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CARACTERIZAÇÃO DO JUSTO TÍTULO PARA USUCAPIÃO Revista de Processo | vol. 56 | p. 254 | Out / 1989DTR\1989\236 Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery Área do Direito: Civil Sumário: ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos estes autos de apelação cível 91.254-1, da comarca de São Paulo, em que são apelantes O.F.L. e outros, representados por seu Curador, sendo apelados H.N. e sua mulher: Acordam, em 4.ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça, por maioria de votos, negar provimento ao recurso. 1. Cuida-se de ação de usucapião ordinário versando sobre um imóvel urbano, descrito na inicial e do qual os autores receberam uma promessa de cessão parcial, daquele em cujo nome está matriculado no Registro Imobiliário. A sentença fls., cujo relatório é adotado, julgou procedente a ação, impondo aos autores a condenação em custas, na ausência de contestação pessoal dos réus. Apelou a Curadoria de Ausentes, em nome dos réus citados editalmente, pedindo a reforma da sentença sob o argumento da inexistência de justo título em favor dos autores, porque o documento em que se escoram não permitiria o registro imobiliário. Recurso tempestivo, opinando a Curadoria de Registros Públicos, com apoio da Procuradoria Geral de Justiça, pelo provimento da apelação. 2. Negam provimento ao recurso. A sentença admitiu que o contrato de fls., deva ser considerado como justo título em ordem a legitimar o usucapião ordinário. Menciona inclusive, vários acórdãos no mesmo sentido, referindo-se a um relatado nesta mesma 4.ª Câmara pelo eminente Des. Freitas Camargo. E, ainda recentemente, quando do julgamento, nesta mesma Câmara, da Ap. 84.568-1, decidiu-se no mesmo sentido, valendo reproduzir, dada a identidade das situações o que ali ficou assinalado: "A matéria, controvertida nestes autos, sem dúvida, é polêmica e apaixonante, encontrando-se, nos dois lados da divergência, opiniões dos mais notáveis civilistas. "A sentença acolheu a tese de que cessão de direitos, por instrumento particular, não constitui justo título para os efeitos previstos no Código Civil ( LGL 2002\400 ) para a obtenção do usucapião ordinário. "Dispõe o art. 551 do CC: "Adquire também o domínio do imóvel aquele que, por dez anos entre presentes, ou quinze entre ausentes, o possuir como seu, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé". "Não se pode negar que o Código tem em consideração, fundamentalmente, a exigência da prova do fato concreto da posse, por dez ou quinze anos, com o ânimo de domínio, mesmo porque requisitos indispensáveis. Mas, em se tratando de forma ordinária de usucapião, acrescentou os requisitos do justo título e boa-fé. "Aqui, por força até dos limites da sentença, importa apenas saber o que deva ser considerado como justo título. Sabido que doutrina e jurisprudência firmaram, desde há muito, o conceito de que é o título, público ou particular, capaz de transferir o domínio, mas ineficaz para tal efeito pela ausência de algum elemento essencial. "Ora, como salientou acórdão da Eg. 8.ª Câmara deste Tribunal, relatado pelo eminente Des. Jorge Almeida ( RJTJESP 96/250), 'O justo título é conceito referenciado à posse que ampara, desafeiçoado do domínio a cuja transferência não serve'." CARACTERIZAÇÃO DO JUSTO TÍTULO PARA USUCAPIÃO Página 1

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CARACTERIZAÇÃO DO JUSTO TÍTULO PARA USUCAPIÃO

Revista de Processo | vol. 56 | p. 254 | Out / 1989DTR\1989\236

Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery

Área do Direito: CivilSumário:

ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos estes autos de apelação cível 91.254-1, da comarca deSão Paulo, em que são apelantes O.F.L. e outros, representados por seu Curador, sendo apeladosH.N. e sua mulher: Acordam, em 4.ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça, por maioria de votos, negarprovimento ao recurso.

1. Cuida-se de ação de usucapião ordinário versando sobre um imóvel urbano, descrito na inicial edo qual os autores receberam uma promessa de cessão parcial, daquele em cujo nome estámatriculado no Registro Imobiliário.

A sentença fls., cujo relatório é adotado, julgou procedente a ação, impondo aos autores acondenação em custas, na ausência de contestação pessoal dos réus.

Apelou a Curadoria de Ausentes, em nome dos réus citados editalmente, pedindo a reforma dasentença sob o argumento da inexistência de justo título em favor dos autores, porque o documentoem que se escoram não permitiria o registro imobiliário.

Recurso tempestivo, opinando a Curadoria de Registros Públicos, com apoio da Procuradoria Geralde Justiça, pelo provimento da apelação.

2. Negam provimento ao recurso.

A sentença admitiu que o contrato de fls., deva ser considerado como justo título em ordem alegitimar o usucapião ordinário. Menciona inclusive, vários acórdãos no mesmo sentido, referindo-sea um relatado nesta mesma 4.ª Câmara pelo eminente Des. Freitas Camargo.

E, ainda recentemente, quando do julgamento, nesta mesma Câmara, da Ap. 84.568-1, decidiu-seno mesmo sentido, valendo reproduzir, dada a identidade das situações o que ali ficou assinalado:

"A matéria, controvertida nestes autos, sem dúvida, é polêmica e apaixonante, encontrando-se, nosdois lados da divergência, opiniões dos mais notáveis civilistas.

"A sentença acolheu a tese de que cessão de direitos, por instrumento particular, não constitui justotítulo para os efeitos previstos no Código Civil ( LGL 2002\400 ) para a obtenção do usucapiãoordinário.

"Dispõe o art. 551 do CC: "Adquire também o domínio do imóvel aquele que, por dez anos entrepresentes, ou quinze entre ausentes, o possuir como seu, contínua e incontestadamente, com justotítulo e boa-fé".

"Não se pode negar que o Código tem em consideração, fundamentalmente, a exigência da prova dofato concreto da posse, por dez ou quinze anos, com o ânimo de domínio, mesmo porque requisitosindispensáveis. Mas, em se tratando de forma ordinária de usucapião, acrescentou os requisitos dojusto título e boa-fé.

"Aqui, por força até dos limites da sentença, importa apenas saber o que deva ser considerado comojusto título. Sabido que doutrina e jurisprudência firmaram, desde há muito, o conceito de que é otítulo, público ou particular, capaz de transferir o domínio, mas ineficaz para tal efeito pela ausênciade algum elemento essencial.

"Ora, como salientou acórdão da Eg. 8.ª Câmara deste Tribunal, relatado pelo eminente Des. JorgeAlmeida ( RJTJESP 96/250), 'O justo título é conceito referenciado à posse que ampara,desafeiçoado do domínio a cuja transferência não serve'."

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"É precisa essa distinção. Se se entendesse que, para obter usucapião ordinário, seria indispensáveltítulo que, para ser justo, pudesse operar a transferência do domínio, então seria dispensável a ação,porque o título, em si mesmo, por possibilitar a transcrição ou a matrícula, já atenderia à pretensãoaquisitiva.

"Ora, pela própria conceituação tradicional, o justo título não poderia comportar matrícula, outranscrição, pela existência de alguma omissão quanto a requisito essencial. Ou, por outras palavras,o justo título seria um título válido, perfeito, eficaz para demonstrar a existência de um negócio lícito,mas sem a autoridade suficiente para permitir o registro imobiliário.

"Daí porque o justo título deve ser examinado sob o aspecto da fumaça do bom direito, que deleresulta e do requisito da boa-fé que cercou sua elaboração. Por isso, apesar das opiniões emcontrário dos notáveis civilistas pátrios, não há como deixar de incluir o compromisso particular decessão e transferência de direitos, entre aqueles que se consideram como justo título.

"E, se a esse elemento essencial, os interessados demonstrarem a boa-fé, e posse pelo tempomínimo previsto em lei, de modo manso e pacífico, não haverá razão para negar-lhes o direitopretendido."

E, nada mais seria necessário acrescentar aos fundamentos desse venerando acórdão desta 4.ªCâmara, para confirmar a sentença que julgou procedente a ação, deferindo o usucapião aosautores. Saliente-se apenas que o contrato de fls. teve como cedente aquele em cujo nome o imóvelestá registrado, conformando-se, em área maior, com as aquisições e registros anteriores. E,decorridos mais de 15 anos, os autores sempre exerceram posse, com ânimo de domínio, mansa epacífica, considerados pelos vizinhos e confrontantes como proprietários. Por isso, negar-lhes odireito ao usucapião, afastando a condição de justo título daquele documento, importaria, também,em negar a própria função social da propriedade, obrigando os autores à renovação posterior dopedido, pelo usucapião extraordinário, quando, à toda evidência, nenhum obstáculo lhes seriaoposto.

Ante o exposto, negam provimento ao recurso, vencido o Relator que julgou carecedor da ação.

O julgamento teve a participação dos Des. Alves Braga, preso sem voto e Moretzsohn de Castro,com voto, vencedor e Ney Almada, vencido.

São Paulo, 22 de outubro de 1987 - OLAVO SILVEIRA, relator designado - NEY ALMADA, relatorvencido, com a seguinte declaração de voto: Data venia, votei vencido.

Trata-se de usucapião ordinário, incidente sobre imóvel urbano.

A r. sentença de fls., relatório adotado, julgou a ação procedente, sujeitando os autores às custasprocessuais (não houve contestante em nome próprio).

Recorre o órgão do Ministério Público de 1.º grau, conforme razões de fls., subscritas pela Dra.Curadora de Ausentes. Em síntese apertada, nega a existência de justo título, inculcando a carênciada ação.

Não propriamente como preliminar, mas de qualquer arte a merecer consideração prévia, alegaramos recorridos, em suas contra-razões, que a matéria objetivada no apelo se achava coberta porpreclusão, uma vez que o despacho de fls. já a houvera enjeitado.

Não é porém, bem assim. Com efeito, o MM. Juiz restringiu-se a afirmar que mesmo o título nãoregistrado podia, em tese, embasar a ação de usucapião, sem liquidar, pois, o problema em suadimensão concreta. Inocorreu, pois, preclusão, sem computar, ainda, e em especial, outro argumentoaplicável ao raciocínio: a questão argüida pela Curadoria é jurídica, e, pois, refoge à extinçãopreclusiva (fls.).

Quanto ao mérito recursal, impende analisar o documento em que se louvam os autores. Trata-se decompromisso particular de "cessão de parcela de escritura de venda e compra", o que faz supor queo cedente, qualificado como desquitado, teria, em seu nome, um instrumento público de aquisição doterreno objetivado no aludido negócio jurídico (fls.).

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Verifica-se, no entanto, que a aquisição foi instrumentada muito após. Com efeito, ao passo que acessão de parcela data de 9.2.69, a escritura, pela qual o cedente veio a habilitar-se à obtençãodominial, foi lavrada em 1975, inserindo-se na matrícula em 1977 (fls.).

Ainda, por outro ângulo, que se depreenda da cessão que abrangesse a tradição de posse (o quenão está bem explicitado no instrumento), tratando-se de direito real impunha-se a presença daco-adquirente, que figura na matrícula na condição de condômina (não é esposa do comprador).

Faltaria, pois, legitimação ao documento em que se estribam os recorridos.

É bem verdade que a evolução jurisprudencial do E. Tribunal de Justiça tem dado conceituação maisampla e abrangente à expressão "justo título", constante do Código Civil ( LGL 2002\400 ) , por formaa compreender, em sua conotação, o compromisso de venda e compra e até mesmo simples recibo(RT 432/84 - 279/284). No julgado da E. 8.ª Câmara, de que foi relator o Des. Jorge Almeida, foilançada a colocação de que "há que se entender por justo título o ato jurídico que serve defundamento a um direito subjetivo, não necessariamente aos requisitos de validade da transcrição"(RJTJESP, 96/251).

Também esta E. Câmara assim entendeu no julgamento da Ap. 72.588-1, relatado pelo Des. FreitasCamargo, podendo, ainda, invocar-se julgado inserido na mesma ordem conceitual na RT 589/72.

Mas, não é o caso dos autos.

A carência constitui solução irrecusável, como bem demonstrado nos pronunciamentos do MinistérioPúblico, especificamente no da Curadoria de Registros Públicos.

Do exposto, dava eu provimento ao recurso julgando os demandantes carecedores da ação.

Custas, na forma regular.

COMENTÁRIO

1. Introdução

O julgado, objeto deste comentário, é o acórdão proferido quando do julgamento da Ap. Cível91.254-1, da comarca de São Paulo, pela E. 4.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça, tendo comorelator designado o eminente Des. Olavo Silveira, em 22.10.87.

A questão, decidida em primeiro grau e devolvida para apreciação em segundo, envolvia aconsideração jurídica do que deveria ser entendido por justo título.

O acórdão, reportando-se a outro da mesma 4.ª Câmara - proferido no Ap. 84.568-1, enfrentou apolêmica existente em torno da conceituação do que venha a ser justo título, optando por aceitar, pormaioria, apto a ensejar usucapião ordinária, um compromisso particular de "cessão de parcela deescritura de venda e compra", sob o argumento de que o justo título deve ser examinado sob oaspecto da fumaça do bom direito, do qual resulta o requisito de boa-fé que cercou sua elaboração.

A análise desse acórdão nos invoca, pois, as considerações que fazemos em seguida.

2. Justo título. Aquisição a non domino

A causa mais comum de caracterização de um título de posse como justo título é a aquisição a nondomino.

A doutrina, neste particular, é torrencialmente unânime. Pedimos licença para transcrever omagistério de Lobão: "Quando dele se fala nesta matéria, se não entende pelo título proveniente dopleno e verdadeiro senhor da cousa, que por si mesmo transfere dela o domínio, porque nesse casoé supérflua a prescrição. Entende-se o título proveniente a non domino, que não tendo domínio quepossa transferir, nada mais transfere, que meter o adquirente de boa-fé em estado de prescreverpela tradição que lhe faz da cousa, como, por exemplo, o que vende os bens de outro não dá apropriedade, porque a não tem; mas se o comprador a possui por dez ou vinte anos, ele a prescreve"(Manoel Almeida e Sousa de Lobão, Notas do uso prático e críticas, adições, ilustrações e remissõesàs instituições do Direito Civil Lusitano do Dr. Pascoal José de Mello Freire, Parte III, Lisboa, 1866,

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Título IV, § 60, p. 140).

E o exemplo da aquisição a non domino como caracterizadora de justo título para usucapião podeser conferido na doutrina: José Carlos Moreira Alves, Posse, v. I, Rio de Janeiro, 1985, n. 6, p. 44;Manuel Antonio Coelho da Rocha, Instituições de Direito Civil Português, t. II, 7.ª ed., Lisboa, 1907, §460, p. 371: idem, ibidem, t. II, São Paulo, 1984, p. 268, edição cuidada por Alcides Tomasetti Júnior;J. Cornil, Traité Élementaire des Droits Réels et des Obligations, Bruxelas, 1885, § 60, p. 114;Antonio de Almeida Oliveira, A Prescrição em Direito Comercial e Civil, Lisboa, 1914, pp. 204, 209 e212; Lenine Nequete, Da Prescrição Aquisitiva (Usucapião), 3.ª ed., Porto Alegre, 1981, pp. 42, 201e, especialmente, 208, onde se refere à hipótese como sendo a mais freqüente; Lafayette RodriguesPereira, Direito das Coisas, v. I, Rio de Janeiro, 1977 (edição histórica), § 68, pp. 234-235.

A freqüência com que se verifica esta hipótese é tão grande, aliada à obviedade mesma desteraciocínio, que parcela autorizada da doutrina entende que a causa de transmissão, paracaracterizar-se como justo título, deve necessariamente provir do non dominus (conforme GiuseppePugliese, Trattado della Prescrizione Acquisitiva nel Diritto Civile Italiano, 2.ª ed.,Turim-Milão-Roma-Nápoles, 1901, n. 266, p. 517). É evidente que não se pode aceitar este alvitre,mas de todo modo ilustra bem o que vimos até aqui demonstrando.

3. Justo título. Caracterização e conceituação

O que é, enfim, "justo título"?

Em primeiro lugar, cumpre-nos esclarecer que os dois requisitos da posse exigidos pela lei para ausucapião ordinária são o justo título e a boa-fé (art. 551 do CC). Conforme ensinaJors-Kunkel-Wenger, a boa-fé é requisito de ordem subjetiva, enquanto que o justo título o é em seuaspecto objetivo (Paul Jors, Wolfgang Kunkel, Leopold Wenger, Roemisches Privatrechts, 3.ª ed.,Berlim-Goettingen-Heidelberg, 1949, § 75, 3, a, p. 135).

Isto quer significar que o prescribente deve trazer a juízo prova cabal de que a posse que detémproveio de causa idônea - assim considerada pelo direito positivo - a, de modo objetivo aferívelexternamente, transferir a propriedade. Não se indaga, aqui, da conduta subjetiva do possuidor, queé em tudo e por tudo irrelevante ao exame do justo título. Esse o sentido da lição deJors-Kunkel-Wenger.

Quando se fala em justo título, tem-se logo a impressão de que se trata de instrumento escrito ondeestaria retratado um ato ou negócio jurídico.

Não é correto este entendimento.

Título, aqui, não é somente o instrumento escrito revelador da existência de um negócio jurídico, massim também a própria causa, o fundamento deste mesmo negócio. Anote-se, neste particular, a liçãoda doutrina francesa: La notion' de titre recouvre par conséquent celle de causa... La causacorrespond à la qualité juridique de celui qui si prétend possesseur... (a noção de título, porconseguinte, encobre aquela de causa... A causa corresponde à qualidade jurídica daquele que sepretende possuidor...) (J ean-Marc Trigeaud, La possession des biens immobiliers, Paris, 1981, n.212, p. 216).

O justo título, no entender do ilustre jurista Muelenbruch, seria, então, toda a causa que fosse hábil atransferir o domínio: Possessioni, quae longo tempore dominium efficiat, causa subsit, universespectata et per se quidem idonea ad transferendum dominium; eaque justa causa s. titulus appelatur.Sunt autem tot usucapionis tituli, quot sunt causae dominii acquirendi, quase quidem omnes acsingulas commemorare non attinet. In his igitur subsistimus, quae seorsum tractantur in jure nostro;quo in genere est pro emtore usucapio, ejus quidem, qui ex vera entione possidet. (A causasubsidiária, que pela posse de longo tempo transfere o domínio, é geralmente considerada e por sisó idônea para transferi-lo; por isto é chamada de justa causa ou título. São, todavia, títulos deusucapião tantas quantas sejam as causas de aquisição de domínio, as quais em verdade não énecessário lembrar-se todas individualmente. E, insistimos nisto, as causas são tratadasseparadamente pelo nosso direito, o qual, em geral, é usucapido pelo comprador, que possui porcompra legítima) (C. T. Muehlenbruch, Doctrina Pandectarum, Editio nova, Bruxelas, 1838, § 265, p.254).

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No dizer de Lysippo Garcia, "justo título é tida a causa própria, em tese, para transferir o domínio,mas que, em conseqüência de obstáculo ocorrente na hipótese, pode deixar de produzir esse efeito"( O Registro de Imóveis, v. I, A Transcrição, Rio de Janeiro-São Paulo-Belo Horizonte, 1922, pp. 246,247).

Completando a definição de justo título fornecida por Lysippo Garcia, poder-se-ia dizer que eleabarca, também, hipóteses de outros direitos reais além da propriedade, desde que prescritíveis.

Mas o importante é a forma pela qual, segundo o nosso direito, deve vir o justo título. Quer dizer, é odireito positivo que estabelece o que vem a ser um título justo. Não de modo expresso, definindo oque seja esse título, como ocorre no direito espanhol, onde o art. 1.952 do CC expressamente oconceitua (Art. 1.952: Entende-se por justo título aquele que legalmente baste para transferir odomínio ou direito real de cuja prescrição se trate), mas sim de modo implícito, segundo teleologiadecorrente de nosso sistema do Código Civil ( LGL 2002\400 ) .

O ensinamento da doutrina se orienta todo ele no sentido de que o justo título é aquele hábil para atransferência em tese do domínio, segundo as prescrições do direito positivo (Rudolf Von Jhering,Der Besitzwille - zugleich eine Kritik der herrschenden juristischen Methode, Jena, 1889, reimpressãode 1968, capítulo XV, p. 359; Jean-Marc Trigeaud, La possession, cit., n. 211. p. 215).

E, segundo o nosso direito, qual seria a forma prescrita para a transferência da propriedade?

A maneira ordinária pela qual poder-se-ia operar a transferência do domínio está prevista no art. 134,II, do CC. Assim, é da substância do ato de alienação da propriedade a escritura pública.

No caso da aquisição a non domino, o justo título é aquele que, se fosse oriundo do verdadeiroproprietário, bastaria para operar a legal transferência do domínio ou de outro direito real prescritível(Per il titolo idoneo v. sub art. 1153. Esso consiste in un titolo di trasferimento, ossia in quel tipo dinegozio che se fosse stato concluso dal proprietario avrebbe sicuramente prodotto il transferimentodella proprietà o di un diritto reale di godimento - Giuseppe Trabucchi, in Commentario Breve alCodice Civile, organizado por Giorgio Cian: e Alberto Trabucchi, Pádua, 1981, comentário ao art.1.159, p. 456).

Nesta ordem de raciocínio, poderíamos concluir que somente a escritura pública é que se constituiem título hábil para a transferência da propriedade Portanto, somente ela é que pode serconsiderada como justo título, em se tratando de usucapião de imóveis.

Há entendimento de uma corrente doutrinária e jurisprudencial, segundo a qual o compromisso decompra e venda, desde que registrado ou inscrito no registro de imóveis, poderia ser consideradojusto título para a usucapião, após a obtenção: ou da escritura de compra e venda devidamenteregistrada, ou da sentença em ação de adjudicação compulsória, seguida da carta de adjudicaçãodevidamente registrada (cf. Lenine Nequete, Da Prescrição Aquisitiva, cit., n. 42, p. 209,especialmente em a nota n. 14, pp. 209-210). Isto porque no caso de compromisso particular decompra e venda (ou de cessão de compromisso particular), o direito reconhece idoneidade paratransferir o domínio, isto é, somente reconhece eficácia real a semelhante título, desde que ele estejadevidamente registrado (arts. 22 e 23 do Dec.-lei 3.079, de 15.9.38, que trata de venda a prestaçõesde imóveis loteados).

Ainda assim, o que conferiria idoneidade bastante para que a cessão ou o próprio compromisso decompra e venda registrados operassem a alienação da propriedade, seria a posterior escritura decompra e venda devidamente registrada ou a carta de adjudicação também registrada, obtida emação de adjudicação compulsória.

Como adverte Pontes de Miranda, "não se pode apresentar como título para se adquirir, porusucapião contra alguém, escrito particular que não tenha efeito erga omnes" (Tratado de DireitoPrivado, t. XI, 4.ª ed., São Paulo, 1983, § 1.197, 4, p. 145). Em seguida, após dizer que não seconsidera justo título a escritura pública sem as formalidades legais, nem a escritura particular dealienação acima de Cr$ 10.000,00 (ob., t. e loc. cits.), ratifica tal opinião mencionando que, "se oacordo havia de ser por escritura pública, e não o foi, é nulo.... Não há usucapião de imóveis de valorsuperior a Cr$ 10.000,00, ao tempo do título, sem que o instrumento seja público." (ob., t. cits., §1.222, 7, p. 240).

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É oportuno mencionar, ainda sobre este importante ponto, a opinião autorizada de Lenine Nequete:Nem parece que escape à conceituação proposta o compromisso de compra e venda devidamenteinscrito, desde que - anote-se - obtida a escritura ou a sentença de adjudicação e levadas (aquela ouesta) a registro. Pois o que então sucede é que os efeitos da transcrição, por força do art. 5.º, doDec.-lei 58, de 10.12.37 (regulamentado pelo Dec. 3.079, de 15.9.38, e posteriormente modificadopelos Decs. 4.857, de 9.11.39, e 5.318, de 29.2.40, e pelas Leis 649, de 11.3.49, e 6.014, de27.12.73), retroagem à data da averbação do compromisso. Em outras palavras: é justo título apromessa de compra e venda irretratável, feita a um non dominus, e desde a data de sua inscriçãono Registro Público, sob a condição, porém, de que o promitente comprador venha a obter e registrara escritura definitiva ou a carta adjudicatória. (grifos do original) (Lenine Nequete, Da PrescriçãoAquisitiva, cit., n. 42, p. 209).

Ainda relativamente ao justo título para a usucapião ordinária, poderíamos apontar mais umrequisito, que é o da validade deste mesmo título. O que importa é que ele seja hábil, em tese, paratransferir a propriedade. Se um contrato particular, sem registro, não é considerado pelo direitobrasileiro título bastante e idôneo para aquela finalidade, não o é, por conseqüência, justo título paraa usucapião.

Insistimos no fato de que este requisito é objetivo, não sendo lícito o exame da conduta doprescribente, sua boa-fé, seu erro de fato (título putativo) a respeito do título, entre outros fatores.Todos eles são de ordem eminentemente subjetiva, fugindo à conceituação do justo título. "Se otítulo é nulo por falta de forma que a Lei determina sob pena de nulidade, também um título tal nãobasta para a prescrição ordinária" (José Homem Corrêa Telles, Digesto Português, t. I, 3.ª ed..Coimbra, 1845, n. 1.340, p. 212).

A evolução jurisprudencial

Há em nossos Tribunais preocupação sempre presente no sentido de se interpretar a lei com osolhos voltados à nossa realidade social. Essa tendência tem grande importância, principalmente noque tange à amenização da sistemática jurídica do Código Civil ( LGL 2002\400 ) vigente, que nemao menos reconhece ao promitente comprador posse geradora de usucapião, já que seu art. 550exige, como um de seus requisitos, que o possuidor tenha a coisa como sua, o que, no caso docompromissário comprador, é incompatível com a posse direta que tem, subordinada àqueloutraindireta do promitente vendedor. Apesar de conservadora demais, essa tese tem, contudo, seusadeptos (v. RTJ 97/796; RJTJESP 87/241; RT 601/85, 587/63 e 563/95).

Contudo, o outro extremismo, conquanto atenda a intenção dos julgadores de prestigiar a posse dequem a tem por justo título putativo, não atende a nenhum dos requisitos legais da usucapiãoordinária.

O entendimento do eminente Des. Jorge de Almeida de que "há que se entender por justo título o atojurídico que serve de fundamento a um direito subjetivo, não necessariamente aos requisitos devalidade da transcrição" ( RJTJESP 96/251), concessa maxima venia, não se concilia com nenhumdos requisitos extrínsecos que a natureza objetiva do conceito de justo título exige.

O alargamento que a jurisprudência vem dando ao conceito de justo título fere frontalmente a leiposta e tem autorizado a incidência cada vez maior de decisões completamente afastadas da lei.

5. Conclusão

Assim, podemos concluir dizendo que o v. acórdão ora comentado não se houve com inteiro acertoao reconhecer como justo título documento que extrinsecamente não reunia condições para atransmissão da propriedade.

Eram essas as observações mais importantes que tínhamos a fazer sobre o v. acórdão analisado.

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