira República (1945-1964) conquistou uma liberdade de opinião jamais vista anteriormente, mas não se livrou dos vícios herdados dos períodos anteriores, entre eles o direito manifesto pelas Forças Armadas de interferir no processo democrático para fazer uma “sintonia fina” do texto constitucional. Partícipes que somos, todos nós, escrevendo com nossas vidas a História pátria, é importante conhecer e entender o processo de intervenção militar ocorrido em novembro de 1955, cujas conseqüências se fizeram sentir também nas décadas seguintes.

Ganhou, mas será que leva? Na regulamentação das eleições de 1955, a União Democrática Nacional (UDN) faz valer sua influência, pressionando o Superior Tribunal Eleitoral (STF) para que estabeleça a exigência de um segundo turno, caso o candidato eleito presidente da República não

alcançar maioria absoluta (50 por cento do eleitorado votante, desprezadas as abstenções). Como esse dispositivo não consta da Carta Magna, o TSF desconhece as pretensões da UDN, mantendo o princípio de maioria simples. Juscelino é eleito, e eleito com os votos de apenas 36 por cento da massa eleitoral. Dois dos candidatos, Ademar de Barros e Plínio Salgado, aceitam o veredicto das urnas, reconhecendo a vitória de JK. A UDN, sozinha, continua insistindo em sua tese de maioria absoluta. Objetivando preservar a ordem constitucional, cinco partidos políticos unidos (PSD, PSP, PRP, PTN e PST) lançam um manifesto, lido na Câmara Federal pelo deputado Arnaldo Cerdeira, condenando a pretensão udenista de mudar as regras do jogo após os resultados. Nesse manifesto, insistem em que os diversos partidos, havendo participado das eleições e aceito previamente as regras estabelecidas, têm agora a obrigação de sustentar a continuidade do processo, garantindo a posse ao eleito. Entretanto, não é essa a vontade da UDN, nem de alguns setores das Forças Armadas, incluindo a grande maioria da Aeronáutica e da Marinha e, felizmente, apenas um pequeno grupo dentro do Exército. Este último, pela opinião maciça de seus oficiais superiores, manifesta a determinação de fazer cumprir a Constituição, dando posse aos eleitos.

Cheiro de fumaça e ameaça de incêndio

É nesse clima de incertezas que ocorre a morte do general Canrobert Pereira da Costa, chefe do Estado Maior das Forças Armadas (EMFA), como resultado de uma doença que o mantinha afastado do cargo há alguns meses. No seu enterro, em 1º de novembro de 1955, após os discursos programados, inesperadamente, apresenta-se para falar o coronel Jurandir de Bizarria Mamede, dizendo-se representante do Clube Militar. E, em uma alocução de forte conteúdo político, questiona a entrega da presidência da República a alguém que representa “uma vitória da minoria”. Carlos Luz, presidente da Câmara Federal, gosta e cumprimenta efusivamente o orador. O ministro da Guerra cala-se,

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contrariado, mas tenciona punir o coronel por esse ato intempestivo e inconveniente. Mamede, entretanto, encontra-se comissionado na Escola Superior de Guerra (ESG), órgão do EMFA, subordinado diretamente ao Presidente da República. O chefe interino do EMFA, neste momento, é o brigadeiro Gervásio Duncan Lima Rodrigues, e a ESG está sendo dirigida pelo Almirante Ernesto Araújo, um e outro contrários a qualquer punição a Mamede. O ministro da Guerra tenta recorrer ao presidente João Café Filho mas este, no olho do furacão, é vitimado por enfarte, sendo internado em um hospital. No dia 8, Carlos Luz, presidente da Câmara Federal e o primeiro na ordem de sucessão, assume a presidência da República, substituindo Café Filho. Submetida à sua apreciação a questão disciplinar, o novo Presidente decide não punir o coronel. Estamos em 8 de novembro, poucas horas após a posse no novo Presidente. O ministro da Guerra, Henrique Duffles Teixeira Lott, sentindo-se desautorizado, pede demissão, sendo substituído pelo general Fiúza de Castro. Tudo apenas no papel, porque a transmissão de cargo foi marcada para 11 de novembro e, até lá, Lott continua exercendo o cargo, com plenos poderes. Por seu lado, o jornalista Carlos Lacerda, regente da “banda de música” da UDN, continua publicando violentos artigos contra a posse de JK e, a 10 de novembro, excede-se a si mesmo, transformando num incêndio o que até aqui era apenas fumaça. Num artigo publicado pela Tribuna de Imprensa, diz, enfaticamente: “É preciso que fique claro, muito claro, que o presidente da Câmara não assumiu o governo da República para preparar a posse dos srs. Juscelino Kubitschek e João Goulart. Esses homens não podem tomar posse, não devem tomar posse e não tomarão posse.” Nada mais é insinuado, tudo é dito às claras, como quem põe todas as cartas sobre a mesa, certo de que o jogo já está ganho.

Posição do ministro da Guerra Voltemos a 5 de novembro, quando Café Filho se achava hospitalizado mas Carlos Luz ainda não havia tomado posse. Nessa data, sentindo-se envolvido pela teia de intrigas montada através do noticiário da Tribuna de Imprensa, o ministro da Guerra, general Teixeira Lott, envia um comunicado à

mídia para esclarecer sua posição nos acontecimentos que, em linhas gerais, é a seguinte: “1. A última vez que o ministro esteve e falou com o presidente da República foi na manhã do dia 1º do corrente (data do sepultamento do general Canrobert). “2. No dia de Finados, o ministro da Guerra não se entendeu pessoalmente, nem pelo telefone, com qualquer autoridade civil ou militar. “3. Na manhã de 3 do corrente, por volta das oito horas, o Ministro teve um entendimento com o chefe do Gabinete Militar da Presidência da República, indagando se o sr. Presidente tivera conhecimento do teor do discurso pronunciado pelo coronel Mamede na ocasião do enterramento do general Canrobert. O chefe do Gabinete respondeu que o sr. Presidente tinha sido acometido de um distúrbio cardiovascular, durante a madrugada do dia 3 e tinha sido, em conseqüência, internado no Hospital do IPASE e que mais tarde daria novas informações. “4. Cerca de três horas mais tarde, o chefe do Gabinete Militar informou que não apresentava gravidade o estado de saúde do sr. Presidente, mas que era mister que ele, durante alguns dias, se mantivesse em completo repouso. “5. Pouco após, o ministro da Guerra estabeleceu ligação telefônica com o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas [Brigadeiro Duncan] e indagou se já havia sido tomada alguma decisão de ordem disciplinar, com relação ao coronel Mamede. Recebendo resposta negativa, o Ministro informou ao chefe do EMFA que iria solicitar fosse o coronel Mamede dispensado de suas funções que exerce na Escola Superior de Guerra. “6. Imediatamente após, o ministro expediu um aviso à chefia do EMFA solicitando fosse o coronel Mamede dispensado da comissão em que se encontrava fora do Exército. Esse aviso foi recebido pouco depois do meio-dia pelo coronel-chefe do Gabinete daquele Estado-Maior, em 5 de 11 de 1955.” Reiterando as palavras do ministro da Guerra, o gabinete da presidência da República também envia comunicado à imprensa, confirmando que o último encontro de Lott com Café Filho foi na manhã do dia 1 º

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de novembro, horas antes do féretro do general Canrobert. Até este ponto, pelo menos, todas as distorções produzidas pelo noticiário da Tribuna de Imprensa foram desfeitas.

Posição do chefe do EMFA Estamos agora a 8 de novembro. Empossado nesta data, já pela noite, Carlos Luz tinha em mãos a versão do brigadeiro Gervásio Duncan Lima Rodrigues, chefe do EMFA, que dizia: “1. O discurso pronunciado pelo coronel Jurandir de Bizarria Mamede, junto ao túmulo do general Canrobert, produziu um impacto da opinião pública, que se encontrava ainda excitada pelas emoções da disputa eleitoral, como é do conhecimento geral. “2. As interpretações do aludido discurso, sob o aspecto disciplinar, suscitaram divergências de opiniões nos círculos militares. Cabia, entretanto, ao comando da Escola Superior de Guerra – estabelecimento onde serve aquele oficial – a primazia em julgá-lo; em escalão imediato, a esta chefia, competia conhecer o assunto. “3. Estudando minuciosamente o teor do discurso, concluiu o comandante da Escola Superior de Guerra, em seu alto senso de julgamento, que ele não colidia com os dispositivos disciplinares. Antes, porém, de qualquer pronunciamento oficial, submeteu verbalmente o caso à apreciação desta chefia, que também não vislumbrou incidência disciplinar nas palavras do porta-voz da diretoria do Clube Militar, caráter em que foi pronunciada pelo oficial em apreço a aludida peça oratória. Também oficiais que assessoram esta chefia, reunidos para a apreciação do assunto, foram unânimes, antes de conhecerem a opinião do chefe, em encarar o fato pelo mesmo critério de inexistência de indisciplina. “4. Achavam-se em andamento estes trâmites de julgamento, quando o titular da pasta da Guerra, em pessoa, pelo telefone, entendeu-se com esta chefia, para solicitar sanções disciplinares que, no seu entender, o caso exigia. Ponderei-lhe, pelo telefone, que, na opinião desta chefia, não havia razões para punições, recebendo, entretanto, de parte de s. exa., a enfática resposta de que iria requisitar o coronel Mamede, de volta ao Exército, em documento. “5. Nesse mesmo dia 3 de novembro, após o expediente da manhã, encerrado às

12 horas, quando esta chefia já havia se retirado, foi o documento de requisição recebido no Estado-Maior das Forças Armadas. Esse documento, de caráter reservado e urgentíssimo, alegando necessidades do serviço, solicitava o retorno do coronel ao âmbito do ministério da Guerra com a possível brevidade. (...) O retorno do coronel Mamede ao âmbito do ministério da Guerra passou a assumir, assim, por si só, o caráter de uma punição, e a representar uma diminuição para a autoridade desta chefia. “6. Antecipando-se a estas ocorrências, esta chefia, no dia 4, minutou uma carta ao exmo. Sr. presidente da República, e, em data de 5 entregou-a ao coronel José Canavaro Pereira, chefe de sua Secretaria Militar, para que a fizesse chegar às mãos do ilustre chefe do Estado assim que sua saúde lhe permitisse ajuizar do feito. “7. Com a passagem do Governo para o novo signatário, e em face do acima exposto, está o supremo magistrado habilitado a resolver tanto o caso disciplinar como o da requisição do coronel Mamede, como julgar mais conveniente aos altos interesses da nação.”

Posição do Consultor Geral Ainda nessa mesma noite de 8 de novembro, o presidente Carlos Luz tinha em mãos o parecer jurídico solicitado ao Consultor Geral da República, Temístocles Brandão Cavalcanti, acompanhando o pensamento do chefe do EMFA, no sentido de que, pela escala hierárquica, somente o presidente da República, e nunca o ministro da Guerra, podia interferir em assuntos internos do Estado Maior das Forças Armadas. Seu pensamento era resumido nos seguintes itens: “1. O oficial assistente da Escola Superior de Guerra é nomeado por decreto do presidente da República; “2. O exercício do cargo perdura enquanto não revogado por outro decreto do presidente da República; “3. A Escola Superior de Guerra está sob uma jurisdição administrativa e militar própria, subordinada diretamente ao Estado-Maior das Forças Armadas, que, por sua vez, depende do presidente da República. “4. Que, assim, nenhum ministro de Estado dos Ministérios Militares terá ação administrativa, militar ou disciplinar sobre os oficiais servindo no EMFA ou na ESG, antes que o presidente da República torne sem

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efeito o ato da nomeação para a Escola Superior de Guerra, restituindo-o, desde então, à jurisdição do seu Ministério originário.” Não estava com sorte o ministro da Guerra. Os dois pareceres contrariavam sua opinião, deixando-o com a autoridade abalada. Não lhe restava outra alternativa senão pedir demissão do cargo, o que foi feito nessa mesma noite de 8 de novembro, ficando a posse de seu sucessor marcada para 11 de novembro. E, tenha certeza disso, nesses três dias, o Ministro trabalhou bastante, como talvez nunca o tenha feito antes com tamanha intensidade. O futuro do país e do mandato de Juscelino Kubitschek de Oliveira tem muito a ver com esses três dias de diuturna atividade.

Área de turbulência Nesta altura dos acontecimentos, parecia não restarem dúvidas de que uma conspiração estava em andamento para impedir a posse do Presidente eleito e o eixo desse movimento era o próprio presidente da República, Carlos Luz. Sua reação entusiástica ao discurso do coronel Mamede marcou claro a posição que havia tomado em torno do assunto. O relatório do EMFA e o parecer da Consultoria Geral da República deixaram patente a incompetência legal do ministro da Guerra em requisitar o retorno do oficial faltoso e dar-lhe a punição cabível. Um e outro foram prontos em reconhecer que essa competência era do presidente da República. Carlos Luz podia fazê-lo, mas não o fez. Ao seu lado, o Presidente tinha um Ministério herdado do governo anterior, cujas tendências eram bem conhecidas. Prado Kelly, ministro das Relações Exteriores era o presidente da União Democrática Nacional, que pedia um segundo turno para as eleições de novembro de 1955. O ministro da Aeronáutica, Eduardo Gomes, duas vezes candidato à Presidência pelo mesmo partido, também declarou-se contrário à posse de JK. Assim também o fez o ministro da Marinha, Edmundo Jordão Amorim do Vale. E assim por diante. De sua parte, o ministro da Guerra, demissionário mas ainda no cargo, não reconhecia outra alternativa que não o cumprimento da Constituição e a aplicação das regras fixadas pelo TSE para a realização das eleições, que contemplavam a

eleição do presidente da República por maioria simples, exigência que foi preenchida por JK. Era, pois, o começo do confronto.

Começa o enfrentamento O general Teixeira Lott, ministro da Guerra, e o general Odílio Denys, comandante da Zona Militar Leste moravam próximos um do outro e tinham instalado um telefone de campanha que unia as duas casas, permitindo manter contatos de natureza reservada, sem perigo de interceptação. Ambos começaram a agir, e agir rápido, pois, quando o novo ministro viesse a tomar posse, haveria alterações nos vários postos de comando, favorecendo os supostos golpistas. Ao seu lado estavam quase todos os oficiais de comando, destacando-se, além do general Odilio Denys, também o Marechal Mascarenhas de Morais (na época o único marechal brasileiro vivo), o general Olímpio Falconiere da Cunha, comandante da Zona Militar Centro e o general Artur da Costa e Silva. Instalando seu QG no Quartel da Zona Militar Leste, o ministro da Guerra, usando de suas atribuições legais, passou a manter contato com os comandos dentro da Capital Federal e nos outros Estados, ao mesmo tempo em que colocava tropas do Exército nas ruas e tomava pontos estratégicos. Ato contínuo, foram presos o chefe de Polícia, coronel Menezes Cortes, o novo ministro da Guerra, ainda não empossado, general Fiúza de Castro e o general Alcides Etchegoyen, que se achava no Palácio do Catete. O presidente da República, Carlos Luz, pela manhã, havia ligado para o general Lott, a fim de pedir explicações sobre a movimentação de tropas. O Ministro mandou dizer que estava ocupado e não poderia atender o Presidente. Para bom entendedor, meia palavra basta. Carlos Luz reuniu a sua “patota” e fugiu antes de ser apanhado preso, refugiando-se no cruzador Tamandaré, onde o esperava o almirante Pena Boto. Com o Presidente, se encontravam os ministros Prado Kelly, Marcondes Ferraz, o general Silvio Heck e outros elementos ligados ao governo. Achando melhor por as barbas de molho, também o jornalista Carlos Lacerda refugiou-se no mesmo navio. Desta vez, pelo menos, calado.

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Só não seguiu o ministro da Aeronáutica, brigadeiro Eduardo Gomes, pois ficara em terra para comandar a reação e abafar o movimento do Exército. Primeiro, Eduardo Gomes tomou providências para garantir a resistência na Capital Federal e, depois, voou para a base aérea de Cumbica, em Guarulhos-SP, onde pretendia reunir forças para garantir a reinstalação do Governo.

O problema estava em São Paulo Em São Paulo, o governador Jânio da Silva Quadros, que fechara acordo com UDN nas últimas eleições, apoiando Juarez Távora para Presidente e Auro Soares de Moura Andrade para senador, estava disposto a garantir a continuidade do governo de Carlos Luz em território paulista. Ali se achava também o brigadeiro Eduardo Gomes, reunindo forças para garantir o desembarque do Presidente e sua comitiva. Contar com o governador era contar com a Força Pública do Estado, com bom efetivo, bem treinada e bem equipada. O brigadeiro tinha também ao seu lado o efetivo da Aeronáutica, sob seu comando. E conseguira apoio da 2ª Divisão de Infantaria, comandada pelo general Tasso Tinoco. A posição deste último, entretanto, ficou bastante enfraquecida com a chegada, por terra, do general Olímpio Falconiere da Cunha, que conseguiu reunir sob o seu comando quase todo o efetivo do Exército estacionado em São Paulo, mantendo sob seu controle a Capital e o porto de Santos, e garantindo a ordem no restante do Estado. Não conseguindo desembarcar em Santos e sem condições de retormar o Rio de Janeiro, o presidente Carlos Luz ficou à deriva até 11 de novembro, quando decidiu renunciar à presidência da República. Fracassando em sua missão, o brigadeiro Eduardo Gomes voltou ao Rio de Janeiro e passou o cargo de ministro da Aeronáutica ao brigadeiro Alves Seco, juntando-se aos demais passageiros do cruzador Tamandaré quando este, finalmente, obteve autorização para ancorar na baía da Guanabara. Tomou posse na Presidência, então, o seguinte e penúltimo na ordem da sucessão, que era o presidente do Senado, Nereu Ramos. Após ele, sobrava apenas o presidente do Supremo Tribunal Federal.

Café Filho em cárcere privado Estranha era a situação do Presidente licenciado, João Fernandes Café Filho pois, seja por recomendação médica ou por outro

fator influente fora do hospital, não tinha conhecimento dos acontecimentos que precederam o movimento militar. Não sabia ao menos que o ministro da Guerra fora substituído. O diretor do Hospital dos Servidores, Raimundo de Brito era seu amigo particular e, no interesse de sua saúde, manteve um certo isolamento, encarregando-se ele próprio de ir passando uma ou outra notícia, observando-lhe as reações e avançando com outras revelações. A renúncia de Carlos Luz se deu em 11 de novembro e só depois de vários dias é que Café Filho teve inteiro conhecimento do assunto. No dia 21, a seu pedido, o paciente foi submetido a uma Junta Médica, que julgou-o em boas condições de saúde, dando-lhe, em conseqüência a tão esperada alta. Rapidamente, Café Filho dirigiu-se ao seu apartamento na zona Sul, onde chegou sem dificuldades, entrando no edifício sob os aplausos de manifestantes que lhe saudavam o retorno. Assim que ele entrou no edifício e as portas se fecharam, o cenário na rua mudou completamente sendo esta fechada com tropas do Exército, carros de combate e tanques de guerra. Seguiram-se atos de hostilidade dos manifestantes contra as tropas com a reação destas, usando bombas de efeito moral. Café Filho permaneceu sitiado em seu apartamento até a efetiva posse de Juscelino Kubitchek, em 1º de fevereiro de 1956. Impetrado mandado de segurança junto ao Supremo Tribunal Federal, este se manifestou pelo adiamento da decisão até que terminasse o estado de sítio em vigor no país, vale dizer, até a posse do novo Presidente. E ficou o dito por não dito.

Governo Nereu Ramos Assumindo no pico da crise, e com um mandato-tampão de pouco mais de dois meses, Nereu Ramos apenas esquentou a cadeira, enquanto não chegava o novo dono dela. Ainda assim, para cumprir as formalidades, organizou o seu Ministério que, apenas para registro histórico, vai descrito a seguir: Relações Exteriores, José Carlos de Macedo Soares; Justiça, Menezes Pimentel; Educação e Cultura, Abgar Renault; Saúde, Maurício Campos de Medeiros; Fazenda, Mário Leopoldo Pereira da Câmara;

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Agricultura, Eduardo Catalão; Viação e Obras Públicas, Lucas Lopes; Trabalho, Indústria e Comércio, Nelson Bachel Omegna; Guerra, general Teixeira Lott; Marinha, almirante Antônio Alves Câmara Junior; Aeronáutica, brigadeiro Vasco Alves Secco. Com exceção de Macedo Soares e do general Teixeira Lott, os demais nomes são inexpressivos e desconhecidos. Mas ficaram com o Presidente – o terceiro em um ano – até o final do governo.

Você decide Aí estão os fatos, de maneira resumida. Muita coisa mais houve, que o espaço não permite contar. Mas, com o que você ficou sabendo, já dá para tomar uma decisão. Então, o que houve foi um golpe de estado ou um contra-golpe? Café Filho internou-se num hospital, doente, justamente quando deveria tomar uma decisão de caráter disciplinar contra o coronel falastrão, mas, alguns dias depois, quando soube dos desdobramentos, “sarou rapidinho” e tentou retomar o governo. Sua internação seria, então, simples manobra dentro de um plano maior para impedir a posse de JK? O coronel Mamede fez um discurso político diante do túmulo do general Canrobert, considerado por seus superiores como resultado da emoção. Mas falou sério e falou em nome do Clube Militar sem que ninguém dessa associação o desautorizasse. Teria sido, então, arroubo de momento ou missa encomendada? Em sua ação, o ministro da Guerra, general Teixeira Lott atropelou a Constituição, forçando a renúncia do Presidente em exercício e impedindo o retorno do Presidente constitucional. Podia fazer isso, mesmo que supeitando de uma trama contra as instituições? Para preservar a lei alguém pode passar por cima dela? Se conspiração houve, um mundo de gente estava envolvida nela: os dois Presidentes, vários ministros, os líderes da UDN, o jornalista Carlos Lacerda... Vitorioso o contragolpe, nenhum inquérito foi aberto, nada mais foi apurado, não aconteceu nada com ninguém. Se houve conspiração, o que aconteceu com os conspiradores ? Nada. A partir deste ponto, você é o juíz. E vai perceber que não é nada fácil emitir um julgamento, pois a verdade tem muitas faces e, assim, não há uma decisão que contemple

a justiça plena. Qualquer que seja o veredicto, sempre ficará uma dúvida no ar e uma série de perguntas permanecerá sem resposta. Para encerrar, vamos dizer onde foi parar toda essa gente. Café Filho abandonou a carreira política e, em 1961, foi nomeado membro do Tribunal de Contas do Estado da Guanabara, onde o governador era seu amigo, o jornalista Carlos Lacerda. Carlos Luz veio a falecer nesse mesmo ano, também no Rio de Janeiro, que já não era mais a Capital Federal. Dois anos depois de entregar a faixa presidencial a JK, Nereu Ramos morreu, também, em conseqüência de um desastre aéreo. O brigadeiro Eduardo Gomes, fiel às suas idéias, afastou-se dos três governos que se seguiram. Em 1964, já reformado, com a patente de Marechal do Ar, participou do movimento que deu origem ao regime militar e foi ministro da Aeronáutica no governo do marechal Castelo Branco, entre 1964 e 1967. Faleceu no Rio de Janeiro em 1981, com 85 anos de idade. É o patrono da Força Aérea Brasileira. E o general Teixeira Lott... Ah, o general Teixeira Lott... Este é um outro assunto, que vai para o próximo capítulo.

* * *Capítulo Vinte-e-oitoADMINISTRAÇÃO

TURBINADAGoverno Juscelino Kubitschek

Ao clarear do dia 24 de agosto de 1954, a população brasileira, incrédula e estarrecida, toma conhecimento da morte trágica do presidente Getúlio Dorneles Vargas, vítima do esquema de segurança que montara em torno de si, mas vítima, também, de forças reacionárias que não queriam vê-lo no poder e que, por qualquer pretexto, ou por pretexto nenhum, queriam desalojá-lo. O dia começa tenebroso. O perigo de tumulto nos locais de trabalho leva patrões a suspender a jornada naquele dia, fazendo com que a agitação se transfira para as ruas das grandes cidades. Horas depois, às pressas, é declarado feriado nacional, com o que o trabalho fica suspenso também nas raras casas que ainda haviam ousado abrir suas portas. Nos locais públicos, protestos e depredações, ocasionando confrontos com a

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polícia, cuidadosa em não complicar uma situação que já era, por si só, bem difícil. Em Belo Horizonte, o governador do Estado, Juscelino Kubitschek de Oliveira, toma conhecimento de que uma grande concentração ia se formando na avenida Afonso Pena, junto às escadarias da Igreja de São José. Eram já mais de 50 mil pessoas, ouvindo calorosos discursos de líderes políticos e sindicais, em ambiente inflamado, e num estado de comoção muito grande, tudo levando a crer que, em breve, começariam tumultos impossíveis de se controlar. O governador não tem dúvidas. Sozinho, sai do palácio, percorre a avenida e sobe as escadarias, aproximando-se dos líderes da manifestação, como conta Hélio Silva: “Juscelino Kubitschek pediu licença e, declarando-se o governador do Estado, dirigiu umas palavras à multidão. Estavam todos vivendo um momento doloroso para a nação. Era preciso que o povo, que sofria com a perda de Vargas não transformasse suas expansões num movimento de desordem. Por isso, o governador convidava a todos para subirem, a pé, em direção ao Palácio das Laranjeiras [o palácio do Governo], onde poderiam ficar em seus parques, todo o dia, trocando idéias. Suas palavras impressionaram, pois falou emocionado. “Assim, a multidão o acompanhou até o palácio, lá passando todo o dia. Mas os últimos grupos só se dissiparam por volta das 23 horas. Foi então que Juscelino pôde vir ao Rio de Janeiro, para visitar o corpo do presidente, no velório do Palácio do Catete, regressando, ainda pela madrugada, a Belo Horizonte.” Assim era JK: arrojado, mas sem pedantismo, aparentemente calmo, mesmo que em seu interior se arrastasse um turbilhão de emoções. Apresentava sempre uma serenidade que irritava seus adversários, muitos dos quais a confundiam como um ato de cinismo e de provocação. Com tal equilíbrio, é até compreensível que entre 1926 a 1985, abrangendo um período de 59 anos, Juscelino Kubitschek torna-se o único Presidente civil a concluir seu mandato, vencendo todas as tentativas, primeiro para impedi-lo de tomar posse, depois para impedi-lo de governar.

Havia pedras no caminho Como se recorda, a trajetória de JK a caminho da Presidência transcorreu por uma estrada pedregosa e acidentada, que teria levado à desistência qualquer outro, menos afeito às ciladas políticas e menos prevenido contra ações efetivas, realizadas à margem da lei. Primeiro, a tentativa de se adiar as eleições gerais (exceto para Presidente), marcadas para 3 de outubro de 1954, dois meses após a morte de Vargas. JK sabia que, suspenso este pleito, seria meio caminho para cancelar também as eleições presidenciais de 1955, e se opôs fortemente à proposta, trazida ao seu partido pelo governador de Pernambuco, Etelvino Lins de Albuquerque. Depois, a ação do Presidente Café Filho, recém empossado, induzindo o postulante a desistir, já que ainda nem havia sido lançado por seu partido. Outra negativa. Seguiu-se, uma ação mais concreta do mesmo Café Filho, ao apresentar um manifesto do Exército por uma candidatura única e de militar, segundo eles, a única alternativa viável para a manutenção da ordem. Lançada de fato a chapa Juscelino-João Goulart pelo Partido Social Democrático e pelo Partido Trabalhista Brasileiro, a União Democrática Nacional, sua opositora, agiu firme junto ao Tribunal Superior Eleitoral, durante o processo de regulamentação das eleições. Não conseguindo impor sua tese de maioria absoluta (50% do eleitorado), a UDN obteve pelo menos a aprovação da cédula única que, embora evitando a fraude, trazia um novo complicador: sua distribuição por todo o país era difícil, o que favorecia a UDN, cujo eleitorado se concentrava nos grandes centros. Foi preciso, então, que o PSD providenciasse condução para fazer o material chegar aos rincões mais distantes. Ainda assim, houve núcleos eleitorais que deixaram de votar por não receberem a tempo a cédula única. Às vésperas das eleições, o jornalista e deputado Carlos Lacerda lança uma nova confusão ao publicar a chamada Carta Brandi, “timbrada, mas falsa”. Escrita em papel timbrado original da Câmara de Corrientes por um suposto deputado argentino, Antonio Jesus Brandi, era dirigida ao candidato a vice-Presidente, João Goulart. Nela se estabelecia um suposto contato entre

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Jango e a Embaixada Argentina no Rio de Janeiro para ultimar o processo de envio de armas de guerra ao Brasil, visando o início de uma revolução sindicalista nos moldes do governo de Juan Domingo Perón. Publicada pela Tribuna de Imprensa e pelo jornal O Globo e lida por Carlos Lacerda na televisão, essa carta provocou a maior celeuma, prejudicando bastante as candidaturas JK-Jango. Ficou provado (depois das eleições), que tal documento tinha sido forjado pelo escritório Cordeiro e Malfussi, cujos sócios foram presos na Argentina. O próprio Carlos Lacerda acabou reconhecendo a falsidade da carta, o que não anulou seus efeitos eleitorais, favorecendo a UDN. Eleito Juscelino Kubitschek, surgiram os acontecimentos de novembro de 1955, com o discurso intempestivo do coronel Mamede junto ao túmulo do general Canrobert, conforme narrado no capítulo anterior, originando dois contra-golpes promovidos em conjunto pelos generais Teixeira Lott e Odilio Denys, para garantir a posse do eleito. Inicia-se, então uma conspiração para um levante armado, que deveria eclodir em Recife em 17 de janeiro de 1956 (14 dias antes da posse), comandado pelo Almirante Sílvio Heck, com apoio, no Rio de Janeiro, dos almirantes Pena Botto e Amorim do Vale, todos envolvidos nos acontecimentos de novembro. Teria também o apoio do brigadeiro Eduardo Gomes, que se deslocaria a Recife, para dar cobertura junto à Aeronáutica. Todavia, a mobilização em Recife não teve os esperados desdobramentos no Rio e em outras partes do país, abortando-se o movimento antes mesmo que ele viesse a eclodir. Seria ingenuidade supor que, diante desse clima, o governo a ser empossado transcorreria sem ameaças de subversão. JK tomou posse, sim, mas sua permanência na Presidência só se tornou possível por sua tolerância, por vezes até exagerada, e por seu espírito de conciliação, que desarmou, uma a uma, as tentativas de desestabilização. Dependeu muito, também, da presença de seu ministro da Guerra, general Henrique Duffles Teixeira Lott, elemento de coesão dentro do Exército e respeitado em todas as Forças Armadas.

O professor Francisco de Assis Silva, em seu livro “História do Brasil”, sintetiza com felicidade o perfil do novo Presidente: “Dotado de uma capacidade rara de perceber a importância do momento histórico pelo qual passava o país, o mineiro de Diamantina, dono de uma sensível vocação para a política, conseguiu ‘trabalhar’ com a oposição, evitando confrontar-se com ela. (...) “A aproximação com os militares foi muito além da anistia. (...) Com Juscelino, as Forças Armadas passaram a ocupar um lugar de destaque nas decisões do Estado, compondo, juntamente com a alta burocracia civil, a burocracia estatal. (...) A aliança com os militares talvez explique o fato de Juscelino ter mantido o vice-presidente João Goulart sem traumas com as Forças Armadas.”

Quem era Juscelino Kubitschek Juscelino Kubitschek de Oliveira nasceu em 1902 na cidade de Diamantina, Estado de Minas Gerais, um lugar revestido de grande simbolismo, servindo de berço a um dos grandes estadistas de nossa República. Diamantina fica na Serra do Espinhaço, um divisor de águas entre os rios que se destinam à bacia do São Francisco, a oeste, e os rios que vão desaguar diretamente no Atlântico, a Leste. O governo JK foi também um divisor entre o Brasil agrícola e o Brasil industrial. Diamantina é o centro geográfico de Minas Gerais e seu mais famoso filho sempre procurou o centro: literalmente, com a construção de Brasilia; alegóricamente, por suas posições equilibradas, sempre a busca do consenso e da conciliação. Em 1927 formou-se em medicina e, no início de sua carreira, trabalhou junto a hospitais de sangue. Com o apoio e incentivo do governador Benedito Valadares, iniciou a carreira política, elegendo-se deputado federal em 1934, prefeito de Belo Horizonte em 1937, governador de Minas em 1950 e, finalmente, presidente da República em 1955. Arrojo e determinação sempre foram características de sua personalidade. Belo Horizonte é a primeira cidade traçada no papel e construída pela vontade do então governador Afonso Pena, contra os que queriam manter a capital em Ouro Preto. Juscelino, quando prefeito da capital mineira, acrescentou a ela outra obra controvertida: o

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conjunto arquitetônico de Pampulha, formado por um lago artificial e prédios construídos por Oscar Niemeyer (1907- ). Uma dessas obras, a igreja de São Francisco, teve painéis e azulejos pintados por Cândido Portinari (1903-1962), gerando um impasse com a Arquidiocese, que recusou-se a consagrar esse templo ao culto religioso, achando um abuso a arquitetura avançada do edifício e um sacrilégio a deformação dos ícones representando os santos no melhor estilo modernista. A quebra da tradição secular de fazer igrejas com torres feito setas apontando para o céu e com santos gorduchos, de rostos arredondados, custou uma boa briga com o clero, mas a igreja de São Francisco foi, finalmente reconhecida e consagrada. Era o rompimento com a inércia e o início do movimento em direção à modernidade. Juscelino era casado com dona Sara Gomes de Lemos, tendo uma filha legítima, Márcia, e outra adotada, Maria Estela.

Ministério Durante a campanha eleitoral, Juscelino levava consigo uma proposta, que chamou de “nacional desenvolvimentista”, a qual incluía trinta metas objetivando gerar o progresso e criar a modernização do país. A essas metas, acrescentou mais uma, a construção da nova capital federal no centro geográfico do país, assunto que será tratado em separado no próximo capítulo. Assim, seja pela necessidade de governar com todas as forças políticas influentes na vida brasileira, seja pela dinâmica de seu governo, que pretendia avançar “50 anos em 5”, JK teve de compor e recompor várias vezes os vários escalões do governo, inclusive e principalmente o Ministério, que sofreu contínuas modificações. Para citar um só, o Ministério de Relações Exteriores, por ele passaram José Carlos de Macedo Soares, Décio Honorato de Moura, Francisco Negrão de Lima, Antônio Mendes Viana, Fernando Ramos de Alencar, Horácio Lafer, Edmundo Pena Barbosa da Silva, Afonso Arinos de Melo Franco, Vasco Tristão Leitão da Cunha e Ilmar Pena Marinho. Dez titulares num período de cinco anos. Destaque-se que um deles, Afonso Arinos, era fundador e líder incontestável da UDN, o qual, em tempos passados, fora um ferrenho opositor de JK. O primeiro Ministério ficou assim formado: Relações Exteriores, José Carlos de

Macedo Soares; Justiça, Francisco Menezes Pimentel, substituído pouco depois por Nereu Ramos; Fazenda, deputado José Maria Alkimin; Agricultura, Ernesto Dorneles; Educação e Cultura, Clóvis Salgado da Gama; Trabalho, Indústria e Comércio, Nelson Bachel Omegna, substituído em seguida por José Parsifal Barroso; Viação e Obras Públicas, capitão Lúcio Martin Meira; Saúde, Maurício Campos de Medeiros, seguido pelo general Mário Pinotti; Guerra, general Henrique Duffles Teixeira Lott, que ficou durante os cinco anos de mandato; Marinha, almirante Renato de Almeida Guilhobel, (do último ministério de Getúlio), logo substituído pelo almirante Antônio Alves Câmara Júnior; Aeronáutica, brigadeiro Henrique Fleiiuss, depois substituído pelo brigadeiro Vasco Secco. Para a Casa Militar foi designado o general Nelson de Melo; para a Casa Civil, Álvaro de Barros Lins; Chefe de Polícia, general de brigada Augusto Magessi Pereira. Um ponto sensível, neste momento, era o comando da 1ª Região Militar que, por nomeação do ministro da Guerra, foi entregue ao seu companheiro do contra-golpe de novembro, o general Odílio Denys. Vários postos de direção em estatais e autarquias também foram entregues a oficiais superiores do Exército, destacando-se a presidência da Petrobrás e, mais tarde, a da Sudene (fundada em 15 de dezembro de 1959), criando-se um vínculo seguro da administração com as Forças Armadas, o que também garantiu a estabilidade do governo.

A eminência parda do regime A expressão “eminência parda” foi usada pela primeira vez para designar o Cardeal de Richelieu (1585-1642), Primeiro-Ministro de Luís 13, o qual, exercendo forte influência sobre o soberano francês, sustentou o regime, neutralizando o poder dos nobres e estabelecendo a monarquia absoluta na França. Daí em diante, o termo passou a indicar todos aqueles que, pela sua ascendência e peso nas decisões, foram um fator preponderante de estabilidade de um regime. Assim se considerou, no governo de JK a presença destacada e contínua de seu ministro da guerra, o general Teixeira Lott. Talvez haja algum exagero nisso. Juscelino governava de fato e de direito e, embora fizesse concessões às forças ao seu redor, a

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verdade é que nunca abriu mão de sua autoridade de Presidente, tomando decisões e sustentando-as, recuando às vezes para escolher um melhor caminho, mas jamais afastando-se dos alvos propostos, que levou, todos eles, a bom termo. Diga-se a seu favor que, mesmo nos momentos mais difíceis, jamais transferiu a outrem a prerrogativa de governar. Não obstante, é fato incontestável que seu governo só se tornou possível pela influência de seu ministro da Guerra junto às Forças Armadas. Em 1955, tornara-se este o fiador da transição, derrubando, num espaço de dez dias, dois presidentes da República: Carlos Luz, que ficou quatro dias no poder, e Café Filho, impedido de retornar ao cargo após sua alta hospitalar. Garantida a posse, ficou os cinco anos ao lado do governo e, em alguns momentos, sua figura teve tal destaque que se confundiu com a própria administração central. Foi assim, por exemplo um mês após a posse de JK, quando mais de oito mil pessoas se concentraram na Esplanada do Castelo para fazer um ato de sustentação ao ministro da Guerra. Na ocasião foi aprovada moção nos seguintes termos: “O povo, reunido em praça pública, neste memorável comício da Capital da República, no dia 9 de março de 1956, manifesta todo seu apreço ao general Teixeira Lott, por sua atitude em defesa da Constituição em 11 e 21 de novembro de 1955 e pelos inestimáveis serviços à nação brasileira. Às injúrias, ao ódio dos inimigos da democracia, responde o povo com o calor desta homenagem, expressão da solidariedade de todos os brasileiros.” Em 11 de novembro de 1956, aniversário do movimento que tirou Carlos Luz do poder, ocorre uma nova concentração, desta vez em frente ao ministério da Guerra, reunindo perto de 15 mil pessoas. O local era área de segurança nacional, vedado a comícios mas, neste encontro, o próprio Ministro subiu ao palanque, para receber a homenagem que lhe estava sendo prestada. Pelas mãos do vice-Presidente, João Goulart, foi-lhe entregue uma espada de ouro, fabricada em Caxias do Sul, tendo as seguintes inscrições: “Civis e militares oferecem ao general Lott” (...) “A espada de novembro”. Um longo discurso de Jango, seguido de uma resposta, igualmente longa do general, marcaram a importância do momento, jamais

igualado em qualquer manifestação que se tenha feito ao efetivo presidente da República, Juscelino Kubitschek. A par da fundamental importância de Lott na preservação do governo, há também que registrar a presença de seu colega, general Odilio Denys no comando da 1ª Região Militar, sediada no Rio de Janeiro, que continuava sendo a Capital Federal. A figura deste militar em posto de tão alto comando desestimulava qualquer movimento de rebelião dentro do Exército para pôr fim ao governo JK. Verdade é que, para preservá-lo no comando, foi preciso recorrer a um casuismo, criando lei que permitia ao Presidente suspender a reforma compulsória de oficiais cujos serviços, a seu julgar, ainda eram necessários ao país. Um terno sob medida e de alta costura, destinado a prorrogar a permanência, na ativa, do comandante da 1ª

RM, evitando que este caísse na compulsória. Não por acaso, a mensagem que o Presidente enviou ao Congresso ficou conhecida como “Projeto Denys”. Não por acaso, também, que a tramitação começou pelo Senado, onde a aprovação se deu com facilidade, para só então seguir para a Câmara Federal, onde também foi aprovado, mas usando-se de artimanhas para vencer a resistência da UDN. Aprovada a lei, a oposição ameaçou impetrar recurso junto ao Supremo Tribunal Federal, mas acabou se conformando e ficou o dito por não dito.

“Revoltas dos Escoteiros” Não haviam se passado duas semanas da posse do novo Presidente, e um movimento sedicioso ocorria dentro da Aeronáutica, liderado pelo major-aviador Haroldo Coimbra Veloso e pelo capitão-aviador José Chaves Lameirão. Pela precipitação com que foi deflagrada a ação, e pelo amadorismo com que ela se desenvolveu, houve quem a comparasse a uma “revolta de escoteiros”, uma injustiça cometida contra o barão de Baden-Powell seus juvenis seguidores, que sempre primaram pelo método e pela organização. As trapalhadas começam já pelo dia escolhido para o levante: um sábado de Carnaval, 11 de fevereiro de 1956. Na hora aprazada, os dois comandantes se perderam um do outro vindo a se reunir somente horas depois. Em seu primeiro alvo, o Campo dos Afonsos, os contatos falharam e, não

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havendo adesão da guarda, a praça teve de ser tomada à força e o avião de caça, pilotado por eles mesmos, levantou vôo sem autorização da torre de comando, provocando um alerta geral que prejudicou as etapas seguintes. Fazendo uma primeira escala na base aérea do Cachimbo (Planalto Central), os revoltosos seguiram depois para Jacareacanga, às margens do rio Tapajós, a sudoeste do Pará e a 700 quilômetros de Altamira, quase já na divisa com o Estado do Amazonas. Essa escolha não era casual. O major Veloso havia participado da construção da base de Jacareacanga tornando-se conhecido dos índios e caboclos ali residentes, sobre os quais tinha forte ascendência. A estes foram distribuídas armas e munições para garantir a praça durante algum tempo. Não tardou que o governo mandasse tropas, em avião pilotado pelo major Paulo Vitor da Silva e pelo tenente Carlos César Petit. O primeiro aderiu à revolta e o segundo foi aprisionado, juntamente com as tropas legalistas. Voando em seguida em direção à foz do rio Tapajós, na confluência deste com o Rio Amazonas, os oficiais rebeldes se apossaram de Santarém, onde repórteres de rádios e jornais haviam se instalado para acompanhar o movimento. Fracassado o contra-ataque pelo ar, o governo manda, então, o navio “Presidente Vargas” com novas forças, para atacar por terra. Daí por diante, tudo o mais deu errado para os românticos revolucionários. As adesões de outras bases não aconteceram e, menos ainda, tiveram apoio da Marinha e do Exército. Em Jacareacanga, os prisioneiros eram um peso a mais, pois tinham de ser vigiados e alimentados. Isolados em Santarém, os rebeldes confundiram um vapor de carreira com o navio que transportava as tropas legalistas e, temerosos, recuaram até o povoado de São Luís do Tapajós, onde, dias depois, passaram a ser caçados pelos legalistas. O comandante, avisado a tempo, conseguiu escapar, refugiando-se na mata, mas acabou sendo denunciado por um caboclo, já cançado de tanta aventura. Então uma patrulha se dirigiu local indicado e o major Haroldo Veloso, “surpreendido em uma

casa, sentado em uma cadeira de balanço, não ofereceu resistência.” E os demais ? O major Paulo Vitor da Silva e o capitão Lameirão conseguiram reparar as avarias do avião de que haviam se apossado e levantaram vôo em direção a Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, onde pediram asilo político. Em 29 de fevereiro de 1956, dezoito dias após aquele fatídico sábado de Carnaval, terminou o levante, com a frase conciliatória de JK: “Vamos virar a página, passar uma esponja em todos os acontecimentos e começar vida nova, porque o país deseja paz para trabalhar.” Ato contínuo, enviou ao Congresso Nacional uma mensagem, transformada em projeto de lei que, depois de aprovado e sancionado, deu anistia plena não só aos revoltosos de Jacareacanga, mas também aos envolvidos nos acontecimentos de 1955, quando pretendiam impedir a posse do Presidente eleito. Esse ato foi mal interpretado por alguns e, em 1959 ocorreu a segunda “revolta de escoteiros”, desta vez em Aragarças, Estado de Goiás, às margens do rio Araguaia, sob o comando do tenente-coronel da Aeronáutica João Paulo Moreira Burnier. Igualmente, não houve adesão e os revoltosos foram para Buenos Aires, onde pediram asilo. Utilizando-se da lei anteriormente sancionada, JK anistiou a este novo grupo, apostando sempre na pacificação nacional.

Metas de governo Vencidas as primeiras reações à sua presença no governo, Juscelino Kubitschek pôs-se a trabalhar em seu plano de modernização do país, intitulado por ele de “nacional-desenvolvimentismo”, um nome arrevessado e de difícil aplicação. Nacionalista o plano não era, pois ia buscar no exterior os capitais de que necessitava, seja na forma de empréstimos, seja principalmente na atração de investimentos de empresas estrangeiras no país, favorecidas com a promessa de liberação total da remessa de lucros ao exterior, a câmbio subsidiado. Ficava com o capital estrangeiro a parte mais rendosa dos empreendimentos, com a construção e exploração de empresas de alta lucratividade. Ao governo cabia investir na indústria de base, que absorve grandes capitais, com retorno financeiro muito duvidoso. E como o Brasil não dispunha de

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capitais, a “gambiarra” passou a funcionar com toda intensidade, produzindo moeda além do que o mercado podia suportar e gerando inflação. Não obstante, os resultados não tardaram a aparecer. O progresso do Brasil não estava mais associado à agricultura, que foi relegada ao quase abandono, mas à atividade industrial, concentrada sobretudo em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. O programa de metas, cumprido em sua quase totalidade, prometia dobrar a a capacidade de geração de energia elétrica, previa a construção de uma usina atômica piloto (na Universidade de São Paulo), o aumento na produção de carvão e na exploração e refino de petróleo, o reaparelhamento das ferrovias, a implantação de vasta malha rodoviária e a ampliação da capacidade de transporte aéreo e marítimo. Previa, mas não com tanta ênfase, a ampliação da capacidade brasileira na produção de alimentos, construção de silos, armazéns e matadouros, facilidade na aquisição de tratores, adubos e inseticidas. A indústria de base dobrou a produção de aço, celulose e borracha e quintuplicou a produção de alumínio. A fabricação deste, por sinal, dependia da ampliação da capacidade de produção de energia elétrica, elemento indispensável para transformar a alumina no produto acabado.

Automóvel, símbolo de riqueza De todas as metas, exceto Brasilia, nenhuma outra se destacou mais e influiu tanto no orgulho brasileiro como a da implantação da indústria automobilística no Brasil. A produção de carros se apresentou como o símbolo do progresso e da riqueza nacional, embora tenha sido talvez o mais equivocado de todos os projetos. Com efeito, as indústrias instaladas no país tinham atração apenas pelos incentivos oferecidos e na produção para atender ao mercado interno, não lhes interessando tornar o Brasil competitivo e concorrente no mercado internacional, onde todas elas iam muito bem, obrigado. Isso gerou um crescimento distorcido que até hoje não conseguimos corrigir. O Brasil encerra o milênio com uma produção de quase um milhão e meio de carros por ano, despejados no mercado nacional, atulhando as estradas e, paradoxalmente, gerando problemas de

desemprego, justamente o inverso do objetivo proposto por ocasião da sua implantação. Não foi assim, no princípio. A indústria automobilística chegou a manter cerca de 140 mil empregos na região do ABC (Santo André, São Bernardo e São Caetano), gerou o desenvolvimento da indústria de auto-peças e alavancou o progresso de cidades até então pobres, como era o caso de São Bernardo do Campo. Até então, a rigor, o Brasil dispunha apenas de duas indústrias automobilísticas de peso: a General Motors, em São Caetano e a Ford, no bairro do Bom Retiro em São Paulo. Em verdade, só a GM podia ser considerada uma “fábrica”, pois detinha um parque industrial completo. A Ford se instalara em um simples galpão, onde recebia dos Estados Unidos, completos, carros desmontados e encaixotados. Seu trabalho era colocar os componentes em seus lugares, montando o que já fora fabricado inteiramente no exterior. Um exemplo de progresso: São Bernardo do Campo, nos anos cinqüenta, era uma cidade-dormitório, e os poucos empregos ali gerados estavam ligados à indústria de móveis, pequena mas tradicional, e à Brastemp, fábrica de eletrodomésticos, ainda sem mercado suficiente para se expandir. Uma única via pública, a rua Marechal Deodoro, atravessava a cidade de ponta a ponta. Dela saiam as trasnsversais, todas de terra esburacada. O sistema telefônico tinha pouco mais de 300 aparelhos instalados, ligados a um PBX, onde as telefonistas completavam as ligações, conectando as pegas de um telefone ao outro. Tudo como nos bons tempos de Alexandre Graham Bell. De moderno, apenas a Cia. Cinematográfica Vera Cruz, que rendia muita publicidade, mas nenhum dinheiro aos cofres públicos. E, como toda ilusão, acabou virando pó. Ao contrário, a indústria automobilística, construída às margens da via Anchieta, mudou prodigiosamente a face do município e o perfil de seus moradores, criando uma classe média, impulsionando o consumo e gerando impostos que permitiram a construção de uma cidade moderna, capaz de competir com suas vizinhas. Dotada de mão-de-obra altamente especializada e de uma população fortemente politizada, São Bernardo tornou-se, mais tarde, o elemento chave da

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modernização sindical, ousando sustentar uma greve de grande duração em plena vigência do Ato Institucional nº5 e servindo de base para a criação de um partido político com raízes bem definidas. Todo esse progresso não saiu de graça ao governo federal. A demanda por matérias primas fundamentais dependeu da expansão da indústria de base que, como dissemos, não interessava ao capital estrangeiro, tendo de ser bancada com dinheiro público, conseguido com empréstimos e emissão de moeda, vale dizer, com inflação. A maneira como o Brasil suportou essa pressão inflacionária revela um país já consolidado, capaz de enfrentar e vencer desafios maiores, quebrando sua dependência quase que exclusiva da agricultura.

Um pouco de folclore Nem tudo foi róseo no governo JK e alguns acontecimentos, pelo inusitado das situações criadas, acabaram se tornando folclóricos. Um deles, foi a compra do porta-aviões Minas Gerais. Pura sucata, imprestável para o uso, foi descartado pela Inglaterra por um preço muito superior ao que realmente valia, se é que valia alguma coisa. Ainda por cima, foram necessários reparos nos estaleiros brasileiros, que nos custaram uma pequena fortuna. A idéia era agradar Marinha e Aeronáutica, mas acabou por criar uma disputa feroz sobre quem devia comandar o navio. “É um porta-aviões, portanto o comando deve ser da Aeronáutica”, diziam uns. No lado oposto outros replicavam: “Serve de pouso a aviões, é verdade, mas está dentro da água, e água é exclusividade da Marinha”. A discussão se tornou tão acalorada que já estava ameaçando trazer uma desavença entre as duas forças. Finalmente chegaram a um consenso. As operações de manobras aéreas ficariam sob o comando da Aeronáutica e as manobras de navegação do porta-aviões permaneceriam sob o comando da Marinha. Uma e outra força agiriam em harmonia, dentro de um objetivo comum. Um “ovo de Colombo”. Como não haviam pensado nisso antes? Terminada a “guerra”, o compositor Juca Chaves ironizou o assunto em uma de suas músicas:“O Brasil já vai à guerra, comprou porta-aviões. / Dois vivas pra Inglaterra, 82

milhões! / Mas que ladrões! / Porém há uma peninha: de quem é o porta-aviões? / ‘É meu! diz a Marinha; ‘é meu!’ diz a aviação. / Ah! Revolução!” Sem folclore, mas de conseqüências mais graves foi o conflito estabelecido com o Fundo Monetário Internacional, que desaprovou a política inflacionária de JK, exigindo do Brasil um plano financeiro ortodoxo, que contivesse a moeda, mesmo à custa do desenvolvimento. Juscelino não se submeteu e rompeu com o FMI, perdendo o aval deste para novos empréstimos externos. Como isso também não era interessante ao capital internacional, que havia encontrado seu paraíso no Brasil, as coisas foram se acomodando e o governo, afinal, continuou obtendo os empréstimos de que necessitava para concluir sua obra.

Prós e contras no governo JK Ninguém, no bom uso de suas faculdades, há de negar que o governo JK modernizou o Brasil, desenvolvendo seu parque industrial, sistematizando a administração pública, criando uma classe média consistente, integrando os vários Estados e consolidando a nação sem ferir o principio federativo adotado desde a primeira Constituição republicana. Entretanto, o desenvolvimento, representado na expressão “50 anos em 5”, deixou uma lacuna, a maior e mais grave de todas, que alimentou os críticos de Juscelino: seu governo criou uma classe média forte mas aumentou a miséria do proletariado. O grande desafio brasileiro, que é a redenção dos humildes, não se concretizou no governo JK e diga-se, a bem da verdade, também não mereceu a atenção dos governos seguintes. A implantação de indústrias altamente especializadas favoreceu o pessoal técnico e empobreceu o trabalhador braçal. O desenvolvimento se deu nos grandes centros industriais, fazendo piorar as condições de vida nos sertões brasileiros e aumentando escandalosamente a desigualdade de renda. A inflação gerada para a expansão das indústrias de base e a construção de Brasilia atingiu em cheio os menos favorecidos, que não tem como defender os poucos tostões que consegue amealhar em seu duro trabalho. A modernização também não foi um fator de assentamento das populações em suas raízes, muito pelo contrário. Atraída pelo sonho, a população rural passou a migrar

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com maior intensidade para os centros de progresso, inchando as grandes cidades e iniciando um processo de favelização que nunca mais foi estancado. São Paulo é um exemplo disso. Sua primeira favela, a de Vila Prudente, surgiu nos anos 50 como um processo temporário de assentamento. O problema não foi equacionado e as favelas começaram a se multiplicar como um câncer. Ao contrário do Rio de Janeiro, onde a favelização obedece a uma certa ordem, em São Paulo os barracos são erguidos indiscriminadamente, em qualquer canto disponível, sob viadutos, à margem de córregos imundos ou em qualquer ponto que encontre próximo aos locais de trabalho. Outro caso é o de Brasília. Os “candangos” que construíram a cidade não estavam nos planos da Novacap e, ao concluir a obra, uma vez dispensados, deveriam retornar aos seus pontos de origem. Recusaram-se a fazê-lo. A exuberante capital não era um simples local de trabalho, era o seu orgulho, a sua alma, a sua vida. Transformando-se em questão de fato, essa disposição dos operários em permanecer deu origem não só às cidades satélites, núcleos de miséria, como até a favelas construídas à volta do majestoso avião desenhado pelo arquiteto Lúcio Costa. O governo JK trouxe a riqueza mas não extinguiu a miséria. Desenvolveu os grandes centros mas empobreceu o restante do país. Suas estradas uniram os pontos geográficos mas, longe de levar o progresso, serviram tão só para escoamento de grandes e contínuas levas de migrantes, rumo ao sudeste, em busca de um sonho. O resgate do povo brasileiro não se deu no governo de Juscelino e as grandes massas ainda esperam quem promova sua redenção. É o sebastianismo, presente na alma brasileira, que lhe sustenta a fé e lhe traz alento para caminhar em busca do futuro. Para concluir. Deixando a Presidência, JK elegeu-se senador mas foi cassado pelo governo Castelo Branco, tendo seus direitos políticos suspensos por dez anos, com o que passou a viver no exílio, em Nova York e Paris. Não teve dos governos militares o respeito que merecia. Tendo de vir ao Brasil para acompanhar o velório de um familiar, foi detido e submetido a um intenso

interrogatório que se estendeu por várias horas, comprometendo sua saúde, já abalada com problemas cardíacos. Foi preciso que políticos influentes agissem junto às autoridades para que ele fosse enviado de volta ao exílio. Autorizado a voltar ao país, passa a escrever suas memórias, mas não consegue vê-las publicadas. Em 22 de agosto de 1976, JK perde a vida em um estranho acidente automobilístico próximo a Resende (Rodovia Presidente Dutra) o qual, na opinião de alguns, nunca foi convincentemente explicado. Com ele, sela-se o destino de um dos maiores vultos da República, cuja presença na história brasileira é hoje assinalada com o “Memorial JK”, a última homenagem de Oscar Niemeyer ao seu chefe e amigo.

* * *Capítulo Vinte-e-nove

A ATRAÇÃO DA SELVASurge Brasília, a nova Capital

Nas eleições presidenciais de 1955 são candidatos Ademar de Barros, Juarez Távora, Juscelino Kubitschek e Plínio Salgado. Na disputa efetiva, com possibilidades de vencer as eleições, apenas dois: o governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, lançado pelo Partido Trabalhista Brasileiro e o general Juarez Távora, representando a União Democrática Nacional. Mais que uma eleição, é um plebiscito, pois os dois candidatos tem posições bem definidas e antagônicas, representando respectivamente o getulismo e o anti-getulismo. É natural que, em tais circunstâncias, os dois postulantes, mais do que o outros, se lancem em intensas excursões pelo país, levando adiante suas idéias e procurando arregimentar o eleitorado ainda indeciso. Numa dessas viagens, Juscelino reúne um grupo seleto de eleitores no pequeno município de Jataí, a sudoeste de Goiás. Em seu discurso, repisa o tema usado durante a campanha, qual seja, o do fiel cumprimento à Constituição, custe o que custar. Em um determinado momento, pede a palavra um dos moradores da cidade, Antônio Carvalho Soares, conhecido por Toniquinho, e lembra que a Carta Magna prevê também a transferência da capital federal para o centro do país. Então,

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pergunta ele, se o candidato pretende cumprir a Constituição, quais os seus planos para a construção da nova capital? Não havia projetos a respeito. O plano de metas de Juscelino destacava 30 itens mas nenhum deles fazia referência, nem de leve, ao assunto. Que dizer ? JK deu a única resposta coerente, a de que o dispositivo constitucional seria realidade em seu governo. Foi assim que se acrescentou o 31º item ao plano de metas do candidato: a transferência da capital federal para o centro do país, justamente para o Estado de Goiás, de onde sugira incômoda indagação.

Um sonho que vem de longe O sonho de construir uma capital no interior do país vem de longe, muito longe mesmo, quando o Brasil ainda era colônia de Portugal. Nessa época, o marquês de Pombal (1699-1782), Ministro de Negócios Estrangeiros de Portugal, toma uma série de providências para obter maior segurança para a colônia, que despontava como uma fonte não desprezível de renda. Por razões tidas como estratégicas, a capital desta foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro, o que, entretanto, significou trocar seis por meia-dúzia. Um e outro ponto eram altamente vulneráveis aos ataques marítimos e, se uma dessas praças fosse tomada pelo inimigo, o Governador Geral teria de recuar para a mata a fim de preparar a resistência. O marquês de Pombal desejava, de uma vez, levar a capital para o interior da colônia, deixando a orla marítima aos cuidados da defesa naval, mas preservando a chefia do governo em local distante do mar. Sonhava mais, o marquês, em transformar essa capital em uma “Nova Lisboa” para onde, mais tarde, fosse possível transferir a própria sede do reinado. Não era à-toa. O Brasil ocupava um ponto estratégico no novo mapa-múndi, a meio caminho da África e das Índias, possibilitando o controle das rotas marítimas e permitindo combater com maior eficácia a ação dos piratas e deter a cobiça de governos estrangeiros, interessados na posse de colônias ultramarinas. Esses planos não puderam ser levados adiante, pois, com a morte de D. José 1º, assumiu o trono D. Maria 1ª, “A Louca”, de índole totalmente diferente de seu pai. Enquanto D. José se deixava dominar facilmente, sendo conduzido por seu

ministro, já D. Maria 1ª tinha um temperamento forte e centralizador, reunindo, pois, em torno de si, forças políticas que anularam o prestígio do marquês de Pombal, o qual foi destituído e, mais tarde, desterrado. Também os inconfidentes mineiros tinham em seus planos a transferência da capital para o interior, dando preferência, é claro, a Ouro Preto, que consideravam ter estrutura suficiente para abrigar a sede do governo, por seu poder econômico, a facilidade de comunicação e de transporte, e por estar a cidade cercada de um cinturão produtor de alimentos. Foi a mesma raínha D. Maria 1ª

que abortou esses planos, desbaratando os conjurados, punindo-os com o desterro e condenando Tiradentes à forca. Em 1808, com a investida armada dos franceses, e sob pressão diplomática dos ingleses, a família imperial e a nobreza foram empurradas para dentro de navios, por determinação do embaixador britânico, Lord Strangford, que venceu as resistências do apavorado regente, o príncipe D.João, no momento em que tropas de Napoleão já invadiam a capital portuguesa. Instalado o reino unido Portugal-Brasil-Algarves no Rio de Janeiro, o mesmo Lord Strangford escreveu ao primeiro ministro da Inglaterra, George Canning, relatando a vulnerabilidade da baía da Guanabara e sugerindo pressões junto ao governo português visando a transferência da capital para um local mais seguro, longe da orla marítima.

“Novacap” no Império Proclamada a independência do Brasil, e instalada a Assembléia Constituinte, foi de José Bonifácio de Andrada e Silva a idéia de incluir na Constituição um dispositivo preconizando a transferência da sede do Império para “um sítio sadio, ameno, fértil e regado por algum rio navegável”. Entretanto, a Assembléia Constituinte foi extinta e nossa primeira Constituição, outorgada pelo Imperador, não fazia qualquer menção ao assunto. Já o jornalista Hipólito José da Costa que, em Londres, publicava o primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense, defendia a transferência da capital para as margens do rio São Francisco. O tema não foi esquecido durante o Império. O historiador Francisco Adolfo de Varnhagem, visconde de Porto Seguro

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(1816-1878), apresentou um Memorial Orgânico que previa a transferência da capital para o interior, possivelmente para Minas Gerais. Seguindo a mesma linha, o visconde de Albuquerque se estendeu num plano mais sólido, prevendo a construção da nova capital entre os rios São Francisco e Tocantins. A idéia de mudança do distrito federal para o interior (não necessariamente para o centro do país) sempre fascinou políticos e técnicos, todavia uns e outros se fixavam numa posição puramente retórica; na prática, todos se dedicavam a cuidar dos problemas políticos do dia-a-dia empurrando o sonho para um futuro distante e indefinido.

As constituições e o “mudancismo” A partir de 1889, com a proclamação da República, a pretensão “mudancista” foi incluída nas constituições de 1891, 1934 e 1946, sendo ignorada pela constituição de 1937 (Estado Novo), esta última feita à imagem e semelhança do ditador Getúlio Vargas. Não obstante tal insistência, a idéia era apenas um “wishful thinking”, algo que todo mundo gostaria de tornar realidade, qualquer dia, só Deus sabe quando. De seu lado, a opinião pública nunca foi chamada a se mobilizar, nem tinha razões de fato para fazê-lo. Um dos motivos alegados para a transferência, que era o aspecto doentio do Rio de Janeiro, foi eliminado com a erradicação das epidemias, no governo de Rodrigues Alves (1902-1906), o qual, de quebra, ainda melhorou o aspecto da cidade, impulsionando seu desenvolvimento. Outro objetivo era de caráter estratégico. A História registra vários atentados contra a cidade do Rio desde os franceses que ali pretendiam se instalar, no século 16, até a Revolta da Chibata, quando simples marinheiros colocaram em cheque o governo do marechal Hermes da Fonseca, obrigando-o a fazer concessões aviltantes, para evitar o bombardeio da cidade. Mais tarde, a “guerra da vacina” em 1904, as revoltas de 1922, a intentona comunista de 1935 e o “putch” integralista de 1938 puseram à mostra a fragilidade do Rio de Janeiro em termos de defesa. Se, de um lado, é verdadeiro que o desenvolvimento do avião como instrumento de guerra e o surgimento de mísseis como armas dirigíveis tornaram vulnerável qualquer

parte do país ou do planeta, por outro lado, o Rio de Janeiro jamais perdeu seu caráter político efervescente, pela extrema facilidade de mobilização popular, a ponto de se dizer que por ali qualquer greve de padeiros teria força suficiente para desestabilizar o governo. Este fator continuava presente e justificava, por si mesmo a criação de uma capital, habitada por burocratas, e voltada exclusivamente para a administração. Foi com essa motivação psicológica que, assumindo o governo, Juscelino Kubitschek iniciou o processo de construção de Brasília. Aliás, registre-se de passagem que esse nome fora sugerido já por José Bonifácio, em 1923. A outra alternativa apresentada por ele era Petrópolis que, como sabemos, foi escolhida para batizar uma colônia austríaca, nas proximidades do Rio.

Primeiras providências Já o presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-1950) havia nomeado uma comissão para escolher o local onde se construiria a nova cidade. Mais tarde, o assunto foi retomado pelo presidente Café Filho (1954-1955). Tomando posse, Juscelino Kubitschek encetou uma série de providências para consolidar o projeto, antes que este se perdesse ante outras prioridades do governo. O jurista Santiago Dantas encarregou-se de redigir a mensagem que seria enviada ao Congresso. O Estado de Goiás, o grande interessado na localização do distrito federal em seu território, foi chamado a colaborar, e o fez, com a ajuda da própria oposição. Em abril de 1956, em singela cerimônia na cidade de Anápolis, a mensagem foi assinada. Passou sem dificuldades pelo Senado e, vencidas as resistências de alguns opositores fanáticos, contou também com a aprovação da Câmara Federal. Sancionada pelo Presidente, transformou-se na Lei nº 2.874. Não havia tempo a perder. Qualquer pausa poderia abrir uma brecha pela qual os opositores liquidariam o projeto. Foi então constituída a Novacap, sociedade civil com capital estatal. Sua primeira diretoria se compôs com Israel Pinheiro, Ernesto Silva e Bernardo Sayão. A União Democrática Nacional indicou Iris Meimberg para acompanhar os trabalhos. O Instituto de Arquitetos do Brasil traçou os detalhes para a realização de um concurso visando aprovar e premiar o melhor projeto da cidade. Era um

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mutirão entusiasmado, impulsionando a realização da obra. Em 2 de outubro de 1956, JK foi visitar o local escolhido para a construção da nova capital. Com ele estavam o ministro da Guerra, general Teixeira Lott, fiador da transição e do governo; o chefe da Casa Militar, general Nelson de Melo, o governador da Bahia, Antônio Balbino, o presidente da Novacap, Israel Pinheiro; o diretor do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), engenheiro Regis Bitencourt; o brigadeiro Araripe Machado; o coronel Dilermando Silva, o arquiteto Oscar Niemeyer; enfim, um grupo de pessoas selecionadas a dedo, procurando garantir as simpatias e o apoio político mais amplo possível para evitar uma oposição destrutiva ao projeto. As primeiras medidas concretas foram a construção de uma pista de três quilômetros para pouso e decolagem do avião presidencial, a construção de estradas de rodagem para o transporte de material, e um hotel de madeira para dar um abrigo, ainda que precário, ao Presidente, autoridades e técnicos.

O “avião” de Lúcio Costa Do concurso para escolha do plano de construção, participaram arquitetos e empresas, os mais renomados, mas a atenção da comissão julgadora – que incluía algumas autoridades internacionais – voltou-se para um rabisco, feito a lápis, displicentemente, pelo arquiteto Lúcio Costa. Conciso e preciso, o projeto que acabou sendo aprovado era rico em simbolismo: a cidade se constituiria num enorme avião (ou uma grande cruz, na explanação do arquiteto), em cuja cabine ficaria a praça dos Três Poderes; o eixo transversal, ou as asas, abrigaria o setor residencial; no eixo monumental, de leste a oeste, se situaria tudo o mais: os ministérios, as repartições, diversões, etc. Não era um plano completo, uma camisa-de-força, mas uma simples idéia, em cima da qual se poderia desenvolver livremente um projeto mais detalhado. O próprio idealizador, Lúcio Costa, o descreve: “a) nasceu de um gesto primário de quem assinala um local ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz; “b) procurou-se depois a adaptação à topografia local, ao escoamento natural das

águas, a melhor orientação, arqueando-se um dos eixos a fim de contê-lo, no triângulo equilátero que define a área urbanizada; “c) houve o propósito de aplicar os princípios francos da técnica rodoviária, inclusive a eliminação de cruzamentos – a técnica urbanística, conferindo-se ao eixo arqueado, correspondente às vias naturais de acesso, a função circulatória – tronco, com pistas centrais de velocidade, pistas laterais para o tráfego local, e dispondo-se ao lado desse eixo o grosso dos setores residenciais; “d) com a decorrência dessa concentração residencial, os centros cívicos e administrativos, o setor cultural, o centro de diversões, o centro esportivo, o setor administrativo municipal, os quartéis, as zonas destinadas à armazenagem, ao abastecimento e às pequenas indústrias locais, e por fim, a estação ferroviária, foram-se naturalmente ordenando e dispondo ao longo do eixo transversal que passou a ser, assim, o eixo monumental do sistema.” Esse era o esboço, a concepção do que viria a ser a cidade. Tudo o mais foi sendo planejado e executado pela equipe encarregada de tornar Brasília uma realidade: Lúcio Costa, o projetista; Oscar Niemeier, o arquiteto; Israel Pinheiro, o administrador; e, é claro, Juscelino Kubitschek, o Presidente visionário sem o qual tudo ficaria nas bravatas do lançamento, como tantos outros projetos inacabados que atulham os arquivos de nossa administração pública.

Importância dos “candangos” Um fato importante a se destacar, foi a rápida e sólida integração dos operários à cidade, constituindo-se não apenas na mão-de-obra indispensável em sua construção, mas principalmente nas raízes da nova capital, tal o orgulho despertado em todos eles pela obra que estavam realizando. Por seu lado, JK nunca se furtou em se comunicar com a gente simples que tornava Brasilia uma realidade. Duas ou três vezes por semana, tomava um avião para Brasilia, retornando em seguida para o Rio, de tal sorte que ficou conhecido como o “Presidente voador”. Um programa humorístico do rádio (televisão ainda era luxo), entrava, de tempos em tempos, com um ruído de avião e uma voz anunciava: “La vai ele...” Em Brasília, tomava o pulso do trabalho conversando sobretudo com os

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operários, incrementando neles, sem o saber, o sentimento de integração à majestosa cidade que surgia da terra bruta. Foram eles, mais que os burocratas, que constituiram a alma da cidade. Os funcionários públicos precisaram de incentivos para concordar com a transferência das praias cariocas para o sertão bruto onde se plantara a Novacap. Os “candangos”, ao contrário, nem com incentivos pretendiam sair de lá, não importando as dificuldades que tivessem de enfrentar. Isso trouxe problemas sérios para o governo, pois a cidade, projetada para a burocracia, não tinha espaço nem colocação permanente para o trabalhador comum, contratado temporariamente para uma obra específica, com tempo determinado de conclusão. O resultado, foi o surgimento das cidades satélites que tiveram de criar, por si sós, os meios de sustentação. A pobreza das edificações e a miséria de seus moradores sempre contrastou com a opulência da nova capital federal. Para ordenar o caos, tiveram de ser criadas sub-prefeituras em Planaltina, Taguatinga, Sobradinho, Gama, Paranoá. Brazilândia e no Núcleo Bandeirantes. Com o tempo surgiram novas regiões administrativas, como Ceilândia, Guará, Cruzeiro, Samambaia e, depois, Santa Maria, São Sebastião, Recanto das Emas, Riacho Fundo, Lago Sul, Lago Norte, Candangolândia... Ninguém mais sabe onde vai parar essa expansão.

Enfim, a inauguração Outro fato a se destacar é a extraordinária cooperação que o governo recebeu de seu maior adversário, a União Democrática Nacional. Senão todos, pelo menos um bom grupo de políticos udenistas se aliaram à causa da transferência da capital para o centro geográfico do país. Assim, foi um deputado federal pela UDN que apresentou projeto para a fixar a data da inauguração de Brasilia, escolhida finalmente como 21 de abril de 1960, prestando uma homenagem a Tiradentes, o primeiro mártir da Independência. Surgiu então a lei nº 3.273, cuidando desse detalhe, o único que ficou em aberto na lei que autorizava a construção da Novacap. No dia 20, o próprio presidente Juscelino Kubitschek, ante aclamações populares,

fechara os portões de ferro do Palácio do Catete, simbolizando o fim da “Velhacap”, ainda que, na prática, a transferência de todo o sistema levaria anos e, por muito tempo, o Rio de Janeiro continuaria sendo a capital administrativa do Brasil. Em 21 de abril, iniciaram-se os festejos de inauguração, que prosseguiram por todo o dia: a primeira missa; a multidão de candangos entoando a canção folclórica “como pode um peixe vivo, viver fora da água fria...”; a inauguração do jornal “Correio Braziliense”; as cerimônias oficiais mas, também e principalmente, as manifestações populares espontâneas, marcaram o nascimento da nova cidade. O sino que anunciou Brasilia foi trazido de Minas Gerais. Era o mesmo sino que, em 21 de abril de 1792, anunciou a morte de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Cumpria-se a profecia de D. João Bosco, fundador da ordem salesiana, que antevia uma cidade surgindo da selva, entre os paralelos 15 e 20, próximo às lagoas Feia, Formosa e Mestre d’Armas, às cabeceiras do rio Preto. Brasília passava, pelo menos em tese, a ser o centro de irradiação do progresso aos demais cantos do país. Se isso ainda não se deu é porque outros fatores serviram de entrave ao desenvolvimento. Mas a verdade é que hoje nenhum governante se atreveria a patrocinar a volta da capital ao Rio de Janeiro, por maiores que sejam os atrativos da cidade maravilhosa. A nova Capital já conquistou seu status e ganhou dinâmica própria, fazendo-se respeitar como centro administrativo do país. E assim será para todo sempre.

* * *Capítulo Trinta

VALSA DA DESPEDIDAA última eleição para Presidente

Em 3 de outubro de 1960, com a mesma festa de sempre, realizam-se as eleições para a escolha do novo presidente da República, que será sucessor de Juscelino Kubitschek e o primeiro a tomar posse em Brasilia, a nova capital do país. O que muitos não sabem, mas alguns já pressentem naquele instante, é que estas seriam as últimas eleições livres. Até 1990, em um lapso de exatos 30 anos, o eleitor é impedido de escolher seu Presidente. Com

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efeito, cassados os direitos de cidadania à nação brasileira pelo golpe de estado que implantou o regime militar no Brasil, o Presidente (ou príncipe eleito) passou a ser escolhido pelo sistema, sendo seu nome levado ao Congresso Nacional numa bandeja de prata, para receber homologação. Mas neste dia 3 de outubro de 1960 tudo ainda é festa, o eleitor volta às urnas em busca de uma esperança e, com ardor messiânico, espera ter, finalmente, encontrado aquele que iria redimir a população esquecida deste imenso Brasil. O eleitorado vai ao pleito com três candidatos: Ademar Pereira de Barros, do PSP, desta vez apoiado por Plínio Salgado que, após sucessivas derrotas, desistiu de candidatar-se; o general Henrique Duffles Teixeira Lott, do PSD, apoiado também pelo PTB, que lhe deu o vice, na pessoa de João Belchior Goulart (Jango); finalmente, Jânio da Silva Quadros, lançado pelo PTN do líder marmiteiro Hugo Borghi, mas recebendo apoio também da UDN, do PDC e do PR. Pelos arranjos estranhos que se fizeram durante a campanha e pelos reflexos que esta eleição teve nos destinos do país nas décadas seguintes, bem que ela justifica um capítulo em separado. E é o que estamos fazendo.

O mundo em 1960 Independentemente de qual fosse a conjuntura do país em 1960, é importante conhecermos também o panorama político mundial nesse mesmo ano, o qual influiu na campanha eleitoral, nas eleições e, depois, no próprio relacionamento do governo brasileiro com os demais países. Registre-se que aquele período glorioso estava repleto de heróis que, para o bem ou para o mal, deixaram marcada sua passagem na história universal. John Fitzgerard Kennedy tomava posse como 35º presidente dos Estados Unidos. Do outro lado do oceano, Nikita Khrutcheve era o chefe da União Soviética. Desde há muito, vinha sendo travada uma guerra fria entre as duas potências, dentro da qual a revolução cubana, recém inaugurada, se transformou em um novo complicador nas relações internacionais.. Há menos de dois anos, o jovem advogado Fidel Castro e seus guerrilheiros de Sierra Maestra haviam tomado o poder em Cuba, depondo o sargento Fulgêncio Batista e implantando naquela ilha um

regime, a princípio socialista, depois declarado abertamente como comunista, patrocinado pelo governo de Moscou. Tratava-se apenas de uma troca na área de influência, já que o governo anterior estava de tal maneira sujeito a Washington que Cuba era chamada de “quintal” dos Estados Unidos. Passou a ser “quintal” da União Soviética e não foi ainda desta vez que o país adquiriu sua soberania. Cuba tornava-se o primeiro enclave comunista na América Latina, a partir do qual a União Soviética tencionava exportar suas doutrinas revolucionárias para o continente. Àquela altura, já era possível encontrar nas mãos de estudantes brasileiros revistas impressas em castelhano, vindas de Cuba, fazendo apologia do comunismo. E o mesmo acontecia nos países vizinhos, criando um clima de apreensão e vigilância. Na Europa, algumas ditaduras conseguiam se sustentar, mesmo após a 2a

Guerra, que foi a grande luta em busca da liberdade. Antônio de Oliveira Salazar, em Portugal, e o generalíssimo Francisco Franco, na Espanha, dominavam em seus respectivos países, mas já surgiam alguns sinais de contestação ao regime. E, em face da aproximação política e cultural do Brasil com ambos países, não é de estranhar que os problemas da península Ibérica viessem a ter suas repercussões aqui. Na França, o general Charles de Gaulle havia renunciado em 1956, para voltar dois anos depois, espetacularmente, apontado como o único capaz de resolver os graves problemas do país, envolvido nos conflitos da Argélia e ameaçado de uma guerra civil. E voltou impondo severas condições, pedindo poderes especiais e reformulando a constituição. Era o início da 5ª República francesa. Não estranhe que ele tenha se tornado o ídolo de um dos candidatos à Presidência, Jânio da Silva Quadros. A África era um caldeirão a fervilhar. Ao norte, uma luta sangrenta entre a Argélia, colônia francesa em busca da liberdade, e os exércitos da legião estrangeira, que a França mantinha naquele território para sufocar qualquer movimento de rebeldia. Ao sul, o Congo Belga, sob a liderança de Patrice Lumumba, acabara de conseguir a independência, mas seu opositor, Moisés Tshombe levou o país nascente a uma guerra civil, ocasionando sua divisão em dois territórios distintos: O Congo, dirigido por

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Lumumba, que se apoiou na União Soviética, e o Zaire, que recebeu franco apoio da Bélgica e do mundo capitalista. Era mais uma face da guerra fria. As duas colônias portuguesas no sul da África, Angola e Moçambique também queriam autonomia mas Salazar, cinicamente, enviou um recado de que somente dali a quinhentos anos elas estariam em condições de cuidar de seus próprios destinos. A forte pressão portuguesa sobre essas colônias facilitou, na contra-mão, a infiltração comunista que desestabilizou ambos os territórios. No Oriente Médio, afora a luta milenar entre árabes e judeus, a questão imediata era a do Canal do Suez, nacionalizado pelo presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser, que pretendia, assim, arrecadar pedágio para construir a represa de Assuã, obra estratégica para o desenvolvimento de seu país. Isso originou um pesado conflito com a França e a Inglaterra, envolvendo de permeio os Estados Unidos e, mais tarde, a própria ONU. O Brasil chegou a enviar tropas de paz para garantir a internacionalização do canal. E a União Soviética aproveitou-se do episódio para garantir maior aproximação com o mundo árabe, enquanto os Estados Unidos davam sustentação a Israel. No extremo asiático, a guerra da Coréia (1950) foi o ponto de partida para a divisão do continente em áreas de influência bem definidas: A Coréia do Norte e o Vietnã do Norte, comunistas; a Coréia do Sul e o Vietnã do Sul capitalistas; entre eles, a imensa China Continental, comunista, e a pequena ilha de Formosa, “nacionalista”, sob a proteção dos Estados Unidos; e os países restantes, sofrendo na carne as lutas internas para defini-los em um ou outro bloco. Estados Unidos e demais potências capitalistas formavam o que se designou como “Primeiro Mundo”; a União Soviética e seus satélites compuseram o “Segundo Mundo”; Nasser procurou liderar os países sub-desenvolvidos ou em desenvolvimento em um bloco de “não alinhados”. Era o chamado “Terceiro Mundo”. Em tal clima, governar o Brasil significava fazer uma opção por uma das duas potências dominantes. Ou então, procurar a imparcialidade, sofrendo as conseqüências da reação diplomática dos Estados Unidos, que se traduziam obviamente por pressões

políticas, comerciais, financeiras e, se preciso, por uma sutil pressão armada.

O candidato Ademar de Barros Ademar Pereira de Barros nasceu em Piracicaba-SP, em 22 de abril de 1901. Em 1923, formou-se médico e foi a Berlim fazer um curso de pós-graduação de quatro anos. Quando de sua estada na Alemanha, Hitler ainda não era aquela força que levou o país à própria desgraça, pelo contrário, acabava de ser preso e, na prisão escreveu “Minha Luta”, o livro que continha sua profissão de fé. Ademar tinha tudo para seguir a carreira médica e nada para fazer sucesso na carreira política. Envolvendo-se na revolução de 1932, teve de ficar exilado, primeiro no Paraguai e depois na Argentina, onde era mais fácil encontrar emprego. Beneficiado pela anistia, em 1934, elegeu-se para a Assembléia Legislativa de São Paulo que, naquele tempo, funcionava em um velho casarão da Praça João Mendes, atrás da atual Catedral. E aí teria encerrado suas atividades políticas, pois, três anos depois, Getúlio Vargas instituiu o Estado Novo, fechando todas as casas legislativas e nomeando interventores para substituir os governadores. Foi aí que a sorte lhe sorriu. Em 1939, Getúlio pretendia substituir o interventor de São Paulo, Cardoso de Melo, por alguém menos conhecido e de menor influência política, que não viesse a lhe atrapalhar os passos. São Paulo era para ele um ninho de serpentes, nascedouro do “putch” integralista de 1938, que quase custou a vida do ditador. O nome de Ademar caiu como uma luva. Com uma carta de nomeação no bolso, foi o próprio Ademar de Barros que se dirigiu ao Palácio dos Campos Elísios, sem audiência marcada, mas com a missão de destituir o interventor em exercício e assumir seu lugar. Os efeitos da mudança não tardaram em surgir. Com uma vocação nata para a administração pública, Ademar revolucionou o governo, realizando obras como ninguém havia feito antes e, já que o prefeito da Capital era nomeado pelo interventor, não tardou em anunciar como obras suas também as realizações da Prefeitura. O novo interventor ficou conhecido, sobretudo, pela construção do Hospital das Clínicas, uma obra espetacular para a época, e que acabou tornando-se o maior complexo hospitalar do Brasil.

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Ao seu lado, durante toda carreira política, estava a figura exemplar de dona Leonor Mendes de Barros, com seu filho, o “Ademarzinho”, sempre exibidos em recepções públicas. Numa sociedade conservadora, apresentar-se como chefe de uma família estável impressionava e rendia em popularidade. Dono de forte máquina política e senhor do próprio partido, Ademar julgava-se em condições de disputar a Presidência. Sua fraqueza estava em que era um político regional e nunca trabalhou para desenvolver o PSP em outros Estados. Mário Beni, biógrafo de Ademar de Barros, aponta o maior defeito de seu líder: “Um dos grandes erros de Ademar, aliás próprio dos absolutistas, era o de não permitir lideranças demasiadamente pronunciadas dentro do partido. Admitia-as, sim, prestigiava-as até, apenas quando tais lideranças tinham um único objetivo: servi-lo.”

O candidato Teixeira Lott Henrique Batista Duffles Teixeira Lott nasceu em Antônio Carlos-MG em 16 de novembro de 1894. Estudou na Escola Militar do Realengo (Rio de Janeiro) tornando-se aspirante a oficial em 1914. Era um soldado bem comportado, defendendo o respeito à legalidade e, por essa razão, nunca teve destaque junto à jovem oficialidade, envolvida em freqüentes manifestações de rebeldia. Não se envolvendo também nas tramas políticas, tão comuns na Primeira República e no período Vargas, seu nome era desconhecido do grande público, embora respeitado entre seus companheiros. Temperamento forte, nunca deixava as coisas para serem resolvidas depois e isso criava atritos com seus pares e, algumas vezes, com superiores hierárquicos. Um incidente de peso no início da 2ª

Guerra Mundial, quando Lott era coronel, acabou afetando sua carreira. Ainda no Brasil, em fase de treinamento, teve um forte discussão com o comandante da 1ª Divisão Expedicionária, general Mascarenhas de Morais. Este seguiu para a Itália no primeiro navio, enquanto que Lott foi embarcado mais tarde, com o segundo escalão. Amigo e protegido do general Cordeiro de Farias, “a quem conhecera de calças curtas”, Lott esperava ter seus serviços aproveitados no campo de batalha, mas tudo lhe saiu errado. Já na Itália, precisando requisitar um

jipe para seu uso, foi recebido com frieza pelos oficiais (alguns subalternos) e encaminhado de repartição em repartição, até chegar ao coronel Brayner que, por sua vez, o enviou diretamente ao general Mascarenhas de Morais. Pior para ele. Mascarenhas lhe pergunta de sopetão: “O que está fazendo aquí?” “Fui mandado para cá”, respondeu Lott. E Mascarenhas encerrou o assunto: “Está bem. Pode voltar.” Um ou dois dias depois, chega à Itália o ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, a quem Lott reclama do tratamento recebido. Dutra simplesmente o convida para voltar ao Rio de Janeiro em seu avião, o que acabou acontecendo. Em 1944, Lott era promovido a general, mas teve frustrada sua participação na Força Expedicionária Brasileira. O episódio que tornou o general conhecido do Brasil inteiro foi, entretanto, a “novembrada” de 1955, quando, para cortar no nascedouro um golpe que pretendia impedir a posse de JK, Lott, em companhia do general Odilio Dennys, depôs, em dez dias, dois presidentes da República, Carlos Luz e Café Filho. O general Lott, que fora ministro da Guerra dos dois presidentes depostos, permaneceu no governo provisório de Nereu Ramos e, depois, nos cinco anos do governo de Juscelino Kubitschek, de onde saiu só para candidatar-se à sucessão presidencial. O grande trunfo de sua candidatura, patrocinada pelo PSD, era sua grande ascendência sobre as Forças Armadas, o que garantiu a estabilidade do governo JK e poderia, por extensão, garantir seu próprio governo, se eleito. De temperamento militar, avesso ao marketing, jamais envolveu sua família na campanha eleitoral, preferindo apresentar-se como garantidor da democracia, ao lado das Forças Armadas.

O candidato Jânio Quadros Jânio da Silva Quadros nasceu em 25 de janeiro de 1917. Era o mais jovem dos três candidatos. Sua origem é Mato Grosso do Sul (Campo Grande), mas sua família logo transferiu-se para o Paraná, onde ele prosseguiu seus estudos. Mudou-se mais tarde para São Paulo, bacharelando-se na tradicional Faculdade de Direito do largo São Francisco. Depois disso, passou a dar aulas em um colégio de classe

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média alta. Seus alunos logo se impressionaram com a brilhante oratória e com as idéias revolucionárias do novo professor, incentivando-o a candidatar-se a vereador. Meninos ainda, tornaram-se cabos eleitorais do mestre e colaboraram para que Jânio fosse eleito. Começou aí o carreirismo do jovem político, então com apenas trinta anos. Assumindo como vereador em 1947, não chega a terminar o mandato, elegendo-se deputado estadual. Em 1953, deixa a Assembléia Legislativa para assumir a Prefeitura de São Paulo, que acabara de conquistar sua autonomia política. Foi um momento que marcou a carreira de Jânio. Sem recursos financeiros para tocar a campanha, apoiado por dois pequenos partidos, o PDC e o PSB, teve como adversário Francisco Antônio Cardoso, apoiado pela máquina milionária de 11 partidos políticos, entre eles o PSP de Ademar de Barros, que dominava o governo do Estado e a Prefeitura; o PTB e o PSD de Getúlio Vargas, então presidente da República e todo um sistema posto a serviço do candidato oficial. Jânio e seu companheiro de chapa, o coronel Porfírio da Paz, desenvolveram a campanha transformando em força sua própria fraqueza. O eleitorado identificou-se com a campanha do “tostão contra o milhão” e descarregou sua votação maciçamente no “candidato dos pobres” elegendo Jânio contra Cardoso, na proporção de 3 a 1. Foi a chamada revolução branca. Um ano depois, Jânio renunciava à Prefeitura, levando a tiracolo seu vice-prefeito, para candidatarem-se, ambos, a Governador e vice, respectivamente. Foi o caos para a Prefeitura, que teve três outros prefeitos em menos de três anos. Eleito Governador em 1954, quase renuncia em 1955 para candidatar-se a Presidente, numa jogada do presidente Café Filho, que pretendia bloquear a candidatura de JK. Jânio teve o bom senso de permanecer no governo do Estado (o único posto que levou até o fim) e isso lhe foi proveitoso por mostrar sua capacidade administrativa e por projetar pelo restante do país o marketing de suas idéias e realizações. Em 1958, elege-se deputado federal pelo Paraná, mas raramente comparece à Câmara Federal. Perdeu assim a grande

oportunidade de estabelecer contato e amizade com políticos dos demais Estados. Perdeu também a oportunidade de utilizar a grande tribuna da Câmara para divulgar suas idéias em nível nacional, vindo a tornar-se um gigante com pés de barro, ou seja, com muita fama e pouca sustentação política. Era um mito, seu nome tinha projeção pelo Brasil afora, mas continuava um político regional, com seu apoio circunscrito a São Paulo e Paraná. Em 1960 tem sua candidatura lançada pelo Partido Trabalhista Nacional (centro), depois homologada também pelo PDC (esquerda), pela UDN e PR (direita), uma salada ideológica que só não lhe fez estragos porque Jânio era personalista, firmando-se em seu próprio carisma e usando os partidos políticos, em vez de ser usado por eles. Havendo começado sua carreira política na democracia cristã, em breve começou a abraçar idéias conservadoras, tornando-se mais radical que a própria União Democrática Nacional, onde passou a contar com apoio incondicional até do extremista Carlos Lacerda, o grande defensor de sua candidatura à presidência da República. Ao seu lado, a todo momento, os familiares. O pai, o médico Gabriel Quadros, elegeu-se vereador, tornando-se mais tarde o maior adversário do próprio filho. A mãe, dona Leonor da Silva Quadros, era, desde o início, uma fã de carteirinha. Com o mesmo sotaque fortemente silabado do filho (não era afetação), podia ser encontrada desde a campanha a prefeito, no comitê da rua Tabatinguera, mantendo contatos, dando sugestões e instruções, enfim, participando dos negócios políticos como se fosse ela a própria candidata. A esposa, dona Eloá, era a “doce Amélia”. Assim como Leonor Mendes de Barros, também não se envolvia na vida política, apresentando-se só como a companheira fiel a acompanhar o esposo, onde quer que fosse e em qualquer situação. A filha, Dirce Quadros, deixava aos poucos de ser a “moleca travessa” que corria pelos salões do Palácio Campos Elísios, para o encanto dos jornalistas credenciados (chegou a casar-se com um deles). Voluntariosa como o pai, começou, aos poucos, a tornar-se um problema político, por tocar em diapasão diferente da orquestra. Nos anos oitenta, quando já era deputada federal, veio a criar um sério incidente com

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entrevista de página inteira a um jornal de São Paulo. Mas esse é outro assunto, que não cabe nesta matéria.

Quem apoiava quem Durante muito tempo a UDN se apresentou como artífice da candidatura Jânio Quadros e base de apoio que levou-o à presidência da República. Nada mais falso. O lançamento da candidatura foi iniciativa do PTN e o candidato era apoiado por uma coligação de quatro partidos. O nome da UDN se sobressaiu durante a campanha, por ser um partido conservador, tão conservador como a maioria da imprensa brasileira, que lhe dava apoio e sustentação. Dentro da própria UDN havia um bloco de oposição, liderado pelo governador da Bahia, Juraci Magalhães, que pretendia ser, ele mesmo, o candidato à Presidência. Derrotado na Convenção, Juraci formalizou seu apoio ao vencedor e permaneceu fiel, mas não se integrou à campanha e recusou-se a participar da chapa como vice. Ademar de Barros tentou atrai-lo para sua própria campanha, porém sem resultado. Pelo menos duas vezes, Jânio renunciou à candidatura e, depois, renunciou à renúncia. Na primeira, o assunto ficou a quatro paredes, entre ele e Afonso Arinos: o bilhete foi recolhido e destruído. Na segunda, o assunto veio a público e causou pânico entre seus correligionários. O motivo alegado era a dualidade de candidatos à vice-Presidência. O PDC lançara Fernando Ferrari, enquanto a UDN sustentava o nome de Leandro Maciel, governador de Sergipe. Jânio recusava-se a subir no palanque com dois vices ao seu lado. Por fim, Ferrari concordou em fazer “carreira solo”, sem participar dos comícios. O candidato oficial passou a ser Leandro Maciel, que não conseguiu sustentar-se, sendo substituído pelo mineiro Milton Campos. Afinal, qual foi o partido que elegeu Jânio Quadros presidente da República? Nenhum dos quatro. A tomar como base as eleições legislativas que se realizaram em 1958, portanto, dois anos antes, a soma dos votos do PTN, UDN, PDC e PR não chegou a 30 por cento, um peso insuficiente para eleger um Presidente. Quem elegeu Jânio foi o próprio Jânio. Líder pela própria natureza, ele desenvolveu toda a campanha firmado no apoio popular que lhe era dado individualmente. Os

partidos políticos é que o seguiam, pautando-se pelos seus caprichos, aceitando-lhe as afetações, tolerando-lhe as manifestações autoritárias. Jânio conduzia a campanha, os partidos o seguiam, convencidos de que, longe dele, não havia como chegar ao poder. Um destaque especial para o jornalista Carlos Lacerda, proprietário da Tribuna de Imprensa, que deu apoio irrestrito à candidatura Jânio Quadros. Ambos autoritários, um e outro foram atraídos por um processo de polarização e estiveram unidos até a posse, quando um e outro retornaram às posições originais.

Cuba é o primeiro desafio Como já dissemos anteriormente, Cuba passou a ser o pivô da guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética na América Latina. Os primeiros buscavam um isolamento da ilha no continente, enquanto que a segunda utilizava o novo satélite com o objetivo de exportar a revolução pelo restante das Américas. Foi nesse processo que Fidel Castro interferiu na campanha presidencial, convidando os candidatos Teixeira Lott e Jânio Quadros para, em separado, fazerem uma visita a Cuba. Ademar de Barros nem foi convidado, seja pela inexpressividade da candidatura, seja por sua posição de ultra-direita, com forte apoio dos integralistas. A resposta do general Teixeira Lott foi imediata. Não iria. Além de causar-lhe problemas junto às Forças Armadas, essa visita poderia tornar-se um complicador da campanha eleitoral que, a essa altura, já não lhe era muito favorável. Não deixa de ser uma decisão ao menos curiosa, pois seu companheiro de chapa era João Goulart, com trânsito livre junto às esquerdas. O mesmo Jango que elegeu-se vice com JK, cuja posse o general Lott garantiu, derrubando dois presidentes da República, em 1955. Além do que, a candidatura Lott recebeu apoio formal do próprio secretário do Partido Comunista Brasileiro, Luís Carlos Prestes, um e outro fora da lei. Lott já estava por demais comprometido com as esquerdas e sua ida a Cuba poderia até ter resultado em um golpe publicitário de bom efeito. Jânio Quadros aceitou o convite, acontecendo então coisas que só se explicam na estranha e complicada política brasileira. A conservadora União Democrática Nacional não só deu apoio à

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visita como também permitiu que, da comitiva, fizesse parte um de seus líderes mais radicais, Afonso Arinos de Melo Franco, porta-voz de Jânio em assuntos internacionais. Arinos ficou lado a lado com Francisco Julião que, pouco tempo depois, viria a ser o líder das “Ligas Camponesas” no nordeste. Os dois extremos se tocam. A visita, embora distorcida por seus inimigos políticos, trouxe dividendos a Jânio Quadros, sendo considerada não como um apoio a Cuba, mas como visita de um futuro chefe de Estado a um país que continuava mantendo relações diplomáticas com o Brasil. Um batalhão de jornalistas acompanhou a comitiva e noticiou fartamente os encontros, trazendo uma reação favorável da opinião pública, até quando o noticiário era distorcido.

Eleição e posse Como já era esperado, os resultados das eleições de 3 de outubro de 1960 deram uma larga vitória ao candidato Jânio Quadros. O eleitorado ignorou suas preferências partidárias, descarregando a votação sobre um nome, alheio às legendas. Foi subvertido o processo. Os quatro partidos que apoiavam Jânio, representando 30 por cento do eleitorado, arrebataram quase 6 milhões de votos, enquanto os dois maiores partidos do Brasil (PSD e PTB), apoiando Lott, não conseguiram sequer 2 milhões. Para isso contribuiu, além do prestígio individual de Jânio, também um estratagema usado por ele. Apoiando formalmente seu companheiro a vice, Milton Campos, que subia no mesmo palanque, Jânio Quadros, paralelamente, incentivava uma campanha anônima e apartidária que se desenvolvia pelo país, fazendo publicidade da dobradinha Jan-Jan (Jânio-Jango). Como a legislação eleitoral permitia votar em candidatos de partidos diferentes, o eleitorado descarregou sua votação em Jânio Quadros para Presidente, e em João Goulart (vice de Lott) para vice-Presidente. Ambos foram eleitos. Desta vez não houve ameaças de golpe, nem tentativas para impedir a posse. Afinal, a UDN conseguia alcançar o poder mais alto, após quinze anos de sucessivas derrotas. Era uma vitória momentânea, mas, pelo menos naquele momento, era uma realidade palpável. Dali para diante, bastava administrar os acontecimentos até consolidar-se no poder.

Foi assim que Jânio da Silva Quadros e João Belchior Goulart tomaram posse, em cerimônia celebrada pelo presidente do Superior Tribunal Eleitoral, ministro Ari Franco. Cerimônia convencional, com um rápido discurso e nada mais. Às 11 horas, ambos são introduzidos no plenário do Congresso Nacional pelo presidente da casa, senador Filinto Müller (o mesmo que durante a guerra colaborou com o nazismo, quando era chefe de polícia do ditador Getúlio Vargas). Aqui, sim, a cerimônia é de pompa. Estavam presentes, além de parlamentares, as mais altas autoridades do país, os governadores de Estados, etc., etc. Em seguida, atravessando a praça dos Três Poderes, Jânio Quadros sobe à tribuna pública e, diante de uma multidão entusiasmada, recebe a faixa presidencial das mãos de Juscelino Kubitschek. Os aplausos são para ambos. Se Jânio representa a esperança do futuro, JK é a realidade do presente, representada não só pela nova capital onde se dava a cerimônia, como pelo desenvolvimento incontestável do país nos seus cinco anos de governo. Fecha-se, com este ato, um capítulo da História do Brasil, iniciando-se outro, bem mais conturbado do que se imaginava, em que as esperanças do povo brasileiro, grandes e coloridas como uma bolha de sabão, explodem repentinamente, fazendo o país escorregar em direção a um despenhadeiro.

* * *Capítulo Trinta-e-umSER OU NÃO SER

Governo Jânio Quadros

Uma bela piada circulou durante anos, situada no contexto da campanha eleitoral de 1960, com versões variadas, tendo como protagonista, algumas vezes, o candidato a vice-Presidente, Milton Campos, em outras, o próprio candidato a Presidente, Jânio Quadros. Por ser mais saborosa, ficamos com a última versão. A campanha se desenvolvia com sucesso pelo Brasil afora. Em face do pouco tempo disponível e das distâncias a serem percorridas, Jânio e comitiva, incluindo sua esposa Eloá e sua filha Dirce, mais Milton Campos e outros proeminentes líderes dos partidos que lhes davam sustentação,

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utilizavam um avião Douglas DC-3, que já devia ter sido aposentado por tempo de serviço, mais que insistia em manter-se no trabalho. Numa dessas viagens, a meio caminho do destino, pára um dos motores. Consultada a torre de controle, o comandante é aconselhado a manter o vôo por mais algum tempo, para queimar combustível, antes de tentar uma aterrissagem forçada. O clima no avião já era preocupante quando o segundo motor começou a engasgar, aumentando a tensão dos passageiros. Jânio, cujo pavor pelas viagens aéreas era bem conhecido, estava lívido e apertava fortemente a mão da esposa. Foi quando uma comissária, prestativa, se aproximou e lhe perguntou: “Presidente, o senhor está sentindo falta de ar?” A resposta veio pronta: “Não, minha senhora, o que eu estou sentindo é falta de terra!” Este suposto acontecimento serve de pretexto para nos introduzir naquilo que, talvez, tenha sido o epicentro dos problemas que levaram o governo Jânio Quadros à derrocada. Sonhou alto, planejou com consistência, mas faltou-lhe sempre terra aos pés para atingir seus objetivos. Como bom estadista que era – ninguém lhe nega as qualidades – procurou concretizar seus planos de governo firmado no forte apoio popular que tivera, representado por quase 60 por cento dos votos válidos depositados nas urnas a seu favor, naquela que poderia ser considerada a segunda revolução branca. (A primeira foi sua eleição à Prefeitura paulistana, em 1953, desmontando a forte máquina eleitoral que lhe fazia oposição). Por melhores e mais bem intencionados que sejam os propósitos, por mais reais que sejam as possibilidades de sua execução, numa democracia nenhum presidente da República consegue governar sem uma razoável base política no Congresso Nacional. E Jânio contava com uma base de apoio inferior a 30% da Câmara, número insuficiente para aprovar qualquer projeto. Em um regime presidencialista, o Presidente dispõe de uma soma enorme de poderes, mas lhe falta um, essencial: não pode dissolver o Congresso e convocar novas eleições. Ao tomar posse, Jânio Quadros encontrou um Congresso eleito em 1958, que não representava a nova realidade

política, mas cujo mandato só se venceria dali a dois anos. Nesse longo período, era mister recompor suas bases parlamentares, cozinhando os projetos a fogo brando até que novas eleições lhe dessem maioria efetiva, com a qual pudesse realizar seus propósitos. Seriam dois anos cuidando de problemas menores ou de consenso, sobrando os três últimos anos para atacar questões mais graves e polêmicas, já com a Câmara totalmente renovada e com o Senado parcialmente modificado. Não quis esperar, intrigou-se com a oposição e, pior ainda, conseguiu indispor-se até com alguns de seus próprios correligionários, acrescentando novos adversários ao governo, como se ainda estivesse precisando de mais inimigos. Jânio esteve no poder por exatos 206 dias. Nunca se conseguiu precisar as causas de sua renúncia. É um quebra-cabeças no qual sempre ficam faltando peças. Qualquer explicação que se dê é insatisfatória. Mas a falta de base parlamentar – ele mesmo o reconheceu trinta anos depois – foi um motivo forte para obstar-lhe os passos, impedindo-o de governar.

Confetes e serpentinas Dia de mudança é dia de festa. O resto fica para o dia seguinte, ou para a semana seguinte, quando os novos moradores da casa já estão habituados com a localização dos cômodos e com a disposição dos móveis. Jânio Quadros tinha assimilado bem essa tradição, pelo menos é o que parecia. Ao receber a faixa presidencial das mãos de Juscelino Kubitschek, fez um discurso que era uma mistura de Adocil com Sucaril. Primeiro, elogiou JK: “O governo de v. exa., que ora se finda, terá marcada na História a sua passagem, principalmente porque, através de sua meta política, logrou consolidar, em termos definitivos, no país, os princípios do regime democrático.” Depois, fez uma profissão de fé: “Creio, senhor presidente, no regime democrático. Creio no povo, humilde e laborioso. Creio na tradição de nossa liberdade. E porque creio na democracia, porque creio no povo, porque creio na liberdade, creio também no futuro da pátria, que só pode ser a soma do que somos, a colheita do que plantamos, a morada tranqüila que construímos para nós e para a posteridade.”

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E terminou, no mesmo tom ameno: “Se a Divina Providência, na sua misericórdia, houver por bem me dar alento e saúde, aqui estarei certamente, no final deste mandato, para transmitir, em cerimônia idêntica, ao sucessor que o povo me der, os símbolos da autoridade. Transitórios somos nós, os seus governantes. Transitórias e efêmeras, as nossas pobres divergências. Mas eternos hão de ser, na comunhão da pátria, o povo e a liberdade.”

Metralhadora giratória Não era este o discurso que o novo presidente tinha preparado para a posse. O outro, o verdadeiro, só não foi lido naquele instante porque Juscelino lhe mandara o recado de que qualquer ataque seria respondido no ato, e diante da multidão que assistia a cerimônia na praça dos Três Poderes. À noite, quando o ex-presidente se encontrava no avião com destino a Paris, Jânio ocupa uma cadeia de rádios (a televisão na época só tinha transmissão local). Aí vem a verdadeira mensagem de transmissão de cargo, aquela que os amigos o aconselharam a não pronunciar na passagem da faixa. Após um preâmbulo de pura retórica, o novo presidente passa à análise do governo anterior. Fala da emissão desenfreada de moeda, informando que, durante o governo JK o meio circulante passou de 57 para 296 bilhões de cruzeiros, uma alta inflacionária de 420 por cento. Menciona nossa dívida externa, que aumentou 60 por cento, atingindo a cifra de 3,802 bilhões de dólares, dos quais mais da metade teria de ser resgatada pelo atual governo. O BNDS (Banco Nacional de Desenvolvimento), entre empréstimos e avais concedidos a governos e estatais, devia ao exterior cerca de 33,6 bilhões de cruzeiros o que, com o dólar a 200 cruzeiros no câmbio livre, correspondia a 168 milhões de dólares. O déficit orçamentário na posse de JK era de 29 bilhões de cruzeiros; na transmissão do cargo havia subido para 193 bilhões de cruzeiros (965 milhões de dólares). E Jânio segue em seus ataques: “Em novembro último, não dispúnhamos de 47 milhões e 700 mil dólares para cobrir os ajustes com o Fundo Monetário Internacional. Faltaram, igualmente, recursos para quitar duas obrigações do Eximbank (...) Tomou-se apenas a providência de

descarregar as faturas vencidas sobre a administração que ora se instala. Devo pagar, entre 1961 e 1965, 1 bilhão, 853 milhões e 650 mil dólares de prestações, o que significa, fazendo a conversão do dólar à taxa do câmbio livre, na base de 200 cruzeiros o dólar, 370 bilhões e 730 milhões de cruzeiros.” O pior é que esses números não eram fabricados. Esta era a outra face do nacional-desenvolvimentismo do governo Kubitschek, a contra-partida dos “50 anos em 5”. Grande parte da conta ficava em aberto e era transferida aos governos seguintes. Essa foi a primeira bomba. Horas depois de terminado o discurso, durante a recepção, criava-se um incidente diplomático, envolvendo Brasil e Portugal.

Um certo capitão Galvão No capítulo anterior, comentando o cenário internacional por ocasião da posse de Jânio, fizemos referência à ditadura de Antônio de Oliveira Salazar em Portugal, firme ainda, mas contestada por alguns grupos descontentes, inclusive nos meios castrenses. Na passagem de ano, alguns militares, sob o comando de um certo capitão Galvão, se rebelaram e iniciaram um movimento sedicioso para derrubar o primeiro-Ministro português. Não obtendo sucesso, seqüestraram um navio e puseram-se a navegar por águas internacionais, aparentemente sem rumo definido e sem qualquer plano para retomar a ofensiva. Assim, Portugal contava com o tempo a seu favor. Mais dia, menos dia, os revolucionários se convenceriam da inutilidade de seus esforços e se entregariam, sendo, então presos e julgados pelo ato de rebeldia. Não foi bem assim que aconteceu. No decorrer de janeiro de 1961, o navio seguiu em direção ao Brasil, permanecendo em águas internacionais, mas próximo dos limites das águas brasileiras, na época fixados em 12 milhas marítimas (cerca de 18 quilômetros). Na noite da posse, durante a recepção, o novo Presidente recebe uma mensagem transmitida do navio, em que os revoltosos pedem asilo político ao Brasil. No seu estilo característico, Jânio anuncia publicamente a concessão do asilo solicitado e o fato é transmitido, em edição extraordinária, pelas estações de rádio brasileiras, enquanto que

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as agências telegráficas se encarregam de enviá-la ao mundo e, é claro, a Portugal, o outro envolvido no assunto. Como se não bastasse, o capitão Galvão, ao pôr os pés em terra, fez uma declaração política aos repórteres que o esperavam, afirmando que o governo Salazar se achava fraco e que, em poucas semanas a ditadura seria varrida de Portugal. A concessão de asilo sem negociação prévia com um país amigo constitui uma falta de cortesia. E as normas internacionais sobre asilo político deixam claro que o asilado não deve fazer pronunciamentos nem prosseguir em sua atividade política e, em assim fazendo, perde o direito que lhe foi concedido. Foi a primeira dor-de-cabeça do novo chanceler, Afonso Arinos. Graças à sua habilidade, e firmado no longo relacionamento de amizade entre Brasil e Portugal, o incidente diplomático foi encerrado sem maiores conseqüências. Mas esses atos de personalismo e, por vezes, de destempero, próprios da personalidade de Jânio, ainda causariam muita instabilidade em seu governo.

Ministério Na formação de seu ministério, Jânio Quadros procurou contemplar os partidos que o apoiaram, mas não teve dúvidas em buscar nomes em outros setores de liderança. Alguns já haviam colaborado com ele no governo do Estado de São Paulo. Um outro, Clemente Mariano, tinha sua filha casada com o filho de Carlos Lacerda. Alguns tinham entre si divergências irreconciliáveis. O resultado final foi um verdadeiro balaio de gatos, como se vê a seguir: Relações Exteriores, Afonso Arinos de Melo Franco (UDN); Justiça, Oscar Pedroso Horta, advogado criminalista; Fazenda, Clemente Mariani Ribeiro Bittencourt (UDN); Saúde, Edward Catete Pinheiro; Agricultura, Romero Cabral da Costa, usineiro; Educação e Cultura, Brígido Fernandes Tinoco; Trabalho e Previdência Social, Francisco Carlos de Castro Neves, advogado trabalhista; Viação e Obras Públicas, Clóvis Pestana (PSD); Minas e Energia, João Agripino Vasconcelos Maia (UDN); Indústria e Comércio, Artur da Silveira Bernardes Filho (PR); Guerra, Marechal Odilio Denys; Marinha, almirante Sílvio Heck; Aeronáutica, Brigadeiro Grum Moss; Chefe da Casa Civil,

Francisco de Paula Quintanilha Ribeiro; Chefe da Casa Militar, general Pedro Geraldo de Almeida; Secretário Particular, José Aparecido de Oliveira. Nem bem a lista foi divulgada e logo começaram os comentários desfavoráveis, mesmo pelos setores que apoiavam o governo. Mas as críticas mais contundentes, como era de se esperar, vieram da oposição. O deputado trabalhista Wilson Vargas subiu à tribuna da Câmara para fazer a análise dos nomes, descartando-os um a um. De Clemente Mariani, insinuou que seu nome foi imposto por Carlos Lacerda. O Ministro da Agricultura era um usineiro do nordeste, e assim por diante. O maior bombardeio foi sobre a composição dos ministérios militares e, diga-se a verdade, essas criticas tinham bem razão de ser. De um lado, nomeou-se ministro da Guerra o marechal Odílio Denys que, juntamente com Lott, garantiu a posse de Juscelino, depondo o presidente Carlos Luz; de outro lado, nomeou ministro da Marinha o almirante Silvio Heck, justamente o comandante do cruzador Tamandaré, que dava abrigo ao presidente deposto. Como conciliar duas figuras antagônicas em um mesmo ministério, ambas representando as Forças Armadas? Para piorar, o ministro da Aeronáutica era o brigadeiro Grüm Moss que o deputado descreve como “um dos agitadores, um dos baderneiros de Jacareacanga e de Aragarças”. Para quem não se lembra, essas foram as duas “revoltas dos escoteiros”, promovidas na Aeronáutica objetivando a deposição de JK. A primeira deu-se em 1956, duas semanas após iniciado o governo de Juscelino; e a outra, em 1959, tendo como pretexto a segunda renúncia de Jânio à sua candidatura. Nessas condições, colocar Silvio Heck e Grüm Moss junto com Odilio Denys era quase um ato de provocação. Outro deputado, Ari Pitombo também faz suas críticas, afirmando que “dois participantes do Ministério do sr. Jânio Quadros pertencem à Esso e, ainda mais, o sr. Romero Cabral da Costa, em declaração ao jornal Última Hora do dia 31 de janeiro, declarou: ‘Não sou político, intelectual, nem técnico.’ Que diabo, então, o sr. Romero Cabral da Costa vem fazer no Ministério do sr. Jânio Quadros?”, conclui o irritado parlamentar.

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Um fato é visível na composição do Ministério: falta povo. A pasta do Trabalho, que mais deveria representar as massas, passa a ser ocupada por Castro Neves, dono de um escritório de advocacia que prestava serviços ao setor patronal. A nomeação de um usineiro para a Agricultura deixa claro que não se pretende iniciar uma reforma agrária, nem ao menos uma reforma agrícola, reformulando os setores produtivos para assentar, com dignidade, o homem do campo. O novo governo nasce com defeitos congênitos que lhe impedem o desenvolvimento e que, não tratados a tempo, o levarão a morte prematura.

Banho de marketing Após uma campanha eleitoral que trazia como tema principal a renovação de costumes, o Presidente recém empossado sentiu-se na necessidade de mostrar a que veio e, já no segundo dia de governo, instaurou cinco comissões para fazer sindicância no IBGE, na COFAP (órgão controlador de preços) e em três outras instituições. Nas semanas que se seguiram, foram criadas outras 28 comissões de sindicância, uma autentica banda de música, que tocou bonito mas sem chegar a um resultado mais concreto. Em atos seguintes, mandou recolher revistas para adultos, proibiu corridas de cavalos em dias úteis, o funcionamento de rinhas para “brigas de galos”, o uso de maiôs cavados em concursos, os espetáculos de hipnotismo, o uso de lança-perfumes no Carnaval, a propaganda em salas de cinema, regulamentou a participação de menores em programas de rádio e televisão, extinguiu funções de adidos militares em representações diplomáticas, etc. Todas essas medidas, embora aplaudidas pelo povo, tinham apenas função publicitária, criando imagem de moralização de costumes no país e na administração pública. Elas impressionavam bem, mas escamoteavam a verdadeira realidade brasileira, que era a inflação galopante, a péssima distribuição de renda, o estado de semi-escravidão em que viviam as populações rurais e outros problemas até então intocados. Mas essa perfumaria toda também gerou desgastes ao governo, como no caso da regulamentação do horário do funcionalismo, que passou a ser integral de oito horas, com obrigatoriedade de marcação de ponto,

medida recebida com entusiasmo pelos trabalhadores de empresas privadas que, em toda vida, tiveram de cumprir essa jornada. Acontece que o aumento de horas de trabalho, por si só, não significa aumento de produtividade, pelo contrário, com repartições atulhadas de funcionários sem ter o que fazer, a produção acaba até diminuindo. Uma reforma administrativa, lenta e maturada, passando pelo Congresso, traria melhores resultados, mas o efeito de propaganda não seria tão grande. Muitos dos funcionários de meio período completavam seu salário com um segundo emprego. Vários deles trabalhavam nas redações de jornais, pela manhã ou à noite, as quais se viram desfalcadas repentinamente de sua mão-de-obra. Mesmo sem uma segunda atividade, a maioria não tinha como se adaptar de chofre à nova realidade. Ao almoço, bares e restaurantes ficavam repletos de novos fregueses e, para diminuir o movimento, aumentavam o preço das refeições. Não tardou que o governo tivesse de atenuar a medida, abrindo uma exceção para estudantes, para funcionários com dificuldades de alimentação e de transporte e para mães com filhos menores de 16 anos. Foi um balde de água fria no trabalhador comum. Mantida a comparação, o operariado não tinha nenhuma dessas regalias: comia de marmita, estudava sabe Deus como e as mães trabalhadoras deixavam suas crianças com parentes, vizinhos ou largadas ao próprio destino. Não havia passado ainda essa decepção com Jânio e este já baixava o decreto nº51.166, que revogava as medidas anteriores, voltando o funcionalismo ao horário normal de meio período, igual ao praticado nos governos anteriores. O eleitorado não poupou críticas a essa precipitada, extemporânea e inútil cruzada contra os funcionários públicos.

Enfrentando a realidade Não dava para seguir o governo apenas com medidas de fachada, destinadas a propaganda. Era preciso agir. Agir rápido e com habilidade, para restaurar a situação financeira do país, sem o que ficava descartada qualquer possibilidade de desenvolvimento. Contatos feitos com o exterior, com a finalidade de rolar a dívida e conseguir empréstimos novos, resultaram em fracasso.

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Adolfo Berler, embaixador dos Estados Unidos no Brasil acenou com um crédito de emergência que mais agravava do que auxiliava a resolver os problemas. Não foi aceito. O Brasil precisava com urgência de pelo menos um bilhão de dólares e isso os países ricos não estavam dispostos a fornecer, a menos que fossem tomadas medidas de contenção interna. Em 13 de março ocorreu a primeira reforma cambial com o que o cruzeiro foi desvalorizado em mais de 100 por cento, unificando-se as taxas de câmbio com a extinção do dólar subsidiado para produtos essenciais, além de outras medidas, necessárias mas impopulares. O governo finalmente caiu na realidade e a população também. Não há almoço de graça e o preço começava a ser pago, como sempre, pelos mais humildes. Com a extinção dos subsídios, dobrou o preço do pão, subiu a tarifa dos transportes coletivos e, num efeito dominó, o custo de vida em geral foi aumentado, sem a devida contra-partida nos salários. O papel de jornal também tinha sua importação subsidiada e seu preço dobrou, aumentando a fúria dos donos de jornais, formadores da opinião pública. Exultaram, sim, os exportadores, pois com o dólar valorizado, sua mercadoria passou a ter mais competitividade no mercado externo e melhor retorno em lucros, quando os dólares eram convertidos em cruzeiros. Lucraram, também, os bancos internacionais, que faziam empréstimos em dólares e viram seus créditos aumentarem com uma simples penada. Perderam, é claro, as empresas que, incentivadas pelo governo anterior, fizeram vultosos empréstimos em dólares e, do dia para a noite, passaram a dever o dobro. Uma onda de descontentamento varreu o país e Jânio Quadros começou a descarregar sua fúria sobre o ministro da Fazenda, Clemente Mariani que, como sabemos, tinha relações de parentesco com o jornalista e dono de jornal Carlos Lacerda. Aliás, era o próprio genro do ministro, o jovem Sérgio Lacerda que estava dirigindo a Tribuna de Imprensa e lhe regulava o tom dos ataques. Essa mudança na direção do jornal se deu porque Carlos Lacerda, eleito governador no novo Estado da Guanabara, teve de se afastar do cargo. Começa-se a formar a teia

na qual Jânio ia se embaraçando, cada vez mais.

Encaminhamento da crise Se as medidas tomadas a partir de março prejudicaram a popularidade do novo Presidente, pelo menos serviram para atenuar a oposição que os meios financeiros internacionais vinham fazendo ao Brasil. Afinal, a maior parte dos empréstimos requeridos visava a dívida já contraída, que precisava ser rolada, para não colocar o país em estado pré-falimentar. Com as medidas de saneamento que o governo começara a tomar, surgia, finalmente, uma luz no fim do túnel. Uma equipe de técnicos foi posta a campo para manter contatos com os países do primeiro mundo, donos do dinheiro. Lá se foram Walter Moreira Sales, Roberto Campos, Miguel Osório e João Dantas, visitando Estados Unidos, Alemanha, França, Itália, Inglaterra, Holanda, Suiça e Suécia. Todos esses países se beneficiaram com os “50 anos em 5” de Juscelino Kubitschek e se achavam no dever de ajudar o Brasil, se não por razões de ordem moral, pelo menos para preservar os investimentos feitos no país. A soma dos empréstimos obtidos, superior ao bilhão de dólares pretendidos inicialmente, atenuou a crise iminente mas muito pouco resultou em dinheiro novo. O Fundo Monetário Internacional, assim como banqueiros europeus e até o Japão acenaram com créditos “stand-by” (à disposição para retirada quando necessário) em torno de 200 milhões de dólares. Afinal, respirava-se um pouco de ar fresco, o suficiente para permitir ao governo atacar outros problemas que iam se acumulando e exigiam solução. Entre eles, o descontentamento nos meios políticos pela falta de verbas, o que paralisava a administração pública em vários Estados.

O governo itinerante Jânio Quadros tinha uma aversão profunda pela classe política e, embora em desvantagem no Congresso, sobretudo na Câmara Federal, nada fez para melhorar sua base de apoio. Ao contrário, ao invés de negociar com parlamentares, trazendo-os para o seu redil, como fazia JK, preferiu tratar de assuntos administrativos diretamente com os governadores de Estado, criando um governo itinerante, à semelhança do que já tivera quando prefeito da capital paulista e,

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depois, como governador do Estado de São Paulo. A primeira reunião se deu em Florianópolis, reunindo os governadores de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná, respectivamente Celso Ramos, Leonel Brizola e Nei Braga. De importante, resultaram verbas para acelerar a construção das BR-14, BR-35 e BR-87, bem como a construção de novas estradas vicinais para o escoamento da safra do café. Foram nomeadas comissões para a criação do Instituto Nacional do Pinho, do Conselho de Desenvolvimento Regional, do Banco Regional de Desenvolvimento e de uma empresa mista para geração de energia elétrica. Veio nova reunião, desta vez em Campo Grande, com os governadores Fernando Correia da Costa, de Mato Grosso; Mauro Borges, de Goiás; Abelardo de Alvarenga Mafra, de Rondônia e José Altino Machado, do Acre. Discursando, Jânio disse que precisamos “dirigir a pátria de costas para o mar. No interior estão nossas esperanças; no interior reside nosso futuro. Esperanças de bem-estar, de abundância, de tranqüilidade social”. Cuidou-se da criação de escolas e da realização de obras que possibilitem o desenvolvimento integrado da região. Dentro da mesma linha, e sempre com resultados positivos no que tange à administração, foi realizada uma terceira reunião na região sudeste, com os governadores Carlos Lacerda (Guanabara), Celso Peçanha (Estado do Rio) e Carvalho Pinto (São Paulo); depois, a quarta e última reunião, com Pedro Gondim, da Paraíba, e Cid Sampaio, de Pernambuco. Esta última, como se vê, estava longe de representar a região do nordeste e mostra um esvaziamento desse tipo de governo. Os parlamentares, afastados da mediação política em seus Estados, absolutamente necessária para aumento de prestigio e conseqüente reeleição, passaram a bombardear o governo itinerante, que começou a se esvaziar. Independente dos interesses pessoais de deputados e senadores, por vezes compreensíveis, por outras censuráveis, renasce, cristalina, a afirmativa de que em uma democracia, não é possível governar sem contar com o apoio das forças políticas; o isolamento do Congresso, traz, pois, como contra-partida, o isolamento do presidente da

República. São poderes harmônicos, que não conseguem sobreviver um sem o outro.

Cuba, o princípio do fim O destaque que o governo brasileiro dava a Cuba em suas relações internacionais passou a desagradar bastante os países ocidentais, em especial os Estados Unidos. Criou também uma área de atrito com a direita brasileira que lhe dava apoio, sobretudo com a UDN, que não via com bons olhos a aproximação com o governo de Fidel Castro. Exilados cubanos em Miami passaram a organizar uma contra-ofensiva para retomar Cuba e, nesse propósito, contavam com apoio mal disfarçado do próprio governo dos Estados Unidos. Se o governo, oficialmente, não podia interferir no processo, em verdade, até a primeira dama, Jackeline Kennedy vinha auxiliando na obtenção de recursos para possibilitar a ação contra-revolucionária. Deu-se, então, o ataque a Cuba, em 16 de abril de 1961, numa fracassada invasão à baía dos Porcos, “com a conivência de setores econômicos e militares norte-americanos, que pressionavam o presidente John F. Kennedy”. Melhor situadas que o inimigo, e também melhor preparadas, as forças cubanas enfrentaram firmemente os invasores e rapidamente controlaram a situação militar, restando apenas o rescaldo político e diplomático, envolvendo sobretudo o posicionamento das nações latino-americanas. Dos países sul-americanos, apenas o governo brasileiro e o governo argentino, cujo presidente era Arturo Frondizi, deram irrestrito apoio a Cuba, baseados no princípio de soberania das Nações. É natural que, em tais circunstâncias, Fidel Castro enviasse aos dois países um seu mensageiro, Che Guevara, seu ministro da Economia, de nacionalidade argentina mas radicado em Cuba. Guevara havia participado desde há muito das ações guerrilheiras que resultaram na deposição do sargento Fulgêncio Batista e era um dos homens de confiança de Fidel. Não era uma missão específica. Guevara iria primeiro a Punta del Este, no Uruguai, participar de uma reunião extraordinária do Conselho Interamericano Econômico e Social. De lá seguiu para a Argentina, encontrando-se com o presidente Arturo

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Frondizi e gerando uma forte crise política naquele país. Em 19 de agosto, Che Guevara é recebido por Jânio Quadros em Brasília, o qual aproveita a ocasião para atender um pedido do núncio apostólico, monsenhor Lombardi, para interferir na libertação de 20 padres espanhóis, presos em Cuba. Havia, também, assuntos outros a discutir, como o caso da Mercedes Benz, que entabolara negócios com Cuba para a exportação de veículos àquele país. As negociações deram bom resultado em ambos os casos. No aspecto econômico, os entendimentos se ampliaram, aventando-se a possibilidade de realizar operação triangular, envolvendo Bulgária, Iugoslávia, Polônia e Rússia, para exportação de veículos, máquinas, ferramentas e material elétrico dos quais Cuba tanto estava precisando. O envolvimento de outros países era necessário, já que Cuba não dispunha de reservas para fazer o pagamento de importações diretamente ao Brasil. No caso dos padres, Guevara concorda com a libertação, avisando, entretanto que, dentro das regras cubanas, eles serão em seguida expulsos para a Espanha. Jânio manifesta sua opinião de que a expulsão é um assunto interno de Cuba, que só a ela cabe resolver. O Brasil defende a libertação e com esse ato considera o pedido satisfeito. Por fim, dentro de um ato de rotina com autoridades importantes que nos visitam, Che Guevara foi condecorado com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. Essa condecoração podia ser feita por iniciativa do presidente da República, sem consulta a outros poderes, agraciando pessoas que tivessem prestado serviços relevantes ao país e este passava a ser o caso de Guevara. Para a “banda de música” da UDN, foi a conta para iniciar o barulho contra o presidente da República e suas “tendências esquerdizantes, que estavam, segundo eles, levando o país aos braços do comunismo. Em resposta, no fim do mesmo dia, no Rio de Janeiro, o governador Carlos Lacerda condecorava o líder anti-castrista Manuel Antonio de Verona, que se encontrava no Brasil em busca de apoio para a Frente Revolucionária Democrática Cubana. No Rio de Janeiro, em Brasília, e em outros pontos do Brasil, a temperatura

política sobe rapidamente. É o começo do fim para o governo de Jânio Quadros.

Lacerda volta a atacar Dando uma no cravo e outra na ferradura, Lacerda vai a Brasília, em 18 de agosto, e consegue ser recebido pelo Presidente no Palácio da Alvorada. Seu pedido era de caráter particular. Precisava de um empréstimo do Banco do Brasil para saldar dívidas que comprometiam a Tribuna de Imprensa, neste momento dirigida por Sérgio Lacerda que, como se sabe, era o próprio genro do ministro da Fazenda. Salvar o filho de uma falência era também preservar o nome do ministro, seu parente. Não conseguiu o que desejava e, mais tarde, voltando ao Alvorada, onde esperava pernoitar, encontrou suas malas na portaria. Tudo foi fruto de um mal-entendido. Entendendo que Lacerda se hospedaria num hotel, Oscar Pedroso Horta, mandou que as malas fossem colocadas à disposição, evitando que, altas horas da noite, Lacerda fosse confundido com um estranho e impedido de reentrar no palácio. O incidente não foi assimilado e, para piorar, no dia seguinte, ocorre o episódio da condecoração a Guevara. Em 22 de agosto, entre aplausos e vaias, Lacerda participa de um debate com 1.200 estudantes em programa de auditório da TV Excelsior de São Paulo, fazendo críticas ao governo federal, principalmente com relação à sua política externa. Mas um incidente mais grave ocorreu no dia 24. Em 1955, já o narramos, para impedir o progresso da candidatura JK, Carlos Lacerda publicou uma falsa carta, conhecida como Carta Brandi, em que denunciava um conluio entre o candidato a vice, João Goulart e autoridades argentinas para iniciar no Brasil uma revolução sindicalista. Somente após as eleições é que veio a saber-se que tal carta era apócrifa. Agora, Lacerda ataca novamente. No dia 24, em cadeia de rádio e televisão no Rio de Janeiro, o governador da Guanabara denuncia outro complô, desta vez em Brasilia, envolvendo o presidente Jânio Quadros e seu ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, para realizar uma “reforma institucional”, como o fizera Getúlio Vargas em 1937, com a implantação do Estado Novo. Disse mais que ele, Carlos Lacerda, fora convidado por Pedroso Horta para participar da ação.

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Esta última afirmativa, por si só, desmonta toda a armação. Com as relações em crise, convidar Carlos Lacerda, o demolidor, para participar de um golpe palaciano já não é apenas um sinal de audácia, torna-se um sinal de burrice, de ignorância extrema. Fica apenas a palavra do Governador. Nenhum prova é exibida, nenhum indício é apresentado, nenhum testemunho é invocado para dar veracidade à denúncia. Mas em ambiente turbulento, a opinião pública escolhe a versão que melhor se adapte à sua própria opinião. Uma parte acredita em Jânio, a outra em Lacerda. E, com a crise, aumenta a efervescência política, criando um clima de ingovernabilidade.

Renúncia Tudo isso aconteceu, altas horas da noite de 24 de agosto. Horas depois, na manhã de 25 de agosto, Jânio reinicia suas atividades, sem intenção de responder ao governador da Guanabara. Participa normalmente das comemorações do Dia do Soldado. Assiste uma exibição de paraquedistas, presencia o desfile militar, faz a tradicional revista de tropas, entrega medalhas da Ordem de Mérito Militar. Todo o protocolo foi rigidamente cumprido, em ambiente de pretensa calma, como se os acontecimentos do dia anterior tivesse caído no vazio. O governo prossegue em sua rotina. O Correio Braziliense circula com matéria em destaque, relacionando os nomes indicados pelo Presidente para formar a delegação que participará da 16ª Assembléia da Organização das Nações Unidas. Até um resumo da pauta de reivindicações brasileiras estava sendo divulgado. O governo, aparentemente seguia sua rota. Não era bem assim. Pela madrugada, ao tomar conhecimento do pronunciamento de Carlos Lacerda, o presidente telefonou ao chefe da Casa Civil, Quintanilha Ribeiro e ao chefe da Casa Militar, general Pedro Geraldo; falou com seu secretário particular, José Aparecido. A todos eles, deixou consignada sua determinação de renunciar, manifestando a opinião de que estava em curso uma ação para demolir a autoridade presidencial. “A conspiração está em marcha, mas vergar, eu não vergo”, teria dito o Presidente. Terminadas as solenidades comemorativas do Dia do Soldado, Jânio reúne o Ministério e anuncia sua renúncia,

que mantêm, a despeito dos apelos e das considerações, especialmente as que fez o ministro da guerra, marechal Odílio Dennys, reafirmando a fidelidade do Exército à autoridade constituída do presidente da República. Quintanilha, então, mais como seu amigo que como auxiliar, aconselhou-o a viajar, para evitar as repercussões do ato frente ao Congresso. Desde as 9 horas da manhã, a Câmara Federal se achava reunida, transformada em CGI-Comissão Geral de Inquérito. Fazia-se um tribunal à margem da lei, tal como acontecera com a República do Galeão, criada pela Aeronáutica em agosto de 1954 para investigar e julgar o então presidente Getúlio Vargas. Antônio Houaiss escreve: “Às primeiras horas do dia 25, por iniciativa de vários políticos, dentre os quais sobressaiam o governador Carlos Lacerda e o deputado Armando Falcão, reunia-se a Câmara, convertida, por iniciativa dos deputados José Maria Alkmin e Paulo Lauro, em Comissão Geral de Inquérito, figura desconhecida no Direito Constitucional do país, e convoca para depor, em plenário, e na mesma data, o ministro Oscar Pedroso Horta [Justiça]. Fazia-o ao arrepio da lei, isto é, sem que àquele titular fosse dada ciência prévia das questões que seriam propostas ou marcasse ele o dia do próprio comparecimento.” Em verdade, se quisessem esclarecer tudo, deveriam convocar primeiro Carlos Lacerda, autor de uma denúncia sem provas. Que dissesse ele onde obteve as informações que divulgou, em que circunstâncias se dera o pretenso encontro com o ministro da Justiça e que elementos mais poderia fornecer aos parlamentares para dar credibilidade a tão grave acusação, atingindo a autoridade do presidente da República. Todavia, a esta altura, nenhuma convocação mais era necessária. Lá pelas três horas da tarde, surge um novo tumulto, centralizado em um grupo de deputados, acantonado no plenário. A cigarra toca, chamando a atenção dos parlamentares. Então, o deputado Dirceu Cardoso pede licença e vai à tribuna para anunciar que tem em mãos um importante documento, assinado pelo presidente da República. E faz a leitura.

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Carta-renúncia Pasmado, o plenário da Câmara ouve o teor da carta-renúncia e da exposição de motivos, lidas ambas por Dirceu Cardoso. A primeira é lacônica: “Nesta data, e por este instrumento, deixando com o ministro da Justiça as razões do meu ato, renuncio ao mandato de Presidente da República. “Brasília, 25 de agosto de 1961.

a) Jânio Quadros,” A exposição de motivos é mais longa e lembra muito a carta-testamento de Getúlio Vargas: “Fui vencido pela reação e, assim, deixo o Governo. Nestes sete meses cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite, trabalhando, infatigavelmente, sem prevenções, nem rancores. Mas baldaram-me meus esforços para conduzir esta nação pelo caminho de sua verdadeira libertação política e econômica, o único que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social a que tem direito o seu generoso Povo. “Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia, que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou indivíduos, inclusive do exterior. “Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou me infamam, até com a desculpa da colaboração. Se permanecesse não manteria a confiança e a tranqüilidade, ora quebradas, e indispensáveis ao exercício de minha autoridade. Creio mesmo que não manteria a própria paz pública. “Encerro, assim, com o pensamento voltado para a nossa gente, para os estudantes e para os operários, para a grande família do País, esta página de minha vida e da vida nacional. A mim, não falta a coragem da renúncia. “Saio com um agradecimento e um apelo. O agradecimento é aos companheiros que, comigo, lutaram e me sustentaram, dentro e fora do Governo e, de forma especial, às Forças Armadas, cuja conduta exemplar, em todos os instantes, proclamo, nesta oportunidade. “O apelo, é no sentido da ordem, do congraçamento, do respeito e da estima de cada um dos meus patrícios para todos, de todos para com um. “Somente, assim, seremos dignos deste país e do mundo.

“Somente, assim, seremos dignos da nossa herança e da nossa predestinação cristã. “Retorno, agora, a meu trabalho de advogado e professor. “Trabalhemos, todos. Há muitas formas de servir nossa Pátria. “Brasília, 25-8-61 “a): Jânio Quadros.

Reação do Congresso A esta altura, Jânio Quadros já viajara para São Paulo, pousando o avião na Base Aérea de Cumbica, onde ele é recebido pelo governador Carvalho Pinto, que lhe dá abrigo até que o ambiente clareie o suficiente para conhecer a posição da Câmara em torno do assunto. A reação dos deputados talvez não tenha sido aquela que ele esperava. No princípio, até houve quem quisesse primeiro ouvir o Presidente para saber das razões reais e, se possível, até demovê-lo de seu propósito. Todavia, a opinião geral era a de que uma renúncia é unilateral, cabe cumpri-la, não discuti-la. O vice-Presidente da República se achava em viagem oficial à China e o terceiro, na ordem de sucessão era o presidente da Câmara, deputado Ranieri Mazzili. O deputado Osmar Cunha foi curto e grosso: “Que assuma Ranieri Mazilli, imediatamente, o Governo, de acordo com a Constituição da República, para que se mantenha a legalidade neste país, para que se mantenha a ordem e para que não venha o golpe contra esta nação. Vamos levar ao palácio Ranieri Mazzilli para que assuma, na forma da Constituição da República, o Governo do Brasil.” O deputado Almino Afonso faz um libelo contra Jânio Quadros: “(...) Ainda ontem – diria mal – ainda na madrugada de hoje, reunidos os deputados na Câmara, para tomar conhecimento das graves acusações que eram feitas pelo governador da Guanabara, tínhamos a informação do sr. ministro da Guerra, o marechal Odilio Denys, de que a vida nacional corria tranqüila, de que todo o país repousava em ordem, na disciplina, no acatamento à lei (...) “Então eu me indago, sr. Presidente: que estranha dualidade é esta? Que forças tão poderosas são estas que derrubam um presidente da República, quando as Forças Armadas, por inteiro, na declaração do

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próprio presidente da República, no seu documento de renúncia, estariam unânimes, firmes na manutenção da ordem, na defesa do regime democrático?”(...) “O sr. Jânio Quadros entendeu que não tem possibilidades de comandar. Renunciou. A renúncia está aceita.” Sem nada decidir, a reunião foi encerrada, convocando-se outra para as 21h30. Alguma coisa estava fora dos eixos, pois o Congresso é formado por Câmara e Senado e este último ainda não havia se manifestado. Por volta das três horas da tarde, o presidente do Senado, senador Auro Soares de Moura Andrade (por conseqüencia também presidente do Congresso) recebeu o ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta e, na presença de várias testemunhas, tomou conhecimento da renúncia do presidente da República e recebeu duplicata das cartas enviadas à Câmara. Imediatamente, tomou providências para convocar o Congresso (Câmara e Senado juntos) em reunião extraordinária, o que aconteceu logo em seguida ao encerramento da reunião da Câmara. A sessão durou apenas dez minutos, formalizando a aceitação da renúncia e determinando que Ranieri Mazzilli assumiria interinamente, até o retorno do vice-Presidente, João Goulart. Tropas do Exército ocuparam as ruas, preservando sobretudo a Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes, tomando a precaução de deixar livre a entrada do Congresso, para não caracterizar um sítio aos parlamentares. O restante do país foi também colocado em prontidão. E assim terminou, laconicamente, o governo Jânio Quadros, projetado para cinco anos e encerrado antes que se completassem sete meses de mandato.

Causas da renúncia É provável que ninguém saberá jamais por que Jânio Quadros renunciou. Se alguém o sabia, por certo era ele próprio e levou seu segredo para o túmulo. Mas há uma dica, contida no livro “História do Povo Brasileiro”, de Jânio Quadros e Afonso Arinos. O capítulo relativo à renúncia foi escrito especialmente por Antônio Houaiss, mas sua inclusão no livro se deu com a concordância ou, pelo menos com o conhecimento de seu principal autor, o próprio Jânio Quadros. Escreve Houaiss: “Seu raciocínio foi o seguinte: primeiro, operar-se-ia a renúncia; segundo, abrir-se-ia

o vazio sucessório – visto que a João Goulart, distante na China, não permitiriam as forças militares a posse, e destarte, ficaria o país acéfalo; terceiro, ou bem se passaria a uma fórmula, em conseqüência da qual ele mesmo emergisse como primeiro mandatário, mas já dentro de um novo regime institucional, ou bem, sem ele, as Forças Armadas se encarregariam de montar esse novo regime, cabendo, em conseqüencia, depois, a outro cidadão – escolhido por qualquer via – presidir o país sob o novo esquema viável e operativo: como, em tudo, o que importava era a reforma institucional, não o indivíduo ou indivíduos que a promovessem, sacrificando-se ele, ou não se sacrificando, o essencial iria ser atingido. “O plano, porém, falhou exatamente na vacilação dos chefes militares. “(...) Jânio Quadros acreditou que os destinos nacionais, num dado momento, dependiam de sua coragem de sacrificar sua carreira pessoal.

“Faltou-lhe, porque disso não proviera, o sistema de forças políticas que o amparassem nessa direção. Faltou-lhe, porque não quis trair a própria imagem, a vontade de querer continuar a ser presidente, ao preço da acomodação.

“Para ele, dirá sempre, a política não é a arte do possível, se o possível é condicionado pelo caduco; é, sim, a arte do possível, dentro das necessidades globais – algumas das quais estavam clamando por urgentes decisões, que o sistema de forças vigente rejeitava.”

Epílogo Com o episódio da renúncia, Jânio Quadros apagou-se politicamente. Em 1962, candidatou-se a governador do Estado de São Paulo, perdendo as eleições para seu arqui-rival, Ademar de Barros.

O golpe de Estado de 1964 cassou-lhe os direitos políticos, confinando-o no interior do país. Mais tarde, fundou uma editora, publicando coleções de livros, entre eles, a “História do Povo Brasileiro”, em quatro volumes, já citado acima.

Somente em 1985 volta à vida publica, elegendo-se uma vez mais prefeito de São Paulo, para um mandato excepcional de

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apenas três anos. Era o eleitorado paulistano que, pela segunda vez reconquistava a cidadadia cassada. E nas duas vezes a reconquista da cidadania se fez com a eleição de Jânio Quadros e com a derrota de adversários com sobrenomes idênticos. Em 1953 o concorrente era Francisco Antônio Cardoso; em 1985, Fernando Henrique Cardoso. Para não desmerecer sua biografia, recheada de renúncias, também desta vez Jânio abandonou a Prefeitura dez dias antes de completar o mandato, viajando para Londres. E os últimos dias de governo foram administrados por seu Secretário de Negócios Jurídicos, Cláudio Lembo.

Se um guerreiro deve morrer na luta, Jânio não teve o fim que merecia. Vítima de três derrames cerebrais, permaneceu inerme numa cadeira de rodas, guiado por sua filha, que lhe conduzia os passos e lhe interpretava os balbucios, colocando em sua boca coisas que talvez ele nunca pretendeu falar.

Dona Eloá faleceu em 22 de novembro de 1990, quando seu marido já não tinha condições de entender o que se passava à sua volta. Jânio Quadros morreu em 16 de fevereiro de 1992, aos 75 anos de idade, deixando atrás de si o rastro de uma disputa familiar pela herança do casal.

Quanto à herança politica, entregue aos brasileiros sem que estes a desejassem, esta resultou em 21 anos de governos militares discricionários, que só se encerraram em 1985. A renúncia de Jânio custou muito à Nação brasileira, que até hoje luta para recuperar o tempo perdido.

* * *Capítulo Trinta-e-dois

PARLAMENTARISMO JÁJango assume, mas sem poderes

A renúncia de Jânio Quadros foi apreciada e aceita pelo Congresso Nacional (Câmara e Senado) no mesmo dia em que ela aconteceu. Era consenso que um pedido de renúncia não se discute, apenas se aceita e, por isso, a sessão não durou mais que cinco minutos. Horas depois, o presidente da Câmara Federal, Ranieri Mazzilli tomava posse interinamente no cargo, até o retorno

do vice-Presidente João Goulart, que se achava em viagem oficial à China. Tudo ocorreu, pois, dentro da mais perfeita normalidade democrática. O novo Presidente empossado conservou o ministério de Jânio, substituindo apenas o chefe da Casa Militar, que passou a ser o general Ernesto Geisel e o ministro da Justiça, agora Martins Rodrigues. Ainda assim, tais mudanças se fizeram apenas por solicitação dos antigos titulares, deixando patente a transitoriedade de seu mandato. O problema provocado pela renúncia de Jânio teria sido facilmente superado, senão por fato inusitado, próprio de democracias ainda incipientes: os ministros militares, instituindo-se num quarto poder, dirigiram-se ao Presidente interino, declarando que vetavam a posse do sucessor constitucional, o sr. João Goulart (Jango), sob a alegação de que ele faria parte do comunismo internacional. Não se limitaram, os ministros militares, a essa declaração. Passaram imediatamente à ação, com circulares enviadas aos comandos militares, via rádio, tranqüilizando-os de que o país estava em paz, porém, deixando entrever que os próximos acontecimentos ficavam condicionados à sua visão particularizada de segurança nacional. Um “rádio” transmitido pelo general Orlando Geisel na madrugada de 27 de agosto, divulgado pelo comando do 3º

Exército, deixava clara essa posição, dizendo textualmente: “Ministro [da Guerra] pretende defender instituições e manter a Lei e a Ordem em todo o país mesmo que para isso tenha que impedir posse Jango”. Esta não era uma posição unânime dentro das Forças Armadas e, por isso, a crise ameaçava tomar um rumo perigoso, com possibilidade de fazer eclodir uma guerra civil no país. As próximas páginas procuram resumir, com a clareza possível, uma parte do vasto material disponível sobre os acontecimentos, que vão desde a renúncia de Jânio, em 25 de agosto, até a posse efetiva do vice-Presidente, no dia 7 de setembro. Foram 13 dias de aflição e angústia, que terminaram com a implantação de um parlamentarismo precoce e inconsistente, constituindo-se ele próprio em um novo problema, que o país não conseguiu equacionar.

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Amigos, mas não tanto A decisão de Jânio Quadros de renunciar à presidência da República, se chegou ao Congresso somente à tarde, já era do conhecimento de seus íntimos desde as primeiras horas da manhã de 25 de agosto de 1961, uma sexta-feira. Assim que tomou conhecimento do assunto, o governador de São Paulo, Carvalho Pinto, convidou para uma reunião no Palácio dos Campos Elísios os governadores Ney Braga, do Paraná, Carlos Lindenberg, do Espírito Santo, Mauro Borges, de Goiás e Magalhães Pinto, de Minas Gerais. Este último, mineiramente, recusou o convite, preferindo manter contatos com Brasilia, numa tentativa de reverter a situação. Os demais viajaram rapidamente a São Paulo e, após trocarem idéias, decidiram dar apoio ao renunciante, mas apenas para garantir a transição dentro da boa paz e ordem, excluindo-se qualquer ação de força para mudança das instituições. Ao mesmo tempo em que a renúncia começava a repercutir no Congresso e já era anunciada pelas estações de rádio, Jânio Quadros viajava a São Paulo, esperando descer no Aeroporto de Congonhas, situado dentro da zona urbana da cidade, em região densamente povoada, prevendo-se pois grande concentração popular para receber o ex-Presidente. Ao saber do fato, Carvalho Pinto não teve dúvidas: telefonou ao ministro da Aeronáutica, brigadeiro Grum Moss, pedindo-lhe que ordenasse a mudança de rota do avião, fazendo-o aterrizar na Base Aérea de Cumbica, situada no município de Guarulhos, a 20 quilômetros da Capital, em lugar ermo, onde só era permitida a entrada de militares e autoridades. Foi assim que Jânio desceu do avião diante de umas poucas autoridades e de soldados que faziam a guarda da área. Não foi levado ao Palácio, como seria de se supor, mas ficou confinado na própria base por 22 horas, enquanto prosseguiam negociações para a troca de governo. Quando sua transferência foi considerada segura, o ex-Presidente seguiu para o Guarujá (litoral paulista), onde ficou em lugar incerto e não sabido. Finalmente, em 28 de agosto, uma segunda-feira, foi transferido para o navio “Uruguay Star”, com destino a Londres. Na madrugada seguinte, o

transatlântico atracou no Rio de Janeiro, antes de fazer mar alto. Conta o jornalista João Batista Natali (Folha de São Paulo, 25-8-1991) que, durante horas, Jânio Quadros “de olho no cais, esperava a chegada da ‘multidão’ que faltara ao encontro marcado para a sexta-feira anterior, em São Paulo. Por debaixo do paletó escuro trazia uma peça da vestimenta que seu ajudante-de-ordem, o major Chaves do Amarante, lhe trouxera discretamente de Brasília: a faixa presidencial”.

A posição dos ministros militares Como dissemos na introdução, os três ministros militares, marechal Odílio Denys, brigadeiro Grum Moss e almirante Silvio Heck, instituindo-se num quarto poder, informaram ao Presidente interino, Ranieri Mazzilli, que vetavam a posse do vice-Presidente, sr. João Goulart, pois tinham sobejas provas de seu envolvimento com o comunismo internacional, reafirmadas com sua visita à China. Não apresentaram a Mazzilli as provas anunciadas e este achou prudente não exigi-las, percebendo que estava diante de um problema que ultrapassava os limites da razão. O único fato insinuado, qual seja, a visita de João Goulart à China comunista, não tinha conotação ideológica, mas política e comercial. Tratava-se de uma viagem oficial, feita por determinação do próprio presidente Jânio Quadros, que desejava manter relações com todos os países do mundo e buscar novos mercados para os produtos brasileiros. O “embaixador da paz” foi João Goulart, como poderia ter sido, por exemplo o ministro de Relações Exteriores, Afonso Arinos, um anti-comunista que, no entretanto, acompanhou e assessorou Jânio quando de sua visita a Cuba. Assim, na prática, os ministros militares deixavam de subordinar-se ao Chefe Supremo das Forças Armadas para instituirem-se numa junta militar que não só condicionava a ação do Presidente, como passava a expedir ordens aos comandos militares por conta própria e sem coordenação com o chefe do país. Hão de se lembrar os que acompanham este trabalho que, em novembro de 1955, o presidente Café Filho foi impedido de reassumir o governo em virtude de um estratagema usado então pelos então generais Lott e Denys: Recebendo alta hospitalar, o Presidente foi ao seu

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apartamento para trocar de roupa e, ato seguinte, as tropas militares cercaram o edifício, mantendo-o confinado. Não apresentando-se, o sr. Café Filho, para assumir, foi declarada a vacância do cargo e empossado, em seu lugar, o presidente do Senado, Nereu Ramos. Era intenção, agora, repetir o mesmo artifício. João Goulart estava impedido de retornar ao Brasil e, não havendo posse, seriam realizadas eleições dentro dos próximos sessenta dias, conforme a Constituição, que ficaria, desta forma, preservada. Todavia, em 1955, as condições eram diferentes de 1961. Naquela época, tratava-se de abortar um golpe de Estado que visava justamente impedir a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek. Se, na conspiração, pesavam os nomes do brigadeiro Eduardo Gomes e do general Juarez Távora, na defesa da legalidade estavam os generais Teixeira Lott e Odílio Denys. Lott era ainda ministro da Guerra e tinha pleno controle das forças do Exército, que se puseram a seu serviço. Como resultado final, se a Constituição saiu arranhada, a posse do eleito foi efetivada, respeitando-se a vontade das urnas. Agora, era a própria vontade das urnas que estava sendo violada. Ademais, os três poderes da República foram postos à margem do processo. O Presidente interino sofreu limitações em seus poderes constitucionais, ante o veto militar à transição regular; os esforços do Congresso Nacional para superar a crise foram ignorados; o Supremo Tribunal Federal, guardião da Carta Magna, sequer foi consultado. Não é de estranhar, pois, que surgisse uma reação dentro das Forças Armadas, por parte de oficiais que sempre pautaram sua carreira dentro dos princípios de legalidade.

Marechal foi pra prisão Já em 26 de agosto, dia seguinte ao da renúncia, ocorreu a primeira manifestação, vinda de uma das mais respeitáveis patentes das Forças Armadas, o marechal Henrique Duffles Teixeira Lott, agora na reserva. Lott, ministro da Guerra em 1955, foi o garantidor da transição, assegurando a posse de JK, que confirmou-o depois no ministério. Nesse mesmo período Denys foi confirmado como comandante da 1ª Região Militar e para isso tiveram até que alterar a lei, evitando que ele

caísse na compulsória e fosse transferido para a reserva. Ambos se destacaram pelo respeito à legalidade, garantindo os cinco anos de governo de Juscelino Kubitschek contra os movimentos que pretendiam derrubá-lo do poder. Agora, os dois viviam situações opostas: Lott permanecia fiel à Constituição e, embora na reserva, mantinha sua ascendência sobre oficiais da ativa; Denys era o ministro da Guerra e, portanto, superior hierárquico de Lott. Em seu manifesto, dirigido “aos meus camaradas das Forças Armadas e ao Povo Brasileiro”, Lott se refere ao veto dos ministros militares (citando especificamente o ministro da Guerra) e narra sua ligação telefônica a Denys, tentando dissuadi-lo de impedir a posse de Jango, sem obter resultado. E prossegue: “Embora afastado das atividades militares, mantenho o compromisso de honra com a minha classe, com a minha Pátria e com as suas instituições democráticas e constitucionais. E, por isso, sinto-me no indeclinável dever de manifestar o meu repúdio à solução anormal e arbitrária que se pretende impor à Nação. Dentro desta orientação, conclamo todas as forças vivas da Nação, as forças de produção e do pensamento, dos estudantes e intelectuais, operários e o povo em geral, para tomar posição decisiva e enérgica pelo respeito à Constituição e preservação integral do regime democrático brasileiro, certo, ainda, de que os meus nobres camaradas das Forças Armadas saberão portar-se à altura das tradições legalistas que marcam a sua história nos destinos da Pátria.” A resposta não se faz esperar: o ministro da Guerra, Odílio Denys, determina a prisão do marechal Teixeira Lott, fazendo-o recolher-se à sua residência e mantendo-o, pois, isolado de qualquer contato com os quartéis. Isso não impediu manifestações que surgiram em outras unidades militares, no Pará, Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Guanabara e Brasília. Um manifesto saiu também na Marinha, assinado por 20 almirantes, discordando da posição adotada pelos ministros. E, mesmo sob risco de prisão, esses oficiais fizeram o manifesto chegar às mãos do ministro, almirante Sílvio Heck.

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Reação no Rio Grande do Sul O governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, era casado com a irmã do vice-Presidente da República, João Goulart. A posição ideológica e o temperamento de Brizola eram bem conhecidos nos meios políticos e militares. Sendo um ativista da esquerda, propagador de um socialismo extremado, simpatizante do regime cubano, via na posse do cunhado uma possibilidade de projetar-se nacionalmente e de pôr em prática suas idéias. O comandante do 3º Exército, general José Machado Lopes, era exatamente o oposto de Brizola. Influenciado pela propaganda anticomunista levada a efeito nos quartéis desde a Intentona de 1935, manifestava-se radicalmente contra o extremismo das esquerdas mas, paralelamente, se colocava contra a direita radical. Durante toda a carreira, pautou sua vida no respeito à hierarquia, mas, também, e sobretudo, no respeito à legalidade. A incompatibilidade entre os dois era visível. Em um almoço oferecido ao embaixador da Suíça no Brasil, Brizola interpelou o homenageado com perguntas nada diplomáticas, pedindo sua opinião sobre Hitler, sobre a invasão à Áustria, sua anexação à Alemanha e por que razão a Suíça nunca foi invadida pelos nazistas. Sentindo o desconforto do embaixador, o comandante interrompeu o governador, mandando-o calar-se, com o que criou um incidente que foi repercutir até no Palácio do Planalto, em Brasília. Pois são estes dois homens, de pensamentos e atos diametralmente opostos, que vão unir-se na defesa da legalidade, num esforço ingente para que a Constituição seja respeitada. Ambos colocam em xeque suas posições, correm riscos, mas não transigem naquilo que consideram essencial: sendo o vice-Presidente fruto da vontade popular manifestada nas urnas, somente um golpe de estado pode impedi-lo de assumir a Presidência para completar o mandato de Jânio Quadros, em face da renúncia deste. A pronta, firme e constante reação do Rio Grande do Sul gerou uma força imanente que se espalhou por todo o país, dando condição moral ao Congresso para buscar uma solução institucional finalmente aceita, ainda que contra vontade, pelos ministros militares.

Rede da Legalidade O governador gaúcho, Leonel Brizola achava-se convencido de que o veto à posse de Jango, por constituir-se em fato anormal dentro da vida política brasileira, só poderia ser combatido com uma ação enérgica, fora do convencionalismo da lei, mas dentro dos princípios de legitimidade. Ou agia rápido, ou seria superado pela própria dinâmica dos acontecimentos. Diante disso, não teve dúvidas: determinou que a Brigada Militar ocupasse as rádios Guaíba e Farroupinha, as quais passaram a constituir-se no núcleo de uma cadeia de emissoras à qual deu-se o nome de Rede da Legalidade. As adesões vieram rapidamente de todo o país e, do dia para a noite, a Rede passou a contar com 104 emissoras integradas. A encampação das rádios Guaíba e Farroupilha se deu por conta e risco do governador, não envolvendo a responsabilidade de seus diretores. Já as emissoras que aderiram à rede, fizeram-no por conta própria, assumindo um enorme risco, pois eram uma concessão do poder federal, que podia ser cassada a qualquer momento, dado que os alvarás de funcionamento tinham chancelado o caráter precário de funcionamento. Ininterruptamente, as emissoras transmitiam mensagens, entremeadas de marchas militares, conclamando o povo a ir às ruas na defesa da legalidade, para impedir que se consumasse um golpe contra as instituições democráticas. Enquanto agia no terreno da propaganda, Brizola tomava medidas de caráter mais efetivo para proteger o Estado. Colocou a Brigada Militar em estado de prontidão, mandou abrir trincheiras em volta do Palácio Piratini e distribuiu armas à população civil para a defesa da Capital. Ele mesmo, num gesto teatral, passou a andar pelo palácio portando uma metralhadora. Não chegou, porém, a usá-la.

Posição de Lacerda Enquanto Brizola firmava sua posição no Sul, Carlos Lacerda procurava ganhar terreno na Guanabara, valendo-se de sua autoridade como governador e cuidando do notíciário da Tribuna de Imprensa, ora nas mãos de seu filho Sérgio. Como governador, enviou irrestrito apoio aos ministros militares, colocando-se à disposição destes para impedir a posse de

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João Goulart. Na oportunidade, propugnou pela realização de eleições indiretas, por intermédio do Congresso Nacional e defendeu, para Presidente, o nome do líder udenista Juraci Magalhães, ex-governador da Bahia, que perdera para Jânio na convenção de seu partido. Sua posição quanto a Jango é coerente e até compreensível. O estranho é a apresentação do nome de Juraci Magalhães, pois, quando da Convenção da UDN, Carlos Lacerda colocou seu jornal na defesa do nome de Jânio Quadros, trombando frontalmente com Juraci. Agora, deu uma guinada de 180 graus, tentando garantir a sobrevivência da UDN no governo. Como jornalista, Lacerda usou a Tribuna de Imprensa sustentando o impedimento de João Goulart e não relutando até na publicação de notícias distorcidas, nublando ainda mais o ambiente. Dia a dia, as manchetes da Tribuna de Imprensa se sucedem: 26/27-08 – “Situação normal em todo o

país.” 28-08: “Dennys: agora é escolher

comunismo ou democracia.” 29-08: “Forças Armadas:

Parlamentarismo sim, mas sem João Goulart.”

29-08: “Impedimento de Jango vai ser decidido hoje.”

30-08: “Congresso resolve hoje a crise – Solução sem Jango.”

30-08: “PC executa plano de agitação nas ruas e sindicatos.”

30-08: “Fugiu general Machado Lopes; Cordeiro controla Exército no Sul.”

31-08: “Forças Armadas dizem que Jango é a Guerra Civil.”

01-09: “Cuba oferece tropa ao Rio Grande do Sul.”

E segue por aí. Se algumas manchetes são tendenciosas, outras são completamente falsas, como a notícia da fuga do comandante do 3º Exército. Nem o general Machado Lopes fugiu, nem o general Cordeiro de Farias chegou a Porto Alegre para substitui-lo. Pelo contrário, Cordeiro achava-se no Rio de Janeiro, parlamentando com Afonso Arinos e dando seu apoio aos trâmites da emenda parlamentarista. E até emprestou o avião em que chegara, para que Arinos pudesse voltar a Brasília. Sobre a posição do governador da Guanabara, escreve Afonso Arinos:

“Com efeito, o governador Lacerda, naqueles dias que sucederam à renúncia de Jânio e precederam a promulgação da emenda parlamentarista, fez tudo para estimular o golpe militar. Estabeleceu no Rio uma espécie de ditadura na qual censurava a imprensa e se mantinha em contato telefônico permanente com Brasília, estimulando correligionários golpistas da UDN e instruindo assessores que procuravam, nos meios do comando militar, combater a solução legalista.”

Posição do 3º Exército No comando militar do Rio Grande do Sul, o avanço era firme, porém, pausado, marcando posição, mas evitando o confronto. Tinha, entretanto, o mesmo objetivo do governo estadual, qual seja, o de garantir a posse de Jango. Não estavam sozinhos os defensores da legalidade. Havia também manifestações alentadoras como a do arcebispo do Rio Grande do Sul, D. Vicente Scherer, preocupado com a possibilidade de uma guerra civil. O general Machado Lopes, comandante do 3º Exército, passou um “rádio” para o ministro da Guerra, transmitindo o apelo do prelado e, reforçando sua posição, mandou o general Antônio Carlos Murici ao Rio de Janeiro para transmitir de viva voz a preocupação da Igreja no Rio Grande do Sul. Como resposta, o 3º Exército recebeu mensagem fonada do general Orlando Geisel, ordenando a concentração de tropas em Porto Alegre e, se necessário, a utilização da Aeronáutica para bombardear o Palácio Piratini. (Mais tarde Geisel desmentiu a existência dessa ordem, mas Machado Lopes apresenta um rol de testemunhas que teriam presenciado a chegada da mensagem que, por ser fonada, não tinha comprovação escrita.) Paralelamente, organizou-se uma força tarefa, reunindo Exército, Marinha e Aeronáutica, que estava se deslocando para o sul com a finalidade de sustar qualquer rebeldia por parte do comando. Até o cruzador Tamandaré foi utilizado nessa operação. Não havia mais tempo a perder. O general Machado Lopes oficializou sua resistência, declarando que não mais obedeceria ordens do ministro da Guerra e comunicando o fato aos comandantes dos outros três Exércitos. Ato contínuo, liberou seu chefe de Estado-

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Maior, general Murici e deu passaporte de livre trânsito ao comandante da Aeronáutica, bem como ao Capitão dos Portos, para que se retirassem do Rio Grande do Sul. O ministro da Guerra, então, destituiu-o oficialmente do cargo, nomeando em substituição o general Cordeiro de Farias que, todavia, não encontrou condições materiais para chegar a Porto Alegre e assumir de fato o comando. Ao mesmo tempo, o comandante Machado Lopes manteve contato com Brizola, informando-o de sua posição e pedindo que o governador usasse de moderação para não fechar as portas aos entendimentos políticos que se realizavam no Congresso Nacional, o único local de onde poderia saiu uma solução pacífica para a grave crise por que atravessava o país.

Parlamentarismo Já O político tem um sexto sentido, que pressente a chegada de um furacão e mede sua intensidade com uma escala própria. Neste momento, o Congresso Nacional percebia claramente não era hora para retórica mas para a busca de uma solução moderadora que pusesse fim à crise. O país estava precisando mais de bombeiros que de incendiários. Isso não significa que os congressistas tenham se rendido à fatalidade, aceitando pura e simplesmente a solução proposta pelos ministros militares de impedir a posse de Jango. Muito pelo contrário. Enquanto Denys, Heck e Moss insistiam no veto à posse, pretextando o perigo comunista, o Congresso Nacional, numa sessão histórica realizada em 30 de agosto, firmou sua posição: por 298 votos contra 14, confirmou Jango como Presidente constitucional do Brasil. Ao mesmo tempo, submeteu à apreciação dos três ministros uma proposta de emenda parlamentarista, saída honrosa para a crise, sem vencidos nem vencedores. Os parlamentares não foram compreendidos em suas boas intenções, pois os três vetaram também esta proposta, insistindo na impossibilidade da posse de Jango. O Congresso seguiu em seu propósito, tendo à frente o grande líder parlamentarista Raul Pila. De longa carreira política, Pila, durante toda sua vida parlamentar, lutou pela implantação do parlamentarismo no Brasil, vendo derrotadas seguidamente as emendas que apresentara em 1946, 1949, 1952, 1956

e 1959. Todavia, a emenda redigida agora não contemplava o parlamentarismo de seus sonhos, mas era um casuísmo A proposta parlamentarista ia a votação sem que o Congresso a discutisse, sem que houvesse a tramitação exigida pela lei, sem que os congressistas “dormissem” sobre o projeto, amadurecendo suas idéias antes de declinar o voto. Em todo caso, vivia-se a política do possível. Mantendo o Presidente como chefe de Estado, tendo um Primeiro-Ministro eleito pelo Congresso como chefe do Governo, caiam por terra as alegações militares de que o país estaria caminhando para os braços do comunismo. Seguia-se a fórmula alemã de parlamentarismo: o Presidente indicava o Primeiro-Ministro, que seria referendado pelo Congresso; O Congresso, por sua vez, indicava o restante do ministério, que seria referendado pelo Presidente. No dia 3 de agosto de 1961, por 48 votos contra 6, o Senado aprovou a instituição do parlamentarismo no Brasil. Votaram contra: Juscelino Kubitschek (PSD), Saulo Ramos (PTB), Guido Gondim (PRP), Cunha Melo (PTB), Ari Viana (PSD) e Jarbas Maranhão (PSD). Não era ainda a emenda, mas apenas a proposição. Às 22 horas, reuniu-se todo o Congresso Nacional (Câmara e Senado juntos) e, “sob as palmas do plenário, literalmente ocupado, se promulgou solenemente o instrumento legislativo que implantou no país um novo regime político, pretendido há anos pelo sr. Raul Pila”. A Constituição saiu arranhada, mais uma vez. O diploma conferido ao sr. João Goulart pelo TSE logo após as eleições garantia seu cargo de vice-Presidente nos termos da Constituição vigente, ou seja, dentro do regime presidencialista. E mesmo que ele renunciasse a essa prerrogativa, uma emenda constitucional não poderia ser aprovada sem obedecer as regras regimentais, que incluíam a tramitação separada na Câmara e Senado, duas votações em cada Casa, com um limite mínimo de dias entre a primeira e a segunda votação. Por apresentar defeitos congênitos insanáveis, o Parlamentarismo nasceu com os dias contados, pois carregava dentro de si os germes que o levariam à própria destruição.

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Os ministros e a emenda parlamentarista

Em 28 de agosto, portanto seis dias antes da votação da emenda, os ministros militares, acompanhados do general Ernesto Geisel, agora chefe da Casa Militar da Presidência, viajam para Brasília e solicitam audiência a Ranieri Mazzilli, que os recebe em sua residência. Para entender esses contínuos deslocamentos entre Rio e Brasília, é oportuno lembrar que Brasilia tinha apenas um ano de vida e, na prática, o Rio de Janeiro continuava sendo capital da República e centro dos acontecimentos. Lá estavam as embaixadas, lá funcionavam os ministérios e lá se faziam os conchavos políticos. Daí essas viagens freqüentes da equipe presidencial entre as duas cidades. Voltando ao assunto, os ministros se encontram com o Presidente e orientados, talvez, por Lacerda, alertam-no contra uma armadilha contida na emenda parlamentarista ainda não votada. Como no parlamentarismo o Presidente pode dissolver o Congresso e convocar novas eleições, por certo João Goulart faria isso e, obtendo maioria no novo Congresso eleito, simplesmente revogaria o parlamentarismo, voltando-se ao regime anterior. Ranieri Mazzilli, a par de sua experiência parlamentar, tem também uma paciência de monge beneditino. Folheia o texto da emenda parlamentarista e aponta para o artigo que dá ao Presidente poderes para dissolver o Congresso. Logo abaixo, um parágrafo determina que essa faculdade somente poderá ser aplicada após vencido o mandato dos atuais parlamentares, que se garantiram no cargo até o último dia, sem perigo de dissolução. Todavia, a força tem razões que a própria razão desconhece, e os ministros insistiram em seu veto à emenda parlamentarista. Exceção feita ao general Ernesto Geisel, chefe do Gabinete Militar, que declarou permanecer fiel ao Presidente em exercício, garantindo o cumprimento da emenda, se ela viesse a ser aprovada.

Uma esperança de entendimento

A posição firmada pelos ministros não era definitiva. Ou pelo menos não parecia ser. Às 15 horas do dia 31 de agosto, portanto, três dias depois do encontro acima, e três dias

antes da votação da emenda, o deputado Rui Ramos faz à Câmara o seguinte comunicado: “Sr. Presidente e srs. Deputados, tenho a honra, nesta oportunidade, de trazer ao Congresso a comunicação, por todos ansiosamente esperada, da adesão das Forças Armadas do nosso país à decisão histórica do Congresso Nacional, tomada nesta madrugada. Os senhores ministros militares, depois de importante reunião às quatro horas da madrugada de hoje, resolveram aprovar a decisão do Congresso Nacional, respeitando a Constituição e a legalidade, e dando posse, em conseqüência, ao presidente da República, dr. João Goulart. (...) “Quero aqui fazer justiça para a História. Nesse momento, o general Segadas Viana obteve já o pronunciamento pessoal do marechal Denys. Sua exa. lhe respondeu que, efetivamente, não obstante sua posição anterior, se o Congresso Nacional se pronunciasse em favor da legitimidade da investidura do presidente João Goulart, não entendia como desacatar o pronunciamento do Parlamento brasileiro. “Então, o marechal Denys pediu uma reunião com os outros ministros militares e convocou os generais do Exército para dela participarem. Compareceram às quatro da madrugada de hoje, além dos três chefes das Pastas militares, os seguintes generais: Nelson de Melo, Osvino Ferreira Alves, Osvaldo Cordeiro de Farias, Segadas Viana e Nestor de Oliveira, este último comandante do 1º Exército. (...) “Houve, então, manifestação unânime de todos os presentes. (...) Em face disso, tornou-se unânime, repito, a decisão, e as Forças Armadas, pelos seus ministros e pelo grupo de generais do 1º Exército, além de outros no Rio de Janeiro, chegaram à conclusão de que a resolução do Congresso deve ser definitivamente acatada.”

O difícil caminho do entendimento

Quando recebeu a notícia de que o presidente Jânio Quadros havia renunciado, João Goulart já não se achava mais na China, mas sim em Singapura. Em face dos desdobramentos internos, foi aconselhado a prolongar sua viagem até encontrar condições para o retorno ao Brasil com segurança. De Singapura, Jango seguiu para París, foi a Amsterdã, voltou a París e depois

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seguiu para a Espanha onde se encontravam seus filhos, que ele há longo tempo não via. Da Espanha, o vice-Presidente foi a Nova York e tomou um avião de carreira que seguia para a Argentina, com escala em Miami. Já na Argentina, viajou para o Uruguai, permanecendo na fronteira, à espera do momento oportuno para entrar no Brasil, sem o risco de ser preso. Aprovada a emenda parlamentarista, Jango viaja a Porto Alegre, onde conta com a proteção do governador do Estado e do comandante do 3º Exército. Aí permanece aguardando notícias mais concretas sobre a situação em Brasília. Na Capital Federal, a posse dentro do novo regime já é questão fechada. O Congresso nomeia uma comissão para viajar ao Rio Grande do Sul e acompanhar o novo Presidente a Brasília, para a posse. São 15 parlamentares, entre os quais se encontram Almino Afonso, Franco Montoro, Ivete Vargas e Nelson Carneiro. No dia 4, eles se dirigem ao aeroporto de Brasília para cumprir sua missão protocolar. Surpreendentemente, um oficial subalterno da FAB, o major Kliper, impediu a comissão de embarcar, dando a desculpa de que o aeroporto em Porto Alegre poderia estar interditado.

Sublevação na FAB O Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, em 5 de setembro, publica em manchete de primeira página os novos acontecimentos: “SUBLEVAÇÃO NA FAB CONTRA

JOÃO GOULART “A situação político-militar do país que, à tarde, apresentava sinais de alívio na tensão que a caracterizou ao longo de dez dias, voltou a se agravar, inesperadamente, à noite, quando uma comissão mista de deputados e senadores foi impedida pela FAB em Brasília, de voar para Porto Alegre, de onde voltaria, pela manhã, em companhia do sr. João Goulart. “Tão logo se conheceu, nas altas esferas políticas, a decisão da FAB – que se entrosava com informações semelhantes recebidas de São Paulo – o Presidente provisório convocou os ministros militares para uma reunião urgente no Palácio do Planalto, enquanto o Congresso também se reunia extraordinariamente para debater os acontecimentos. “Por outro lado, às 2h10m de hoje, despachos procedentes de Brasília indicavam que o ministro da Justiça, sr.

Martins Rodrigues levara ao conhecimento de alguns congressistas que o governo federal, diante da evolução dos acontecimentos na FAB, ‘não poderia oferecer mais as garantias para a vinda e conseqüente posse do sr. João Goulart na presidência da República’.” Estranha situação essa, em que um ministro (e por extensão o próprio presidente da República) não pode oferecer garantias para o cumprimento da Constituição.

João Goulart volta e toma posse

Em Porto Alegre, aumenta a convicção de que não é possível permanecer mais à espera, tornando-se imperativo gerar acontecimentos para precipitar o desfecho. Por certo, as forças contrárias hão de pesar os reflexos negativos no exterior em face de uma posição de força, contrária às instituições. Jango decide viajar a Brasília, onde o aeroporto estava interditado. De seu lado, o general Antônio Carlos Murici pensa em ir ao Rio de Janeiro, onde também foram fechados os dois aeroportos. João Goulart, então, convida Murici para ir com ele a Brasília. Se os dois descem em paz, Murici encontrará facilmente uma aeronave com destino ao Rio de Janeiro. Se os dois forem presos, está criado um problema internacional, por cuja repercusão, os rebeldes terão de responder. E assim se faz. A tensão é enorme em Porto Alegre, em Brasília e dentro do avião que conduz o Presidente vetado. Não contando com essa posição de enfrentamento, e pressionados de todos os lados, os rebeldes acabaram por consentir o pouso do avião. E foi assim que, em 7 de setembro de 1961, quinta-feira, enquanto nos quartéis e nas ruas se comemorava os 139 anos da Independência, João Belchior Marques Goulart prestava juramento perante o Congresso Nacional, tornando-se o primeiro presidente da República Brasileira dentro do regime parlamentarista. Este capítulo da História do Brasil não precisava ter sido escrito. Quem o escreveu, com suas próprias ações, foram os protagonistas daquele momento dramático da vida brasileira, em que a lei e a força se confrontaram. A lei saiu vitoriosa, mas por pouco tempo. O inconformismo latente no seio das Forças Armadas e a ação de

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políticos radicais, dentro e fora do governo, mantiveram a instabilidade que, tempos depois, poria fim à Terceira República.

* * *Capítulo Trinta-e-trêsO FIM DA TERCEIRA

REPÚBLICAGoverno João Goulart

A sublevação da FAB para impedir a posse de João Goulart levou o Presidente em exercício, Ranieri Mazzilli, a convocar com urgência seus ministros militares, com os quais traçou um plano de ação emergencial para restabelecer a autoridade do governo. Era um sério problema a resolver. A Aeronáutica rebelada fechou o Aeroporto em Brasília e ameaçava decolar seus aviões de caça para abater, em pleno vôo, a aeronave que traria João Goulart de Porto Alegre para a capital federal, em manobra que recebeu o nome de “Operação Mosquito”. Como, em face das circunstâncias, o ministro da Aeronáutica tornou-se, naquele momento, um comandante sem comandados, ficou acordado que o Exército colocaria suas tropas na proteção do Aeroporto, impedindo a decolagem dos aviões de caça. Este reforço, e mais a disposição de Jango em chegar, a qualquer custo, a Brasília, para exercer seus direitos constitucionais, fizeram os rebeldes recuar em seus propósitos e, assim, o avião presidencial pousou sem maiores transtornos. Estava superada a crise. João Goulart chega a Brasília em 5 de setembro e toma posse dois dias depois, a par com as comemorações pelos 139 anos da Independência do Brasil. Com a emenda parlamentarista em vigor, mantendo o Presidente como chefe de Estado, mas transferindo os poderes de chefe de Governo para um Primeiro Ministro, havia condições suficientes para restabelecer a governabilidade. Afinal, parlamentarismo não era coisa nova no Brasil. Com ele, D.Pedro 2º reinou por meio século, tendo de se compor, nesse período, com 28 governos, começando pelo Gabinete do Visconde de Caravelas, em 1847 e terminando com o do Visconde de Ouro Preto, em 1889, este último derrubado

pelo golpe de estado que proclamou a República. Faltava a João Goulart energia para enfrentar o grave momento. O Congresso, diga-se também, não se mostrou à altura das responsabilidades que acabara de receber. Desgastando-se em lutas internas, perdeu a grande oportunidade de consolidar o regime parlamentarista, registrando no espaço de apenas um ano, a passagem de três Gabinetes, chefiados respectivamente por Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes Lima. Em 6 de janeiro de 1963, num plebiscito arrasador, o eleitorado decide pela volta ao presidencialismo e, com ele, instala-se o caos no país, culminando em nova intervenção militar que, desta vez, põe fim à Terceira República (1945-1964). Como pôde isso acontecer?

Posse e primeiro Gabinete O dia 5 de setembro de 1961 amanheceu chuvoso e as manchetes dos jornais cariocas eram tão depressivas quanto a chuva fina que caía. Tinha-se a certeza de que Jango não pousaria vivo no Aeroporto de Brasília e os mais otimistas anunciavam que o avião seguiria direto para Goiânia, a 200 quilômetros da capital federal, onde o governador Mauro Borges prometia segurança para o pouso. Nada disso aconteceu. O avião desceu na nova capital sem maiores incidentes, apesar do ambiente tumultuado dentro do Aeroporto, o qual, praticamente, impediu a comitiva parlamentar de aproximar-se do novo Presidente. Por seu lado, os três ministros militares, resolvido o problema em Brasília, voaram para o Rio de Janeiro, a fim de garantir a ordem também naquela cidade, abortando qualquer tentativa de rebelião. Assim, em 7 de setembro, perante o Congresso, João Goulart presta o juramento de praxe: “Prometo manter, defender e cumprir a Constituição da República, observar as suas leis, promover o bem geral do Brasil, sustentar-lhe a união, a integridade e a independência.” Estava empossado o Presidente, a quem cabia estabelecer o novo governo. Como ato inicial, pois, João Goulart indicou para seu Primeiro-ministro o deputado Tancredo Neves que, por sua vez, organizou o ministério: Primeiro-ministro e ministro da Justiça (cumulativamente), deputado Tancredo de Almeida Neves (PSD-

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MG); Relações Exteriores, Francisco Clementino de Santiago Dantas (PTB-MG); Fazenda, Walter Moreira Sales (PSD-SP); Saúde, deputado Estácio Souto Mayor (PTB-PE); Agricultura, deputado Armando Monteiro (PSD-PE); Educação e Cultura, deputado Antônio Oliveira Brito (PSD-BA); Trabalho e Previdência Social, deputado André Franco Montoro (PDC-SP); Viação e Obras Públicas, senador Virgílio Fernandes Távora (UDN-CE); Minas e Energia, deputado Gabriel de Resende Passos (UDN-MG); Indústria e Comércio, deputado Ulisses Guimarães (PSD-SP); Guerra, general João de Segadas Viana; Marinha, Almirante Ângelo Nolasco de Almeida; Aeronáutica, brigadeiro Clóvis Monteiro Travassos; Casa Civil, Antônio Balbino (ex-governador da Bahia); Casa Militar, general Amauri Kruel (RS); Gabinete de Imprensa, Raul Francisco Ryff. Era um gabinete conservador, incapaz de levar a efeito, a médio prazo, as reformas de que o Brasil estava precisando. Mas compunha-se sobretudo de grandes nomes da política nacional, capazes de influir na opinião pública e restabelecer no país o respeito às leis e às instituições. Desde que quisessem fazê-lo, é claro.

Quem era João Goulart João Belchior Marques Goulart nasceu em 1º de março de 1919 em São Borja, Rio Grande do Sul, cidade que faz divisa com a Argentina, às margens do rio Uruguai, onde também nasceu e morou Getúlio Vargas. Estudou em Porto Alegre e formou-se em direito no ano de 1939. Ao voltar para a estância de propriedade da família, teve de assumir os negócios, em virtude do falecimento de seu pai. Fez amizade com Getúlio, que o encaminhou na vida política, elegendo-se deputado estadual em 1947 e deputado federal em 1950. Com Getúlio presidente da República, em 1953 assumiu o ministério do Trabalho, mostrando sua habilidade em lidar com as massas populares, embora não tivesse a mesma facilidade em lidar com os números. Propôs um aumento de 100 por cento no salário mínimo, trombando de frente com o ministro da Fazenda, o experiente Oswaldo Aranha, que previa um descontrole inflacionário, se a proposta fosse levada a sério. Vargas deixou seguir o embate entre os dois ministros. Goulart agitou os sindicatos,

fazendo-os realizar uma série de concentrações a favor do salário mínimo duplicado. Providenciou para que fossem alugados ônibus com o fim de levar operários ao Rio de Janeiro, realizando ali uma grande concentração política, onde, ao lado de faixas pelo aumento salarial, encontravam-se outras anunciando Jango como sucessor de Getúlio. Do dinheiro arrecadado com a Contribuição Sindical (um dia de salário a cada mês de março), parte ia para os sindicatos, e outra parte era recolhida ao Fundo Sindical, administrado pelo Ministério do Trabalho. Logo surgiram denúncias de que todo esse movimento a favor do salário mínimo vinha sendo custeado pelo Fundo Sindical, desvirtuando sua finalidade. O presidente da República acabou decretando o aumento do salário mínimo que, no Rio de Janeiro, passou de 1.200 para 2.400 cruzeiros. Jango não resistiu as pressões que vinham de todos os lados e acabou renunciando ao Ministério. Vem desse momento a grande popularidade de Jango junto às classes trabalhadoras, tornando-o um candidato potencial à Presidência. Vem daí, também, as reservas dos setores militares ao seu nome, dado que, para influir junto ao operariado, aproximou-se demasiado da esquerda radical, passando a ser considerado um elemento perigoso à democracia. Não obstante, elegeu-se vice-presidente da República, seguidamente, em 1955 e em 1960. No primeiro período, teve a sustentá-lo a habilidade do presidente Juscelino Kubitscheck, que moderou-lhe os passos, salvando-o de maiores complicações. No segundo período foi bem diferente. Jânio Quadros não tinha interesse em sustentar a popularidade de ninguém mais que não fosse a dele próprio. No momento certo, preparou uma armadilha a Jango, enviando-o à China comunista, em visita oficial, em cuja missão ele se encontrava quando surgiu o episódio da renúncia, com o subsequente veto militar à posse do vice-Presidente. João Goulart era o homem certo, na hora errada. Pacífico e conciliador, num momento em que a ninguém interessava a conciliação, acabou sendo envolvido num clima de agitação que apressou o seu fim. Sua personalidade é bem descrita por Iberê de Matos no livro “Imagem de um Presidente”:

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“Pessoalmente, Jango era uma figura que impressionava pela sua quase humildade. Havia total incompatibilidade de seu temperamento com a arrogância, ou com qualquer manifestação de violência ou energia mais acentuada. Parecia um moço tímido, perdido na selva de preocupações para as quais não estava preparado. Somente conversei com ele duas ou três vezes, mas foram suficientes para concluir que se tratava de um homem essencialmente bom e incapaz de alimentar rancores. Sentia-se o seu desajeitamento para o poder, como se o destino lhe tivesse dado o que não pedira e não queria. Sua simpatia emocionava, mas não lhe conferia capacidade de liderança.” Jango era casado com dona Maria Teresa Fontela, tendo dois filhos: João Vicente e Denise.

Quem era Tancredo Neves Tancredo de Almeida Neves nasceu em 4 de março de 1910, na cidade de São João del Rei, Estado de Minas Gerais. Estudou em Belo Horizonte e, formando-se em direito no ano de 1932, voltou para sua cidade natal, onde atuou como advogado e promotor público. Com a “janela” aberta na ditatura Vargas pela Constituição de 1934, elegeu-se vereador, mas em 1937, a implantação do Estado Novo veio interromper sua carreira política. Em 1945, cai Getúlio Vargas, restabelecendo-se o regime democrático. Tancredo ingressa no Partido Social Democrático, elegendo-se deputado estadual em 1947 e, daí para diante, nunca mais abandona a carreira política. Elege-se deputado federal em 1950, reelegendo-se sucessivamente e participando ativamente da política nacional. Como ministro da Justiça de Vargas, em 1954, viveu com toda a intensidade o drama que levou o Presidente ao suicídio. Enfrentou a UDN, que desejava a renúncia ou a deposição de Getúlio, defendeu a legalidade e permaneceu no palácio até o último momento. Foi em seus braços, e nos de Alzira Vargas, que Getúlio deu seu último suspiro. De espírito sereno e conciliador, seu nome foi logo lembrado para formar o primeiro gabinete parlamentarista, dada sua aproximação com o presidente João Goulart,

e pela forte influência que exercia no Congresso Nacional. Velha raposa política, com intuição fortemente aguçada, sabia quando avançar, quando recuar, e quando permanecer firme, garantindo as posições já conquistadas. Seu gabinete refletia a imagem do Congresso e, ao assumir, Tancredo já estava seguro do fracasso do novo regime, conduzido por um parlamento que era francamente presidencialista.

Plano Trienal Se, em 1956, JK tomou posse enfrentando o descontrole financeiro causado pela duplicação do valor do salário mínimo proposto por João Goulart, agora, as posições estão invertidas. João Goulart é presidente da República e JK é senador, eleito extemporaneamente para preenchimento de uma vaga na chamada “câmara alta”. E o gabinete parlamentarista tem a enfrentar a grave crise financeira, agravada nos governos de Juscelino e Jânio Quadros. Em seu governo, Jânio Quadros havia criado uma Comissão Nacional Planejamento, para preparar um plano de estabilização, a qual, em face da renúncia, nem chegou a tomar posse. O gabinete de Tancredo, agora, cria um Ministério Extraordinário do Planejamento, para o qual foi nomeado o ministro Celso Furtado, encarregado de traçar um Plano Trienal, a ser executado em 1963, 1964 e 1965, para recuperar as finanças e cuidar do desenvolvimento do país. Celso Furtado, um paraibano da cidade de Pombal, neste momento já com 42 anos, tinha um vasto e brilhante currículo, incluindo a publicação de dois livros específicos sobre o assunto: “A Economia Brasileira” (1954) e “Formação Econômica do Brasil” (1955). No celeiro de grandes nomes da economia brasileira, poderá encontrar-se quem a ele se iguale; difícil achar alguém melhor que ele para executar a tarefa. Em fins de 1962, fica pronto o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social, para os íntimos, apenas “Plano Trienal”, teorizando, de forma brilhante, os problemas brasileiros e suas soluções. Se, por um lado, o plano tem como objetivo assegurar uma taxa de crescimento na ordem de 7 por cento ao ano, garantindo pleno emprego e aumento de renda individual que possibilite a melhoria das

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condições de vida do povo brasileiro, por outro lado, pretende reduzir a inflação, de tal maneira que o índice de 55 por cento, previsto para o ano 1962, não ultapasse a 5 por cento em 1965. Os dois objetivos se confrontam e se contradizem. Para garantir o crescimento econômico, é preciso admitir a subida inflacionária. Se o pretendido é reduzir a inflação, a política tem de ser a contenção de despesas no setor público, a redução dos créditos bancários, o congelamento de salários, enfim fazer uma administração austera, que valorize a moeda, ao custo de recessão que avilta os salários e aumenta o desemprego. O primeiro caminho, ainda que demagógico, traz em seu bojo um forte apelo popular; o segundo, ao contrário, conduz à impopularidade, jogando o governo Tancredo Neves (e por conseqüência o presidente João Goulart) contra as massas que lhe dão apoio. Foi o grande confronto com as associações de classe, gerando protestos e manifestações, sobretudo na Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), no Pacto de Unidade e Ação (PUA) e na União Nacional de Estudantes (UNE).

A vida na música popular A conseqüência primeira da imobilidade do Presidente foi o aumento de preços nos gêneros essenciais. Como muitos produtos eram tabelados pela COFAP, um órgão regulador de preços, surgiu a sonegação e o “câmbio-negro”. Faltava de tudo nas prateleiras mas havia de tudo nos estoques ao fundo dos armazéns. Artigos corriqueiros como feijão, arroz, sal, açucar, tinham de ser negociados à parte com os comerciantes, que também os adquiriam com ágio. O compositor Juca Chaves registrou na música popular um apelo à primeira-dama, dona Maria Teresa Goulart: “Dona Maria Teresa: diga ao ‘seu’ Jango Goulart que a vida está uma tristeza; que a fome está de amargar... / O povo necessitado precisa de um salário novo, / mais baixo pro deputado; mais alto pro nosso povo. / Dona Maria Teresa: assim, o Brasil vai pra trás! / Quem deve falar fala pouco; Lacerda já fala demais! / Enquanto o feijão dá sumiço e o dólar se perde de vista / ‘O Globo’ diz que isso tudo é coisa de comunista. / Dona Maria Teresa: diga ao ‘seu’ Jango por que / o povo

vê quase tudo; só o parlamento não vê.. / Dona Maria Teresa: diga ao ‘seu’ Jango Goulart: / Lugar de feijão é na mesa; Lacerda... é noutro lugar!” Em outra música, são registrados os problemas do momento: “A situação do Brasil vai muito mal; / qualquer ladrão é patente nacional; / um policial, quase sempre, é uma ilusão / e a condução é artigo racionado. / Porém, ladrão... isso tem pra todo o lado! / Caixinha, obrigado! / Que dramalhão, a reunião de deputados: / é palavrão que só sai pra todo lado. / Se um deputado abre a boca, é um atentado / E a mãe de alguém é quem sofre toda a vez. / No fim do mês... Cento e vinte de ordenado. / Caixinha, obrigado!” A falta de alimentos, a instabilidade do regime, o parlamentarismo, as Ligas Camponesas de Francisco Julião e a Copa do Mundo, também são glosados pelo “Juquinha”: “Política confusa; ninguém chega à conclusão; um lado diz que sim, o outro diz que não. Feijão aumenta o preço; COFAP tem razão? Um lado diz que sim, o outro diz que não. “Se continuar assim, haverá revolução? Governo diz que sim, o povo diz que não. O parlamentarismo é útil pra nação? Governo diz que sim, o povo diz que não. “Sairá vitorioso Francisco Julião? O povo diz que sim, Lacerda diz que não. / Aqui não há problemas, pra que tanta confusão? / O povo passa fome mas Brasil é campeão.

Volta do Presidencialismo A emenda que aprovou o parlamentarismo, redigida em menos de dois dias, apresentava inúmeras falhas mas o grande lapso foi a não revogação do dispositivo que obrigava ministros candidatos a deixarem seus cargos três meses antes das eleições. Essa norma era, sem dúvida, moralizadora, pois evitava que os titulares usassem sua notoriedade no ministério para fazer campanha eleitoral. Acontece que, no parlamentarismo, os ministros são quase todos parlamentares e, até por necessidade de sobrevivência política, precisam candidatar-se à reeleição. Assim, ao aproximarem-se as eleições parlamentares de 1962, a maioria do ministério renunciou para se desemcompatibilizar. E o gabinete de

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Tancredo Neves, organizado em 8 de setembro de 1961, caiu dez meses depois, em 9 de julho de 1962. Os outros dois gabinetes, comandados respectivamente por Francisco Brochado da Rocha e Hermes Lima não conseguiram se firmar, trazendo instabilidade ao regime. Por outro lado, tendo sido um casuísmo para resolver uma crise momentânea, o parlamentarismo sempre foi o filho enjeitado da República, que a ninguém interessava adotar. O governador da Guanabara, Carlos Lacerda fora contrário a ele, desde o início, por considerá-lo postiço; seu maior adversário, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, foi, também, um dos primeiros opositores ao regime, alegando que João Goulart deveria tomar posse na plenitude dos poderes que havia adquirido ao eleger-se pelo regime presidencialista. Juscelino Kubitschek marcou sua posição no senado, votando contra. Todos os três eram candidatos potenciais às eleições presidenciais de 1955 e, se eleitos, pretendiam assumir a Presidência com todos os poderes. Na mesma situação se achava Jânio Quadros que, arrependido de ter deixado o governo, só pensava em retornar a ele. E, assim, também, sonhavam com a Presidência plena o governador de São Paulo, Ademar de Barros e o governador de Minas, Magalhães Pinto. Isso para citar apenas alguns dos postulantes. Por razões mais imediatas, havia grande turbulência nas associações de classe, que almejavam instituir o poder das esquerdas. Tais organizações, fortemente influenciadas por comunistas, desejavam ver João Goulart com todos os poderes para, assim, ampliar seu campo de ação. Às Forças Armadas, igualmente, não interessava manter o regime parlamentarista, cujo veto haviam colocado antes mesmo de a emenda ter sido votada. E, por fim, a prática mostrou que, longe de ser uma solução, o parlamentarismo constituía-se em um novo problema, acrescentado a outros tantos que o país tinha de resolver. A emenda à Constituição previa um plebiscito para o fim do período. Formou-se, então, uma corrente, pedindo sua realização junto com as eleições de outubro de 1962. Esse objetivo não foi alcançado, mas a pressão exercida sobre o congresso era tão grande que este marcou a realização do plebiscito para o dia 6 de janeiro de 1963.

O resultado foi arrasador. Mais de 80 por cento dos eleitores votaram pelo retorno ao presidencialismo, o que permitiu a João Goulart, já chefe de Estado, assumir também o governo com todos os seus poderes, agora reforçados pelo resultado das urnas que, supostamente, o consagravam como Presidente e lhe davam carta branca para governar. Não era tanto quanto aparentava. Dos 80 por cento que votaram pela volta ao presidencialismo, uma boa parte era adversária, senão inimiga figadal de Jango. Pretendia, pois, a volta do antigo regime, mas por razões diversas. Havia, inclusive, os conspiradores de sempre, apostando na incapacidade de João Goulart, e na deterioração do seu governo a ponto de exigir uma intervenção militar em defesa da segurança nacional.

Caminho do caos Os que apostaram no descontrole total do governo não precisaram esperar muito para ver suas previsões se concretizarem. A falta de pulso de Jango era visível. Pressionado por todos, a todos desejava contentar, e, nessa conciliação impossível, acabou se tornando joguete das forças radicais de esquerda que pretendiam a comunização do país, e constituiu-se num prato feito para os radicais de direita que, desde o governo de Getúlio Vargas, sonhavam com o fechamento do regime. Influindo nos atos do Presidente, estava o próprio cunhado, Leonel Brizola, agora feito deputado federal. Junto com ele, registrou-se um avanço das esquerdas nas últimas eleições parlamentares, transformando o Congresso num barril de pólvora. Em ação pessoal, Brizola passou a organizar “células” à maneira dos sovietes, dando-lhes a o nome de “Grupo dos Onze”, alusão ao número de pessoas que formava cada célula. No setor trabalhista, fundou-se a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria, cuja função era promover greves e acirrar os conflitos trabalhistas. Na área governamental, uma lei delegada criara a SUPRA-Superintendência de Reforma Agrária e, para acelerar o processo de distribuição de terras, o deputado federal Francisco Julião iniciou o movimento das Ligas Camponesas que, partindo do nordeste, se expandiu para o norte e para o centro-oeste. Surgiram conflitos entre camponeses e latifundiários, com invasões

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de terras e uma luta armada entre “sem-terra” e jagunços, com mortes constantes de um e outro lado. Aumentou o questionamento no setor estudantil, já organizado em torno da União Nacional de Estudantes-UNE, presidida primeiro por Aldo Arantes (1961-1962) e depois por José Serra (1963-1964). Mais intelectualizada e com planos mais consistentes, a UNE não escapou, todavia, da infliltração comunista, o que a colocava no alvo dos ataques da extrema direita. E, louve-se, os estudantes agiam com muita competência. Uma delegação percorria o país, mantendo debates políticos com a classe estudantil. Um grupo de teatro organizado para esse fim encenava peças de conteúdo revolucionário, com vistas ao sucesso da revolução cubana. O presidente João Goulart sentia-se empolgado com tais correntes de apoio e nem sequer imaginava que, na sua força, estavam os germes da própria destruição do governo. Iberê de Matos, então diretor da Rede Ferroviária Nacional, narra em seu livro “Imagem de um Presidente”, um episódio que presenciou durante a greve dos ferroviários: “O ministro Hélio Almeida [Viação e Obras Públicas] estava angustiado e nervoso, tentando, por todos os meios, localizar os dirigentes sindicais (...) A noite já ia alta quando surge um emissário. Era um deputado sindicalista, que se orgulhava de ser ferroviário e fora eleito pelos ferroviários. (...) O ministro entrou em seu gabinete com o enviado dos grevistas e, lá fora, aguardávamos, ansiosos, o desfecho da discussão que seria travada. Finalmente, algum tempo depois, surge o ministro com a fisionomia retratando decepção e tristeza: ‘Esse moço se diz amigo do Presidente! Não posso avaliar como procederia se não o fosse. Vou ligar para Brasília!...’ “Dirige-se ao telefone e o vemos gesticulando, num reflexo de angústia, enquanto expunha ao presidente Goulart a situação irritante que estava enfrentando e, num dado instante, conseguimos ouvir o que dizia [ao Presidente]: ‘Acho que somente o senhor poderá demover essa gente da posição de intransigência em que se mantêm. Vou chamar o deputado, para que possa tentar uma solução, falando diretamente!’ “Alguém foi buscar o emissário dos grevistas, que chegou com ar triunfante,

refletindo a satisfação de sua importância, ou quase superioridade, em relação a todos nós, que ali estávamos dependendo de sua anuência à solicitação do Presidente. “Não resisti à tentação de assistir ao telefonema e me aproximei o suficiente para perceber o máximo possível do que aconteceria. O que ouvi não foi muito, mas até hoje não me saíram do ouvido as palavras que foram pronunciadas pelo deputado falando ao Presidente, em tom arrogante e quase debochado, entrecortando os argumentos com ameaças, sem que houvesse no seu linguajar a mínima parcela de respeito. Em seguida, o ministro falou ao Presidente e eu me retirei para uma sala vazia, ainda sob o impacto da cena que assistira. “Não tive coragem de voltar para o salão onde estavam os outros diretores e autoridades diversas. O que vira e ouvira era chocante demais, e dava até vontade de chorar, como se eu fosse o humilhado, e não o Presidente. Tive pena do meu país, vivendo num clima de irresponsabilidade como o caracterizado por esse episódio.”

Ação conspiratória A posse de João Goulart, qualquer que fosse o regime, jamais seria assimilada nas casernas. Foi tolerada pelos ministros militares como medida paliativa, pelo risco de um confronto que levaria o país a uma guerra fraticida. Mas apenas tolerada, jamais aceita. Pode-se dizer que a ação conspiratória para a derrubada de Jango começou no dia seguinte à sua posse e envolvia vários agrupamentos, trabalhando independentemente, mas com objetivo comum. Um desses conspiradores de primeira hora era Carlos Lacerda, que permaneceu governador mesmo quando, em janeiro de 1963, houve troca dos governos estaduais, isto porque o Estado da Guanabara foi criado em 1960 e seu mandato se estendia até 1964. Tinha o poder nas mãos para fazer as articulações e a Tribuna da Imprensa para “plantar” notícias. E nem precisava falseá-las, tal a ação predatória dos grupos que apoiavam o Presidente. Havia Magalhães Pinto que, em janeiro de 1963, foi empossado governador de Minas Gerais, passando a articular o movimento civil naquele Estado, com maior discrição mas não menos eficiência.

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Na mesma ocasião, Ademar de Barros era empossado governador de São Paulo, tomando providências para, se preciso, partir para a luta armada. Aumentou os efetivos da Força Pública; como reforço, criou também a Polícia Ferroviária, que não tinha outro fim senão o de permitir a contratação e adestramento de homens para um eventual enfrentamento. No momento que achou oportuno, não teve dúvidas em juntar-se ao seu arquiinimigo, Julio Mesquita Filho, diretor do jornal “O Estado de São Paulo” que, por seu lado, mobilizava a sociedade civil para a reação. Grupos paramilitares surgiram em São Paulo sob as vistas grossas do governo. Um deles até desenhou um uniforme que se confundia com o fardamento da Aeronáutica. No Rio de Janeiro, foi do general Golberi do Couto e Silva a inspiração de criar o IPES-Instituto de Pesquisas Econômico-Sociais, cuja função oculta era conspirar contra o governo. Com o mesmo intuito, formou-se o IBAD-Instituto Brasileiro de Ação Democrática, desenvolveu-se a Ação Democrática Parlamentar, formada pela UDN e PSD, e tantos outros agrupamentos que discutiam e agiam no sentido de dar um golpe às instituições. Assim pois, de um lado e de outro, armavam-se os espíritos, aumentando perigosamente a tensão política e social, nublando os céus e prenunciando a chegada de um temporal.

Comício das reformas Os aparentes sucessos obtidos junto a estudantes, operários e camponeses, a um determinado tempo, fizeram o Presidente perder a noção da realidade, crendo-se com uma força irresistível, capaz de afrontar com sucesso seus inimigos. O governador Magalhães Pinto, mais cordato, advertia: “Dois grandes males põe em risco a paz e a liberdade de nossa pátria na conjuntura atual. São eles a inflação financeira e o radicalismo político. O medo de perder gera a mesma fúria agressiva que a cobiça de ganhar. Em breve, se não houver possibilidade de uma solução equilibrada, o destino da maioria dos brasileiros estará à mercê dos grupos extremistas minoritários que, por misto de ambição e medo, se atiram à ação direta, para a revolução ou para o golpe de Estado.” João Goulart não era exatamente o ponto de equilíbrio que evitaria o Brasil de cair num

precipício. Muito pelo contrário, fazendo ressurgir o plano de reformas de base contido no planejamento de Celso Furtado, convocou uma concentração popular para o dia 13 de março de 1964, na Praça da República, em frente à estação da Central do Brasil. O local era estratégico. Os trens da Central, por seus diversos ramais eram capazes de, em pouco tempo, colocar multidões na praça, dando uma demonstração de força popular. Tanto mais que as entradas foram liberadas, permitindo que a população, nesse dia, viajasse de graça. Tal com fazia Peron na Argentina, usando o metrô para colocar multidões na Plaza de Mayo, onde fustigava os adversários com a mostra de seu poder. Mas a praça da República era estratégica, também, noutro sentido. Lá estava o Campo de Santana e a sede do 1º Exército. Era uma área de segurança em frente à qual não podiam se realizar comícios ou manifestações. E o comício, promovido em tais circunstâncias, poderia ser considerado um acinte às próprias Forças Armadas. Desde a véspera, forças anti-Jango haviam iniciado atos de sabotagem. Tentaram incendiar o palanque montado no local. À noite, colocaram faixas comprometedoras pedindo a reeleição de Jango, as quais, encontradas a tempo, foram retiradas e destruídas. Agentes da desordem se infiltraram nas passeatas que rumavam à estação da Central, insuflando os manifestantes para a quebra de painéis, luminosos, depredação de vitrines, etc. O governador da Guanabara, de sua parte, decretou ponto facultativo, desestimulando os funcionários públicos de saírem de suas casas para participar da manifestação. Nada, porém, impediu que se realizasse o encontro do Presidente e da primeira-dama, dona Maria Teresa Goulart, com a multidão que tomou a praça fronteiriça à Estação. E, acompanhando os dois, se achava todo o ministério, deputados, autoridades e líderes sindicais. Depois de prestar contas de seu governo, João Goulart formaliza publicamente duas medidas controvertidas que, nas semanas seguintes, precipitariam o fim de seu governo. Decreta a nacionalização das refinarias de petróleo pertencentes à empresa privada e assina o princípio da

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reforma agrária, decretando “a desapropriação das terras em torno dos grandes açudes públicos e às margens das rodovias e ferrovias, mediante compensação prévia e efetiva”. No dia seguinte, começava a ser acionado o dispositivo político-militar que pretendia a derrubada do governo e que, em todo o país, atuou de forma mais ou menos coordenada. Em São Paulo e em Belo Horizonte, realizaram-se as “Marchas da Família com Deus, pela Liberdade”, uma manifestação prévia para dar sustentação civil ao movimento armado que se seguiria. Com a antecipação do golpe, a marcha programada para o Rio de Janeiro só se realizou após a deposição de Jango, tornando-se apenas um ato simbólico.

Revolta dos marinheiros Entre 25 e 27 de março, uma cerimônia comemorativa da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, realizada na sede do Sindicato dos Metalúrgicos, sob a direção do “cabo” Anselmo, terminou com motim, declarando-se os marinheiros em assembléia permanente e recusando-se a voltar às suas unidades. O ministro da Marinha, Sílvio Mota, ordena ao almirante Aragão que invada a séde do Sindicato, retirando de lá os marinheiros, “mortos ou vivos”. Aragão não cumpre a ordem, alegando não haver condições mínimas para que a operação seja executada. Pior ainda, os fuzileiros navais que compunham a sua tropa de ataque aderem aos amotinados, complicando mais a situação. O almirante Sílvio Mota apresenta, então, pedido de demissão e, Jango, uma vez mais, procura conciliar, propondo que os amotinados sejam presos e encaminhados a um quartel do Exército, enquanto se faz um inquérito policial militar para apurar os acontecimentos. Os marinheiros realmente vão para a prisão mas, não se sabe por quê, são soltos horas depois, organizando, então, ruidosa passeata em direção ao ministério da Marinha, não sendo contidos nem pelo general Assis Brasil, enviado para dissuadi-los de seu propósito, nem pelo almirante Aragão, que, sem muita convicção, tentou detê-los. Jango, no Rio de Janeiro, é impotente para qualquer reação que se deva esperar de um presidente da República.

Cabo Anselmo, agente-duplo Um detalhe importante, que, embora sendo detalhe, talvez seja maior que o acontecimento em si: o “cabo” Anselmo não era cabo, nem, a rigor, poderia ser considerado marinheiro. Tratava-se de um estudante universitário que a direita infiltrou na Marinha como agente-duplo, com a finalidade de insuflar os ânimos e provocar o desafio à hierarquia militar, criando condições morais para uma intervenção militar. Anos mais tarde, o mesmo “cabo” Anselmo foi infiltrado também nas guerrilhas nordestinas para passar informações ao delegado Paranhos Fleury e, nos anos 80, voltou à cena, fazendo depoimento a uma revista, no qual incrimina Leonel Brizola, exatamente no momento em que este era candidado ao governo do Rio de Janeiro. Trata-se de um bom moço, que sempre executou as tarefas que lhe foram entregues com extremo cuidado, invulgar competência e absoluto sucesso. Um agente-duplo “nota dez”.

Os sargentos e o fim do governo Estamos agora em 30 de março, véspera da data fatal em que o governo de Jango ia ser posto em cheque. No Automóvel Clube da Guanabara vai-se realizar, a partir das 19 horas, uma reunião de sargentos das três forças, mais os da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros. Rápido no gatilho, o comando do 1º Exército mandou que suas unidades retivessem os militares dentro dos quartéis o que impediu a presença de sargentos do Exército na reunião. Como convidado de honra, deveria estar, adivinhem quem? O próprio presidente da República, João Belchior Marques Goulart. O deputado Tancredo Neves, velha raposa política, aconselhou-o a não comparecer. O próprio deputado Tenório Cavalcanti, que não primava pelo bom senso e era um ativista das esquerdas, achava bom que o Presidente não saísse do Palácio das Laranjeiras. De nada adiantaram os conselhos. Acompanhado do general Assis Brasil, que preparara o esquema de segurança, deixou Tenório falando sozinho e dirigiu-se ao Automóvel Clube, onde foi recebido festivamente pelos sargentos. Na ocasião, deixando o discurso que havia redigido, fez um improviso, ressaltando a importância do sargento como um meio de

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ligação entre as Forças Armadas e o povo. Fez referências ao seu governo, à campanha de difamação que lhe era movida por seus inimigos e os embaraços que estes causavam ao seu governo. Dois ilustres personagens, que não eram sargentos, estavam presentes, discursando e dividindo entre si os aplausos, antes que se fechassem as cortinas desta tragicomédia. Um era o almirante Aragão; o outro, o “cabo” Anselmo. Horas depois, tropas saiam de Juiz de Fora-MG, comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho, em direção ao Rio de Janeiro, para a derrubada do governo. Com Jango desaparecido, mas ainda dentro do território brasileiro, o Congresso declarou a vacância do cargo, empossando como Presidente interino o presidente da Câmara Federal, deputado Ranieri Mazzilli. O palco esvazia-se, muda-se o cenário, e novos personagens assumem seus lugares para o início de outro ato, em que os atores invertem seus papéis, iniciando uma representação nada convincente do teatro do absurdo.

Quarta República(1964-1985)

* * *Capítulo Trinta-e-quatro1964 – REVOLUÇÃO

OU GOLPE ?A queda de João Goulart

Vetado pelos ministros militares, odiado pelos conservadores, que o queriam ver longe do governo, com seu poder dilacerado pela emenda parlamentarista, e sem pulso suficiente para conter os radicais da esquerda, o presidente João Belchior Marques Goulart foi vítima de multipla conspiração, desde sua posse, ocorrida em 7 de setembro de 1961. No princípio, eram movimentos ocultos, contidos em certa parte, pela atuação moderada do Gabinete formado pelo primeiro-ministro Tancredo de Almeida Neves. Mas, com a volta do presidencialismo, recolocando todos os poderes de governo nas mãos do presidente da República, e com o recrudescimento da ação das esquerdas, a conspiração se tornou aberta, num confronto entre as forças

conservadoras e aquelas ditas revolucionárias, que disputavam o mesmo espaço. Escreve Francisco de Assis Silva, em seu livro “História do Brasil”: “Todo mundo conspira: direita e esquerda; civis e militares; moderados e radicais; operários e camponeses. Os governadores Ademar de Barros (SP), Magalhães Pinto (MG) e Carlos Lacerda (GB) conspiravam com a ala militar antijanguista. O golpe estava em andamento. A direita congregava-se em organizações como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), financiados pelos Estados Unidos, e outras tantas que se uniram para impedir as reformas sociais.” Verdade é que o presidente João Goulart em nada contribuia para baixar a temperatura efervescente nos meios políticos e na caserna: ignorava o Congresso e a ala conservadora, procurando impor suas reformas baseado no lastro da popularidade de que dispunha e na expressiva votação que obtivera nas eleições, ocasião em que quebrou a unidade partidária, fazendo-se vice-Presidente pelas esquerdas, junto com Jânio, que representava a ala mais reacionária da política brasileira. Era a dobradinha “Jan-Jan” (Jânio e Jango). Embora dispersa em vários comandos civis e militares, principalmente no Rio de Janeiro, em São Paulo e Minas Gerais, a oposição ao governo reconhecia a ascendência das lideranças do Rio, onde se achava o general Artur da Costa e Silva, e para onde, mais tarde, foi removido o general Humberto de Alencar Castelo Branco, que deixou o comando do 4º Exército, em Recife, para assumir o comando do Estado Maior do Exército (EMEx), onde eram maior o poder de articulação. Correndo por fora da raia, como um franco atirador, estava o general Olímpio Mourão Filho, com opiniões próprias, infenso a qualquer orientação vinda de fora de seu comando, ele mesmo capaz de desequilibrar o plano integrado das demais forças que participavam da conspiração anti-Jango. E foi Mourão que, na madrugada de 31 de março de 1964, por sua própria conta e risco, e sem conhecimento dos demais, saiu de Juiz de Fora com um punhado de jovens soldados inexperientes para a derrubada do governo, antecipando em pelo menos 20 dias o

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movimento que deveria eclodir a partir do Rio de Janeiro. Revolução ou golpe ? Essa discussão até hoje está em aberto. Para os militares que participaram do movimento, foi uma revolução objetivando exterminar o comunismo que atentava contra as liberdades democráticas; para a ala esquerda, não pairavam dúvidas de que se tratava de um golpe bem articulado para impedir a realização das reformas; para Mourão Filho, teria sido uma revolução legítima, partindo de Minas Gerais, a qual chegou vitoriosa ao Rio de Janeiro, mas lá encontrou o general Costa e Silva já instalado no gabinete do ministro da Guerra, e o general Castelo Branco virtualmente empossado presidente da República. Era o que ele próprio chamou de “golpe de 1º de abril”. É importante nos determos nos acontecimentos que levaram ao movimento vitorioso de 1964 que, rapidamente, afastou as lideranças civis, ou colocou-as a seu serviço, dando início a uma série de governos militares que se sucederam no poder até o ano de 1985.

Como era estranho esse general Mourão

Olímpio Mourão Filho (1900-1972) nasceu em Diamantina (MG), a mesma cidade de Juscelino Kubitschek. É a única identidade entre os dois. Ao contrário de JK, Mourão Filho tinha índole belicosa e um temperamento irrefreável, transcorrendo toda sua vida ao meio de conspirações, desenvolvidas abertamente, seguindo sua própria avaliação e em prejuízo de qualquer opinião que não a sua própria. Se tivermos de compará-lo a alguma figura história, poderíamos melhor aproximá-lo de Tiradentes, outro mineiro notável que assumiu como seus os ideais da Conjuração Mineira e saiu pelas cidades de seu Estado e do Rio de Janeiro pregando a queda do Império, descuidando-se do sigilo, elemento essencial para a vitória de qualquer movimento contestatório. Em 1937, como capitão do Exército, Mourão identificou-se com a Ação Integralista Brasileira e teve seu nome envolvido no Plano Cohen. Em verdade, tal plano, de pretensa ação comunista para tomada do poder, foi redigido por ele próprio, mas apenas para treinamento dos integralistas no combate ao comunismo. Por ardil do

presidente Getúlio Vargas, auxiliado pelos generais Góis Monteiro e Caiado de Castro, a peça foi tomada como verdadeira e serviu de pretexto para o fechamento do Congresso Nacional e a instituição de um novo regime, o do Estado Novo. O maior prejudicado, além da nação brasileira, foi o próprio Mourão, que, por quase trinta anos, teve sua carreira militar bloqueada, enquanto seus companheiros de turma subiam rapidamente. Em 1956, Juscelino, finalmente, promoveu-o a general-de-brigada (duas estrelas), ficando estacionado nessa posição durante cinco anos. E, como general-de brigada, em 1961, voltou-se contra os ministros militares, que se opunham à posse de João Goulart, seguindo para a casa do marechal Teixeira Lott, onde se encontravam outros militares, favoráveis à posse de Jango, dentro dos termos da Constituição. Lott já havia emitido um manifesto, publicado pelos jornais matutinos, e vinha com uma outra declaração, quando Mourão, irritado, contestou: “Marechal, chega de manifesto! Põe tua farda, vou em casa pôr a minha, tocamos para a Vila Militar e vamos revoltar as tropas!” Lott recusou-se a fazê-lo. Pior para ele que, horas depois, estava preso, por ordem de seu amigo e companheiro, o ministro da Guerra, general Odílio Denys. João Goulart foi finalmente empossado e, pouco depois, Mourão Filho passou a conspirar contra o novo Presidente, primeiro em Santa Maria (RS), depois em São Paulo e finalmente em Juíz de Fora, causando mal-estar e até inimizades dentro nas hostes antijanguistas. Vitorioso o movimento de 1964, voltou-se também contra este, considerando que a revolução foi traída com a permanência dos militares no poder. Já não tinha, porém, qualquer comando, pois, ainda em 1964, caiu na compulsória, reformando-se como general de divisão. Enquanto outros de sua turma se aposentaram com o título de marechal, Mourão foi para a reserva como general-de-divisão (três estrelas), quase ignorado nas referências sobre o movimento militar que resultou na instituição da Quarta República. Uma ou outra enciclopédia abre uma entrada com seu nome e, assim mesmo, para uma citação de duas ou três linhas, sem se deter em sua biografia ou na importância que ele teve para o sucesso do movimento.

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Em Santa Maria, o “Plano Junção” Promovido a general-de-brigada (duas estrelas) em 7 de setembro de 1956, já no mês seguinte Mourão assume o comando da Infantaria Divisionária em Belo Horizonte, onde não fica mais que uns poucos meses. Seu temperamento guerreiro incomodava muito e Juscelino nomeia-o para cargos burocráticos, primeiro na Assistência Social do Exército e, depois, na direção dos Serviços de Radiodifusão (hoje DENTEL), subordinado ao Departamento de Correios e Telégrafos. Congelado por vários anos, só em 21 de setembro de 1961 volta às atividades militares, tomando posse como comandante da 3ª Divisão de Infantaria, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Pouco tempo depois, já desconfiava não só do presidente João Goulart como também do governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, achando que ambos pretendiam aplicar um golpe de estado com subseqüente comunização do governo. E, assim, não tarda em reiniciar a atividade conspiratória, traçando o “Plano Junção”, pelo qual pretendia levantar o Exército, assim que pressentisse qualquer atitude de Jango para o fechamento no regime. Uma tarefa nada fácil, já que o comandante do 3º Exército era o general Jair Dantas Ribeiro, francamente janguista.

Parlamentarismo instável Rememoremos. O parlamentarismo brasileiro foi criado como um casuismo para cortar os poderes do presidente da República e tornar mais palatável a presença de Jango, retirando-lhe os poderes de governo e transformando-o numa “rainha da Inglaterra”. Votado às pressas, o Ato Adicional, ou emenda parlamentarista, apresentava graves lacunas, que impediam sua execução. Primeiro: adotou-se a fórmula alemã, em que o Presidente indica o Primeiro-Ministro, a ser aprovado pelo Congresso. Aceito o nome, o Congresso indica o Ministério, que deve ser aprovado pelo Presidente. Com um congresso conservador e um presidente tido como reformista, cria-se um impasse difícil de ser vencido. Segundo: já que o Gabinete parlamentarista é composto sobretudo de parlamentares, que precisam reeleger-se para garantir sua permanência no Ministério, teria de ser suprimida, na Constituição, a exigência de desimcompatibilização 90 dias antes das eleições. Não o fizeram.

Terceiro: Se o presidente da República é apenas chefe de Estado, e o Primeiro-Ministro chefe de Governo, com ascendência sobre os ministros militares, então é o Primeiro-Ministro e não o Presidente quem deve ser considerado chefe supremo das Forças Armadas. Também isso não foi modificado. Estava armado o cenário para a grande trapalhada. Em 30 de junho de 1962 (três meses antes das eleições parlamentares), cai o Gabinete de Tancredo Neves, cujos ministros eram, quase todos, candidatos à reeleição. Sem entendimento entre executivo e legislativo, na prática, o poder voltou às mãos de João Goulart, chefe supremo das Forças Armadas, situação que perdurou por dez dias. O primeiro nome indicado para a chefia do Gabinete foi o do jurista Santiago Dantas, prontamente rejeitado pelo Congresso que o considerava muito à esquerda. Jango, então, concordou em indicar para Primeiro-Ministro o presidente do Congresso, Auro Soares de Moura Andrade (conservador) mas, em seguida, usando das atribuições que lhe eram conferidas, recusou o ministério indicado pelo Congresso, por achá-lo conservador demais para as reformas que tinha em mente. Finalmente, executivo e legislativo se fixaram no nome de Brochado da Rocha, mais à esquerda que Santiago Dantas. É claro que a ninguém interessava essa nomeação, que se constituiu em novo casuismo, enquanto, paralelamente, se procurava detonar o parlamentarismo, com a realização de um plebiscito. O gabinete de Brochado, empossado em 9 de julho de 1982, foi substituido pelo de Hermes Lima em 17 de setembro e este último se dissolveu em 23 de janeiro de 1963 quando, de conformidade com plebiscito realizado em 6 de janeiro, o Brasil voltou a adotar o Presidencialismo, concentrando nas mãos de Jango ambos os poderes, de chefe de Estado e de chefe de Governo.

Testando o Plano Junção Concluindo que a recusa do Gabinete apresentado por Auro Soares era o primeiro passo de Jango para um golpe de estado, o general Mourão, no comando da 3ª Divisão de Infantaria (Santa Maria-RS) pôs em execução o “Plano Junção” levando ao ar a rede de emergência, o que originou uma reprimenda e pedido de explicações por

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parte do 3º Exército. Mourão desculpou-se, retirou do ar a rede de emergência, mas ordenou que todos os setores envolvidos permanecessem na escuta, no aguardo de novas instruções de comando. Em sentido oposto, caminhava o comandante do 3º Exército, general Jair Dantas Ribeiro, que chamou a Porto Alegre todos os seus comandados diretos, inclusive o general Mourão, propondo-lhes a emissão de um manifesto exigindo que o Congresso a aprovasse a realização de um plebiscito. Não obtendo apoio, assinou o manifesto sozinho, enviando cópia aos demais comandos com a ordem de que o comunicado fosse lido publicamente nos quartéis. A atitude do general Jair não era isolada, mas um repique de manifesto feito anteriormente pelo comandante do 1º

Exército (Rio de Janeiro), general Osvino Ferreira Alves. Os outros dois comandos (2º

Exército em São Paulo e 4º Exército em Recife) se revelavam aparentemente neutros. Com a desistência de Auro Soares à chefia do Gabinete, e com a indicação de Brochado da Rocha para compor um novo Ministério, foi jogada água na fervura. Jair Ribeiro recolheu-se às suas atividades de comando e Mourão desativou o Plano Junção, registrando todo inconformismo em seu diário particular, em data de 5/7/62 – quinta-feira: “Hoje de tarde soubemos que o Auro se demitira. Cantou de galinha o homem. Se ele tivesse reagido, João Goulart fechava o Congresso e iria levar o maior susto da vida dele, porque ali de Santa Maria ia partir fulminante o movimento que poria para fora ele e o Brizola.” No remanejamento de comandos, em 15 de março de 1963, o general Mourão, já promovido a general-de-divisão (três estrelas), assumiu a 2ª Região Militar, em São Paulo, subordinado ao general Pery Constant Bevilacqua, descedente de Benjamin Constant e comandante do 2º

Exército. “Exultei, porque desejava conspirar em São Paulo”, escreveu Mourão em seu diário. Mas em Santa Maria, deixou em andamento um IPM-Inquérito Policial-Militar contra 40 sargentos. Motivo: conspiração.

Em São Paulo, o blefe Conquanto a cerimônia de posse tenha sido concorrida, com a presença de altas autoridades, inclusive do governador Ademar de Barros, Mourão Filho descobriu logo que

não lhe seria possível agir em São Paulo com a mesma desenvoltura com que o fazia em Santa Maria. Alguns, como Assis Chateaubriand, dos Diários Associados, deram-se apoio, reservado mas efetivo; outros, como Ademar, desconversavam e evitavam a ação de Mourão, que consideravam predatória e perigosa; seu superior, general Pery Bevilacqua, que também viera transferido do Rio Grande do Sul, tentava refrear-lhe os ímpetos, que poderiam precipitar os acontecimentos, em prejuízo à causa a que se dedicavam. E Júlio Mesquita Filho, diretor do Estadão, jornal que se constituia no carro-chefe da conspiração em São Paulo, nada fazia para esconder sua antipatia ao açodado general. Pior do que isso é que já chegavam aos ouvidos do presidente João Goulart e aos setores ligados a ele as notícias sobre as atitudes de Mourão Filho, criando-lhe uma situação deveras embaraçosa. Foi então que ocorreu-lhe aplicar um blefe para acalmar as hostes governistas e escolheu para isso as comemorações do aniversário da Revolução Constitucionalista, em 9 de julho, nas quais deveria comparecer, pela sua unidade e também representando o comandante do 2º Exército. Esperava que pelo menos um orador fizesse um paralelo entre a revolução de 1932 e os dias atuais, atingindo verbalmente o presidente João Goulart. Durante a cerimônia, não precisou esperar muito. A certa altura, a palavra foi dada a Waldemar Ferreira, um dos líderes civís de 32, que iniciou o discurso dizendo: “Esta solenidade é um grito de alerta a toda a nação, no momento em que se prepara um movimento comunista, chefiado do Palácio da Alvorada pelo próprio presidente da República.” É o próprio Mourão quem conta: “Levantei-me com um gesto espalhafatoso, o gorro na cabeça e com os dois braços fazendo gestos para os oficiais, gritei bem alto: ‘Levantem-se, vamos nos retirar daqui. Não admito insultos contra o chefe das Forças Armadas, presidente João Goulart’.” O truque deu certo. Havia transmissão ao vivo pelo rádio e toda a imprensa paulista estava dando cobertura à solenidade. Ademar mandou um mensageiro procurá-lo na sala onde havia se alojado, garantindo que faria um discurso desmanchando tudo, e

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pedindo-lhe que, após, voltasse à cerimônia. E assim aconteceu. No Palácio do Planalto, a repercussão não podia ter sido melhor. O general Mourão Filho passou a ser considerado um elemento pró governo e em tal grau que, no mês seguinte, recebia como bônus a transferência para uma função da mais alta confiança, qual seja, o comando da 4ª Região Militar e da 4ª

Divisão de Infantaria, em Juíz de Fora, desalojando dessa posição o general Carlos Luís Guedes, elemento muito chegado ao governador de Minas, Magalhães Pinto.

Posição dos governadores Neste ponto será útil mapear o posicionamento dos principais governadores envolvidos no processo conspiratório, de um lado e de outro. Miguel Arraes, em Pernambuco fazia o movimento das esquerdas, dando amplo apoio às Ligas Camponesas de Francisco Julião, um movimento extremista que objetivava a reforma agrária à força, criando situações de fato, com a invasão de propriedades produtivas, sobretudo engenhos, e criando situações de conflito armado, sob as vistas grossas, quando não, sob a proteção do Governador. Em Minas Gerais, Magalhães Pinto, mineiramente, dava uma no cravo e outra na ferradura. Conspirava contra o presidente da República, mas sem alarde, dando mesmo a entender que estava ao lado do governo central. Nesse propósito, chegou até a financiar, com dinheiro público, a realização, em Belo Horizonte, do 1º Congresso Nacional de Trabalhadores do Campo, arcando com as despesas de instalação, transporte e alojamento. Como não podia deixar de ser, a maior representação (cerca de 200 camponeses) foi a de Francisco Julião, que pedia a desapropriação sumária de todo latifúndio acima de 500 hectares. Diante de uma multidão calculada em 5 mil pessoas, foi transmitida uma gravação com a voz de Fidel Castro, dando apoio cubano à reforma agrária brasileira. Na Guanabara, reinava absoluto Carlos Lacerda, com mandato diferenciado dos demais, já que o Estado foi criado em 1961 e sua presença no governo deveria se estender até 1965. Magalhães e Lacerda conspiravam contra o governo, mas evitavam comunicar-se. Ambos eram candidatos virtuais à

presidência da República e cada um deles, isoladamente, procurava fortalecer sua posição, enfraquecendo o adversário. Magalhães, recatado, levava a melhor; Lacerda, destemperado, expunha-se demais, mas, em compensação, fazia uso da máquina para esmagar movimentos pró-Jango, com medidas nem sempre em plena conformidade com a lei. Ademar, em São Paulo, era um meio termo entre os dois. Falava e agia com franqueza, mas medindo suas reações e, no interesse da causa, não teve dúvidas em aliar-se ao seu maior inimigo, Júlio Mesquita Filho, diretor do jornal O Estado de São Paulo. No Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti era uma incógnita, mas, estourando o movimento, em 31 de março, mudou a sede do governo para o interior, anunciando sua adesão aos militares anti-jango. Brizola, cunhado de João Goulart e um dos representantes mais importantes da esquerda, encerrara seu mandato como governador do Rio Grande do Sul, mas elegera-se deputado federal e mantinha sua ascendência política sobre o seu Estado e sobre uma boa parte do país. Era também um demolidor e, na esquerda, servia de contraponto à agressividade de Lacerda na Guanabara. Sem ser comunista, Brizola adotava a técnica de organização de células revolucionárias, que chamou de “grupos de onze”. Esse era o número de componentes de cada célula e, no momento oportuno, pretendia ativar todas elas para detonar o governo central.

Ação das esquerdas Se as forças anti-Janguistas se articulavam para a derrubada do Governo, do outro lado, as forças pro-Jango se preparavam para uma mudança radical do regime, dando a João Goulart poderes absolutos para realizar as reformas que tinha em mente. Enquanto as primeiras, firmadas em líderes políticos e empresarios, mantendo o controle de comandos vitais nas Forças Armadas, tinha uma noção exata de seu poder, os janguistas se iludiam em sua força aparente, seduzidos pela idéia do sucesso e divorciados da realidade. Por todo o lado as organizações esquerdistas se organizavam para um golpe final às instituições. Organizações trabalhadoras e estudantis recrudesciam em sua ação, produzindo greves e movimentos

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populares de apoio e sustentação ao presidente da República. Se as associações de trabalhadores eram mais experientes e práticas, a UNE–União Nacional de Estudantes apresentava-se idealista e intelectualizada, estendendo sua ação junto às escolas e fazendo um trabalho de proselitismo que utilizava sobretudo o teatro, com a cooperação do CPC – Centro Popular de Cultura, onde se abrigavam os mais conhecidos artistas jovens de nosso país. Contavam-se, entre eles, Oduvaldo Viana Filho (Vianinha), Gianfrancesco Guarnieri, Cacá Diegues, Leon Hirzmann. Vera Gertel (mais tarde reporter de TV) e outros. E mais cantores e compositores, como Edu lobo, Carlos Lyra e Sérgio Ricardo O sociólogo Luís Werneck Vianna, reconhece o excesso de idealismo juvenil que lhes vedava os olhos à realidade que, sobretudo no Rio de Janeiro, lhes era adversa, com a polícia do governador Carlos Lacerda e o peso das forças bem articuladas da direita: “Nós tínhamos, particularmente os jovens, que haviam sido mobilizados pela política de esquerda daquela época, uma confiança muito grande nas lideranças. E as lideranças diziam que, ‘se a direita levantasse a cabeça, essa cabeça seria cortada’. Isso é textual. Foi uma frase que o Prestes [Luiz Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro] lançou na ABI [Associação Brasileira de Imprensa] quinze dias ou um mês antes do golpe. Nós fomos para a UNE com um espírito de resistência (...) Fomos para a UNE como para mais uma jornada, onde as coisas aconteceriam e, no dia seguinte, tudo voltaria ao normal, como tantas outras crises que havíamos assistido no período.” Oduvaldo Viana Filho foi uma das vítimas dessa imprudência. Preso pela polícia de Lacerda, “desapareceu” por alguns dias nas dependências do DOPS carioca, sendo ineficaz o “habeas-corpus”, porque não era localizado em lugar algum. Foi preciso a interferência do general Nelson de Mello que, mesmo sem concordar com o posicionamento da UNE, agiu no sentido de localizar e libertar Vianinha. Heron Domingues, o célebre Reporter Esso, reproduziu na TV os acontecimentos: “Mocinho falador, você está preso – foi o que disseram a Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, preso na avenida Rio Branco, esquina da Araújo Porto Alegre.” E, em entrevista à

Última Hora, diz Vianinha: “Cuspiram-me no rosto e rasgaram minha roupa”. E, mais tarde conta: “A ordem era total intimidação e a mais completa humilhação. Cheguei à conclusão de que, com aquela polícia, até mesmo um homem santo como D. Helder [D.Helder Câmara, Arcebispo do Rio] ou um retardado como o almirante Pena Boto [um dos conspiradores contra a posse de Juscelino em 1956] poderiam ser transformados em revolucionários.” De um lado e de outro, os espíritos se armavam para uma luta sem fronteiras. Não havia uma voz pacificadora, capaz de serenar os ânimos e reencaminhar o país para o entendimento. Todos queriam o bem-estar da nação, cada um à sua maneira, usando a força como argumento.

Articulação da direita Se as esquerdas contavam com apoio ostensivo de Cuba, da União Soviética e da China, inclusive com a presença de agentes subversivos no Brasil, a direita, por sua vez, tinha uma cobertura de retaguarda dos Estados Unidos, através da “Operação Brother Sam”, que garantia a interferência americana até o ponto em que fosse necessária para impedir a implantação de um regime comunista no Brasil. Os EUA já tinham Cuba bem próximo de si, o que era um problema mais do que suficiente, não lhes interessando, de maneira alguma o surgimento de outro núcleo justamente no cone sul, o que facilitaria a propagação revolucionária pelos países vizinhos. Não custa lembrar que o Brasil faz divisa com todos os países da América do Sul, com exceção de Equador e Chile. Na conspiração anti-Jango, o setor militar estava fortemente guarnecido. O general Costa e Silva entregou o comando do 4º

Exército (Recife) ao general Castelo Branco e veio para o Rio de Janeiro. O próprio Castelo Branco, tempos depois, foi transferido também para o Rio de Janeiro, assumindo o comando do Estado Maior do Exército (EMEx). Na Marinha, havia o almirante Sílvio Heck, na Aeronáutica, o prestígio do brigadeiro Eduardo Gomes; ao lado deles, o ex-Presidente, marechal Eurico Gaspar Dutra. No setor civil, a presença, em peso, da União Democrática Nacional, mais o apoio de populistas e integralistas, representados sobretudo pelo PSP de Ademar de Barros e, no Rio de Janeiro, o coração do movimento

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era governador Carlos Lacerda, com todo poder de fogo, tanto na imprensa como no governo do Estado da Guanabara. Se você imagina que a capital do Brasil era, de fato, Brasília, esqueça tudo isso. O novo Distrito Federal existia há apenas três anos e o centro do movimento político e militar militar permanecia no Rio de Janeiro. Alí se encontravam os principais ministérios, as repartições públicas, ali se realizavam os conchavos e até o presidente da República podia ser encontrado com mais facilidade no Palácio das Laranjeiras que no Palácio do Planalto. Além do que, constituindo-se no centro nervoso do país, qualquer manifestação popular, pró ou contra, realizada na cidade do Rio, ganhava rapidamente repercussão nacional, servindo de agente multiplicador de novas reações em outras partes do país. Brasília permanecia uma ilha, onde a força mais atuante era ainda o Congresso Nacional, preso alí por sólidas amarras, já que sua sede não podia ser itinerante. Mas as grandes decisões saiam mesmo do Rio de Janeiro e era ali que deveria eclodir o movimento revolucionário, programado inicialmente para meados de abril de 1964.

Os acontecimentos se precipitam O mês de março de 1964 marcou a radicalização das posições de um lado e de outro numa escalada impressionante que fazia prever uma substituição do embate de idéias pelo confronto armado direto. No dia 13, o presidente João Goulart promoveu o Comício das Reformas, em frente à estação da E.F.Central do Brasil, mas em área militar, onde manifestações públicas não são permitidas. Os mais modestos estimaram a presença de 150 mil pessoas, havendo quem garantisse haver na concentração mais de 250 mil pessoas. Na ocasião, assinou um ato determinando a desapropriação de todas as terras às margens de rodovias e açudes, mediante prévia e efetiva indenização. Ou era um ato demagógico, ou então contava com o rompimento institucional, por um golpe de estado, com o que os pagamentos seriam feitos em papéis de dívida pública, pagáveis em 15 ou 20 anos, tal como acontecera com as desapropriações em Cuba. E havia momentos de alucinação, como aquele em que senhoras católicas se ajoelharam diante de um estúdio de TV em São Paulo, com seus terços entre as mãos,

para impedir a entrada de Miguel Arrais, que deveria participar de um debate. Houve também movimentos mais organizados, como as Marchas da Família, com Deus e pela Liberdade, em São Paulo, Santos e, tardiamente, no Rio de Janeiro. Em São Paulo, num dia de semana, que não era feriado, os organizadores conseguiram colocar nas ruas 250 mil pessoas, às três horas da tarde. Fábricas fecharam suas portas e colocaram operários em caminhões e ônibus para levá-los às passeatas. No centro velho de São Paulo, que tem uma população ativa em torno de 2 milhões de pessoas, escritórios e bancos fecharam suas portas, colocando uma multidão nas ruas, sem condição de retornar a suas casas. Uns poucos por convicção, a maioria por curiosidade, acabou se infliltrando na passeata, que ganhou, assim, um reforço considerável de manifestantes. Mas essas manifestações eram mais um trabalho de midia. Na verdade, os acontecimentos que mais pesaram no desenvolvimento do processo foram a revolta dos marinheiros e a reunião dos sargentos no Automóvel Clube fatos que saltavam à vista e não podiam ser ignorados por ninguém. No dia 27 de março, marinheiros liderados por um agente duplo, que ficou sendo conhecido como “cabo” Anselmo, e com a evidente cumplicidade do almirante Aragão, recusaram-se a reassumir seus postos de trabalho. Presos em um quartel do Exército, foram inexplicavelmente liberados, horas depois, e sairam em ruidosa passeada pela cidade do Rio de Janeiro. Três dias após, em 30 de março, o próprio presidente da República, despachando há vários dias do Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, consentiu em comparecer a uma reunião de sargentos realizada no Automóvel Clube e lá discursou, ao lado do “cabo” Anselmo e do Almirante Aragão. Estava quebrada a cadeia de comando, indispensável para a manutenção da ordem e da disciplina militar. Era o próprio chefe supremo das Forças Armadas que se juntava a praças insubmissos, dando-lhes apoio e desmantelando toda a hierarquia das Forças Armadas. Na quebra da autoridade, só restava a opção da força e seu emprego acabaria acontecendo horas depois.

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Voltando a Minas Gerais Deixemos de lado, por um momento, os cabos e soldados rebelados e voltemos a Minas Gerais, onde Mourão Filho encontrava dificuldades em articular seu plano de ação revolucionária a que deu o nome de “Operação Popeye”, talvez em lembrança ao cachimbo que sempre levava consigo. Em Juiz de Fora, nem tudo saiu como esperava, pois seus comandados imediatos, em que pese o respeito à sua autoridade, recusavam-se a participar de qualquer movimento conspiratório, assegurando que só pegariam em armas se houvesse, em efetivo, um golpe do presidente da República contra as instituições. Antes disso, não. Nessa situação, Mourão passou a catequizar a jovem oficialidade, contando com seu comando para, no momento oportuno, tirar os soldados dos quartéis para marchar sobre o Rio de Janeiro. Nesse propósito, todavia, era contestado veementemente pelo general Luís Carlos Guedes, comandante da Divisão de Infantaria sediada em Belo Horizonte, e pelo governador Magalhães Pinto, que não acreditavam em uma revolução desse porte feita com “meninos recrutas” comandados por jovens oficiais. Mas, no momento exato, conseguiu o apoio do marechal Odilio Denys, que se deslocou para Juiz de Fora, a fim de dar-lhe apoio de retaguarda. O motivo é simples: Na ação revolucionária, Mourão, general de Divisão (3 estrelas), não seria acatado pelos generais de Exército (4 estrelas). Sendo Denys um marechal, o comando geral ficaria em suas mãos, enquanto Mourão, supostamente sob suas ordens, colocaria as tropas a caminho do Rio de Janeiro. Mas o Manifesto preparado por Magalhães Pinto, chefe civil da revolução era uma mistura de água com açucar. O governador deixava a porta aberta para um recuo e, nessas circunstâncias, toda responsabilidade caia sobre o comando militar! O general Mourão lamentou o tempo perdido e estabeleceu novo cronograma, prevendo a saida das tropas em 31 de março às 5 horas da madrugada, com ou sem manifesto, com ou sem o Governador. Não havia mais tempo ou condições para recuar.

Tropas na rua! Juíz de Fora, 31 de março, 5 horas da manhã. O general Olímpio Mourão Filho

desencadeia a “Operação Popeye”, promovendo o levante das tropas da 4ª

Região Militar e da 4ª Divisão de Infantaria, apoiado pelo entusiasmo da jovem oficialidade e dos “meninos recrutas”, submetidos que foram a um mês de rigoroso e mortal treinamento. É o momento de provar se aqueles “meninos” com seu entusiasmo teriam condições de superar com sua audácia as limitações de sua inexperiência. À frente das tropas seguia o general Murici. A notícia estourou no Rio de Janeiro e em São Paulo como uma bomba. Ninguém no alto comando queria acreditar. Mas, ao ser confirmada sua veracidade, o general Castelo Branco teria dito: “Agora, ou damos apoio ao Mourão, ou ele estará perdido!” Em São Paulo, o comandante do 2º

Exército, general Amaury Kruel aderiu ao movimento e enviou tropas ao encontro de Mourão. Não foi tão espontâneo quanto possa parecer. Ficou até o último minuto em cima do muro e acabou saltando sobre o cavalo que passou já encilhado, entusiasmado mais pelo apoio que vinha do Rio de Janeiro, do que pela aventura mineira. Do Rio de Janeiro partem, também, tropas do Regimento Sampaio (1ª Regimento de Infantaria), comandadas pelo coronel Raimundo Ferreira de Sousa, supostamente para dar combate aos rebeldes. O coronel Raimundo, entretanto, após um contato telefônico com Juíz de Fora, falando diretamente com o marechal Odílio Denis, adere ao movimento. Juntando seus soldados aos de São Paulo e Minas, passa a integrar as forças rebeldes que entram vitoriosamente na cidade do Rio de Janeiro. O presidente João Goulart viaja para Brasília, daí para Porto Alegre e, por fim, se exila no Uruguai. O Congresso Nacional, declara vago o cargo e empossa como presidente da República, dentro da linha de sucessão, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli. Um Presidente de fantasia, já que todas as decisões políticas estavam sendo tomadas pelo novo comando militar, no Rio de Janeiro. Com efeito, ao chegar ao Rio de Janeiro, comandando as tropas revolucionárias, o general Mourão encontra um esquema previamente montado que torna inútil a sua presença ali. Costa e Silva se fizera ministro da Guerra; Castelo Branco era o nome indicado para assumir a presidência da República, cumpridas as formalidades; o

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general Ururai assumira o comando do 1º

Exército; o general Taurino, a 1ª Região Militar. Os comandantes do movimento no Rio de Janeiro tomavam posse de seus cargos antes mesmo que o Congresso declarasse a vacância do cargo de Presidente e Mazzili tivesse tempo de nomear seu ministério. Isso vai melhor contado no próximo capítulo.

“Tio Sam” na batucada Para finalizar, cabe estabelecer a participação dos Estados Unidos da América, durante o período de conspiração e no momento em que se verificou a eclosão do movimento militar de 1964. Ela aconteceu e recebeu o nome de Operação Brother Sam, representando um apoio importante para que o movimento anti-Jango se desenvolvesse e chegasse a bom termo. No correr dos tempos, os Estados Unidos desenvolveram um estranho conceito de domínio que ficou conhecido como “Doutrina do Destino Manifesto”. Em linhas gerais, essa doutrina desenvolvia a convicção de que Deus entregou aos americanos o dever de zelar pelos destinos do mundo, cabendo-lhes interferir, quando necessário, para garantir a estabilidade das nações. Esse conceito se aplicou particularmente ao continente americano, sobretudo a partir do século 19, com a doutrina Monroe (A América para os americanos), reavivada, de tempos em tempos, com nomes e propósitos diversos, mas sempre dentro do mesmo princípio. Foi o panamericanismo, a política da boa vizinhança, a Aliança para o Progresso, etc. Por outro lado lado, a partir da 2ª Guerra Mundial, os militares brasileiros se afastaram da escola francesa, que treinava nossos soldados, e se aproximaram dos Estados Unidos, junto aos quais deveríamos lutar nos campos da Itália. Com isso, nosso conceito de segurança militar foi adaptado também às doutrinas do National War College, segundo as quais o verdadeiro perigo pode não vir de fora mas se achar instalado dentro do próprio país; os inimigos não são necessáriamente as potências militares estrangeiras, mas podem estar enraizados na própria sociedade civil. Em resumo o verdadeiro perigo à nação brasileira, pode ser o próprio cidadão brasileiro, que passa a ser tratado como inimigo em potencial. Foi dentro desse espírito que os conspiradores anti-Jango, desde o princípio,

aproximaram-se dos Estados Unidos, procurando obter destes a garantia de apoio na luta contra o “perigo interno”. Nesse processo, exerceram papel importante o embaixador dos EUA no Brasil entre 1961 e 1966, professor Lincoln Gordon, e seu assessor, o coronel Vernon Walters. Este último tinha uma proximidade maior com o Brasil, pois, na Segunda Guerra, ainda major, atuou como interprete entre os comandos do 5º Exército e a Força Expedicionária Brasileira, trabalhando ao lado do tenente-coronel Humberto de Alencar Castelo Branco e em permanente contato com o nosso comando militar. Como falava fluentemente o português e tinha um grande relacionamento com os setores civil e militar, Valters era um contato valioso entre a embaixada americana e os conspiradores, levando a vantagem de poder circular com maior liberdade, sem chamar tanto à atenção, o que não aconteceria se as conversações de dessem diretamente com o embaixador. Foi a partir desses contatos, transmitidos fielmente por Lincoln Gordon ao Secretário de Estado americano, Dean Rusk, que surgiu a idéia de se montar a Operação Brother Sam, pela qual os Estados Unidos se comprometiam a dar toda cobertura de retaguarda para evitar a comunização do país. Não se conhece toda extensão do acordo. Oficialmente, a participação dos Estados Unidos se deu apenas com o envio de uma força-tarefa às águas do Atlântico Sul sob o pretexto de garantir a retirada dos 40 mil cidadãos americanos residentes no Brasil. A chegada dessa força-tarefa, ainda em águas internacionais, ocorreu em 28 de março, um Sábado de Alelúia, quando ainda se pensava que a revolução só iria eclodir na segunda quinzena de abril. Como os acontecimentos foram precipitados pela ação do general Mourão Filho, liquidando o assunto em dois dias, não é possível avaliar até que ponto os Estados Unidos estariam dispostos a intervir para garantir o sucesso do movimento, se este se prolongasse por mais tempo.

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* * *Capítulo Trinta-e-cinco

COMO SE FAZ UM PRESIDENTE

A eleição de CasteloBranco

O início da marcha dos soldados mineiros (que formam a Coluna Tiradentes) em direção ao Rio de Janeiro, na madrugada de 31 de março de 1964, apanhou de surpresa todos, tanto nas hostes governistas como no entre os conspiradores, civis e militares, que se preparavam para a derrubada do presidente João Goulart, mas que não esperavam pela antecipação do movimento, feita pelo general Mourão Filho à revelia de todo o comando revolucionário. Os acontecimentos que se seguiram mostraram, entretanto, que as forças anti-Jango estavam melhor preparadas para enfrentar a emergência, dominando de pronto a situação, com o controle dos meios de comunicaçào e de transporte, e cuidando de todas as manobras militares necessárias para a tomada da praça do Rio de Janeiro, onde se achava instalado de fato o governo federal. Por seu lado, o presidente João Goulart confiara demais em sua condição de chefe supremo das Forças Armadas e descuidou de montar um esquema militar de emergência a ser acionado em momento de necessidade, deixando à mostra todo o seu despreparo para enfrentar a rebelião que, se sabia, havia de estourar a qualquer momento. Como complicador, seu ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro achava-se internado num hospital, com seu estado de saúde bastante agravado, sofrendo duas cirurgias seguidas e deixando acéfalo o comando militar do governo. Quando o presidente Goulart decidiu-se a fazer seu ministro o comandante do 1º Exército, general Morais Âncora, a situação já estava totalmente fora de controle. Inclusive o próprio Ancora apenas simulava acatar as ordens do chefe supremo das Forças Armadas. Perdendo o controle da comunicação e do transporte, as forças civís de apoio ao Presidente, vale dizer, as classes trabalhadoras e o movimento estudantil, ficaram impossibilitadas de pôr em execução o plano de greve geral, por não dispor nem

dos serviços telefônicos, nem das estações de radiodifusão, que se achavam já nas mãos dos rebeldes. A greve, pois, anunciada num primeiro momento, teve de ser desativada horas depois, tanto mais que o único setor que chegou a paralisar totalmente foi o de transporte coletivo, impedindo a locomoção de trabalhadores para o centro da cidade. Era como se dessem um tiro no próprio pé. Não surpreende, assim, que o movimento militar tenha rapidamente dominado o Rio de Janeiro, consolidando suas posições com a autonomeação do general Costa e Silva como ministro da Guerra e com a subsequente nomeação de novos comandantes para o 1º Exército e a 1ª Região Militar. Cuidou-se até da criação de um ambiente político, supostamente popular, para a apresentação do nome general Castelo Branco à presidência da República. Agiram, pois, os militares, com competência e profissionalismo, triunfando no campo militar e isolando a sociedade civil o suficiente para evitar que esta lhes arrebatasse, num segundo momento, os louros do sucesso alcançado. O general Juarez Távora, comandante da ala norte-nordeste na revolução de 1930, deixou isso bem claro, na reunião com os governadores fiéis ao movimento: “Em 1930, nós tivemos a cerimônia e o constrangimento em não querer assumir diretamente o governo. Pensávamos em colocar os civis na frente e manobrá-los de perto. Que ilusão, a nossa! Dentro de pouco tempo, nós havíamos sido postos para trás, inteiramente desarticulados, sem poder fazer nada do que planejávamos.” Revolução ou golpe, não houve, em 1964, uma vitória popular. Registrou-se, ao inverso, uma indiscutível conquista militar, em que a força sobrepujou o direito, ficando este último, a partir de então, sujeito a regras casuísticas, transformadas em diplomas plenamente legais, ainda que, muitas vezes, ilegítimos (Veja a cronologia do movimento no final deste capítulo).

A revolução vista de dentro Chovia, chovia muito, no dia 31 de março e nos dias que se seguiram. Eram as “chuvas de março, fechando o verão”. E foi dentro desse ambiente carregado que se desenvolveram as manobras para sustentação e consolidação do movimento militar.

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Ainda no dia 31, atendendo recomendações, o general Artur da Costa e Silva esconde-se em local seguro, mas de fácil comunicação, enquanto o general Humberto de Alencar Castelo Branco prefere dar seu expediente no edifício do ministério do Exército, no gabinete do EMEx, cujo comando lhe pertencia. Comparecer ao trabalho, achava ele, era a melhor maneira de despistar. Lá encontra 50 oficiais-estudantes da ECEME-Escola de Comando do Estado Maior do Exército, que foram mandados pelo comandante Jurandir de Bizarria Mamede para dar-lhe proteção e fazer-lhe a escolta. Em seu gabinete, Castelo mantêm contatos telefônicos com o Congresso Nacional em Brasília, recebe visitas dos generais Emilio Maurel Filho e Ernesto Geisel, do coronel Ariel Pacca da Fonseca e, por fim, do próprio general Costa e Silva, com quem são estabelecidas as bases de comando da revolução. Costa e Silva assumiria “ad-hoc” o Ministério da Guerra e o Comando Geral do movimento; Castelo suspenderia naquele momento suas funções no comando militar e assumiria o comando civil, cuidando tão somente da articulação política. “Parece que estou sendo raptado”, graceja Castelo, no momento em que é escoltado pelos oficiais-alunos da ECEME. Desce pelo elevador, sai do Ministério, vence o bloqueio do Regimento de Reconhecimento Mecanizado que cercava o edifício, e é conduzido à sua casa da rua Nascimento Silva. Após trocar a farda por trajes civis, mais adequados à sua missão política, segue para o apartamento no Edifício Igrejinha, na Avenida Atlântica, onde instala seu “Estado Maior informal”. Lá, se articula com Ademar de Queirós, Ernesto Geisel e Golberi de Couto e Silva, recebendo e despachando mensagens com auxílio dos tenentes-coronéis Murilo Gomes Ferreira, Leônidas Pires Gonçalves e Ivã de Sousa Mendes. Já havia feito uma centena de contatos telefônicos quando, por volta da meia-noite, recebe ligação do comandante do 2º Exército (São Paulo), general Amauri Kruel, informando sua adesão ao movimento e informando que iria colocar suas tropas na rua. Inicia-se a madrugada do dia 1º de abril. Está fechado o esquema. Agora, já com apoio consolidado do Rio de Janeiro, de São

Paulo e de Minas Gerais, seria mais fácil colocar sob controle o 3º Exército (Porto Alegre) e o 4º Exército (Recife), ainda indefinidos. Eram dois pontos críticos: em Recife se achava o governador Arrais e o Rio Grande do Sul era a terra de Jango e Brizola, onde certamente ambos procurariam refúgio, ao se sentirem perdidos. Aliás, a recomendação dada a Kruel, quando este chegou a Resende para encontrar-se com as tropas mineiras, foi para que se deslocasse ao Rio Grande do Sul, a fim de assumir o controle da situação naquele Estado. As notícias eram de que pelo menos Porto Alegre se achava sob o controle dos legalistas e o comandante da 5ª

Zona Aérea, brigadeiro Lavanère-Wanderley, havia sofrido um atentado, felizmente sem maiores conseqüencias para ele, morrendo um dos rebeldes. A situação acha-se sob controle em todos os pontos estratégicos. Dominando a Praia Vermelha e a Urca encontra-se o comandante da ECEME, general Bizarria Mamede; na Academia Militar de Agulhas Negras (Resende) o comandante é o general Emílio Garrastazu Médici; no posto do Castelo, acha-se o general Ademar de Queirós. De seu posto de comando, o general Costa e Silva, agora Comandante Geral do movimento fecha o cerco, enviando generais de sua confiança para assumir os demais comandos no Rio de Janeiro. A certa altura da noite, por razões estratégicas, tanto Costa e Silva como Castelo Branco mudaram, cada um de per si, o local seus postos de comando, auxiliados nessa tarefa pelo general Orlando Geisel, pelos tenentes-coronéis João Batista de Figueiredo e Ivã de Sousa Mendes (que cedeu seu apartamento a Castelo) e pelo major Dickson Melges Grael. Enquanto isso, os legalistas, fiéis a João Goulart, somente haviam conseguido tomar a TV Tupi, na Urca, e não puderam evitar que o Palácio das Laranjeiras, sede do governo federal no Rio de Janeiro, fosse obstruído por caminhões da limpeza pública que o general Salvador Mandim, secretário de Segurança de Lacerda, mandara para bloquear a entrada e saída de pessoas e veículos.

Visão de dentro do palácio Desde o primeiro momento, o presidente João Goulart, sob uma redoma construída com suas próprias ilusões, se achava completamente afastado da realidade. Não

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acreditou quando o senador Juscelino Kubitschek telefonou ao Palácio das Laranjeiras para avisá-lo de que o movimento militar saira para as ruas. Quando encontrou razões para preocupar-se, foi em busca do auxílio de seu ministro da Guerra, convalescendo em leito de hospital, após uma delicada cirurgia. Com efeito, o ministro Jair Dantas Soares, quixotescamente, instalou seu gabinete no próprio hospital, tentando articular a reação, mas seu estado de saúde agravou-se, tendo de sofrer uma segunda operação. Desorientado, Jango nomeou como ministro da Guerra o comandante do 1º

Exército, general Morais Âncora, de cuja fidelidade, a esta altura, já era lícito duvidar. Ao general Luís Tavares da Cunha, comandante da 1ª Divisão de Infantaria, sediada em Niteroi, foi dada a incumbência de barrar o avanço da Coluna Tiradentes que seguia para o Rio de Janeiro, comandada pelo general Murici e, para isso, foram colocados à sua disposição três Regimentos de Infantaria sediados no Rio de Janeiro. Cedo, Tavares da Cunha descobriu que era um comandante sem comandados. O 3º

RI (Regimento Sampaio) já seguira para Resende, sob o pretexto de dar combate aos rebeldes; o 1º e o 2º RIs já haviam aderido ao movimento militar, recebendo de Costa e Silva a incumbência de barrar a entrada das tropas de São Paulo, caso Kruel insistisse em se manter legalista.

Últimas tentativas de reação Na manhã de 1º de abril, Jango se convencera de que já perdera a praça do Rio de Janeiro e, consultando seus três ministros militares (general Morais Âncora, almirante Wilson Fadul e brigadeiro Anísio Botelho), decidiu transferir-se para Brasília, dizendo ao seu secretário de imprensa, Raul Riff: “Vamos. Vou sair daqui. Isto aqui está se transformando em uma armadilha.” Em Brasília, havia ainda alguns focos de resistência. No Palácio do Planalto encontravam-se, pelo menos, Darci Ribeiro, chefe da Casa Civil e Waldir Pires, procurador geral da República. No comando militar permanecia o general Nicolau Fico, sustentando a posição, mas cuja fidelidade estava sendo posta à prova, por suas ligações com o general Kruel que, ao final da noite de 31, aderira ao movimento. Ainda assim, e apesar da interdição do aeroporto em Brasilia, Jango chegou sem

maiores dificuldades, sendo recebido pelo próprio general Fico e seguindo para a granja do Torto, onde se reuniu-se com os que ainda lhe eram fiéis: o próprio general Fico, mais Waldir Pires, Doutel de Andrade, Almino Afonso, Tancredo Neves, o general Assis Brasil e outros auxiliares. Conta Hélio Silva: “Jango estava cansado. Dizia que a revolução não era contra ele, mas contra as reformas. Se renunciasse a elas, continuaria. Se quisesse restringir as prerrogativas dos trabalhadores, ficaria. A lei que regulamentou a remessa de lucros para o exterior estava na base do movimento (...) Comentou que a CIA [órgão de inteligência dos Estados Unidos] estava inspirando tudo.” Após uma análise da situação, decidiu-se que Jango deveria seguir para Porto Alegre, onde ainda persistia resistência ao golpe. Com ele iriam o general Assis Brasil e alguns de seus assessores. Mas, no aeroporto, o Coronado da Varig, requisitado pela presidência da República, apresentou falha mecânica e não conseguiu levantar vôo. Conseguiram um avião de pequeno porte, no qual seguiram João Goulart e o general Assis Brasil. Ficaram em Brasília Darci Ribeiro, Valdir Pires e o general Fico, além do deputado Tancredo Neves, que ia comandar a reação no Congresso. Encerrando este tópico: Em Porto Alegre, João Goulart e Leonel Brizola tiveram um forte desentendimento. Brizola queria levantar os quartéis e o povo para uma contra-revolução; Jango tencionava encerrar o assunto, pedindo asilo ao Uruguai, o que acabou acontecendo. Nasceu daí uma inimizade entre os dois que perdurou por doze anos. Só vieram a se encontrar novamente em 1976, pouco antes da morte de Jango.

Embate no Congresso Nacional No Congresso, as forças se dividem, fazendo prever um tumulto na sessão convocada para o dia 2 de abril, que se estendeu até as 3 horas da madrugada do dia seguinte. A pedido de Moura Andrade, o deputado Adauto Lúcio Cardoso forma um “pelotão de choque”, postando em lugares estratégicos os parlamentares mais corpulentos e bem alimentados, instituidos naquele momento em “leões de chácara” do parlamento. Os tumultos realmente acontecem, levando até, em certo momento, à suspensão dos trabalhos.

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Apesar de ter em mãos um ofício de Darci Ribeiro, chefe da Casa Civil da Presidência, comunicando que o Presidente constitucional seguira para Porto Alegre a fim de comandar a resistência, o presidente do Congresso, Moura Andrade, prefere considerá-lo em lugar incerto e não sabido, objetivando uma solução definitiva à questão, o que fez subir ainda mais a temperatura. É isso que registram os anais do Congresso: Moura Andrade: “O senhor presidente da República deixou a sede do governo. (Protestos. Palmas prolongadas.) Deixou a nação acéfala numa hora gravíssima da vida brasileira, em que é mister que o chefe de Estado permaneça à frente do Governo. (Apoiados. Muito bem.) O senhor presidente da República abandonou o Governo. (Aplausos calorosos. Tumulto. Soam insistentemente as campainhas). (...) Recai sobre a mesa a responsabilidade pela sorte da população do Brasil em peso. “Assim sendo, declaro vaga a presidência da República. (Palmas prolongadas. Muito bem. Protestos). E, nos termos do artigo 79 da Constituição Federal, invisto no cargo o presidente da Câmara dos Deputados, sr. Ranieri Mazzilli. (Palmas prolongadas. Muito bem. Protestos.) Está encerrada a sessão.” Isto posto, Auro Soares, presidente do Congresso e Ranieri Mazzili, presidente da Câmara, juntam-se ao ministro Álvaro Ribeiro da Costa, presidente do Supremo Tribunal Federal. Os três saem pelos fundos do edifício e seguem para o 3º andar do Palácio do Planalto, onde Mazzili toma posse de fato na presidência da República. São 3h45m da madrugada de 2 de abril. Ranieri Mazzili toma posse efetiva da presidência da República, exercendo, como da vez anterior, o nada honroso papel de “vaquinha de presépio”. Quando da renúncia de Jânio Quadros, encontra uma junta, formada pelos três ministros militares, que vetavam a posse de João Goulart; agora, tem de aceitar uma situação inusitada: o comando do país se encontra no Rio de Janeiro, dividido entre Costa e Silva, autonomeado ministro da Guerra, e Castelo Branco, candidato certo à Presidência, com os poderes do comando civil. O ministério de Mazzili teve de ser escolhido no Rio de Janeiro e submetido à apreciação do alto comando revolucionário, ao qual pertencia a última palavra.

Aliás, quando alguém levou a Costa e Silva um boato mal-intencionado de que Mazzili teria nomeado Israel Pinheiro [homem forte de JK] para chefe de sua Casa Civil, o general foi categórico: “Se nomeou, vai ter que desnomeá-lo!”

Povo nas ruas No Rio de Janeiro, os lacerdistas e os partidários do movimento entram no clima do “oba-oba”, acreditando que os problemas do país estavam definitivamente resolvidos (um ano após o próprio Lacerda estava desencantado, mas neste momento, o clima é esse). As senhoras católicas, a exemplo de São Paulo e Santos, levam às ruas sua Marcha com Deus, pela Família e pela Liberdade, cujos manifestantes se deslocaram da avenida Presidente Vargas até a Cinelândia. Na “marcha”, uma figura de especial destaque: D. Antonieta Castelo Branco Diniz, a dona Nieta, filha mais velha do general Castelo Branco. Entusiasmado, também, com o sucesso inesperado do movimento, o Cardeal do Rio de Janeiro, D. Jaime de Barros Câmara (sucessor de D. Helder, que havia sido transferido, tempos atrás para Olinda), defende punições exemplares, buscando uma frase sepultada com os tempos da Inquisição: “Punir os que erram é uma obra de misericórdia”. Contagiando-se com o clima, uma parte da população vai às ruas, disposta à revanche. O jornal Última Hora, partidário de Goulart é invadido e empastelado, sendo queimadas oito viaturas de reportagem e distribuição. Por todos os lados, muitas manifestações, mas poucos confrontos, já que a polícia civil, misturada aos manifestantes revolucionários, tornavam difícil, quando não impossível, qualquer movimento de protesto. As notícias sobre a situação nas ruas eram desencontradas. Vera Gertel conta: “Resolvemos ir até a Cinelândia, a pé, pois não havia transporte algum. Tudo em greve. Quando estávamos chegando, Isolda, eu e Regina, encontramos com um pessoal que vinha de lá e nos avisou que não fôssemos: era tempo perdido, estava havendo um tiroteio, massacre na Cinelândia. Pedimos uma carona, sentamos no banco de trás e, na frente, vinham dois oficiais da Marinha, um deles tinha nas mãos um arpão de pesca submarina. Eles riam

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muito, porque, ao mostrar o arpão para as pessoas, elas saiam correndo. “Ao passarmos pelo Aterro, vimos a UNE em chamas. Eles pararam o carro para observar o espetáculo. Isolda caiu em prantos ao ver a cena. E eu, beliscando-a, mandava-a calar a boca e ficar quieta. (...) Ao passarmos pelo Tunel Novo, aquelas buzinas todas festejavam o golpe. O clima era de festa. E o oficial de Marinha que segurava o arpão gritava: ‘Agora sim, o dólar vai baixar!”

Na UNE, a situação é crítica Na UNE, a situação é crítica. José Serra, eleito presidente após o término do mandato de Aldo Arantes, refugiou-se com outro diretor na casa de um amigo no “sertão carioca”, onde, se imaginava, não seriam encontrados. À medida que vão chegando as notícias sobre a vitória do movimento, os estudantes, em sua maioria, se retiram, ficando apenas um punhado de jovens, dispostos a testar sua própria coragem e resistência. Não imaginavam o estado de anarquia em que se achavam as ruas, com blocos de vândalos praticando atos de violência contra os que, em passado recente, ousaram apoiar o governo João Goulart. Carlos Veneza, participante do grupo teatral, descreve o momento: “No dia 1º de abril eu passei pela Cinelândia e notei um movimento estranhíssimo de militares na janela do Clube Militar. Peguei uma carona e fui avisar o Vianinha de que a manifestação que nós havíamos marcado, também para a Cinelândia, onde faríamos um teatro de rua em defesa do governo João Goulart, não poderia mais acontecer. Ao chegar à UNE, nossos colegas já haviam feito uma barricada com móveis e cadeiras, em frente ao prédio. E lá ficamos todos nós sitiados, esperando os acontecimentos. “Aos poucos, foram chegando carros e mais carros em frente à UNE, com rapazes da então classe média, comendo cachorro-quente com Coca-Cola e dizendo que ‘os comunistas foram derrotados, que Jango já havia fugido.’ (...) Aquelas pessoas buzinavam, jogavam objetos que podiam provocar incêndios na barricada. Vianinha disse: ‘Vamos procurar sair daqui o mais rápido possível porque eles vão invadir a UNE.’ “Saimos pelos fundos, pelo quintal e, de um dos edifícios ao lado as pessoas

gritavam: ‘Foge, que eu quero ver, comunista!’, enquanto, do outro lado, outras pessoas diziam: ‘Não foge, não, menino, nós estamos do lado de vocês. Vocês têm toda razão!’. De certa maneira, isso é a síntese desse maniqueismo em que se transformou a história política deste país. “E nós, enquanto víamos o prédio ser tomado, pulamos o muro dos fundos e saímos numa tinturaria. Pegamos um taxi, que deu volta pelo Aterro e, em lágrimas, vimos nosso prédio pegando fogo – eu, o Vianinha, o João das Neves e acho que o Milani – em meio a um verdadeiro piquenique da classe bem alimentada, dos jovens rapazes da classe média que comemoravam, entre urras, o incêndio do Centro Popular de Teatro e da União Nacional de Estudantes. Dali, fomos para a casa de Vera Gertel. (...) “Para espanto nosso, no dia seguinte, um dos renomados matutinos brasileiros reproduzia, em primeira página, uma foto com vários rifles simulados, de madeira, que iam ser usados na peça “Ripió Lacraia”. A legenda dizia que ‘um farto material bélico havia sido encontrado nos salões da UNE.” A sede da UNE, ou o que restou dela depois do incêndio, constituiu-se num símbolo da resistência estudantil, incomodando o novo sistema instalado no país. Anos depois, quando os estudantes haviam conseguido recursos para sua reforma, setores do governo determinaram sua demolição, ignorando até uma liminar conseguida na Justiça para evitar a destruição. Estando trancados os portões o juíz teve de escalar o muro para, de arma em punho, fazer cumprir a determinação judicial. Depois, cassada a liminar, a demolição prosseguiu até extingüir, para todo sempre, qualquer lembrança dos dias gloriosos vividos por aquela juventude, cheia de idealismo, embora não necessariamente certa em seus propósitos.

Preparando o caminho de Castelo Embora o general Costa e Silva usasse a artimanha do despistamento, dizendo que, pessoalmente, preferia um candidato civil (chegou a ser sugerido o nome de Rafael de Almeida Magalhães), em realidade, todas as ações políticas estavam sendo endereçadas para o lançamento oficial do nome do general Humberto de Alencar Castelo Branco. No dia 4 de abril, reuniam-se no Palácio Guanabara os sete governadores mais achegados ao movimento revolucionário:

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Carlos Lacerda (GB), Ildo Meneghetti (RS), Ademar de Barros (SP), Magalhães Pinto (MG), Fernando Costa (MT), Nei Braga (PR) e Mauro Borges (GO). [A esse “Clube dos Sete” logo se acrescentaria um oitavo nome, o de Virgílio Távora, que assumiu o poder no Ceará, após a prisão do governador Miguel Arrais. Presentes estavam, também, no salão nobre do palácio, vários políticos de Brasília e do Rio de Janeiro, entre eles o deputado Afrânio de Oliveira, da ala janista. Em certo momento chega, aparentemente sem ser convidado, o general Augusto Cesar Moniz de Aragão, da ala mais radical do Clube Militar, que faz um veemente discurso, indicando o nome de Castelo Branco. Ato contínuo, o deputado Afrânio de Oliveira, remanescente do “janismo”, apoia o general e termina seu discurso com as palavras: “Se o Congresso não se mostrar à altura deste momento histórico que vivemos, serei o primeiro a pedir da tribuna da Câmara o fechamento desse Congresso.” Carlos Lacerda, então, libera o salão para a imprensa, rádio e TV, fazendo seu pronunciamento de que os governadores, em peso, apoiam o nome de Castelo Branco para a presidência da República. Castelo, em casa, assiste o pronunciamento pela televisão. Ao seu lado se encontra o coronel Vernon Walters, adido da Embaixada Americana no Brasil. Eram 11 horas da noite quando os governadores foram ao edifício do Ministério da Guerra para levar a decisão dos governadores a favor de Castelo. Não foram felizes nesse encontro. Costa e Silva aproveitou o momento para tentar “enquadrar” alguns dos governadores ao sistema militar que se instalava. Repreendeu Magalhães Pinto, dizendo-lhe que a atitude de Minas no movimento tinha um caráter nitidamente separatista, que não mais seria tolerado. Quando Magalhães procurou notícias sobre o governador sergipano Seixas Doria, Costa e Silva lhe respondeu: “Seixas Dória está na prisão. E muitos outros serão presos.” Mas o momento de maior tensão foi quando Costa e Silva insinuou a Carlos Lacerda que não deveria falar antes que ele próprio lhe desse permissão. Lacerda destravou a língua e, lembrando acontecimentos anteriores, disparou contra o general:

“Não sei onde o senhor estava em 1945. Não sei onde o senhor estava em 1954. Mas sei onde o senhor estava no dia 11 de novembro [de 1955]. O senhor estava ao lado do general Lott [que derrubou dois Presidentes em 10 dias]. Às 4 horas da manhã, ao encerrar-se a reunião, Lacerda tentou recompor-se com o general, mas este virou-lhe as costas, deixando-o a falar sozinho. Na segunda reunião dos governadores, ocorrida no dia seguinte, Lacerda não compareceu, preferindo enviar, em seu lugar, o udenista baiano Juraci Magalhães. Lacerda já estava em observação e, tempos depois, quando juntou-se a JK e Jango para formar uma Frente Ampla, teve seus direitos políticos suspensos, sendo afastado da política e impedido de exercer sua profissão de jornalista.

Concentração pró Castelo A partir do ato dos governadores, telegramas de apoio a Castelo chegam de todo o Brasil. O poeta e político Augusto Frederico Schmidt (1906-1965) dá uma entrevista à imprensa defendendo a candidatura de Castelo. E a professora Sandra Cavalcanti, secretária de Serviços Sociais da Guanabara reune cerca de mil senhoras em frente à casa de Castelo Branco para uma manifestação de apoio, na manhã de domingo, dia 5 de abril. Para garantir o sucesso, não descuida em acertar a presença do grupo empresarial de Roberto Marinho: a TV, a rádio e o jornal O Globo. O radialista Cesar de Alencar que, um dia, ficaria tristemente famoso por sua ação delatória, faz a transmissão do acontecimento ao vivo. Castelo Branco, da janela, assiste a tudo, na companhia do marechal Mascarenhas de Morais. Mascarenhas é um nome de peso. Foi o comandante-em-chefe da Força Expedicionária Brasileira, o único marechal brasileiro com legitimidade para usar esse título. Está ali para endossar o nome de Castelo que, como tenente-coronel, fez parte de seu estado-maior na FEB. O coronel Vernon Walters, que não tinha sido avisado previamente, se dirigia para a casa de Castelo, quando viu a concentração e voltou. Não ficaria bem, naquele momento, a presença do adido da Embaixada americana, mesmo havendo ele atuado nos campos da Itália ao lado de Castelo e Mascarenhas.

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Ao final da manifestação Castelo Branco discursou, agradecendo e redirecionando os aplausos recebidos “a seus camaradas das Forças Armadas, aos governadores destemidos, a homens que tinham sabido enfrentar o ‘governo intolerante’, e à mulher brasileira que, além de mostrar sua grandeza de coração, tinha também revelado sua grande fibra de combatente”.

“Três vezes me negarás” O apoio representado por aquela manifestação é o último ato para mostrar ao mundo que os militares não estavam promovendo um golpe de estado sendo a candidatura militar um produto da vontade popular. A partir desse momento, Castelo Branco se sentia livre para aceitar a indicação de seu nome e o fez na tarde do mesmo dia, quando recebeu a visita dos governadores e de políticos. Essa eleição, embora indireta, se faria nos termos da Constituição vigente (a de 1946) e se destinava a completar o mandato de João Goulart, que iria até 31 de janeiro de 1966. Então, o governador de São Paulo, candidato virtual à Presidência nas eleições de 1955, pergunta a Castelo: “Queremos saber se, assumindo a presidência da República, o senhor procederá como um magistrado nas eleições de 1965.” Castelo responde, contrariado, dizendo que seu passado era a melhor garantia que lhe poderia dar. No dia seguinte, já no edifício do ministério da Guerra, quem lhe faz a mesma pergunta é Francisco Negrão de Lima, elemento de ligação entre o movimento militar e JK, também, candidato à Presidência em 1965. Juscelino se oferecia para trabalhar junto aos parlamentares do PSD para descarregar a votação no nome de Castelo Branco, mas queria ter uma garantia de que as regras constitucionais continuariam sendo respeitadas em seu governo. Castelo mandou o seguinte recado: “Eles [os militares] não vão estabelecer uma ditadura.” A resposta não satisfez inteiramente o PSD e, desta vez, coube a Amaral Peixoto, genro do falecido presidente Getúlio Vargas, fazer os contatos com Castelo Branco, em busca de uma garantia de que as regras democráticas seriam respeitadas. Pela terceira vez, Castelo fez sua profissão de fé democrática: “Se eu for Presidente, a eleição de 1965 será realizada

de acordo com o calendário eleitoral e, em seguida, tomarão posse os eleitos”. Como se sabe, nada disso aconteceu. Em 1965 o mandato de Castelo foi prorrogado e, em 1968 o nome de Costa e Silva foi levado ao Congresso para ratificação como seu sucessor. Ficava estabelecida uma dinastia militar dentro da qual a função do Congresso era apenas a de confirmar os nomes dos príncipes-eleitos.

Nasce o Ato Institucional nº 1 No princípio, era apenas um Ato Adicional, que seria votado pelo Congresso, estabelecendo as regras da transição, após a vitória do movimento. Fora redigido pelo jurista Carlos Medeiros Silva, especializado em direito constitucional, e entregue ao general Castelo Branco, que o encaminhou ao general Costa e Silva, que endereçou o documento ao presidente do Congresso, senador Auro Soares de Moura Andrade, que reuniu-se, no dia 6, com o presidente-interino, Ranieri Mazzili e com o ministro da Justiça Gama e Silva (nomeado pelo general Costa e Silva). Juntos, examinaram não apenas o conteúdo do documento como também sua viabilidade de aprovação no Congresso. No dia seguinte, Mazzili viaja para o Rio de Janeiro, onde encontra a cúpula do Parlamento e combina com os parlamentares a tramitação do Ato no Congresso. Os parlamentares consultados informam que, com muita sorte, isso demandaria pelo menos uma semana. Uma semana é muito tempo. Bilac Pinto (UDN) entra em contato com jurista Carlos Medeiros e pede-lhe que solicite a ajuda de Francisco Campos para encontrar uma solução mais rápida. Francisco Campos, apelidado de “Chico Ciência”, foi o autor da Constituição do Estado Novo que, em 1937, permitiu o fechamento do Congresso, entregando todos os poderes ao ditador Getúlio Vargas. Era o homem certo para aquele momento. Reunindo-se os dois juristas com Costa e Silva, Francisco Campos insinuou que, se tinham pressa, deviam transformar o documento num Ato Institucional, a ser outorgado pelo próprio comando revolucionário, recebendo sinal verde para que ambos refizessem o texto. Conta o “brasilianista” John Foster Dulles em seu livro “Castelo Branco – O Caminho para a Presidência”:

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“Francisco Campos arregaçou as mangas e transformou o preâmbulo convencional de Medeiros em um retumbante prólogo, ou mensagem à nação, proclamando o direito e a responsabilidade da revolução vitoriosa, representada pelos Comandantes-em-Chefe dos três ramos das Forças Armadas, de editar o Ato Institucional.” Basicamente, o Ato (que não tinha número, pois o ato que institucionaliza uma revolução deve ser primeiro e único) dava ao comando revolucionário e, depois, ao presidente eleito, o direito de cassar mandatos federais, estaduais e municipais, suspender direitos políticos, “excluída a apreciação judicial dessas decisões”. Antecipava o prazo para a eleição do novo Presidente e de seu Vice, que deveria ser feita pelo Congresso dois dias após a publicação do Ato Institucional. Outra inovação importante era a de que o presidente da República poderia sancionar qualquer lei que, enviada ao Congresso, não fosse aprovada em trinta dias. Surgia o recurso ao “decurso de prazo”, que inspirou em seguida os famosos decretos-leis. Dava também poderes ao Presidente para apresentar ao Congresso emendas à Constituição que poderiam ser aprovadas sem quorum especial, ou seja, por maioria simples dos congressistas presentes à sessão. O Ato Institucional deveria vigorar até 31 de janeiro de 1966, data prevista para posse do novo Presidente constitucional a ser eleito em 3 de outubro de 1955 (Só que em 1955 acabou não havendo eleição, porque o mandato de Castelo Branco foi prorrogado). Em 9 de abril, em cerimônia especial, o documento foi assinado pela junta militar revolucionária, composta pelo general Costa e Silva, ministro da Guerra, pelo almirante Augusto Rademaker, ministro da Marinha e pelo brigadeiro Correia de Melo, ministro da Aeronáutica, na presença de Castelo Branco e dos mais importantes nomes do comando militar nas três Armas. Logo em seguida, foi anunciada a suspensão de direitos políticos de João Goulart, Jânio Quadros e Luís Carlos Prestes. No dia seguinte foram cassados os mandatos de deputados e senadores da Frente Parlamentar Nacionalista, suspensos os direitos políticos de dezenas de pessoas de destaque e, pouco depois, transferidos para a reserva 122 oficiais das três Armas.

Era a “guilhotina” que começava a funcionar e que iria trabalhar sem cessar dali em diante.

Brasil tem seu novo Presidente Na tarde de sábado, 11 de abril de 1964, reune-se o Congresso Nacional para a eleição do novo presidente da República. Os parlamentares comparecem em peso. Os deputados e senadores que tiveram seus mandatos preservados estavam lá; e, para substituir os cassados, compareceram os suplentes que conseguiram chegar a tempo em Brasilia. Às cinco horas da tarde, com a transmissão pelo rádio (a TV ainda não tinha condições técnicas de formar rede nacional) é iniciada a votação. Castelo recebe 361 votos, quase metade deles do PSD, conseguidos pela ação de JK, que mais tarde viria a ser cassado pelo mesmo regime que ajudou a formar. Registram-se 3 votos para o general Juarez Távora e outros 2 para o o general Eurico Gaspar Dutra. Para vice-Presidente o escolhido é José Maria Alkmin, do PSD de JK, mas que também fora secretário do governo de Magalhães Pinto (UDN). Trata-se, pois, de um elo de ligação entre as duas correntes divergentes e, ao mesmo tempo, sua presença virtual no governo dá uma aparência de participação civil, importante para manter a boa imagem do país no exterior. Auro Soares retirou sua candidatura a Vice, o que garantiu a Alkmin 256 votos, sendo o restante computado em abstenções. Na casa de Castelo, “invadida pelas visitas”, já se achava todo aparato de TV montado pela Agência Nacional, permitindo que o Presidente eleito fizesse, de imediato, um discurso, agradecendo os apoios recebidos e ressaltando que assumira essa tão grande responsabilidade “estimulado pelo calor da opinião pública, revelado através de autênticas manifestações populares”. É um cuidado quase obcessivo para convencer a todos que se tratava de uma revolução popular, e não um golpe de estado militar. Uma vez mais, em seu discurso, Castelo garantiu o cumprimento do calendário eleitoral, solicitando o apoio de todos para “entregar, ao iniciar-se o ano de 1966, ao meu sucessor, legitimamente eleito pelo povo em eleições livres, uma nação coesa, ainda mais confiante em seu futuro, liberta dos temores e dos angustiosos problemas do momento atual”.

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(Fim de ato. Fecham-se, rápido, as cortinas.)

CRONOLOGIA DO MOVIMENTO(FONTE: Álbum da Revolução de 64 – Ed.

Fac.Integr.Estácio de Sá)

31 de março de 1964 – Terça-Feira. Às 5 horas da manhã, o general Olímpio

Mourão Filho telefona de Juíz de Fora para o Rio e São Paulo, comunicando a vários militares de sua confiança a decisão de marchar sobre o Rio.

Às 7 horas, o general Jaime Portela liga para o general Costa e Silva comunicando que “Minas vem aí” e insistindo para que o futuro ministro da Guerra deixe sua casa e se hospede com amigos, no que é atendido.

Às 9 horas, o general Castelo Branco tenta, em vão, conter a marcha de Mourão Filho, ligando para José Luís Magalhães Lins, sobrinho do governador de Minas Gerais [Magalhães Pinto], mas é tarde demais. Castelo diz, então, que a alternativa agora é “apoiar Mourão ou deixar que ele seja esmagado”.

Às 10 horas, o presidente Goulart recebe telefonema de JK avisando da decisão do general Mourão, que lhe foi comunicada pelo deputado José Maria Alkmin. João Goulart, aparentemente, não dá importância à informação.

Às 10h15m, o general Castelo Branco vai para o seu gabinete no Estado Maior do Exército (EMEx), situado no edifício do ministério da Guerra, onde trabalhará por toda a tarde.

Às 11 horas, uma reunião do presidente Goulart com o chefe da Casa Militar, general Assis Brasil, e com os ministros da Marinha e Aeronáutica (o da Guerra estava recém-operado), decide a prisão do general Castelo Branco pelo comandante do 1º Exército, general Morais Âncora, que resolve retardar o cumprimento da ordem.

Às 12 horas, de comum acordo com Costa e Silva e Castelo, o general Cordeiro de Faria voa para o Paraná para controlar possível reação no sul.

Às 14 horas, Castelo Branco recebe ligação dizendo “que pode ser preso a qualquer momento”. Mais tarde, recebe a visita de Costa e Silva.

Às 17 horas, as rádios de Minas Gerais captam a voz do general Olímpio Mourão Filho diretamente de Juíz de Fora, lançando manifesto à nação e convocando “todos os brasileiros a restaurar os domínios da Constituição” e acusando o presidente Goulart de se tornar, ele mesmo, chefe do primeiro governo comunista.

Às 17h50m, o general Castelo Branco assume, finalmente, o comando das articulações e segue para o “Estado mais informal”, como chama o apartamento do edifício Igrejinha, em Copacabana. Ali permanece toda a noite chuvosa, com três outros oficiais: Ademar de Queirós, Ernesto Geisel e Golberi do Couto e Silva.

Perto da meia-noite, o comandante do 2º

Exército [São Paulo], general Amaury Kruel comunica sua adesão ao movimento e determina a marcha de parte de suas tropas para o Rio Grande do Sul.

O governador Carlos Lacerda articula-se com civis e militares armados e permanece no Palácio Guanabara, disposto a resistir às ameaças de invasão atribuídas ao almirante Cândido Aragão, comandante dos Fuzileiros Navais.

1º de abril de 1964 – Quarta-Feira. 01.04.64 – As sedes dos jornais O Globo

e Tribuna de Imprensa [anti-Jango] são invadidas por fuzileiros navais, comandados por um capitão-tenente da Marinha. A missão dos militares é impedir que os jornais circulem.

O 2º Exército [São Paulo] divulga manifesto sob o título “Às Forças Armadas e à Nação”, em que se diz “coeso e disciplinado, acabando de assumir atitude de grave responsabilidade, com o objetivo de salvar a pátria em perigo”.

O governador de São Paulo, Ademar de Barros, lança manifesto sob o título “Brasileiros de São Paulo” e diz que precisamos por um paradeiro final à bolchevização do país”.

O presidente do Senado, Auro Soares de Moura Andrade, lança nota oficial dizendo: “Mais uma vez, sentindo periclitar a ordem constitucional, venho falar à nação. É preciso que os

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democratas, em todos os quadrantes do país, tomem consciência da extrema gravidade do momento [as emissoras de Brasília estavam ocupadas e a nota não chegou a ser irradiada].

Duzentos oficiais da Escola Superior de Guerra (ESG) e do Estado Maior das Forças Armadas (EMFA), comandados pelo coronel Cesar Montagna, tomam o Forte de Copacabana, numa operação de 30 minutos, dominando a artilharia da costa. No golpe de mão, um sargento e um major são feridos.

O ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, recém-operado no Hospital dos Servidores, reassume seu posto, auxiliado pelo general Genaro Bomtempo. Com a deflagração do movimento revolucionário, dirige comunicados aos comandos do 3º e 4º

Exércitos [Porto Alegre e Recife, respectivamente], ordenando “prontidão rigorosa e atenção à onda de boatos”.

O gabinete do ministro da Guerra é instalado na ante-sala do HSE e, à noite, o general Jair Dantas Ribeiro divulga nota oficial: “...por determinação do sr. Presidente da República, assumo o comando das ações legais contra a subversão em Minas, comandada pelos generais Olímpio Mourão Filho e Carlos Luís Guedes, que exonero das funções que a nação lhes confiou. Haveremos de cumprir nossa missão, haja o que houver, custe o que custar”. O esforço para enfrentar a crise parece demasiado, o Ministro tem uma recaída e é operado novamente, deixando o cargo. Para substitui-lo é designado o general Morais Âncora [comandante do 1º Exército-Rio de Janeiro].

Dez soldados do Corpo de Fuzileiros Navais, por determinação do CONTEL [atual DENTEL] invadem a Radio Jornal do Brasil e deixam-na fora do ar por uma hora, em represália ao noticiário da emissora, que divulgara estar o general Castelo Branco, do EMEx reunido no QG do ministério da Guerra com outras altas patentes militares.

Sem notícias oficiais do paradeiro do presidente Goulart e horas depois de o general André Fernandes [ex-chefe de gabinete do ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro] informar sobre a cessação das hostilidades no país, o

senador Auro Soares de Moura Andrade empossa o presidente da Câmara Federal, Ranieri Mazzili, na presidência da República. [Na verdade, em Brasília, todos sabiam que João Goulart se encontrava em Porto Alegre e, portanto, dentro do país].

O edifício-sede da UNE [União Nacional de Estudantes], no Rio, é incendiado por exaltados grupos de estudantes e populares.

Depredada a redação do jornal Última Hora e 8 viaturas do jornal são incendiadas por populares.

O EMEx [Estado Maior do Exército] divulga nota e diz que o novo comandante do Exército Nacional será o general Arthur da Costa e Silva, o mais velho oficial do alto comando.

Fonte extra-oficial de Brasília anuncia que o presidente Goulart deixara a capital a bordo de um AVRO “com destino ignorado, provavelmente o Rio Grande do Sul”.

Em reunião no Clube Naval, o Almirante Augusto do Amaral Peixoto avisa que proporá a expulsão do ministro da Justiça, Abelardo Jurema, dos quadros do PSD, face às ofensas deste à Marinha.

O CGT, reunido na Federação Nacional dos Estivadores, tem seu encontro interrompido e nove líderes são presos. O deputado Hércules Correa pede auxílio de tropas da Marinha e da Aeronáutica, para que estas garantam a liberdade dos detidos.

Grupo de 500 manifestantes, na Cinelândia, ouvem notícias sobre os acontecimentos no país, na transmissão da Cadeia da Legalidade. Abordados por militares, que trazem do Clube Militar informações impressas sobre a versão oficial dos acontecimentos, reagem, gerando conflito, com uma vítima fatal.

De Minas Gerais, chegam pronunciamentos do governador Magalhães Pinto e do general Olímpio Mourão Filho, dando versões pessoais diferentes das razões de sua respectiva participação no movimento revolucionário.

Rendição das guarnições militares que guardam o Palácio das Laranjeiras [sede da presidência da República] diminui a forte tensão reinante no Rio.

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O governador Carlos Lacerda faz pronunciamento à rádio Globo e diz esperar que o patriotismo do Exército e a exclusão dos “aventureiros, oportunistas, demagogos, desonestos e conformistas” sejam os melhores remédios para o país.

Choques no Recife resultam em duas mortes e dezenas de presos e feridos.

De Brasília, vem a informação extra-oficial de que, antes de partir para o sul, o presidente Goulart reunira-se com Tancredo Neves, Doutel de Andrade e Artur Virgílio, propondo a resistência “até o sacrifício pessoal”.

Durante comício no Rio Grande do Sul, o ex-governador Leonel Brizola reitera que a situação “golpista” está sob controle e que o governador da Guanabara fora preso.

No Rio, no Palácio Guanabara barricado, o governador Lacerda faz um contato com os governadores de Goiás e do Paraná [Mauro Borges e Nei Braga, respectivamente], dando ênfase à necessidade de imediata eleição de um Presidente “que assegure condições para manter o processo revolucionário”.

No apartamento dos chineses [que vieram ao Brasil como agentes da subversão], no Rio de Janeiro, são apreendidos 110 milhões de cruzeiros, farto material de propaganda marxista e uma lista de extermínio encabeçada pelo governador Carlos Lacerda e pelos generais Castelo Branco e Amauri Kruel.

Oficiais da Força Aérea Brasileira e civis armados, e dispositivos militares de foguetes montados sobre jipes, chegam ao Palácio Guanabara, cujas ruas de acesso mais próximas são barricadas por caminhões de coleta da limpeza urbana.

Vinte e uma entidades sindicais de São Paulo lançam manifesto tomando posições em favor do movimento militar e das Forças Armadas.

Greves na Central do Brasil e na Leopoldina tumultuam o centro da cidade, onde milhares de pessoas se deslocam, a pé.

Tropas do Exército ocupam Faculdades da Universidade de Minas Gerais, impedindo greve decretada pela UNE.

2 de abril de 1964 – Quinta-Feira. Cerca de um milhão de pessoas

participam da Marcha da Família, no Rio.

O jornalista Samuel Wainer, diretor-presidente do jornal Última Hora pede asilo político na Embaixada do Chile.

O Itamarati avisa a todas as suas embaixadas no exterior que o novo presidente da República é Ranieri Mazzilli.

Em Brasília, o Exército dissolve passeata de protesto pela posse de Mazzili e prende Darci Ribeiro, chefe da Casa Civil de Goulart.

O general Costa e Silva, chefe do Comando revolucionário modifica o comando das três Forças [Exército, Marinha e Aeronáutica].

O comandante do 2º Exército [São Paulo] lança manifesto dando conta de que o Rio Grande do Sul “está sob controle”.

O presidente dos Estados Unidos, Lindon Johnson, saúda o novo presidente Ranieri Mazzilli.

Movimento contra-revolucionário da Vila Militar [atribuído a sargentos] é sufocado.

4 de abril de 1964 – Sábado. O general Castelo Branco é

homenageado por populares em frente à sua casa, em Ipanema, e promete punição para os culpados.

O ex-governador Miguel Arraes [cassado] é removido para a ilha Fernando de Noronha.

O governador Magalhães Pinto e alguns chefes militares são ovacionados pelo povo durante a visita às tropas mineiras acantonadas no Maracanã.

6 de abril de 1964 – Segunda-Feira. Forças Armadas apresentam Ato

Institucional que engloba medidas julgadas “razoáveis” pelo Congresso para desmantelamento da situação política anterior à revolução.

Primeira entrevista do general Costa e Silva diz que “o Congresso elegerá o Presidente que merecer a confiança do povo”.

11 de abril de 1964 – Sábado. O Congresso Nacional elege o general

Humberto de Alencar Castelo Branco e o deputado José Maria Alkmin para Presidente e vice-Presidente da República, respectivamente. A posse, em solenidade no Congresso Nacional, dá-se a 15 de abril de 1969 (Quarta-Feira).

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* * *Capítulo Trinta-e-seis

O PRESIDENTE ESTADISTAGoverno Castelo Branco

Uma vez vitorioso o movimento militar de 1964, com a retirada do presidente João Goulart para Porto Alegre e, depois, para o Uruguai, foi empossado em seu lugar o presidente da Câmara Federal, Ranieri Mazzili que, ao contrário da rainha da Inglaterra, nem reinava, nem governava, cabendo-lhe apenas dar uma aparência de legalidade à transição. Enquanto Mazzili aproveitava o ar condicionado do Palácio do Planalto, as decisões iam sendo tomadas no ambiente quente do edifício do Ministério da Guerra, no Rio de Janeiro, onde o general Artur da Costa e Silva, autonomeado ministro da Guerra, comandava uma Junta Militar Revolucionária formada por ele, pelo novo ministro da Marinha, almirante Augusto Rademaker e pelo novo ministro da Aeronáutica, Correia de Melo. A mais importante de todas as medidas foi a assinatura do Ato Institucional (até então sem número, pois deveria ser o único) que concedia poderes revolucionários à Junta, sobrepondo-os aos da própria Constituição em vigor. Esse ato, publicado em 9 de abril de 1964, deu margem a que, no dia 10, fossem cassados os mandatos de 40 parlamentares que faziam oposição à nova ordem. Aberto assim o caminho, no dia 11, o Congresso Nacional elegeu o general Humberto de Alencar Castelo Branco presidente da República, com o político mineiro José Maria Alkmin como vice-Presidente. Ambos tomaram posse no dia 15, no recinto do Congresso, iniciando-se uma nova fase da vida nacional. Castelo Branco era o presidente certo, no momento certo. Apresentava-se como rígido militar mas, mesmo sem nunca ter participado da vida pública, demonstrava ter profunda vivência política. Era, pois, a um só tempo, militar e estadista. Tinha ideais democráticos e sua presença no governo surgia como uma suposta garantia à realização de eleições livres e diretas em 3 de outubro de 1965, conforme calendário, restabelecendo com elas (se tivessem acontecido) a normalidade constitucional no país.

Sua vocação liberal foi, entretanto, freada, por ser ele um mandatário do Sistema, representante que era de um movimento militar bem sucedido e que assumiu o poder conjuntamente, tanto que a Junta Revolucionária fora, toda ela, tranplantada em seu ministério. A primeira decepção do novo Presidente foi ter de engolir, meses depois, a prorrogação de seu mandato até 1967. Sua maior contrariedade, todavia, foi ter de assinar o Ato Institucional nº2. Num primeiro momento, recusou-se a fazê-lo, o que provocou um desabafo do jurista Francisco Campos ao seu conterrâneo, o vice-Presidente José Maria Alkmin: “Ai, minha Nossa Senhora, ele pensa que é civil e foi eleito!”

Entre a espada e a Lei Em verdade, esse tornou-se o grande drama de Castelo Branco: não era, como o presidente Dutra, um general exercendo o poder civil. Estava ali como militar, representando as Forças Armadas, que ganharam uma revolução. Não fora eleito legitimamente, em pleito aberto, mas chegara ao cargo por eleição indireta, sob a garantia de um Ato Institucional que valia por uma dúzia de constituições. E tinha, atrás de si, a presença nada invisível do poder político-militar que assumira de fato o governo e nele permaneceria nos próximos 21 anos, adaptando a legislação, casuisticamente, com uma série de Atos Institucionais, seguidos, cada um deles, por uma enxurrada de Atos Complementares que cuidavam de dar “sintonia fina” às medidas de exceção. Como conseqüência, poucos se lembram das reformas de base realizadas em seu governo e que colocaram o país, novamente, no caminho do desenvolvimento. E, primeiro que tudo, cuidou ele de restabelecer o respeito devido à instituição da Presidência da República, desmoralizada no governo Goulart. No mais, entre outras obras, cuidou de restaurar a situação econômico-financeira que vinha se deteriorando desde o governo Vargas, garantindo com isso a credibilidade do Brasil no exterior e permitindo novos aportes de capitais, necessários para o crescimento do país. Em seu ramo específico, cuidou da reforma das Forças Armadas, refazendo a arcaica estrutura administrativa das três forças e eliminando querelas e ciúmes entre

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elas. Aliás, pessoalmente, Castelo defendia a criação de um Ministério da Defesa, englobando Exército, Marinha e Aeronáutica, o que não pôde ser ao menos cogitado em seu mandato, pela excepcionalidade primeiro governo; os que lhe sucederam, não se interessaram no assunto, preocupados que estavam em estratificar o poder do Estado sobre a Nação. Na reforma fiscal e tributária, Castelo eliminou os velhos impostos que emperravam a máquina, a maioria deles em cascata, substituindo-os por um sistema moderno e eficiente de arrecadação. Foi dessa época, também, a criação do CGC e do CPF para a identificação e controle do contribuinte. No campo, promoveu uma reforma agrícola (não agrária), garantindo a estabilidade da produção, permitindo o aumento das exportações, e acabando com as sucessivas crises de abastecimento do mercado interno. Tudo isso, é preciso que se diga, se fez em meio a intenso diálogo dentro do ministério e junto às classes produtoras; um diálogo ao qual não faltou a imprensa que, durante o período de Castelo Branco, não sofreu qualquer censura, manifestando-se de forma ampla e irrestrita, até mesmo acintosamente. Os mesmos jornais que haviam participado do movimento revolucionário, como a Tribuna de Imprensa, o Correio da Manhã e “O Estado de São Paulo” abriam suas baterias contra o poder central, atingindo violentamente o presidente da República. A História, cujos contornos o tempo vai clareando, um dia lhe fará justiça, expurgando de sua biografia os atos revolucionários e trazendo à luz os atos efetivos de governo. Ah, mais uma coisa: a cidade do Rio de Janeiro continuava a ser a capital virtual do Brasil. O Palácio do Planalto, em Brasilia, dava para o gasto do dia-a-dia, mas os grandes assuntos e as grandes resoluções aconteciam mesmo no Palácio das Laranjeiras, na Guanabara, obrigando o presidente a viajar, continuamente, de um ponto a outro.

Quem era Castelo Branco Humberto de Alencar Castelo Branco nasceu em Fortaleza-CE, em 20 de setembro de 1897, filho do general Cândido Borges Castelo Branco, e de dona Antonieta Alencar

Castelo Branco. Por parte da mãe, era, pois, descendente do romancista José de Alencar. Por parte do pai, vinha de uma linhagem a que pertencia, por exemplo, a escritora Raquel de Queirós. Passou a primeira infância no interior de seu Estado e, aos 8 anos, foi enviado a estudar em Recife. Como não conseguisse acompanhar a classe (seu professor o considerava um retardado), sua mãe trouxe-o de volta ao Ceará, ficando, então, aos cuidados das irmãs Vicentinas, que lhe proporcionaram os primeiros conhecimentos. Aos 14 anos seguiu para Porto Alegre, longe da família, matriculando-se na Escola Militar. Era filho de general, mas era pobre, e sua idade no registro foi adulterada para 12 anos, a fim de garantir a gratuidade do ensino. Lá teve como companheiros Juarez Távora, Riograndino Kruel, Amauri Kruel, Ademar de Queirós, Artur da Costa e Silva e outros que o acompanhariam na carreira até os postos mais altos do Exército. Formou-se oficial na Escola Militar do Realengo (Rio de Janeiro), cursando em seguida a Escola de Comando do Estado Maior do Exército, a Escola Superior de Guerra da França (o treinamento militar brasileiro estava conveniado com os franceses) e, finalmente, a Escola de Comando e Estado-Maior dos Estados Unidos. Em 6 de fevereiro de 1922 casou-se com dona Argentina Viana, irmã do historiador Hélio Viana, com quem teve dois filhos: Antonieta (o mesmo nome da avó, que falecera dois meses antes) e Paulo. O casamento trouxe à mostra o lado profundamente sentimental de Castelo. Dona Argentina foi o grande elo de sua vida: acompanhava-o, quando possível, a operações de campanha; na Segunda Guerra Mundial, separados pelo grande oceano, tornou-se a inspiradora de uma série de cartas nas quais o então tenente-coronel, livre da censura, derramava seus comentários a respeito da guerra e dos que se achavam à sua volta. Argentina Viana Castelo Branco morreu em 1963, quando o general era comandante do 4º Exército, em Recife. Tornou-se, então, a imagem que lhe seguiria os passos inspirando-o nas decisões. Enquanto Presidente, sua filha fez-lhe as vezes de primeira-dama, mas a presença espiritual da esposa serviu para humanizar o velho militar,

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tornando menos duros os atos punitivos e incentivando-o no objetivo, afinal frustrado, de restabelecer a democracia até o término de seu governo. Ao assumir a Presidência, o general Castelo Branco passou para a reserva, recebendo em conseqüência o título de marechal, o que, na época, acontecia automaticamente. Ele mesmo eliminou essa prática, que chamava ironicamente de “título de pensão”, já que a finalidade maior era a de aumentar o soldo do militar. Mas, antes de eliminar a regalia, garantiu essa promoção ao general Costa e Silva, que estava vencendo seu tempo para cair na compulsória.

Ministério Empossado o Presidente em 15 de abril de 1964, a Junta Militar foi incorporada ao governo, surgindo então os três primeiros nomes do ministério: Guerra, Artur da Costa e Silva; Marinha, Augusto Hamann Rademaker Grünewald; Aeronáutica, Francisco de Assis Correia de Melo. Este último, em 1931, fora o primeiro brasileiro a cruzar o Atlântico num avião militar. Embora alguns outros militares viessem a ocupar cargos civis, no conjunto, o ministério era essencialmente técnico, embora considerado por alguns (e até por Carlos Lacerda) um pouco conservador. Os outros postos foram assim distribuídos: Relações Exteriores, Vasco Tristão Leitão da Cunha, substituído, seguidas vezes, por Antônio Borges Castelo Branco Filho; Fazenda, Otávio Gouveia de Bulhões, substituído na interinidade por Roberto de Oliveira Campos; Agricultura, Oscar Thompson Filho, substituído mais tarde por Hugo de Almeida Leme, Ney Amintas de Barros Braga e Severo Fagundes Gomes; Viação e Obras Públicas, Juarez do Nascimento Fernandes Távora; Planejamento e Coordenação, Roberto de Oliveira Campos; Educação e Cultura, Flávio Suplicy de Lacerda, depois, Raimundo de Castro Moniz de Aragão (interino), Pedro Aleixo e Guilherme Augusto Canedo de Magalhães (interino); Saúde, Vasco Tristão Leitão da Cunha, que logo entregou o cargo a Raimundo de Moura Brito; Indústria e Comércio, Daniel Agostinho Faraco, substituido mais tarde por Paulo Egídio Martins; Minas e Energia, Mauro Thibau; Trabalho, Arnaldo Lopes Sussekind, depois, Moacir Veloso Cardoso de Oliveira (interino), Walter Perachi Barcelos, Paulo Egídio

Martins (interino) e Luiz Gonzaga do Nascimento e Silva; Justiça, Milton Soares Campos, depois, Luís Viana Filho (interino), Juracy Montenegro Magalhães, Mem de Sá, e Carlos Medeiros da Silva. Assumiu a Casa Civil Luís Viana Filho que, na prática, tornou-se secretário particular do Presidente, reunindo anotações que mais tarde lhe permitiram fazer a biografia de Castelo Branco. Na Casa Militar, ficou o general Ernesto Geisel. Criou-se, também, o Ministério Extraordinário da Coordenação dos Organismos Regionais (Mecor) que mais tarde ganharia importância fundamental, transformando-se no Ministério do Interior. Sua chefia foi entregue ao marechal Cordeiro de Farias que, já ao final de governo, renunciou, sendo substituído por João Gonçalves. A intensa troca de nomes nos vários ministérios dá idéia da turbulência nos três anos de governo. Também houve mudanças nos ministérios militares, assunto que será tratado no momento oportuno.

Varre, vassourinha O Ato Institucional em vigor desde 9 de abril de 1964 abriu uma temporada de 60 dias para a cassação de mandatos e suspensão de direitos políticos, estes últimos pelo prazo de 10 anos. Logo no dia seguinte, experimentando a ferramenta, a Junta Militar suspendeu os direitos políticos de Jânio Quadros, João Goulart e Luís Carlos Prestes; em seguida, foram-se mais 40 parlamentares da oposição, abrindo caminho para a eleição do Presidente. Até o último dia do prazo, cerca de 400 nomes foram atingidos pelo Ato. Ao contrário do que se pode pensar, foi uma pechincha. Poderiam ter sido 4.000 ou 40.000, tamanha a quantidade de “listões” que chegavam de todos os lados, sugerindo nomes para a degola. O exame detalhado dessas listas evitou uma enormidade de injustiças, mas não todas elas. Para se ter uma idéia do frenesi existente nos meios revolucionários, basta lembrar que, entre os nomes sugeridos para cassação, figuravam os de Afonso Arinos, um dos principais líderes da UDN, partido do governo; do jurista Santiago Dantas, com inequívocos serviços prestados ao país; de Hermes Lima, o último chefe de Gabinete do Parlamentarismo; do jurista Evandro Lins e Silva; do jornalista Carlos Heitor Cony, que

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ousava criticar o governo; e até do industrial José Ermírio de Morais, evidente defensor do capitalismo e de cuja dedicação à empresa privada ninguém poderia duvidar... Todos foram poupados. Pior do que fazer uma revolução é controlar, depois, o ímpeto dos revolucionários em garantir a própria sobrevivência, afastando de sua volta aqueles que possam lhes fazer sombra. Com raras exceções, esse controle foi exercido.

Ah, “Minas Gerais” ! Uma das pendências que, desde o princípio, tumultuou o governo foi o caso da aviação embarcada, que tomou vulto após a compra, por Juscelino Kubitschek, do porta-aviões Minas Gerais. O frágil “14-Bis” de Santos Dumont, que foi ao ar em 1904, e o “Demoiselle”, que subiu pouco tempo depois, tiveram seguidos aperfeiçoamentos e, em 1910, já era possível contar-se com aviões de guerra, incipientes ainda, mas que já representavam uma promessa como arma de ataque. O Brasil comprou alguns aparelhos, anexou-os ao Exército e, na Guerra do Contestado (1912-1916), pôde testar sua eficiência, abrindo espaço no campo inimigo para o avanço, por terra, das tropas legalistas. A Marinha também comprou alguns aparelhos, que ficaram subordinados a ela. Não eram uma força independente, mas simples acessórios às duas Armas. Após a Segunda Guerra, com o advento do helicóptero, a Marinha passou a adquirir esse tipo de aparelhos, mais adequados a manobras conjuntas com navios de guerra. Só que, a essa época, já existia uma arma específica para cuidar do espaço aéreo, a FAB, subordinada ao Ministério da Aeronáutica, criado no governo Getúlio Vargas (1930-1945). Passaram a registrar-se, então, conflitos esporádicos entre as armas da Marinha e da Aeronáutica, ainda que sem maiores conseqüencias. Foi no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) que surgiu o grande ponto de atrito, com a aquisição do porta-aviões Minas Gerais, tendo como objetivo aproximar Aeronáutica e Marinha em operações conjuntas. O efeito foi o oposto, gerando graves discussões sobre o comando de tais operações, já que não se tratava de aviação comum, mas de aviação embarcada. O problema foi sendo empurrado com a barriga por JK, Jânio e Jango, vindo a

perturbar a paz do presidente Castelo Branco, que decidiu colocar um ponto final na disputa, chamando para si a responsabilidade pela solução do conflito. Precisava fazê-lo, e sem demora, pois um grave incidente acabava de ocorrer em Tramandaí (Rio Grande do Sul), onde a base da FAB abateu um helicóptero da Marinha em pleno vôo, criando um estado de guerra entre as duas armas. Em agosto de 1964, aproximando-se a data de início da Operação Unitas (treinamento conjunto de militares de paises panamericanos), Castelo Branco decide que o comando de operações embarcadas ficará a cargo da Marinha, mas somente com aeronaves da FAB. O ministro da Aeronáutica, brigadeiro Nelson Lavanére-Wanderley, sucessor de Correia de Melo, demite-se, sendo substituído pelo brigadeiro Márcio de Sousa Melo. No início das operações de treinamento, a FAB constatou a presença de helicópteros da Marinha no porta-aviões Minas Gerais e, como o comandante se recusasse a retirá-los, o fato originou outra crise entre as duas armas, provocando a renúncia do novo ministro da Aeronáutica, brigadeiro Souza Melo. Em consideração ao presidente da República, já que ninguém mais queria substituir o demissionário, assumiu o Ministério o próprio brigadeiro Eduardo Gomes, nome legendário nas Forças Armadas, contra quem ninguém ousaria fazer oposição. Orientado por Eduardo Gomes, o presidente retoma a idéia de um comando misto nas operações conjuntas de Marinha e Aeronáutica. Desta vez, quem se demite é o ministro da Marinha, nesta altura o almirante Melo Batista. Em 14 de janeiro de 1965 assume o posto o almirante Paulo Bozísio. Finalmente, chega-se a um consenso nos dois ministérios. O comando do porta-aviões Minas Gerais, em sua totalidade, incluindo os helicópteros da Marinha, fica sob a responsabilidade desta. Os aviões, operados pela FAB ficam sob o comando da Aeronáutica, em sintonia com o comando da Marinha. E foi assim que o Brasil pode participar, em harmonia, da operação UNITAS. E todos viveram felizes para sempre.

Sinal de alarme Contrariando o pensamento do presidente Castelo Branco, já em julho de 1964 o

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mandato presidencial foi prorrogado até 1967, jogando por terra as promessas, feitas a líderes civis da Revolução, de que em 1965 um novo presidente seria escolhido, dentro do calendário e por eleições diretas. Para compensar, o Sistema que controlava o poder permitiu que se realizassem, na forma da Constituição, as eleições marcadas para 3 de outubro de 1965, renovando o governo de 11 dos 21 Estados: Alagoas, Goiás Guanabara, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Rio Grande do Norte e Santa Catarina. Tacitamente, confirmava-se também o calendário para 3 de outubro de 1966, quando, além da renovação do parlamento, seriam eleitos também os governadores dos demais Estados: Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe. Vão-se os anéis, ficam os dedos. Nem tudo estava perdido e, afinal, alguns dos candidatos à Presidência, como Magalhães Pinto, estavam acordes em que o ambiente não era propício para eleições presidenciais já em 1965. Excluída a disputa presidencial, no mais, o pleito se realizou a seu tempo, livremente, tudo fazendo crer que o Brasil caminhava para o restabelecimento das liberdades democráticas. Os resultados, se não foram desanimadores para o Sistema, ainda assim fizeram soar o sinal de alarme. O governo venceu no Pará, onde o governador Jarbas Passarinho conseguiu fazer seu sucessor Alacid Nunes (mais tarde os dois se tornariam adversários); na Paraíba, a UDN elegeu Agripino Maia; no Maranhão, saiu vitorioso José Sarney; em Alagoas, não havendo maioria absoluta, o governo federal nomeou como interventor o general João Batista Tubino. Até mesmo em Mato Grosso e em Santa Catarina, onde o PSD conseguiu a vitória, respectivamente, com Pedro Pedrossian e Ivo Silveira, não havia maiores preocupações. Onde rebentou a corda foi em Minas Gerais e Guanabara que, junto com São Paulo, formavam os três centros políticos mais importantes do país. Em Minas Gerais, elegeu-se Israel Pinheiro, um dos construtores de Brasília e braço forte de JK; na Guanabara, ganhou Negrão de Lima, uma sombra de Getúlio Vargas, o mesmo Negrão

que, em 1937, a pedido de Getúlio, percorreu o país, buscando adesão dos governadores ao golpe do Estado Novo que seria dado ao final daquele ano. Em São Paulo, as eleições se dariam em 1966 e uma derrota não improvável naquele Estado seria fatal para a revolução. A simples possibilidade de retorno do getulismo reacendeu a ação da “linha dura” nas Forças Armadas, não só na Vila Militar, como em vários pontos do país. A alta oficialidade, composta sobretudo por coronéis da ativa, exigia um endurecimento do regime para que o movimento militar, havendo atravessado um oceano de dificuldades, não viesse a morrer na praia.

Ato Institucional nº2 As eleições ocorreram a 3 de outubro. Poucos dias depois, recrudescem os boatos de um novo golpe militar. Carlos Lacerda, de sua Tribuna de Imprensa, exigia intervenção em Minas Gerais e Guanabara. Ao Palácio das Laranjeiras, onde se achavam Castelo e seu “staff”, chegavam notícias de movimentação nos quartéis. O primeiro passo, foi acalmar os militares, baixando a tensão da caserna. O segundo, preparar medidas que mantivessem a temperatura baixa, permitindo ao Presidente cuidar de assuntos do governo, ao invés de envolver-se numa crise militar mais prolongada. Por fim, cuidava-se de preparar o governo para o pior. Vários projetos e emendas à Constituição tramitavam no Congresso, objetivando aumentar os poderes do presidente da República, inclusive dando-lhe o direito de decretar estado de sítio sem precisar de autorização do Congresso. Não estava o governo seguro de ter esses instrumentos à mão no devido tempo; não era sequer lícito supor que fossem aprovados pelo legislativo. No Ministério, outra crise: o ministro da Justiça, Milton Campos, prevendo um fechamento do regime, de cujo ato não pretendia tornar-se cúmplice, demitiu-se; e após uma interinidade de Luís Viana Filho, foi nomeado para o cargo o ex-governador da Bahia, Juraci Magalhães. Premido pela gravidade da crise, e procurando evitar o pior, em 27 de outubro de 1965, o presidente Castelo Branco assina o Ato Institucional nº2, iniciando o processo de radicalização do regime que, de Ato em

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Ato, levou o país ao absolutismo nos dois governos seguintes. São estas as principais alterações proporcionadas pelo AI-2: As eleições presidenciais passam a ser

indiretas; Ficam extintos todos os partidos

políticos; Fica o Presidente com a prerrogativa de

decretar estado de sítio por 120 dias, ad-referendum do Congresso, e prorrogá-lo, se necessário, por um prazo máximo de 180 dias;

Os atos praticados pelo governo federal ou pelo Sistema (Comando Supremo da Revolução) ficam excluídos de apreciação judicial;

O Presidente passa a ter o direito de pôr em recesso o Congresso Nacional, as Assembléias Legislativas e as Câmaras Municipais, mesmo que o país não esteja sob estado de sítio.

Coagido pelo Sistema, o presidente Castelo Branco, até o fim de seu mandato, ainda viria assinar mais dois Atos Institucionais: o AI-3, de 5 de fevereiro de 1966, criava a figura do governador “biônico” e suspendia as eleições de prefeitos nas capitais e cidades consideradas de segurança nacional; o AI-4, de 12 de dezembro, condicionava o Congresso para a votação da nova Constituição. Numa luta desigual, a Nação sofreu vários golpes rudes. O nocaute viria no governo seguinte com a edição, pelo sucessor de Castelo, do Ato Institucional nº5, o mais cruel e perverso, sufocando o que ainda restava das liberdades individuais e fazendo morrer as esperanças de retorno, a médio ou longo prazo, à prática democrática. Esse é assunto para o próximo capítulo.

O embaixador americano é consultado Por solicitação do Presidente do Brasil, o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon reune-se com Castelo Branco e ambos analisam o impacto que o AI-2 causaria nas relações internacionais, conforme relata o próprio diplomata, a pedido de Luís Viana Filho: “Castelo Branco estava inteiramente ciente da reação tempestuosa da imprensa estrangeira ao 1º e 2º Atos e preocupado com o impacto negativo nas relações exteriores, generalizadamente, e, em particular, nas relações com os Estados Unidos. Por isso, ele me pediu que o visitasse, numa manhã

calma do feriado de 2 de novembro [Finados]. “Nossa conversa durou duas horas – a mais longa das nossas entrevistas. Castelo fez um resumo dos acontecimentos-chave das quatro semanas anteriores, incluindo a recusa do Congresso em aceitar a reforma proposta das relações do governo federal com os demais Estados. “Ele pediu meu comentário sincero, e eu o fiz em toda extensão. Entre outros pontos, salientei minha preocupação de que a situação pudesse se transformar inteiramente em ditadura militar. O presidente sentiu que eu estava pessimista demais, que o Brasil evitaria qualquer tipo de ditadura, a tradicional Latino-Americana ou tipo Nasser [Egito], e que a nova base política podia e seria construída para apoiar as metas da revolução. “Três semanas mais tarde, quando o secretário [de Estado] Dean Rusk visitou o Rio, o Presidente saiu de seus hábitos para referir-se ao meu temor de ditadura militar e para reassegurar sua confiança na restauração da normalidade constitucional em 1966. “Não obstante, estava claro que a crise de outubro tinha sido um choque para ele, que o general Costa e Silva estava, em todo sentido prático, seguro da sucessão, e que Castelo Branco não tinha mais o controle da situação.” A CIA (Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos), em seu relatório interno nº3101/65, registra as mesmas preocupações, prevendo um fechamento gradual do regime até o total controle do país pelo Sistema. Aponta o ministro da Guerra, general Costa e Silva como o catalisador das pressões da “linha dura”, irritado que estava pela falta de apoio governamental à sua pretensão para suceder Castelo Branco. São mencionadas pela CIA, também, as pressões empresariais, principalmente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (que é citada nominalmente) para o endurecimento do regime, incentivando a ação de conhecidos radicais, como o almirante Silvio Heck. Essas pressões estariam anulando a ação dos moderados ligados ao presidente Castelo Branco, entre eles o chefe do SNI (Serviço de Inteligência do Brasil), general Golbery do Couto e Silva, e o chefe da Casa Militar, general Ernesto

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Geisel. Em resumo, Castelo perdera, a esta altura, o controle da sucessão presidencial.

Quase que o Brasil ganha um “Partidão”

“Partidão” era o nome que se dava ao PC soviético que, por ser o único partido legal, dominava todo o sistema político da União Soviética, transformando-se num governo paralelo. Pois o Brasil por pouco não ganha seu partidão, tal a rigorosidade do Ato Complementar nº4, que regulava a organização de novos partidos políticos, em substituição àqueles que foram extintos. Surgiram, de início, três opções partidárias: a ARENA (Aliança Renovadora Nacional), reunindo os governistas, o MODEBRA (Movimento Democrático Brasileiro), que pretendia concentrar a oposição e o PAREDE (Partido de Renovação Democrática), de tendências indefinidas. Este último não resistiu os primeiros embates, ficando apenas nas preliminares de sua organização. A Arena rapidamente conquistou o espaço, pois todo político, por razões de sobrevivência, prefere estar com o governo, garantindo verbas para obras públicas (e votos) em seus redutos eleitorais. Já o Modebra, que em boa hora mudou sua sigla para MDB, não conseguia atender as regras do AC-4, que exigia um mínimo de 120 deputados federais e 20 senadores filiados, para garantir o registro. Isso representava quase um terço do Congresso Nacional. Quanto a deputados, o MDB até que os conseguiu, mas, na busca de senadores, apenas 19 se dispuseram a fazer oposição ao governo. Faltava um e, se o quorum não fosse atingido, o Brasil passaria a ter um sistema político de partido único. Isso de maneira alguma interessava ao Sistema, pela repercussão negativa no exterior. Assim, o governo passou a ser o maior interessado na formação de um partido de oposição a ele. Vieram, então, os governistas, auxiliar a oposição, doando um de seus senadores para que o número fosse completado. A sorte caiu sobre o senador Aarão Steinbruck que assinou a ficha partidária do MDB, trazendo paz ao arraial. Já nos contatos preliminares, o governo sentiu a artificialidade do bipartidarismo no Brasil, não tanto por ideologia, mas por diferenças regionais e de comportamento. Líderes da UDN, que combateram

ferozmente o PSD, tinham que viver em harmonia com seus adversários de ontem. Em São Paulo, opositores do governador Ademar de Barros, que colocavam em dúvidas sua honestidade, tiveram de aceitá-lo como indigesta companhia. No Nordeste, onde líderes que se degladiavam, literalmente, até a morte, repentinamente, precisaram se compor. Se isso vinha causando disputas irreconciliáveis na organização partidária, imaginem só quando chegassem as eleições! Com uma boa caneta e um pouco de tinta, não há problema que não se resolva. E os dois partidos políticos passaram a ter, dentro deles, 3 sub-legendas, as quais poderiam, nas eleições diretas, apresentar candidatos em separado. O Brasil tornou-se, pois, o único país do mundo em que o sistema bipartidário era composto de seis partidos...

Com quantos atos se faz um governo

O governo Castelo Branco editou três Atos Institucionais. Nem necessitava de mais outros, pois tamanha foi a quantidade de Atos Complementares que estes subverteram totalmente o processo. Eles regularam o funcionamento das CGIs (Comissões de Inquérito), cuidaram de dispensas, remoções e aposentadorias, atingiram o Judiciário, alteraram a composição do Supremo Tribunal Federal, fizeram tudo o que se possa imaginar, dentro do maior casuísmo, assinados sempre que surgisse um obstáculo a ser removido. Nesse processo, com a edição do AI-3 e respectivos complementos, criou-se a figura do governador “biônico”, o qual passou a ser escolhido pelo Presidente dentro da Arena (o partido do governo), a partir de uma lista tríplice, confirmado depois pelas respectivas assembléias legislativas. A oposição podia apresentar seu candidato, mas não para ganhar. Foi criada a fidelidade partidária, impedindo os parlamentares de votar em outro candidato que não o de seu próprio partido. Como o MDB (oposição) ameaçou com renúncia coletiva, o AC-16 proibiu também a renúncia. Dizia o AC-16 que o parlamentar que renunciasse ao mandato teria seus direitos políticos cassados (por dez anos). Nesse clima de paz absoluta (a paz dos cemitérios), desenvolveu-se, pois, o calendário eleitoral de 1966: em 3 de setembro, elegeram-se os governadores

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“biônicos” de 12 Estados; em 3 de outubro, Costa e Silva fez-se Presidente, tendo como vice o civil Pedro Aleixo; e em 15 de novembro, realizaram-se as eleições parlamentares, renovando as Assembléias Legislativas, a Câmara Federal e um terço do Senado. Na eleição para Presidente, só dois pequenos incidentes: O deputado João Herculino subiu à tribuna vestindo luto pela “morte da democracia” e o senador João Abraão mencionou o nome de Juscelino como o preferido do povo. Um e outro foram sem seguida cassados. Nas eleições para governador, o Presidente cassou o mandato de todos os deputados que se mostraram descontentes com o nome do candidato único apresentado para seu Estado. Era mais seguro do que ser surpreendido com alguma traição. Em São Paulo, elegeu-se, pois, Roberto de Abreu Sodré, udenista histórico e cunhado de Carlos Lacerda; no Rio Grande do Sul, Peracchi Barcelos; no Estado do Rio, Geremias Fontes; na Bahia, Luís Viana Filho, chefe da Casa Civil da Presidência; em Pernambuco, Nilo Coelho; no Ceará, Plácido Castelo; em Sergipe, Lourival Batista; no Acre, Jorge Kalume; no Amazonas, Daniel Aerosa; em Alagoas, Antônio Lamenha Filho; no Piauí, Helvídio Nunes de Barros; e no Espírito Santo, Cristiano Dias Lopes.

Planos para uma nova Constituição

Ao final de 1966, resolvidos os problemas emergenciais e criados os mecanismos que permitiriam desenvolver as reformas preconizadas, o governo achou-se em condições de providenciar uma mudança radical na Carta Magna, criando uma Constituição moderna, capaz de colocar o país no caminho do desenvolvimento. Sem pensar na convocação de uma Assembléia Constituinte (que Deus o livre de tamanho pecado) Castelo preferiu criar uma comissão de notáveis, formada por Orozimbo Nonato, Levi Carneiro e Temístocles Cavalcanti, entregando a ela a missão de redigir o novo texto, na forma de anteprojeto, o qual ficou pronto em 19 de agosto de 1966. O trabalho não agradou nem ao Presidente, nem ao seu ministro da Justiça, Carlos Medeiros. O primeiro desejava uma Carta mais liberal, embora resguardando a autoridade presidencial para combater situações de perigo à vida ou ao regime; o

segundo, ao contrário, preferia uma concentração maior de poderes, que desse ao Presidente instrumentos para enfrentar crises políticas e sociais, dando ao país condições de governabilidade. O anteprojeto foi, então, discutido com o Conselho de Segurança Nacional e, em seguida, reformulado pelo próprio ministro Carlos Medeiros. O governo poderia até outorgar a nova Carta, dispensando o Congresso, tais os poderes já concentrados em suas mãos com os dois Atos Institucionais, todavia essa medida seria mal recebida na comunidade internacional. Era preciso correr o risco, entregando-a ao Congresso Nacional, para discussão, após o que o próprio Congresso iria promulgá-la. Melhor seria que se fizesse com o atual legislativo, já em fim de mandato, já que ele era mais previsível em suas reações. O próximo ainda não tinha sido eleito e ninguém sabia qual a sua composição. Foram tomadas todas as providências para evitar um prolongamento indesejável. O anteprojeto seguiria ao Congresso em regime de urgência e, se a Constituição não fosse promulgada no prazo estabelecido, o Presidente chamaria a si a responsabilidade de outorgá-la. Seria também uma medida extrema, porém, mais fácil de se explicar, jogando sobre o Congresso a responsabilidade pelo eventual retardamento. Foi aí que surgiu o incidente mais grave entre Executivo e Legislativo, colocando em perigo o cronograma traçado.

O Congresso é posto em recesso Dentro da rotina do governo revolucionário, em 12 de outubro de 1966, chegaram às mãos do Presidente mais seis processos de investigação, já concluídos, envolvendo deputados federais. O Presidente decidiu pela cassação de todos eles, assinou o ato e encaminhou-o à Câmara Federal, cujo presidente era Adauto Lúcio Cardoso, parlamentar fiel ao Sistema, já que fora eleito com a ajuda de Castelo Branco. Para surpresa geral, Adauto se opôs a essas cassações, recusando-se a consultar os demais parlamentares e declarando que cabia ao presidente da República consultá-lo primeiro. Tudo isso era inútil, pois os atos revolucionários não estavam sujeitos a consultas ao legislativo ou a quem quer que fosse.

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O assunto ferveu no plenário da Câmara, já que alguns arenistas eram contra essas cassações e, por seu lado, a oposição aproveitou o ensejo para fazer suas manifestações de repúdio ao autoritarismo, causando tremendo desgaste ao governo junto à opinião pública. Naquele 19 de outubro, o dia e a noite foram agitados no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, local das grandes decisões. O ministro da Justiça tem pronto o decreto que põe em recesso o parlamento. Outra medida, bem pior seria a sua dissolução, encerrando as atividades parlamentares três meses antes do término do mandato. Bem comparadas as duas medidas, a do recesso se mostrava mais leve, dando tempo suficiente para esfriar as cabeças e tornar à realidade possível naquela conjuntura. Achava-se, entre outras coisas, que a atitude do presidente da Câmara tinha por fim embaraçar as eleições legislativas que se realizariam no mês seguinte, o que não ficou provado. No dia 20, o Presidente assina o recesso parlamentar, por tempo indeterminado, ficando incumbido de executar o ato o coronel Meira Matos, comandante da Polícia do Exército em Brasília. Conta Luís Viana Filho: “Meira Matos executou o decreto. O Presidente recomendara-lhe a maior prudência e, nessa mesma noite, isolado o Congresso, os seus membros foram retirados tranqüilamente. Não houve incidente de monta, e as anunciadas ameaças de resistência ruíram silenciosamente. Apenas breve e áspero diálogo entre Adauto e Meira Matos inquietou o episódio.” Os acontecimentos, então, se desenrolam dentro desta seqüencia: 12.10.66 – Cassados os mandatos de 6

deputados federais. 20.10.66 – O Congresso Nacional

(Câmara e Senado) é posto em recesso. 15.11.66 – Realizam-se eleições diretas

para a renovação da Câmara Federal, de um terço do Senado e das Assembléias Legislativas.

21.11.66 – É suspenso o recesso e o Congresso volta às atividades.

13.12.66 – O anteprojeto da nova Constituição é entregue ao presidente do Congresso, senador Auro Soares de Moura Andrade.

24.01.67 – A nova Constituição é promulgada pelo Congresso Nacional.

Estava superada a crise. O Brasil ganha uma nova Constituição que, se dizia, deveria durar várias décadas. Não foi bem o que aconteceu. Os acontecimentos caminharam mais rápido que as boas intenções e, dois anos depois, o texto constitucional foi quase que totalmente alterado por uma Junta Militar que assumiu o poder. Esse também é um assunto a ser tratado em momento oportuno.

Reforma financeira O primeiro dos problemas a ser enfrentado pelo Presidente foi o do descontrole financeiro do país. O Brasil havia saído do governo Dutra (1946-1951) com uma situação confortável nas finanças públicas, e com uma dívida externa administrável. Os governos posteriores reverteram esse estado de coisas, gastando mais do que arrecadavam e levando o país a um estado quase que pré-falimentar. Getúlio Vargas e Café Filho viveram enliados em sérios problemas políticos que lhes tomaram a maior parte do tempo. Juscelino Kubitschek construiu Brasília e levou seu plano de governar 50 anos em 5, emitindo moeda descontroladamente para cobrir os gastos e comprometendo os próximos governos com um aumento sensível da dívida externa. Jânio Quadros fez um diagnóstico do doente mas não ministrou-lhe os remédios, tanto mais que não parou 7 meses no poder. Por fim, João Goulart largou o governo à corda solta, como se o problema não fosse com ele. Agora, o paciente necessitava de um tratamento de choque, uma política séria de contenção de despesas, que levou o país, em 1965, a processo recessivo, danoso à produção e aos trabalhadores, causando o desemprego e uma semi-paralisação do comércio e das atividades produtivas. O amargo remédio era a infalível receita do Fundo Monetário Nacional, engolido a duras penas, e que só pôde ser aplicado sem maiores contestações porque o Brasil vivia em regime excepcional, suprimindo, se preciso à força, qualquer manifestação de descontentamento. Respeitadas todas indicações do receituário, por fim, o FMI colocou à disposição do Brasil um crédito “stand-by” (para ser requisitado quando preciso) de 125

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milhões de dólares. Era uma insignificância, mas, por outro lado, representava um sinal verde aos investidores internacionais de que o Brasil deixava de ser um risco iminente ao capital estrangeiro. O PAEG-Plano de Ação Econômica do Governo, sob a responsabilidade do Ministro do Planejamento, Roberto Campos e do ministro da Fazenda Otávio Gouveia de Bulhões, estabeleceu uma nova ordem econômica no país. “O PAEG – escreve Luís Viana Filho – traçava os pontos principais da nova estratégia política econômica, apontava os instrumentos de combate à inflação no campo monetário, fiscal e salarial; os mecanismos de incentivos às exportações e de correção no desequilíbrio no balanço de pagamentos; os instrumentos de estímulo à poupança no mercado de capitais, com o princípio da correção monetária; e as concepções para o problema da habitação popular e, conseqüentemente, o aumento da construção civil. Também se incluía um elenco de investimentos públicos e programas setoriais de crescimento.” Era uma intervenção pesada do poder público sobre a iniciativa privada, gerando protestos das classes liberais, com discursos violentos do deputado Herbert Levi e de outros parlamentares que haviam apoiado o movimento militar. Não foram menores as reações nos meios estudantis, sindicais e intelectuais, registrando-se a prisão, entre outros, do professor Florestan Fernandes. A repressão econômica, mais do que a repressão política, é que tornou odiado o governo de Castelo Branco. Os resultados desse saneamento foram colhidos pelos governos seguintes, quando a liberação da economia, com a geração de empregos e melhoria das condições de vida e acabou escondendo a repressão, que atingiu seu apogeu com o presidente Médici, considerado injustamente como o grande realizador. No governo Castelo Branco foram criados o BNH-Banco Nacional da Habitação, a primeira tentativa realmente séria de fazer uma política habitacional permanente e contínua; as ORTN-Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional que, a um só tempo, instituíam a correção monetária e representavam títulos de captação interna. O FGTS-Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, transferindo o passivo trabalhista

das empresas, dali por diante, para o controle estatal, foi outra fonte de arrecadação que permitiu a aplicação de capitais em serviços básicos, como o de saneamento. O Banco Central do Brasil, recém criado, chamou a si o controle da moeda e das atividades financeiras, antes atribuído ao Banco do Brasil.

Reforma fiscal e tributária

Antes de se aventurar na modificação do sistema de arrecadação de impostos e taxas, o governo teve de identificar o contribuinte, pois, tal era a desordem, pela falta de um cadastro centralizado, que a sonegação tornou-se prática comum em todo o país. Para organizar e agilizar o recolhimento de tributos foram criados o CGC-Cadastro Geral de Contribuintes e o CPF-Cadastro de Pessoa Física. Os velhos impostos, em cascata, foram substituídos por novos, nos quais o setor produtivo podia creditar-se dos impostos pagos sobre matérias primas, reaplicando-os por ocasião da venda dos produtos acabados. Assim, a tributação real incidia apenas sobre o consumidor final. O IC (Imposto de Consumo) deu lugar ao IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados). O IVC (Imposto de Vendas e Consignações) foi substituído pelo ICM (Imposto de Circulação de Mercadorias). O Imposto do Selo, que vinha dos tempos do Império, foi eliminado e, em seu lugar, surgiu o IOF-Imposto sobre Operações Financeiras. Acabaram-se para sempre os quiosques que vendiam estampilhas aos quatro cantos do país, as quais eram pregadas sobre todo papel que ousasse insinuar uma operação financeira. Como se pode imaginar, com melhor controle, a arrecadação aumentou prodigiosamente e, em contrapartida, concentrou uma boa parte do dinheiro circulante nas mãos do governo, o qual, através das obras públicas, passou a controlar com mais eficiência o fluxo da moeda e, por conseqüencia, o nível de inflação aceitável.

Reforma agrícola O espaço é insuficiente para comentar todas as modificações ocorridas no período de governo de Castelo Branco, mexendo no âmago dos problemas, e preparando a estrutura necessária para um desenvolvimento integrado do país.

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Era preciso revolver o solo onde se consolidou a estrutura agrícola do Brasil, apoiada principalmente na política do café e descuidando de planejamento global. Para isso Castelo foi buscar um novo ministro da Agricultura onde melhor se conhece o assunto, a Escola Superior de Agricultura Luís de Queirós, em Piracicaba-SP. Era ele o professor Hugo de Almeida Leme, homem que dedicou toda sua vida aos problemas da terra, um dos poucos que se poderia considerar capaz de desemperrar a máquina e colocá-la em movimento. Contrariando a política geral de contenção de despesas, o governo liberou verbas para o setor, de forma a permitir a implantação de uma política de preços mínimos. Com esse incentivo dado à iniciativa privada, o resultado não se fez esperar: as próximas safras acusaram um aumento expressivo na colheita de grãos, que o governo adquiriu e armazenou. Procurando diversificar a cultura, passou a incentivar derrubada de plantações de café com baixa produção, substituindo-as por lavouras mecanizadas e de maior rendimento. Foi a partir de então que o norte do Paraná começou a conhecer o valor econômico da soja, mais adequada em regiões sujeitas a fortes geadas. Não foi adiante, todavia, o propósito de realizar também uma reforma agrária, reduzindo o poder dos latifúndios. O Estatuto da Terra, sancionado em 30 de novembro de 1966 e as medidas tomadas em fim de governo, punindo com maiores impostos as terras improdutivas não foram suficientes para impedir a concentração de terras. Os governos que se seguiram, pelas características do próprio Sistema a que estavam atrelados, não se interessaram em promover no país uma verdadeira reforma agrária, com participação real do homem do campo. Esta foi a grande oportunidade perdida, que empurrou para o ano 2000 um problema sério, agravado em décadas pelo processo de mecanização rural, que resultou no êxodo da mão-de-obra excedente para as cidades. A figura do colono foi substituída pela do boia-fria e, nos grandes centros urbanos, a concentração de trabalhadores não qualificados resultou no desemprego e no sub-emprego, gerando a favelização e a miséria.

Conclusão Castelo Branco deixou o governo em 15 de março de 1967 sem cumprir a promessa de que fora fiador, qual seja, a de entregar o governo a um civil, escolhido por eleições diretas. Foi, pelo menos em parte, refém do Sistema, invisível mas real, o qual lhe ditava os passos e condicionava-lhe os movimentos. Teve de aceitar a prorrogação de seu próprio mandato, a edição de mais três atos institucionais, o fechamento do regime e, por fim, precisou passar as rédeas do poder ao marechal Costa e Silva, o mais legítimo representante da “linha” dura nas Forças Armadas. Morreu em colisão aérea no Ceará, em 18 de julho de 1967, quatro meses depois de deixar o governo. Uma estranha colisão, dessas de acontecem uma em um milhão. O choque aconteceu com um avião militar, fora da rota, longe do tráfego aéreo e nenhuma das aeronaves arremeteu para evitar o acidente. O “Painel” da Folha de São Paulo, em 16 de julho de 1988, publica uma nota intrigante. Diz ela: “João Wamberto, que foi secretário de Castelo Branco revela: no dia de sua morte (18-7-67), em desastre aéreo, o ex-presidente havia comunicado a ele, pelo telefone, que decidira romper o silêncio e comentar a grave crise política que o país atravessava, então sob o governo Costa e Silva. O avião de Castelo caiu em conseqüência de choque com um jato da FAB.” Acidente ou não, o desaparecimento de Castelo Branco se insere entre outras mortes, igualmente estranhas, que ocorreram durante o período militar, entre elas a de Juscelino Kubitschek e a do próprio marechal Costa e Silva. Mas História não se escreve em cima de suposições, colocadas aleatoriamente no processo. O único fato concreto, neste caso, é que Castelo Branco morreu no choque entre duas aeronaves, numa das quais ele viajava. E ponto final.

* * *Capítulo Trinta-e-sete

O FIM DA ESPERANÇACosta e Silva, o AI-5 e a Junta Militar

A militarização do movimento revolucionário de 1964 começou nos primeiros dias de abril desse mesmo ano, quando o general Costa e Silva, feito por

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antecipação ministro da Guerra, começou a estreitar os limites de atuação dos líderes civís. Ao seu lado, dois outros ministros, adrede preparados, que reunidos formavam a Junta Militar Revolucionária: o almirante Augusto Rademaker, da Marinha, e o brigadeiro Correia de Melo, da Aeronáutica. Costa e Silva escolheu como seu chefe de gabinete o general Jaime Portela. Começava-se a montar o Sistema que iria governar o país nos próximos 21 anos, em cuja primeira fase o general Portela viria a ser uma das peças-chave, introduzido no governo Castelo Branco como assessor do ministro da Guerra e, no governo Costa e Silva, como chefe da Casa Militar. Lentamente, o esquema político-militar foi-se ampliando e impondo sua vontade. Primeiro, veio a prorrogação do mandato de Castelo Branco. Depois, a edição do Ato Institucional nº2, para acalmar as Forças Armadas, preocupadas com o resultado das eleições diretas, nas quais a oposição fizera os governadores de Minas e Guanabara. Castelo Branco viria a editar mais dois Atos, um criando a figura do governador “biônico” e outro condicionando o Congresso Nacional para garantir a aprovação da nova Constituição, redigida nos gabinetes do Palácio do Planalto. Depois, o mesmo Castelo teve de engolir a candidatura do general Costa e Silva à presidência da República, em eleições indiretas e como candidato único, já que as regras institucionais permitiam à oposição apenas participar, não lhe dando chances de vitória. Se alguém tivera no passado alguma dúvida de que o fechamento do regime iria até as últimas conseqüências, acordou finalmente para a realidade quando o novo Presidente, Costa e Silva, editou o Ato Institucional nº5, o mais perverso de todos, limitando de vez os poderes do Congresso e do Judiciário e retirando da Nação brasileira o pouco que ainda lhe restava de direitos de cidadania. Não se transforme o regime militar na raiz de todos os males que afligiam o país. Cuba continuava exportando sua revolução para toda a América Latina e os jovens, idealistas e sedentos de reformar o mundo, eram presa fácil de seu proselitismo. Por outro lado, o Partido Comunista Brasileiro estava firmemente organizado, com uma linha de ação contínua desde os anos vinte. Entre as principais lideranças se achava Carlos

Marighela que, jovem ainda, participara da Intentona de 1935, fora depois Constituinte de 1946 e achava-se agora com plena liberdade de ação, ao contrário de Prestes, que tinha de manter-se escondido. A par com esses dois focos de contestação, criaram-se, no correr da ditadura, inúmeros outros movimentos revolucionários: a VPR, o MR-8, o COLINA, o MR-Tiradentes registrando-se ainda o ressurgimento da ANL, a Aliança que planejou a Intentona de 35. Nada de se estranhar. Em qualquer época e em qualquer lugar, o entupimento dos canais de comunicação leva a explosões, tanto mais fortes quanto maior a pressão aplicada. No extremo oposto, organizaram-se o Comando de Caça aos Comunistas e o Esquadrão da Morte, cujo poder de ação era maior, por se esconder à sombra do poder que, se não lhes reconhecia os atos, também não era célere nas investigações e nas punições. A cada ação da direita, correspondia uma reação da esquerda; uma e outra caminhavam para os extremos, conjuntamente, procurando manter o equilíbrio da gangorra e, se possível, fazê-la pender para seu lado. Somente o entendimento poderia barrar a escalada da violência e uma das tentativas mais sérias nesse sentido foi a criação da Frente Ampla, assunto do próximo capítulo, com o título: “Conversar é preciso”. A radicalização do processo também será alvo de um capítulo aparte, com o título: “Os anos de chumbo”.

Fecha-se o cerco Castelo Branco elege-se, ainda que por caminhos transversos, apenas para completar o período do Presidente deposto, João Goulart, ou seja, até 31 de janeiro de 1966. Poucos meses após, seu mandato é prorrogado até 15 de março de 1967. O Ato Institucional nº1, de início, chamava-se simplesmente Ato Institucional, pois pretendia ser o primeiro e único. Castelo Branco ainda assinaria mais três e os governos seguintes continuaram editando-os sem parar, criando uma teia de casuismos em que se enredou, até a morte, a democracia brasileira. O AI-2 torna-se o primeiro marco efetivo da “linha dura” instalada nas Forças Armadas. Se não cassou os mandatos dos dois novos governadores de oposição, eleitos por cochilo revolucionário, pelo menos

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acabou com os partidos de representação, obrigando a classe política a se alinhar a um bipartidarismo feito sob medida para impedir que a oposição conquistasse novos postos significativos. Surgem a ARENA, para todo o sempre partido do Sistema, e o MDB, condenado a ser eternamente oposição. Com o AI-3, impedem-se novas eleições diretas para governadores. Cria-se a figura do governador “biônico”, escolhido pelo presidente da República com base em uma lista tríplice, e ratificado pelas Assembléias Legislativas, tendo-se o cuidado prévio de cassar mandatos de parlamentares, quando necessário, para garantir resultados favoráveis. Fortalecida com essas medidas, a “linha dura” impõe Costa e Silva (que, passando para a reserva, foi promovido a marechal) como sucessor de Castelo Branco. Em 15 de março de 1967 o novo Presidente é empossado e, com ele, entra em vigor a nova Constituição, promulgada em 24 de janeiro de 1967, mas que Castelo Branco manteve em um congelador até o último dia de seu governo, garantindo-lhe o uso dos poderes de excessão constantes dos Atos revolucionários.

Quem era Costa e Silva Artur da Costa e Silva nasceu em Taquari, Rio Grande do Sul, em 3 de outubro de 1902. Estudou com Castelo Branco no Colégio Militar de Porto Alegre e formou-se oficial na Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro. Participou das revoltas tenentistas de 1922 (era, então aspirante a oficial), o que lhe valeu a pena de degredo nas ilhas Trindade; esteve presente na revolução de 1930 e na de 1932, para depois se apagar na rotina da caserna. Somente em 1954 seu nome voltou a ter algum destaque, ao participar, com os generais Lott e Denys, do movimento que, em dez dias, derrubou os presidentes Café Filho e Carlos Luz. Em 1963, após entregar o 4º Exército, em Recife, a Castelo Branco, voltou ao Rio de Janeiro e passou a ser um general sem comando. Sua estrela voltou a brilhar somente com a vitória do movimento de 31 de março de 1964. No dia 2 de abril, sendo o oficial mais antigo do Exército, Costa e Silva assumiu o ministério da Guerra e constituiu a Junta Militar Revolucionária, formada por ele, pelo almirante Augusto Rademaker, ministro da Marinha, e pelo brigadeiro Correia de Melo,

ministro da Aeronáutica. Os três se fizeram ministros por consenso, e à revelia do presidente da República, Ranieri Mazzilli. Transplantada a Junta Militar para o governo de Castelo Branco, Costa e Silva tornou-se o representante da “linha dura” no governo e impôs sua candidatura a Castelo Branco, fazendo-se seu sucessor e tomando posse em 15 de março de 1967. Era casado com dona Iolanda Ramos Barbosa, que participou intensamente de sua vida. Tinha uma língua destravada e, não raras vezes, se conhecia por ela assuntos que o sistema pretendia manter em sigilo. O casal teve um único filho, Álcio da Costa e Silva. O novo Ministério ficou assim constituído: Casa Civil, Rondon Pacheco; Casa Militar, general Jaime Portela; Exército (antigo Ministério da Guerra), general Aurélio de Lira Tavares; Marinha, almirante Augusto Hamann Rademaker Grunewald; Aeronáutica, brigadeiro Márcio de Sousa e Melo; Relações Exteriores, José de Magalhães Pinto; Fazenda, Antônio Delfim Neto; Planejamento e Coordenação, Hélio Beltrão; Agricultura, Ivo Arzua Pereira; Indústria e Comércio, general Edmundo de Macedo Soares; Minas e Energia, coronel José Costa Cavalcanti, depois, Antônio Dias Leite; Transportes, coronel Mário David Andreazza; Comunicações, Carlos Furtado de Simas; Interior, general Afonso de Albuquerque Lima, depois, general José Costa Cavalcanti; Educação e Cultura, Tarso de Morais Dutra, tendo como interino, por duas vezes, Favorino Bastos Mércio; Saúde, professor Alfredo Leonel Miranda; Trabalho e Previdência Social, coronel Jarbas Passarinho; Justiça, Antônio de Gama e Silva, sendo substituído, em momentos de interinidade, por Hélio Scarabotolo. Duas coisas se nota nesse ministério: primeiro, a sua estabilidade, não havendo praticamente substituições no decorrer do período; segundo, a quantidade de militares ocupando pastas que normalmente são entregues a civis, como Trabalho e Previdência Social, Interior, Transportes, Minas e Energia, Indústria e Comércio... Era a militarização do regime levada às últimas conseqüências, como se a ação política houvesse se tornado uma questão de segurança nacional.

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1968 – Um divisor de águas Um memorando de Castelo Branco, datado de 1966 e guardado por seu chefe da Casa Civil, Luís Viana Filho, dá conta da irritação do Presidente com a imposição do nome de seu sucessor, feita pela “linha dura”, a qual, na busca de resultados, desenvolvia um serviço de contra-informação, intrigando entre si os ministros de Estado: “É lamentável – escreveu Castelo – que oficiais, na propaganda precipitada da candidatura Costa e Silva, assoalhem mentiras de humilhações do presidente face a atitudes dominadoras do ministro da Guerra, desfigurem a lealdade do chefe do Exército como um favor ao chefe da Nação, criem a chantagem de que já houve um levante na guarnição do Rio, justifiquem grosseiramente a precipitação com a desculpa perversa de continuismo do presidente, procurem amesquinhar as ações corajosas e leais do ministro Juraci Magalhães [Justiça], inimizando-o com o Exército, lancem dentro do Exército a desconfiança sobre o ministro Cordeiro de Farias [Interior], atribuam maldosamente intrigas ao correto e irrepreensível SNI [órgão de inteligência], espalhem mentirosas notícias sobre a conduta errada do Gabinete Militar da Presidência [general Ernesto Geisel], etc. Tudo para enfraquecer o presidente, na tentativa de robustecer o candidato com inverdades e agravos, pretendendo apresentá-lo como tutor do país. É profundamente lamentável.” Era o poder que, aos poucos, fugia das mãos de Castelo Branco, concentrando-se cada vez mais no Sistema que, ao condicionar a seu favor a sucessão presidencial, preparava-se para assumir o governo em sua plenitude. Nessas circunstâncias, o próprio marechal Costa e Silva assumiu a Presidência com seu poder tolhido, mandatário que era das forças externas que o fizeram Presidente, e às quais tinha de apresentar os resultados por elas esperados. O ano de 1967 caracterizou-se pelo confronto entre partidários de Castelo e de Costa. Uma frente ampla formada por Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart tentava abrir conversações com os militares castelistas, e era essa a maior preocupação do novo Presidente. Já no ano de 1968, as atenções do governo voltaram-se para a oposição no

Congresso e para os movimentos de rua, acirrados pela violência policial, exagerada e desnecessária. No primeiro caso, os parlamentares do MDB, em absoluta minoria, exercitavam sua retórica – a única coisa que lhes era permitido fazer – garantindo sua presença no noticiário. No segundo, estudantes e operários movimentavam-se para reconquistar o espaço perdido ou, em alguns casos, até para garantir direitos elementares que lhes estavam sendo negados. 1968 foi, também, o ano dos grandes acontecimentos na França, com a rebeldia estudantil que pôs em cheque o governo do general De Gaulle. Os movimentos dos universitários franceses fizeram eco no mundo inteiro e repercutiram também aqui, dando novo alento ao movimento estudantil brasileiro. Nos primeiros meses desse ano, no Rio de Janeiro, uma passeata pacífica de estudantes pela reabertura de um restaurante estudantil provocou reação inusitada da polícia militar, resultando na morte de Edison Lima Souto, de 16 anos (apenas um menino, como diria a imprensa). No dia seguinte, 200.000 pessoas compareceram ao enterro e a polícia voltou a atacar, matando mais um, causando 60 feridos e realizando 200 prisões. Na missa de 7º Dia, a cavalaria cercou a igreja da Candelária, confinando os que lá se achavam. Esse confronto se espalhou pelo país e avançou por todo o ano de 68. Entre tantos, dois outros incidentes se destacaram e foram apontados como pretensas razões para o fechamento total do regime. Um, foi o discurso do deputado Márcio Moreira Alves (Marcito), em 2 de setembro, conclamando o povo a não comparecer aos desfiles de 7 de setembro; o outro, o lançamento da canção “Caminhando”, de Geraldo Vandré, que os militares consideraram uma afronta às Forças Armadas. Em certo trecho, dizia Vandré: “Há soldados armados, amados ou não;/quase todos perdidos, de armas na mão./Nos quartéis lhes ensinam antigas lições/de morrer pela pátria e viver sem razão.” Havia pretextos suficientes para apertar o torniquete e impedir as manifestações. O governo cuidou, então, de preparar um novo Ato que estabeleceria de vez o poder do estado sobre a nação.

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Preparando-se para a ação Redigido há algum tempo por ordens do ministro da Justiça, Gama e Silva, representante da “linha dura” no governo, se achava na gaveta um Ato visando o fechamento total do regime. Esperava-se apenas a ocasião oportuna para editá-lo. O Presidente resistia, enquanto que um movimento, tendo como núcleo o chefe da Casa Militar, general Jaime Portela, pressionava o governo para sua publicação. Um certo dia, antes de a crise se agravar, o presidente Costa e Silva convocou o ministério para uma reunião, a qual foi gravada para permitir um reexame posterior da fala de cada um. Pediu ao ministro Gama e Silva que fizesse a leitura da minuta do Ato Institucional, ouvindo em seguida a opinião de cada ministro, mas, primeiro que todos, a de Pedro Aleixo, também convidado. O vice-Presidente, então, manifestou suas preocupações, não em relação ao presidente da República e seus auxiliares mais diretos, mas sim quanto à cadeia de comando, que vai-se tornando diluída e incontrolável na medida em que os poderes são repassados a escalões inferiores. O historiador Helio Silva reproduz o pensamento de Aleixo, baseado em depoimento escrito, que lhe foi entregue mais tarde: “Pedro Aleixo disse que, realmente, tínhamos a felicidade de ter, como Presidente, um homem daquelas qualidades exaltadas em Artur da Costa e Silva. Mas perguntava se seria o presidente da República, pessoalmente, que exerceria os poderes que lhe seriam atribuídos. Porque, o que se verifica na prática é que a pessoa do presidente da República, não sendo onímoda [ilimitada, irrestrita] delega aos seus auxiliares as suas atribuições para a execução dos atos de governo. Assim, seus ministros, os chefes dos Gabinetes Civil e Militar, os secretários estudam, propõem as medidas que o Presidente aprova e sanciona, sem participar de sua execução. Por esse processo de delegações sucessivas, em cascata, os poderes presidenciais são exercidos pelos seus auxiliares imediatos. Estes, por sua vez, também transmitem tais poderes aos que os auxiliam, imediatamente. “Assim, a autoridade se transmite até o último elemento da cadeia, que pode ser o mais indigno beleguim policial. (...) Tudo terá sido feito sem o conhecimento do presidente

da República, mas em seu nome, no uso dos poderes absolutos que lhe foram conferidos. Mais ainda: como a censura e as restrições à liberdade de expressão acompanham, invariavelmente as medidas de exceção, o presidente da República e seus auxiliares imediatos podem não ter conhecimento do que ocorre e é atribuído à sua responsabilidade.”

Com vocês, o AI-5 Em 2 de setembro, acontece o discurso do deputado Márcio Moreira Alves já citado acima. Paralelamente, o deputado Hermano Alves publica, no Correio da Manhã, artigos de crítica ao regime. A “linha dura” pressiona para que ambos sejam punidos. O assunto fica pendente por causa da visita da rainha Elizabeth 2ª ao Brasil, em novembro, mas, logo em seguida, o Supremo Tribunal Federal, provocado pelo Executivo, solicita à Câmara Federal a suspensão de imunidade dos dois deputados, para que estes sejam processados. O pedido é negado em 12 de dezembro, por ampla maioria, incluindo-se 96 votos dos próprios deputados governistas. No dia seguinte, 13 de dezembro de 1968 é editado o Ato Institucional nº5 (veja o texto completo no final deste capítulo) acompanhado do Ato Complementar nº38. No preâmbulo, justifica-se a medida, propondo “dar ao país um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica obra democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade humana...” etc., etc. Essas boas intenções não batem com o restante do texto. O presidente da República ganha o direito de interferir nos outros Poderes da República; pode decretar o recesso do Congresso e legislar por decretos; pode intervir nos Estados e municípios “sem as limitações previstas na Constituição”; pode suspender os direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de 10 anos; pode cassar mandatos com prejuízo da bancada, pois não serão mais convocados os suplentes; pode “fixar restrições e proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos e privados”; pode decretar estado de sítio, e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo; suspende a garantia de “habeas-corpus”; finalmente, veta ao Judiciário a apreciação dos atos praticados pelo poder

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público na aplicação do Ato Institucional e respectivos Atos Complementares. O Congresso Nacional, mais uma vez, é posto em recesso e, no mesmo mês, a Constituição de 1967 é alterada em vários pontos. Na História do Brasil, desde a Proclamação da Independência (1822), somente o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) tinha ousado ir tão longe. Em artigo publicado na Folha de São Paulo em 13 de dezembro de 1991, Otto Lara Resende relembra aquele momento: “Na véspera, dia 12, eu estava em Brasília. De madrugada, Carlos Castelo Branco e eu fomos acordar o deputado Márcio Moreira Alves. Ninguém duvidava que a tempestade ia desabar dentro de algumas horas. Nossa preocupação era saber se o Marcito tinha um esquema de fuga. Claro que tinha. Como apertar as cravelhas do arbítrio sem cair no ridículo? Era o que eu me perguntava, no meio de tantas interrogações e perplexidades. “Mas o discurso do Marcito era simples pretexto. Os acontecimentos tinham tomado o freio nos dentes, desde que se rompeu a ordem constitucional em 1964. O primeiro Ato era para durar seis meses e ponto final. Tudo voltaria à ordem democrática. Voltou? Uma ova!” Mais adiante, Lara Resende, com uma ponta de ironia, narra sua visita a Carlos Lacerda, dias depois: “Uma empregada me abriu a porta. O dr. Carlos está lá em cima. Lá estava, sim, na bela biblioteca, sentado na cadeira de balanço, sozinho. A Frente Ampla tinha sido fechada em abril. O Carlos estava interessado em parapsicologia. Foi o nosso primeiro assunto. Depois, os anjos. Ele e eu, mera coincidência, tínhamos comprado um dicionário americano sobre anjos. “Até que caímos na real. Sim, o AI-5. Ele achava que ia ser preso. E foi. O silêncio do telefone nos afligia. Mais de uma hora depois, chegou o Renato Archer (ex-secretário da Frente Ampla). Deixei lá os dois na conversa de gente grande. Fui ler o AI-5. Você já leu? Que coisa mais pífia, santo Deus! E aconteceu. No Brasil.”

Costa e Silva adoece Envolvido em tantos problemas políticos e político-militares, não é de se estranhar que o Presidente não tenha tido tempo para exercer seu papel principal, que é o de governar.

Com efeito, não há obras a registrar no governo Costa e Silva. No primeiro ano de governo, iniciado em abril, teve seu tempo tomado em perseguir a Frente Ampla, que pretendia a retomada das conversações entre civís e militares; O ano de 1968 foi tumultuado com manifestações pacíficas e repressões não tanto assim. O ano de 1969 iniciou-se num confronto aberto entre as duas facções que se formaram nas Forças Armadas, em especial no Exército: A “linha dura”, que se instalara no poder, e os castelistas, que foram alijados dele. O ponto máximo é atingido quando o general Moniz de Aragão, chefe do Departamento de Provisão Geral do Exército, envia carta ao ministro do Exército, general Lira Tavares, fazendo severas críticas ao governo. Como punição, Aragão é destituído de seu cargo, aumentando as tensões entre as duas alas. O Presidente vê-se perdido ao meio de uma guerra sem fronteiras, sentindo-se impotente para restabelecer a disciplina. Na madrugada de 28 de agosto, quinta-feira, Costa e Silva é acometido de enfermidade, recebendo os primeiros socorros ainda em Brasília. Sentindo-se melhor, e “caminhando com suas próprias pernas”, Costa e Silva, acompanhado de seu “staff” presidencial, embarca para o Rio de Janeiro, vai para o Palácio das Laranjeiras e, mais tarde, é internado em um hospital para exame mais criterioso. A doença e seu diagnóstico, trombose cerebral, foram escondidas da população, através da censura aos meios de comunicação. O vice-Presidente, em Brasilia, menos ainda sabia do que estava acontecendo no Rio de Janeiro, ignorado que foi pelo ministério militar do governo. O chefe da Casa Militar, general Jaime Portela, assumiu controle da situação, mantendo os três ministros militares a par dos acontecimentos. Em 30 de agosto, sábado, dois dias após a madrugada fatídica, reúne-se o Alto Comando das Forças Armadas para as primeiras providências visando a substituição, ainda que temporária, do presidente da República. À reunião compareceram, além do general Portela, o ministro do Exército, general Lira Tavares, o ministro da Marinha, almirante Rademaker; o ministro da Aeronáutica, brigadeiro Sousa e Melo; os chefes do Estado Maior das três

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Armas, respectivamente, general Murici, almirante Barros Nunes e brigadeiro Oliveira Sampaio; e o chefe do EMFA (Estado Maior das Forças Armadas), general Orlando Geisel. Tratando-se de um governo revolucionário, essencialmente militar, decidiu-se ignorar por completo a linha sucessória, formada, na ordem direta, pelo vice-presidente da República, pelo presidente da Câmara Federal, pelo presidente do Senado e, finalmente, impedidos todos estes, pelo presidente do Supremo Tribunal Federal. Todos eles foram considerados impedidos e, assim, temporariamente, assumiria o governo uma junta formada pelos três ministros militares.

Assume a Junta Militar No dia 31 de agosto, domingo, chamado pelos ministros militares, o vice-Presidente, Pedro Aleixo, vai ao Rio de Janeiro. Não era, claro, para tomar posse. Depois de receber rasgados elogios por sua capacidade, sua têmpera e boa conduta, toma conhecimento de que não será empossado na Presidência. Quem tem força manda e quem tem inteligência obedece – diz o ditado – e Aleixo aceitou sem protestos a situação de fato que lhe era apresentada, ouvindo, ainda, o arremate final de Lira Tavares: “E além do mais, o senhor foi contra o Ato Institucional nº5.” O carioca, sempre irreverente, quando tomou conhecimento do veto e da reação passiva do vice-Presidente cassado, inventou uma suposta carta de despedida de Aleixo, que dizia: “Nada fiz, nada quis, nada deixo; não me queixo; assinado, Pedro Aleixo.” Foi assim que o Brasil ganhou uma nova Junta Militar, anunciada em proclamação transmitida em cadeia nacional de rádio, e pela televisão, até onde conseguissem chegar os “links” de micro-ondas, já que não havia ainda a transmissão universal via satélite. Foi lido, também, o Ato Institucional nº12, transferindo os poderes de governo para a Junta, até o restabelecimento do presidente Costa e Silva. A censura sobre os meios de comunicação foi intensificada e nenhuma notícia sobre o assunto era transmitida sem passar pelo filtro do poder central. A radicalização de ambos os lados se torna mais aguda: enquanto o governo militar reinicia as cassações, os movimentos de contestação promovem medidas violentas,

dentre as quais, a mais importante foi o sequestro do embaixador americano Burk Elbrik, devolvido em troca da liberdade de 15 prisioneiros políticos, os quais foram embarcados para o México, onde ficaram asilados. Com o poder discricionário nas mãos, os novos governantes não fizeram cerimônia em usá-lo à farta: foram cassados vários políticos, confiscaram-se os bens de outros tantos e os municípios de Santos (SP) e Santarém (PA) tornaram-se zonas de segurança nacional, perdendo sua autonomia, e passando a ser governados por interventores. Explicando, embora não justificando, deve-se colocar em suas devidas dimensões a censura na divulgação de notícias sobre o estado de saúde de Costa e Silva. Não era fruto da ditadura, mas um comportamento típico de Estado. Lembremo-nos de que, em 1985, restabelecida a plenitude democrática, a mesma censura se estabeleceu com relação à doença do Presidente eleito Tancredo Neves, com a divulgação de boletins irreais e até de uma fotografia oficial em que Tancredo, paciente terminal em estado grave, foi sentado em uma poltrona, sustentado nela pelos próprios médicos, para passar ao público a falsa idéia de que ele estava com a saúde quase restabelecida.

Como se faz um Presidente Mas voltemos ao nosso assunto. Tornou-se evidente que Costa e Silva não mais voltaria ao poder e, “cassada” a linha de sucessão, era preciso buscar novos nomes para substituir o Presidente e o vice. Pela primeira vez, o Sistema foi chamado oficialmente a se manifestar, através de listas de consultas pedidas a generais, almirantes e brigadeiros, numa eleição singular, em que cada um deles podia apresentar uma lista triplice para análise. (Como gostavam, os generais, de listas tríplices!) Reunidas e analisadas todas elas, verificou-se uma repetição contínua do nome do general Médici que, por esta razão foi escolhido para Presidente. Quanto ao vice, decidiu-se colocar as barbas de molho: doravante, não se cogitaria mais de civis. Reforçando o esquema, foi escolhido o almirante Rademaker, que participou das duas Juntas Militares, a de 1964 e a de 1969. Apenas dois protestos significativos se registraram em manifestos endereçados pelo general Afonso de Albuquerque Lima (ex-

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Ministro) e pelo almirante Ernesto de Melo Batista. Ambos foram transferidos para a reserva, com base no Ato Institucional nº17 (Veja a que número já chegamos, e era para ser um só). Dois outros detalhes. Primeiro, a Constituição precisou ser alterada para adequar-se à nova ordem institucional, o que se fez por emenda, outorgada pela Junta Militar, invocando os poderes do Ato Institucional nº5. Mas as modificações foram tantas que, na pratica ela passou a ser considerada como uma nova Carta, sendo relacionada como a sétima Constituição do Brasil. Pela ordem tivemos as Cartas de 1823, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, e esta, de 1969, que vigorou até 1988. Segundo, o Congresso teve de ser reaberto para homologar os nomes do novo Presidente, Emilio Garrastazu Médici, e do novo vice-Presidente, almirante Augusto Hamann Rademaker Grunewald. Sem problemas. Ambos tomaram posse em 30 de outubro de 1969, para um mandato que iria até 15 de março de 1974, preenchendo um período de 4 anos e meio.

Epílogo Estávamos até nos esquecendo do marechal ex-Presidente, em seu leito de morte. Pelo Ato Complementar nº71, foram concedidas a Costa e Silva as honras de chefe de Estado (não de Governo, que estava impedido de exercer), reservando-se-lhe, em ambos os palácios, no Rio e em Brasília, um gabinete privativo, para ser usado até 15 de março de 1971, data em que se encerraria seu mandato. Nem era preciso tanta deferência. O marechal Costa e Silva – todos sabiam, e muito bem – estava paralisado em todos os seus movimentos e somente sairia do hospital para sua última morada: morreu em 17 de dezembro de 1969, exatamente quatro dias após o primeiro aniversário do Ato Institucional nº5, que ele editou, e com base no qual foi substituído, primeiro pela Junta Militar, depois pelo novo Presidente que o Sistema, “democraticamente”, escolheu. Dura lex sed lex. A lei é dura, mas é lei.

ATO INSTITUCIONAL Nº5 – DE 13 DE DEZEMBRO DE 1968

(Diário Oficial da União, 13 dez. 1968)

O Presidente da República Federativa do Brasil, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e Considerando que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, “os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria” (Preâmbulo do Ato Institucional nº1, de 9 de abril de 1964); Considerando que o governo da República, responsável pela execução daqueles objetivos e pela ordem e segurança interna, não só não pode permitir que as pessoas ou grupos revolucionários contra ela trabalhem, tramem ou ajam, sob pena de estar faltando a compromissos que assumiu com o povo brasileiro, bem como porque o Poder Revolucionário, ao editar o Ato Institucional nº2, afirmou, categoricamente, que “não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará” e, portanto, o processo revolucionário em desenvolvimento não pode ser detido; Considerando que esse mesmo Poder Revolucionário, exercido pelo Presidente da República, ao convocar o Congresso Nacional para discutir, votar e promulgar a nova Constituição, estabeleceu que esta, além de representar a “institucionalização dos ideais e princípios da Revolução”, deveria “assegurar a continuidade da obra revolucionária (Ato Institucional nº4, de 7 de dezembro de 1966); Considerando, no entanto, que atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la;

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Considerando que, assim, se torna imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranqüilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País, comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária; Considerando que todos esses fatos perturbadores da ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição, resolve editar o seguinte Ato Institucional: Artigo 1º - São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais, com as modificações constantes deste Ato Institucional. Artigo 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sítio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República. Parágrafo Primeiro – Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios. Parágrafo Segundo – Durante o período de recesso, os Senadores, os Deputados federais, estaduais, e os Vereadores só perceberão a parte fixa de seus subsídios. Parágrafo Terceiro – Em caso de recesso da Câmara Municipal, a fiscalização financeira e orçamentária dos Municípios que não possuem Tribunal de Contas será exercida pelo do respectivo Estado, estendendo sua ação às funções de auditoria, julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos. Artigo 3º - O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição. Parágrafo Único – Os interventores nos Estados e Municípios serão nomeados pelo Presidente da República e exercerão todas as funções e atribuições que caibam,

respectivamente, aos Governadores ou Prefeitos, e gozarão das prerrogativas, vencimentos e vantagens fixadas em lei. Artigo 4º - No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais. Parágrafo único – Aos membros dos Legislativos federal, estaduais e municipais, que tiverem seus mandatos cassados, não serão dados substitutos, determinando-se o “quórum” parlamentar em função dos lugares efetivamente preenchidos. Artigo 5º - A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa simultaneamente em:

I – cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;

II – suspensão do direito de votar e ser votado nas eleições sindicais; III – proibição de atividade ou manifestação sobre assunto de natureza política; IV – Aplicação, quando necessário, das seguintes medidas de segurança:

a) liberdade vigiada;b) proibição de freqüentar

determinados lugares;c) domicílio determinado.

Parágrafo Primeiro – O ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer direitos políticos públicos ou privados. Parágrafo Segundo – As medidas de segurança de que trata o item IV deste artigo serão aplicadas pelo Ministro de Estado da Justiça, defesa a apreciação de seu ato pelo Poder Judiciário. Artigo 6º - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo. Parágrafo Primeiro – O Presidente da República poderá, mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregados de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os

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vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço. Parágrafo Segundo – O disposto neste artigo e seu parágrafo primeiro aplica-se, também, nos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios. Artigo 7º - O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo. Artigo 8º - O Presidente da República poderá, após investigação, decretar o confisco dos bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública, inclusive de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem prejuízo das sanções penais cabíveis. Parágrafo Único – Provada a legitimidade da aquisição dos bens, far-se-á a sua restituição. Artigo 5º - O Presidente da República poderá baixar Atos Complementares para a execução deste Ato Institucional, bem como adotar, se necessário à defesa da Revolução, as medidas previstas nas alíneas “d” e “e” do parágrafo segundo do artigo 152 da Constituição. Artigo 10º - Fica suspensa a garantia do “habeas-corpus”, nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Artigo 11º - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos. Artigo 12º - O presente Ato Institucional entra em vigor nesta data, revogadas as disposições em contrário. Brasília, 13 de dezembro de 1968; 147º da Independência e 80º da República. – A. COSTA E SILVA (Presidente da República) - Luís Antônio da Gama e Silva (Justiça) – Almirante Augusto Rademaker Grünewald (Marinha) – General Aurélio de Lyra Tavares (Exército) – José de Magalhães Pinto (Relações Exteriores) – Antônio Delfim Neto (Fazenda) – Coronel Mário David Andreazza (Transportes) – Ivo Arzua Pereira (Agricultura) – Tarso Dutra (Educação) – Coronel Jarbas G. Passarinho (Trabalho) – Brigadeiro Márcio de Souza e Mello (Aeronáutica) – Leonel Miranda (Saúde) –

Coronel José Costa Cavalcanti (Minas e Energia) – General Edmundo de Macedo Soares (Indústria e Comércio) – Hélio Beltrão (Planejamento) – Afonso A. Lima – Carlos F. de Simas (Comunicações).

OBS.: Os destaques em negrito junto às

assinaturas não constam do texto e foram acrescentados por nós para identificar os personagens.

Foram dispensados de assinar o Ato Institucional nº5 os seguintes Ministros: Casa Civil, Rondon Pacheco; Casa Militar, general Jaime Portela; Interior, general Afonso de Albuquerque Lima; Saúde, professor Alfredo Leonel Miranda.

* * *Capítulo Trinta-e-oito

CONVERSAR É PRECISOA Frente Ampla, de cabo a rabo

“Aqui, desterrado e isolado em Fernando de Noronha, cada vez mais me convenço de que a Frente Ampla foi o único movimento importante acontecido no Brasil nos últimos anos. Se há uma verdade irrefutável, é esta que daqui, longe das paixões e das emoções, me parece claríssima: sem o povo, as Forças Armadas não governam este país. Sem as Forças Armadas, o povo não voltará, outra vez, a dirigir os seus próprios destinos. Então, por que não fazer a união de todos, não estabelecer o diálogo amplo, o debate franco e leal das idéias, sem ressentimentos, sem ódios, sem frustrações?” Estas anotações, feitas em agosto de 1967, saíram recentemente da gaveta de Hélio Fernandes, diretor da Tribuna de Imprensa, que acompanhou Carlos Lacerda desde a fundação do jornal, onde continua escrevendo diariamente, com a mesma linguagem franca e desabrida, que tantos problemas lhe causou no correr dos tempos. A idéia de se estabelecer contato entre os setores moderados das Forças Armadas e os grandes líderes civis da época surgiu do vice-governador da Guanabara, Rafael de Almeida Magalhães que exercia, quase que em definitivo, o cargo de governador, já que Lacerda permanecia o máximo de tempo possível sob licença. Dois motivos, pelo menos, levaram Lacerda a se afastar temporariamente da

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política: primeiro, o desentendimento que, desde a vitória do movimento militar, se instalara entre ele e o Sistema que passou a dominar o poder; segundo, a doença de sua esposa, que lhe dava preocupações e exigia o melhor de suas atenções. Com o destaque que lhe dava a posição de vice-governador em exercício, Magalhães, já nos primeiros meses de 1966, falou a Hélio Fernandes das conversações que, de moto próprio, vinha mantendo com políticos próximos de Juscelino. JK, a essa altura, se achava cassado de seu mandato de senador e tinha os direitos políticos suspensos, mas encontrava alguma tolerância, ainda, para exercer articulações políticas, sem grandes restrições por parte do regime. Magalhães e Hélio, pois, acharam oportuno comentar o assunto com Carlos Lacerda e, se bem pensaram, melhor o fizeram. Pela noite adentro, e até altas horas da madrugada, apresentaram um retrospecto dos contatos junto ao PSD e tentaram induzir Lacerda a uma aproximação política com seus tradicionais adversários, o que talvez fosse a única maneira de restaurar o poder político-civil no Brasil. E havia a possibilidade de entendimentos também com a ala militar não alinhada com o governo, disposta a discutir o retorno do poder à nação brasileira, a única com legitimidade para reivindicá-lo e exercê-lo por seus mandatários. Udenista histórico, com uma vida dedicada a combater o caudilho Getúlio Vargas e tudo mais que viesse a representá-lo, havendo atacado de forma violenta e continuada tanto Juscelino quanto João Goulart, Lacerda relutava em sequer estudar uma aproximação com os dois líderes getulistas. Mas, ao final, deixou uma porta entreaberta, ao recomendar aos seus dois interlocutores: “Continuem a conversar, que diálogo não faz mal a ninguém.” Desde 22 de agosto, quando se realizou uma primeira reunião entre lacerdistas e juscelinistas, até 5 de abril de 1968, quando o governo militar reconheceu a Frente Ampla, emitindo a Instrução nº177 que a extinguia, outra coisa não se fez entre eles senão conversar e buscar um entendimento para restabelecer a plenitude democrática. Vale a pena nos infiltrarmos nesse movimento para ver, de perto, como ele nasceu, cresceu e morreu.

Unindo os desiguais Frente Ampla é um nome dado genericamente pela imprensa a uma união de contrários para fins comuns; esse nome não foi escolhido pelos que dela faziam parte e acabou sendo adotado por consenso, pelos meios de comunicação, pelos “frentistas” e até pelo próprio governo, que os queria ver longe de sua presença. Outras frentes amplas o Brasil já tivera no passado, reunindo os desiguais para uma causa igual. Por exemplo, a Aliança Liberal entre políticos e militares, conduzindo-os à revolução vitoriosa de 1930. Também era uma frente a ANL-Aliança Nacional Libertadora, da qual o então jovem estudante Carlos Lacerda fizera parte e que culminou com a fracassada rebelião de 1935. A própria União Democrática Nacional, surgida em 1945 como partido político, de que Lacerda foi, mais tarde, um dos mais expressivos líderes, teve como objetivo reunir as forças de direita, esquerda e centro que tinham como objetivo comum liquidar com o Estado Novo e os resíduos deixados por este após a deposição do ditador Getúlio Vargas. Hélio Fernandes argumenta que só os grandes líderes são capazes de se aproximar para levar, juntos, uma causa maior ainda que eles. Cita a aproximação entre Churchill e seu inimigo Atlee (1ºMinistro inglês); entre John Kennedy e Lyndon Johnson, para garantir a presidência dos Estados Unidos; entre a democracia cristã e o Partido Socialista na Itália; entre o soviético Stalin e o nazismo. Em todos os casos, o acordo entre desiguais, se nem sempre deu certo, demonstrou, ao menos, a grandeza de tais líderes. Na ditadura dos anos 30, Vargas procurou seu adversário Armando de Sales Oliveira, lider da Revolução Constitucionalista, oferecendo-lhe a interventoria no Estado de São Paulo, com a expressão: “Quero que compreenda, em toda a sua amplitude, o significado de meu ato: com este decreto, entrego o governo de São Paulo aos revolucionários de 1932.” Armando de Sales aceitou, o que, para muitos, pareceu traição à causa. “Traidor coisa nenhuma – defende Hélio Fernandes. – Era um líder de verdade, os líderes de verdade têm a obrigação (e às vezes pagam por isso a sua cota de incompreensão) de enxergar os fatos na frente dos outros. (...) Para Armando de Sales Oliveira seria muito

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mais cômodo recusar com arrogância e altivez a interventoria que o ditador lhe oferecia e ir para casa receber os cumprimentos dos tolos que enchem os desvãos da História.”

Caminho de pedras Se é um ato de grandeza, a aproximação entre os desiguais não representa uma tarefa muito fácil, pelo contrário, é uma estrada cheia de pedras, desenvolvendo-se por entre penhascos ou pântanos, com perigos e dificuldades e, após tudo, nem ao menos se sabe se ela chegará ao fim. Os entendimentos com o segundo escalão de JK e Jango até que se desenvolveram razoavelmente bem. A primeira dificuldade foi quando se pretendeu a aproximação pessoal entre Lacerda e JK, os únicos que, no primeiro escalão, se achavam no Brasil, pois Jango, exilado no Uruguai, só participava da vida política brasileira por suas lideranças. Vencido esse obstáculo, foi redigido o manifesto da Frente Ampla e o próximo passo era ir até o Uruguai para um encontro com João Goulart. Quem o fez foi o próprio Carlos Lacerda, em junho de 1966. Divulgado o manifesto junto aos meios de comunicação do Brasil e do exterior, a repercussão foi enorme, durante os meses que se seguiram. De seu lado, a imprensa comentava-o, sem cessar, por seus analistas e colaboradores. Uns recebiam a Frente com entusiasmo, outros com reserva, um terceiro grupo com pedras nas mãos. Para o governo militar, a princípio, o surgimento da frente era mais um motivo de preocupação do que de receio. Acreditava-se nos arraiais governistas que, após o primeiro impacto, a Frente passaria para o rol de tantos outros movimentos mal sucedidos. Não passou. A proposta foi ganhando consistência à medida que o tempo avançava.

Idéias básicas do movimento O raciocínio que levou à formação da Frente Ampla era límpido e cristalino: não pode haver progresso contínuo e consistente sem a participação da sociedade civil, geradora e beneficiária desse progresso. Tal participação exige um constante entendimento entre as forças que, dentro ou fora do governo, exercem influência sobre a vida da nação. Havia, então, e como hoje, um vírus instalado e se reproduzindo em nosso sistema econômico. Relembra Hélio

Fernandes, em suas anotações, que “já estamos [em 1966/67] com um déficit de quase 4 milhões de empregos, esse déficit aumenta à razão de 1 milhão de empregos por ano, e, além de não criarmos novos empregos, ainda vamos eliminando alguns. Sem trabalho não há produção. Sem produção não há desenvolvimento, sem desenvolvimento não há estabilidade, voltamos ao ponto de partida desse círculo vicioso...” Criar estabilidade à economia tinha como premissa criar estabilidade aos governos, garantindo-lhes a data da posse, o período do mandato e a tranqüilidade para planejar e administrar até o último dia do mandato. Na situação em que vivíamos, “...nenhum governo pode saber quando terminará o seu mandato ou se será derrubado muito antes da data marcada”.

Idas e vindas Terminava o governo de Castelo Branco e aproximava-se o dia 15 de março, quando deveria tomar posse Costa e Silva, inspirador de novas esperanças de abertura, pois acenava com um governo “mais humano”, sinalizando disposição para o diálogo e a abertura. Talvez nem ele próprio tinha consciência de quanto era refém do Sistema que dominou o poder, principalmente após a edição do AI-2. O manifesto da Frente Ampla tinha seu lançamento previsto para o dia 13 de março de 1967, dois dias antes da posse do marechal. Coincidência ou não, essa data era o aniversário do malfadado “comício das reformas”, em 1963, o princípio do fim de João Goulart. Se as esperanças eram muitas, não menos eram as desconfianças entre os participantes do movimento de tal sorte que só algumas semanas depois, aparadas as arestas, o manifesto veio a público. Sobre o programa, comenta o historiador Hélio Silva: “O Programa Mínimo Inicial pedia a restauração do poder civil, a preservação da soberania nacional, a retomada do desenvolvimento econômico e a realização de reformas nas estruturas econômica e social. Alguns objetivos imediatos eram colocados: 1) a anistia geral; 2) a elaboração de uma Constituição democrática, garantindo o direito de greve e pluralidade dos partidos e 3) o restabelecimento das eleições diretas para a Presidência e vice-Presidência da República, para os governos dos Estados e

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prefeitos das capitais. Esses três pontos entravam em choque frontal com medidas fundamentais tomadas em nome do movimento de 1964.” As dificuldades eram imensas. Por duas vezes, em abril e em outubro de 1967, a Frente teve de entrar em recesso, não pelo perigo externo, mas por desentendimentos internos. No exterior, Goulart procurava tirar o máximo proveito da aproximação orientando, passo a passo, o procedimento de seus correligionários. Em alguns momentos chegou a radicalizar, prejudicando os entendimentos. Além disso, sua presença na Frente criava nos meios governistas a suspeita de que se preparava, não um entendimento, mas uma contra-revolução. Não eram fáceis, também, as condições de Juscelino Kubitschek. Com mandato cassado e direitos políticos suspensos, passava a maior parte do tempo no exterior e sua presença no Brasil, quando podia fazê-lo, era quase que clandestina. Em certo momento, o governo ameaçou-o com confinamento em alguma região distante do país, o que o obrigou a retornar aos Estados Unidos. Carlos Lacerda, como era de seu temperamento, dava uma no cravo e outra na ferradura. Buscando entendimento, não perdia, entretanto, oportunidade para espicaçar seus adversários, principalmente no âmbito do governo. Abriu uma polêmica ruidosa com o general Muniz de Aragão, o que contribuia para a publicidade, mas não para o entendimento. Em 28 de agosto de 1967, deveria participar de um programa de televisão, mas foi proibido de fazê-lo. O governo evitava, tanto quanto possível, se expor com uma medida repressiva, mas esperava uma oportunidade para dar o bote final, liquidando com a Frente e com suas lideranças.

Relatório secreto ou romance policial ?

Os vários serviços de inteligência, dentro das Forças Armadas e no centro do governo começaram a colher informações sobre atividades de elementos contrários ao governo, dentro ou fora da Frente Ampla e, reunindo-se todos esses fragmentos numa grande colcha de retalhos, surgiu uma história fantástica e inverossímil de suposta ação contra-revolucionária para destruir não só a revolução, como o próprio país.

Voltamos a nos apoiar no brilhante relato do historiador Hélio Silva: “Suspeitava-se que Juscelino Kubitschek, Ademar de Barros [ex-governador de São Paulo, cassado], Carlos Lacerda, João Goulart e outros políticos cassados e insatisfeitos estavam planejando uma contra-revolução no Brasil. Essa conspiração teria sido articulada na França, onde vários cassados tinham recebido homenagens oficiais e oficiosas. Eles teriam, inclusive, apoio de setores governamentais franceses, empenhados em fustigar a expansão dos interesses norte-americanos no Brasil, dentro da posição internacional independente, pretendida pela França na época. “Segundo essas suspeitas, a Frente Ampla, congregando Lacerda, Kubitschek e Jango, seria apenas a parte mais ostensiva da conspiração. O governo tenderia a fixar neles a sua atenção, deixando campo livre para Ademar de Barros. Este, como simples homem de negócios, estaria livre para articular um golpe contra o Governo. “A Igreja Católica, por sua vez, estava sob suspeita de, através de alguns bispos, estar servindo de porta-voz dos integrantes da Frente Ampla. As críticas do Governo por parte de clérigos visariam a desmoralização do Governo ou a provocar uma crise pelo confronto entre Igreja e Governo. “O movimento teria sido marcado para 27 de janeiro de 1968, com foco na cidade de São Paulo. As forças rebeldes seriam constituídas basicamente da poderosa Força Pública, milícia estadual. O dia marcado era um sábado, que vinha depois do aniversário da cidade, 25 de janeiro, numa quinta-feira. O feriado de quinta-feira seria aproveitado por muitos paulistas para um fim de semana prolongado fora da cidade, que assim estaria calma e sem movimento no sábado. “Presas as autoridades civis e militares em São Paulo e consolidado o movimento nesse Estado, haveria a adesão de Minas e, talvez do Rio Grande do Sul. Os políticos da Frente Ampla formariam uma “junta governativa” e declarariam o presidente Costa e Silva ‘fora da lei’. “Não paravam aí as previsões dos órgãos de segurança: um país estrangeiro, a França ou a Rússia, interviria no Centro-Sul do Brasil, ficando os Estados Unidos obrigados a invadir o Nordeste. Seriam os Estados Unidos, então, acusados de invasores, e uma guerra civil destruiria o país.”

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Você quer mais, ou é suficiente? Qualquer governo, assim informado, se acharia em condições e na obrigação de iniciar uma contra-ofensiva para salvar o país, eliminando o perigo interno, nos moldes da doutrina de segurança nacional proposta pelo National War College americano.

Fim da Frente Ampla É até surpreendente que o governo tenha demorado tanto em tomar uma providência para “salvar a democracia e o país”. O ministro da Justiça, Gama e Silva acompanhava de perto os acontecimentos e, deixando de lado os relatórios reservados, esperou por um acontecimento visível, que justificasse, perante o público externo, uma medida de força. Lacerda deu a deixa: em 15 de março de 1968, em um de seus pronunciamentos, veio a público para acusar o general Jaime Portela, de haver usurpado o poder e de ser o verdadeiro chefe de Estado, em lugar do marechal Costa e Silva. Pronto. Assim ficava mais fácil encerrar o assunto. Em 5 de abril de 1968, o ministério da Justiça emitiu a Instrução nº177, proibindo qualquer manifestação política da Frente Ampla que, a partir daquele momento ficava fora da lei, assim como os que ousassem se manifestar em nome dela. Juscelino e João Goulart já se achavam cassados. Carlos Lacerda, fez companhia aos três, perdendo seus direitos políticos e, com eles, o direito de exercer sua profissão de jornalista. Continuou fazendo-o, porém, com o pseudônimo de Júlio Tavares. Hélio Fernandes foi preso e confinado na ilha Fernando de Noronha e, impedido de assinar seus artigos, passou a usar o suposto nome de João da Silva (Quantos há, pelo Brasil afora, com esse nome?). Lacerda também viria a ser preso, porém, só ao final do ano, após a edição do AI-5. Terminou, assim, o sonho do entendimento para a redemocratização do país. Tudo voltou à rotina, como diria Chico Buarque em uma de suas músicas: “Aqui na terra estão jogando futebol; é muito samba e muito rock-and-roll...” De quem foi a culpa ? Os líderes da Frente teriam ido com muita sede ao pote? Teria havido radicalização por parte deles, indispondo-se entre si, ao mesmo tempo em que fustigavam o governo e as Forças Armadas? Por outro lado, se o entendimento entre eles tivesse sido perfeito, nota dez, o

Sistema abriria mão de suas vantagens e convocaria eleições diretas para devolver o poder aos civis? Decida você mesmo, que eu por aqui ainda tenho minhas dúvidas a esse respeito.

Encontro com o destino A Frente Ampla foi extinta em 5 de abril de 1968 pelo ministério da Justiça que reconheceu, assim, a sua existência. Os três principais líderes, Lacerda, JK e Jango, não tendo mais o que fazer juntos, enfiaram, cada qual, a sua viola no saco e foram cuidar da própria vida. Nove anos depois, eles teriam seus destinos unidos, outra vez, pela fatalidade, se é que fatalidade existe: os três morreram no espaço de um ano, com distância de poucos meses, um do outro. O primeiro a ser atingido foi Juscelino Kubitschek. Acostumado a viajar preferencialmente de avião, naquele dia fatídico de 22 de agosto de 1976, não se sabe por que, resolveu ir ao Rio de Janeiro de carro, pela rodovia Presidente Dutra. Nas proximidades de Resende, um ônibus da Viação Cometa abalroou o automóvel, que, desgovernado, atravessou a pista, chocando-se com um caminhão que vinha em sentido contrário, matando JK instantaneamente. Dona Sara Kubitschek, durante toda sua vida, jamais acreditou tratar-se de um acidente, suspeitando que o acontecimento tenha sido premeditado. O inquérito policial traz mais dúvidas que esclarecimentos. As fotos dos corpos de JK e de seu motorista desapareceram do laudo pericial; dos 33 passageiros do ônibus, apenas nove foram ouvidos e nenhum confirma o abalroamento; por falta de provas, o juiz Gilson Vitorino, da Comarca de Resende, inocentou o motorista do ônibus. O mais curioso de tudo é que a notícia da morte de JK por acidente chegou às redações, vindas não se sabe de onde, duas semanas antes de ela acontecer! Acredita-se que a notícia tenha sido um balão de ensaio para aquilatar a reação pública a um fato dessa natureza. Passados 106 dias, em 6 de dezembro de 1976, chegou a vez de João Goulart ser colhido pelas malhas do destino. Na época, Jango estava exilado em sua estância em Mercedes, Argentina. Uma noite, participou de um churrasco e, em seguida, recolheu-se ao seu leito. Amanheceu morto. Causa mortis: colapso cardíaco.

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Em discurso que fez no Congresso Nacional em maio do ano 2000, o senador Pedro Simon diz que o traslado do corpo para São Borja (RS) se fez de forma tumultuada e o carro atravessou a divisa em tamanha velocidade que por pouco não atropelou transeuntes. Autoridades do governo exigiram que o velório se desse de forma reservada e se irritaram quando, na hora do enterro, Pedro Simon e Tancredo Neves resolveram fazer um discurso de despedida. Um assessor confirma que o caixão chegou lacrado com solda e, ao que se informa, o cadáver sangrou pelas narinas durante o velório, coisa incomum em paradas cardíacas. Transcorridos pouco mais de cinco meses, foi a vez de Carlos Lacerda. Internado no hospital com uma crise de diabetes, agravada por uma gripe, teve uma reação adversa aos medicamentos que lhe foram aplicados e veio a falecer, em 20 de maio de 1977. Causa mortis: endocardite bacteriana (infecção cardíaca). Data dessa época a ojeriza de Tancredo Neves a internações hospitalares. Nada como um tratamento doméstico, acompanhado pelo médico de família...

E os outros ? E os outros principais personagens da Frente Ampla? O vice-governador da Guanabara, Rafael de Almeida Magalhães, candidatou-se a governador nas eleições de outubro de 1965 e perdeu para Negrão de Lima. Com o surgimento do bipartidarismo, preferiu juntar-se à Arena (partido governista) para não perder seu espaço político e prosseguiu em sua modesta, mas bem sucedida carreira. Renato Archer, secretário geral da Frente, foi cassado logo ao início do movimento, em 1966. Mais tarde, restabelecidos os direitos políticos, tornou-se vice-governador de seu Estado, o Maranhão. Participou de vários governos e foi, várias vezes, ministro de Estado. Hélio Fernandes, já com 76 anos de idade (nasceu em 1924), prossegue como diretor e principal colunista da Tribuna de Imprensa, jornal de que é proprietário desde 1962, quando adquiriu a parte de Carlos Lacerda, então em sérias dificuldades financeiras. Continua o de sempre: língua destravada, não teme o confronto e não deixa para amanhã o que pode dizer hoje.

Há uns dez anos, participando de uma entrevista pela televisão, Hélio Fernandes respondia às perguntas que lhe eram feitas, citando fatos, nomes e empresas, inclusive algumas que davam apoio financeiro ao canal. Em certo ponto, o apresentador, Ferreira Neto fez um gracejo: “Bem, agora vou ter que encerrar o programa, pois, cada vez que o senhor abre a boca, eu perco um patrocinador...” Promete que, um dia, não sabe quando, deixará o jornalismo para escrever livros contando a História de nossa terra, da qual ele é uma testemunha viva. Que Deus lhe dê vida longa e saúde para que possa cumprir sua promessa.

* * *Capítulo Trinta-e-nove

NINGUÉM SEGURA ESTE PAÍSUfanismo, desenvolvimento e tortura

O governo de Costa e Silva (1967-1969), já o dissemos, esteve de tal maneira envolvido em problemas políticos e político-militares que não lhe sobrou tempo para a administração. Ou foi quase isso, porque a equipe econômica, com Delfim Neto no ministério da Fazenda e Helio Beltrão no Planejamento, longe dos holofotes, completou o trabalho de saneamento iniciado por Castelo Branco. Assim, ao assumir a Junta Militar, o Brasil já se achava praticamente recuperado e dava os primeiros sinais de crescimento, iniciando um período fastigioso, que ficou conhecido como o do “milagre econômico brasileiro”. Era uma bolha de sabão, grande, colorida e brilhante, fascinando a todos e, embora sem consistência para se sustentar por muito tempo, serviu para iluminar o governo Médici, escondendo os reais problemas do país, que o levaram mais tarde à recessão e aos anos oitenta, conhecidos como a “década perdida”. Mas, no início dos anos setenta, quase tudo era festa. O Brasil ganhou a Copa do Mundo; já havia sido feita a integração da Guanabara com o Rio de Janeiro em um só Estado, simbolizada pela inauguração da ponte Rio-Niteroi; o mar de 200 milhas era assunto de todos os dias, no Brasil e fora dele; estávamos construindo a rodovia transamazônica que, num segundo tempo, seria estendida até o oceano Pacífico; após ela se faria outra, transversal, cortando a selva de norte a sul, e mais outra, ocupando

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a calha norte do rio Amazonas. O Brasil transformou-se na décima potência industrial do mundo e, como garantia a propaganda, no ano 2000 seríamos já a terceira potência, superados apenas pelos Estados Unidos e Japão. Por trás desse crescimento, misturado a forte dose de ufanismo, a outra verdade, que a censura escondia dos olhos e ouvidos dos brasileiros: a perseguição política, a tortura e a morte. As guardas-civis foram extintas; as forças públicas foram substituídas pelas polícias-militares, subordinadas ao Exército, onde foi criado um órgão denominado “Inspetoria Geral das Polícias Militares” (IGPM), encarregado do “planejamento, treinamento, armamento e efetivo das polícias militares estaduais”; surgiram milícias paramilitares, como o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e o Esquadrão da Morte. Dos Estados Unidos, vieram “assessores agrícolas” (o mais conhecido foi Dan Mitrioni), cuja função era treinar nossa polícia civil na prática da repressão. O apogeu aconteceria com a ativação do DOI-CODI (Destacamento de Operações Internas – Comando Operacional de Defesa Interna), subordinado ao Exército, com tamanha liberdade de ação que acabou escapando do controle do próprio governo. Os anos setenta foram os anos de contradição. A partir de 1975, demos os primeiros passos para a abertura política, mas a regra geral foi repressão violenta que se estendeu por todo o período; foi a década do desenvolvimento, mas, ao final, iniciou-se forte retração, causada pelo embargo do petróleo, cuja produção no país não representava mais que 25 por cento do consumo. 1970 foi a década das grandes obras, que acabaram se transformando em “elefantes brancos” e aumentaram prodigiosamente nossa dívida externa. Foi a década do sucesso em todas as áreas, entretanto, provocou a paralisação econômica do país por mais de vinte anos; garantiu o pleno emprego, registrou altos índices de crescimento econômico, mas não evitou a miséria e o aumento da concentração de renda nas mãos de uns poucos. 1970 foi, afinal, a década do medo. Sem cidadania, suspensas as garantias constitucionais com o AI-5, introduzidas na Constituição de 1969 a pena de morte e a de

prisão perpétua, qualquer indivíduo, militante político ou não, criminoso ou não, estava a mercê do arbítrio, embora muitos nem chegaram a se aperceber disso. Um arbitrio que se tornava mais forte porque o comando central, em Brasília, sequer tinha conhecimento do que efetivamente se passava nos pontos mais distantes da cadeia de comando. Radicalizando a censura aos meios de comunicação e com os ventos soprando a seu favor, o presidente Médici reinou, então, soberano e absoluto, contabilizando a favor de sua imagem aqueles poucos anos das “vacas gordas”.

Apogeu do Sistema Com a doença do presidente Costa e Silva, mais o veto à posse do vice-Presidente e o impedimento de toda a linha sucessória (presidente da Câmara, presidente do Senado e presidente do Supremo), o Sistema assume o poder de fato e de direito. A eleição do novo presidente da República se assemelha em muito, neste momento, à escolha de um Papa: forma-se um colégio de “cardeais”, com 107 oficiais das Forças Armadas, em nível de general-de-exército (4 estrelas), com seus equivalentes na Marinha e na Aeronáutica, que apresentam, cada qual, uma lista tríplice de preferidos. Esse colégio é, então, afunilado nomeando-se um grupo de apenas 7 oficiais que examinam todas as listas, chegando ao resultado final. Aparece, por fim, a fumaça branca, na chaminé do convento. O processo para a escolha do comandante supremo está completo e a nação pode respirar em paz. O nome apontado na maioria das listas e que recebe o veredicto do colégio maior como novo Presidente é o do general Emílio Médici, completando-se a chapa com um dos próprios componentes da Junta Militar, o almirante Augusto Rademaker, que foi escolhido para vice-Presidente. Os outros dois membros da Junta também se introduziram no governo. O brigadeiro (agora marechal-do-ar) Márcio de Souza aparece como ministro da Aeronáutica. O chefe da Junta, general Lira Tavares, é nomeado embaixador do Brasil na França, justamente o país que mais se insurgia contra militarização do regime brasileiro. Resolvida a etapa de escolha do novo Presidente, falta ainda preencher uma simples formalidade, que seria até

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dispensável, a não ser pela preservação da imagem do Brasil no exterior: nos termos do AI-5, Congresso, que se achava fechado, foi convocado pela Junta Militar para reassumir suas funções e homologar os dois nomes escolhidos. Tudo se faz protocolarmente, e sem maiores restrições. Em 30 de outubro de 1969, enquanto o presidente Costa e Silva padecia em seu leito de morte, assume a presidência da República o general Médici, para um mandato de 4 anos e meio, ou seja, até 15 de abril de 1974.

Quem era Médici Emílio Garrastazu Médici nasceu em Bagé em 4 de dezembro de 1905. Da mesma forma que seus antecessores (Castelo Branco e Costa e Silva) fez seus primeiros estudos no Colégio Militar de Porto Alegre, formando-se oficial pela Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro. Tornou-se general-de-brigada (duas estrelas) em 1961. Durante o movimento militar de 1964, seu nome ganha algum destaque, pois era, naquele momento, o comandante da Academia Militar de Agulhas Negras, uma escola de oficiais fundada por D.João VI e situada num ponto estratégico, na divisa de São Paulo com o Rio de Janeiro e na ligação rodoviária com Minas Gerais. Foi ali que aconteceu o encontro das tropas de Minas e São Paulo com o Regimento Sampaio, que viera supostamente para dar-lhes combate, mas que juntou-se aos rebeldes, voltando vitoriosamente ao Rio de Janeiro. No início de 1969, é promovido a general-de-exército (quatro estrelas) o que o capacita a disputar a presidência da República, tanto mais que, sendo um militar voltado para a profissão, pouco conhecido do grande público e sem ter nunca participado de facções dentro do Exército, aparecia como um precioso elemento de ligação dentro do Sistema. Logo em março de 1969 foi nomeado comandante do 3º Exército, em Porto Alegre, um dos pontos mais vulneráveis do esquema militar. De lá, começavam as articulações políticas para nomeá-lo ministro do Exército, em substituição ao general Aurélio de Lira Tavares, mas os entendimentos foram subitamente cortados com a doença do presidente Costa e Silva, que precipitou os acontecimentos e antecipou o problema sucessório.

A partir de então, ocorreram os fatos já do conhecimento de todos: a Junta Militar assume, a escolha do novo Presidente recai sobre o nome de Médici, que toma posse em 30 de outubro, 49 dias antes da morte do presidente Costa e Silva. Médici era casado com dona Scylla Gaffré Nogueira e tinha dois filhos: Sérgio e Roberto.

Ministério O novo Ministério ficou assim constituído: Relações Exteriores, Mário Gibson Alves Barbosa, ex-aluno da Escola Superior de Guerra; Justiça, Alfredo Buzaid, advogado em São Paulo; Fazenda, Antônio Delfim Neto, de São Paulo, com interinidade de Flávio Pécora; Indústria e Comércio, Fábio Riodi Yassuda, substituído depois por Marcos Vinícius Pratini de Morais; Agricultura, Luís Fernando Cirne Lima, agrônomo, do Rio Grande do Sul; Transportes, coronel Mário Daví Andreazza; Interior, general José Costa Cavalcanti; Trabalho e Previdência Social, Júlio de Carvalho Barata (ex-aluno da Escola Superior de Guerra), com interinidade de Armando de Brito; Educação e Cultura, coronel Jarbas Gonçalves Passarinho; Saúde, Francisco de Paula da Rocha Lagoa, ex-aluno da Escola Superior de Guerra; Planejamento e Coordenação Geral, João Paulo dos Reis Veloso, formado em economia pela Universidade de Yale, EUA; Comunicações, coronel Higino Corsetti; Minas e Energia, Antônio Dias Leite; Exército, general Orlando Geisel; Marinha, almirante Adalberto de Barros Nunes, tendo na interinidade o almirante Antônio Borges da Silveira Lobo; Aeronáutica, marechal-do-ar Márcio de Souza Melo, substituído depois pelo brigadeiro Joelmir Campos de Araripe Macedo; Casa Militar, general João Batista de Oliveira Figueiredo, que fora chefe de gabinete de Médici tanto no SNI como no 3º

Exército; Casa Civil, João Leitão de Abreu, gaúcho, advogado e cunhado do chefe da Junta Militar, general Lira Tavares. Delfim Neto veio do governo anterior, artífice que fora da estabilidade econômica. Também a Junta Militar garantiu sua influência no governo, não só com vice-Presidente, almirante Rademaker, como com ministro da Aeronáutica, marechal Souza Melo e com Lira Tavares, embaixador na França.

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O ministério de Médici conservou as mesmas particularidades do governo anterior: de um lado, a estabilidade, pois não houve praticamente substituições nos 4 anos e meio de governo; de outro, a presença de militares em pastas civis. Aliás, a presença de militares na administração civil não se deu apenas no ministério. Eles marcaram presença na direção e em cargos de segundo escalão em vários setores de governo, bem como nas estatais, caracterizando a militarização da administração pública. Mas há também outra característica: os ministros, militares ou não, são técnicos e não políticos. Inicia-se a era da tecnocracia (ou tecnoburocracia como queriam alguns), que marcaria também os governos seguintes.

Anos de progresso econômico

Logo em seu início, o governo Médici começou a colher os frutos do ajuste econômico que vinha sendo feito desde 1964, dentro das rígidas normas do Fundo Monetário Internacional que, pela primeira vez, deitou e rolou sobre a economia brasileira. O FMI já tentara gerenciar as contas brasileiras com Juscelino Kubitschek, em 1958, e o resultado foi o rompimento unilateral, por iniciativa nossa. A efemeridade da Presidência nas mãos de Jânio Quadros não permitiu o início de negociações mais sólidas e, com João Goulart, a anarquia total impedia um plano econômico nos moldes do FMI. Com Castelo Branco e Costa e Silva, a cartilha foi seguida à risca e, malgrado a recessão e o desemprego registrados a partir de 1965, com semi-paralisação da indústria e do comércio, malgrado também as tensões sociais contidas pelo autoritarismo, os resultados positivos já se faziam sentir ao início do período Médici. O crédito do Brasil no exterior estava restabelecido. Era a época do dinheiro farto no exterior, de muitos aplicadores para pouco mercado. As ofertas de empréstimo chegavam pela linha do telex e eram aceitas pela mesma via. Os capitais voltavam a aportar ao Brasil, tanto na forma de empréstimos a médio prazo como em investimentos industriais no país. Do choque ortodoxo dos anos sessenta, passamos ao plano heterodoxo dos anos setenta. A ordem agora era consumir para aumentar as vendas, gerando novos pedidos

às indústrias que, assim, tinham de contratar mais mão-de-obra, aumentando a renda dos trabalhadores que, por sua vez, incrementava o consumo, gerando novos pedidos. A situação tornou-se, pois, quase surrealista. Empregados que, até então, seguravam seus empregos a custa de sacrifícios pessoais, passaram a demitir-se espontaneamente, buscando novas oportunidades que lhes eram oferecidas. Havia falta de mão-de-obra. Uma empresa da construção civil em São Paulo contratou duplas sertanejas para cantar em praças públicas. Em volta se formava um pequeno público apreciador do gênero e, então, eram distribuídos folhetos anunciando ofertas de empregos para pedreiros, carpinteiros e outros. Uma indústria recém construída em Osasco (Grande São Paulo) mandou divulgadores à porta de outras fábricas, com folhetos em que convidava os empregados destas para comparecer à inauguração da nova unidade e conhecer a oportunidade de novo emprego. Foi um período de ouro para os departamentos de vendas. Agora, eram os compradores que batiam à porta dos vendedores, suplicando por um aumento de cota, ou pedindo a antecipação de entrega de mercadorias já encomendadas. Como conseqüência natural, já que o parque industrial não podia ser ampliado do dia para a noite, começaram a faltar matérias primas, gerando alguma pressão inflacionária, ainda que sob controle. Era o milagre econômico que chegava ao país. Por detrás dele, havia, entretanto, um controle governamental contendo a ação sindical, proibindo greves e manifestações, controlando reajustes salariais e “fabricando” índices de inflação que não batiam com a realidade do dia-a-dia. Mas havia emprego pleno e isso desarmava os sindicatos em sua luta por melhores salários.

A realidade, por trás da fantasia

Escreve E.A.Vieira em seu livro “A República Brasileira”: “O governo Médici usou à vontade da propaganda política, destacando o crescimento do país. Desenvolvia nas mentes a imagem de grande potência, cujo retrato era o ‘Brasil Grande’. Na realidade, entre 1968 e 1973, houve um período de crescimento industrial.

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O Produto Interno Bruto passou de 4,8% em 1967 para 14% em 1973. Em seguida, o Produto Interno Bruto caiu para 9,8% em 1974, e para 5,6% em 1975. Ao mesmo tempo em que o Produto Interno Bruto se elevava, a taxa de inflação manteve-se, ao longo desse período, numa média de 20%. Em se tratando da inflação brasileira, esta taxa era bastante razoável.” E prossegue, mais adiante: “Dentro do período do ‘milagre econômico’ as condições pioraram para quem trabalhava. Em 1969, a produtividade real foi de 5,9, mas os reajustes salariais tiveram seu cálculo com base em 3,0. Em 1971, a produtividade real foi de 8,1, mas os reajustes salariais tiveram seu cálculo com base em 3,5. Em 1973, no fim do governo Médici, a produtividade real foi de 8,4, mas os reajustes salariais tiveram seu cálculo com base em 4,0. (...) “Em 1969, eram necessárias 110 horas e 23 minutos a fim de comprar-se a alimentação mínima (...) Em 1973, eram necessárias 147 horas e 4 minutos para comprar-se a mesma alimentação. Em nome do ‘milagre brasileiro’, ou do crescimento do ‘bolo’, a maioria da população trabalhava mais para comer.” Faça-se, porém, um reparo importante: havia, como dissemos, pleno emprego. Numa casa com 5 pessoas em condições de trabalho, as 5 estavam trabalhando e, por conseqüencia, a renda familiar aumentara de fato. Se os salários fossem mais altos mas, em contrapartida, duas pessoas estivessem trabalhando e as outras 3 desempregadas, a renda familiar cairia brutalmente. Esta foi, além da repressão, uma das causas pelas quais o trabalhador aquietou-se, conformando-se com a visível compressão de seu salário: a renda familiar aumentou substancialmente.

“A taça do mundo é nossa” Em junho de 1970, a TV brasileira entra na era das transmissões mundiais via satélite. Na antena parabólica em Itaboraí (Rio de Janeiro), as imagens chegam a cores. No resto do Brasil, a televisão continua em preto e branco mas, ainda assim, o avanço é sensacional. Pela primeira vez, o brasileiro pode assistir a Copa do Mundo ao vivo, diretamente do México, e ver as “feras do Saldanha” em campo, em tempo real. Primeiro jogo, primeiras emoções: o Brasil vence a Tchecoslováquia por 4 a 1. E, no

jogo final, repete-se a façanha: o Brasil goleia também a Itália, com o mesmo resultado. No campo, as “feras”: Tostão, Gerson, Rivelino, Clodoaldo, Pelé... A seleção brasileira não foi um improviso, antes, resultou de uma operação de guerra em que o governo interferiu, passo-a-passo, para garantir a vitória, importante para o “marketing” da revolução. Por ordem do governo, a CDB (Confederação Brasileira de Desportos) criou a COSENA (Comissão Técnica Selecionadora), limitando ao técnico a possibilidade de escolher livremente os jogadores. E foi com essa equipe que o Brasil experimentou suas primeiras vitórias nas eliminatórias: 5 a 0 contra a Venezuela, em Caracas; 6 a 2 contra a Colômbia, no Rio... Há, também, interferências pessoais. O presidente da República exige, em certo momento, que seja escalado Dario, o “peito de aço”, e recebe a cortante resposta de João Saldanha, dada pelo mesmo mensageiro: “Diga ao Presidente que ele escolhe seus ministros e eu escolho os meus jogadores”. Saldanha é demitido da seleção, por ordem do Presidente e, em seu lugar, fica o técnico Mário Lobo Jorge Zagalo, que incluiu Dario no elenco, firmando-se a paz entre as partes. Durante os preparativos, Médici oferece um almoço aos jogadores no Palácio das Laranjeiras e fala a cada um deles como torcedor bem informado: “Como bom entendedor – reporta um jornal – o Presidente dirigiu-se a cada um dos jogadores de forma especial: saudou a ‘canhotinha’ de Gerson, manifestou esperança nos gols de Dario, perguntou pelo olho de Tostão e dispensou a apresentação a Pelé (‘Este eu já conheço muito’). Everaldo mereceu um cumprimento especial e foi apresentado pelo próprio Presidente a dona Scylla (esposa de Médici): ‘Afinal de contas, ele vai representar nosso Grêmio lá no México’.” É com Zagalo que o Brasil conquista o tricampeonato. A Copa Jules Rimet é nossa para todo o sempre (até que, mais tarde, fosse roubada e derretida). A seleção chega ao Rio de Janeiro em 23 de junho de 1970, sob o delírio do povo. E para não faltar ninguém às ruas, foi decretado feriado nesse dia. O presidente Médici sai à frente do palácio e ensaia uns passes, diante dos

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fotógrafos e cinegrafistas para mostrar que também é bom de bola. Ou, melhor, que é bom de propaganda. Acabava de faturar mais um lance, que aumentaria sua popularidade, obliterando o lado negativo de seu governo. De permeio, alguns lances folclóricos. O Brasil exige da FIFA que a nova taça, a ser usada em 1974, passe a se chamar “Taça Edson Arantes do Nascimento”, o que evidentemente não foi aceito. Em São Paulo, o prefeito Paulo Salim Maluf usa dinheiro público para presentear todos os jogadores com carros zero-quilômetro, ocasionando-lhe um processo que se estendeu por mais de vinte anos e que o obrigou a depositar o valor correspondente em juízo. Por fim, foi absolvido.

Ilusão da Transamazônica Uma das obras mais importantes no plano de governo era a construção da rodovia Transamasônica, cantada em prosa e verso como a redenção da Amazônia. Uma imagem colorida era transmitida à população, de uma estrada asfaltada e moderna, cortando o país de leste a oeste, cercada de um lado e do outro por agrovilas com bem-sucedidos agricultores, os quais encontravam apoio governamental para escoar sua produção, trazendo a grandeza econômica do país. Os sacrifícios para a construção eram imensos, mas o capital, que chegava do exterior na forma de empréstimos, permitia todos esses excessos de propaganda. Enormes tratores eram transportados até a selva bruta, sabe Deus como. Na ausência de mão-de-obra especializada, treinava-se o trabalhador comum, habilitando-o a manejar aqueles gigantes destruidores de árvores e desbravadores de novos trechos de estrada. Algumas agrovilas foram realmente feitas com planejamento e aplicação de recursos: moto-serras, tratores, implementos agrícolas, etc., constituindo-se na base da propaganda oficial. Isto só para algumas agrovilas, que serviam de protótipo. No mais, o homem desbravador, geralmente vindo do nordeste, era jogado à terra bruta com um mínimo de recursos para garantir sua sobrevivência e, no pouco espaço que conseguia abrir com a força dos próprios braços e os golpes do seu machado, nada mais obtinha que uma agricultura de subsistência, sem perspectiva de futuro.

Assim, da Transamazônica, apenas alguns trechos, próximos a cidades já existentes e já com vida própria, chegaram de fato a se desenvolver. O restante acabou sendo engolido pelo mato e pela erosão. O sonho da grande rodovia era outra bolha de sabão que estourou bem antes do previsto. E a conta, representada pelo aumento da dívida externa, ficou por pagar.

“Esse mar é meu, leva teu barco pra lá”

Outra iniciativa do governo Médici, que produziu anos de discussões com a comunidade mundial (e também uma música ufanista) foi a decisão unilateral de ampliar o nosso mar territorial de 12 milhas para 200 milhas, inclusive em torno de nossas ilhas marítimas, como Fernando de Noronha, o Atol das Rocas, Trindade e Martim Vaz. Afora a propaganda favorável ao governo, um dos objetivos concretos era manter afastados sobretudo navios de pesca, que se aproximavam demasiado de nossa costa e, quando conveniente, invadiam nossas águas, causando problemas diplomáticos e, por vezes, um confronto armado com os invasores. Outro objetivo era preservar as riquezas porventura existentes em nossa plataforma continental, que apresenta uma largura média de 90 quilômetros, cinco vezes mais longa que as 12 milhas (18 quilômetros) de nosso mar territorial. Como era de se esperar, nossa pretensão provocou a maior reação das potências mundiais, sobretudo Estados Unidos, que consideravam essas águas importantes para o patrulhamento do oceano; também da França e do Japão, países interessados na pesca dentro do território assinalado. Depois de uma tensa e longa negociação, que despertou também o interesse de outras nações do terceiro mundo, em 1982 foi estabelecida a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Com base nela, em 1983, o presidente Itamar Franco assinaria a Lei Federal nº8617 pela qual o nosso mar territorial, de soberania total, permanece de 12 milhas, como antes; mas, além dessa faixa, o Brasil garante a reserva de mais 188 milhas com soberania restrita à exploração econômica e à gestão dos recursos naturais. Alem dessas 200 milhas (12 + 188), o alto mar permanece internacional, com liberdade de pesca e

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pesquisa científica a todos os países do globo.

Estudantes enfrentam o regime

Nem tudo era paz no governo Médici. Se, de um lado, conseguia manter os trabalhadores sob controle, de outro, os estudantes protestavam contra a perda de espaço, cada vez maior. Já no governo Castelo Branco, a Lei 4.464/64, conhecida como Lei Suplicy (o ministro da Educação era então Flávio Suplicy de Lacerda) proibiu as organizações estudantís de exercerem suas atividades e, no lugar delas foi criado o DNE-Diretório Nacional de Estudantes, pelo qual se pretendia controlar a vida estudantil. Ao final do governo Costa e Silva surgiu o famigerado Decreto-Lei 477/69, proibindo estudantes, professores e funcionários de escola de realizarem manifestações políticas. O governo Médici foi além, proibindo qualquer manifestação estudantil, política ou não. Cassados os direitos de cidadania, foi-lhes retirado até o direito de pensar, como se pensar não fosse um ato natural de quem estuda. A contestação estudantil ao regime e a repressão que daí adveio serão assunto de capítulo aparte. Mas, apenas para ilustrar, reproduzimos nos tópicos seguintes algumas impressões e um depoimento insuspeito sobre o assunto. O depoente é Iberê de Matos, um oficial do Exército, bem ligado ao regime. Iberê estudou com Castelo Branco na Escola Militar do Realengo, foi prefeito de Curitiba, ocupou altos cargos de governo e escreveu um livro exaltando as qualidades do presidente Médici. Sua posição em relação ao regime, pois, tem de ser considerada como equilibrada e não contestatória.

Juventude insatisfeita Em artigo publicado no jornal “O Estado do Paraná”, edição de 11 de fevereiro de 1973, após analisar a rebeldia generalizada dos jovens nos anos sessenta e seus efeitos junto aos estudantes brasileiros, comenta: “Menos exageradas que as dos hippies e assemelhados, surgiram outras reações, principalmente nos meios estudantis e universitários, menos radicais, mas que explodiam nas ruas. Parecia que havia sido inoculado o germe da rebeldia em toda a mocidade, que se agitava e não admitia repressões (...) Ninguém poderia contestar a esses contestadores o direito de exigirem

uma explicação, que não lhes era dada, e assim cresciam em progressão geométrica e acabaram explodindo numa reação em cadeia. O fato é que todos eles sabiam o que não queriam, num direito à negativa, imolados, como eram os animais, nos rituais religiosos primitivos. “Esses moços, que iam às passeatas com suas namoradas ou simplesmente colegas, e que promoviam agitações de rua, de difícil explicação racional, não poderiam ser contidos nos seus impulsos por patadas de cavalos ou tiros de metralhadoras, sabendo-se que havia sido atingido um grau de histeria coletiva em que falam mais alto os instintos selvagens, que existem adormecidos em todos os seres humanos.”

Estudantes versus cavalaria Iberê, então, ilustra com um testemunho próprio, narrando um fato ocorrido ainda no governo Costa e Silva: “Foi espantoso e assustador o que vi. Estava sendo realizada uma passeata de estudantes na avenida Rio Branco, no Rio, com cartazes realmente agressivos e alguns até espirituosos. Não havia dúvida alguma sobre o fato de estarem aqueles moços empolgados pela demonstração de coragem e virilidade que estavam dando, principalmente porque era grande o número de mocinhas, muitas abraçadas com seus destemidos colegas ou namorados, havendo também muitas que ainda eram meninas. Era machismo da parte deles e solidariedade carinhosa o que delas partia como estímulo. “De repente, surge a investir contra eles a Cavalaria da Polícia, com espadas desembainhadas e a distribuir patadas de cavalos e golpes de espada, como se tivessem pela frente uma horda de facínoras perigosos. As janelas dos escritórios da avenida estavam apinhadas pelos que assistiam à passeata, pois todos pararam de trabalhar, num trecho em que todos os prédios eram de mais de dez pavimentos. Gritos de protesto surgiam de todos os lados, e de cima também, porque na carga desvairada dos policiais não eram respeitados nem os que somente estavam assistindo, como curiosos, sendo atingidos até alguns que estavam censurando a atitude dos jovens e mesmo vaiando. “Quando foi completada a missão terrorista, com debandada geral e muitos feridos, os cavalarianos receberam uma ordem de meia-volta. Foi a partir desse

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instante que se iniciou o mais impressionante espetáculo de repúdio que assisti em toda a minha vida. Imagine-se a tropa da cavalaria cumprindo a ordem e sendo obrigada a percorrer, de volta, uma avenida como a Rio Branco, que não é muito larga, com prédios dos dois lados formando muralhas e se assemelhando a uma estreita garganta entre paredões altos, nos quais milhares de pessoas estavam postadas, aguardando a passagem dos selvagens agressores. “Os cavalarianos iniciaram a marcha de retorno, a princípio em trote apressado que, pouco a pouco, foi se transformando em galope de fuga, com o acompanhamento de um coral estridente de vaias que estrugiam como chicotadas de protesto. Imagine-se ainda a surpreendente cena de uma chuva de objetos, os mais estranhos, como um metralhar de petardos improvisados e uma descarga de ódio sobre aqueles primaríssimos profissionais da repressão burra, que se viam transfigurados em demoníacos algozes, no cumprimento de ordens superiores. “Aquela gente revoltada lançava do alto, sobre eles, tudo o que estivesse ao alcance das mãos e se via, como projéteis arremessados, desde cinzeiros, vasos, copos, jarras, cadeiras, livros velhos, enfeites de escritório, espátulas e muitas outras peças, até máquinas de escrever e rolos de papel higiênico, num desabafo incontido da gente dos escritórios.”

Perguntas sem resposta Arrematando o artigo de que estamos reproduzindo uns trechos, Iberê de Matos, ainda que defendendo o regime, faz várias perguntas para as quais não encontrou resposta: “Seria mesmo essa a repressão aconselhável contra meninos e meninas em grande maioria? Seria justificativa aceitável o de saber, e era verdade mesmo, que entre eles houvera a infiltração de agitadores subversivos? Seria construtiva ou preventiva da desordem essa violência, com repercussões negativas até para os que reprovavam as passeatas? “Não teria de ser considerada a hipótese de que muitos desses rapazes, meninos e meninas, pertenciam a famílias que apoiaram a revolução, justamente por terem nela visto um final das agitações e angústias que os atormentavam?

“Não teria de ser previsto o impacto causado nas mães aflitas ao verem chegar em casa uma filha ainda menina e ferida, sabendo-se que, para as mães, aquelas mocinhas ou meninas ainda eram consideradas como seres indefesos, mesmo que, lá fora, estivessem tomando atitudes adultas? “Não teria de ser considerado o fato de que, a partir daquele momento, para os parentes e amigos desses jovens espancados, estava sendo criada uma incompatibilidade de ordem emocional? “Não seria lamentável que essa incompatibilidade estivesse surgindo justamente entre gente simples e boa e um grupo de homens, bem intencionados, que estavam tentando, desesperadamente, conseguir um clima de tranqüilidade para o país?” O episódio foi presenciado por Iberê de Matos que, repetimos, era um oficial do Exército, exercendo atividades políticas dentro do governo revolucionário, não havendo, pois, qualquer exagero em sua narrativa. Também não era um fato isolado. A norma estabelecida para reprimir manifestações era não economizar no uso da força, com vistas a acabar com elas e, paralelamente, criar um clima de temor capaz de desestimular outros movimentos do gênero.

Conclusão Com uma rígida censura aos meios de comunicação, geralmente de forma insidiosa e indireta, mas em alguns casos com a presença dos censores nas redações, foi possível ao governo Médici controlar o noticiário, filtrando os fatos que poderiam chegar ao conhecimento do público. Assim desinformada, não é de estranhar que a população brasileira acabou criando uma imagem favorável do Presidente e do regime que ele representava. O levantamento de opinião pública feito pelo IBOPE em julho de 1971 apontava um apoio ao governo na ordem de 82 por cento, índice jamais alcançado por outro Presidente, antes e depois de Médici. Dentro do calendário eleitoral, o Sistema apresentou como sucessor o nome do general Ernesto Geisel, irmão do ministro do Exército, Orlando Geisel. Como seu Vice, foi apontado o general Adalberto Pereira dos Santos. A oposição apresentou uma candidatura de protesto com Ulisses

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Guimarães para presidente e Barbosa Lima Sobrinho para vice. Simples manifestação de protesto, pois as cartas já estavam marcadas a favor dos candidados do Sistema. Foi assim que o general Ernesto Geisel tomou posse na presidência da República em 15 de abril de 1974, com a difícil missão de iniciar a abertura política, uma abertura lenta, segura e gradual, como ficou definido. Ainda que à custa de um forte endividamento externo, o governo Médici deixou um saldo positivo de realizações: o aumento das exportações com a diversificação dos produtos exportados; a pavimentação de rodovias por todo o país; a criação de polos petroquímicos e a expansão da indústria siderúrgica; finalmente, o acordo com o Paraguai para a construção da usina de Itaipu, na ocasião a maior do mundo. Emilio Médici morreu no Rio de Janeiro em 9 de outubro de 1985. Quatro anos depois, começavam a aparecer os documentos da repressão e as ossadas das vítimas do regime, trazendo a público a face oculta da lua, jamais iluminada pelo sol da verdade. Triste réquiem para um feliz e popular Presidente. Que a terra lhe seja leve.

* * *Capítulo Quarenta

ABERTURA A CONTA-GOTASGoverno Ernesto Geisel

“Se arrependimento matasse eu já estaria morto”, desabafa o ex-Presidente Emílio Médici junto a Roberto Nogueira, seu filho caçula, já nos primeiros momentos do governo do general Ernesto Geisel, quando soube da nomeação do general Golberi do Couto e Silva para a chefia da Casa Civil da Presidência. Em verdade, Médici fazia, desde o início, algumas restrições quanto à escolha de seu sucessor. Primeiro, sua preferência pessoal recaia sobre o general Adalberto Pereira dos Santos que, entretanto, tinha pouca influência nos meios militares, sendo um nome de difícil aceitação. Outra restrição se vinculava à influência que, em seu entender, o general Golberi – com quem Geisel tinha grande aproximação – exercia sobre os governos militares, considerado até como uma eminência parda do regime. Golberi possuia forte intuição política e grande capacidade de articulação, dentro e fora dos quartéis. Quando coronel,

foi ele quem idealizou a Escola Superior de Guerra, nos moldes do War College, transplantando para o Brasil o conceito americano de segurança nacional. Vitorioso o movimento militar de 1964, foi Golberi quem planejou a criação do SNI-Serviço Nacional de Informações, órgão encarregado de cuidar do serviço de inteligência, do qual ele mesmo se tornou chefe. Quando Médici, mais tarde, foi nomeado para dirigir o SNI, Golberi não concordou com a escolha e abandonou o órgão para não dar posse ao sucessor, que encontrou “apenas uma sala vazia e um telefone”. Médici não o perdoou por isso. Assim, ao iniciar-se o processo sucessório, o Presidente procurou induzir seu ministro do Exército, general Orlando Geisel a aceitar a própria candidatura, não encontrando nele qualquer interesse. Foi então que surgiu o nome de Ernesto Geisel, que tornou-se o candidato oficial, com apoio do irmão e com a articulação do chefe do Gabinete Militar de Médici, general João Batista Figueiredo. Manifestada a preocupação de Médici quanto à presença de Golberi, Figueiredo garantiu: “Eles [Golberi e Geisel] estão afastados e há muito tempo não se falam.” Agora, nem bem se inicia o governo, e o general Golberi volta com toda sua influência, nomeado para uma das pastas mais importantes, qual seja, a Casa Civil da Presidência, destinada a cuidar justamente da articulação política dentro do governo. Por fim, o ex-presidente Médici não gostou da participação entusiástica do general Figueiredo, tanto no processo sucessório, quanto no governo de Geisel, dentro do qual assumiu a chefia do SNI. Era como se Geisel, Golberi e Figueiredo formassem um triunvirato para governar o país. A preocupação do ex-Presidente não tinha razão de ser. Ernesto Geisel era extremamente personalista, pouco dado ao diálogo, de rígida moral protestante, vale dizer, dogmático em seus conceitos e inflexível em seus atos. Tomava sozinho as decisões, por vezes radicais, e assumia responsabilidade pessoal por todos os atos de governo. Embora responsável pelo processo de abertura, que se pretendia ser “lenta, segura e gradual”, Geisel apertou ainda mais os freios, usou ao extremo os recursos do AI-5 e

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tornou-se o mais autoritário de todos os governos militares.

Caminho da Presidência Em 1972, Emilio Garrastazu Médici, com seu prestígio atingindo o ponto mais alto, detetou um movimento entre parlamentares no sentido de viabilizar a sua reeleição à presidência da República e, de imediato, desautorizou qualquer iniciativa a respeito, declarando que suas obrigações se encerravam com o término do atual mandato. Prosseguiram, então, os entendimentos para a escolha de um candidato capaz agradar não só aos adeptos da “linha dura” como também aos “castelistas” ou moderados, com o objetivo de iniciar o processo de abertura, diminuindo o poder quase sem limites do Executivo, e restabelecendo as responsabilidades dos outros poderes da República, quais sejam, o Legislativo e o Judiciário. Essa preocupação tinha razão de ser. Nas eleições legislativas de 1972, a Arena conseguiu expressiva maioria no Congresso, assim como nas Assembléias Legislativas, porém, as abstenções, somadas aos votos votos nulos superaram a 30 por cento do eleitorado, contra os 8 por cento registrados em eleições anteriores. O desencanto dos eleitores era tamanho que, em alguns casos, as abstenções mais os votos nulos atingiram até 50 por cento. Não dá para, ao menos, fingir democracia, se o eleitor se afasta das urnas. Abertura não significava necessáriamente a devolução do poder aos civis, mas tão somente restabelecer, a médio prazo, o interesse do cidadão em participar da vida política. A não ser assim, o Sistema, para manter-se no governo, teria de radicalizar cada vez mais e, em verdade, após o AI-5, pouco faltava já para chegar ao totalitarismo pleno. Tanto o general Adalberto Pereira dos Santos, nome inicialmente cogitado, como os irmãos Geisel, preferidos a seguir, eram “castelistas” e, pelo menos estes últimos, tinham ampla penetração nas duas facções das Forças Armadas, reunindo, pois, condições para iniciar o processo de abertura que, numa segunda etapa, abriria o caminho para a redemocratização. Foi assim que, findas as consultas, decidiu-se lançar os nomes de Ernesto Geisel para a presidência da República e de Adalberto Pereira dos Santos para a vice-Presidência.

Oposição participa Desta vez, pelo menos, a oposição decidiu participar das eleições, considerando que, mesmo sem chances de vitória, teria oportunidade de fazer comícios e reuniões propagando suas idéias e pedindo a volta da democracia. Para Presidente, havia consenso em torno do nome de Ulisses Guimarães, que, ao longo dos anos, se firmou como o mais importante líder da oposição. Já para vice, as atenções se voltaram primeiro para o escritor pernambucano Austragésilo de Ataíde, depois para o jurista Heráclito de Sobral Pinto e, finalmente, para o presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Barbosa Lima Sobrinho que foi, afinal, o escolhido. Já o governo, para evitar surpresas, havia alterado até a composição do colégio eleitoral, até então formado pela Câmara Federal e o Senado. Foram acrescentados agora mais seis representantes de cada Estado, escolhidos dentro das respectivas Assembléias Legislativas. O colégio eleitoral passou a ser, assim, de 503 eleitores privilegiados, sendo 63 senadores, 314 deputados federais e 126 deputados estaduais. Na composição por partidos, 401 eram da Arena e apenas 102 do MDB. Como a fidelidade partidária impedia votar em contrários, a vitória do candidato oficial estava mais que garantida. As eleições se realizaram no dia 15 de janeiro de 1974, a partir das 9 horas da manhã. Entre os eleitores havia duas mulheres, coisa rara na política, naqueles tempos. Uma era a deputada federal Necy Novais, da Bahia, e a outra a deputada estadual Dulce Sales Cunha, de São Paulo. O resultado, é claro, não surpreendeu a ninguém. O general Ernesto Geisel obteve 400 votos, enquanto apenas 67 eleitores sufragaram o nome do deputado Ulisses Guimarães. A Arena compareceu em peso e o único ausente era o deputado José Maria Alkimim, que se achava doente. Já a ala radical do MDB se absteve de votar, para não referendar um processo eleitoral que considerava espúrio. O líder do MDB, Alencar Furtado, em seu discurso de abertura, usando luvas de pelica, definiu o voto oposicionista: “O Movimento Democrático Brasileiro [MDB] saúda os eminentes representantes da Aliança Renovadora Nacional [Arena] e presta-lhes a homenagem de sua sinceridade ao

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proclamar que sairá deste recinto, nem vencido nem muito menos convencido, pois haverá esperança para a liberdade enquanto restar um homem sobre a face da terra, e a democracia é o povo, e o povo, sendo eterno, é indestrutível.”

Quem era Geisel Ernesto Geisel nasceu em 3 de agosto de 1908 em Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul e, aos 17 anos, ingressou na Escola Militar do Realengo (RJ). Iniciou cedo sua carreira política. Era tenente e tinha 22 anos, quando participou da vitoriosa revolução de 1930. No ano seguinte, foi nomeado secretário do Interior do Rio Grande do Norte e, em 1932 tornou-se secretário da Fazenda, Agricultura e Obras Públicas da Paraíba. Com a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, quando os ministros militares vetaram a posse do vice-Presidente João Goulart, Geisel, então chefe da Casa Militar do governo provisório de Ranieri Mazzili, manteve firme sua posição de respeito à ordem constitucional, convencendo seus companheiros a aceitar a fórmula intermediária proposta pelo Congresso, que era a emenda parlamentarista. Entre 1964 e 1967, chefiou a Casa Militar do governo Castelo Branco. Depois, entre 1967 e 1969, foi ministro do STM-Superior Tribunal Militar. Deixou esse cargo para assumir a presidência da Petrobrás que, sob sua direção, ganhou novo fôlego e novos rumos. Geisel parecia estar prevendo a crise de abastecimento que viria anos depois. Foi em sua administração que a Petrobrás incrementou a pesquisa de novas jazidas e consolidou a abertura e funcionamento de novos poços petrolíferos, sobretudo com a instalação de plataformas submarinas, que se considerava, até então, caras e ineficientes. Paralelamente, utilizou a Petroquisa para implantar novos polos petroquímicos e, através da Braspetro, firmou convênios com o Iraque, o Egito e o Equador para prospeção e extração de petróleo nesses países. Malgrado a presença da tecnoburocracia, que viciou a administração pública, aumentando os custos e comprometendo o crescimento patrimonial, a verdade é que a Petrobrás passou a ser respeitada no mundo pela sua qualificação técnica, a par com as maiores empresas do ramo.

Geisel era, pois, o homem certo no momento exato. Assumiu a presidência da República em meio ao embargo do petróleo determinado pelos países árabes e sua experiência foi de suma importância para que o Brasil atravessasse essa longa crise com o mínimo de danos possível. Era casado com dona Luci Markus e tinha dois filhos: Amália Luci e Orlando.

Ministério O ministério de Geisel ficou assim constituído: Relações Exteriores, Azeredo da Silveira; Justiça, Armando Falcão; Fazenda, Mário Henrique Simonsen; Indústria e Comércio, Severo Gomes, substituído mais tarde por Pedro Calmon de Sá; Agricultura, Alysson Paulinelli; Transportes, Dirceu Nogueira; Interior, Rangel Reis; Trabalho e Previdência Social, Arnaldo Prietto; Educação e Cultura, Ney Braga, substituído depois por Euro Brandão; Saúde, Mário Machado; Planejamento, João Paulo dos Reis Veloso; Comunicação, Euclides Quandt de Oliveira; Minas e Energia, Shigueaki Ueki; Exército, general Dale Coutinho, depois, general Sílvio Frota e general Fernando Bethlem; Marinha, almirante Azevedo Henning; Aeronáutica, brigadeiro Araripe Macedo; Casa Militar, general Hugo Abreu; Casa Civil, Golberi do Couto e Silva; SNI (Serviço Nacional de Informações), general João Batista Figueiredo. Algumas considerações deve-se fazer sobre a equipe de governo. A primeira é sobre a continuidade da tecnoburocracia, colocando-se técnicos em cargos técnicos. A segunda é a maior utilização de civis em cargos civís, diminuindo a militarização do ministério, ao contrário do que aconteceu no governo Médici. No mais, permanece a estabilidade do ministério já verificada no governo anterior. Severo Gomes foi substituído por Calmon de Sá por razões puramente burocráticas. Euro Brandão assumiu em lugar de Ney Braga para que este fosse indicado governador biônico no Estado do Paraná. Na Casa Militar, a nomeação de Hugo Abreu foi circunstancial. O escolhido era o general Dilermando, que sofreu um acidente, ficando impossibilitado de assumir. Apenas no ministério do Exército a administração foi tumultuada, e bastante. O general Dale Coutinho veio a falecer, sendo substituído pelo general Silvio Frota, da “linha

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dura”. Este, sendo um postulante à sucessão presidencial, e não encontrando apoio de Geisel, rompeu com o governo disparando contra o regime e causando um clima de instabilidade que custou a ser vencido. O periodo restante foi preenchido, então, pelo general Fernando Bethlem.

Crise mundial do petróleo O general Ernesto Geisel tomou posse em 15 de abril de 1974, para um mandato de 5 anos, e o futuro político do país parecia promissor. Ainda nesse mês de abril, as tropas do Exército sufocaram a guerrilha do Araguaia, o último foco de luta armada no Brasil. Dois meses depois é firmado o acordo com o Paraguai para a criação da Hidroelétrica de Itaipu (a maior do mundo), prometendo resolver o problema energético no centro-sul do país. Ficava, entretanto, uma sombra escura projetando-se sobre o futuro, e esta era representada pelo embargo do petróleo, imposto pelos países árabes, ao qual, posteriormente aderiram também os países sul-americanos com produção suficiente para exportar. Contemos a história desde o início. Terminada a Segunda Guerra Mundial, em 1945, os judeus passaram a comprar terras na antiga Palestina, seu lugar de origem e, em 1947, a ONU-Organização das Nações Unidas, recém-criada, numa sessão presidida pelo chanceler brasileiro Osvaldo Aranha, autorizou a criação do Estado de Israel, soberano, com território próprio e governo constituído, depois de quase dois mil anos de peregrinação. No dia seguinte, os países árabes, seus arqui-inimigos, declararam-se em guerra contra Israel, numa atitude puramente retórica, já que não tinham condições, naquele momento, de se lançar a uma luta armada. Era, portanto, mais uma ação de beligerância do que de guerra. A partir de então, foi-se organizando uma frente militar árabe, com auxílio da União Soviética. Essa frente era liderada por Egito, Jordânia e Síria, com apoio do Iraque, Kuwait, Arábia Saudita, Argélia e Sudão, e esperava a oportunidade para uma ofensiva sobre o território israelense.

Confrontos decisivos Foi, entretanto, Israel que tomou a iniciativa do ataque, no confronto que ficou conhecido como “Guerra dos Seis Dias”. Armados pelos Estados Unidos, os

israelenses, em 5 de junho de 1967, aniquilaram a Força Aérea egípcia, atacando depois a faixa de Gaza e o norte do Sinai. Além da derrota, os árabes perderam para os israelenses preciosos territórios habitados, representados pela Faixa de Gaza, a Cisjordânia e as Colinas de Golã. Nos territórios ocupados, os habitantes árabes tiveram, a partir de então, de viver subjugados aos seus inimigos. A ONU ordenou a Israel a devolução dos territórios ocupados, não sendo atendida. Hordas de palestinos fogem desses territórios, indo refugiar-se na Jordânia, Egito e Síria, criando-se nestes países fortes tensões sociais. Era iminente um novo confronto. Em 6 de outubro de 1973 inicia-se aquela que veio a chamar-se a “Guerra de Yom Kipur” por ter-se iniciado quando os judeus comemoram Yom Kipur (Dia do Perdão). Desta vez, foram os árabes que atacaram, com sucesso inicial apreciável, pois, dado ao jejum e ao recolhimento, os israelenses estavam despreparados para responder esse ataque de forma pronta e fulminante. Todavia quando Israel conseguiu contra-atacar, iniciou-se uma conflagração violenta e perigosa, exigindo interferência da União Soviética junto aos árabes e dos Estados Unidos junto a Israel, para pôr fim ao conflito. Foram 19 dias de terror, com enormes perdas em instalações, material bélico e vidas humanas.

Embargo do petróleo Chegamos, finalmente, à parte que nos afeta. Se na “Guerra dos Seis Dias” os árabes se prepararam apenas para a vitória, já na “Guerra de Yon Kipur” havia planos traçados para enfrentar uma derrota que, afinal acabou acontecendo. E essa operação foi executada com maestria, sufocando a economia mundial, provocando inflação até nos países de primeiro mundo, alguns dos quais tiveram de lamber a poeira do chão para garantir o suprimento de petróleo, obrigados que foram a repudiar Israel, que foi, assim, submetido a um parcial isolamento. Ainda em 1973, os países árabes, representados por Arábia Saudita, Kuwait, Irã, Iraque, Abu Dhabi, Argélia, Catar e Líbia decidiram reduzir sua produção de petróleo, provocando o conseqüente aumento de preços. Matavam, assim, três coelhos com uma só cajadada: economizavam suas

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reservas, que não eram eternas; arrecadavam mais dólares com menos trabalho; e, finalmente, usavam o petróleo como arma política contra Israel, que perdia, assim, seu apoio de retaguarda. Até o inicio do embargo, o barril de petróleo custava em torno de 2 dólares. Logo após subiu para 10 dólares e, em 1982, seu preço atingia 33 dólares, ou seja, 16 vezes acima do valor original. O embargo, pois, havendo se iniciado ao fim do governo Médici, atravessou todo o período Geisel, afetando também o governo de seu sucessor. Administrar essa crise era como dirigir um caiaque por entre as corredeiras: um simples deslize, uma manobra em falso, e tudo estaria perdido.

Buscando alternativas Se bem que o petróleo continuava sendo uma fonte importante e imprescindível de energia, já não era mais possível depender quase que exclusivamente dele. Urgia ativar outras fontes de energia alternativas e, ao mesmo tempo, diminuir nossa dependência externa no suprimento de petróleo. O pior é que a crise se instalou de um dia para o outro, mas as soluções, quaisquer que fossem, demandavam tempo para planejamento, construção da infra-estrutura, encomenda de maquinaria, etc. Estávamos no início de uma longa guerra econômica, e o mundo todo não havia se preparado para isso. Nessa época, nossa produção interna de petróleo estava na ordem de 200 mil barris/dia e o consumo era de 700 mil barris/dia. Além da dificuldade em colocar novos pedidos, devido ao embargo, as importações tinham de ser pagas em dólares, ao preço do dia, e nossas exportações de mercadorias minguavam em face da crise internacional. O ministério do Planejamento previa um valor anual de exportações em torno de 20 bilhões de dólares, dos quais pelo menos 8 bilhões seriam gastos na compra de petróleo. Entre as soluções buscadas dentro de um novo planejamento estava em colaborar com a Bolívia para a instalação de um polo de desenvolvimento que lhe permitisse extrair e exportar para o Brasil o seu gás natural; reativar no Brasil poços de pequena produtividade que antes davam prejuízo mas agora, com os novos preços e a escassez de óleo, passaram a ser rentáveis; aumentar a prospecção de petróleo, inclusive em áreas

que, pela distância ou pela menor probabilidade de sucesso, estavam sendo postas de lado; buscar toda fonte de energia possível e imaginável e colocá-la a serviço do país. Finalmente, como não podia deixar de ser, promover intensa economia de energia, evitando todo e qualquer desperdício.

Contratos de risco No dia 9 de outubro de 1975, o presidente Ernesto Geisel ocupa uma rede de televisão e rádio para um grave pronunciamento à nação. Fala de sua passagem pela direção da Petrobrás, de sua defesa ao monopólio mas considera a excepcionalidade do momento, que vem a exigir medidas duras para enfrentar a crise. Logo vem o primeiro impacto. O presidente anuncia o aumento dos preços do combustível refinado: a gasolina sobe 25 por cento e o óleo diesel 10 por cento. Depois, anuncia outra grave decisão, qual seja, a entrega de áreas previamente delimitadas a empresas internacionais para que estas, com seu equipamento e sob risco próprio, façam a prospeção de novas jazidas petrolíferas, garantindo-lhes vantagens na exploração dos poços porventura abertos. Ainda assim, adverte, qualquer sucesso nesse empreendimento, somente será sentido em cinco ou seis anos, não resolvendo a crise imediata. Ele já sabia, e muito bem, a forte reação de seu discurso nos jornais e na opinião pública, por isso, havia providenciado um arrocho na censura, cortando na origem qualquer manifestação de desagrado. Ainda assim, a Tribuna da Imprensa, conseguiu abrir manchete em primeira página: “Prevaleceu o interesse das multinacionais”. E em editorial, também transportado para a primeira página, seu diretor, Hélio Fernandes, comenta: “O monopólio estatal pode ter sido mantido na forma. Mas no conteúdo ele foi esmagado e a Petrobrás violentamente atingida. Não existe nenhuma forma de coexistência do monopólio da Petrobrás e dos contratos de risco.” A censura passa a agir com rigor na Tribuna de Imprensa, nos semanários como o Movimento, Pasquim, Opinião e outros. Os jornais, todos eles, assim como a mídia eletrônica, ficam expressamente proibidos de publicar qualquer matéria envolvendo petróleo, Petrobrás e contratos de risco,

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assim como ficam, também, impedidos de informar os leitores sobre essa proibição. Não obstante, as notícias chegavam aos grupos estudantis ou políticos e, em seguida à população, transmitidas boca-a-boca ou por folhetos. Como quem conta um conto aumenta um ponto, muitas distorções ocorreram nesse processo rudimentar de comunicação e, assim, foi o governo quem mais perdeu com a censura.

Proálcool No mesmo ano de 1975 é lançado o Proálcool-Programa Nacional do Álcool, com objetivo de utilizar álcool hidratado como alternativa em veículos leves, construídos ou adaptados para esse fim. Como tudo mais que foi planejado, esse programa também requeria tempo. Era preciso criar linhas de crédito especiais, delimitar áreas de lavoura para a plantação de cana-de-açúcar, aguardar pelo menos um ano e meio para o corte, criar infra estrutura nas indústrias automobilísticas para a produção de carros e, por fim, convencer o consumidor: “Carro a álcool – um dia você vai ter um”, é o que dizia a propaganda. O programa lentamente foi se firmando, mas havia outras providências a tomar, entre elas, a de evitar que os veículos não adaptados utilizassem álcool irregularmente, aumentando desproporcionalmente o consumo. Os veículos fabricados ou adaptados para tal fim tinham de afixar um selo de garantia no pára-brisa, sem o que os postos estavam proibidos de fazer o abastecimento. Com o petróleo aumentando continuamente de preço, a produção e venda de álcool passou a ser viável economicamente mas o programa sofreu contínuas interrupções, minando sua credibilidade. Em certo momento, a expressão “você ainda vai ter um” passou a soar como uma ameaça e não mais como um voto de confiança. Ainda assim, mesmo nos tempos de maior sucesso, havia uma forte oposição de grupos que consideravam absurdo desperdiçar terra própria para a produção de alimentos, transformando-a em produtoras de combustíveis.

Eleições gerais de 1974 Já dissemos que um dos objetivos da abertura política, lenta, segura e gradual, era motivar o eleitorado, para evitar a repetição de grandes índices de abstenção e votos

nulos. O grande teste seriam as eleições gerais a se realizar em 15 de novembro de 1974, para renovação das Assembléias Legislativas, Câmara Federal e um terço do Senado. O público atendeu ao chamado, compareceu às urnas e o resultado foi surpreendente. O eleitor, cansado de tantas manobras e casuísmos, votou maciçamente no MDB, partido da oposição. A oposição não conseguiu dominar o Congresso mas fez um avanço tão prodigioso que alarmou as hostes governistas. No Senado, das 22 cadeiras em disputa, o MDB arrabatou 17. Só não se tornou maioria porque apenas um terço do Senado estava sendo renovado agora. Na Câmara Federal, o MDB conquistou 160 cadeiras, aproximando-se da Arena, que ficou com 204 vagas. Nas Assembléias Legislativas, fez um total de 330 cadeiras, contra 457 da Arena. Era uma grande promessa para as próximas eleições, quando, seguramente, ultrapassaria o partido do governo. Não estava concluída a fusão entre os Estados da Guanabara e Rio de Janeiro, de maneira que os dois continuavam existindo separadamente. Pois foi a Guanabara, outrora o bastião da revolução de 1964, que deu o grande brado de protesto contra o autoritarismo. Para o Senado, foram 1.150.983 votos ao MDB contra apenas 469.378 à Arena; Para a Câmara Federal, foram 1.160.813 votos ao MDB, contra 410.706 à Arena. E na Assembléia Legislativa os resultados foram de 1.174.945 votos para o MDB, contra 414.607 votos para a Arena. O governo engoliu os resultados, pois ainda mantinha controle da situação e, se preciso fosse, o AI-5 continuava existindo e bem ao alcance das mãos, podendo ser usado, se necessário, tanto para cassar deputados como para colocar o Congresso ou as Assembléias Legislativas em recesso, cassar prefeitos ou fazer o que lhe aprouvesse. Mas os alquimistas de plantão já estudavam medidas para serem aplicadas em tempo devido para que, nas eleições de 1978, a oposição fosse contida, tanto mais que nelas seriam renovados dois terços do Senado. E essas medidas foram tomadas, como se verá mais abaixo.

Eleições municipais de 1976 Em 15 de novembro de 1976 realizam-se eleições municipais em todos os municípios

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do país. Em muitas pequenas cidades, não tendo condições de concorrer, pela força dos caciques locais, o MDB não apresentou candidatos. Em outras, concorreu, mas o sistema de sub-legendas (três candidatos por partido) lhe era desfavorável. Registre-se, de passagem, uma nota folclórica. Em uma pequena cidade de Minas, o candidato único da Arena perdeu as eleições, pois os votos nulos eram em maior quantidade que os votos dados a ele. Voltemos ao assunto. Abertas as urnas, verificou-se que a Arena conseguiu vencer na maioria dos municípios brasileiros. Na somatória dos votos abrangendo o país inteiro, a Arena ficou com 12 milhões e o MDB com 10 milhões. Isto não significa, de maneira alguma, derrota para o MDB, pois justamente nos grandes centros, nos municípios mais politizados, o partido da oposição conseguiu as vitórias mais consistentes, passando a controlar grandes prefeituras e importantes legislativos. Na capital paulista, por exemplo, o MDB fez 13 vereadores, contra apenas 8 da Arena. Essa vitória se multiplicou por outras capitais ou grandes cidades do Brasil. Igualmente, o MDB conseguiu fazer os prefeitos de grandes cidades, a despeito do dispositivo de sublegendas. É bom que se diga que, nesse sistema, vence o partido que, na soma das sublegendas, alcançar maior número de votos. Assim, em muitos casos, o candidato da oposição, embora sendo o mais votado, perdeu as eleições, porque, na soma das sublegendas, os governistas obtiveram maior número de votos. Aparentemente, o governo federal aceitou os resultados das eleições, como se deprende do pronunciamento feito quatro dias depois pelo presidente Geisel, declarando sua satisfação: “Em primeiro, o ambiente em que as eleições transcorreram foi de ordem e tranqüilidade, sem maiores alterações no quadro geral do país; em segundo, minha satisfação resulta, também, do grande comparecimento e reduzido número de abstenções. Acho que é um fato de grande relevância porque mostra a motivação que a campanha criou no povo. Embora tenham dito que as restrições no rádio e na televisão iriam prejudicar a campanha, o comparecimento em massa que se verificou foi o grande desmentido. Em terceiro lugar,

minha satisfação resulta na grande vitória que a Arena está alcançando em todo o país.”

Cortando as asas da oposição

Para controlar excessos no uso do horário gratuito pelo rádio e televisão, em 1976 foi introduzida a Lei Falcão (o ministro da Justiça era Armando Falcão), pela qual a propaganda política seria feita apenas com fotografias e uma voz em “off” dando uma breve descrição do candidato. Todavia, foi também criada uma perigosa exceção. Uma vez por ano, os partidos políticos podiam requisitar horário em cadeia nacional para apresentar, não os candidatos, mas o programa do partido. Usando dessa prerrogativa, o MDB requisitou seu espaço, no que foi atendido. Na noite em que se formou a rede, vários “caciques” do partido desfilaram pelas câmaras de TV e se fizeram ouvir pelo rádio, não só apresentando o programa partidário como criticando o governo e as limitações impostas à democracia. Até aí, nada de mais. O programa foi gravado antecipadamente e o governo tinha pleno conhecimento de seu conteúdo. Poderia ter barrado a transmissão e não o fez. Na avaliação do palácio, era apenas uma das bravatas oposicionistas, sem maiores conseqüências. O que não se contava é com a reação do público. O programa alcançou altos índices de audiência e, no dia seguinte, passou a ser assunto em todas as rodas, seja nos meios políticos, nas fábricas ou nos botequins. Um deputado federal governista narrou sua experiência, vivida logo pela manhã do dia seguinte à transmissão. Durante a viagem entre sua residência e o parlamento, seu motorista olhava, de vez em quando, pelo retrovisor, como que querendo falar alguma coisa. Por fim, não agüentou mais e disse: “Doutor, o senhor viu que lavada, ontem?” Em tal circunstância, o governo não poderia permanecer inerte, sob pena de se desmoralizar. E a resposta veio pesada. Foi cassado o mandato do lider do MDB, deputado Alencar Furtado, assim como foram aplicadas várias outras punições a oposicionistas, com objetivo de demonstrar que o AI-5 continuava em pleno vigor, e o governo estava disposto a usá-lo, sempre e quando achasse necessário.

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Findou-se a paz entre governo e oposição. Daqui para diante, outras medidas excepcionais seriam tomadas para garantir a supremacia do Poder Executivo sobre os demais poderes da República.

Pacote de Abril Aproximavam-se as eleições de 1978 e urgia mexer na legislação eleitoral para evitar medidas “a posteriori” para ajustar os resultados às necessidades do governo. Melhor suportar o desgaste alterando as regras do jogo do que mudar os resultados depois do jogo terminado. O pretexto surgiu quando o governo começou a encontrar dificuldades no Congresso para tramitar a reforma do Judiciário, uma legislação tacanha, que encontrou a oposição quase que total de magistrados e juristas, assim como da Ordem de Advogados do Brasil. Desta vez o governo dependia da oposição, pois a reforma somente seria possível por emenda constitucional com quorum de dois terços do Congresso, mais do que a Arena, sozinha, podia oferecer. O MDB resolveu resistir e enfrentar o governo e o resultado natural foi, novamente, a aplicação do AI-5. O Congresso foi posto em recesso, o que permitia ao governo legislar por decretos. E já que se pretendia alterar a Constituição, incluindo a reforma do Judiciário, o governo aproveitou para, também, modificar outros pontos de seu interesse imediato, incluindo a diminuição do quorum para emendas constitucionais e, também, uma reforma na legislação eleitoral. Foi assim que surgiu o chamado “Pacote de Abril”, editado em 9 de abril de 1977 com a Emenda Constitucional nº8 acompanhada de uma série de decretos-leis, alterando substancialmente a legislação brasileira. Estes são os pontos principais do pacote: O quorum de dois terços para emendas

constitucionais, fica reduzido a maioria absoluta (50 por cento mais um);

As eleições para governador continuam indiretas, mas o colégio eleitoral é ampliado com delegados escolhidos dentro das Câmaras Municipais.

Cria-se a figura do senador biônico. Já nas eleições de 1978, quando serão renovados dois senadores por Estado, o eleitor só poderá eleger um deles, sendo o outro nomeado pelo presidente da República segundo critérios estritamente pessoais.

Os pequenos Estados – sobre os quais o governo tem maior controle – passam a ter pelo menos seis deputados federais. Em contrapartida, diminui-se a representatividade dos Estados maiores, mais politizados.

O mandato de Castelo Branco havia sido de 3 anos; o de Costa e Silva, 4 anos (não completados em virtude de seu falecimento); o de Médici, 4 anos e meio; o de Geisel, 5 anos. Agora, o mandato do próximo Presidente é ampliado para 6 anos, esticando-se, assim, o processo de abertura.

Criou-se um mandato-tampão para os prefeitos e vereadores, de maneira a coincidir com todos os demais mandatos, fazendo-se, então, as eleições gerais em um mesmo dia, e não a cada dois anos, como vinha acontecendo.

Para mostrar-se popular, o governo aproveitou a oportunidade para alterar a lei do Inquilinato, favorecendo, em parte o locatário. Alterou também a CLT, ampliando as férias para 30 dias corridos, o que representava apenas um artifício. O trabalhador já tinha férias de 20 dias úteis que, somados aos domingos e feriados, quase chegavam aos tais 30 dias corridos. A oposição, dentro e fora do Congresso, tentou derrubar as medidas por via judicial, coisa difícil de se conseguir, já que o AI-5 tornava legais (embora ilegítimos) praticamente todos os atos de governo. A OAB, representada por seu presidente, Raimundo Faoro, também enfrentou o governo de maneira contundente, sem obter maiores resultados.

As eleições gerais de 1978 Depois de todas essas modificações, não se pode mais falar em legitimidade das eleições gerais, realizadas em 15 de novembro de 1978. Tudo transcorre de acordo com o que o governo havia planejado e à oposição resta conformar-se, refazendo suas bancadas apenas para garantir o uso da tribuna, já que lhe seria impossível influir nos acontecimentos. No Senado, a Arena conquista 15 cadeiras e o MDB 8. O presidente da República nomeia mais 23 senadores biônicos, de acordo com o pacote de abril, passando o resultado final do pleito para 38 a 8, uma vitória esmagadora. Somados ao outro terço do Senado, que só viria a ser renovado em 1982, a Arena passou a

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dominar 60 por cento da bancada, restando ao MDB os outros 40 por cento. O Estado da Guanabara foi eliminado com a fusão ao Estado do Rio. Em compensação, surge o Mato Grosso do Sul, como desmembramento do Estado de Mato Grosso. Assim, o número de cadeiras no Senado permanece o mesmo, ou seja, 69. Na Câmara Federal, a Arena ficou com 231 cadeiras, contra 189 do MDB (Pelo Pacote de Abril, o número de vagas, na Câmara, foi aumentado para 410). Na soma das Assembléias Legislativas, a Arena ficou com 493 cadeiras e o MDB com 353.

Sucessão presidencial e fim do AI-5

Desde o início do governo Médici já se sabia que o “principe eleito”, ou seja, o seu sucessor, estava escolhido, na pessoa do general João Batista Figueiredo, porém, foi mais difícil do se pensava “endireitar as veredas”, preparando o caminho que o postulante deveria percorrer até chegar à Presidência. Pelo menos dois outros militares – e estes da linha dura – pretendiam a presidência da República: Hugo Abreu, chefe da Casa Militar, e Silvio Frota, feito ministro do Exército após a morte do general Dale Coutinho. Ambos trombaram de frente com o presidente Geisel e foram demitidos, passando em seguida a trabalhar contra o governo. Mais sério foi o caso de Sílvio Frota, que após demitido, iniciou uma operação macartista, anunciando uma lista de supostos “comunistas” que, segundo ele, integravam o governo Geisel. Frota também denunciou um suposto processo de subversão desenvolvido por “comunistas”, infiltrados nos jornais e na mídia eletrônica. Embora superado o incidente, este foi, talvez, o momento mais perigoso no processo de abertura política. Afastados os concorrentes, restava outro problema. João Batista Figueiredo era general-de-divisão (3 estrelas) e precisava ser promovido a general-de-exército (4 estrelas) antes de ser reformado. No Almanaque do Exército seu nome era o quinto colocado, havendo à sua frente os generais Andrada Serpa, Valter Pires, Ernani Ayrosa e Hugo Abreu,. O Almanaque foi atropelado, o nome de Figueiredo passou à frente dos outros e o general conseguiu a sua quarta estrela.

Daí por diante, não houve dificuldades maiores. João Batista de Oliveira Figueiredo foi indicado, eleito e, finalmente, empossado em 15 de março de 1979. O Ato Institucional nº5, que tantos danos causou ao país, foi, finalmente, abolido por Geisel em 1º de janeiro de 1979. Figueiredo assumia o governo, sim, mas teria de governar dentro de um Estado de Direito, respeitando a Constituição e as leis do país. Mas ainda tinha uma vantagem a seu favor: a Constituição de 1969, autoritária deste o princípio, era a esta altura uma colcha de retalhos, carregando todo um “entulho” que somente seria removido dez anos após. A ditadura prosseguia, embora sem o AI-5. O período de abertura se encerrara com Geisel. Cabia, agora, a Figueiredo, iniciar o processo de redemocratização do país.

* * *Capítulo Quarenta-e-um

A DEMOCRACIA “RELATIVA”Governo João Batista Figueiredo

O encaminhamento da candidatura de João Batista Figueiredo à presidência da República não foi um ato circunstancial mas um projeto traçado desde o início do governo anterior. Com efeito, o general Ernesto Geisel, ao assumir a Presidência, cinco anos antes, representando sobretudo a ala moderada das Forças Armadas, tinha a função precursora de realizar a abertura política, a fim de que seu sucessor cuidasse da segunda etapa, qual seja, o processo de redemocratização. Dentro desse plano global, naquela época, o general Figueiredo foi colocado em um dos postos-chave da República, o Serviço Nacional de Informações, cabendo-lhe acompanhar as reações nos meios civis e militares e dosar o remédio segundo a reação do paciente. Para outro ponto vital, que era a chefia da Casa Civil, foi nomeado o general Golberi do Couto e Silva, o cérebro articulador do processo de abertura. O primeiro foi eleito sucessor de Geisel e o segundo permaneceu na Casa Civil após a troca de governo, garantindo, desta forma, a continuidade da transição. A vocação de Figueiredo para a democracia vinha de seu pai, o general Euclides Figueiredo, um dos líderes da Revolução Constitucionalista de 1932, que, sustentando suas convicções, teve de amargar o exílio na Argentina até a anistia

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decretada com a convocação da Assembléia Nacional Constituinte de 1934. Ao falar em abertura, pois, o novo Presidente sempre se referia à “democracia de meu pai”. Tinha o costume de circunscrever a democracia a determinados limites: era a democracia relativa, a democracia do possível, a democracia controlada. Não escondia sua convicção de que uma democracia só é salutar se for dirigida pelo governo, a fim de “cortar os excessos”, idéia que chegou a defender em uma coletiva dada à imprensa estrangeira. Uma democracia que não excluia o uso do autoritarismo, conforme uma frase do próprio Figueiredo: “Infeliz o país que diz não aos seus generais, que diz não aos golpes.” Já em sua primeira entrevista à Folha de São Paulo, ainda candidato, escandalizou a opinião pública, defendendo as eleições indiretas à Presidência e reforçando sua opinião com um exemplo: “Veja se em muitos lugares do Nordeste o povo pode votar bem se ele não conhece noções de higiene? Aqui mesmo em Brasília, eu encontrei, outro dia, num quartel, um soldado que nunca escovara os dentes e outro que nunca usara um banheiro. E por aí vocês me digam se o povo já está preparado para eleger o presidente da República?”(Na campanha das diretas, uma adolescente ironizou a frase usando um cartaz que dizia: “Já sei escovar os dentes; quero votar pra Presidente.”) Era franco e espontâneo em suas reações. Ao inaugurar, numa cidade, a “vaca mecânica” que iria produzir leite de soja para a merenda escolar, experimentou o produto, fez uma careta e exclamou: “Bah, nenhuma criança vai conseguir beber isto!” Em outra ocasião, ao tomar conhecimento do atentado no Riocentro, desabafou: “Essa bomba estourou sobre minha cabeça!” Depois, teve de conformar-se e digerir um inquérito manipulado que adulterou a realidade, transformando os réus em vítimas, para conter os ânimos da “linha-dura”. Essa mesma espontaneidade acabou com a imagem de homem do povo, que vinha sendo criada por seu secretário de Comunicação Social, Saíd Farah. O Presidente passou a chamar-se simplesmente João (“Plante que o João garante”, dizia a mensagem aos lavradores). Figueiredo era levado a lugares comuns,

tomava café com operários, visitava feiras-livres, mantinha contato com o povo... Um dia – 1º de dezembro de 1979 – deu no que deu: foi vaiado por um grupo de estudantes em Florianópolis-SC e partiu para uma sessão de capoeira, enfrentando, corpo-a-corpo, os seus desafetos, e transformando um simples incidente em questão de segurança nacional. A partir desse dia, deixou de ser João e voltou à sua verdadeira face, a do general Figueiredo. Após o incidente, sua imagem foi associada a uma musíca, corrente na época: “João Valentão é brigão, só dá bofetão e não pensa na vida...” Figueiredo se defende: “Não é possível aceitar insultos e ficar calado.” No projeto político que lhe foi confiado, fez o que pôde. Encaminhou o processo de redemocratização mas precisou engolir muitos “sapos”. Não teve pulso para conter a linha-dura e, no caso do Riocentro, perdeu seu grande articulador, o general Couto e Silva, que demitiu-se ao tomar conhecimento dos rumos que seguia o inquérito. Foi substituido, na Casa Civil, por Leitão de Abreu, mais do lado de lá. E, no dia da posse do novo Presidente, saiu pela porta dos fundos para não transferir a faixa ao seu sucessor.

Quem era Figueiredo Assim era o general João Batista de Oliveira Figueiredo, Presidente por direito divino, vivendo seis anos conturbados, em que dizia preferir “o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo” e que, ao final – era o que dizia – contava numa “folhinha” os dias que faltavam para encerrar seu mandato. João Batista de Oliveira Figueiredo nasceu no Rio de Janeiro em 15 de janeiro de 1918. Filho de general (numa família de seis irmãos), aos 11 anos já estava matriculado no Colégio Militar de Porto Alegre-RS e, no ano seguinte, acompanhando o pai, transferiu-se para o Colégio Militar do Rio de Janeiro. Em 1937, aos 19 anos, forma-se aspirante a oficial na Academia Militar do Realengo, como primeiro da turma. Ao receber o espadachim, o presidente Getúlio Vargas, presente à cerimônia, lhe pergunta como conseguiu aplicar-se tanto nos estudos e o cadete responde rápido: “Se não faço isso, meu pai me põe na cadeia!” Em 1958 é promovido a tenente-coronel e em 1961, no governo Jânio Quadros, inicia sua experiência com serviços de inteligência,

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ao ser nomeado chefe do Serviço Federal de Informações e Contra-Informações (precursor do SNI). Com a revolução de 1964, é promovido a coronel assume a chefia do SNI, cargo que voltará a ocupar, mais tarde, no governo Geisel. Sua formação, pois, desenvolveu-se, toda ela, na área da inteligência. Em 1977, como “principe-eleito”, seu nome já é anunciado por Geisel como sucessor, embora faltem quase dois anos para o fim do mandato deste último. Assume em 15 de março de 1979 para iniciar o processo de redemocratização do Brasil. É casado com dona Dulce Maria de Guimarães Castro e tem dois filhos: João Batista (Johnny) e Paulo Renato, este último bem mais conhecido pela mídia.

A difícil graduação do processo Se, por um lado, o novo Presidente tinha consciência de que o autoritarismo precisava ter um fim, por outro, discordava dos que pretendiam ir com muita sede ao pote, achando, mesmo, que Geisel teria se apressado demais no processo de abertura. Figueiredo ressentia-se por não ter às mãos, pelo menos no início, os recursos do AI-5, extinto antes de sua posse: “Eu falei ao Geisel para abrir um pouco a válvula da panela de pressão. Mas ele veio com aquela mãozona de alemão e abriu demais.” Mas reconhecia também que era perigoso retardar demasiado o encaminhamento das soluções, por causa das tensões sociais e políticas e usou de seu estilo “deixe de que eu chuto”: “É para abrir mesmo, e quem quiser que não abra, eu prendo e arrebento.” Como se fosse continuação do governo anterior (e era), logo nos primeiros momentos, Figueiredo arregaçou as mangas e pôs as mãos ao trabalho, encadeando uma série de atos administrativos. Encaminhou o projeto que concedia anistia ampla e irrestrita não só para os chamados “subversivos”, como também para os elementos que faziam parte do aparelho repressor, impedindo, assim, que uns e outros fossem julgados pelos atos que praticaram. A Lei foi sancionada em 28 de agosto de 1979. Era uma anistia de mão dupla. Beneficiou, sim, 4.650 brasileiros banidos e despidos de sua cidadania, que, assim, puderam voltar à pátria. Mas beneficiou, sobretudo, aquela multidão de agentes da repressão, que em momento algum precisaram saír do país, e que agiram à

solta, prendendo, torturando e matando; sobre estes se estendia também o manto protetor da anistia, o que lhes permitiu continuar agindo, à margem da lei, mas sob as vistas grossas do poder público, que não queria ou não podia controlar os atos de terrorismo e intimidação. Em 1981, em regime de urgência, foi enviada ao Congresso uma lei que estabelecia a reforma política, acabando com a figura do senador biônico (exceto para os que já estavam empossados) e restabelecendo eleições diretas para governador. A lei, não apreciada pelos congressistas no prazo regulamentar, foi aprovada por decurso de prazo, recebendo apenas a sanção do presidente da República. O decurso de prazo era um resíduo autoritário garantido pela Constituição de 69, do qual se serviram alguns governantes até a promulgação da Constituição de 88. No governo anterior, os mandatos de prefeitos e vereadores havia sido prorrogado até 1983, permitindo a coincidência das eleições. Assim, foi possível marcar para 15 de novembro de 1982 as eleições gerais para governadores e deputados estaduais, para deputados federais e para a renovação de um terço do Senado, bem como para prefeitos e vereadores. No caso das prefeituras, continuavam sendo nomeados os prefeitos das capitais e das estâncias hidro-minerais bem como das cidades consideradas de segurança nacional.

Economia em declínio O mesmo fator que ajudou o presidente Médici a fechar o regime, com apoio ou indiferença popular, é agora o grande adversário de Figueiredo, dificultando o processo de redemocratização. Seu nome: Economia Nacional. O ministro continua o mesmo, Delfim Neto. Mas a situação, quanta diferença! Da primeira vez, Médici recebera um país estabilizado pelo governo Castelo Branco, encontrou boa vontade dos investidores estrangeiros e crédito fácil para realizar obras, muitas delas faraônicas e de necessidade discutível. Já neste momento Figueiredo encontra um país em apuros, com aumento contínuo nos preços do petróleo, dificuldades para exportar e divida externa crescendo perigosamente. No início do governo, a inflação anual era de 40 por cento, em 1981

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subiu a 90 por cento e ao fim do mandato, já havia ultrapassado os 200 por cento. Recebeu o governo devendo 40 bilhões de dólares e saiu devendo mais de 100 bilhões. A par com a inflação, havia a recessão, o desemprego e o arrocho salarial. No Congresso, encontrou uma reação não experimentada pelos governos anteriores, que obrigava o Presidente a negociar. Para conter os salários foram emitidos, seqüencialmente os decretos-leis 2.012, 2024, 2045 e 2064, todos retirados a tempo para evitar que fossem rejeitados. Por fim, o governo conseguiu o apoio do PTB de Ivete Vargas que lhe deu a maioria necessária e, então, emitiu o decreto-lei 2.065, que passou espremido, mas passou. Os salários eram contidos, enquanto a inflação corria solta. E o PTB, tal qual na República anterior, continuava sendo o fiel da balança, negociando seus votos a peso de ouro. Foi em tal clima que se realizaram as eleições gerais de 1982, as quais repercutiram de forma variada, conforme as condições específicas de cada região do país.

Volta o pluripartidarismo Ainda no governo anterior, foram extintas a Arena e o MDB, restabelecendo-se no país o pluripartidarismo, com um mínimo de exigências para a formação de partidos políticos, e com prazos relativamente longos para o cumprimento das exigências legais, com o que passou a haver um grande número de partidos que tinham sua existência apenas consentida. O pluripartidarismo fazia parte da estratégia governamental. Com a volta das antigas lideranças, após a anistia, a oposição rachou em várias facções, quebrando sua unidade. Foram proibidas as coligações entre partidos e estabeleceu-se o voto vinculado, ou seja, governador e vice, prefeito e vice, etc., tinham de ser escolhidos dentro do mesmo partido, limitando a opção do eleitorado. Isso, aparentemente, enfraqueceu a oposição e fortaleceu a situação, dado que o Presidente só permitiu a existência de um partido oficial, o PDS, considerando oposicionistas todos aqueles que criassem ou se filiassem a outras legendas. Por outro lado, extra-oficialmente, todos os ocupantes de cargos de confiança dentro do governo tinham de filiar-se ao PDS e autorizar o

desconto em folha de uma contribuição mensal para essa agremiação. Os principais líderes oposicionistas formaram, então, os principais partidos da oposição. Como a expressão “partido” tinha, obrigatoriamente de constar do nome, o MDB passou a chamar-se PMDB, sendo ironizado pelo ministro paraense Jarbas Passarinho: “Mas essa é a sigla da Prefeitura Municipal de Belém!” Leonel Brizola e Ivete Vargas disputavam separadamente a sigla do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), com todo o charme que esse nome trazia do período Vargas. Brizola requereu o registro primeiro mas o STF concedeu o nome a Ivete Vargas, alegando que os documentos apresentados por ele estavam incompletos. Com Ivete, voltava o tradicional PTB de centro-direita, como linha auxiliar do governo. Brizola saiu do Tribunal em lágrimas, reuniu seus partidários e fundou o PDT, um partido de centro esquerda. A esta altura, Leonel Brizola era um político experimentado e conciliador, não lembrando nem de longe o Brizola dos tempos de João Goulart. Esses foram os partidos com raízes sólidas, e que se desenvolveram através dos tempos. Mais tarde, surgiria também o PT-Partido dos Trabalhadores, com fundamentos suficientes para subsistir. Ao contrário dos outros, o PT nasceu pequeno, apoiado firmemente nas bases de sustentação, e conseguiu crescer até se emparelhar com os maiores, ganhando voz e credibilidade. No mais, surgiram, em quantidade, partidos sem expressão, conhecidos, quase todos, como “legendas de aluguel”, dado que não tinham chances de se firmar, servindo apenas para tumultuar o processo eleitoral e utilizar (ou alugar) o horário político gratuito por rádio e televisão. Numa dessas legendas, o seu presidente, que se auto-intitulava “o candidato dos explorados”, foi condenado e teve prisão decretada. Em outra, o presidente, conhecido pela alcunha de “Marronzinho” foi processado por crime contra a honra (calúnia, injúria e difamação). Julgado e condenado, cumpriu pena em uma das cadeias da Grande São Paulo. Uns poucos partidos eram realmente idealistas, mas não conheciam a “carpintaria” da política, afundando, assim, em seus próprios ideais. A abertura foi ampla, mas não plena. Os partidos comunistas permaneceram proibidos

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e seus membros se alojaram nas legendas de oposição, sobretudo no PMDB e, mais tarde, no PT. O fantasma da Intentona de 35 continuava a ser agitado nos quartéis, dificultando a sua liberação. Os que tentaram organizar clandestinamente o PCB acabaram sendo presos e só foram anistiados muitos anos depois, quando se permitiu sua legalização. Luís Carlos Prestes, por sua vez, fora marginalizado e o nome em evidência passou a ser o de seu opositor, João Amazonas.

Eleições gerais de 1982 Os governistas, de roupa nova, com a sigla do PDS (a imagem da Arena ficara profundamente desgastada) realizavam sua campanha por todo o país, utilizando a estrutura já existente. Enquanto isso, a oposição, fracionada em várias legendas, tinha a seu favor a rejeição popular ao governo em face da crise econômica. Criticar é mais fácil que governar e a linguagem de palanque seduz mais do que a racionalidade da administração. Ainda que o problema central da economia estivesse no embargo do petróleo, atingindo todo o mundo ocidental e não apenas o Brasil, o fato visível era o empobrecimento cada vez maior da população e o desemprego causado pela recessão. Nas grandes cidades, quase toda família tinha pelo menos um desempregado sendo sustentado pelos demais. E isso numa época em que não existia seguro desemprego ou qualquer outro sistema de proteção, além do que as possibilidades de voltar à atividade eram mínimas, pela falta de oferta de novas vagas. Ainda assim, de um modo geral, as eleições não surpreenderam o governo, que, firmado no coronelismo e na máquina eleitoral lustrosa e lubrificada, conseguiu a maioria das prefeituras e governos estaduais. Mas os três maiores Estados do Brasil – São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais – votaram com a oposição, fazendo os governadores e conseguindo maioria nas assembléias legislativas, bem como conquistando grande número de prefeituras. As tensões sociais reprimidas começaram a explodir, principalmente em São Paulo, logo após a posse do novo governador, Franco Montoro – que substituía o governador biônico Paulo Salim Maluf – o qual assumiu prometendo governar com

pleno respeito aos direitos humanos. Essa expressão, até então, de simples retórica, precisava agora ser dimensionada, para fixar-lhe os limites, separando a liberdade de expressão dos atos atentatórios a essa própria liberdade. Nem o próprio governador sabia exatamente quais esses limites. Praticamente no dia seguinte à posse, hordas de desempregados começaram a realizar passeatas de protesto, principalmente no centro da cidade e na região de Santo Amaro (zona sul de São Paulo), onde os desocupados se achavam em maior número. E, é claro, entre eles se infiltravam agitadores profissionais, provocando quebra-quebras, que o governo federal atribuía à população como um todo. A mídia fotografou populares arrancando e destruindo uma placa de rua com o nome do general Euclides Figueiredo, pai do Presidente, e isso causou transtornos ao novo governador, que mandou substituir incontinente a placa destruída, enviando novas fotos a Brasília para comprovar a restauração. O novo prefeito nomeado para a Capital, Mário Covas, teve de enfrentar um problema semelhante. Ao chegar à sede da Prefeitura, então no parque do Ibirapuera, encontrou um acampamento de desempregados montado quase à frente de seu gabinete. Ex-cassado pela revolução, defensor dos direitos humanos, não considerou o ato como provocação e, deixando de restabelecer a ordem de imediato, perdeu o controle da situação, ficando com um problema que não tinha mais condições de administrar. Pior aconteceu ao governador Franco Montoro. Aumentando dia-a-dia as arruaças, os manifestantes, finalmente, marcharam até a sede do governo e, não sendo contidos pela guarda, derrubaram a cerca do Palácio, espalhando-se pelos gramados e demais áreas externas ao edifício. Nada mais destruíram, mas o impacto psicológico foi grande, simbolizando a falta de autoridade do poder público. De outro lado, desempregados e sem teto invadiram algumas propriedades públicas, como o Colégio Stafford, no centro da cidade, já desativado e tombado pelo patrimônio histórico mas abandonado. Como o governo relutou em desalojar os invasores, o local transformou-se num imenso cortiço, o maior de São Paulo, assim permanecendo até os dias de hoje. Sem resolver o problema

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social, pois seus moradores permaneceram miseráveis, acrescentou-se um problema policial, por transformar-se, o local, em foco de criminalidade, sobretudo com o tráfico de drogas. Por toda a cidade, a situação era tensa. Durante semanas, as casas comerciais tinham de funcionar com as portas semicerradas, com funcionários atentos para fechá-las ao menor indício de distúrbios. Aos poucos, o governo sentiu a necessidade de repor a disciplina e a polícia começou a agir, algumas vezes com violência além do necessário, dando combustível aos adversários. Foi um teste de fogo para os novos governos em todos Estados em que a oposição venceu. Após longo tempo de ostracismo, eles recuperavam o poder e precisavam fixar seus próprios parâmetros, estabelecendo os limites justos para que a liberdade não se transformasse em anarquia. Conseguiram, mas deu trabalho e, com isso, perderam um pouco do charme que tinham ao fazer simplesmente oposição.

Terror à sombra do poder O governo anterior, de Ernesto Geisel, agiu duramente contra os dois lados do confronto político-militar que se instalara no país. Ao mesmo tempo que liquidou com as guerrilhas e movimentos de contestação ao regime, também desativou os órgãos de repressão usando com eles a mesma energia, inclusive com a demissão de seu ministro da Guerra, general Silvio Frota, e do comandante do 2º Exército, general Ednardo D’Avila Melo, representantes da “linha-dura” do Exército. A verdade, porém, é que desativou os órgãos de repressão mas não cuidou de desmontá-los, de sorte que, ao início do governo Figueiredo, todo o aparelho se achava em plenas condições de atuar, agora à margem da lei mas ainda sob a sombra da impunidade, numa escalada de violência objetivando impedir a redemocratização do país. A série de atentados ocorridos desde então durou um ano e meio e tinha articulação cuidadosa, como se depreende da perfeita sincronia com que eram realizados. Em 27 de agosto de 1980 três bombas explodiram em pontos diferentes do Rio de Janeiro. Na OAB-Ordem de Advogados do Brasil, uma delas arrancou o braço da secretária, Lida Monteiro da Silva,

que morreu ao chegar ao hospital; na Câmara Municipal, outro petardo atingiu o assessor José Ribamar e mais cinco pessoas, sendo que Ribamar perdeu um braço e a visão do olho esquerdo; a terceira explodiu no jornal Tribuna da Luta Operária, sem maiores conseqüências, além do susto e da intimidação. No dia seguinte, uma carta-bomba, endereçada ao superintendente da Sunab, foi desativada a tempo. Por todo o ano os atentatos continuaram a ocorrer. Várias bancas de jornais, que vendiam semanários oposicionistas, foram incendiadas, em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e outros Estados. A sede do jornal Hora do Povo foi parcialmente destruída por duas bombas, assim acontecendo com a Tribuna de Imprensa. “Este é um jornal que renasce das cinzas, literalmente – ironiza Helio Fernandes após a destruição da Tribuna de Imprensa por várias bombas – Não é força de expressão, estamos trabalhando no meio de escombros, não há nada que esteja em pé, a não ser a nossa cabeça, cada vez mais lúcida e serena.” Semanas depois, na CPI do Terror, o mesmo Hélio Fernandes depõe: “A Tribuna foi atingida por duas espécies de explosivos. Um, objetivo, e outro, subjetivo. O explosivo objetivo foi o TNT. Mas o explosivo subjetivo foi a IMPUNIDADE NACIONAL, pois só a certeza da impunidade pode levar a atentados monstruosos como esse praticado contra a Tribuna, na semana passada”. Em Minas Gerais, bombas explodiram, por exemplo, em um cinema de Belo Horizonte, no Sindicato dos Jornalistas, no jornal Estado de Minas, no Forum Milton Campos, na sede da OAB e no interior do Estado. Em São Paulo, os alvos principais foram os sindicatos e no Rio Grande do Sul atingiram até a casa de um juíz, como que contestando a validade da Justiça como poder. Isso é apenas uma pequena amostra do que ocorreu naquele pequeno espaço de tempo. Não citamos, por exemplo as bombas no Hotel Everest, onde se achava hospedado Leonel Brizola, na Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, no escritório do jurista Sobral Pinto, em agências bancárias, em locais públicos, por todos os pontos do país. Foram centenas de ameaças e tentativas, entre as quais pode-se confirmar

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pelo menos 40 atentados efetivos em pouco mais de um ano.

Atentado ao Riocentro Entre todos, seguramente, nenhum atentado ganhou tamanha repercussão como o do Riocentro, em 30 de abril de 1981, pretendendo causar pânico e morte durante um espetáculo musical em que se comemorava a passagem do Dia do Trabalho. Não era um atentado comum, mas um complexo em que bombas explodiriam em vários locais do Riocentro e só não causou a tragédia planejada por incapacidade técnica de seus realizadores. Uma delas chegou a detonar na casa de força mas não cumpriu seu objetivo que era o de causar a escuridão e o pânico na sala de espetáculos. Outra bomba – a que trouxe à tona todo escândalo – explodiu dentro de um Puma, no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário (no Exército, especialista em ativação e desativação de bombas) causando-lhe morte instantânea; foi atingido também seu companheiro de “artes”, capitão Wilson Luís Chaves Machado, que perdeu uma das pernas. O sargento, que morreu em “acidente de trabalho” teve funerais de herói, com honras militares e a bandeira nacional sobre o caixão; já o capitão recebeu uma perna mecânica e desfilou na parada de 7 de Setembro, à frente de um batalhão. Foi rapidamente promovido, até chegar ao posto de coronel. O Jornal Nacional da TV Globo noticiou a existência de duas outras bombas dentro do Puma. No dia seguinte, teve de desmentir a notícia, já que o assunto vinha sendo tratado pelas autoridades como segredo de estado. Um inquérito foi aberto na área militar, designando-se para chefiá-lo o coronel Luís Antônio do Prado Ribeiro, que renunciou à missão ao perceber que não poderia fazer um trabalho sério sem ferir o “espírito de corpo”, incriminando companheiros de farda. Assumiu, então, a chefia, o coronel Job Lorena de Sant’Anna, que deitou e rolou, fazendo uma montagem rudimentar dos acontecimentos e concluindo pela inconclusão: não se podia apurar os mentores do atentado, atribuído a elementos de esquerda. “Aparatosa encenação – escreve na época o jornalista Villasboas Corrêa – montada para a divulgação dos resultados do IPM do

Riocentro, desde o cenário armado com meticulosidade calculada, à exibição profusa de slides até a ingênua esperteza da escolha do dia e da hora, exatamente quando o Congresso Nacional mergulha na sonolência de um mês de recesso – não procurou colar a estampilha da credibilidade numa peça política e quase confessadamente política, nos seus objetivos e na sua proposta. (...) Um documento que chega a ser constrangedor na sua fragilidade de porcelana, que não suporta o piparote de uma crítica, que não agüenta o tranco de uma análise.”

Investigação extra-oficial O coronel Dickson Grael, ex-diretor do Riocentro, afastado alguns dias antes do atentado, pôs-se a investigar, sozinho, o outro lado da história, propiciando à imprensa os esclarecimentos que o inquérito não conseguia dar. Reuniu, inclusive, uma série de documentos, como carta solicitando policiamento para o show; ordem de serviço do 18º Batalhão da PM, determinando o policiamento; ato do comandante geral, demitindo o comandante do 18º Batalhão que deu essa autorização (a ordem de policiamento foi suspensa em seguida); auto de exame cadavérico do sargento morto, acompanhado de fotos; e até foto de um pedaço de porta do Puma onde se deu a ocorrência, a qual foi recolhida por Dickson Grael e encaminhada ao Juiz Auditor da 3ª

Auditoria do Exército. A investigação do coronel Grael aponta para alguns acontecimentos que se encadeiam: o seu afastamento da direção do Riocentro, dias antes do atentado; o afastamento do responsável pela segurança, tenente Cesar Wachulec no próprio dia do show e alteração no plano de segurança, deixando a descoberto o policiamento da casa-de-força, onde explodiu uma das bombas; dos 30 portões de saída, 28 ficaram trancados durante o show, restando apenas dois para a evacuação do público, cerca de 20.000 pessoas, quando se instaurasse o pânico; não havia sequer uma ambulância no local (o capitão ferido foi transportado em um carro particular pela neta de Tancredo Neves, dona Andrea Neves da Cunha). E vai por aí. A Justiça Militar, após o julgamento do processo, optou pelo seu arquivamento, por falta de provas conclusivas quanto aos autores do atentado. O único voto contrário

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ao arquivamento foi o do almirante Júlio de Sá Bierrenbach, que insistiu depois pela reabertura do processo, alegando que – pasmem! - nem sequer tinha sido ouvida a principal testemunha, o capitão Machado, o único que viu como as coisas aconteceram. Sem resultado. Somente em setembro de 1999, dezoito anos depois, o inquérito do Riocentro foi aberto, e pra valer. Oficiais que prestaram depoimento no IPM-Inquérito Policial Militar confirmaram que o atentado foi praticado por radicais do DOI-CODI do Rio de Janeiro, “com a conivência da alta hierarquia do antigo regime com a mentira”. O capitão Machado (hoje coronel), apontado anteriormente como vítima, agora figura na condição de réu e co-autor do atentado. E um novo nome surge: o do general Newton Cruz, na ocasião chefe do SNI, denunciado pela Justiça Militar, por falso testemunho. Aos poucos, a verdade vai sendo restabelecida. Pelo menos, para uma retificação da História.

Presidente vacila Não se deu bem o general-Presidente João Batista Figueiredo em seu posicionamento em face ao caso do Riocentro. Desejando contemporizar, evitando atritos com a linha dura, deixou o inquérito correr à solta por conta do Exército, sem usar sua influência, como presidente-militar que era; como representante, que era, do Sistema; como Comandante Supremo, que era, das próprias Forças Armadas. Até seu ministro-chefe da Casa Civil, general Golberi do Couto e Silva, geralmente conciliador, sensato, prudente e tranqüilo, desta vez, perdeu a paciência e demitiu-se do cargo, diante da passividade do Presidente, sendo substituído por Leitão de Abreu, mais próximo à “linha-dura”. O general Diogo Figueiredo, irmão do Presidente recusou-se a ler os resultados do inquérito frente a seus comandados – conforme ordem do 1o Exército – por considerá-lo irreal e distorcido. Em 8 de maio de 1991, dez anos após o incidente, Figueiredo divulga uma longa mensagem à imprensa, tentando se defender, e dizendo, entre outras coisas: “Preservei a autonomia soberana da Justiça. Na época, antes mesmo de iniciados os procedimentos de inquéritos, declarei que não ingeriria no caso, que respeitaria de forma absoluta e isenta qualquer caminho

que as investigações e o posterior julgamento tomassem. (...) Se não tivesse agido dessa forma teria comprometido de forma irremediável a única estratégia possível para atingir o objetivo maior de meu governo, de restaurar o Estado Democrático de Direito no Brasil.” Pelo menos ao público externo, Figueiredo sempre se disse indefinido com relação ao episódio, analisando as duas probabilidades: “Se foi do lado de lá, não poderia ser mais inteligente; se foi do lado de cá, não poderia haver burrice maior.” O ponto positivo no atentado do Riocentro foi o de que ele gerou forte clamor popular, fazendo retrair as forças de repressão que, após seu “canto do cisne”, começaram a declinar nas atividades terroristas. O ponto negativo é que a autoridade do presidente da República, chefe supremo das Forças Armadas, saiu bastante enfraquecida do episódio, perdendo em certo ponto o apoio dos liberais que, aos poucos, foram se afastando do governo, abrindo espaço para a entrada dos radicais.

Isolando o vice-Presidente Envolvido em crônicos problemas de coluna, Figueiredo teve ainda de enfrentar um enfarto do miocárdio e, em 1983, voltou a internar-se em um hospital de Cleveland (EUA) para colocar uma ponte de safena e outra de mamária. Em ambos os casos foi substituído por seu vice, Aureliano Chaves, mas em ambos os casos, também, cuidou de afastar os seus ministros do convívio com seu substituto. Alguns viajaram estrategicamente em missões oficiais; outros, levou-os consigo aos Estados Unidos, por conta e ordem do Tesouro Nacional. Ainda assim, não se viu livre de um sério incidente, em 1983. Achando-se investido como Presidente em exercício, Aureliano Chaves deu algumas instruções ao ministro da Previdência Social, Jarbas Passarinho, um dos poucos que ficaram em Brasília, e este recusou-se a cumpri-las, declarando que só receberia ordens do presidente Figueiredo. Irritado, Aureliano demitiu-o e Passarinho recusou-se a acatar a demissão, alegando que “um ministro é nomeado em português e demitido em latim [ad-nutum] mas só por quem está habilitado a fazê-lo”. Assim que soube do acontecido, o presidente Figueiredo deu razão ao ministro, desautorizando o vice-Presidente. Com isso, criou uma situação irreversível, afastando de

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seu convívio não só o vice, como todo o bloco de apoio que ele representava. O vice-Presidente foi convidado para as comemorações do Dia do Soldado, em 25 de agosto mas, logo em seguida, o convite foi retirado pelo próprio ministro do Exército, general Valter Pires. Afora a falta de polidez, nenhum reparo poderia ser feito, dado que essas festividades são restritas à classe militar e apenas o Presidente deve ser convidado, por ser o comandante supremo das Forças Armadas. Acontece que, aproximando-se as comemorações de 7 de Setembro, Aureliano também não recebeu o convite para estar presente ao desfile e, incontinente, enviou uma nota aos organizadores, advertindo que permanecia investido no cargo de vice-Presidente constitucional e que não toleraria qualquer atitude que viesse a quebrar o protocolo. O vice-Presidente exerce cargo e não função. Não é um eventual, mas um elemento ativo do governo e, como tal não pode ser ignorado pelo protocolo em cerimônias públicas Diante disso, o convite lhe foi encaminhado mas, durante o desfile, tanto o presidente Figueiredo quanto sua comitiva ignoraram por completo a presença de Aureliano Chaves, que permaneceu no palanque completamente isolado. Aureliano não perdoou a grosseria, que serviu para afastá-lo, ainda mais, do bloco presidencial.

O governo e o trabalhador Durante todo seu governo, João Batista Figueiredo fugiu ao diálogo com trabalhador brasileiro e, quando se lembrou dele, foi para aplicar o arrocho salarial determinado pelo Decreto-Lei 2065. Não evitou, porém, que estourassem greves reivindicatórias, todas julgadas pela Lei de Greve implantada pela ditadura militar e, por conseguinte, todas elas declaradas ilegais. O governo tinha inclusive o poder de interferir nos sindicatos e não hesitou em fazê-lo, quando lhe conveio. Os momentos de maior tensão social ocorreram nas greves dos metalúrgicos do ABCD (Santo André, São Bernardo, São Caetano e Diadema) em 1979 e 1980, quando a cidade de São Bernardo do Campo virou praça de guerra, com a Polícia Militar e a Polícia Civil tomando a cidade por terra, enquanto helicópteros do Exército faziam vôos de reconhecimento e de intimidação. O direito de ir e vir dos grevistas foi, a toda hora

contestado e, em certos momentos, foi-lhes impedido até de realizar suas Assembléias. Em 1979, o movimento grevista foi rápido. Iniciou-se em 14 de março e encerrou-se 13 dias depois, em 27 de março, o que não impediu a intervenção do ministério do Trabalho no Sindicato, afastando temporariamente o presidente Luís Inácio da Silva (Lula). Já a segunda greve, em 1978, custou 65 dias de tensão para os trabalhadores e também para a polícia, trazendo, como conteúdo adicional, uma instabilidade ao regime, pelo que se tornou um dos momentos mais delicados dentro do processo de transição. De seu lado, o governo insistia na aplicação, com todo o rigor, de uma lei de greve ilegítima e irreal, que impedia as montadoras de veículos e demais empresas metalúrgicas de negociarem com os sindicatos. Se pudessem fazê-lo, os problemas teriam sido resolvidos mais rapidamente. Já os trabalhadores, desta vez, haviam se organizado melhor para suportar um movimento mais prolongado, inclusive com coleta de contribuições e de alimentos, para sobrevivência sua e da família. Entre polícia e trabalhadores, havia um trabalho pacificador, que era desenvolvido pelo senador Teotônio Vilela, de Alagoas, e pelo suplente de senador Fernando Henrique Cardoso. Um e outro representavam o algodão entre os cristais, para evitar a quebra. Permanecendo todo o tempo em São Bernardo do Campo, os dois estabeleciam contatos freqüentes, ora com os comandantes da operação policial, ora com os líderes dos grevistas, empenhando-se para evitar um confronto que seria fatal, com prejuízo maior para este últimos, que detinham a razão, mas não detinham a força. Mais uma vez ocorreu intervenção no Sindicato e Lula foi afastado. “Desta vez, eu garanto que ele não voltará mais”, declarou o ministro Murilo Macedo. Não voltou, tudo bem, mas na prática a liderança permaneceu nas mãos de Lula e era com ele que tinham de ser feitos os contatos para a tomada das decisões. Assim, a intervenção foi um rompante que não produziu qualquer efeito prático. Por fim, trabalhadores e empresas começaram a se cansar. Em 8 de abril, a

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greve encerrou-se em São Caetano do Sul. Em 1º de maio, contrariando a proibição dos órgãos de segurança, realizou-se em São Bernardo uma passeata com mais de 100 mil pessoas, que terminou com uma concentração no Estádio de Vila Euclides (Depois, esse local seria fechado aos grevistas, por determinação do governo). No gramado, um grupo deles estava desenhando, com os próprios corpos a palavra DEMOCRACIA, quando foi interrompido pela polícia, a golpes de cassetete. Em 5 de maio ocorreram choques por toda a cidade entre polícia e grevistas, com 50 feridos. Nesse dia, terminava a greve em Santo André e os trabalhadores voltavam às fábricas. Restavam São Bernardo do Campo e Diadema. “No dia 11 de maio – o texto é de uma publicação oficiosa dos sindicalistas – premidos pela intransigência dos empresários e do governo, acossados por violenta repressão policial, com seus líderes encarcerados e sem perspectiva de receber o salário referente aos dias parados, os metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema decidiram voltar ao trabalho. A greve durara 41 dias.” Lula chegou a ficar preso na sede do DOPS por algum tempo, mantendo um relacionamento razoável com o seu diretor, delegado Romeu Tuma. Foi Lula que deu aos cárceres do DOPS o apelido de “Pensão do Tuma”.

Conclusão Este é um breve resumo do governo Figueiredo, mas nele falta a parte mais importante. É a grande manifestação popular representada pelo movimento das “Diretas-Já” e as conseqüências decorrentes desse despertar da cidadania. Tão importante foi esse período, que merece um capítulo aparte, seja pela vibração popular que há muito não se via, seja pelas reações do governo, preparado para viver uma ditadura, mas totalmente despreparado para enfrentar uma “crise de democracia”. Então, nos encontramos novamente no próximo capítulo. Até lá.

* * *Capítulo Quarenta-e-dois

O DESPERTAR DA CIDADANIAA campanha das “Diretas-Já”

“Um, dois, três... quatro cinco mil... queremos eleger o Presidente do Brasil!” Durante meses, esse grito, por anos entalado na garganta, se ouve pelo país afora, entoado por milhões de brasileiros que, espontaneamente, vão às ruas exigir dos governantes que lhes devolvam o que lhes pertence, qual seja, o direito de gerir suas próprias vidas, que começa pelo direito elementar de conduzir, pelo voto, os destinos da Nação. Tudo começa timidamente com uma ou outra manifestação isolada, até que explode nas ruas de forma incontrolável, com o povo arrancando a bandeira das mãos dos políticos e empurrando à sua frente a oposição e o governo, bem como todos os meios de comunicação, no início refratários ao movimento. Não há como ficar parado. É caminhar, ou ser esmagado pela multidão. Todos os expedientes são tentados pelo governo para deter as aspirações populares, com o enxerto de agentes duplos no palanque ou com a pífia tentativa de atribuir essas manifestações a comunistas e revanchistas. Finalmente, tenta-se outra forma de intimidação, com a implantação do estado de emergência em Brasília, às vésperas da votação, impedindo a entrada de manifestantes e censurando o noticiário do rádio e da televisão, punindo quem ousasse transmitir notícias, mesmo por telefone, sobre o que acontecia na capital federal. A discussão da mudança constitucional é iniciada com a apresentação da emenda Dante de Oliveira em 2 de março de 1983. A primeira manifestação pública de que se tem registro acontece em Goiânia-GO, em 15 de junho de 1983, por iniciativa do PMDB, reunindo perto de 3 mil pessoas. Em seguida há outros pequenos encontros em vários pontos do país, envolvendo PMDB, PT, PDT e PTB. O pequeno veio dágua vai recebendo afluentes e acaba se transformando num rio caudaloso que deságua em Brasília, onde, em 25 de abril de 1984, é votada a emenda constitucional. Lembrar a campanha das Diretas-Já emociona e é muito difícil manter-se neutro diante dos acontecimentos. O Brasil é pobre de movimentos populares. Todos os movimentos de nossa história, em geral, são dirigidos de cima para baixo. A população é incentivada a participar, mas contida dentro de certos limites, estabelecidos pelos

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organizadores. Ou, como a fala de uma peça teatral, “o povo entra na História [e sai dela] pela porta dos fundos”.

Vox populi, vox Dei A campanha das Diretas é diferente e foge totalmente do controle de seus mentores, que deixam de ser agentes para transformarem-se em pacientes. O agente principal passa a ser o povo, que lhes abre o caminho, levando a todos de roldão. O histórico movimento põe à mostra a fragilidade do poder central neste instante, o qual sente-se impossibilitado de contê-lo pelas leis vigentes, sendo obrigado a usar armas de guerra, como a desinformação e a intimidação, quando não, é levado a apresentar justificativas estapafúrdias. Como, por exemplo, a declaração do general Costa Cavalcanti, presidente da Eletrobrás, de que era contra as eleições diretas porque elas não estavam previstas na Constituição. Mas, ora bolas, emendas constitucionais existem justamente para alterar a Constituição! As Diretas-Já tem seu apresentador na pessoa do narrador esportivo Osmar Santos, que controla as massas como um hábil regente dirige sua orquestra; tem sua musa, a atriz Cristiani Torloni, rodeada por um séquito de outras belas atrizes da televisão, do cinema e do teatro; tem sua música, “Caminhando”, de Geraldo Vandré (vem, vamos embora, que esperar não é saber; quem sabe faz a hora, não espera acontecer); tem sua cor, o amarelo, escolhida pelo editor Caio Graco Prado, da Editora Brasiliense. Tem seu cronista, o jornalista Ricardo Kotscho, que começou repórter mas foi, aos poucos, perdendo a isenção, atirando-se de corpo e alma na narrativa apaixonada dos acontecimentos; tem seu jornal, a Folha de São Paulo, que entra com fé e orgulho no movimento; tem até sua caloura, a adolescente Fafá de Belém, que, pela primeira vez, participa de um movimento popular, se entusiasmando e se emocionando a todo o momento; e tem um calouro, o cacique-deputado Mário Juruna, que trocou a borduna pela palavra; Tem até seus espadachins, Ulisses Guimarães, Lula e Doutel de Andrade, apelidados de “Os Três Mosqueteiros”; tem a participação maciça de artistas (“todo artista vai aonde o povo está...”); tem, principalmente o povo, saturado de 20 anos

de regime militar, que sente renascerem suas esperanças de um Brasil melhor. A sociedade civil está presente, representada pelos seus mais expressivos órgãos, e pelas suas figuras mais proeminentes. Nos palanques é possível encontrar, de mãos dadas, Chico Buarque e Caetano Veloso; o jurista Sobral Pinto e o historiador Hélio Silva; o apresentador Abelardo Barbosa (Chacrinha) e o cacique-deputado Mário Juruna. Politicamente, o movimento consegue acuar o presidente da República no Palácio do Planalto, enquanto no partido governista há uma debandada de políticos, muitos deles com voto no parlamento, não querendo comprometer seu futuro colidindo de frente com o eleitorado. O velho “coronel” das Minas Gerais, Magalhães Pinto, perguntado sobre se estava “em cima do muro”, responde, enigmático: “Sim, eu estou, mas o muro está andando...” (No dia da votação, Magalhães Pinto esquivou-se, faltando à sessão em que deveria votar pelo “sim” ou pelo “não”. O muro chegou ao seu destino, mas ele não desceu...) As diretas, afinal, não são aprovadas, mas a nação aprende a conduzir e não ser conduzida. O governo fica na defensiva. O presidente Figueiredo tenta coordenar o processo sucessório, impondo seu candidato, coronel Mário Andreazza, mas não consegue. Sua autoridade sofrera um abalo com danos irrecuperáveis, não sendo ouvido pelos inúmeros postulantes do próprio partido. O PDS, que deveria chegar uno às eleições, racha ao meio e a oposição ganha novos adeptos, elegendo o presidente da República mesmo por via indireta. E elege um civil, não um militar como desejava Figueiredo. Ninguém consegue controlar um povo que, a partir de certo momento, resolve traçar por si o seu próprio futuro. As velhas raposas políticas aninhadas no PDS se esqueceram disso. O presidente Figueiredo também ignorou essa verdade elementar e fracassou. Fracassou e perdeu seu lugar de destaque na História.

Vai-não-vai O movimento das Diretas-Já começou como um balão que sobe mas, a certa altura, fica indeciso quanto ao caminho a seguir.

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Depois, embalado pelos ventos, lá se vai, em direção ao céu infinito. O primeiro grito pelas Diretas se ouviu em Goiânia, a 15 de junho de 1983, três meses e meio após a apresentação da emenda Dante de Oliveira. No dia 26 do mesmo mês, Ulisses Guimarães realiza um ato público em Teresina-PI. Em Pernambuco, o primeiro comício, em 12 de agosto, reúne vários partidos da oposição, com a presença destacada de Teotônio Vilela. Em Cleveland-EUA, onde se encontra colocando pontes de safena e de mamária, o presidente Figueiredo manda um recado em que “admite” eleições diretas, mas só para 1990. Alguns governadores do PDS já ensaiam sua adesão, como Roberto Magalhães, de Pernambuco, seguido, pouco depois, por Esperidião Amim, de Santa Catarina. O vice-Presidente, Aureliano Chaves, não adere, mas faz chover no molhado, ao reconhecer a soberania do Congresso para cuidar do assunto. O que se segue daí até novembro é uma cortina de fumaça, montada pelo governo federal, para dizer que não é a favor e nem contra, muito pelo contrário... O chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu acha que o assunto pode ser negociado; o ministro Danilo Venturini adverte que a negociação precisa ser ampla e não envolver apenas a oposição. Já o coronel Mário Andreazza, ministro do Interior e o preferido da corte para a sucessão, protesta: “O presidente Figueiredo não faria essa tolice...” Mas o ministro da Marinha, almirante Maximiano da Fonseca, diverge do bloco, manifestando-se claro e incisivo: “Só o Congresso é que pode mudar. Que mude e faça as eleições diretas!” Em novembro, o presidente Figueiredo, recuperado do susto com a operação (“me abriram como um frango assado”, disse ele) viaja para a África e, em Lagos (Nigéria) declara que ele, pessoalmente, é favorável às diretas mas o PDS não as quer. É um “blá-blá-blá” que não acaba mais.

Pacaembu é o marco inicial Mas o que se considera como o marco inicial da campanha é o comício programado pelo PT para 27 de novembro na praça Charles Müller, em frente ao Estádio Municipal do Pacaembu, em São Paulo. Foram convidados os outros partidos políticos e entidades representativas da

sociedade civil, entretanto, vários atos falhos comprometeram o sucesso. Primeiro que, por ser iniciativa isolada de um partido, os demais se mostraram arredios, pois ninguém coloca azeitona em empada alheia. Empreendimentos dessa natureza carecem de uma organização conjunta para cuidar dos detalhes e evitar o radicalismo sectário, que acaba comprometendo a todos. Segundo que, marcada a data, descobriram que, nesse mesmo dia 27 de novembro, domingo, se realizaria outra concentração, na praça da sé, protestando contra a presença de soldados americanos na Nicarágua. Um dos comícios precisaria ser suspenso, mas os dois lados optaram pela pior solução: juntar os dois movimentos em um só e fazer uma única concentração no Pacaembu. Assim, naquela tarde de domingo, um grande palanque foi montado no Pacaembu para o comício das diretas mas, sobre ele, uma faixa, estendida de ponta-a-ponta, dizia: “Ianques, tirem as patas da Nicarágua!” É claro que não podia dar certo. Os jornais e a mídia eletrônica noticiaram com destaque o fato e o governo não deixou por menos, insinuando a origem espúria da manifestação. De resto, apesar da propaganda e da quermesse que o PT instalou nas ruas vizinhas, não chegaram a comparecer à concentração sequer 15 mil pessoas, desanimando a oposição e dando alento aos governistas, estes últimos acreditando que o movimento começava a declinar.

Morte de Teotônio Vilela A data de 27 de novembro, de fato, marcou não uma, mas duas tristes coincidências. A primeira, foi o fracasso do comício Diretas-Nicarágua, que nem chegou a ser pelas diretas, nem tampouco pela Nicarágua invadida pelos ianques. A segunda foi a morte de um dos baluartes da democracia, Teotônio Vilela, o menestrel das Alagoas. Teotônio Vilela vinha defendendo um novo Brasil desde os tempos em que era governista, divergindo de seus companheiros da Arena. Durante o governo Geisel, por iniciativa própria, viajou pelo país inteiro e, de seus contatos, criou o Projeto Brasil, oferecendo-o como contribuição ao governo. Não foi levado a sério.

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Depois, na segunda e mais perigosa greve do ABC, foi ele que, com Fernando Henrique Cardoso, serviu de intermediário entre polícia e grevistas, atuando desesperadamente para evitar um confronto entre as duas forças. Lançadas as primeiras consultas sobre a emenda constitucional, também foi ele que serviu de porta-voz das diretas, mantendo contatos, recolhendo opiniões e encaminhando a coordenação do assunto que, como vimos, resultou na apresentação da emenda Dante de Oliveira. Marcado pela fatalidade, o comício de 27 de novembro, com o nascimento das diretas, foi interrompido para se anunciar a morte do grande líder, vitimado por um câncer que, após luta feroz, tornou-se mais forte que ele.

Em Curitiba, novo alento Somente em 12 de janeiro de 1984 se registra outra manifestação digna de nota, desta vez organizada em conjunto por todos os partidos de oposição. O encontro se deu na cidade de Curitiba-PR e contou com a presença de mais de 50 mil pessoas, inclusive do governador José Richa. Mas os defensores das Diretas ainda tinham muito que aprender e, em sua ingenuidade, deixaram-se envolver em um incidente que poderia ter trazido conseqüências fatais. Em certo ponto do comício, chega ao local o “deputado” argentino Juan Carlos Quintana, dizendo-se representante de Raul Alfonsin, recém empossado na presidência da República Argentina, primeiro presidente civil após a desastrada Guerra das Malvinas, que alijou os militares do poder. Era um apoio de peso e, assim, o “deputado” Quintana foi introduzido ao palanque e teve oportunidade de transmitir o apoio argentino à campanha das diretas. Foi um prato cheio para a mídia, que repercutiu o assunto com todo vigor. Foi, também, um achado para o governo, que manifestou-se pelos porta-vozes de plantão para reafirmar a existência de forças externas na campanha, comprometendo a soberania nacional. Com mais vagar, investigou-se depois na Argentina a procedência de tal “deputado” para descobrir o que se desconfiava: jamais existiu na Argentina um deputado com o nome de Juan Carlos Quintana e em momento algum o presidente Alfonsin mandou qualquer representante ou mensagem aos organizadores do encontro

de Curitiba. O tal Quintana não passava de um agente duplo, infiltrado no comício para criar um clima de desestabilização. Melhor, entretanto, que tal fato ocorresse logo no início, pois foi possível ativar os sensores do alarme, evitando que outros incidentes, por certo mais graves, fossem provocados no futuro.

Em São Paulo, comício-monstro O primeiro grande teste viria a ser a concentração marcada para a praça da Sé, em São Paulo, em 25 de janeiro de 1984, data do aniversário da cidade. São Paulo é o município de maior população do Brasil e o governador do Estado, Franco Montoro, um dos grandes líderes da oposição. Assim, o sucesso ou fracasso desse encontro seriam decisivos para as concentrações futuras em outra partes do país. Como já se disse, a imprensa – com exceção da Folha de São Paulo – e a mídia eletrônica de uma forma geral, procuravam ignorar a campanha das diretas e, quando se referiam a ela, era para registrar opiniões contrárias ou pôr objeções. O Estadão, por exemplo, alguns dias antes, publicou matéria especial discorrendo sobre o perigo das grandes concentrações e o risco de as lideranças perderem o controle sobre o público, provocando uma tragédia pela qual tais líderes seriam responsabilizados. Dando uma pequena ajuda, por meios não muito ortodoxos, o governo do Estado e a Prefeitura liberaram as catracas dos transportes públicos (ônibus e metrô) facilitando a movimentação das pessoas. Para atrapalhar, entretanto, uma chuva fina e intermitente caia desde a manhã e se prolongaria pelo dia e a noite. Acreditava-se na possibilidade de reunir umas 50 mil pessoas na praça da Sé mas os resultados superaram a expectativa. Em certo momento, a presença era estimada em mais de 100 mil pessoas. Por outro lado, considerando que o “showmicio” começou lá pelas duas horas da tarde e se prolongou até umas nove da noite, e calculando a rotatividade do público, pode-se estimar que, de início ao fim, passaram pela praça cerca de 400 mil pessoas. Era a consagração! Contrariando as “cassandras”, esta manifestação, como de resto, todas elas, por toda a parte do país, transcorreram em clima de ordem, entusiasmo e alegria e em nenhum momento as lideranças perderam o

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controle da situação. A calmaria irritava o governo; democracia incomoda um bocado... À noite, a Rede Globo anunciava o acontecimento, dizendo que perto de 100 mil pessoas compareceram às “festividades do aniversário de São Paulo”. Sobre as Diretas, o silêncio continuava total.

Movimento no Rio de Janeiro É verdade que o governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, aderiu rapidamente à campanha das diretas. Vale dizer, também, que a aproximação das várias lideranças para um trabalho conjunto não foi muito fácil. O comício que deveria ser realizado em 21 de março no Rio de Janeiro foi transformado em passeata, na qual o governador não compareceu. Ainda assim, 200 mil pessoas desfilaram desde a Candelária até a Cinelândia, acompanhados pelo senador Nelson Carneiro, Lula, Luís Carlos Prestes e vários outros políticos. Brizola em breve se convenceria que Diretas é bom pra tosse e não tem contra-indicações. Organizou e participou de grandioso comício na avenida Presidente Vargas, com um público estimado em mais de um milhão de pessoas. Como em outras tantas concentrações, lá estava novamente o cacique-deputado Mário Juruna, outro calouro entusiasmado com a campanha e que, sempre que podia, acompanhava as caravanas por este Brasil afora. O “comício do milhão” no Rio de Janeiro foi causar um incidente na distante África, mais precisamente em Marrocos, país que estava naquele momento sendo visitado pelo presidente Figueiredo e sua alegre comitiva. Ao ouvir um comentário do deputado Alcides Franciscato sobre o milhão de cariocas que foram exigir as diretas, Figueiredo teria dito: “E daí? Se eu estivesse lá, seriam um milhão e um...” Irrefletidamente, Franciscato, logo que pôde, passou essa frase aos jornalistas que acompanhavam a comitiva, certo de que tal revelação melhoraria a imagem do Presidente. Não melhorou e, de quebra, criou um tremendo problema ao deputado falastrão, que teve de desmentir tudo o que disse, para não ser desligado da comitiva.

Minas Gerais acorda Tal como Leonel Brizola, também o governador Tancredo Neves relutou um pouco em arregaçar as mangas e trabalhar em favor das Diretas-Já. Não compareceu às concentrações, especialmente a de São

Paulo, em 25 de janeiro, quando poderia expor suas convicções a 100 mil pessoas. Apenas prometia que, no devido tempo, Minas Gerais também teria seu comício. E teve. Foi em 25 de fevereiro, em Belo Horizonte, e reuniu 300 mil pessoas, num universo populacional de 2 milhões. Foi um número respeitável e mostrou que Minas Gerais não estava alheia à campanha. Conta Ricardo Kotscho, o cronista das Diretas: “Mais de 300 mil pessoas tomaram a praça Rio Branco, em frente à rodoviária, subindo um quilômetro pela avenida Afonso Pena, até o Parque Municipal de Belo Horizonte, ocupando as ruas transversais, acotovelando-se nas janelas dos prédios, na maior manifestação cívica de Minas Gerais e do Brasil, como proclamou o governador de São Paulo, Franco Montoro, em seu discurso.” (...) “A democracia é sempre uma festa, bancos fechados logo depois do almoço, repartições públicas dispensando seus funcionários. Quem haveria de querer ficar de fora, ouvindo o barulho que vinha das ruas, despertando a todos? (...) “Uma professora septuagenária, Ana Coaraci, que há 52 anos participou da campanha que deu direito de voto à mulher, uma data festejada ontem, disse com voz firme: ‘Hoje a mulher vem exigir o direito de votar para presidente da República. Queremos um Presidente que faça o mundo inteiro saber que o Brasil é dos brasileiros.’ “O comício chega a seu ponto culminante, mas quem assume tudo é a atriz Bruna Lombardi: ‘O que está acontecendo hoje aqui é a vitória.” O ator Raul Cortez critica o ministro da Justiça Abi Akel pelos processos instaurados ultimamente, com base na Lei de Segurança Nacional: ‘Que gente é essa que tem medo de artistas, de intelectuais? Nós continuaremos até o fim, juntos.” E Ricardo Kotcho conclui: “Aquela história de que mineiro trabalha em silêncio acabou. Foi um barulho danado, bonito demais.”

São Paulo: um milhão e meio nas ruas

A bola da vez volta a São Paulo. Em 16 de abril, uma enorme passeata sai da praça da Sé, andando em direção ao vale do Anhangabaú. Andando é força de expressão, pois os dois logradouros são próximos um do outro. É um enorme congestionamento humano, que tenta se deslocar de um ponto a outro pelas ruas estreitas do centro,

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passando pelo viaduto do Chá e chegando até o vale, um ponto de ligação entre as radiais que levam à zona sul e à zona norte da capital. Pela contagem da Polícia Militar, confirmada com outras avaliações feitas pela imprensa, cerca de um milhão e meio de manifestantes participaram desse aglomerado, representando 20 por cento da população. Não é um número desprezível, se considerarmos que, desta vez, nenhuma ajuda de transporte foi concedida e as pessoas se deslocaram espontaneamente, como puderam. Ricardo Kotsho registra o inusitado: “A chuva de verdade, agora parou um pouco. O sol arrisca vencer as nuvens escuras, uma professora, Maria Isabel Rodrigues, passa feliz da vida com seu cachorro Zumbi, na coleira, vestido de amarelo como ela. ‘Ele foi em todas as passeatas dos professores, agora tem o direito de passear pelas diretas também.’ “Passa o cachorro, aparece um burro, um burro mesmo, desses de orelha grande – com uma manta em que se lê: ‘Gosto do cheiro de burros, mas prefiro as diretas.’ O nome do burro, segundo o contador Roberto Botaccin, é Delfim. Ao lado do boneco de Teotônio, uma caricatura de Maluf, tampando os ouvidos e perguntando: ‘Passeata aonde?”

Uma proposta indecente Neste ponto, nenhum dos jornais, rádios ou TVs podia mais ignorar os acontecimentos. Nem a poderosa Rede Globo que, a reboque dos acontecimentos, teve de aderir ao entusiasmo das multidões para não ficar marginalizada. Desde o início da campanha, contadas a grosso modo, mais de três milhões de pessoas já tinham ido às ruas, nos quatro cantos do país, exigindo que a emenda Dante de Oliveira fosse aprovada. Tudo na maior ordem e tranqüilidade. O presidente Figueiredo, que antes concordava com eleições diretas para 1990, agora fez uma pechincha: elas até que poderiam se realizar em 1988, criando-se, então, um mandato-tampão de quatro anos, a contar de sua saída, que ocorreria em 15 de março de 1985. Tal proposta até que era razoável. Por que, então, não foi aceita? De um lado, pela falta de credibilidade de quem a propôs. Desativada a vitoriosa campanha das

Diretas, como garantir que, três anos depois, a promessa seria cumprida? De outro, porque suspeitava-se que o tal mandato-tampão seria preenchido pela prorrogação do mandato do próprio Figueiredo. E é óbvio que, em 1988, recompostas as forças da situação, seu sucessor seria um militar, eleito por via indireta. O certo, mesmo, era continuar a campanha até o último momento, quando o Congresso viesse a votar a emenda constitucional. Vamos embora, que esperar não é saber.

25 de abril, dia da decisão Finalmente, transcorridos todos os trâmites legais, é marcada a primeira votação, na Câmara de Deputados, para o dia 25 de abril de 1984. A condução do processo é feita pelo senador Moacir Dalla, presidente do Congresso Nacional (Câmara e Senado), embora a primeira votação, como dissemos, só ocorra na Câmara. Embora escolhida em função dos prazos regimentais, essa data traz uma feliz coincidência: foi em 25 de abril que estourou a Revolução dos Cravos em Portugal, quando a jovem oficialidade, recebida com flores pela população, derrubou a ditadura de Antônio de Oliveira Salazar, que já durava 40 anos. Começa, em Brasília, a grande corrida em direção ao pódio. Os líderes da campanha fazem contato direto com deputados que irão tomar tão importante decisão. É um trabalho artesanal, corpo-a-corpo num esforço de convencimento. Um grupo de atrizes de primeira linha se desloca para Brasília e passa a visitar os parlamentares em suas próprias casas ou apartamentos, procurando arrancar deles a palavra de que não trairão a vontade da nação brasileira. É a novela das oito que sai da tela e passeia, ao vivo no lar de cada um. O governo não está preparado para enfrentar democraticamente essa avalanche e passa a tomar uma série de medidas, por meio de seus líderes no Congresso, e utilizando de todos os recursos de que dispõe, desde a palavra, até a aplicação de medidas excepcionais. O senador Moacir Dalla informa que, até a votação da emenda, ficam proibidas quaisquer manifestações, debates e reuniões no recinto do Congresso Nacional (Senado e Câmara). Flávio Marcílio, presidente da Câmara Federal toma idêntica medida,

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rebarbativa, pois o local é o mesmo, apenas as agendas é que diferem. José Sarney, presidente do PDS, telegrafa a todos os deputados do partido, convocando-os a comparecer à histórica sessão para dizer “não”. O líder do partido na Câmara, Nelson Marchesan, mune-se para a batalha retórica. O presidente Figueiredo disse que não poderá haver eleições diretas em 1984 porque o Partido Comunista tem tamanha força que venceria as eleições. E vocês já pensaram, a volta da democracia com os comunistas no poder? Não explicou, porque não quis, que em toda História do Brasil, quando os comunistas, direta ou indiretamente participaram das eleições, nunca obtiveram mais de 10 por cento dos votos. E que, em 1945, lançaram candidato a Presidente o desconhecido Iedo Fiúza, porque Luís Carlos Prestes não desejou queimar seu nome, concorrendo à Presidência. E Prestes era ainda o Cavaleiro da Esperança, um mito junto ao eleitorado. Paulo Maluf não deixou por menos, ao destacar a quantidade de bandeiras vermelhas presentes aos comícios, dizendo que a bandeira brasileira é verde e amarela, explicação dispensável, porque todos já sabiam disso... Também ele não explicou, porque não quis, que as bandeiras vermelhas encontradas no comício eram todas de partidos devidamente legalizados, com direito a usar seu nome e seus símbolos. Aliás, tais bandeiras são brandidas até hoje e não se sabe de nenhum caso em que elas, por si só, tenham se constituído em ameaça à democracia brasileira.

Brasília declara guerra ao Brasil

Neste ponto, o presidente Figueiredo, havendo perdido de todo a força do convencimento, decidiu usar o convencimento da força: editou o Decreto 89.566, de 19 de abril de 1984 (Quarta-feira Santa, por coincidência, dia do aniversário de Getúlio Vargas, o ditador do Estado Novo), criando estado de emergência em Brasília e em dez municípios de Goiás, vizinhos à Capital. Não havia dúvidas de que, além de isolar Brasília da cidadania extravasada nas manifestações públicas, a medida visava principalmente constranger o Congresso, numa advertência do que poderia acontecer

se as emenda fosse aprovada. A propósito, escreveu Newton Rodrigues, na Folha de São Paulo do dia seguinte: “A verdadeira emenda de Figueiredo é o decreto 89.566, de coação ao Congresso. Mussolini invadiu a Albânia em uma Sexta-feira Santa; o general-presidente preferiu a quarta-feira de trevas. Também, pudera!” Todo um plano de guerra foi traçado para evitar que Brasilia fosse invadida pelos brasileiros. Montado em seu cavalo branco, presente do general Figueiredo, o general Newton Cruz (Nini, para os íntimos), comandante militar do Planalto e da 11ª

Região Militar, inspecionava as tropas de que dispunha para executar o estado de emergência. Eram 6 mil homens, “no mais portentoso desfile de tropas de que se tem notícia em Brasília”, que saíram do “Forte Apache” (sede do comando) e invadiram os gramados do eixo monumental, com carros de combate e apoio de pára-quedistas trazidos do Rio de Janeiro por avião, preparados para uma guerra. Escreve Ricardo Kotscho: “Que guerra? – perguntavam-se todos – Só se Brasília declarou guerra ao Brasil. Sim, falava-se muito em guerra ontem em Brasília e, por um desses mistérios do inconsciente coletivo, remetia-se a imaginação à Argentina, ao trágico episódio em que os militares de lá declararam guerra à Inglaterra. Ao apear do cavalo branco e ajudar algumas criancinhas a montar nele, afável, sorridente, para pouco depois pronunciar sua ordem do dia aos berros – ‘voz de comando cumpre-se, não se discute’ – o general executor Nini lembrava o general Leopoldo Galtieri, que levou a Argentina à guerra.” Fora de Brasília, cercando as entradas da cidade, tropas militares interceptavam ônibus de manifestantes, fazendo-os voltar aos seus lugares de origem. Também se encarregavam de interceptar e impedir a entrada de carros cujos ocupantes eram suspeitos de praticar democracia. A aplicação das medidas de emergência foi bem mais longe do que a Constituição de 69 permitia. Ao censurar o noticiário transmitido de Brasília, o governo federal colocava sob emergência o país inteiro, que não podia ser informado do que estava acontecendo. A TV Gazeta, de São Paulo, à véspera da votação, colocou no ar uma ligação telefônica com o vice-governador de São Paulo,

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Orestes Quércia, em que este, desde Brasília, transmitia uma “previsão do tempo”, referindo-se obviamente à temperatura política. A emissora foi punida incontinente, ficando fora do ar por 24 horas. Já a Rádio Eldorado do grupo do Estadão, não se intimidou. No dia da votação da emenda, manteve sua programação habitual mas, de meia em meia hora, abria o “link” de Brasília para transmitir um rápido boletim, atualizando os acontecimentos. Não foi punida.

Diga sim, diga não “Diga sim, diga não” é o título de uma pequena peça escrita por Bertold Brecht para ilustrar a força da palavra e a influência que ela pode exercer para mudar os acontecimentos. O protagonista do esquete – que não cabe neste texto - mudou sua história e a dos circunstantes quando teve a coragem de chamar a si a responsabilidadeda decisão. Em 25 de abril de 1984, na sessão da Câmara Federal, representantes do povo tiveram a oportunidade de exercer esse poder e todos, mesmo os que se furtaram, deixaram a marca registrada de seu caráter, independentemente da posição assumida. Determinados alguns, indecisos outros, oportunista uma boa parte deles. O voto era aberto. Chamados, nome a nome, cada um declinava o voto próprio. Alguns abertamente, sendo alvo de aplausos ou vaias, mas convictos da posição que estavam tomando. Outros, timidamente, como envergonhados de si mesmos. “Estado por Estado – escreve Kotscho – a votação do ‘sim’ esteve sempre à frente do ‘não’, mas a vitória não passava de uma ilusão. Os pedessistas ausentes, na calada da madrugada, iam definindo seu resultado. “Os pedessistas que apareceram dizem um ‘não’ baixinho, envergonhados. Alguns não se dignam sequer a ir até os microfones, sussurram seus votos lá do fundo do plenário. Em compensação, os do PDS que votaram a favor da vontade nacional foram aplaudidos. (...) “Vossa Excelência faça o favor de se levantar – quase implora o presidente do Senado, Moacir Dalla, que dirigiu a sessão quando um deputado do PDS, Afrisio Vieira Lima, se escondeu atrás dos colegas para balbuciar um ‘não’ longe dos microfones.”

Vitória de Pirro Pirro II, rei de Epiro (Grécia), intentou uma invasão a Roma em 280 aC e saiu vitorioso, mas a confusão que seus elefantes fizeram foi tamanha que houve mais baixas em seu exército do que no exército inimigo. Daí surgiu a expressão “Vitória de Pirro”, para indicar uma vitória com sabor amargo da derrota. A emenda Dante de Oliveira não passou por 22 votos. Apenas 22 votos. Dias antes, o governo, preocupado com a debandada dos seus parlamentares, pressionou a todos e, na falta de convencimento, aconselhou a muitos que ficassem em casa, deixando de votar. Foram esses ausentes que evitaram a derrota iminente do governo, mas, mesmo assim não mudaram o rumo dos acontecimentos. Nem todos os ausentes votariam pelo “sim”. Havia também os adeptos do “não”, que acharam preferível ausentar-se a ter de se expor ao seu eleitorado. Entre eles, a bancada malufista, de que são exemplo o presidente da Câmara, Flávio Marcílio e o próprio deputado Paulo Maluf. Foram 113 os ausentes, destacando-se Edison Lobão, do Maranhão; Ernani Sátiro, da Paraíba; Thales Ramalho, de Pernambuco; Bonifácio de Andrada e Magalhães Pinto, de Minas Gerais; o boquirroto (agora calado) Alcides Franciscato, o monarquista Cunha Bueno e o futebolista João Mendonça Falcão, todos de São Paulo; Ruben Medina, do Rio de Janeiro; e outros tantos, cujos nomes caíram no ostracismo e que nem vale a pena citar, pois ninguém se lembraria deles, mesmo. Dos que compareceram, apenas três se abstiveram de votar: Oscar Alves, Reinhold Stephanes e Renato Johnson. A emenda não passa, mas os “elefantes” do general Figueiredo fazem um estrago bem maior que o esperado, causando mais danos ao PDS que à oposição. A “Tomada da Bastilha” – para usar uma expressão predileta de Ulisses Guimarães – viria a ocorrer meses mais tarde, no mesmo cenário, com o elenco ampliado, mas representando uma peça diferente: nas eleições indiretas, com o voto do Colégio Eleitoral, o candidato da oposição, Tancredo de Almeida Neves, vence; o candidato governista Paulo Salim Maluf perde. Neste momento, “Explode um Novo Brasil”, como diz título do livro de Ricardo

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Kotscho que reproduz as crônicas da campanha. Daqui pra frente, a Nação brasileira não mais admite ser conduzida. Enganada, algumas vezes, por certo que foi; mas conduzida, nunca mais será. Já se viu por aí que esse episódio das eleições presidenciais também merece uma narrativa aparte. E é o que vamos fazer em seguida.

* * *Capítulo Quarenta-e-trêsO FIM DA REPÚBLICA

MILITARTancredo se elege Presidente

A votação da emenda Dante de Oliveira se iniciou às nove horas da manhã do dia 25 de abril de 1984, encerrando-se na madrugada do dia seguinte. Não que não pudesse ser mais rápida. Acontece porém que, a despeito do cerco policial, vários grupos de entusiastas das Diretas se concentravam na frente do Congresso, esperando pelos resultados, e temia-se que, caindo a emenda, como de fato caiu, poderiam ocorrer tumultos, com interferência da polícia e com resultados imprevisíveis. Assim, tanto situação quanto oposição mantiveram ajustado que a votação caminharia em ritmo lento, para terminar altas horas da noite, quando as torcidas já houvessem sido desmobilizadas. E não era para menos. A Câmara Federal tinha 479 membros e a emenda somente seria considerada aprovada com dois terços desse universo, ou seja, com pelo menos 320 votos favoráveis, o que todos sabiam ser difícil de conseguir. Todos, menos – é claro – os cidadãos que se aglomeravam em frente ao Congresso e se iludiam com a larga margem de vantagem que o “sim” levava sobre o “não”, ampla mas não suficiente para atingir o quorum. Às duas da madrugada, após 17 horas de trabalho, são computados os resultados: 298 deputados disseram “sim”; apenas 65 disseram “não”; 3 se abstiveram de votar; finalmente, 113 fugiram ao seu dever, deixando de comparecer para não se comprometer com seus eleitores. Por 22 votos, apenas 22 votos, a emenda foi rejeitada e arquivada, tornando-se desnecessária a votação no Senado.

Os jornais atrasaram suas edições e, no mesmo dia 26, saíram às bancas com os resultados e os comentários da histórica sessão. A Folha de São Paulo abriu uma tarja negra ao alto da primeira página com os dizeres: “use preto pelo Congresso Nacional”. Não precisava pedir. O clima, nas ruas, era de funeral. As pessoas comuns, alheias à complexidade das leis, não compreendiam bem a mecânica da votação e a proporção de 5 por 1 a favor das Diretas dava a todos a certeza de que a emenda passaria com tranqüilidade. Errado, pois contra ela também foram computadas as abstenções e as ausências, umas e outras somadas aos votos contrários. Na prática, os que se abstiveram e os que ficaram em casa, também estavam dizendo “não” às diretas, embora sem declarar seu voto. Recolhidos os cacos, feita a contabilidade dos prejuízos, logo se percebeu que o demônio não era tão feio quanto parecia. Em 15 de janeiro de 1985 haveria eleições indiretas e embora as chances, a princípio, fossem poucas, poderia ser conseguida uma reversão, impulsionada pelo clamor do eleitorado. Tancredo Neves diria, pouco depois: “Vamos para as Indiretas. Com o nariz tampado, sim, mas vamos.” Era uma oportunidade para repetir as grandes concentrações públicas, num trabalho de esclarecimento popular e de renovação das esperanças. Na prática, embora se tratando de eleições indiretas, o eleitorado influiria da mesma forma nos resultados, pois, como repetia Ulisses Guimarães, nenhum parlamentar vota, impunemente, contra suas bases. E, como se viu, o povo, havendo retomado, quase que à força, o seu direito de cidadania, não estava disposto a abrir mão dele. Além do mais, a política é dinâmica e, nos quase nove meses que nos separavam das eleições, muita coisa poderia acontecer. E como aconteceram!

Oposição em dificuldades Na votação da emenda das Diretas há 479 parlamentares aptos a votar e todos eles deverão participar, como eleitores, nas eleições indiretas à presidência da República, em 15 de janeiro de 1985. As condições, porém, são diferentes, pois a eleição se dará por um colegiado formado

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pela Câmara de Deputados, pelo Senado, e por representantes de cada Estado, a serem eleitos pelas respectivas Assembléias Legislativas. São 688 eleitores privilegiados a escolher o novo Presidente e a maioria deles está sob controle, pelo menos aparente, do poder central, que detém a chave do cofre, regulando a distribuição de verbas aos Estados e municípios, segundo a fidelidade de cada um. Por outro lado, os deputados que no primeiro tempo estavam favoráveis às diretas agora tenderão a votar no candidato de seu partido. Com efeito, defendiam as eleições diretas e não a infidelidade partidária. Além do mais, o governo Figueiredo, escaldado com a debandada que se ensaiou na votação de 25 de abril, passa a se empenhar vigorosamente para evitar nova rebeldia, pondo em ação todo seu “staff”, em particular o chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu, e o ministro da Justiça, Ibraim Abi Ackel, para domar os mais irrequietos, seja pelo convencimento, seja pela intimidação. Essas são, assim, algumas das dificuldades que a oposição precisará enfrentar para, efetivamente, participar com candidato próprio nas eleições de 15 de janeiro.

Situação no PDS Não menos fácil é a situação dentro do partido do governo, o PDS, tanto que o Presidente, por mais de uma vez, desistiu de coordenar o processo sucessório por não obter consenso entre as várias correntes. O problema, neste caso era inverso. Se a oposição tinha dificuldade em encontrar um candidato sob medida, já na situação havia candidatos saindo pelas tubulações. Havendo atraído para a antiga Arena a nata dos políticos em voga na 3ª República (1945-1964) e tendo criado, no decurso dos governos militares, alguns nomes mais, capazes de assumir o mais alto cargo da nação, precisava refrear as ambições de todos eles e chegar a um denominador comum, capaz de reunir todas as tendências dentro do PDS. Entre os mais insistentes, como pré-candidatos, estavam o vice-Presidente Aureliano Chaves (já queimado por Figueiredo), Marco Maciel, Hélio Beltrão, Paulo Maluf, o general Otávio Medeiros e o coronel Mário Andreazza. Mas, na periferia, circulava uma quantidade enorme de

postulantes, esperando uma oportunidade para fazer valer os seus nomes. A preferência pessoal de Figueiredo recaia sobre o coronel Mário Andreazza, ministro do Interior, amigo particular e elemento de sua confiança, por intermédio de quem se pretendia a continuidade do regime militar no poder.

Noviça rebelde Pode parecer paradoxal, mas foi importante a atuação de Paulo Salim Maluf para a reitrodução do país à vida democrática, pelo menos pelo fato de que sua grande atração pelo poder o levou a, pelo menos duas vezes, enfrentar a autoridade incontestável dos governos militares. O primeiro confronto ocorreu em 1978, quando, baseado numa lista tríplice, o presidente Geisel indicou Laudo Natel como próximo governador biônico de São Paulo, remetendo o nome ao PDS para confirmação. Maluf não se conformou em ser preterido e, usando de um direito de cidadão e membro do partido, apresentou-se para concorrer ao cargo, causando uma divisão nas hostes governamentais. Com métodos que lhe são peculiares e uma habilidade política em que ninguém o supera, Maluf conseguiu reverter as opiniões dentro da convenção partidária, a qual, contrariando o Sistema, referendou seu nome. Ato contínuo, o colégio eleitoral elegeu-o governador do Estado de São Paulo para o período de 1978 a 1982, afastando Laudo Natel definitivamente da política. Bem sucedido na primeira aventura, resolveu repetir o confronto nas eleições presidenciais. Escolhido o nome do coronel Mário Andreazza como candidato de consenso, Maluf reagiu e decidiu submeter também o seu nome à Convenção Nacional do PDS, para se contrapor ao “príncipe-eleito”, não havendo quem o demovesse de tal propósito.

Virada de 180 graus Há muito tempo que, no Brasil, não se assistia a uma convenção partidária tão agitada como aquela que o PDS realizou para a escolha de seu candidato à presidência da República. Toda a linha de apoio ao Presidente, senão por gosto, pelo menos por conveniência e matreirice, fechou fileiras em

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torno do candidato oficial do Planalto que, já sabemos, era o coronel Mário Andreazza. Maluf, por seu lado, reuniu uma animada e barulhenta claque, que faria inveja à “banda de música” de Carlos Lacerda na antiga UDN. Os partidários do candidato “oposicionista” infernaram a vida do presidente do PDS, José Sarney e tanto barulho fizeram que era praticamente impossível o prosseguimento da reunião. Sentindo-se desautorizado, José Sarney anunciou que, a partir daquele momento, deixava de ser o presidente nacional do PDS e, em seguida, abandonou a mesa, retirando-se do recinto, no que foi acompanhado pela ala liberal do partido. Por essa, não esperavam os opositores. O vice-presidente, que deveria assumir a mesa no lugar do renunciante, não se achava presente. A sessão foi suspensa, e só duas horas depois pôde ser aberta, para nada mais decidir. Paulo Salim Maluf foi confirmado em outra Convenção e tornou-se o único candidato do PDS a ser referendado nas eleições de 15 de janeiro, mas o mar já não era mais calmo e sereno. Uma borrasca se aproximava, e seria a maior tempestade política que um governo militar já enfrentara, desde o movimento de 1964. Os “elefantes” do general Figueiredo, uma vez mais, fizeram um estrago nas tropas governistas e, desta vez, o rombo não seria mais consertado.

Equação resolvida Vejamos como iam os acontecimentos na oposição. Dois nomes apareciam em todas as conversas como candidatos viáveis para enfrentar as urnas. Um era o do deputado Ulisses Guimarães, do PMDB, conhecido como “Sr. Diretas” pela sua participação destacada na campanha e pelo equilíbrio de suas opiniões, que lhe valeu o respeito dos demais partidos da coligação. O outro nome, igualmente de peso, era o do governador de Minas Gerais, Tancredo de Almeida Neves, extremamente conservador, mais para a direita do que para os ideais mudancistas da oposição. Ninguém poderia contestar, porém, que, por seu poder de conciliação, uma eventual vitória de Tancredo seria mais facilmente assimilada nos quartéis, ainda suficientemente fortes para virar a mesa, se achassem conveniente. Nos outros partidos, era difícil o surgimento de algum nome de consenso.

Brizola ainda encontrava enormes barreiras nos círculos castrenses e nos meios políticos. Lula, além de ser apontado como radical, não tinha força política suficiente para se impor junto ao colégio eleitoral. Pouco a pouco, o nome de Tancredo foi se destacando sobre os demais. Em 16 de maio ele já admitia ser o “candidato ambivalente”, expressão criada para definir um nome que fosse palatável a todos os partidos de oposição. Aliás, essa manifestação de que poderia ser candidato aconteceu na presença de dois auxiliares de Figueiredo, os ministros Danilo Venturini e Nestor Jost, em visita às plantações da pequenina cidade de Iraí de Minas, na região de Patrocínio, dando a entender que havia entendimentos de bastidores prevendo a hipótese de a oposição sair vitoriosa. Aumentava a possibilidade de a oposição “sujar as mãos” e participar das eleições indiretas que tanto combatera. Só não se sabia como ganhar, e ganhar era preciso, pois seria decepcionante lançar apenas um candidato de protesto, como nas eleições anteriores. Depois das Diretas-Já, uma segunda derrota seria fatal perante a opinião pública. Mas ganhar como? Esta era a grande incógnita da oposição, uma equação que, aparentemente, não tinha resposta. Foi então que surgiu uma valiosa ajuda, a do deputado Paulo Salim Maluf, na Convenção Nacional do PDS, cujos acontecimentos narramos no tópico anterior.

Surge a Frente Liberal (FL) A partir da fracassada Convenção Nacional do PDS, os acontecimentos se precipitam. Todo o bloco moderado do partido se afasta para organizar a Frente Liberal (FL), que mais tarde viria a ser a base de um novo partido político, o PFL. Mas, neste momento, era apenas uma frente partidária, uma facção do PDS e não um novo partido político, e assim seria até as eleições. Do bloco participavam, entre outras figuras de primeira linha do partido governista, Aureliano Chaves, vice-presidente da República; José Sarney, até há pouco o presidente nacional do PDS; Antônio Carlos Magalhães, ex-governador da Bahia, Cláudio Maciel, Hélio Beltrão e muitos outros. Não era um rompimento com o Planalto, mas apenas uma medida de sobrevivência, já que, com a eleição de Paulo Maluf, todos

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eles perderiam seu espaço político no governo que iria se formar. Os profissionais da política preferem o confronto ao ostracismo. Enquanto estiverem sendo atacados, continuarão vivos politicamente, em condições de recuperar o espaço perdido. Seus nomes continuarão presentes na mídia e o eleitorado irá se posicionando em face dos novos acontecimentos. O ato, pois, representava apenas uma estratégia que poderia ser mudada, na medida em que o panorama político se alterasse. Era preciso deixar as portas abertas para um eventual recuo. A formação da frente até foi comunicada ao governo central. Na primeira quinzena de julho de 1985, o panorama político começou a se definir. Paulo Salim Maluf era o candidato oficial do PDS. Do outro lado, 8 governadores do PMDB e mais Leonel Brizola, presidente nacional do PDT, se reuniram em São Paulo para dar apoio ao nome de Tancredo Neves como candidato da oposição. Nesse mesmo período, consolida-se a Frente Liberal (FL), pela articulação de Aureliano Chaves e Marco Maciel. Então, todo o bloco moderado rompe com o PDS e passa a apoiar Tancredo Neves que, como sabemos, é um nome bem visto no Palácio do Planalto, como opositor a Maluf. Em 18 de julho, a FL escolhe José Sarney para compor a chapa de Tancredo, como candidato a vice-Presidente e, nesse momento, é firmado um acordo entre a FL e o PMDB, surgindo dessa coalizão um novo bloco que recebeu o nome de Aliança Democrática (AD). O PDT de Brizola, já o dissemos, também apoiava o nome de Tancredo. É a Aliança Democrática que irá, daqui para a frente, coordenar os rumos da campanha da oposição.

Trabalho de engenharia política

Se julho foi o mês dos ajustes, agosto passa a ser o mês das decisões. No dia 11, uma nova Convenção do PDS escolhe Paulo Salim Maluf como seu candidato às eleições presidenciais. No dia 12, realiza-se a convenção nacional do PMDB. Como a Frente Liberal não é partido, José Sarney – e apenas ele – filia-se ao PMDB, regularizando sua situação política e, em seguida, o partido lança as

candidaturas de Tancredo Neves à Presidência e José Sarney à vice-Presidência. (Sarney gostou tanto do novo ninho que permaneceu definitivamente no PMDB, não se transferindo ao PFL, quando este foi legalizado). No dia 13, Antônio Carlos Magalhães manda uma carta ao presidente João Batista Figueiredo anunciando a adesão da Frente Liberal à candidatura de Tancredo Neves. Nota-se o extremo cuidado em não romper com o Palácio. Enquanto Tancredo e Sarney iniciam sua campanha pelo Brasil, como se estivessem em eleições diretas, o PT e alguns outros partidos alheios à Aliança Democrática saem realizando comícios, insistindo em eleições diretas. Como seria isso viável? Simples. Estava tramitando no Congresso Nacional a emenda Abi-Ackel (nome do ministro da Justiça), propondo mandato tampão de quatro anos, como sugerido por Figueiredo. A oposição pretendia apresentar um destaque a tal emenda, propondo, outra vez, a realização de eleições diretas. Paralelamente, outros avanços ocorrem. O Senado revoga a Lei Falcão, que inibia a propaganda política pelo rádio e televisão. A mesa do Senado regulamenta as eleições indiretas de 15 de janeiro de 1985, estabelecendo, para o desespero de muitos, que a votação será aberta, com a presença do rádio e da televisão, e cada membro do Colégio Eleitoral deverá dar seu voto “em pé e em voz alta”. Em resumo, termina o “voto envergonhado” surgido quando da votação da emenda Dante de Oliveira. Neste panorama, encerra-se o tumultuado mas esperançoso ano de 1984. Dentro de 15 dias ocorrerá a última reunião do Colégio Eleitoral, elegendo o primeiro Presidente civil, após 21 anos de ditadura. Ganhe Tancredo ou Maluf, ficará sepultando de vez o regime militar.

Índio quer apito Esse período da vida nacional contou com a participação, algumas vezes folclórica e outras polêmica, do cacique Mário Juruna, líder dos Xavantes, nascido em Mato Grosso e, neste momento, com 42 anos de idade, embora aparentasse menos. Suas primeiras aparições, junto com outros chefes indígenas, despertaram interesse e curiosidade, pela simplicidade de seu raciocínio e pela desconfiança nata com

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relação ao branco, valendo-se sempre de um gravador para registrar suas conversas com as autoridades. Eleito deputado federal pelo PDT de Brizola, queria tomar posse vestido a caráter, isto é, com indumentária indígena e cocar na cabeça, símbolo de sua autoridade de chefe. Foi difícil demovê-lo desse propósito e convencê-lo a usar paletó e gravata, como todo cara pálida. Certa vez, almoçou em um restaurante de luxo no Rio de Janeiro e, na hora de pagar a conta, declarou-se isento, por ser cacique e deputado federal. A conta foi encaminhada à Câmara, que se encarregou de liquidá-la, advertindo o cacique de que, no mundo civilizado as regras são outras. De outra feita, usando de seu direito regimental, ocupou a tribuna e falou, sem censura, o que pensava a respeito do presidente Figueiredo (imaginem tudo o que ele disse!), ocasionando uma crise entre Executivo e Legislativo. Com muito trabalho, seus pares o convenceram a se retratar e apresentar um pedido de desculpas. Agora, desenvolvendo-se a campanha num ambiente de acusações sobre corrupção e compra de votos no Colégio Eleitoral, o cacique-deputado Mário Juruna reúne inopinadamente a imprensa e, diante dos olhos esbugalhados dos repórteres, despeja pacotes e mais pacotes de dinheiro sobre a mesa, dizendo que havia recebido toda aquela “grana” das mãos de Galim Eiro (Calim Eid, tesoureiro de campanha) para votar em Maluf. Uma vez mais lhe foi explicado que as coisas não podem ser feitas assim. É preciso ter prova de todas as acusações que se faz, para não cair no descrédito e, de quebra, sofrer um processo por crime contra a honra. “Branco é complicado”, comenta o decepcionado cacique.

Maranhão quase desafina O poder central, com sua ação, mantinha sob controle praticamente todas as Assembléias Legislativas que iriam eleger os representantes estaduais para o Colégio Eleitoral. Surgiu, porém, um foco de rebeldia no Maranhão, onde os parlamentares se achavam propensos a escolher nomes mais próximos ao deputado José Sarney, maranhense, ex-presidente nacional do PDS e agora candidato a vice-Presidente na chapa da oposição. Mesmo desligado do

partido e estando filiado ao PMDB, Sarney controlava uma parte da bancada na Assembléia Legislativa do Maranhão. Poucos dias antes da escolha, os deputados recalcitrantes foram postos em um avião e levados a Brasília, para uma conversa com o presidente da República. Não foi uma preleção coletiva, como se faz nos vestiários de um clube antes de começar o jogo. Não, de maneira nenhuma. O Presidente se ocupou de receber a portas fechadas, em audiência privada, cada um dos parlamentares, numa conversa ao pé-do-ouvido. Não se sabe o que foi dito, nem lhes foi perguntado, mas o poder de convencimento de Figueiredo funcionou. Pelo sim, pelo não, os deputados estaduais voltaram ao Maranhão e se tornaram hospedes do governo em hotel de luxo, longe de influências malévolas, e, no dia da votação, saíram de lá em ônibus especial que os levou diretamente ao plenário, sem qualquer contato espúrio durante todo o trajeto. A quarentena valeu, garantindo uma delegação da confiança do PDS.

Eleições – Uma festa como antigamente

Chega, finalmente, o dia 15 de janeiro de 1985. Embora tratando-se de eleições indiretas, as atenções do Brasil estavam voltadas para a sede do Congresso Nacional, olhos postos na televisão ou ouvidos colados ao rádio, acompanhando, voto a voto, o desenrolar do processo. Para atingir a maioria absoluta (metade do colégio eleitoral, incluindo ausentes), seriam necessários 344 votos. Eram mais de 11 horas da manhã quando o deputado João Cunha, chamado pela ordem, declarou o 344º

voto a Tancredo Neves, fazendo estremecer o plenário e repercutindo o entusiasmo por toda a nação, que acompanhava o evento. A Folha de São Paulo de 16 de janeiro reporta aquele momento: “A festa começou, em Brasília, ao raiar do dia: já havia entusiasmados manifestantes nos jardins do Congresso e nas imediações da residência de Tancredo, na Superquadra Sul 206. E explodiu às 11h35, momento em que o deputado João Cunha (PMDB-SP), 45, deu a Tancredo o voto número 344, suficiente para garantir a vitória. (...) “Proclamado o resultado (houve nove ausências e dezessete abstenções),

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Tancredo fez o discurso da vitória, no qual se comprometeu a promover ‘a organização institucional do Estado’, convocou todo o povo brasileiro ‘ao grande debate constitucional’ e afirmou que a Constituição ‘não pode ser ato de algumas elites. É responsabilidade de todo o povo”. Somente o Estado do Espírito Santo não tinha o que comemorar naquele momento: um deslizamento de terra em Tabuazeiro, na região da Grande Vitória, causou a morte de uma centena de pessoas e um número não calculado de feridos, o que obrigou o governador Gerson Camata a voltar inesperadamente.

Como o governo recebe os resultados

Computados os resultados, a posição final passou a ser a seguinte: votos dados a Tancredo de Almeida Neves, 480; votos dados a Paulo Salim Maluf, 180; abstenções, 17; ausências, 9; total: 686. A Folha de São Paulo narra como foi, do outro lado, a reação à vitória de Tancredo Neves: “Antes do discurso, logo após a proclamação, Tancredo recebeu telefonema de cumprimentos do presidente Figueiredo, do hospital em que está internado no Rio. Tancredo agradeceu e retribuiu, desejando ‘muitos anos de vida’ ao Presidente, que estava [nesse dia] completando 67 anos. “Paralelamente, Figueiredo deu ordens para que sejam colocados à disposição de Tancredo, como Presidente eleito, os serviços de segurança e apoio logístico em suas viagens. O esquema entrará em funcionamento já na viagem que o eleito fará ao Exterior, possivelmente a partir do dia 23. “Figueiredo também reiterou a oferta da granja do Riacho Fundo, atualmente sem utilização, para que Tancredo nela resida até a posse, no dia 15 de março.” E Maluf, que perdeu as eleições, como reagiria ele? “Paulo Maluf, apesar de derrotado, não deixou de sorrir e até se proclamou ‘vitorioso’, por entender que sua candidatura ‘garantiu o processo político’, como disse no discurso que encaminhou a votação o nome do PDS. “E pouco depois do telefonema do Presidente a Tancredo, [Maluf] apareceu no auditório em que o vencedor acompanhou a votação, deu-lhe um forte abraço e lhe desejou muitas felicidades.”

Seria Figueiredo um democrata?

Durante o resto de sua vida, nas entrevistas que concedeu, o general João Batista Figueiredo sempre se proclamou o fiador da redemocratização do país, que, segundo ele, somente se completou devido ao seu trabalho, detendo a ação dos radicais e proporcionando condições para que as eleições, embora indiretas, ocorressem com plena liberdade. Os acontecimentos nos bastidores do governo, entretanto, apontam para um caminho diferente. Figueiredo insistiu bastante em um mandato tampão de quatro anos e seu ministro da Justiça, Ibraim Abi Ackel, chegou a enviar emenda ao Congresso nesse sentido. Paralelamente – é o que foi revelado pela imprensa em meados de 1985 – o mesmo ministro vinha articulando com a oposição a possibilidade de se estender o mandato do presidente Figueiredo, pelo menos por dois ou três anos, a fim de completar o processo de transição. Em troca do apoio a essa proposta, o ministro assegurava que, transcorrido o citado período, seriam realizadas eleições diretas. Tais negociações eram um segredo de Polichinelo e, a certo momento, foram reveladas pelo próprio ministro Abi Ackel, saindo, pois do terreno das especulações. Pelo PMDB, participaram dos entendimentos o próprio Tancredo Neves, virtual candidato, o senador Fernando Henrique Cardoso e o ex-deputado Renato Archer, este último um antigo companheiro de Carlos Lacerda, já falecido. De sua parte, Figueiredo nunca deixou de se manifestar contrário às eleições diretas, questionando se o povo realmente desejava essa mudança, como se depreende de sua resposta a um interlocutor, o deputado Maluli Neto, do PDS: “Muitas vezes – diz Figueiredo – o anseio do povo não representa a vontade da Nação, pois a massa é manipulável. Veja a ascensão de Hitler na Alemanha. Ele tinha o apoio do povo e deu no que deu.” Mas os detalhes de toda essa manipulação e da crise que se desenvolveu nos bastidores, a população só veio a conhecer muitos anos mais tarde, quando a revista “Isto É”, em edição de 8 de janeiro de 1992, publicou os resultados de entrevista

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que lhe foi concedida pelo ex-ministro, Maximiano da Fonseca.

As origens do golpe O almirante Maximiano da Fonseca foi o ministro da Marinha de Figueiredo até que começou a demonstrar suas simpatias pela campanha das Diretas-Já. Num primeiro momento, quando todos os ministros eram solicitados a desconversar, Maximiano declarou, alto e a bom som: “Só o Congresso pode mudar a Constituição. Que mude e faça as eleições diretas.” Em março de 1984, o governo procurava disseminar a idéia de que as Diretas-Já faziam parte de um plano de subversão da ordem, atentatório à segurança nacional. Maximiano foi claro ao declarar que não via baderna alguma nos comícios pelas diretas, destoando assim das declarações pelos demais ministros. Foi, então, levado a demitir-se. A revista entrevistou também o almirante Alfredo Karam, igualmente um ex-ministro de Figueiredo, o qual narrou com detalhes uma reunião havida em setembro de 1984 – dois meses antes das eleições indiretas – na granja do Torto: “A reunião foi em setembro, não me lembro o dia, e terminou no final da noite. Teve a presença do presidente Figueiredo, dos ministros da Marinha [ele próprio], do Exército, general Valter Pires, da Aeronáutica, brigadeiro Délio Jardim de Matos, do Estado Maior das Forças Armadas, brigadeiro Valdir Vasconcelos, do chefe do SNI, general Otávio Medeiros e do chefe do Gabinete Militar, general Rubem Ludwig. (...) “Não foi, é evidente, uma reunião de rotina. Nela tivemos a oportunidade de definir nossa posição em defesa da legalidade e do compromisso assumido pelo Presidente perante a nação, de fazer deste país uma democracia. “Posso dizer apenas que naquela oportunidade admitiu-se uma virada de mesa, mas a legalidade era a opção das Forças Armadas.”

Conspiração à sombra do Poder

Tais informes foram confirmados pelo brigadeiro Valdir Vasconcelos, também presente à reunião. Embora este aponte como origem as tensões causadas pela campanha das diretas, em verdade esse

assunto já fora sepultado em abril, cinco meses antes da reunião aludida. A causa verdadeira foi a formação da Aliança Democrática, com o PMDB, o PDT e os dissidentes do PDS. Era contra os dissidentes, sobretudo, que o governo se voltava, pois, eles é que criaram condições para a eleição de Tancredo Neves, que o presidente costumava chamar de “Tancredo Never” (nunca, em inglês). Em 1º de junho – conta a revista Isto É – em vôo de retorno da China, o senador Marcondes Gadelha teria lançado a seguinte proposta a Figueiredo: “Presidente, outra hipótese que se coloca é a prorrogação de seu mandato por mais alguns anos”, no que o Presidente respondera: “Eu topo, mas não por dois anos, como andaram falando por aí, mas por quatro. E sem essa história de convocar-se uma Constituinte depois.” Pressionado a confirmar essa versão, Gadelha mais tarde se desculpa, dizendo que tivera uma “alucinação auditiva”. Em 25 de agosto, na solenidade comemorativa do Dia do Soldado, o ministro do Exército, general Valter Pires, referiu-se a “minorias radicais e estéreis que desejam apenas semear a desordem e o caos”. Em 4 de setembro, portanto, a alguns dias da reunião, o ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Matos, vai a Salvador e faz um discurso virulento cujo alvo é o ex-governador Antônio Carlos Magalhães, que aniversariava nesse dia: “A História não fala bem dos covardes, nem dos traidores.” Antônio Carlos, que não costuma deixar barato, passou a Roberto Marinho um texto de resposta, que foi divulgado pelo jornal e pela Rede Globo: “Trair os propósitos de seriedade e dignidade da vida pública, é fazer o jogo de um corrupto...” (Referia-se, nas entrelinhas, ao candidato do PDS, Paulo Maluf, contra quem ACM afirmava ter caminhões de provas de corrupção. Esses caminhões devem ter encalhado em alguma estrada, pois nunca chegaram à justiça e o assunto foi esquecido após as eleições.) Um pouco antes, falando ao telefone com Tancredo Neves, que telefonara para cumprimentá-lo pelo aniversário, ACM manifestou sua opinião de que estava sendo tramado um golpe contra a candidatura oposicionista ou pelo menos se procurava, desde já, intimidar o Colégio Eleitoral.

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Enfrentando a crise Tancredo Neves, que fora ministro da Justiça de Getúlio Vargas na década de 50 e que passara por várias crises semelhantes em sua longa carreira política, tratou de montar um Estado Maior informal com homens de sua confiança, para estabelecer um contato permanente com os militares para, com troca de informações, manter a temperatura em nível suportável, evitando a explosão. De sua parte, a Marinha, ou o grande número de almirantes contrários ao golpe, havia preparado um plano a ser executado se houvesse tentativa de interromper o processo rumo à democracia. Disse Maximiano em sua entrevista a “Isto-É”: “Havia gente interessada em se manter no poder. Por isso, decidi tomar posição com um plano contra o golpe. Nós íamos bloquear os portos, ocupar áreas vitais, como pontes, com os fuzileiros navais e denunciar o golpismo à nação. A ocupação dos portos e a imediata movimentação dos fuzileiros, além do alerta dos navios de guerra, seriam capazes de responder o golpismo.” Como se sabe, nada disso foi necessário. Aos trancos e barrancos, o processo eleitoral seguiu até o dia das eleições e, divulgados os resultados, o Presidente prometeu dar todo o apoio de retaguarda ao presidente eleito Tancredo Neves. Os problemas de fato ocorridos no dia da posse tiveram origem na doença de Tancredo Neves e sua súbita internação no Hospital de Base em Brasília. Mas esse é um assunto que não se refere a este capítulo e, mais ainda, já faz parte da nova república que surgia com o fim do período militar.

Conclusão O general-presidente João Batista de Oliveira Figueiredo perdeu o bonde da História. Pelo menos por duas vezes o bonde passou à sua frente e Figueiredo deixou-o ir, quando poderia ter assumido o lugar que a História lhe reservara. Uma dessas vezes foi por ocasião do atentado ao Riocentro, visivelmente um ato de terrorismo que partiu de dentro do Sistema. Como chefe supremo das Forças Armadas, caberia a ele, desde o primeiro momento, interferir no processo, garantindo sua lisura, mas, ao invés disso, preferiu deixar que as investigações seguissem ao sabor de interesses corporativistas, culminando naquela peça de ficção

preparada pelo coronel Job Lorena. Preferiu se omitir e passou a vida tentando justificar seu injustificável procedimento. A outra vez foi por ocasião da campanha das Diretas-Já, uma clara aspiração da nação brasileira, que ele preferiu classificar como manipulação da opinião pública. Tivesse assumido de corpo inteiro a campanha das Diretas, permitindo que o Colégio Eleitoral restrito fosse substituído pelo grande eleitorado nacional – fosse qual fosse o resultado – Figueiredo se tornaria o grande herói nacional, poderia candidatar-se às eleições seguintes ou, se desejasse, fazer eleger até um poste, tal sua popularidade. Não só se omitiu como, pior ainda, trabalhou abertamente contra as Diretas e até mesmo contra a redemocratização do país, cuja paternidade sempre reivindicou. Figueiredo perdeu o bonde da História ou, para usar uma linguagem que lhe é familiar, deixou passar o cavalo encilhado e não montou nele. Não houve outra oportunidade. Seu divórcio com o povo tornou-se irreversível. Com o tempo, os próprios amigos o foram abandonando. “Poucos amigos ainda visitavam o apartamento do ex-Presidente na zona sul do Rio – é o que se lê no necrológio feito pelo Estadão. – O ex-ministro Ernâni Galveas era um deles, assim como o general Meton Gadelha, mais assíduo. Nos últimos meses, a mulher de Figueiredo, Dulce – também apenas uma lembrança da esfuziante primeira-dama – começou a barrar as visitas, mesmo as mais íntimas. Alegava ordens do presidente.” Figueiredo morreu em 24 de dezembro de 1999. Emérito criador de frases, moldou uma, que lhe poderia servir de epitáfio: “Me esqueçam.” O povo já o esqueceu, e há muito. Não o odeia, nem o ama, simplesmente o ignora. Fez por merecer.

* * *Capítulo Quarenta-e-quatro

OS ANOS DE CHUMBOViolência, tortura e morte

Maria de Oliveira Soares pode entrar para o livro de recordes como a mais jovem terrorista da História. Foi presa com um ano e meio de idade, em companhia dos pais, Eleonora Menicucci e Ricardo Prata Soares, acusados de participar de um movimento de guerrilha urbana, a AP (Ação Popular), que

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se supunha ser responsável por assaltos a bancos e a supermercados. O caso de Maria foi inusitado pela pouca idade da menina, mas não era uma exceção: abundam nos processos contra a repressão os registros sobre a prisão de crianças e de outros familiares de suspeitos, os quais, embora alheios às supostas atividades do acusado, eram submetidos a tortura psicológica e, muitas vezes, física, para obrigar o indiciado a confessar seus delitos ou delatar outras pessoas que faziam parte do grupo. Embora a repressão política tenha se iniciado em abril de 1964, logo após o movimento militar, ela tornou-se mais evidente e saiu do controle após a edição do Ato Institucional nº5, em 13 de dezembro de 1968, o qual suprimiu os direitos de cidadania, dando poderes totalitários ao Sistema que governava o país. Vale relembrar as advertências então feitas pelo vice-presidente da República, Pedro Aleixo, na reunião que discutia o fechamento do regime, segundo depoimento feito por ele próprio ao historiador Hélio Silva: “Porque o que se verifica, na prática, é que a pessoa do presidente da República, não sendo omnímoda [ilimitada], delega aos seus auxiliares as suas atribuições para a execução dos atos de governo. (...) Assim, a autoridade se transmite até o último elemento da cadeia, que pode ser o mais indigno beleguim policial.” E esses beleguins estavam por toda parte, fazendo coisas de que até Deus duvida e que nem o diabo autorizou a fazer. A escalada da violência começou quando o governador de São Paulo, Roberto de Abreu Sodré, se recusou a colocar a polícia estadual na repressão política. Não desejando polemizar com este seu aliado, o governo federal optou por autorizar o Exército a criar sua própria linha de frente na capital paulista, organizando-se então a OBAN – Operação Bandeirante – dirigida pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, a qual ficou encarregada de investigar, prender, interrogar e completar os inquéritos de todos elementos considerados suspeitos de atividades subversivas dentro do Estado. A OBAN tornou-se com isso um valioso laboratório de ação anticomunista, que propiciou mais tarde a formação dos DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de

Defesa Interna), subordinados ao Exército. O primeiro desses aparelhos surgiu da própria OBAN, instalando-se em um edifício da rua Tutóia, em São Paulo. O segundo, como se pode imaginar, foi inaugurado no Rio de Janeiro, no edifício do 1º Batalhão de Polícia do Exército, bairro da Tijuca, zona norte da cidade. A experiência com essas duas unidades especializadas na repressão ensejou a criação de órgãos semelhantes por todo o país, numa ação plenamente eficiente do ponto de vista militar. Acontece que os métodos violentos e arbitrários utilizados pelas equipes fugiram por completo do controle do poder central, transformando-se os órgãos de repressão num estado dentro do Estado. Nem nos campos da Itália, durante a Segunda Guerra Mundial, o Exército ousou ir tão longe no trato com seus prisioneiros. E, neste caso, os assim considerados “inimigos” eram os próprios brasileiros e, sendo impossível a fiscalização pela sociedade civil, ninguém estava a salvo do arbítrio. Com efeito, a expressão “subversivo” era aplicada não só a terroristas, mas a simples simpatizantes do comunismo. Ou podia ser aplicada a qualquer outro cidadão que fosse apontado como tal, já que estavam suspensos os direitos de cidadania, entre eles o habeas-corpus. Era o chamado “crime de opinião”, banido de todas as nações civilizadas do planeta, mas cultivado no Brasil com ardor religioso, desde a Intentona de 1935, cuja história, visivelmente distorcida, era mantida viva nos quartéis. Contrariando também o direito internacional, o crime imputado a um cidadão era muitas vezes estendido a toda sua família; com efeito, chegava-se a prender mulher, filhos ou parentes do suspeito para usá-los, seja na obtenção de informações, seja para exercer pressão psicológica sobre o acusado, quando a tortura física, por si, não era suficiente para subjugá-lo. Censurados os meios de comunicação, estes pouco conseguiam apurar e, do que sabiam, nada podiam publicar. Destarte, a maioria da população brasileira, desconhecendo os porões da repressão, acreditava mesmo ser o Brasil “uma ilha de tranqüilidade em meio a um mundo turbulento”, expressão de propaganda cunhada pelo governo Médici, justamente no

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período em que a repressão corria solta nos porões da ditadura. A verdade só começa a aparecer após a extinção do AI-5, em 1º de janeiro de 1979, três meses antes de o presidente Ernesto Geisel transmitir a faixa presidencial ao general João Batista Figueiredo. Os processos judiciais, a partir daí, registram com toda a intensidade o horror vivido nos “anos de chumbo”. Os corpos – ou as ossadas – dos desaparecidos começam a ser encontrados, anos mais tarde, enterrados sob nome falso ou como indigentes, mas com características que permitem sua identificação. Ainda que com asco, é preciso mergulhar nesse mar de lama podre para conhecer de perto o que foi o período repressivo, mantendo viva a memória para evitar que, um dia, a História venha a se repetir, em tom de farsa.

Legitimação da repressão Há uma primeira ressalva a fazer, importante para a preservação da verdade, fugindo ao libelo vulgar que distorce os fatos e transforma o regime militar em uma “caixa de Pandora”, a raiz de todos os males com que se defronta o Brasil entre 1964 e 1985. A revolução (ou golpe de estado) de 1964 é um desdobramento natural resultante da incompetência ou inapetência política do presidente João Goulart, que não assume na plenitude a sua autoridade de chefe de governo, permitindo a ingerência de movimentos subversivos que se organizam para a tomada do poder, com ou sem Jango, muito provavelmente sem ele. Agora que estamos algumas décadas distantes dos acontecimentos que levaram ao movimento militar, ninguém mais duvida de que a posse de Jango propiciou o desenvolvimento de conspirações de esquerda e de direita: aquelas envolviam o governo constituído, ou seja, o Presidente, seu “staff” e uma parte das Forças Armadas, fiéis a ele; estas contavam com a participação de parte da sociedade civil, de parte das Forças Armadas, de órgãos de comunicação, de alguns governadores de Estado, de uma parte significativa do empresariado e com envolvimento inequívoco dos Estados Unidos, por seu embaixador, Lincoln Gordon, e pelo assessor, general Vernon Walters. Conquistado o poder pela força, a radicalização do processo, no primeiro

momento, seria inevitável, ganhasse a esquerda ou a direita. É uma constatação elementar essa que, quem toma o poder, seja por uma revolução ou por um golpe de estado, a primeira coisa que faz é isolar os vencidos, anulando sua força e neutralizando a possibilidade de reação. Foi isso o que aconteceu após as revoluções de 30 e de 32; ou após intentona comunista de 35, ou após o golpe do Estado Novo em 37, ou após o “putsh” integralista de 1938. A derrubada do presidente Getúlio Vargas, em 1945, fugiu à regra, mantendo na ativa os participantes do governo anterior. E deu no que deu: todos os vencidos estavam presentes na 3ª República (1945-1964), ensejando uma situação de instabilidade político-militar que agitou o país por 19 anos, desaguando no movimento militar de 1964. Em 1964, a esquerda ou a direita, uma delas acabaria tomando o poder. Venceu quem demonstrou maior organização e competência. E era legítimo que, assumindo o poder, os novos mandantes cuidassem da limpeza da área, consolidando o movimento. Como bem disse o general Figueiredo, “ninguém ensina soldado a dançar balê” e o primeiro Ato Institucional – que deveria ser o único – forneceu meios para a ação repressiva após vitorioso o movimento. Embora fosse um período preocupante, tínhamos a palavra do presidente Castelo Branco de que haveria eleições livres em outubro de 1965, o que dava credibilidade e apoio ao movimento militar. Essas eleições não ocorreram. O mandato de Castelo Branco foi prorrogado para 1967 e, após o Ato Institucional nº2, o Presidente tornou-se refém do Sistema, não podendo evitar o prolongamento do regime, que tinha planos de ficar para todo sempre, ou até que uma força maior o derrubasse.

Legitimação dos movimentos armados

Entra aqui a segunda evidência. Também não é uma proposição, é um axioma, uma verdade que não precisa ser provada e que independe da opinião ou vontade de cada um. Toda ação causa uma reação. A radicalização de uma das facções leva a idêntico processo o lado oposto, na tentativa de reequilibrar as forças. Enquanto o governo pós-revolucionário tentava enquadrar os chamados “subversivos”, mas acenava com

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o breve restabelecimento da democracia, havia uma esperança de retorno da oposição às atividades políticas, o que mantinha a temperatura em nível de fervura, mas não de explosão. Por outro lado, o fato de o presidente Castelo Branco ter mantido a liberdade de imprensa até as últimas conseqüências, suportando críticas muitas vezes além do admissível a um presidente da República, permitiu cortar no nascedouro muitas das arbitrariedades que sempre acontecem em tais períodos. Já com a edição do AI-5, em dezembro de 1968, acabaram-se as esperanças de um retorno normal ao processo democrático, tornando natural e até legítimo o surgimento de movimentos contestatórios à ditadura pelo único canal possível naquele momento, qual seja, o de guerrilhas e ações de força, como seqüestros e assaltos a bancos. Era a moeda de troca. Com seqüestros, se obrigava o governo a soltar prisioneiros; com o dinheiro arrecadado nos assaltos, financiava-se a contra-revolução; com as ações de força procurava-se desalojar os que se apropriaram do poder e dele não queriam sair. Não há, pois, anjos nessa história. Todos tinham culpa em cartório. Da direita ou da esquerda, todos usaram de processos radicais visando atingir seus objetivos. No enfrentamento entre forças militares e guerrilheiros, não havia escolha: era matar e morrer. Tornava-se legítima a violência de um e outro lado, uns procurando manter o status, outros tentando revertê-lo. Já não se pode dizer o mesmo da tortura implantada dentro do Sistema. Os torturadores estavam lidando com prisioneiros desarmados, subjugados, entregues à sua guarda e proteção e sobre estes indefesos cidadãos cometiam violências injustificáveis, acobertados pela impunidade. A tortura é, pois, um crime atroz, degradante, humilhante e hediondo, sobretudo quando cometida por agentes do Estado, cuja missão é a de preservar a lei e a ordem.

Escalada da violência Nada aconteceu do dia para a noite. O desenvolvimento da violência nos aparelhos do Estado foi progressiva e chegou ao paroxismo, pela falta de um órgão controlador que lhes detivesse os passos e pusesse um paradeiro à coerção ilegal.

A convivência, que era difícil no período Castelo Branco, tornou-se quase impossível após Costa e Silva assumir o poder. Forças policiais dos Estados agiam duro contra qualquer manifestação pacífica, realimentando o ódio e gerando novas passeatas de protesto que se desenrolaram por todo o ano de 1968, no Rio de Janeiro, em São Paulo e Minas Gerais, mas também pelo país afora. Depois, veio o período de caça às bruxas, com agentes duplos infiltrados nas escolas, nos ambientes de trabalho e, sobretudo, nos órgãos de comunicação, que, como formadores de opinião, sofriam uma vigilância redobrada. A partir daí, surge a inversão de valores, que transforma a delação em virtude e a fidelidade em um vício a ser extinto. Não faltaram também, como instrumentos de incentivo à delação, os IPMs (Inquéritos Policiais-Militares) e as CGIs (Comissões Gerais de Inquérito). Os primeiros eram restritos às atividades militares. Mas as CGIs foram instaladas em todos os órgãos de governo, inquirindo, um a um, os servidores, do diretor ao faxineiro. O contato começava com um chavão manhoso: “Nada temos contra você, muito pelo contrário, você foi até elogiado pelos seus colegas que já prestaram depoimento...” E seguia com uma série de perguntas capciosas para arrancar do depoente alguma informação desavisada que pudesse comprometer os demais. Por fim, organizado o sistema repressivo, este passa à fase mais aguda, que é a da prisão sem culpa formada e da tortura, transformando o ser humano em peça descartável e o Estado no “grande irmão”, onipresente, onisciente e onipotente, reunindo em si, a um só tempo, os três poderes da República, manipulados pelos “beleguins”, que se sentiam à vontade para prender, julgar e executar a sentença, tudo à margem dos mais comezinhos princípios de justiça. O torturador transforma-se, com o tempo, num anormal, um caso psiquiátrico. Forçado, no início, a praticar a tortura por dever do ofício, com o tempo torna-se um viciado, bestializado, e o que antes lhe causava repulsa passa a ser um instrumento de prazer. A prática da tortura o transtorna da mesma forma que o narcótico transtorna um drogado. Ou, como dizem os estancieiros gaúchos, “cão que experimenta sangue de

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ovelha, não serve mais para pastorear”. É o caso dos torturadores.

Macartismo, ou a “caça às bruxas”

Joseph Raymond McCarthy (1908-1957) era um senador americano que, nos anos de após-guerra, ganhou notoriedade por denunciar a suposta presença de comunistas em todas as atividades do governo dos Estados Unidos, inclusive no Departamento do Estado, assim como nos meios de comunicação, os quais, segundo ele, pervertiam a opinião pública. Surgiu, então, naquele país, a Comissão de Atividades Antiamericanas (uma espécie de Comissão Parlamentar de Inquérito), que convocava, inquiria e julgava suspeitos de atividades comunistas, incentivando a delação, para aliviar a pena de uns e incriminar outros na rede de suspeitos que ia, a cada dia, aumentando. Era o período chamado de “macartismo”. Entre as vítimas do macartismo havia muita gente famosa, como o ator e diretor Woody Allen; entre os acusadores aparecem nomes igualmente de destaque como o do produtor Walt Disney. E a simples participação em um desfile de 1º de maio (May Day) era suficiente para enquadrar alguém como simpatizante do comunismo. Essa explicação, um tanto longa, se fez necessária para introduzir o leitor numa das fases mais insidiosas, embora menos violenta, da repressão no Brasil, que foi o macartismo. Oduvaldo Viana (pai), o criador da radionovela brasileira, encontrava-se entre as primeiras vítimas. Foi demitido da Rádio Nacional, num “listão” que incluia também Heitor dos Prazeres, Ghiaroni, Mário Lago, Jararaca e Dias Gomes. As novelas de Oduvaldo continuaram sendo retransmitidas pela Rádio Nacional mas o nome do autor foi omitido, configurando-se em apropriação de direitos autorais. Oduvaldo Viana Filho teve censurada a sua obra-prima, “Rasga Coração”, pelo que a divulgação do texto era feita em serões literários. No jornalismo, para citar alguns exemplos, Osvaldo Peralva teve de exilar-se na Alemanha e, durante longo tempo, atuou como correspondente da Folha de São Paulo no Exterior. Josué Guimarães escondeu sua identidade usando um pseudônimo e passou a ganhar a vida vendendo títulos de pecúlio, até que foi reconhecido e preso.

Quando o general Silvio Frota afastou-se do governo Geisel denunciando a presença de comunistas em órgãos do governo e meios de comunicação (igual ao procedimento do senador McCarthy), a Folha de São Paulo teve de afastar inopinadamente Tarso de Castro e todo o pessoal que editava o suplemento “Folhetim”, montando uma equipe de emergência para seguir com o trabalho. No mesmo momento, o “Jornal dos Jornais”, escrito por Alberto Dines – o precursor do “ombudsman” no Brasil – foi suspenso “por razões técnicas” e nunca mais voltou a ser publicado. Em certo momento, a própria direção do jornal se refugiou no exterior, ficando a chefia de redação, por oito anos, nas mãos do jornalista Boris Casoy.

O macartismo no rádio Ao pesquisar dados sobre o macartismo nos meios de comunicação, dois nomes surgem em evidência como delatores: os dos apresentadores Cesar de Alencar e Flávio Cavalcanti, apontados um e outro como responsáveis pela demissão, em um primeiro momento, de 149 funcionários da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, muitos deles arrolados posteriormente em Inquérito Policial Militar como participantes de uma suposta célula do PCB na emissora. Não era preciso provar, bastava fazer a acusação, que os militares encarregados do inquérito cuidavam do resto. Ainda que o resultado final fosse a absolvição, os radialistas, a essa altura, já tinham perdido seus empregos, sem condições de retorno à profissão, num campo de trabalho restrito e, de certa maneira, controlado pelo Ministério das Comunicações, que podia aplicar sanções às emissoras, suspendendo temporariamente as transmissões e até cassando seu alvará de funcionamento. Outro nome apontado como macartista é o do cantor Wilson Simonal. Muito embora ele negue tudo, atribuindo as acusações a inveja de seus ex-colegas pelo sucesso alcançado, existem algumas evidências de que o cantor tenha participado do processo de delação. Em 1974 Simonal foi julgado e condenado a cinco anos e quatro meses de prisão por seqüestro e extorsão. Depondo nesse inquérito, o agente do Dops carioca, Mário Borges, declarou: “Simonal é há muito tempo informante do Dops e de outros órgãos policiais, tendo fornecido várias vezes

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informações positivas sobre atividades subversivas.” Por fim, encontramos, entre outros, o radialista de São Paulo Randal Juliano, com sua vida profissional ligada à rede de “Emissoras Unidas de Rádio e Televisão”, (Rádios Panamericana, Bandeirantes, Record e São Paulo, mais a TV Record). Randal leu e comentou uma notícia falsa segundo a qual, em um show de Caetano Veloso e Gilberto Gil, estes teriam cantado uma paródia do Hino Nacional. Era mentira, mas serviu de mote para que a repressão agisse. Randal foi convidado a assinar um depoimento de acusação e o fez. Em seguida, Caetano Veloso foi preso em seu apartamento da Avenida São Luís e Gilberto Gil em outro local da cidade. Concluído rapidamente o laudo de culpa, os dois foram colocados em um avião e deportados para a Europa com recomendação de que não voltassem mais ao Brasil, sob pena de acontecer-lhes algo pior. Entrevistado em 1992 pelo apresentador Jô Soares, Randal Juliano confirma ter assinado, no Exército, o depoimento que resultou na deportação dos dois artistas, mas garante que o fez em boa fé, iludido por seus produtores, que plantaram a notícia como verdadeira. Assegurou que jamais teria lido a nota, “se soubesse que Caetano e Gil iam ser prejudicados por ela...” Acredite quem quiser, tanto mais que as “Emissoras Unidas” eram um ninho da ultra-direita em São Paulo.

Missão quase impossível Em 12 de outubro de 1968, dois meses antes de ser editado o AI-5, o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo, recebeu uma missão de guerra, qual seja, a de prender um grupo perigoso de meliantes comunistas, encantonados no sítio de Murundu, a 15 quilômetros de Ibiúna, no interior de São Paulo. Seria cômico, se não fosse trágico. Com as organizações estudantis colocadas fora da lei (só eram permitidos grêmios estudantis autorizados a funcionar como linha auxiliar do governo), um punhado de estudantes independentes escolheu o sítio de Murundu, de propriedade de Domingos Simões, para ali realizar o 30º Congresso da UNE – União Nacional de Estudantes. Era um grupo de 700 pacíficos adolescentes, sem qualquer armamento, que

só estavam se reunindo na clandestinidade porque lhes fora subtraído o direito de associação garantido em todas as constituições brasileiras, inclusive na de 1967, em vigor na época. Nada mais reivindicavam que o direito de pensar, de se reunir, e de preservar as tradições da UNE. Delatados pelo vizinho, o sitiante Miguel Góis, (que não se perca pelo nome) o DOPS montou uma operação destacando três equipes policiais fortemente armadas, com retaguarda da Força Pública (Polícia Militar), comandadas pelos delegados Paulo Bonchristiano, Orlando Rosante e Ivo Barsotti. Eram cerca de 300 homens (215 segundo a polícia), incluindo civis e militares. Caminhando por trilhas encharcadas, os policiais fizeram um cuidadoso cerco à área, para depois avançar, preparados para uma violenta ação armada, quando se depararam com meninos escolares de mãos limpas, incrédulos com o que viam. Conta o delegado Bonchristiano: “Nós estávamos preparados para enfrentar gente armada, guerrilheiros perigosos. Quando vimos, era um bando de adolescentes com frio, amarelos, passando fome, sem a menor chance de resistir.” A Folha de São Paulo, no dia seguinte, abre a manchete: “Congresso da UNE: todos presos” e publica, em quase meia-página, uma foto de cena campestre, com cabritos e bodes pastando, enquanto policiais militares apontam seus fuzis-metralhadores contra um punhado de meninos assustados, com as mãos sobre a cabeça. Monte Castelo estava conquistado! Foram todos presos e, entre eles, os líderes estudantis José Dirceu, presidente da União Estadual de Estudantes; Luís Travassos, presidente da UNE; Vladimir Palmeira, presidente da União Metropolitana de Estudantes; e Antônio Guilherme Ribeiro Ribas, presidente da União Paulista de Estudantes Secundários. Os líderes foram encaminhados ao DOPS e os demais encarcerados no Presídio Tiradentes, onde hoje fica a estação Tiradentes do Metrô, todos numerados, fotografados e fichados como bandidos (Foi com uma dessas fichas que, mais tarde, identificaram o “criminoso político” José Genoino, preso na região do Bico do Papagaio, antes de iniciar-se a guerrilha do Araguaia).

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Vinte e cinco anos depois, o delegado Bonchistiano, que comandou a operação, voltou ao sítio em companhia do já deputado José Dirceu e lá os dois encontraram o mesmo Domingos Simões, sitiante que deu acolhida aos jovens da UNE, com barbas brancas, boné cubano e olhar parado no espaço. “Lembra-se de mim ?” pergunta o delegado, e Simões responde: “É claro que me lembro, companheiro, foi você que prendeu os meninos lá no sítio.” E completou: “Olha, companheiro, isso não mudou nada. Estamos na mesma porcaria [não foi esse o termo] mas eu continuo lutando.” E o delegado desabafou: “Fizemos tudo isso para que? Prendemos os estudantes, lutamos, defendemos a revolução [golpe de 64] e o Brasil está assim, desse jeito. O Zé Dirceu é que estava certo. Hoje eu não acredito em mais nada.” Depois da “Operação Murundu”, muita água correu por baixo da ponte e muitas novas gerações de cabritos e bodes voltaram a pastar nos mesmos campos. Vieram os movimentos guerrilheiros e a conseqüente repressão a eles. Simões – o dono do sítio – entrou para a VPR – Vanguarda Popular Revolucionária. Foi preso na OBAN e, como era de costume, levaram também prisioneiras sua mulher Neusa e suas duas filhas, criminosas por laços de sangue. “Fui muito torturado – conta ele – arrancaram uma unha de minha mão, me bateram com cacetete, me quebraram três costelas com pauladas e deram choques no meu ouvido. Fiquei meio surdo.” Só pra lembrar: o governador de São Paulo, naquele momento da Operação Murundu, era o mesmo Roberto de Abreu Sodré, citado tópicos atrás. E posou de vitorioso com a “Tomada de Monte Castelo”: “Agi com energia para reprimir a agitação e a subversão, quando determinei, após horas de angústia e apreensão, a prisão de estudantes subversivos que participavam do Congresso da UNE.” Qual a verdadeira face de Sodré: esta, revelada na entrevista, ou aquela, cuja recusa em colocar a polícia paulista na repressão, originou a criação da OBAN?

Vida e morte de Lamarca Carlos Lamarca era capitão no 4º

Regimento de Infantaria, em Quitaúna, região da Grande São Paulo, especialista em operações anti-guerrilha. Um dia, em janeiro

de 1969, saiu do quartel com dois caminhões lotados de soldados e armamentos para um suposto treinamento e nenhum deles voltou. Fundaram um movimento guerrilheiro, a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e tentaram, sem sucesso, iniciar operações de guerrilha camponesa, no litoral sul de São Paulo. Da junção da VPR com a Colina, outro movimento armado, surgiu a VAR-Palmares. Descontente com o rumo do movimento, Lamarca filiou-se ao MR-8, transferindo sua ação para o nordeste, mais precisamente para o Estado da Bahia. Com objetivo de prendê-lo, e ao seu grupo, foi montada a “Operação Pajussara”, comandada pelo major (hoje general) Nilton Cerqueira, que realizou seguidas e infrutíferas tentativas de eliminar o movimento guerrilheiro. A terra era inóspita e os soldados não tinham treinamento de sobrevivência na catinga. Uma última tentativa trouxe melhores resultados. Os guerrilheiros, senão presos ou executados, foram pelo menos desbaratados, impedindo a continuidade da ação armada. A companheira de Lamarca, Iara Iavelberg, morreu em seu esconderijo. A versão oficial é de suicídio, havendo, entretanto a possibilidade de ter sido fuzilada, acontecimento comum nesses confrontos. Restava Lamarca. Em 6 de agosto de 1971 foi preso José Carlos de Sousa (cognome de Rocha) que, “traumatizado”, (expressão contida no relatório), deu as coordenadas para encontrar o chefe. Chegando à localidade de Pintada (nome suposto, que consta do relatório militar), deram de cara com o que restava do grupo guerrilheiro, ainda dormindo, Iniciou-se a fuzilaria, com vantagem para as tropas legais. “Você é Lamarca?” – pergunta o major Cerqueira, confrontando o rosto de um moribundo com a foto que trazia às mãos. “Sim, sou o Lamarca”. “O que você acha disso?” volta a perguntar o major. “Sei quando perco.” E a cena se encerra com uma lição de moral, dada pelo major Cerqueira: “Você é um traidor do Exército Brasileiro.” Não houve resposta. Lamarca estava morto. A morte ocorreu em 17 de setembro de 1971 e, seguindo recomendação da censura, os jornais foram sucintos no seu noticiário, com linguagem própria de “press-release”: “Carlos Lamarca, considerado o mais

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perigoso terrorista do país, foi morto em tiroteio com as forças de segurança”, etc. etc.

Relembrando “Os Sertões” Apenas para registro: o governador da Bahia, naquele instante, era Antônio Carlos Magalhães que, embora fiel aos governos militares, nada teve a ver com a operação, que foi planejada e realizada inteiramente por forças do Exército. Mas, como governador, era responsável pela miséria que continuava a existir no sertão baiano. Com efeito, um dos pontos mais objetivos do relatório militar é a narrativa das condições de vida na caatinga, lembrando um pouco Euclides da Cunha em relação a Canudos: “Ficou demonstrado que o povo do interior, embora vivendo nas mais miseráveis condições, ainda repudia e, até mesmo, odeia o emprego da violência que os terroristas querem impor. Resta, contudo, a dúvida de saber até quando persistirá com esta concepção, de vez que não vê e nem sente, na prática, em curto prazo, solução para seus mais prementes e comezinhos problemas, podendo assim tornar-se presa fácil a qualquer impregnação de doutrinas espúrias.” Mais de 70 anos após a morte de Antônio Vicente Mendes Maciel (Antônio Conselheiro), o místico de Canudos, a situação no sertão baiano permanecia idêntica. Cuidou-se de exterminar o foco visível da luta armada, mas ficaram ainda enraizadas as condições sociais que levaram ao confronto do Vaza-Barris. O povo continuava sendo apenas um acidente histórico, excluído da vida nacional, aparecendo apenas como apêndice em relatório de operação militar. Desse jeito é mesmo difícil combater a utopia comunista, que só não encontrou guarida nessa multidão de desvalidos pelo controle que, sobre ela, exercem os coronéis do sertão, restícios da velha Guarda Nacional, que ainda conseguem manter sólidas as suas áreas de influência política.

Vida e morte de Mariguella Carlos Mariguella nasce em Salvador-BA em 1912 e, em sua trajetória, participa de quatro repúblicas. Na primeira (1889-1930), é apenas um estudante; na segunda (1930-1945), adota o comunismo como regra de fé e prática: participa da Intentona de 35, é preso, foge, é recapturado, preso novamente e, finalmente, libertado em 1945, quando, ao

início da 3ª República (1945-1964), elege-se deputado-constituinte. Assina a Constituição de 46 mas, em seguida, o Partido Comunista do Brasil é posto fora da lei e seu mandato é cassado, junto com o de outros 14 parlamentares, incluindo Jorge Amado e Luís Carlos Prestes. Expulso do PCB em 1967, funda a ALN – Aliança Libertadora Nacional e, juntando-se ao MR-8, participa do seqüestro do embaixador americano no Brasil, Charles Elbrick, quando é ferido, mas consegue sobreviver. Volta em seguida a São Paulo, onde inicia uma operação de guerrilha urbana, auxiliado por frades dominicanos, que lhe davam guarida e com quem ele mantinha freqüentes contatos. No Rio de Janeiro, agentes da repressão seqüestraram dois frades dominicanos (Frei Ivo e Frei Fernando) que foram levados a dependências da Marinha, onde se achava, naquele momento, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DOI-CODI. Vítimas de intimidação física e psicológica (berros e palavrões, seguidos de aplicação de instrumentos de tortura), os dois frades deram a informação procurada: Marighella escondia-se sob o cognome de Ernesto e podia ser encontrado em São Paulo na Livraria Gráfica e Editora Duas Cidades, na Alameda Casa Branca (Região da Avenida Paulista). Voltando, então a São Paulo, em 4 de novembro de 1969, Fleury monta a “Operação Bata Branca” que resulta na morte de Carlos Marighela. A versão da polícia era de que ele fora morto dentro de um fusca, quando tentava atirar contra a polícia. Os laudos do inquérito apresentam uma série de detalhes que contestam essa versão. De início, vários policiais e um transeunte foram atingidos por armas da própria polícia, o que indica ter havido um tiroteio para todos os lados e não apenas para o carro onde se dizia estar Marighela. O relatório policial registra a apreensão, junto a Marighela, de uma única arma com 5 balas intactas, não fazendo referência a cápsulas usadas. Não houve, portanto o aludido confronto armado. Uma falange de Marighela foi recolhida a 10 metros de distância do carro, o que indica que ele se encontrava na rua quando recebeu os tiros, “porque falange não anda” conforme disse o promotor. Com a morte de Marighela em 69, e de Lamarca em 71, elimina-se os dois principais

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focos contestação armada. Resta apenas a guerrilha do Araguaia que, por sua complexidade, não será tratada aqui. No combate movimento volta a atuar com sucesso o delegado paulista Sérgio Paranhos Fleury, na época a autoridade máxima da repressão no Brasil.

O macartismo volta em São Paulo

Os profissionais de imprensa em São Paulo sempre desconfiaram bastante dos setorialistas encarregados da cobertura nos meios militares, os quais, por vontade própria ou coagidos, eram usados para mandar “recadinhos” aos demais jornalistas. Essa promiscuidade entre dois setores que, a bem público, deveriam ser independentes e opostos, tornou-os suspeitos de andar em mão dupla, atuando como delatores de seus próprios companheiros de trabalho. Fora do bloco, mas agindo na mesma linha, estava o jornalista Cláudio Marques. Era diretor do Diário de Comércio e Indústria, jornal destinado à classe empresarial; tinha uma coluna no Shopping News, semanário de circulação controlada, distribuído gratuitamente, e atingindo sobretudo a classe média; por fim, apresentava um programa diário de 10 minutos pela TV Bandeirantes, sob o patrocínio da Construtora Adolfo Lindenberg, cujo proprietário era também diretor da TFP-Tradição, Família e Propriedade, um órgão religioso de atividade radical da ultra-direita. Jovem, bem aparentado e vestindo-se com apuro, Cláudio Marques poderia passar por um Rodolfo Valentino tupiniquim. Mas seu campo de atividades era outro. Nos jornais, sobretudo no Shopping News, insinuava atividades subversivas de colegas de imprensa. No programa de TV, destinado à classe média-alta, exibia imagens de obras de arte, dando nome do proprietário, valor de mercado e outros informes de investimento. Mas, paralelamente a essas informações triviais, distilava seu veneno, incriminando outros jornalistas, que acusava de usar a influência para desenvolver propaganda contra o regime. Tudo isso propiciou uma reescalada de violência no DOI-CODI, em outubro de 1975, atingindo sobretudo a TV e, dentro dela, os profissionais mais conhecidos e destacados. Assim é que, no dia 24, já estavam presos incomunicáveis (sem acesso aos advogados) George Duque de Estrada, Rodolfo Konder,

Sérgio Gomes, Marinilda Marchi, Frederico Pessoa da Silva, Ricardo de Morais Monteiro, José Pola Galé, Luís Paulo da Costa e Anthony de Christo. Nesse mesmo dia foram presos e levados ao DOI-CODI também os profissionais Paulo Sérgio Markun e Diléa Markum. Com exceção de Duque de Estrada, todos os demais foram vítimas de tortura.

A morte de Vladimir Herzog Ao reestruturar seu departamento de jornalismo, a TV Cultura, então controlada por Rui Nogueira Martins, convidou para dirigi-lo o jornalista Vladimir Herzog, um judeu norte-americano radicado no Brasil e que já trabalhara na primeira fase do telejornalismo dessa emissora. Aceito o convite, seu nome, como de praxe, foi encaminhado ao SNI-Serviço Nacional de Informações, que esmiuçou a vida do jornalista e, por fim, deu sinal verde para que ele fosse contratado. Foi então que iniciaram-se as investidas de Cláudio Marques, já mencionado acima, tanto por artigos no Shopping News como por seu programa da TV Bandeirantes. Cláudio Marques se defende: “Não fui o primeiro nem o último a abordar a linha, quando menos estranha da programação jornalística da TV Cultura de São Paulo. Não fui o primeiro nem o único a perceber que a TV Cultura primava pela apresentação de programas de cunho nitidamente comunizante, às escâncaras, e, o que é pior e que motivou nossa revolta, com o financiamento do governo do Estado.” No mesmo dia em que o casal Markum fora preso, a intenção era também a de prender Herzog. Só não o fizeram porque o setorialista da área militar, Paulo Nunes, mal-visto entre os colegas, assumiu a custódia do jornalista, comprometendo-se a apresentá-lo ao DOI-CODI no dia seguinte. E cuidou bem do “objeto” custodiado, tanto que foi dormir na própria casa de Herzog. No dia seguinte, 25 de outubro de 1975, logo de manhã, os dois foram àquele departamento policial. Paulo Nunes foi barrado na entrada e Vadimir Herzog foi conduzido à sala de interrogatórios. À noite, já estava morto.

Não souberam montar a cena A morte de Vladimir Herzog, dada como suicídio, tem uma foto divulgada à imprensa mas a cena, mal montada, não resiste a uma primeira análise.

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Qualquer tresloucado que pretenda acabar com a própria vida, trata de fazê-lo de forma tal a anular qualquer possibilidade de arrependimento. Ou se atira do último andar de um edifício, ou amarra uma pedra ao corpo antes de se atirar a um rio, ou se pendura no galho mais alto de uma árvore. A foto divulgada para comprovar o suicídio de Herzog chega a ser surrealista. O cinto está amarrado no vão mais baixo da grade, de maneira que a vítima, para cumprir seu intento, teve de se ajoelhar! E, acrescente-se, prisioneiros do DOI-CODI não usavam cintos ou fivelas e lhes eram tirados até os cordões do sapato. Ao seu lado, na cena montada, há uma cadeira que poderia ser utilizada para alcançar a grade mais alta. No chão, uma cópia rasgada do depoimento, para dar a falsa impressão de um arrependimento tardio. E, se precisasse de algo mais, a perícia revelou mais tarde a existência de dois sulcos em seu pescoço, como se ele tivesse se suicidado duas vezes. O depoimento de Herzog, cheio de remendos, mostra o quanto lhe foi difícil redigi-lo de próprio punho e a foto, já o dissemos, choca à primeira vista pelas incongruências que apresenta. Examinando a foto do corpo e o fac-símile do depoimento é possível montar uma trajetória verossímil da passagem de Herzog pelo DOI-CODI. Vladimir Herzog foi coagido a redigir aquele documento e, ao receber a cópia a que tinha direito, rasgou-a na presença de seus interrogadores que, num ato impensado, se atiraram contra ele, estrangulando-o. Depois foi montada e fotografada a cena simuladora de suicídio. A semana que se seguiu foi difícil para os jornalistas, para a polícia e até para o próprio governo central. Desde o enterro, foi montada pela polícia a “Operação Gutenberg” e os setorialistas enviavam recados telefônicos ao Sindicato, mostrando o desagrado da área militar com as reuniões havidas em sua sede (Eram reuniões informais e não uma assembléia permanente, como interpretavam os militares). A missa de 7º Dia foi transformada em culto eucumênico, celebrado pelo Cardeal D.Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Soebel e pelo pastor Jaime Wright. Um esquema policial fechou todos os acessos à Catedral da Sé, o que não impediu uma presença maciça dos que já se achavam dentro do anel de segurança. Era uma

multidão que lotou a Catedral e uma parte da Praça da Sé. E os participantes receberam recomendação de sair em grupos de cinco, em silêncio e sem responder a eventuais provocações. Durante esse culto eucumêmico, o presidente da República esteve em São Paulo, primeiro no Palácio dos Bandeirantes e depois no Aeroporto de Congonhas. E só embarcou de volta após receber notícias de que a operação policial terminara sem incidentes. O mesmo presidente Geisel enviou ao comandante do 2º Exército, general Ednardo, uma advertência de que não toleraria uma segunda morte dentro das dependências do DOI-CODI. E não tolerou. Três meses depois, morre nesse local o operário Manoel Fiel Filho e Geisel, de imediato, demite o general Ednardo D’Ávila Melo, desativando (mas não desmontando) os aparelhos de repressão.

Epílogo Muita coisa deixa de ser contada e o que consta deste capítulo foi colocado de forma desalinhavada, com várias lacunas importantes, que o espaço limitado não permite preencher. Este capítulo, que encerra os “Cem Anos de República”, foi o mais difícil de ser escrito em toda a obra e, ainda assim, não permite uma visão global de todos os confrontos e excessos havidos nos “anos de chumbo”. Mas então, por que publicá-lo? Porque, em meio ao agitado noticiário sobre a turbulência em que vivemos hoje, sempre aparecem cidadãos desavisados a sonhar com o retorno de um regime forte para acabar com os males que afligem a nação brasileira. Se você é um deles, pare e raciocine. Nos 10 anos de vigência do Ato Institucional nº5 também havia violência, não só aquela dos órgãos de repressão, como também a do esquadrão da morte, organizado pelo mesmo delegado Paranhos Fleury, atingindo criminosos notórios e, igualmente, muitos inocentes vítimas do arbítrio. Havia também impunidade, tanto que uma lei foi votada (a lei Fleury) só para livrar da cadeia o referido delegado. Havia corrupção, tanta como nos dias de hoje, gerada em torno do próprio governo, sobretudo à sombra do Sistema Financeiro da Habitação, mas não só nele. Havia influência de poder e malversação do

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dinheiro público. Tudo isso só veio a tona a partir de 1979, quando foi extinto o AI-5, permitindo que a imprensa denunciasse o lixo que, durante longos anos, foi varrido para debaixo do tapete. E o peso dessa divulgação foi tão grande que solapou os fundamentos do regime militar, o qual caiu de maduro com as eleições (indiretas) de 1985. Vale à pena, pois, aceitar o conselho do deputado-federal José Genoino, uma das vítimas dos órgãos de repressão: “É preciso apostar todas as fichas na democracia.” Se a democracia tem suas falhas, e muitas, ainda não se inventou um regime alternativo a ela. Somente com a imprensa livre, com o direito à livre associação em categorias profissionais, classes sociais, grupos de interesse comum, etc., é possível o fortalecimento da cidadania. E este é o centro da questão: Uma nação se liberta fazendo o uso pleno da cidadania, assumindo a consciência de que é possível mudar tudo, a partir da conscientização e da ação coordenada. Uma das falácias divulgadas pelos regimes fortes é a de que os órgãos de comunicação dirigem a opinião pública, mas a verdade é o contrário disso. Os jornais incentivam as “cartas à redação” para pautar seus assuntos conforme a reação dos leitores. As estações de rádio abrem canais de comunicação para auscultar o pensamento dos ouvintes. E os produtores de TV permanecem de olho fixo nos índices do Ibope para formar a sua grade de programação. Alguns programas jornalísticos tem até recursos para modificar a matéria no ar, esticando assuntos que dão maior índice de Ibope e encurtando outros que, naquele momento, estão fazendo o índice despencar. O público é que decide o que deve ler, ouvir ou ver. Desconhecer as tendências de seu público pode ser fatal a um órgão de comunicação. Assim, você, como eu, é um formador de opinião, agindo em mão dupla. Ao mesmo tempo em que é influenciado, também tem a possibilidade de influir. Faça uso dessa força. Esse é o único caminho viável para reformular o país, criando condições melhores de vida às gerações futuras.

FIM DO QUARTO VOLUME E DOS‘CEM ANOS DE REPÚBLICA”

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