Castilho Pintado Por ele Próprio 1

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OBRAS COMPLETAS DE A1ÍT0NI0 FELICIANO DE CASTILHO "VOXatJlvdE

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OBRAS COMPLETAS DE

A1ÍT0NI0 FELICIANO DE CASTILHO

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COMPLETAS DE i . F. DE CASTILHO evistas, annuUdis, e pr»-.fapiarfas pur uni de sens filhos

L X I V

CASTILHO PINTADO POR ELLE PR0PR10

V O L U M E I

LISBOA KMPRKZA DA HISTORIA DK PORTUGAL.

Sociedade Editora LIVRARIA MODERNA

Ena Rus-csta. 93 T Y P O G R A P H U

45, Bua Ivens 1905»

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VOLUMES PUBLICADOS:

I — A M O R E MELANCOLIA. I I — A CHAVE DO ENIGMA.

I I I — C A R T A S DE E C C O E NARCISO.

I V e V—FELICIDADE PELA AGRICULTURA (2 vol.) V I e V I I — A PRIMAVERA ( I vol.) V I I I a X V — V i v o s E MORTOS — Apreciações moraes,

literarias, e artísticas (8 vol.) X V I a X V I Í I — E X C A V A Ç Õ E S POÉTICAS (3 v o l ) X I X e X X — O PRESBYTERIO DA MONTANHA (2 vol.) X X I e X X I I - O OUTONO (2 vol.) X X I I I a X X V I —QUADROS HISTORICOS DE PORTUGAL

(4 VOL)

X X V I I e X X V I I I — N O V A S EXCAVAÇÕES POÉTICAS (a v.) X X I Y a X X X I I — C A M Õ E S , drama e notas (4 v o l ) X X X I U — C A N A C E , tragedia original. X X X I V — U M ANJO D» PELLE DO D I A B O . — O CASAMENTO

DE OIHO. X X X V — A R I S T O D E M O , tragedia. — A VOLTA INESPE-

RADA, farça. X X X V I — A FESTA DO AMOR FILIAL. — A FILHA PARA

CASAR. X X X V I I e X X X V I I I — P A L E S T R A S RELIGIOSAS E CON-

SOI ACÕES (2 vol.) X X X I X a X L V - CASOS DO MEU TKMPO (7 vol . ) X L V I — E S T R E I A S P O E I C A S para o anno i8s3 (I vol . ) X I V I I a L — T E L A S I ITERARIAS (4 vol.) L I — 0 > CIUMKS DO BARDO, A S FLORES, E A CONFISSÃO

DE AMI-LIA ( I vol.) L I I e L I I I — M I L E U>« MYSTERIOS (2 v o l ) L I V — A NOITE DO CASTKLI O. L V — T R I B U T O PORT"GUEZ K MEMOR>A DO LIBERTADOR. L V I e L V I — T R A T A D O DE METRIFICAÇÃO ( . vol . ) L V I 1 1 a I X — N o \ AS TELAS LITERARIAS ( i vol-) I . X I L X 1 I , L X I 1 I — M E T H O D O PORTUGU-Z DE LEITUH*

Í3 v o l . ) n DIRECTÓRIO DO MESMO. L X I V - C».STILHO PINTADO POR BLLE PROPWO

N O P R E L O •

1.XIV—CASTILHO PINTADO POR ELLE PROVRSO ( \ul).

Ádnrtencia dos Editores

Entregamos hoje ás curiosidades insaciaveis o justas do Publico intelligente mais um inédi-to de Castilho. A historia d'este inédito é a seguinte :

#

Quando se imprimia 110 Rio de Janeiro a traducção paraphrástica dos Amores de Ovidio. desejava o editor, José Feliciano de Castilho, coroal-a com um largo estudo sobre a vida de seu irmão Antonio. Escreveu-lhe n'esse senti-do, pedindo-lhe esclarecimentos auto-biographi-eos, porque a verdade era que, dez annos mais novo que o seu primogénito, ignorava José Feliciano pormenores interessante da vida d'el-Je. A emigração, as viagens de um, a demora do outro na Castanheira do Vouga, separaram-n os muito tempo: de modo, que a reconstruc-ção completa de uma tal vida era impossivel. para quem não tinha bossa, tempo, habito, occasião, para pesquisas benedictinas. nem possuia o don de adivinhar.

Castilho Antonio respondeu pouco mais ou menos:

— Homem. deiTa-í«= Homenagens d e: v.ís JH st- proeum a mortvs, »>«.> •nsfUínro ci-

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6 Empreza 'da Historia de Portugal

neri. Nào sei se as merecerei ou não ; se a-s viesse a merecer, o futuro m'as prestaria. Por ora é cedo. Receber palmas por mão de um irmão eompromette a imparcialidade.

Replicou Josá Feliciano: — Tudo isso assim é, a nada d'is»o vale

dois caracoes. Eu nào pretendo jnlgar-íe : que-ro apenas juntar materiaes fidedignos para a chronica da tua vida. Manda, o quanto antes.

Tornou Antonio : — Não mando. Revolver o passado nó traz

saudades amargas, sem fruto nem deleite para leitores mais ou menos indiflerentes. Parece-ria fatuidade intolerável subscrever eu notas anto-biographicas. Fugi sempre a essas exhi-bições. A minha vida é obscura; não tem pe-ripécias que arrebatem. A minha biographia ostá nas minhas obras, boas ou más. Deixa-me.

Volveu ainda José: — Não te deixo, e m quanto não ,»muires.

Pouco sei de certos períodos da tua vida, se-não o pouquíssimo que se colhe de livros tens. Uma de duas: ou me mandas coisa que me encaminhe, ou não; no caso affirmativo, posso produzir obra que se leia, c que venha a guiai' futuros narradores; no caso negativo, direi, com muitos erros e lacunas, o pouco que son-ber, até com o risco de incorrer no teu desa-grado, e na critica publica. VoVn mon dernhr mot.

Forçado aos seus entrincheiramentos. o ven-cido da influencia que sobre ellc exercia o ir-mão, pediu Castilho a um amigo, o nosso bom Antonio Justino Simoes de Cabe lo, esboçasse alguns apontamentos, que elle depois reveria Cabedo .obedeceu, e principiou r-, tarefa.

(}hr<i* oompl«t«s d* OnsWho 7

Entretanto, depois de ouvir ler os primei-ros paragraphos, passou-se no ânimo do Poeta um phenomeno, que n'elle era vulgar: saltou da repugnancia, ao gosto; do mero entreteni-mento, á paixão; ditou paginas, e paginas, <• paginas, que em successivos paquetes foi en-viando para o Rio de Janeiro. Essas paginas, engendradas ao correr da penna, tem-n-as hoje o leitor entre mãos. O que era reservado em 1858, deixou de o ser hoje, em 1909 ; o tem-po é um grande inconfidente, quando se trata de homens notáveis. Coqfiamos pois affoita-mente ao Publico isso, que o Poeta apenas considerava digno dos olhos e da intimidade de um irmão.

Servem todas estas declarações, tão minu-ciosas quanto verdadeiras, para mostrar que. se n'um ponto ou outro (e em muitos), o tom das presentes notas biographicas se nos pode figurar emphaticamente presumpçoso; se o au-tor parece contemplar-se a si proprio com be-nevolencia excessiva ; se despende longos para-graphos no commentario de actos seus e inten-ções suas; tudo isso se deve com justiça attri-buir á sobrexcitação nervosa, em que o tinha eollocado a campanha longa e sangrenta do Methodo portuguez. Os principios de justiça, innatos e firmes no coração de Castilho, dão-lhe ás vezes palavras, e phrases, e paragra-phos. e laudas inteiras, de insoffridos sentimen-tos, que representam á primeira vista inimo-destia exagerada, mas são apenas a reposição leal da verdade nos seus eixos, o .> possível

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8 1Smpreza da Historia de Portugal

protesto contra muitas offensas. <-• muitas in-gratidões.

D e mais a mais: nada d'isso era destinado á impressão; o que ahi nos conservou o acaso, não passava de confidencias no seio da ami-sade mais intima: c <; quem é que no seio da amisade não desabafa de modo analogo, uma vez ou outra, agora ou logo. aqui ou acolá, no seu muito ou no seu pouco? ^;Quem ha, que não desnude a consciência com um amigo ou um irmão ? O que perante o Publico seria reprehensivel, tem todos os foros de le-gitimo e justo no silencio o resguardo de uma correspondência epistolar.

Por ultimo: <Í Quem sc atreveria a estra-nhar qualquer exageração immodesta n'uma alma de poeta V Um poeta nào é outra coisa, senão uma exageração permanente, já de sen-timentos, já de ideias, já de affeiçoes, Tem tão pouco das vantagens materiaes do mundo, que é bem lh'as consintâmos ideaes, e o deixemos pairar a seu sabor na região vaga das suas satisfações de amor proprio. Em Castilho, esses desabafos, assim lançados no ouvido de um irmão querido, são a compensação e o cor-rectivo das severidades inauditas, com que em muitos passos das suas obras se penitenceia de desprimores literários.

*

A' vista d este precioso inédito, agora sal-vo da destruição, faz pena que o autor se não desvelasse em deixar mais pormenores de si mesmo. Quem escreveu isto, quem deva-neou 4 chave do enir/ma. quem traçou as va-

Obras completas de Castilho 9

rias advertências das Excavações poéticas, quem pintou o monumental prologo do Presbyterio da montanha, devia ter mais vezes tomado para confidente o Publico Iedor.

A própria desegualdade no tom geral (Tes-tas paginas é encantadora. Muita vez se dei-xa o Poeta elevar até aos arroubos da elo-quência; outras vezes, no estylo médio da sua conversação-, dá-nos a illusão de que esta-mos a escutar-lhe a voz na intimidade; o es-tylo familiar prende-se em certos casos com o sublime; o que tudo presta a esta série de ca-pítulos uma variedade, uma pujança, um ca-minhar libérrimo, que n'outras composições da mesma penna se não encontram.

#

Este volume é portanto precioso como re-trato duplo: do homem, e do artista: do es-critor, e do conversador.

Basta de prologo. Fale o Poeta.

VOL. LXIV

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CASTILHO PINTADO POR ELLE PROPRIO

APONTAMENTOS AOTO-BIOGRAPBICOS

escritos em 1858, a instancias do Conselheiro José Feli-ciano de Castilho Barreto de Noronha, como elemen-tos para uma YIDA que projectava do Poeta.

(De Lisboa para o Rio de Janeiro)

1 , ° M A S S O

I

Nascimento.

Nasceu a 26 de Janeiro de 1800 em Lis-boa, defronte da torre de S. Roque.

II

Sarampão.

Cegou de cinco para seis annos do saram-po que se lhe recolheu. Seu pae, que era Len-te de Medicina na Universidade de Coimbra, empregou, por si e pelos seus collegas, todos

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12 Empresa 3a Historia ãe Portugal

os exfórços para vencer o mal ; mas só em pequena parte o conseguiu.

I I I

Estudo do Latim.

Estudara o ler e escrever antes da invasão da moléstia. Estudou o Latim com José Peixoto do Valle, um dos mestres mais hábeis d'aquel-la disciplina, que professava havia já então quarenta annos. Foi isto no Geral do Cunhal das bolas.

Peixoto do Valle, poeta latino e portuguez também, havendo-lhe tomado particular amisa-de, metteu-o na versificação latina, sendo n'esta Lingua que o pequeno versejou antes de sa-ber a medida dos versos portuguezes.

Nas quartas e sabbados, quando o Mestre dava themas para se escreverem na aula, cha-mava-o para ao-pé de si, e dava-lhe em por-tuguez, traduzida fielmente, a matéria de um, dois, e a final até de quatro, versos de Ovidio consecutivos, ufanando-se de ver como elle, ás vezes extemporaneamente, lhe adivinhava aquelles versos, que nunca ouvira. D'aqui se originou, em parte, o gosto e propensão com que ficou para a Musa classica romana, e em particular para Ovidio e Virgilio.

Nas lições de traducção de latim para por-tuguez, ou de portuguez, para latim, era o velho quem lia no original o periodo, ás vezes a pagina, que a memoria pronta do seu ou-vinte photographava integral e minuciosamente, e prontamente lhe restituia na outra Lingua.

Obras completa* de Castilho 13

Mais de uma vez Peixoto convidou os outros professores, seus collegas n'aquelle Geral, e outras pessoas de fora, para presencearem aquelles singulares exercicios. N u m a sua con-ta annual á Junta da Directoria geral dos Es-tudos dizia elle, fazendo especial menção d'este discipulo, que, se tivesse impedimento para re-ger a cadeira, tinha n'elle quem podesse sup-prir as suas vezes.

IV

Estudo da Rhetorica.

No mesmo Lyceu estudou a Rhetorica com Maximiano Pedro de Araujo, também poeta, traductor de Juvenal e Pérsio, autor de odes pindáricas, autor e tradutor de varias peças de theatro. Também entre este mestre e o discipu-lo se deram relações literarias, notáveis em tamanha differença de edades. 1

Nos dias feriados o Mestre lia em sua casa. e só para aquelle pequeno ouvir, as suas com-posições ; ou o exercitava, e se exercitava com elle, pondo em portuguez Orações de Cicero, e recitando com apparato os trechos mais elo-quentes.

1 Maximiano Pedro de Araujo Ribeiro, nomeado Professor por despacho de 10 de Novembro de 1771, segando Innocencio, vivia ainda, diz elle, em 1826.

Os EDITOBES.

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14 Empreza da Historia de Portugal

V

Estudo do Grego.

No mesmo Geral estudou grego com um Fulano Domingues, e depois no Geral de S. José com Antonio Maria do Couto; mas d'isto levantou mào. 1

V I

Estudo da Philosophia.

A Philosophia racional e moral, cursou-a na aula publica do Convento de Jesus, edifício hoje da Academia Real das Sciencias, e na sa-la onde hoje se dá o curso de Introducção á Historia natural dos tres Reinos, sendo seu professor o Padre Mestre Frei José de Almeida Drake, pregador insigne, e famigerado Lente d'aquelles tempos. 2

1 O estudo do grego exige a applicação da vista, por causa doa caractéres especiaes usados n'aquella Língua; isso difficultou immenso a Castilho o dito es-tudo. Toda a gente lê latim, bem ou mal, com syllaba-das ou sem ellas; mas grego, nem todos os secretá-rios lh'o poderiam ler.

OA EDITORES. 2 Segundo Innocencio, este Franciscano era Prega- .

dor Régio, Socio da Academia Real das Sciencias, e go-sara de grande reputação como orador sagrado, «para o que —diz o douto bibliographo — de certo concorria a sua bella disposição physica e agradavel presença, como ainda podem depor os que o ouviram». Nascido por 1778, falleceu de apoplexia a 'li de Agoíto de 1828.

Oa EDITORES.

Obra* completa» de OastiUo 1"

VII

Antonio Ribeiro dos Santos.

Quando andava ainda no latim, foi apresen-tado por seu Pae ao Desembargador Antonio Ribeiro dos Santos (Elpino Duriense), que mo-rava na sua linda casa da rua do Sacramento da Lapa.

Esta casa merece dois traços de descripção. Sem ser grande, respirava um ar de aristo-

cracia, de gravidade portugueza, e ao mesmo tempo de poesia e de affabilidade: paredes for-radas de damasco, com molduras doiradas, al-catifas, poltronas estofadas, painéis, bambinel-las, e reposteiros. A livraria, que elle por sua morte deixou á Bibliotheca publica, cujo fôra Bibliothecario mór. era separada do edifício: sala espaçosa no meio do jardim, para cujas ala-medas se abria para toda a parte com portas de vidraças. Entre as janellas estavam os cor-pos das estantes, avergadas de ricas edições, predominando a Literatura classica, romana e nacional. No meio da casa uma grande me-za de saia encarnada era presidida por uma estatua de Apollo. '

1 À residencia de Ribeiro dos Santos é o prédio que hoje tem na rua do Sacramentada Lapa o numero 5 4 ; de dois andares, o 1.° com sacadas, o 2." com janellas de peitos. Até pouco depois de 1862 conservou a sua feiçSo antiquada ; depois amodernaramn-o. Em 1859 ahi residiu provisoriamente Monsenhor D. Inno-cencio Ferrieri, Arcebispo de Sida, Núncio Aposto-lico, antes de se transferir para o palacio da rua do Prior, esquina da do Pau da Bandeira. Depois morou Simão Aranha de Souea e Meneses com sua màe

Os EDITOBBS.

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l('i Empreea da Historia de Portugal

Da vivenda e do viver de Elpino'Duriense pode formar alguma ideia muito aproximada, quem lê os três volumes impressos das suas poesias. Ali se vêem os homens de que se com-punha a sua roda, que eram todos os mais notáveis d'esse tempo; as arvores do seu quin-tal, inventariadas com amor e complacência; os autores, a cujo estudo mais o levava o seu pendor.

Ribeiro dos Santos, já então muito velhinho, era um homem magro, alto, de chambre e bar-rete, maneiras cortesans, falar autorisado, cor-tez, e suave, inimigo de visitas vadias, ás quaes se costumava negar, como elle proprio confessa nas suas obras, mas sempre de bra-ços abertos para os estudiosos como elle.

O Doutor Castilho, antigo amigo seu, e seu collega no magistério da Universidade, era um d'aquelles para quem elle estava sempre em casa, e de muito boa-mente, e a quem, posto o não reconhecesse por poeta, costumava con-sultar para a correcção das suas obras.

Recebeu pois de bom grado as visitas do pe-queno, ouviu-lhe as primeiras trovas, latinas e portuguezas, e aconselhou ao pae, que o deixasse proseguir, prontificando-se a encami-nhal-o com as suas luzes.

Sobre estas relações com Antonio Ribeiro dos Santos, ha o que quer que seja de curioso escrito no Jornal dos amigos das Letras.

(Agora acabamos de o desencantai; elle ahi vai; bom será que volte, para se nos não mu-tilar a obra, que temos completa).

Obras completas de Castillo 1 7

V I I I

José Agostinho de Macedo.

Já de tempos um pouco avante são as rela-çÕs com José Agostinho de Macedo.

Começaram estas por occasião de sahir á luz, pela primeira vez, poesia do autor: o Epi-eedio á morte de D. Maria I em 1816 (obra muito fraca).

José Agostinho publicava então um semana-rio literário critico, em cada numero do. qual havia um artigo obrigado contra o seu analys-ta, censor do poema «Oriente», Nuno Alva-res Pereira Pato Moniz. Este, como outros muitos poetas d'aquelle tempo, sahira também com seu epicédio ao mesmo assumpto.

José Agostinho, annunciando com grandes gabos o de Castilho, dizia por essa occasião: «Vinde, patos, vinde, gansos, vi ide, galeirões de todas as lagoas do Pindo, aprender ali a fazer versos, e a envergonhar-vos dos que tendes feito, e fareis por peccados nossos.»

Pelo correr dos annos, nunca este homem, essencialmente mordaz, beliscou, nem leve-mente, nos escritos ou na pessoa do seu pro-tegido, a despeito mesmo das dicordancias po-liticas ; antes nas suas obras por mais de uma vez o tratou com favor egual.

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l('i Empreea da Historia de Portugal

I X

Thebaida de Estácio.

Houve, de parte a parte correspondência epistolar, que está inédita.4

José Agostinho havia traduzido a Thebaida de Estácio; o manuscrito era em dois voluiues; perdêra-se-lhe o primeiro n'um emprestimo; era perda que o magoava, porque em seu conceito Estácio era um dos maiores poetas

1 Nào appareceu no espolio de Castilho. Existe uma carta só, datada de 13 de Agosto de 1824. Copiámol-a em 4 de Fevereiro de 1877 de uma copia por letra de Innoceneio Francisco da Silva, feita á vista do origi-nal. Déra elle essa copia a Antonio da Silva Tullio, que em 3 do dito Fevereiro nol a emprestou.

A carta do Padre José Agostinho é como segue:

Ill.m° Snr. Antonio Feliciano de Castilho. Tive a satisfação de ler, e admirar, as suas Cartas

de Eccho e Narciso, que me foram enviadas para a cen-sura; a approvação e o louvor já vinham na primeira pagina, apenas se chegava a ler o seu nome. Desde que li seus primeiros versos impressos, conheci que a Na-tureza quiz fazer uma aberração da sua marcha ordi-naria, vendo que principiava por onde os outros, e mais perfeitos, acabam; e esperei sempre que em cada pro-ducçào nos desse um maior prodigio ; e onde paVará isto? Com suas poesias vejo que não podem marcar-se limites á perfectibilidade do ser humano.

Sendo pois tão seu admirador, não posso ser seu ami-go quando me considero procurador de poetas portu-guezes que floresceram no tempo dos Portuguezes. Con-cedo que a poesia romantica é a primogénita de todas as poesias; os quadros campestres e o amor foram os primeiros folies d'esta gaita, hoje tão destemperada! Concedo que Theocrito, Bion, e Moscho, eram os mo-dernos de outros antigos, como nós somos os modernos

Obras completas de Castillo 19

do mundo, e para o retraduzir faltava-lhe j á o ânimo. Instava então com Castilho para que elle refizesse a parte perdida, dizendo-lhe que só elle podia dar boa conta d'aquelle recado. A tumidez porém do cantor de Domiciano não era para tentar ao autor das Cartas d'Ecco e da Primavera ; conformava bem com o estylo empolado do autor do Newton e da Meditação; por isso as instancias, do bom Padre n'este sen-tido não produziram effeito algum.

d'estes gregos velhos. Mas não concedo que os Allemães e Suissos fossem os primeiros reproductores d'esta an-tiguidade de antiguidade, como diz a tal senhora (de Staelfj; fomos nós, os Portuguezes, e só nós os Por-tuguezes; e primeiro escreveu Bernardim Ribeiro que <8annazaro ; primeiro Christovam Falcão que Bernar-dino Rotta, que Ludovico Paterno; primeiro Jorge de Montemór que Marco de Leo, que Jeronymo Benerim; e primeiro o mimoso, o delicado, o natural Francisco Rodrigues Lobo, eo sentimental Fernão Alvaresd'Orien-te que todos oa pandos e bojudos aHemães (porque o mesmo Haller, de quem tenho o retrato, mostra maior cabeça e mais vasta corpolencia que Vitellio).

Não posso chamar ear:icter, porem manha, ou mazel-la, a dos Portuguezes não fazerem caso de coisa ne-nhuma. JUm poeta e a índia é para elles o mesmo; e perder ambas estas coisas é perder coisa nenhuma ; e para elles é mais bem feito um cavallinho allemâo com um assobio no rabo, que o cavallo de bronze com El-Rei D. José em cima. Todas as traducções da collecçâo de Huber nào valem um Christovam Falcão, autor d'aquellas namoradas trovas, como diz um his-toriador nosso. Este Christovam Falcão achou-se com Affonso de Albuquerque na conquista de Malaca, e era Capitão de um terço, que por certo vem a ser coisa que valia mais que trinta Tenentes Generaesdos nossos de dragonas grandes. Ora, meu amigo, eu julgo que n'essa velha Coimbra ainda ha algum ginja como eu, que co-

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l('i Empreea da Historia de Portugal

X

Queima dos primeiros versos.

Quando em 1817, terminado em Lisboa o seu curso de humanidades, partiu para se matricular na Universidade, fez um auto-de-fé de toda a immensa versalhada que até então tinha escrito; no que, de certo, nada se per-deu, porque os livros do seu estudo poético haviam sido Camões, Diogo Bernardes, Fer-reira, Diniz da Cruz, e Elpino Duriense, tudo

nheça e preze as coisas do Portugal velho (porque o moderno não tem coisas, e as trovas ahi foram impres-sas, como diz o Padre Antonio dos Reis no Enthusiasmo Poético); veja se lá descobre um exemplar, e verá os AUetnães como fogem, ou se mettem a compor asso-mardes volumes de Direito. Olhe que os antediluvia-nos não eram mais chorões que Chrisfal quando diz :

E por quanto certo sei Que as lagrimas são salgadas, Aquellas doces achei. . . Em uma roca fiando, Mas o fuso lhe caía Dos dedos de quando eai quando.

Veja se toda a melodia e sentimentalismo dos românti-cos allemães iguala a sentimental melodia d'eata prosa de Bernardim Ribeiro, que com muito;, e com elle todo, conservo na memoria: — «Um freixo, que algumas das ramas estendia sobre a agua que ali fazia tamalavez da corrente, que impedida de um penedo que no meio d'ella estava, se dividia para um e outro cabo murmu-rando. Eu, que os olhos levava ali postos, comecei de tomar algum conforto ao meu mal, vendo como aquella pedra, imiga de seu curso natural o empecia, bem como as minhas desaventuras soíam em outro tempo fazer a tudo o que mais queria, que agora já não que-ro nada.»

Obras completas de Castillo 20

gente muito honrada, mas muito pouco própria para criar ou desenvolver verdadeira poesia. Jmitatores servum pecus.

X I

Conselho de Ribeiro dos Santos ao nosso Pae.

Antonio Ribeiro dos Santos havia aconse-lhado ao Doutor Castilho, que favorecesse em

Todos os círculos da Allemanha, toda a Confedera-ção do Rheno, todos os cantos ou canções das vaccas dos cantões suissos, não valem metade das naturaes la-murias de Francisco Rodrigues Lobo:

Se ficas atraz, como esta alma teme, guiarei o leme para onde vás.

— D'onde lhe veio esta rez (que ella poucas vaccas cria) ? — Ganhou a n'uma porfia nas festas que Ergasto fez.

Meu amigo, persuado-me que á excepção de um Caste-lhano velho chamado CastiUejos, ninguém iguala os Portuguezes no espirito e letra da poesia primitiva. Está muito moço, em boa idade, e é, e deve ser sauda-do poeta; basculbe esses pulverulentos bacamartes, que por certo não são monturos de Ennio, e tenha de lá mão n'esta caraminhola chamada Poesia, que se vai a terra.

In te omnis domus inclinata recumbit. Já para mim não ha a gaita de Pan, nem a trombe-

ta de Calliope; para lhe escrever esta carta deitei agua no tinteiro, porque a tinta estava reduzida a pol-m<!; um giz m<; basta, para lavrar atraz da porta o rol da roupa.

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22 Empreza da Historia de Portugal

seus filhos a applicação poética, porque (lhe ponderava elle n'uma carta) se os estudos amenos, por mais conformes com a índole ju -venil, se reputam, e muitas vezes teem sido, hostis a locubraçÕes mais sizudas e proveitosas, também por outra parte aproveitam como au-xiliares da sciencia. Quem se acostumou a Cul-tivar bem o estylo e a harmonia para òs ver-sos, habilitou-se para escrever a prosa com elegancia e número. Quasi todos os melhores prosadores foram poetas de alguns quilates.

Esta observação era justa, e o Pae fez obra

Ha quatro annos. sem interrupção, refazia, pulia, e alargava, o poema Oriente. Já renunciei á mania de o tirar do cahos dos borrões. Pique cá para os futuros Saumaises. E' tolice cantar a surdos.

Tive minhas cócegas de passar dois mezes de inver-no em Coimbra, e fazer algum contrabando em letras, porque n'este meridiano de Lisboa não são fazendas de lei.

Folgaria de ver-me as cãs e a fronte Esse negro esquadrão que entulha a ponte.

Mas como ahi Minerva é Pallas, e tudo é pancadaria, um arcabuz ou um cajado não me parecem muito aza-dos para bater o compasso ás endechas das Musas, que como raparigas teem muito medo, e muito pouca ver-gonha. Vá continuando com o seu Eccho, que elle re-tumbará pelo Universo.

Porque eu, se em verso aos grandes exclamara •Olhae, que o don das Musas nào se herda»,— Logo o eccho dos grandes me tornára: «Vai tu e os versos teus b »

Perdoe esta caduquice de um velho, e creia que é sou amigo.

Lisboa 13 de Agosto de 1824. J. A DE MÀCÉDO.

Obras completas de Castilho 23

por ella. Entretanto, forçoso é confessal-o, as exercitações poetfcas, que deveriam ter sido encaminhadas e fecundadas convenientemen-te, extravagaram á toa, perdidas ao aparce-lado maré magnum dos alfarrabios; do que, bem se ressentem o Epicedio j á citado, e o seguinte Poema á acclamação de D . João V I , dois escritos, que seu autor daria hoje tudo por aniquilar, e desluzir da lembrança de toda a gente.

Por esta occasião, é bom fazer uma di-gressão para pregar aos principiantes o que eu tenho amigavelmente aconselhado a muitos, e muitas vezes: que não hajam pressa de se imprimirem, porque a maldita da tinta de imprensa, uma vez que ennodôa, não ha quem n-a lave. Nenhum o crê, e todos depois se arrependem.

. . . Nescite vox missa reverti

dizia Horácio ; e mas ainda então não havia prelos.

X I I

Os meus dois primeiros criticos: Ribeiro dos Santos, e o Pae.

Os dois criticos que eu tinha n'esse tempo, eram: Antonio Ribeiro dos Santos, e meu Pae ; o segundo muito mais assíduo, e incomparavel-mente mais severo, que o primeiro.

Dotado de entendimento claríssimo, e de uma lógica inflexível, meu Pae não tinha em si um átomo de poesia;~nunca fez um verso;

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24 Empresa da Historia de Portttj«J

apreciava as grandes ideias e os affectos no-bres, porque de tudo isso havia n'elle, e mui-to ; mas a linguagem figurada, contrarian-do as suas tendencias mathematicas, e os seus hábitos mentaes de rigor, a linguagem figu-rada, sem a qual não ha poesia, destoava-lhe necessariamente.

Assim, os primeiros movimentos da sua cri-tica recahiam sobre a folhagem e florescência dos meus pobres poemas; era uma chuva de pedra, que m'os deixava em arvore sêcca.

*

Tudo, até os proprios excessos, produz seus bens. Este Aristarco domestico, este hora-ciano vir bónus et prudens sublimado á ultima potencia, e em quem a autoridade de sábio se reforçava ainda com o respeito que a pae se não dispensa, ainda quando extremosissi-mo, tornou-me em natureza o hábito da cri-tica minuciosa, hábito em que os annos me teem vindo confirmando, e que eu não pode-ria j á hoje contrastar. Sou um critico severo para as poesias alheias, mas não menos se-vero para as minhas; com uma differença po-rem : que as alheias, só as maltrato com cen-sura, quando as julgo merecedoras, pelo seu valor intrínzeco, de serem restauradas, e seus autores merecem o meu affecto; ás minhas, porém, não perdoo nunca, nem venialidades.

D'aqui, d'estas duas praxes, teem resultado duas coisas diversas, uma boa, outra ruim:

A boa, é que, escrevendo de vagar, e indo logo applicando a vistoria a cada phrase, ape-

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nas ella me desponta no espirito, e antes de descer á voz e ao papel, tenho adquirido uma certa intuição pronta, que me facilita o acer-tar sem andar primeiro tacteando. Para aqui vem perfeitamente o que diz Quintiliano, a quem já se vê que o mesmo haveria aconteci-do : Non enim cito scribendo jit ut bene scriba-tur; sed bene scribendo jit ut cito.

A segunda, a má, é que muitos moços presumpçosos, e aliás de bom engenho, pedin-do-me a critica, mas não desejando senão o louvor, recebendo-a com apparente docilida-de, mas lá por dentro espinhando-se com ella, e menos justos para comigo do que eu o fora para com os guias da minha inexperiência, apenas emancipados do thema me regala-ram com uma roda de coices. Que me pres-te ; o diabo que lh'os pague; não fosse eu asno.

Agora, lia já muito que, instruido eu tam-bém por elles, me retrahi desse tribunal de censura, onde o magistrado honesto e gra-tuito só se senta para leyar lambada; e não reparto dos frutos da minha experiencia e observação, a não ser com filhos, e um ou dois amigos, que me comprazo de metter no mesmo rol.

Queres tu ver uma prova irrefragavel da severidade com que eu escoimo as minhas próprias obras? compára a l . 1 com a 2.a edi-ção da minha Primavera.

Houve talvez outra causa coefiiciente para se me criar e radicar este geíto, esta necessi-

VOL. L.X1V Í

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dade de correcção: eu fui quem ensinou o La-tim, a Lógica, a Rhetorica, a irmãos mais novos, e depois, pelos annos além, essas e ou-tras disciplinas a mais algumas pessoas, j Que immenso exercício de attenção e de analyse!

Uma coisa,, que eu não acabo de compre-hender, é como um mestre de latim possa escrever mal; e comtudo, vê-se isso todos os dias. <;Não será mais seguro acreditarmos que esses sujeitos sabem tanto latim como nós hebraico, e que a sua reputação é uma d'essas mentiras passadas em julgado no tri-bunal da ignorancia publica?

Tu, que andas com as mãos na massa lati-na, e tão bem a tens sabido revolver ^conce-bes por ventura a possibilidade de entender bem os poetas, e os prosadores (muitas vezes também poetas) d'aquelle magnifico idioma, e de se ir escrever depois sem lógica, sem har-monia, sem graça, e, quando o diabo é ser,vi-do, até sem grammatica? Não concebes, de certo, nem é concebível.

X I I I

Collegio dos cathecumenos.

Torno atraz. Da edade de um anno, ou pou-co mais, vim, com a nossa familia, da casa de S. Roque para o Collegio dos cathecumenos na rua dos Calafates, onde é hoje o Asylo de in-

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fancia desvalida; casa onde tu nasceste, mas de que talvez não conserves muita ideia. 1

X I V

Paço do Lumiar.

Ahi, em consequência de um trambulhão. que a minha ama me tinha deixado dar por uma comprida escada de pedra de alto a baixo, em S. Roque, sendo eu ainda de mama, ahi, repito, na rua dos Calafates, tendo poucos annos ainda, e antes da brincadeira do saram-po, deitei uma noite uma postema de sangue pela bocca, e estive codilhado; o que fez com que, logo no dia seguinte, me levassem para o Paço do Lumiar, onde me restaurei.

A casa onde estivemos era a do então lin-díssimo jardim, e quinta, do boticário da Rai-nha, casa sita no largosinho, defronte do po-ço ; jardim e quinta que semearam no meu es-pirito (d'isto estou intimamente convencido) os

1 Era Reitor d'este Real Estabelecimento o Padre Cláudio José Gonçalves, tio avô da màe de Castilho. Desejou a sobrinha para junto de si, a fim de lhe ale-grar a vivenda; annuiu a tão amavel desejo o Doutor José de Castilho, confiando sua mulher ao virtuoso Ecclesiastico, todas as vezes que o serviço o chamava ou á Universidade de Coimbra, ou a qualquer outra parte do Reino nos trabalhos medico-militares de que se achava incumbido Por isso vemos que por 1801 ou 1802 a residencia da familia (provisoria em Lisl>o.i) passou para a rua dos Calafates.

OA EDI TOSES

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primeiros germes do gosto campestre e da poe-sia descriptiva.1

*

Conservo d'esse tempo, e muitas vezes are-j o e refresco, nas recâmaras mais recônditas da minha alma, quadros ameníssimos, e que o tempo cobriu de um verniz de saudade deli-cioso.

Estou vendo no aristocrático páteo, a um lado o grande tanque esverdeado e doirado, onde eu e a prima Maria Amalia trazíamos uma frota carregada de bonecas. Estou ven-do as duas escadas de pedra, subindo uma pa-ra a capella, outra para as salas. Ao fundo d'esta escada o portão de ferro do jardim. 2

N'elle os alegretes de porcelana e mármore, os vasos da China, os azulejos historiados. Napri-

1 O poço, que dava nome ao largo, desappareceu. A quinta dos Azulejos pertence agora (1909) ao

snr. Henrique Scholtz, negociante americano, que, ahi habita com sua familia. G randes mudanças se teem operado no prédio e no jardim durante a posse dos swccessivos proprietários.

Os EUITOBES. 2 Desde o dominio de certo dono, que não vale a

pena nomear, mudou muito no exterior e no interior o edifício. Este páteo tem com eãeito a uma banda um grande tanque; mas não era com as suas altas pare-des actuaes que os meninos ali poderiam manter uma frota, nem uma falua sequer, porque não chegavam a tanto as suas estaturas. Duas escadas conduzem ain-da hoje do dito páteo para o interior da habitação: a das salas, e a de serviço, que outr'ora conduzia á ca-pella desapparecida. Em frente da escada principal ainda hoje se abre, como no tempo de Castilho, opor-t3o de ferro do jardim. Que houve nas salas azulejos velhos, é certo; ainda restam, mas pouquíssimos.

OB EDITORES

Obras completas de Castilho 29

meira rua as duas cascatas, correspondendo-se de extremidade para extremidade; a da es-querda com o seu Bacho a cavallo n'uma pi-pa ; a da direita com uma sereia; 4 outras duas, de um brustesco magnifico, nos dois to-pos da rua de arcaria, chamada «do Príncipe D. José», que ali costumava espairecer-se;2

1 Essas estatuas, provavelmente de loiça, desappa-receram; o proprio brutesco das cascatas é moderno.

O s EDITORES 2 Consta que a Familia Real algumas vezes escolheu

este jardim no século xvm para ahi passear e meren-dar. Pode ser que o esperançoso e mallograda Príncipe D. José preferisse entre todas a alludida rua. Um azu-lejo, que ainda conhecemos e copiámos, entre as duas sacadas centraes da frontaria principal do palacete, sobre o largo do Poço, memorava as visitas Reaes, e dizia assim:

S. MAG.DES FIDELÍSSIMAS FELIZMENTE REINANTES

O S . D. IOZE E A R ; N. S . FIZERÃO A ESTA CASA A SUBLIME M.CE DE

SE SERVIREM D'ELLA EM 3 DE NOVEMBRO DE 1753 E LHE REPETIRÃO A MESMA

HONRA COM TODA A FAMÍLIA REAL V. R. T.

O AGRADECIMENTO DO SEU OLLRIGADIS-SIMO F. HUMILISSIMO CREADO ANTO-

NIO COLASSO TORRES P" SE ESTABELE-CER NA DURAÇÃO 1)0 MÁRMORE

FEZ AQUI GRAVAR ESTA ME-MORIA EM 1760.

O alludido proprietário vândalo entendeu que este singelo padrão o incomir.odava, e mandou-o arrancar, revestindo toda a frente com miserável azulejo de es tampilha.

O B EDITOBÍB

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na meia-laranja, da direita entre estas duas ruas , ' a opulenta cascata, com o colosso do Tejo reclinado com a sua urna sobre penedias bravas, e sob um florido pórtico de conchas; está entre dois cisnes; as aguas repuxam de todas as partes. Defronte, um tanque redondo repuxa também uma arcaria liquida e prismá-tica até á abóbada de verdura, que alastra sombras movediças por cima dos assentos, e em cujo vértice pompeia, de trombeta em pu-nho, uma estátua da Fama.

Quasi ao fundo do jardim uma sala vege-tal, com assentos e meza de mármore, guarda tantas sombras e frescura, contém tanto silen-cio e mysterio no meio de tão profusos ruídos de aguas e folhagem, que um poeta ali se far-taria de inspiração, e dois noivos de ventura. Eu e as outras crianças espreitávamos aquillo de longe, porque uma criada velha, que não podia mentir, nos tinha dito que morava lá uma Princeza moira.

Lembra-me o carrinho azul de quatro rodas, que enfeitávamos de gira-soes, e em que cele-brávamos os nossos triumphos puchados por um carneiro.

A o sahir do jardim, a horta, o pomar com a sua nora. as searas com a sna eira. Estou

1 Essa meia laranja, ou hemicyclo de colutnuas de alvenaria de azulejo, unidas por uma cornija adorna-da de medalhões, existe, assim como o tanque redondo com o seu repnxo. O colosso do Tejo desapparecen. a estatua dn Fama, e tndo tnnis, a começar pelos bnios e outras arvores antipas, que no sen desenho atina-vsm com 09 azulejos. Tudo isso é hoje jardim inglês.

Os EDIWBKB

Obras completas de Castillo 31

vendo as médas, os nossos mergulhos pela palha, os gafanhotos, os pyrilampos. . . l

*

Uma tarde (isto não é para tu escreveres, é para conversar c o m t i g o ) . . . foram todos ao convento de Odivellas; fiquei eu só, com a criada velha; estamos á janella da casa de jantar ; avistamos, lá por um oiteiro, o nosso rancho em burrinhos de albardas verdes e en-carnadas ; vão subindo; um sol magnifico envolve tudo aquillo ; ; que invejas para mim! N'um recanto da casa arrulham as pombas n'um viveiro de arame, alto como uma torre; eu c h ó r o . . .

Se eu te disser que não ha uma florinha d'aquelle tempo, nascida entre duas pedras, ou baloiçando-se do alto de um muro velho, cujo espectro me não venha muitas vezes ins-pirar, não te minto.

#

Podes, sc te parecer bem, deduzir d'aqui uma digressão sobre a parte pittoresca da mi-nha poesia. Para isso acharás, cuido eu, coisa que te sirva, na Epistola ao Sendim, nas Ex-cavaçdes, e suspeito que também um pouco no prologo das Cartas d'Ecco, e na Primavera.

' Certamente essa, parte rústica, essas searas, etc pertenciam então á propriedade; iá n5o pertencem O jardim, que é tudo quanto resta, dá hoje sobre vasto» terrenos alheios.

Os EDITOR» F

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#

N'estes apontamentos, começados por ou-trem,1 mas emfim continuados por mim, ape-sar da minha infinita repugnancia para tal tra-balho, j á d'aqui te declaro, por descargo de consciência, que has-de notar muita lacuna, e muita inversão e confusão de tempos.

Mas, ainda que, por muito mais moço, tu ignoras a maior parte d'estas coisas, estou cer-to de que, pelas que sabes, pelas que adivi-nharás, pela tua sagacidade, e pelo teu espi-rito methodico, farás sahir do meu cahos o teu universosinho. Para talvez t'o facilitar irei capitulando.

X V

Ascendentes.

Se te parecer, tens na Nota do Camões, intitulada Castilhos, com que estabelecer lo-go no principio uma especie de nobiliarchia Iiteraria, a única para mim de algum valor, dado seja tão van como todas as outras pe-rante a philosophia.2

1 Esse outrem foi Antonio de Cabedo, amigo intimo e frequentador diário da casa de Castilho desde 1853. E' d'elle a lettra da 1.' parte d'estes apontamentos.

Os EDITORES

- D'esses assumptos pouco sabia o Poeta. As pesqui-zas mais authenticas no assumpto foram emprehendi-das sobre documentos pelo Snr. Visconde de Sanches de Baêna, o algum dia verSo a luz. E' uma estirpe mo-destíssima e obscura, mas antiga e. honrada, em quem o amor das Letras se transmiHii] em suecessivas ge-rações. Tudo isso ha-de sahir lá para o futuro, devi damcnte authenticado. Os EDITOU vs

Obras completas de Castilho 113

X V I

Moradas.

N'outra Nota do Camões, intitulada, cuido eu, Logares memoráveis, tens uma curiosa noticia das casas onde assisti, e a que já se prendiam recordações literarias.

X V I I

Constituição de 20.

Fiz muita versalhada em Lisboa por esse tempo : parte nos theatros, nos dias de berraria enthusiastica; parte em impressos, que julgo haverem perecido, de todo, como se fôram manuscritos. Mas verdade verdade : nadad'isso prestava para muito; tinha o merecimento da occasião: applaudia-se, porque era um ecco emphático do que ia por todas as almas.

Quando chegou aqui a noticia de haver D. João V I declarado officialmente, no Rio de Janeiro, que aceitaria a Constituição que fizes-sem as Cortes de Portugal, esse officio, trazido por uma nau russa foi recebido pelo Minis-

1 Pare<v-nos engano. Foi na fragata porlugueza «Maria da Gloria» que chegou a Lisboa a noticia, ao começar dá noite dc 27 do Abril do l'í-1.

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l('i Empreea da Historia de Portugal

terio n'uma noite, em que em S. Carlos se es-tava dando pela primeira vez a Cenerentola. A companhia era excellente; o theatro estava chumbando.

Um Ministro (creio que o da Marinha, mas j á me não lembra como se chamava) levanta/ se no camarote do Governo, bate as palmas pedindo attenção, a orchestra pára, emmude-cem no palco os actores, tudo está em suspen-são. Elle lê o officio, rebentam os vivas como um vulcão, como um temporal, como um fim do mundo. Todos gritam e choram de alvoroço, porque a incerteza de como o Rei tomaria a revolução, e o receio dos sérios perigos que poderiam sobrevir no caso de elle a desappro-var, traziam os ânimos gravemente preoccupa-dos. Era portanto uma alleluia aquella para a Liberdade, uma Paschoa da ressurreição, uma porta de oiro aberta a súbitas para um futuro indefinido, que a phantasia de cada um dese-nhava e coloria a seu talante. As senhoras, em pé nos camarotes, voseavam e applaudiam como os homens, agitando os seus lenços bran-cos. Na plateia abraçavam-se conhecidos e des-conhecidos. Os actores queriam recomeçar com a opera; mas ^onde havia ahi n'essa hora ou-vintes para uma opera? Era o hymno, o en-thusiastico hymno de 20, o que só se podia entender e ouvir. Improvisaram-se, improvisei, quadras para o hymno de 20, que os actores, as actrizes, a plateia, e os camarotes, cantaram á porfia com uma desordem encantadora.

E n t ã o . . . (nào ousaria escrevel-o aqui, se não houvesse ainda muita testemunha de tudo .-iquillo) arrebatado no turbilhão commnm, e mais acezo que os outros, pois ardia em dois

Obras completas de Castillo 35

fogos, o dos' meus vinte annos e o da minha poesia, subo-me a cima de um banco, bato as palmas, e peço mote. (Ainda então se usavam motes, anti-poetica parvoíce, j á hoje acabada felizmente). Vem, não sei d'onde, um verso heroico. Sem me descer, e sem hesitar um momento, lanço corridamente um soneto, que é acolhido com assombro de todos, e meu pro-prio. Animado, engrandecido, com o descobri-mento, que eu acabava de fazer, de outro eu dentro em mim, peço mote novo, recebo-o, desempenho-o como o primeiro, e assim uma série de outros, que ali nasceram e morreram, que não valiam talvez muito, mas que deixa-ram nas memorias dos assistentes as mais li-sonjeiras impressões.

O que é certo, é que eu fui n'aquella noite notável reconduzido a casa, na rua dos Cala-fates, em braços, e literalmente no ar, por um bando de gente desconhecida.

Improvisar, o que se chama improvisar, foi a primeira e ultima vez que o fiz na mi-nha vida, e a única por ventura que tal se presencearia desde os dias gloriosos do grande Bocage.

Manuel Borges Carneiro, o Deputado para todo o tempo memorando pela sua hombrida-de e eloquente denodo, ficou desde aquella noite muito meu amigo, e nunca me chamava senão «O nóxo poeta de Xan Carlos.»

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X V I I I

Adriano Balbi.

Tive muitas relações com elle quando aqui esteve em Lisboa, d'onde foi para Paris im-primir a sua Estatística de Portugal. Sei que n'essa obra faz menção de mim; não me lem-bra bem como, mas tenho uma ideia vaga de que não foi com grande exacção.

X V I

Escultura.

Nas Excavações, em prologo, nota, ou o que quer que seja da Epistola ao Assis, vem alle-gado, e provado com um documento de Ma-chado de Castro, que eu tinha nascido para a escultura.

Foi o caso, que, tendo eu talvez oito ou no-ve annos de edade, ou talvez dez ou antes onze (eu em datas sou uma miséria), a Maria Romana e o Adriano iam todas as tardes das quartas e sabbados dar lição de desenho de fi-gura em casa de Joaquim Machado, amigo da nossa familia, e que morava por cima da »ua aula publica de escultura no antigo palacio do Thesoiro velho, destruido depois por um in-cêndio, e substituído hoje pelo magnifico e pit-toreseo Hotel âe Bragança. Eu ia com elles ; mas como não podia desenhar, ia para baixo, para a aula de escultura, conversar com • Ajudante do Lente, Faustino José Rodrigues,

Obras completas de Castilho 113

escultor de mérito, pae e mestre de Francisco de Assis Rodrigues, actual Director da Acade-mia das Bellas Artes de Lisboa.

Faustino mostrava-me muito affecto, dava-me, para me entreter, pastas de cera verme-lha temperada com therebentina e azeite, ma-téria em que elle estava commummente mode-lando.

#

Um dia, com uma porção d'aquella cera, tão branda e fácil de tratar, emprehendi o arremedo de um geniosinho de gesso que ali estava ao-pé de mim, e que eu tinha licença para tactear muito á minha vontade.

Ia ainda em meio a contrafacção, quando, attendendo casualmente no brinquedo em que me via tão embebido, Rodrigues m'o pede, e parte com elle a mostral-o a Joaquim Machado, o qual, depois de ter descido a mostrar (com grande vergonha minha) aquelle moníco a to-dos os seus discípulos, e tão moníco, que nem eu proprio o dava ainda por acabado, voltou para o seu gabinete, escreveu, e assignou aquelle papel, que n'esse livro se lê a pagina 278. 4

A bella cera malleavel não me faltou d'ahi em diante; e eu, servindo-me os dedos de paus de modelar, esculpi com paixão, e com uma especie de fidelidade, quantos objectos tangíveis se me deparavam: bustos, animaes,

1 Essa pagina é na 1." edição das Excavações; na nossa actual edição encontra-se o documento de Ma-chado de Castro a pag. 10 do tomo III das ditas Ex-cavações.

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instrumentos, móveis, vazos, tudo; e tudo Joaquim Machado queria ver.

A mais notável, talvez a única notável, d'essas peças, foi uma estatueta nua, de um palmo de altura pouco mais ou menos, e mo-delada do meu proprio corpo, estudado osso por osso, e musculo por musculo, com o maior escrupulo que eu soube e pude. A esta figura, que hoje me pesa não ter conservado (^mas . . . que apreço poderia eu então dar a coisas taes'?) divertiu-se em dar alguns toques de sua mão, i quem ? adivinhem-n-o: o autor da Es-tatua equestre de D. José.

#

Lembro-me de lhe ter ouvido contar, creio que a proposito das ceras, e conversando com meu Pae, que o famoso escultor italiano Ale-xandre Giusti, de quem se admiram obras ma-gnificas de mármore no convento de Mafra, e o qual, se me não engano, fôra mestre do mesmo Machado, achando-se já muito velho, e tendo perdido totalmente a vista, mas não o seu amor á Arte, passava horas inteiras a pal-par os baixos-relevos de maior mérito, fazen-do o juizo de cada um dos seus primores; e do mesmo modo descobria e apontava aos seus aluamos as imperfeições com que topava em suas obras.

— Mas Giusti—acrescentava Machado de Castro — tinha aprendido, e tinha encanecido na prática; o que palpava, tinha-o visto per-feitamente, e perfeitamente o tornava a ver, apalpando-o.

Obras completas de Castilho 113

•fc

Basta de esculturas. Não sei se n'uma nota do Camdes não ha também alguma coisa que para aqui venha, a proposito do Assis ; é talvez na que tem por titulo Honras posthumas. Lá verás, se te parecer.

X X

Morgado de Assentiz.

Fui muitissimo amigo d'este interessante velho, que também tu conheceste, mas em ruinas. Eu alcancei-o ainda inteiro, bem que arrancado e remoto da sua viçosíssima moci-dade.

Era em 18*2 ou 33, tempo de D . Miguel. Elle morava n'aquella casinha abarracada, que pega com o chafariz da Alegria, ao fun-do das escadarias de pedra. A amenidade do seu trato, a sua conversação, erudita, noti-ciosa, amena, ligeira, e inexhaurivel, attra-hiam á sua vivenda muita gente letrada. Pas-savam-se ali tardes e seroes, que não podem esquecer nunca.

Tinha um quintal grande; no topo d'elle umas sallinhas independentes, sancta sancto-rum da amisade e das Musas, a que elle cha-mava «a sua Thebáida». A musica, a poesia, a leitura, a crítica, mas crítica benévola, e um pouco de politica liberal (j grande e indis-pensável consolação n'aquelles tempos!) eis ahi com que se enchiam as horas fugazes, fugacissimas, da Thebáida.

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Foi d'ahi que eu travei as minhas primei-ras relações com Alexandre Herculano, com o Padre José Theotonio Canuto de Forjó, tra-ductor de Tácito, com D . Gastão, e não sei com quem mais.

Quem me deu conhecimento do Morgado, foi o Francisco Evaristo Leoni, que eu co-nhecia quasi desde pequeno, que ainda en-tão não era mais que um poeta agradavel, mas que, pelos seus últimos trabalhos, con-seguiu dar á Literatura patria um dos livros mais substanciaes, e mais bem feitos, de que podemos blazonar perante estrangeiros: é a sua monumental obra, que se está imprimin-do, com o titulo de Génio da Lingua por-tugueza.

O lnnocencio Francisco da Silva, do Go-verno civil, que anda compillando preciosas noticias para a nossa Historia literaria, era também das sociedades do Assentiz.

A respeito d'este Assentiz. creio te pode-rá dar alguma coisa a epistola que lhe eu es-crevi da Castanheira, e que está nas Exca-vações.

*

Nota bem que o Assentiz foi o arco da ponte que prende a nossa poesia actual com a do princípio do século; duas poesias, que, parecendo irmans pela Lingua em que se expressam, são tão dissociadas uma da ou-tra pela revolução literaria, como pelo estrei-to de Gibraltar o são Europa e Africa. O Mor-gado (até por esta designação se reconhecia ser elle um supérstite da era extincta) o Mor-gado falava-nos de Bocage e dos Bersanes,

Obras completas de Castilho 41

como se ainda na vespera tivesse estado a conversar com elles. Ouvindo-o, julgavamos realmente conhecel-os, pois não é verdade? «O Bocage» , nunca elle dizia; dizia «O Ma-nuel». Havia n'aquelle falar um cheiro do pas-sado, que era delicia.

Se não me engano, ha uma Noticia curiosa da vida d'elle, escrita creio que pelo lnno-cencio.

Sim senhor; ha; e tanto ha, que ella ahi vai n'esses dois números do Archivo Pittoresco, que será bom voltarem para se me não trun-car a collecção.

X X I

Oiteiros.

Os oiteiros pertenciam á Literatura tr; nsac-ta, não só pela sua indole de farelório, mas até porque eram planta própria d'aquelle re-manço, de que a Politica deu cabo. Todavia, ainda alcançámos uns ténues restos d'isso nas funcções de abbadessado de Santa Clara e de Cellas, e nas festas politicas da sala dos capei-los. O que eu por ahi fiz, se merece alguma m e n ç ã o . . . tens com que a faças nas Exca-vações. A prosa que ali vem junta aos versos politicos, Appariçtio de Fénelon, etc.., dá-te um dos lances que se não devem omittir na mi-nha biographia. Mas antes d'esse oiteiro tu-multuoso, seguido d'aquelle incidente trágico dos tiros no Conservador, já eu tinha na mes-ma sala dos capellos festejado a Liberdade, em alguns dos seus dias solemnes.

VOL. LX1V 4

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42 Empresa da Historia de Portugat

X X I I

Festas da Primavera.

Para aqui é que te peço trabalhinho de amor. No livro da Primavera tens os ingredientes, e de sobra.

A proposito d'esta poesia campestre, recor-da-te do que já a cima apontei falando do Pa-ço do Lumiar; e acrescenta que para esse gosto idyllico varias outras causas conspira-vam : ,..1." — a leitura de Gessner, que n'esse tem-

pò era para nós contínua; 2.* — os passeios por aquelles tão arcádicos

arrabaldes, pelos sinceiraes do Mondego, pelas quintas das suas margens ;

3,.a — as férias, que ás vezes íamos passar na Bairrada, na quinta da Murteira, em Aguim, em M o g o f o r e s . . . jOh! [tempos, tempos ! . . . Estou ainda aspirando o cheiro balsâmico dos pinhaes, e das vinhas em flor, na Murteira, quando, ao fim da tarde, atraz do rebanho de duzentas cabeças tropeando dentro n'uma nu-vem de poeira, vinha a pastora cantando, e tudo aquillo, depois de mungido o leite, e com a lua por cima da eira, se recolhia: o gado para o aprisco, d'onde as crias balavam pelas mães, e a rapariga para a cosinha, theatro da nossa opera, onde a fogueira dispensava lus-tres, e onde as nossas primas donnas de sáia de burel nos encantavam com as suas vozes frescas e afinadas. ;Oh! [tempos, tempos! ^Pois não é assim, José das Moças? T u entendes da

Obras oompletas de Castilho 43

poda, ladrão. ^Que diabo de poesia podia eu então fazer, eu com o sangue na guelra, se-não aquella de primaveras e amores?

X X I I I

Âimé Martin.

Isto não é noticia; mas é uma lembrança, que poderá servir:

Se tu leres a biographia de Bernardin de Saint-Pierre escrita por Ãimé Martin, e que vem n'uma edição das obras d'aquelle, lerás uma,das coisas mais mimosas, mais literarias e poéticas, de quantas se teem escrito. JS' um escrito digno do seu objecto. Parece-fqe' que essa Leitura te afinaria maravilhosamente/para escrever esta biographia.,'

Ha áli uma simpleza 5e estylo, com quie me , parece conveniente prevenires-te, inoculares-te, para resistires ao contagio do estylo brazilei-ro, que é todo paparrotão, -empolado, preten-cioso, abominavel; estylo que está para a ver-dadeira elaquencia, como um orangotango pa-ra ò homem, ou um papagaio berrador em dia

. de vento para um ledor ameno como Andrieux,

. ou comò ' tu mesmo. \ Olha que eu não te escrevo isto aqui, conSo quem dissesse- que j á andas eivado da praga; faço-o por me lembrar que podes, sem o cui-dares (nem eu, teu espreitador, o ter perçebi-

v do ) pod^s muito bem ter j á algum saibo í he-resia nes 'escr i tosde âpparato.

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112 Empresa, da Historia de Portugal

X X I V

Estudos na Universidade.

Cursei, além da Jurisprudência, Historia natural com o Barjona, Physica, e Chimica. D e Historia natural não fiz acto, porque houve perdão de actos n'esse anno; mas fui dos que se deram por prontos para seguir avante. A Physica e a Chimica, não as levei ao fim, porque para ali fazia a vista muita falta; con-tentei-me com as tinturas geraes.

X X V

Casas de habitação.

Merece-te uma descripção particular a nos-sa vivenda junto ao moirisco Arco d'Alme-dina.

*

Esta casa, pegada com a da Camara, edi-ficação também moirisca (a da Camara), ficava com o seu páteo e com os seus quintaes, enta-lada entre ella, pela parte de baixo, e a anti-ga casa de Templários em Subripas, que a dominava a cavalleiro.

Na casa de Subripas se passára a famosa tragedia de D. Maria Telles. 4 O aspecto do

1 As pesquizas de modernos antiquarios dào como inteiramente infundada a tradição de ter sido ahi a tragedia de Maria Telles; mas no tempo de Castilho era moeda corrente.

Os EDITOBES

Obras completas de Castilho 113

edifício, bem te lembrarás que era acastellado, portas e janellas arqueadas, cheio de escultu-ras e ornatos gothicos. Ali morava o nosso amavel Horácio, Padre José Fernandes de Oli-veira Leitão de Gouvêa, de quem se faz men-ção na Festa da primavera, e que era (bem te lembras também) o meu maior amigalhão.

A varanda de tijolé, onde elle scismava odes, passeando ao luar, deitava para cima do nosso jardim. Era este de aspecto claus-tral, cercado de paredes de azulejo, e assentos que eram j á mais de musgo que de ti jolo; entre os assentos, alegretes; era arborisado de grandes laranjeiras sahidas das quebras do pavimento ladrilhado. A parte anterior e des-coberta d'este jardim era uma espaçosa va-randa, deitando para quintaes inferiores. Ti -nha ná esquina da esquerda um Samsão de pedra escachando o leão; a correspondente es-tátua do angulo direito já havia desapparecido. No meio um tanque redondo, outr'ora repucho, mas já no nosso tempo alegrete de valverdes e papagaios.

Por ali passeava eu muitissimo, até alta noite, ouvindo os rouxinoes do encanamento do Mondego, poetisando por dentro, e ás vezes também versejando para fora. Ali nasceram todos os versos do Amor e melancolia; ali a 2.a parte das Cartas d'Ecco, e não sei quan-tas outras coisas.

Ao meu quarto, independente e desligado do restante edifício, entrava-se pelo jardim; subia-se-lhe por uma escada de pedra. No pa-tamar d'ella, e fronteiro á porta, tinha aquel-le terraço alto copado de parreiras; j ai que tempos! jque tempos! Ao lado d'este quarto ;

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> 46 Utóprèsa <fa Historia de Portugal

aquella varandinha alta, sombreada de mara-cujás; a janella do topo do quarto senhorean-do o magnifico panorama da cidade baixa, Mondego, e margem d'além. ;Que noites de verão as que d'ali se desfrutavam! ; os gritos da rapaziada a nadar pelo Mondego! ;os rou-xinoes, que em nenhuma parte do mundo os haverá em tamanho numero ! j as toadas lon-gínquas de flautas! ; alguma cantiga de mu-lher, que surdia sem se saber d'onde, como do fundo de uma espessura se ouve um pas-saro ! . . .

O' ubi campi, Spercheosque, et virginibw baechata laccenis Taygete! ...

Virgilio, que fazia estes versos, e outros muitos de egual oiro, tinha por força nas suas reminiscências alguma coisa parecida com este complexo de seducçoes tão variadas, e todas hoje extintas.

#

A casa, habitada depois por uma série de outros moradores, ficou até hoje conservando o nome de casa dos Castilhos; mas o tempo, e nos últimos annos o desamparo, teem-n-a quasi reduzido a um montão de ruinas.

Quando fui em 1854 a Coimbra dar o meu Curso normal, quiz ir visitar aquella minha Terra-santa. Não pude mais que saudal-a do meio do páteo, descalço e afogado em hervan-çal ; uma rampa de entulho subia até ás saca-das 1.° andar. Era triste para todos, mas para Sem era horrivel. \ Em que tinham dado

Obras completas de Castilho 47

tantas festas! ; tanta convivência de familia e amigos ! j tanta musica ! j tanta noite bem ve-lada ! i tanta p o e s i a ! . . .

Outra casa poética é a quinta de Santa Mar-garida, a Santa Justa, fora de portas, j Que ridente moradinha de quatro faces! j E aquelle torreão de Prinéipe, olhando para a estrada-, lá no fim d'aquella rua larga e areada! ; E aquellas hortas de verão, aquelles maravilho-sos improvisos vegetaes ! j ruas e ruas, um la-byrintho, uma cidade, de feijoeiros, de abobo-reiras, que em poucos dias se levantavam, sombreando um terreno inteiramente nu, e em cujas ruas almiscaradas se girava ao meio-dia sem apanhar um raio de sol, e de noite se es-tava sentindo no frémito e crepitar das ramas o seu crescer ajudado do lentor da noite!

Humor ille, quem serenis astra rorant noctibus.

;E os romeiros e romeiras, que n'aquella mes-ma quinta pernoitavam em arraial, vindo das aldeias de longe em busca do Senhor da Serra, e da feira de S. Bartholomeu! jduas festas, ambas no tempo estivo! ^Lembras-te como todos aquelles ranchos de melodiosas canta-

" deiras se distinguiam uns dos outros pelos seus vestuários pittorescos?

Não sei que uso poderás fazer de tudo isto, nem jaskêsmo se te servirá; mas eu gostei de o

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48 Empresa 'da Historia de Portugal

pôr para ahi, porque refresquei muita saudade aprasivel.

(íLembras-te também (de certo te lembras) d'aquellas pescarias de madrugada feitas no Mondego?

#

Quando eu compuz o Amor e melancolia, costumava ir passear nas manhans dos domin-gos, depois do meio-dia, por aquelle immenso, tão sonoro e solitário, dormitorio de Santa-Cruz, que lá no topo desembocava n'aquelle espaçoso terreiro, onde os Padres tinham os seus vistosissimos viveiros de aves. O silencio que eu ali desfrutava, indo e vindo sosinho, não ouvindo senão o som dos meus passos por cima do lagedo polido, dava-me azas á imagi-nação, e me permittia transportar-me em espi-rito aos claustros de Vairão. Suppunha-me estar lá realmente. Muitas vezes me surpre-hendia, falando em voz baixa com a mulher que eu amava, de quem era amado, e com quem me correspondia sem ainda a conhecer.

D'aqui podes fazer alguma coisa de um certo interesse, se te parecer; eu mais do que isto não te posso dizer, senão que ainda estou ou-vindo as coisas deliciosas que se me cantavam dentro n'alma, e que se ajudavam do zinir das cigarras lá por fora. O Anacreonte tinha ra-são: as cigarras são umas grandes musicas, umas grandes poetisasinhas, e umas alcovitei-rinhas também menos más.

Misture, e mande. *

Ha certas coisas, de natureza tão intima e

Obras coilipletas de Castilho 49

pessoal, que eu não sei em verdade como tu as has-de escrever, que não cáias na taxa de novelleiro, que borda e desfigura a historia. Occorre-me que n'esses passos melindrosos poderás dizer que sabes aquillo por m'o teres pescado n'uns desabafos; e alguma vez mesmo poderás dizer que tiras de umas cartas minhas, ou de uns apontamentos que eu fiz, um ou outro paragrapho.

X X V I

Bindocci.

Antonio Bindocci, de Siena, o primeiro im-provisador italiano do nosso tempo, autor de um jornal satyrico-politico todo em verso, pu-blicado em Turim sob o titulo de II taglia code, veio a Portugal,1 para visitar na cidade do Porto os logares onde Carlos Alberto pas-sára os últimos dia e jazia, a fim de se inspi-rar para um poema de que elle era o heroe.

Antes de fazer essa peregrinação, demorou-se aqui em Lisboa algum tempo, dando ses-sões pagas de improvisação; sessões duás ve-zes notáveis: já pela torrente de pensamentos que lhe borbotavam em bellos versos, já pela escacez do seu auditorio. Parecia, na verdade, incrivel, que uma Capital tão populosa, tão cheia de estrangeiros, com tanta fanfarrice de Academias e Sociedades, e com um tamanho enxame de literatos, não enchesse uma sala, em que se passava um phenómeno d'aquelles,

i Em 1853. Os EDITOBÊS.

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24 Empresa da Historia de Portttj«J

que muitas vezes em séculos se nSo repetem; um phenómeno literário, um phenómeno psy-chológico de primeira ordem.

A primeira parte onde Bindocci foi apresen-tado, e se fez admirar, foi a minha sala do pa-lacio Sarmento, á Estrella, por signal em uma noite de curso popular de leitura, e por con-sequência perante um grande numero de da-mas e cavalheiros, que ali affluiam oonstante-mente.

Algumas outras de sabbados, que eram as consagradas aos saráus, ahi veio também.

Foi uma pena que, assim como tantos outros fogos de artificio e bouquets do seu espirito vulcânico, se perdesse, por falta de tachigra-pho, o inspirado canto em que elle celebrou a formosura, verdadeiramente majestosa e to-cante, d'aquella instrucção de amor e luz libe-ralisada por mim a tantos centenares de rapa-zinhos descalços, e de operários rotos e enfar-ruscados.

*

Quando Bindocci partiu para o Porto, com cartas minhas de recommendação a muitos ami-gos e influentes d'aquella cidade, puz eu aqui n u m jornal um artigo, deplorando o como Lis-boa se portára para com elle, e mettendo em brios os Portuenses, para que lhe fizessem me-lhor as honras de Portugal. Aos de Lisboa applicava eu o verso de Virgilio:

;Heul fuge cruâeles terras, fuge littus avarum.

Aos tripeiros dizia, que não quizessem mere-

Obras completas de Castilho 51

cer a inscripção posta pelo Dante na entrada do inferno:

Lasciate ogni speranza, o voi che intrate.

Foi cantar a surdos. O Porto portou-se como Lisboa.

Queria-te mandar aquelle artigo, mas não o acho.

Ignoro o que Bindocci escreveria de nós de-pois de tornado á sua Italia. Nunca havia de ser coisa muito lisonjeira. Elle tinha um génio atrabiliario e turbulentíssimo, e conhecia bem o seu mérito.

Gentis irritabile vatum.

E de mais (aqui para nós): elle não ia só dorido da frieza dos nossos literatos; o Paço também o tinha escandalisado, pois lhe não concedeu (por mais que elle]a sollicitasse) a hon-ra, de o ouvir improvisar nas suas salas. Por isso também, quando falava da Rainha, ou do D. Fernando, era uma espada.

X X V I I

Antonio Galleano Ravara.

Este outro Italiano, também improvisador, foi perna fixa, e muito interessante, dos meus saráus no palacio Sarmento, e um dos maiores apreciadores, e aproveitador sem duvida, dos

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52 Empresa da Historia de Portugal

meus trabalhos escolares, como se provou no Curso que elle aqui deu de Lingua italiana, e em que, para o ensino do ler e pronunciar a sua Lingua, seguia literalmente os meus pro-cessos de decomposição da palavra em syllabas e em elementos, a leitura em commum e rythmica no quadro preto, etc.

Tu lá tens no Gabinete de Leitura o Album Italo-Portuguez, com um prologo meu, onde talvez haja que aproveitar.

Ravara partiu d'aqui a tentar fortuna em Hespanha, e de Hespanha se passou com o mesmo intuito ao Brazil, onde sabes que se estabeleceu bem no Collegio de Pedro II, e morreu. Para Hespanha dei-lhe eu cartas para D . Ramon de Campoamor, Martinez de la Rosa, e n lo sei quem mais.

Aqui vai (não sei para quê) uma que me elle escreveu de Madrid:

«Madrid, 17 Ott.bre1853 «Chiarissimo Signor Dottore ed amico. «Il mio partir da Lisbona all'inglese, il mio

lungo silenzio, spero che non le avrano messo in core che tutti gli Italiani sono ingrati. No, per Dio ! che io mi vergognere i di pagare con la sozza moneta dell'obblio la persona a cui debbo tutto il mio esito lettirario in Lisbona.

«Nè creda che questa sia menzogna o ser-vile adulazione, perchè prova che io penso alla Signoria Vostra; sì è che io non scara-bocchio un canto poetico, senza mettervi a capo un testo portoghese del D r . Feliciano di Castilho.

« L a penosa infermità che mi rodea le vis-

Obras compUta» de Castilho 58

cere e mi avvelezava il sangue solo furono cagione di quel mio fare arrabbiato, che ora, grazie a Dio, mi sono levato di dosso con una crisi di 30 giorni di letto, che mi ha in-teramente purificato.

«Il signor Campoamor, per cui la Signo-ria Vostra mi dava quella lettera dattata in casa mia, stà in Valenza nella qualità di Go-vernatore ; e, ben che lontano, mi ha giovato più di tutti.

«Il Canto dos Lavradores è stato tradotto in spagnuolo da un poeta gaditano, e vedrà la luce nella mia prima publicazione colle note che di ragione.

«Finora non ho potuto occuparmi del Me-todo di lettura per la cagione di cui sopra 1 ; appena appena ho potuto finire i primi due canti del Colombo, che leggerò quanto pri-ma all 'Ateneo, e in casa del Duca di Rivas.

«Vidi Martinez de la Rosa, che diede la sua approvazione come presidente per la lettura previa ch'egli fece del mio lavoro.

«Appena questo affare sia concluso, pro-curerò per il nuovo alloro che deve procurar-mi quest'importante rivelazione. Durerò fatica, perchè (fra noi) l'orgoglio spagnuolo è prover-biale.

«Il mio Album Italo-Espafìol porta in fron-te un suo testo tolto dalle Estreias: iQue diz este volume? máguas; e con di seguito.

«Io credo che a quest'ora si saranno già

1 Tencionava elle introduzil-o em Hespanha; para o que, levava d'aqui as necessarias mudanças do portu-guez para o castelhano, feitas por mim e por elle, com o auxilio do José Maria Grande.

CASTILHO

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54 Empresa 3a Hintoria de Portugal

cominciate le serate letterarie nel Palazzo Sar-mento, e fremo di non potermi trovare costì.

«Mi sarà molto caro se la Signoria Vostra mi onorerà di sua risposta, palesandomi lo stato di tutta la famiglia, e in particolare della ottima Signora di Castilho, e dandomi nuove della buona salute della Signoria Vostra.

«Vado a scrivere (un francesismo ; pazien-za !) al Signor Antonio J. Viale, a cui sono pure debitore di scuse non poche, le quali oso sperare verranno accettate, à ragione di ciò che sopra scrissi al riguardo.

«Mi parli di Bindocci, e mi dica quale ne fu il fine ; dico fine, perchè i giornali ne annun-ziavano la partenza da Lisbona.

«Mi ricordi alle buone signore che furono mie maestre di Lettura repentina, 1 al Signor Latino Coelho, 2 e al protettore fierissimo del gran Improvisatore, il nostro ottimo amico De Silva Tullio. 3

«Spero che la Signoria Vostra non vorrà prendersi la rivincita, e che non tarderà a ris-pondere, com'io tardai a scrivere. Conosco il gentil animo della Signoria Vostra per dubitar-ne. Ho stabilito intieramente il mio metodo d'insegnar l'Italiano, rubando un poco (convien confessarlo) alla lettura repentina.

1 As senhoras Mellos, então professoras no Asylo da rua dos Calafates.

O s E D I T O R E S .

2 José Maria Latino Coelho, Lente da Escola Poly-technica, e um dos literatos então mais em evidencia.

O s E D U O E E S .

3 Antonio da Silva Tullio, o exceliente Tullio, sem-pre bemvindo nas phalanges literarias.

O s E D I T O R E S .

Vbras completa» de Castilho 5õ

«Mi saluti il signor Maria Grande, 1 e lo assicuri del mio rispetto.

«Volesse il Cielo ch'io ritornassi a Lisbona per leggere o declamare quelche poesia spa-gnuola.

«Mi abbracci e mi creda Tutto suo

A . G A L L E A N O R A V A R A . »

X X V I I I

Saraus poéticos.

Não sei se j á ahi para traz deixei toca-do este assumpto. Na dúvida, aqui o sub-stancio.

Em todos os meus cursos de leitura, a sa-ber : nos dois de Lisboa (no palacio do Sar-mento e nos Paulistas), no de Leiria, no do Porto, e no de Coimbra, instituí saraus poéti-cos. Todos elles floresceram bemquistos das mulheres e dos rapazes, todos promettiam e po-diam dar muito, mas todos morreram a súbi-tas, apenas eu lhes levantei mão de cima. Po-des dissertar agradavel e proveitosamente n'este ponto.

*

Ora, snr. Conselheiro José Feliciano de Castilho, isto vai uma tal salamôrda, que o

1 O Conselheiro Doutor José Maria Grande e Cal-deira, Par de Reino, Lente da Escola Polytechnica

O s E D I T O B E B .

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56 Emprtta 3a Historia d* Portugal

diabo terá Y . E . no corpo, se com semelhan-tes elementos fizer coisa que se veja.

Fica-me ainda matéria para mais de outro tanto; salamordal-a-hei do mesmo modo, para a remetter pelo paquete seguinte.

Foi muito bom o arbitrio de transferir a biographia aã calcem totius operis. Assim, tens tempo de coordenar, redigir, corrigir, enrique-cer, enflorar, e emfim fazer obra que te dê muito mais nome a ti do que a mim. Nada de pressas; é só o que te recommendo; non enim cito scribendo jit ut bene scribatur. — De-pressa e bem, não ha ninguém. — Cito facta cito ãilabuntur. — E emfim o dito de Apelles: «Levo muito tempo a pintar, porque pinto para a eternidade», que eu a todos vos desejo; e com isto te lanço a minha benção. Vade in pace. Vae á tabúa.

S . ° M A S S O .

Snr. José. Pelo vapor precedente (hoje são 19 de Ju-

nho ' ) foi a primeira porção de materiaes e achêgas para a tua obra, ou monumento bio-graphico. Vou continuar, a ver se concluo. E ' este para mim um trabalho antipathico, pois quasi todo elle versa no vago, faz-se ás apal-padellas, e não ha fio nem luz que nos enca-minhe. Emfim, sáia o que sahir; tu lá estás,

1 De 1858. Os EDITOBES

Obras completas de GastUko 57

para sacares do meu cahos coisa que se veja, reveja, e admirei

X X I X

Boa memoria.

E' certo, e geralmente sabido, que o nosso homem tinha uma memoria natural peregri-na; uma prova d'isso está no attestado de José Peixoto do Valle, que ahi vai trasladado inte-gralmente :

«Ill.mo S.nr — Diz Antonio Feliciano de Cas-tilho, que precisa se lhe passe por certidão na Directoria Geral dos Estudos a Conta que a respeito do supplicante á mesma Directoria re-metteu, com a data de 15 de Setembro de 1815, José Peixoto do Valle, Professor de Latinida-de em o Estabelecimento do Bairro Alto em Lisboa;

P. a V . S. seja servido mandar que se lhe passe.

E . R. M.

«Antonio Barbosa de Almeida, Cavalleiro professo na Ordem de Christo, Secretario da Junta da Directoria Geral dos Estudos, e Es-colas, etc.

«Certifico que entre os papeis respectivos está a Conta de que o supplicante faz menção, e é do teor seguinte :

§ 1.° «Senhor— Antonio Feliciano de Casti-lho, filho do Doutor José Feliciano de Castilho, é quasi inteiramente cego, de sorte que não po-de ler coisa alguma. Eu lhe vou repetindo o

VOL. 1 XIV 5

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24 Empresa da Historia de Portttj«J

Latim de Horácio, de Virgilio, Livio , Cesar, etc., e elle tranduzindo muito bem, e em bellis-sima Linguagem. Dou-lhe, v . g . , para verter em Portuguez alguma das descripçÕes (le Ovi-dio, elle o faz em excellente e harmonioso ver-so. Dou-lhe alguma passagem de Cicero, ou alguma das eloquentissimas falas que Livio faz pôr na bocca de algum Pretor, Cônsul, Tribuno, ou Dictador Romano, e de qualquer d'estas passagens elle faz uma excellente ver-são. Dou-lhe do mesmo modo alguns períodos em Portuguez, tirados do mesmo Cicero, ou das Epistolas aã amicos et familiares, ou dos Diálogos De amicitia, De senectute, De para-doxis, De somnio Scpionis, etc., e elle os tra-duz em muito bom Latim.

§ 2.° «E' costume na minha aula. no sabba-do de manhan, fazer-se recopillação do que se fez na semana; em cujo trabalho eile tem a maior parte, mostrando uma boa analyse e re-gencia grammatical a tudo que se lhe pergun-ta. De tarde, no dito sabbado, se faz na aula, e minha presença, Thema tirado de Sallustio ou de Livio, que elle compõe muito bem, ou se lhe dê de Portuguez para Latim, ou de Latim para Portuguez. Também, á minha vista, tem fei-to bons versos latinos, sendo então necessá-rio dar-lhe as partes. Sabe perfeitamente todos os rudimentos. Sabe pratica e especulativamen-te a syntaxe e suas figuras, e tudo quanto per-tence á prosódia, todas as especies de versos e suas figuras, e as de metaplasmo.

§ 3.° «José Silvestre de Andrade, com mui-to menor tempo de estudo (pois principiou co-migo em Outubro de 1812) faz em tudo o mes-mo ou mais que o dito Antonio Feliciano; só

Obras completas de Castilho 59

com a differença de não ter tão desmarcada memoria como este tem, e que o tem feito ad-mirar dos que veem á minha Aula somente para ouvil-o.1

§ 4." «Estes são os dois Estudantes, que, pela sua applicação, talento, e bons costumes, se teem feito mais distinguir^ e ambos mere-cem egual elogio: Antonio Feliciano, porque, não vendo nem podendo estudar, conserva tan-to o qué se lhe diz e tem ouvido, que merece o applauso dos que o ouvem responder bem e promptamente ao que se lhe pergunta; e José Silvestre, porque tendo menos de tres annos de estudo, está bem capaz de servir a Vossa Alteza Real na regencia de uma cadeira.

§ 5.° « E se elles, Senhor fossem animados por algum premio ; que poderoso estímulo para os outros!

«Vossa Alteza Real, que tanto sabe apreciar o mérito e a virtude, mandará o que Fôr Ser-vido.

«Lisboa 25 de Setembro de 1815. «O Professor de Latinidade, José Peixoto

do Valle. «No § 5.° accrescente-se á palavra outros:

; e quantos se não exforçarão por imital-os! «E declaro que ao supplicante j á se passou

outra certidão somente dos dois primeiros para-graphos da mencionada conta.

« Coimbra, na Secretaria da Directoria Ge-ral dos Estudos, em 14 de Abril de 1826.

Antonio Barbosa de Almeida.»

1 Jose Silvestre de Andrade, bondoso homem, e poli-díssimo, falleceu Official Maior da Secretaria de Esta-do dos Negocios da Guerra.

Os EDITORES.

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24 Empresa da Historia de Portttj«J

Logo concluirei o que tinha para dizer so-bre a memoria. Agora aqui vai outro docu-mento, que inesperadamente achei junto ao precedente:

«Diz Antonio Feliciano de Castilho, que elle frequentou a Aula de Rhetorica este presente anno no Geral da Rua da Rosa; e porque pre-cisa mostrar, por attestação ou certidão jura-da do seu Professor, a sua frequencia, apro-veitamento, e procedimento,

P. a V . S. seja servido mandar que o referido Professor certifique tudo que aos ditos respeitos lhe constar.

E . R. M .

«Maximiano Pedro de Araujo Ribeiro, Pro-fessor Régio de Eloquência e de Historia Uni-versal em o Real Estabelecimento Litterario do Bairro-alto, etc.

«Certifico que em Outubro do anno passado matriculei ao supplicante Antonio Feliciano de Castilho, filho do Doutor José Feliciano de Castilho, natural d'esta Cidade de Lisboa, e de edade de dezasseis annos, o qual foi effe-ctivo todo o anno lectivo, e mostrou indole dócil, costumes pacíficos, talento methodico, e digno de ser contemplado em primeira classe pelos conhecimentos litterarios e philologicos a que se tem app/içado. E por ser verdade o referido, lhe passei a presente em virtude do despacho supra, a qual vai por mim feita e assignada.

«Lisboa aos 12 de Agosto de 1816. Maximiano Pedro de Araujo Ribeiro. t

Obras completas de Castilho 60

X X X

Memoria.

E' esta uma faculdade de que se não deve ter grande jactancia, porque geralmente me-moria e entendimento, ou se não casam, ou vivem mal avindos. As faculdades criadoras e a faculdade conservadora teem seu antagonis-mo, como a actividade do voluptuario pródigo, e a frialdade paralytica e triste do avarento.

Exemplos ha de memoriões em entendimen-tos fecundos; mas esses exemplos são raros; e talvez que, se podessem ser estudados mais a fundo, mais raros ainda se reconhecessem.

Seja como fôr, eu tive uma memoria, que devorava, digeria, assimilava, e convertia em substancia própria tudo quanto se lhe apre-sentava. Um soneto, que ouvisse recitar uma só vez, estava fisgado e seguro. A s lições de Latim, os trechos clássicos, mesmo de certa extensão, escutava-os, repetia-os, sem discre-pância de uma syllaba.

Foi assim que estudei, ou antes que apren-di sem estudar, as lições da Universidade. Lembro-me que um só livro zombava (mas zom-bava em cheio) d'esta minha potencia conquis-tadora: eram as Ordenações do Reino. Nunca, por mais que forcejasse, foi para o meu prato aprender-lhes um só paragrapho.

Digam agora os sábios sabichões que segredos são estes das Ordenações.

V ê tu mesmo se os explicas, tu, cuja me-

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moria é tão milagrosa, que abarca até a Juris-prudência, e os algarismos, e, com ser tama-nha, não te impede possuires um entendimen-to dos mais insignes.

X X X I

Quesilia á Jurisprudência.

Tive isto de commum com muitissimos poe-tas, e nomeadamente com o nosso proprio Ovi-dio : que a vida forense me repugnou sempre de um modo invencivel. Nem os desejos e o empenho paterno, nem os conselhos dos cinco annos gastos a seguir um Curso de Direito, po-deram acabar comigo que eu emprehendesse, por conta alheia ou própria, o minimo processo. '

Muita gente sabe, assim como tu, o uso que fiz dos documentos da minha formatura. Aquel-la folha de pergaminho nobiliario-scientifica, em Latim razo e tarjado, com seus sêllos uni-versitários pendentes de fita verde, e mettida n'um protector canudo de folha de Flandres, essa peça cujo valor era estimado n'aquelles tempos não sei se em cinco se em dez mil cru-zados, e que faz a ufania do Bacharel forma-

1 Castilho duas vezes vestiu a toga nos tribunaes: uma vez em Lisboa, n'um processo de liberdade de imprensa, a outra em Aldeia-gallega, n'um caso de fur-to. Refere-se ahi aos primeiros annos depois da for-matura.

Os EDITORES

Obras completas de Castilho 63

do, quando, trazendo-o á cinta, dá costas pela ultima vez á Minerva de pedra, e ao convento de Santa Clara, tudo isso a mim, depois de muito scismar para lhe descobrir algum prés-timo real, só me serviu. . . ( j O h ! profanação! exclamaria o claustro pleno; j O h ! profanação — l h e responderia o ecco do Seminário, lá do fundo do jardim botânico) sim, sim, só me ser-viu para guardar e moer o rapé. Guardei-o muitos annos no canudo, especie de obuz scien-tifico do calibre de duas libras (que tantas eram as que levava). O pergaminho da carta prestava-se de molde ao esterroamento do chei-roso pó ; e os sellos metallicos pareciam inven-tados para essa mesma operação; por isso a sábia mão académica lh'os tinha indissoluvel-mente vinculado.1

As perturbações de familia, os atropellamen-tos de direitos, as usurpações, as sophisticarías, que, em mãos de alcunhados jurisprudentes, fazem todos os dias o preto branco, e o bran-co preto, tudo isso se contém n'aquelles fataes canudos, foguetes de Congrève que todos os estios se diífundem aos centenares, do seio de Coimbra para toda a superfície do Reino e províncias ultramarinas. Mas da minha lata nunca sahiu, senão, sob a fórma de fragrante pó americano, o prazer da inspiração poética, e o da convivência desafiada e promovida pela pitada, da convivência que é só por si muitas vezes uma poesia.

1 Tudo isto é rigorosamente exacto ; om tempos co-nhecemos o obuz scientifico, que infelizmente j4 nâo existe Existe a carta, que bem mostra pela côr o uso a que a destinaram.

Os EDITORES,

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24 Empresa da Historia de Portttj«J

0 que sei, é que se eu tivesse feito provará», todos elles juntos não valeriam uma pitada de tabaco, a não ser do Contrato de Lisboa, que o vende podre.

Quando, depois de formado, nos tornámos para Coimbra, para a casa do Arco de Al-medina, quiz o Pae (e tinha rasão) que fos-semos praticar, começando por meros ouvintes no escritorio do Letrado Migueis, visinho nosso. Fomos, o Augusto e eu. j Que tempo! nunca me lembrarei d'elle sem horror: uma casa do tama-nho de meio alqueire, cercada de in-folios de Direito, sem a mínima mistura profana, mo-bilada de autos, que muitas vezes nos servi-am . . . de assento; consultantes plebeus, tra-tando em linguagem plebeia questões tão en-leadas como frívolas; a Musa, dentro em mim, a debater-se contra toda aquella prosa vi l ; ella succumbia de cançada; eu arrumava a cabeça aos expositores, e dentro em poucos minutos roncava como um Epimênides. 1 D'aquella offi-cina de diz, provará, e receberá mercê, o que

1 Foi Epimênides um dos sábios da Grécia, poeta e philósopho. Queria fazer crer ao vulgo aehar-se em communicaçào directa com os deuses. Contava que, tendo-o seu pae mandado para uma serra guardar os seus rebanhos, se entranhára n'uma gruta, adormecêra a somno solto, e só viera a acordar setenta e cinco annos andados. Sahiu estremunhado, voltou a casa, achou mortos todos os parentes e amigos, menos um irmão a quem ainda reconheceu.

Este caso lembra a linda historieta que narra o Pa-dre Manuel Bernandes, do fradinho que dormiu trezen-tos. annos.

O S EBITORBS.

Obras completas de Castilho 65

só tirei foi confírmar-me na minha aversão instintiva.

*

Quando depois fomos para a Castanheira, os serranos, que me ouviam chamar Doutor, lá entenderam, na sua benevola innocencia, que eu devia por força saber de leis, e come-çaram a procurar-me para me consultarem como tal.

Também, nunca me ha-de esquecer a pri-meira d'essas visitas: Era de uma mulher, que tinha dado a criar um porco de meias, e pretendia exigir do criador do porco não me lembro j á o quê. Eu creio firmemente que a Ordenação manuelina ha-de falar algures da criação dos porcos de meias; mas o que a tal respeito dispunha, eis ahi o que eu ignorava, e não tinha vontade nem possibilidade de saber. Por honra da Universidade, não lhe confessei a minha inópia; mas o apêrto em que me via me suggeriu um expediente, que surtiu o mais invejável resultado : antecipei a instituição dos juizes de paz ; préguei-lhe com toda a força da lógica, com toda a uncção do Evangellho, com todos os raciocinios da economia e da hygiene, e com um sem-numero de factos (os quaes, se não eram verdadeiros, bem o podiam ser), que não havia nada melhor que uma composição amigavel; que o socêgo, a paz entre visinhos, a caridade, valiam mais que os mais brilhantes triumphos judiciários; e que emfim, a alma e a salvação valiam mais que todos os porcos do mundo, mesmo de meias de seda e sapatos. Imagina, ; se o meu interesse de encobrir a pró-pria inópia me não tornaria persuasivo e até

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eloquente! A mulher chegou a chorar; de-sistiu; foi uma demanda de menos n'este mundo.

; Oh! ; se todos os advogados fossem pouco mais ou menos como eu!

O curioso foi perguntar-me ella á despedida quanto eu tinha merecido.

— O que eu te m e r e c i . . . — disse eu com os meus botões — não és tu capaz de m'o dar.

Sahiu, levantando ás nuvens o meu desin-teresse.

O que é verdade, ó que, durante os annos da minha residencia n'aquella serra, os escri-vães nunca tiveram que fazer por culpa mi-nha ; e mesmo pouco tiveram que fazer, porque por aquelles contornos havia raposas e lobos, mas advogados não.

X X X I I

Amor á Antiguidade.

Predilecção para com a Antiguidade roma-na, tive-a desde que me entendo, e posso dizer que enthusiastica.

Concorreu para isso o bom estudo que fiz do Latim, e o não ter conhecido senão autores pagãos, n'aquella edade em que cerebro e cora-ção parecem duas esponjas sêccas e em folha, que se impregnam do primeiro fluido em que as lançam. Esta mesma quéda para as coisas d'aquella nação poética e heróica, ainda hoje a sinto com toda a energia de um preconceito da infancia. Em todas as minhas obras ressum-bram vestígios claros d'esta verdade.

Obras completas de Castilho 67

Quando por aqui andou (não sei se dura ainda) certa moda reaccionaria contra a Lite-ratura greco-romana, exageradíssima, intole-rante, absurda, como todas as reacções, o que mais me fazia desadorar era o empenho de pro-clamarem para a Poesia, e para a Literatura em geral, a barbárie da edade-média, com de-cisivo predominio sobre a legitima e opulenta herança, que houvéramos dos Romanos, e que tão inteira e tão inalienavel conservávamos na linguaguem, nas instituições e na legislação, no culto mesmo, e até nos mínimos pormeno-res das superstições e crendeirices populares.

Ignoro o como aquelles adoradores dos G o -dos, e os que nos conservámos fieis ao Capito-lio, deveremos ser avaliados pela philosophia. Nem elles nem nós podemos ser juizes onde so-mos partes; o que sei, o que, pelo menos, julgo saber, é que, posta a questão sob a luz unica-mente da Arte, e avaliada pelo que se chama geralmente gosto, um Godo não vale um Roma-no ; nem todos os gelos e todas as florestas do norte teem que ver com uma chapada do sol de Nápoles, ou com um prateamento do Colli-seu pela suave lua da Cidade Eterna.

Fiquem-se com os seus Cossacos a comerem carne crua, só aquecida em cima do lombo do cavallo e debaixo do pezo do cavalleiro, que eu antes me quero a cear em espirito com Apício, com Lucullo, com Cicero na sala de Apollo, com Horácio em casa de Mecenas, sobretudo com Ovidio nas suas grandes patuscadas, ou mesmo com o hortelão e com a preta d'aquella tão fresca choupaninha, onde Virgilio (se por

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ventura foi elle) nos ensinou a receita do More-tum. (Recommendo-te que leias o poema do Moretum attribuido -por alguns a Virgilio, mas que em poucas edições se encontra; é delicioso).

E m summa: tanto é verdade que o bom-gôsto natural, fundo commum de todos os ho-mens, se quer antes com a polidez que illus-trou a Grécia, e da Grécia se transvasou para a Italia, do que não com as selvajarias de uma edade brutalmente guerreira e assoladora, beatorra e supersticiosa sem graça; que em todo o tempo este sol meridional attrahiu para as regiões suaves dos bellos ocios, das imaginações fecundas, e das mulheres divini-saveis, os bandos alarves e silvestrissimos do norte.

Não era, nào, a Arte nas suas mais ele-gantes manifestações architectónicas, pictó-ricas, esculturaes, etc., que os attrahia para cá ; não ; e a prova está em que todas essas coisas as devastavam elles apenas appareciam. Para apreciar as conservadas pelos séculos, é mistér ser-se também já civilisado, pois «quem não sabe da Arte não a estima» : e os invaso-res boçaes e instintivos do nosso bello meio dia, invasores, que ainda hoje o são como o foram nas edades antigas, não tinham nem o primeiro alvor d'esta civilisaçao.

O que os atrahia era, literalmente, o sol, o grande magico dos grandes portentos. Como o achavam, tomavam á viva força a terra em que elle batia tão em cheio; varriam-n-a de criações com que ainda se não entendiam; es-tiravam-se no solo quente para se desenrege-larem; e sobre elle, a pouco e pouco, por in-fluxo do mesmo astro que para ali os chamára,

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se iam purgando da sua rudeza ferina, e pon-do no logar das suas virtudes agrestes outras mais amenas; se o quizerem antes, no logar dos seus vicios ferozes, outros vicios mais en-nervadores talvez, porém de certo mais sym-pathicos.

A historia dos Hunos, Vandalos, Alanos, e Suevos, invadindo, devastando, e senhorean-do as amenas regiões da Hespéria, offerece em si um natural ponto de contacto com a historia d'esta Literatura, que em nossos dias veio, incendiaria e intolerante, arrazar e pros-crever a que herdáramos de nossos avós os Ro-manos.

Se lêste o livro de Méry intitulado Les nnits italiennes, notarias n'elle um artigo, que (se bem me lembra) é o ultimo da obra, sobre a ci-dade franceza de Aries. Se o não lêste, lê-o, que te não has-de arrepender. O que ali fize-ram ás grandes obras romanas os invasores Sarracenos, que ás vezes não foram menos barbaros que os Barbaros do norte, os Barba-ros por antonomasia, e o que, posteriormen-te aos Sarracenos, por lá continuaram de der-rota os Christãos, pacíficos possuidores d'aquelle santuario da Arte, é o que ao estudo e ao gosto da tão bem assente Literatura greco-romana, por entre nós lograram em grande parte infli-gir estes fanáticos da ideia gothica, a quem eu não posso deixar de querer mal, por sua into-lerância.

N'este cartório tem o snr. Châteaubriand não pequena culpa. Foi elle o Titão centímano, que, amontoando sobre Ossas de sophismas, e Pélions de eloquencia, Olympos de um Catho-licismo absorvente e esterilisador, mais pro-

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fundos estragos consumou na veneranda Anti-guidade. Châteaubriand foi o Brenno moderno da Roma literaria.

T o d a v i a . . . (eu estou conversando comtigo ; tu lá farás d'isto o uso que entenderes, ou ne-nhum) todavia, repito, lendo-se com attençâo O Génio do Christianismo, sobretudo Os Már-tires, e ainda mesmo as Recordações de Itália pelo grande escritor, sente-se que não podia ser de muito boa-fé que elle pugnava em fa-vor da Poesia severamente christan contra a Poe-sia d'aquellas Musas millannarias, que nunca de todo envelheceram, e que ainda hoje con-servam boa parte do seu culto primitivo.

E digo que não podia ser de boa-fé, porque todas as vezes que elle contrapõe as crenças do povo baptisado ás do povo pagão, e ás práti-cas soltas, engrinaldadas e perfumadas, das eras dos grandes poetas as melancólicas e som-brias usanças do mundo actual, que será me-nos devasso, mas que é muito menos deleitoso, o senso intimo do leitor é sempre de opinião contrária á d'elle.

Por mais que o seu talento vire e revire o oculo da imaginação, augmentativo quando encara a Egreja, diminutivo quando percorre de longe os templos olympicos, os sacellos rús-ticos, as theorias, os pervigilios, e todo aquelle mundo de voluptuosidade, é tão possante o sen-sualismo natural d'aquelle mundo, que, depois de sumido no occaso, nos está branquejando o horizonte; é de si tão immortal a dose de ver-dade, de que todas essas fabulas se aviven-tavam ; e é, por consequência, tão humana a sua indole, e a sua seducção tão incontrastavel; que, por parte do praser, do gosto, e da Arte,

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esses quadros contrapostos por Châteaubriand, para que triumphe a Verdade christan e cátho-lica, nada mais fazem, em ultima analyse, do que radicar-nos na vontade os suaves erros, de que (ao menos em poesia) nos é lícito ser-mos adoradores.

Agora (aqui para nós): que diabo tirou Châteaubriand d'aquellas dúplices exagerações ias bellezas do Christianismo, e das não-bel-lezas do Paganismo ? tirou o ser posto em Roma o seu livro no index expurgatorio; a tal Ro-ma sempre paga bem a quem a serve.

A exageração é sempre mentira, e a men-tira sempre damnosa.

Châteaubriand fez, quanto a mim, bom serviço á Literatura, dando-lhe a mina ame-ricana, e pondo o seu oiro virgem e abundan-tíssimo ao olho do sol esplendido. Fez-lhe ser-viço não menos valioso, mostrando o que se po-dia auferir de poesia folheando as memorias dos mui poéticos Sarracenos. Finalmente : pode merecer bênçãos pelos thesoiros de affecto que desencantou no claustro, no cemiterio, e na me-ditação. ,)Mas por que se não contentou com essas tres propostas pacificas, e ás quaes a ver-dade dava tanta força?

Se o selvagem e a floresta, se o Moiro e a sua Alhambra, se o seu mosteiro e o seu solitário, eram, cada um de per si, e olhados ás suas diversas luzes, outros tantos modelos para as bellas-artes e para a Poesia, ,icomo não viu elle que o Olympo e Homero, o Olym-po e Virgilio, o Olympo e Ovidio, não eram menos fontes e mananciaes inexhauriveis de poesia?

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*

Mas basta já de sermonada. Estou a rou-bar-te o tempo com coisas, que, se não são verdadeiras, de nada te servem; e se o são, tu mesmo as deves saber, e de certo as sabes tão bem como eu, e talvez hoje melhor do que eu, pois, se me não engano, continuas a trazer as mãos na massa, o que eu, por duas mil e duas rasoes, deixei de fazer ha muito.

X X X I I I

A nossa viagem projectada.

Mostrou-me o Paiva 1 na tua carta o que lhe dizes relativo á tua viagem comigo a Paris, de Paris á Italia, e da Italia até á Grécia.

Supérfluo seria encarecer-te eu, depois do que deixo dito no capitulo precedente, o quan-to esse projecto me seduz; mas <:realisar-se-ha elle ? i Oxalá! Se para isso faltar alguma coi-sa, não ha-de ser da minha vontade, nem da tua certamente; poderá ser porém do Governo portuguez; porque eis aqui a coisa:

Para eu realisar essa magnifica excursão, são necessarias duas clausulas, que não de-pendem senão do Governo: a l . a é a licença, sem suspensão dos meus vencimentos; e tal

1 Thomaz de Paiva Kaposo, dedicado cofrespon-dente do Conselheiro José Feliciano de Castilho em Lisboa. Falleceu por 1863 empregado na Secretaria da Camara dos Deputados. Honrado e pontualissimo caracter de homem.

Os EDITOBSS.

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como o Rodrigo m'a concedeu para eu ir á America; a 2 . a é , que, além de me não suspen-derem o ordenado, me dêem pelo contrario uma subvenção, ou ajuda de custo, para a minha peregrinação, que eu lhes hei-de representar como podendo e devendo ser vantajosa para a instrucção primaria popular, pois devo em França e Italia examinar o que ha de novo e aproveitável n'este capitalissimo ramo do serviço publico.

Se Rodrigo fosse ainda Ministro do Reino, bem convencido estou de que se prestaria, e de boa-mente, a ambas estas concessões. Do Marquez de Loulé, porém, não tenho bastante conhecimento para poder aventurar uma pro-phecia.

As Cortes vão-se fechar antes do fim d'este mez, e creio se não tornarão a abrir senão para Janeiro. Para a minha pretenção bom é, por-que, em presença do Parlamento aberto, não é tão fácil que o Ministro ouse coisas d'estas, que não são de rigorosa tarifa, ainda que também se não possam chamar exorbitações de auto-x-idade. Emfim, lá veremos a seu tempo ; por em quanto não convém falar senão aqui de-baixo dos nossos lençoes.

Precedentes para eu esperar que o Loulé condescenda, não deixa de os haver. Muitis-sima gente tem sido mandada d'aqui, com sof-friveis e mesmo boas subvenções, sem desfal-que nos seus ordenados, para irem estudar coisas úteis em França, em Inglaterra, e em Allemanha. O Albino e o Antonio Joaquim de Figueiredo foram dois d'esses viajantes ad studendum; agora mesmo lá andam por fora alguns outros.

V O I . LXIV 6

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Verdade é, que o pretexto com que toda essa gente tem sido enviada é o desnvolvi-mento das coisas materiaes, caminhos de ferro, telegraphos, minas, engenharia, agricultura, e mesmo arte militar, em quanto o que lhes eu oífereço é uma ridicularia, pois se limita na instrucção do Povo. ,jQue diabo importa aos Governos que os povos sejam instruídos? pelo contrario: o camello, que é corcunda, e o dro-medário, que é corcunda duas vezes, são os animaes que mais carga levam pelas areias do deserto, e com menos alimento se manteem. E ' uma parte da Historia natural applicada, que todos os governantes sabem por instinto. Emfim, veremos; a coisa não se ha-de ir pelo mal cosinhado.

X X X I V

Declamação.

A Declamação é para a Eloquência e para a Poesia o mesmo que para o Desenho o colo-rido. Poesia e Eloquência, sem Declamação acertada, nem mesmo sobre o espirito dos ver-sados e entendedores chegam a actuar, senão muito imperfeitamente.

Entretanto, é muito menos raro encontrar-se quem escreva muito bem, do que um bom ledor ou um bom recitador.

A França, tão adiantada em tudo que per-tence ao gosto, a França, que encheria volu-mes com o catálogo dos seus autores de vulto, aponta apenas três ou quatro ledores de pri-meira ordem, taes como Delille e Andrieux,

Obras completas de Castilho 75

e dois ou tres actores cabalmente afinados, co-mo Talma e Rachel.

A Declamação, que é também uma arte, e arte dificillima, pode-se dizer que passou em nossos dias por tanta revolução, como a Lite-ratura, de que ella é parte, ou, quando menos, accessório importantíssimo.

*

D'antes, a Recitação (para nos adstringirmos ao nosso proprio assumpto) era affectada, e excessivamente modulada e monótona. Os poe-tas podiam dizer, e diziam com certa verdade no principio dos seus poemas : «Eu vou can-tar», ou «Eu canto».

Dos antigos Romanos procedeu naturalmen-te para os povos seus successores a cantilena obrigada, de que se arrebicavam as composi-ção métricas, e que a própria Eloquência não desdenhava; pois sabemos o como Cicero, nos seus brilhantes discursos curiaes e comi-ciaes, se fazia auxiliar de uma flauta, para to-mar d'ella os tons que lhe deviam illuminar os períodos.

As Línguas neo-latinas, despojadas, no seu herdado falar, d'aquella prosódia, tão minu-ciosa e tão musical, a que os Romanos, volup-tuosos discípulos dos Athenienses, tanto va-lor attribuiam, conservaram não obstante (e a Italiana mais que todas, como testamenteira que era, além de herdeira), o gosto, o costume, quasi a necessidade, das entoações affectadas e semi-musicas para a recitação da poesia, para a da prosa mais subida, e quasi até para o falav corrente e quotidiano.

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*

Veio a revolução philosophico-democratico-literaria; proclamou-se o predominio da rasão, o culto da Natureza, em summa, a verdade em tudo, a despeito de tudo, e por todos os mo-dos. A Declamação cantarolada e falsa, que harmonisava com os buxos aparados e murtas contrafeitas, com os donaires, os riçados, as unturas, e os signaes, dos nossos pautados e tú-midos avós, reconheceu-se que desafinava no meio do systema todo outro das modas con-temporâneas ; ousou-se ser simples e verdadei-ro. Fez-se aos tons o que Horácio diz do trá-gico a respeito do estylo como condição para commover a espectadores ouvintes:

Projicit ámpuUas et sesquipedalia verba, si curat cor spectantis tetigisse querela.

A Declamação ficou sendo, por uma parte, livre, caprichosa, inspirada, como os jardins inglezes modernos; por outra parte, justa e severamente adaptada aos pensamentos e af-fectos que tinha de interpretar. Considerou-se como um vestido diáphano, Coa vestis, do dis-curso. Assim como, á semelhança da alma, que anima o corpo, o espirito e o coração translu-zem na Linguaguem, assim as várias intenções da Linguagem, se entendeu que deviam trans-parecer na Declamação.

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Victor Hugo, o coripheu da escola moder-na, o poeta mais philosopho, e o philosopho

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mais poeta de todos os tempos e de todo o mun-do, não podia deixar de ser o porta-bandeira n'esta importante parte da revolução literaria, que tanto em tudo lhe devia. Quem sabe ler, e lê devidamente as poesias d'este homem extraor-dinário, reconhece do modo mais claro, mais evidente, mais incontestável, o como elle as de-clama, as recita, e o como ellas se devem reci-tar. Segundo me dizem, ouvil-o é um verdadei-ro feitiço. Eu por mim daria tudo por poder ir á Inglaterra, ao semi-deserto onde elle mo-ra, unicamente para o escutar, e confirmar-me nas theorias, que a este respeito tenho vindo criando e amadurecendo para meu uso, e das quaes espero ainda expremer um livro de al-gum proveito. Estou certo de que, se j a -mais lhe fizesse aquella visita, nos havia-mos d », entender ás mil maravilhas, e a nossa Literatura patria alguma coisa havia de apro-veitar.

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Peço-te e recommendo-te instantemente que leias attento, e sem prevenções de especie al-guma, o poema, que sob o titulo de Réponse à un acte d'accusation vem no 1.° tomo das suas Contemplations.

A s theorias que elle professa a respeito da * metrificação, obrigariam Boileau a enforcar-se no primeiro lampião apagado. São talvez exa-geradas, mas assim era necessário: as exigên-cias da escola ultra-aulica de Luiz X I V haviam sido excessivas; a reacção forçosamente havia de ir para o extremo opposto.

Est modus in rebus; sunt certi denique fines, quos ultra citraq ie nequit consistere rectum.

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Este nosso Horácio dá realmente para tu-do ; e bom seria que lesses nas citadas Con-templations o lindo poemeto intitulado A pro-pos d'Horace.

*

Victor Hugo, como dizia, dotado de senso poético e philosophia no maior gráu, philoso-phia e senso poético, de que o Satvrico não recebera ao nascer nem um só átomo, des-truiu, pelo que pertence á metrificação, as bar-reiras da Arte velha, e franqueou aos poetas um campo vastissimo para effeitos, que d a n -tes lhes eram impossiveis, e impossivel até o desejal-os. Deu n'elle, verdade seja, algumas topadas, direi mesmo algumas quedas; ,;mas que importa isso? a sua conquista foi im-mensa, e prospérrima; consumou uma ver-dadeira redempção artística, e (se é licito di-zel-o) completa, porque, não pago de libertar e engrandecer o pensamento, de profundar o sentimento até aos abysmos, de revolucionar e opulentar a Linguagem e o Estylo, aviventou a Versificação, e com ella e por ella a Decla-mação.

*

Não li ainda o livro de que tu me falas, in-titulado Essai de Rythmique Française por De-coudret; mas pelo titulo, pelos extratos que d'elle me fazes, e pelas amostras que me trans-creves das suas poesias, julgo poder concluir que é um systetnatico reaccionário, um Boileau refinado, um antípoda de Victor Hugo. Se o tal Decoudret corresponde em verdade á ideia

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que d'elle formo, de todo em todo discordo do seu juizo.

E, com effeito, que receita mais efficaz para magnetisar leitores, do que vazar n'uma forma única todos os versos de um longo poema ? Que maior absurdo do que dar a todos elles o mesmo andamento, quando o pen-samento e o affecto podem, e devem, de uns para outros, diversificar, e até oppôr-se ? Tal medida, que harmonisaria com a pintura de uma dança rapida e tumultuosa, seria um con-tra-senso para representar a serenidade de um regato ; e tal outra, que muito bem condi-ria com uma intercortada declaração de amo-res, regelaria a alma applicando-se a uma sce-na de batalha, de temporal, ou de terremotos, porque a onomatopeia não depende só do acer-to de vogaes e consoantes, da extensão, pau-sas e andamento, dos vocábulos; requer egual-mente (e não dispensa) o discreto uso das for-mas de que é susceptivel cada especie de me-tro.

Tanto isto é assim, e tão errado anda no seu retrógrado systema o snr. Decoudret, que elles proprios, os Romanos, cuja recitação poética era muito mais entoada do que a nos-sa, e que, segundo já observei, abriam os seus poemas proclamando eu vou cantar, muitas ve-zes se permittiam misturar irregularmente, com o seus hexâmetros puros, hexâmetros spondaicos.

Quanto aos pentâmetros, todos sabem que, sendo o uso mais geral terminal-os com pala-vras de duas syllabas, muita vez os remata-vam com vocábulos tri-syllabos, e mesmo quadri-syllabos. Ovidio, que era o Bocage ro-

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mano, pouquíssimo usava d'esta licença; mas Tibullo j á a tomava com certa franqueza; e então de Catullo e Propércio não falemos.

Tornando aos hexâmetros: se Claudiano, Lucano, Silio Itálico, tres poetastros maçantes,

. os faziam sempre, todos, por uma bitola inva-riável, já Horácio, o padre-mestre do gosto, lia por outro breviário.

Nada mais caprichoso, nada mais acciden-tido, como hoje dizem, e nada mais infrene (á laia de Hugo), do que a metrificação de Horácio, não só nas Epistolas e Satyras, mas até na própria Arte poética, n'esse livro, que, legislando a Poesia em todas as partes de que ella se compõe, devia também exemplifical-a.

Se passamos dos hexâmetros aos versos propriamente lyricos, vemos que o mesmo mentor poético dos Pisoes, o primeiro e único lyrico romano, aquelle a quem se encommen-dou o memorável Carmen sceculare, aquelle, emfim, a quem Ovidio honrou com o epitheto de numeroso, numerosus Jíoratius, não hesitou em quebrar, aqui ou acolá, a regularidade mé-trica das suas odes; e para não citar mais do que um exemplo, mas esse bem frisante, vê a 2.a Ode do Livro I (e nota bem que é logo a 2.® do Livro I), em que a indole do assumpto o persuadiu a esmerar-se. Na õ.a estrophe o 3.° verso aãonio

Labitur ripa, Jove non probante,

mette em si a primeira syllaba do seguinte sa-phico

TJxorius amnis;

sem o que, ficava este errado, por excesso de

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uma syllaba no principio. E ' uma licença, em contrario sentido, semelhante á que Virgilio se permittiu na Eneida, nestes dois versos:

Jamque iter emensi turres ac tecta Lalinorum ardua cernebant juvenes, murosque subibant.

No primeiro d'estes dois versos, trasborda da medida, como vês, a ultima syllaba, que vai ser absorvida na primeira do verso imme-diato. Nota ainda mais : que o único motivo que poude obrigar o Poeta áquella extravagação, foi o dar mate á monotonia, porque aliás nada mais fácil do que ter posto, em vez de Latino-rum, Latini; com o que, o verso lhe sahia ca-bal, excellente, e nada inferior para o pen-samento.

Finalmente: os versos chamados senarios em que Phedro escreveu as suas Fabulas, admitiam uma tal variedade de pés, um tal ad libitum de contextura, que todos elles pare-cem estar fazendo figas, cada um da sua parte, para o rythmo inflexivel exigido, contra o uso de todos os poetas do mundo, pelo snr. semi-poeta Decoudret.

Eu não digo que n'uma bagatella de uma dúzia de versos, n'uma arieta por exemplo, feita de proposito para ser cantada, não seja muito plausível essa conformidade que elle re-quer, e de que a Natureza, que é a mestra dos mestres, em nenhuma coisa nos deu ainda, nem jamais de certo nos ha-de dar, exemplo. Mas, afora essa hypóthese, o que antes se deve re-commendar aos poetas é que, sem quebranta-

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rem as leis essenciaes do metro que adoptarem, procurem introduzir n'elle a maxima variedade, regulada (quanto possível) pelo senso das con-veniências secretas, que se possam dar entre as ideias e os sons representativos d'ellas.

E quando não, pergunto: ^qual.será me-lhor? <>metter quasi toda a Poesia, quanta appa-rece na alma, em versos dotados todos de uma vida commum, mas animado cada um d'elles de uma mobilidade privativamente sua, ou es-crever, com uma teima de lundum de taberna, metade só, e muitas vezes só a terça ou a quarte parte, das ideias que se queriam e se deviam expressar?

A s poesias de Decoudret podiam ser tão cheias e valentes como as de Victor Hugo, sem que assim mesmo provassem coisa alguma em abono da sua proposta; mas, de mais a mais, são vazias e nullas; trabalham muito, para não fazer nada; lembram um realejo para ensinar canarios a cantar; expressam toda a sua sol-fasinha, porque no cylindro não falta nem meio preguinho; mas, a final de contas, ninguém pára para ouvir tal, em quanto todos corremos enthusiasmados para as caprichosas improvisa-ções de um Verdi ou de um Meyerbeer, que nos levam, de novidade em novidade, atra-véz das regras, por fora das regras muitas vezes, até o inesperado, até o sublime, até o assombroso.

*

D o exposto se deprehende o como deve ser em geral a Declamação : variadíssima com in-telligencia: sem encobrir o metro, mas sem o embutir pelos ouvidos, como de cima de uma

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carrada de madeira se vai enfiando tábua a tábua pela porta da estancia dentro.

A Recitarão não é uma coisa mecânica ; não é um carrilhão de Mafra; não é uma mulla a chôto compassado por uma estrada fora, com o almocreve em cima a cabecear. A Declama-ção entende o que diz, e deve ser entendida; caminha, mas não ao som de tambor ou de banda marcial, como um soldado; passeia, anda, ou corre, ou pára, á feição do terreno, das perspectivas, do que tem de fazer, ou. do que leva no pensamento.

Eu creio ter já dito alguma coisa semelhan-te, e talvez aproveitável, no prologo á traduc-ção das Metamorphoses, e não sei se também no capitulo sobre Declamação, que puz no Tra-tado de Versificação pertugueza.

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E m consequência de ser este o meu pensar e sentir acerca de Recitação, com que a Poe-sia se deve revestir, tenho feito, de muitos an-nos para cá, muitos ensaios severamente ana-lyticos de Declamação applicada a escritos meus, e a um cardume de composições de ou-tros autores, de que a minha memoria se tor-nou uma especie de Pantheon.

E ' pois a minha Recitação, segundo dizem, e me obrigam a acredital-o pela insistência com que nos saráus poéticos me forçavam a repe-tir até á saciedade as mesmas coisas, é, digo, natural e verdadeira, clara e transparente, le-vemente musica, mas infinitamente variada, tanto no andamento, como na força e volume

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da voz, como nas subidas e descidas da esca-la natural.

Quem sabe ver n'estas coisas, vê bem que estudei conscienciosamente esta arte, cuja exis-tência a maior parte da gente, ignobile vulgus, nem suspeita; porque ella mesma, quando che-ga a ser de veras Arte, põe tudo em se es-conder. Em summa: requestei-a, importunei-a, e (se me não engano, e me não enganam) con-segui-a, como o Demósthenes e o Cicero; com a differença, porém, pelo menos em quanto ao primeiro, que não tive que inventar uma voz nova, ou desbastar de asperezas a natural e primitiva, pois um bom orgam tinha-o eu recebido da Natureza, sonoro, flexivel, e oiço que agradavel.

Coisas d'estas, podem-se dizer sem grande quebra da modéstia, pois não somos nós os que fazemos o nosso physico.

Não tenho á mão o Tratado da Eloquência do Palpito, essa obra-prima do Cardeal Maury; emprestei-o; mas, se me não falha a memoria, acharás n'elle observações justas, didacticas, proveitosas, relativas a esta matéria, e com que poderás augmentar muito o interesse do teu opusculo. Peço-te que assim o faças, porque, segundo o meu código, em tudo onde couber instrucção devemos embutil-a.

*

Concluirei este capitulo com uma ratice curiosa:

Um Professor régio de primeiras Letras, que n'esta Cidade tem cadeira, devendo ter tripeça, é um dos muitos, com quem se rea-

Obras completas de Castilho 113

lisou em mim a prophecia biblica inundatio camelorum opperiet te. Como é ignorantíssi-mo, é também atrevidíssimo. E m quanto os bis-bórrias seus collegas se limitavam em murmu-rar verbalmente da reforma do ensino, e de mim, este, paródia de D . Quichote, sahia a pro-vocar-me em artigos sobre artigos n'um jornal chamado A Lei. O que o bruto desejava era que lhe eu batesse, para se gabar de me haver me-recido attenção; nunca lhe respondi; nunca alludi a elle nem por longe. Chegou com este desprêzo a tal ponto a sua exasperação, que es-creveu para a mesma folha um artigo tão des-orientado, que, entre outras muitas da sualavra, até dizia que eu tinha sido queimado em estátua nas praças publicas das nações civilisadas; e acrescentava, para mostrar a minha incompe-tência em matérias de ensino primário, que eu era gago, e não sabia pronunciar o S ; coisa que elle tinha feito observar a outros professo-res durante o meu Curso Normal dos Paulistas ; notando-lhes, ao mesmo tempo, que essa miséria minha era effeito inevitável de defeito de cons-trucção, não me lembro se no queixo, se na barba. O artigo chegou a ser composto; o autor remetteu-me pelo correio, e eu conservo, uma prova d'elle; mas, fosse pelo que fosse, nunca chegou a apparecer.

Ora aqui tens tu como os bernardos escre-vem a Historia.

Se o alarve dissesse, pelo contrario, que eu pronunciava as palavras com demasiado escru-pulo, com excessiva nitidez, fôra ainda uma tolice, porque a perfeição nunca é excessiva; mas ao menos . . não era uma torpeza.

Esta anecdota veio para aqui per modum

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cavaqui, pois por caso nenhum deves immor-talisar o selvagem, esculpindo-lhe o nome no teu monumento.

X X X V

Outro Post-scriptum a respeito de Deccla-mação, e nada mais:

Estando a ponto de acabar-se o meu Curso normal dado na livraria do extinto convento dos Paulistas em 1853, officiei ao Ministro do Reino, em 27 de Dezembro de 53, offerecendo-me a dar gratuitamente na mesma casa, e logo em seguida áquelle, outro de Versificação, de rudimentos de Poética, e Declamação; para o que, pedia se continuasse a franquear-me a sala, e a abonar-se a illuminação. Para este novo Curso pedia dois mezes. Aqui tens tu o final do meu ofíicio:

«A mercê que eu peço muito instantemente a V . E . é a brevidade na decisão d'este ne-gocio. Se o meu offerecimento é aceito, con-vém principiar desde já trabalhos fundamen-taes para o supra-indicado Curso ; se não con-vém, ou por qualquer motivo se não pode rea-lisar, o tempo que me haviam de levar esses preparativos empregai-o-hei de qualquer ou-tro modo.

«As vidas são todas curtas; as dos homens ardentes para o bem, muito mais curtas; a minha vai manifesta e impetuosamente na va-sante. Não quero j á agora repoisar, senão no cemiterio. O que imploro, como favor summo,

Obras completas de Castilho 87

é que se me não façam perder mezes, nem semanas, nem dias, nem horas.

«(iQuer-se este meu serviço ? aceite-se-m'o já já . <iNão se quer? recuse-se-m'o j á já .

«Se m'o aceitam, confessar-me-hei despa-chado, porque haverei ensinado a talentos da minha Terra, que por ahi se perdem, o de que elles carecem, o que eu sei ensinar, o que nunca por cá até hoje se ensinou. Remunera-ção, nem a pedi, nem a peço ; dou-m'a eu mes-mo; tenho-a dentro.

«Se m'o recusam, desço d'estas utopias de utilidade publica para o fundo da minha poisa-da humilde, a tratar dos meus interesses do-mésticos, demasiadamente transcurados.

«Ainda uma vez : o sim dado j á , é uma grande mercê, pela qual, como cidadão, eu beijarei as mãos a V . E. ; o não, dado já , é outra mercê também, pela qual não menos hei-de beijar as mãos a V . E. , como pae de familias.

«Digne-se pois V . E . de me despachar, com um bom não, ou com um bom sim, o mais rá-pido que n'uma Secretaria possa haver.»

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E m 10 de Janeiro de 54 respondia-me o Mi-nistro, em nome do Regente, elogiando e agra-decendo o meu zelo, e terminava o seu ofíicio de aceitação com estas palavras:

«devendo ser restricta a duração do novo Curso ao periodo de um mez.»

Repliquei-lhe em officio de não sei quantos, que elle tinha muito bem conciliado na sua

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resposta o não e o sim, porque, dando-me um mez, me dava coisa que eu, por inútil, não po-dia aceitar; pelo que, lhe ficava obrigado duas vezes.

X X X V I

Ainda duas linhas sobre Decla-mação.

Theatro do Salitre.

Quando aqui arribou um moço italiano de Lucca, dotado de bastante talento dramatico, chamado Cesar Perini, que se dizia emigrado, e me trazia cartas de recommendação de um amigo de Gibraltar, condoí-me do seu desam-paro, puz em portuguez, corrigindo-as e arran-jando as a meu modo, comedias d'elle, taes como Os tres dias de um sentenciado, Filippe Mauvert, Geraldo sem pavor, e não sei que mais, e fil-as representar em seu beneficio no thea-tro do Salitre, que então andava, ainda que fraquíssimo, e sem especie alguma de protec-ção, em guerra de rivalidade com a Companhia de Emilio Doux no theatro dos Condes.

Por essa occasião arranjei para o mesmo Sa-litre algumas farças imitadas do francez, taes como As mulheres romanticas, A volta inespera-da, Os cincoenta annos, O avôsinho, etc.; o Herculano a comedia O fronteiro d'Africa, e O tinteiro não é caçarola, traducção do vaude-ville Le secrétaire et le cuisinier; o Rodrigo Felner Os empyricos de algum dia, de Scribe, e não sei que mais.

N'essa temporada, com o meu génio que tu sabes, de me absorver todo, e com exclusão

Obras completas de Castilho 88

de tudo, no assumpto da actualidade, pode-se dizer que não sahia do theatro, salvo quando os actores mesmos vinham ensaiar-se em mi-nha casa. Ensinei-os a todos, a um e um, a declamar com verdade e sentimento. Fui com elles o que são as aves-mães com os passari-nhos: dava-lhes a papinha já mastigada. O re-sultado foi que o Salitre, até então deserto, teve enchentes, e merecia-as.

Foi ahi, que eu emprehendi, e completei, a façanha de pegar n'uma Italiana, que viera j á adulta para Portugal, e fazel-a representar em portuguez, quasi sem accentuação estran-geira, e com inteira aceitação. Essa dama foi a Grata Niccolini.

E agora, nada mais de Declamação, senão que, d'estas comedias que para o Salitre ar-ranjei, uada conservo, porque dei tudo ao actor Dias, que era o melhor do meu Salitre, e tudo elle levou para o Brazil, onde foi aca-bar com uma apoplexia.

X X X V 1 1

As minhas correspondências com o Governo.

Davam já hoje uns poucos de volumes bem curiosos, porque encerram toda a incrivel e melodramatica historia do Methodo portuguez, e pode-se dizer que, fragmentadamente, um curso amplissimo e preciso de Methódica, de Pedagogia, da Philosophia do ensino, em summa.

A Secretaria do Reino nunca recebeu, of VOL. IXIV 7

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ficialmente, nem extra-officialmente, nem em descomposturas dadas á porta a Officiaes ou a Ministros por gente desattendida em preten-çoes justas, nunca jamais recebeu, nem ella nem Secretaria alguma de quantas esfervilham pela superfície d'este planeta, um montão mais compacto de verdades duras, ora temperadas só com pimentão, ora adubadas com sal, ora com um e outro tempero. Só a paciência do Rodrigo é que me aturava.

Por isso também, depois, e por occasião da sua sahida do Ministério, eu lhe dirigi aquella carta, que lerias no jornal d'aqui O Futuio, de 12 de Maio d'este anno. No mesmo jornal vem a resposta d'elle. O Gabinete de leitura deve ter isso.

X X X V I I I

Genío violento e amoravel.

Esta parte é a mais difficil de ser auto-bio-graphicamente escrita. E' delicada, e muito importante para o trabalho que emprehendes. Aqui é que o nosce te ipsum offerece mais es-cabrosidades.

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Percorrendo em espirito os meus versos, as minhas prosas, as minhas correspondências officiaes, as minhas numerosas e acerbas po-lémicas, os meus comettimentos civilisado-res, os meus actos de dedicação espontânea-e os meus sacrifícios de toda a especie, de re, poiso, de saúde, de haveres, de gloria, e mes-

Obras completas de Castilho 91

mo de affectos consumados nas aras do inte-resse publico, muitas vezes utopístico (e uto-pistico até quando mais real), sinto, collocan-do-me fora de mim como espectador neutral, ora uma certa veneração pelos sentimentos, ora uma certa lástima pelo juizo. Cuido estar vendo um longe do Camille Desmoulins, e não posso impedir-me de comparar a minha rasão a uma chamma, que os ventos apostadjs con-tra ella enfurecem, que luta doidamente com as trevas, ora vencedora ora vencida, e que, criada originariamente para allumiar, muitas vezes incendeia e destroe.

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Prégam-me todos, e nào poucas vezes m'o tenho eu dito a mim mesmo, que o zelo exces-sivo damna os negocios. Reconheço lucidissima-mente esta verdade, quando discorro sobre os actos consumados; mas repugno-a sempre co-mo um absurdo, e repulso-a como uma cobar-dia, em se tratando de encetar uma nova em-preza. E' porque um dos meus maiores defei-tos é um incurável amor á verdade nas coisas capitaes do Genero humano.

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Quero transcrever-te para aqui, por vir a pêlo, o que eu dizia ao Viale n'uma longa car-ta que elle devia mostrar, e diz que mostrou a este Rei actual:

«N'este conjunto cerrado de circumstancias.

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^que podia a autoridade nominal do Commissa-rio do Governo para a diffusão do Methodo portuguez? o mesmo que o lenho atirado por Júpiter ao meio do charco das rans; saltaram-lhe em cima, conspurcaram-n-o, e grasnaram sobre elle o seu triumpho. Eu só differia do lenho em ter voz, e em levantal-a no meio d'estes descompostos alaridos.

«Com muita, ou pouca, ou nenhuma esperan-ça, eu não cessava de queixar-me ao Governo, em officios acszos de amor e energicos de lealda-de ; nas escolas, em discursos de convicção e demonstração; na Impresa, em artigos, em que muitas vezes o patriotismo exacerbado pela brutalidade das injurias transbordava por cima de todos os diques da moderação. Não apre-sento estes artigos como modelos; mas quem m'os condemnasse absolutamente, quem fosse capaz de moderação em tal assumpto, quem estivesse escolhendo expre*ssÕes, amaciando e perfumando affectadamente o estylo, contra taes e tantos envenenadores da educação, falsifica-dores do Evangelho, martyrisadores da inno-cencia, espoliadores das familias, Eróstratos e Ornares do futuro; quem, pisado, calcado, es-carnecido, quasi já derrotado por elles, que são innumeraveis, podesse apresentar-se-lhes modelo de urbanidade, urbanidade contrafeita, sobre posse, impossivel; esse faria tudo quan-to quizessem d'elle, mas nunca se haveria sa-crificado, como eu, pelo interesse commum.

«Os serviços largos, que, ha annos agros e muitos, juro a Deus tenho prestado a este Paiz, e a acerbidade com que indignado re-pulso os que, sem nunca o terem servido, veem impedir-me na boa obra, tudo nasce de uma

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só e única fonte: o amor entranhado, crente, heroico, sem limites.

«Quando Cicero orava contra os Romanos inimigos de Roma, ia muito mais longe do que eu fui contra estes Portuguezes inimigos de Portugal. O seu odio levava-o até a perse-guil-os nos seus vicios individuaes, e devassar as vergonhas de suas casas. Ahi, sim que era o excesso do patriotismo; mas Roma salva ap-plaudia isso mesmo.

«S. Jeronymo, cheio do zelo da Religião, cujo era athleta, cujos Livros santos elle vul-garisára, e a quem, por isso, o espirito de mansidão evangelica devia ser familiar, S. Je-ronymo fulminava com os mais desabridos im-propérios os seus adversarios, só porque o eram da verdade.

«Moisés, irritado de ver a adoração do be-zerro de oiro no Povo a que elle trazia o có-digo do Sinai, f íz-lhe muito peor que flage-lal-o com palavras: metteu-o á espada, e que-brou as táboas da Lei .

«Jesu-Christo, finalmente, levou do azurra-gue contra os profanadores do templo, e, por sua divina e caridosa mão, lh'o assentou mui bem assente nas espaldas.

ISemper ego auditor tantumf ! gNunquamne reponam, vexatus toties ?!

«A brochura Ajuste de contas com os adver-sarios do Methodo portuguez, de que também envio a V . E . um exemplar, se V . E . tiver a paciência de a correr pelos olhos, bastará pa-ra que V . E . , com ser varão tão moderado, admire mais, com semelhantes adversarios e

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em tal assumpto, a minha paciência, que as minhas iras.»

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Ora, José, anda lá. Lê agora uma vez, sem preconceitos, e pondo-te mentalmente em meu logar, a Tosquia de um cumello. Com esse opusculo te aparelharás para formar n'esta ma-téria um juizo equitativo a meu respeito.

E m summa: mais amante do que eu, não quero que o haja; mas o amor é como o leite, é como o mel, é como os frutos mais doces: se o não aproveitam, azeda, e pode tornar-se em fel ou em veneno.

De meu natural pendor fui sempre para os capuanos e floridos ocios do bem-querer. Be-nevolencía immensa e profunda é o estado ínsi-to da minha alma, como o da agua é estar-se muito quêda, mettendo em si as imagens dos objectos circumstantes, e cambiando com elles colloquios mudos suavíssimos. Se caem fura-cões sobre um lago, o descompõem, o aprocel-lam, e o arremeçam contra as circumvisinhan-ças ; ou se lhe veem frios, que o apertam, regelam, e petrificam, são variações acciden-taes que elle padece, e em que não tem culpa. Fizeram-n-o parecer assim, que elle de si era outra coisa.

Tenho semeado e cultivado muitas amisa-des ; algumas feneceram; outras degeneraram em malquerenças; nem uma só por minha culpa. E mais ainda: a algum coração, depois de me ter fugido, reprocurei-o, armei-lhe redes, en-visquei-lhe ramos para o caçar; e quando o

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senti perdido de todo para mim, olhei para o fundo do meu coração, e vi que fazia noite.

Por mim, posso dizer o que de si escre-veu Ducis :

Ou m'a trompé souvent, je ríai trompé personne.

Antes assim. Alegro-me de ver que, atra-véz das mutações das edades, e criança bon-dosa e simples que ao principio fui, ainda não morreu, nem já agora ha-de morrer senão comi-go. E ' ella, essa parvoinha innocente, a minha única verdadeiía Musa, a minha mais cons-tante, mais donosa, e mais querida inspi-radora.

Tu deves conhecer-me um tanto. , jNão será isto verdade?

X X X I X

Sentimento innato de indepen-dencia.

Dispartiu-me a Natureza (porque eu não me fiz) um grande cabedal de altivez, a qual, a não ser temperada da minha nativa benevo-lencia, se tornaria odiosa, além de ridicula (nota bem que estou conversando comtigo). O sentimento e consciência da dignidade humana, apanágio principalissimo que devera ser de todos os indivíduos, tem-me vindo acompanhan-do, e talvez crescendo, desde os tempos mais antigos de que me posso recordar.

Ha um não-sei-quê na desegualdade, na humiliaçâo de uns para elevação de outros, que, por mais que os raciocinadores da or-

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dem o defendam e apologiem, me repugna, quer eu em espirito me colloque entre os mor-gados, quer entre os filhos expostos da fortuna. (Eu não estou pliilosophando; registo phenóme-nos moraes, que em mim se passam; assim, meu corcunda, excusado é fazeres polemica a este respeito).

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Muita gente, que me não tem tratado, ima-gina e diz que sou despresador, sobranceiro, que me diviniso para a plebe literaria. Nada mais falso. Não ha principiante, a quem eu não dê a mão se elle me procura, ou a quem eu não procure, se o posso. Não ha entre os meus pares um, a quem eu recuse o que lhe é devido. Não ha uma só superioridade intellectual, seja de que especie fôr, que lhe eu não dê pleno reconhecimento. Nunca vi, em grau algum da escala, um literato per-seguido pela inveja ou pela ignorancia, que, sabedor por experiencia do que esses tiros doem, lhe não acudisse. Em summa: ingra-tidões, nunca ninguém com mais pródiga mão as semeou.

Então me concentro no mais profundo re-tiro, evitando até os eccos do que vai lá por fora no alcunhado mundo literário.

jQue vezes não deve ter acontecido outro tanto a outros poetas ! e d'ahi, que inapreci-ável, que ignorada desherdação para a Li-teratura! Olha Racine: as injustiças ignaras ou maliciosas de muitos dos seus contemporâ-neos, que á bocca cheia lhe antepunham Pra-

Obras completas de Castilho 49

don, fizeram-n-o perder no ocio, e de puro de-sanimado, largos annos, e dos mais bellos e fortes annos, da sua vida.

A posteridade revê quasi sempre os proces-sos d'esta especie, e reforma as sentenças apaixonadas, e vinga o merecimento desconhe-cido; mas a perda está consumada, e não tem remedio.

0 peor é que essa reparação tardia, não a pode antever com certeza o interessado; a es-perança lhe serviria pelo menos de consolo, e talvez lhe reporia as forças para perseverar na lida ingrata.

1 Insere nune, Melibcee, piros, pone ordine vites !

Digo que nem o alvor do futuro reanima a um trabalhador de bem, desatendido e menos-cabado dos seus coetâneos, porque, a julgar dos outros pelo que em mim sinto, esses po-bres párias, tão bons e tão infelizes como aquelle da Choupana india, de Saint-Pierre, não podem ter certeza alguma de que os vin-doiros hajam de rehabilitar a sua memoria.

Delille disse de Cicero:

II écoutait de loin son immortalitè.

<:Mas é por ventura, ou poderá jamais ser, provado que Cicero, mesmo com toda a su-perioridade do seu talento, do seu caracter, e do seu saber, com todos os louvores, com to-da a glória, com todas as ovações que havia obtido, tinha a convicção segura, inabalavel, inconcutivel, evidentissima, do seu mérito?

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9 á dmpreea da Historia de Portugal

,jNão é um principio assente, que ninguém pode julgar em causa própria ?

,;Nâo ensinou sempre a experiencia que o amor proprio, além de ser sujeito a miragens, usa de oculos ?

^Não é natural o duvidar no que mais se ambiciona ?

,JO talento, como o amor, não tem fluxos e refluxos ?

,;A alma, que n'uma estação floreja, n'outra arde, n'outra frutifica, não tem em todas ellas interrupções tenebrosas e frias, e apóz ellas um completo despir de folhas, e um inverno glacial, nocturno, tempestuoso ?

[Ainda mal que assim é! pois aliás, se o apreço, ao menos, dos que ainda não nasce-ram, nos fosse prophetisado com todos os cri-térios de infallivel, teríamos de sobra com que reagir contra a barbárie dos contemporâneos, contra a inveja dos vivos, funesta paixão que os Romanos confundiam n'um só e mesmo vo-cábulo com o odio: invidia.

Poderia dizer-se a esses cultores do mundo intellectnal, o que ao seu Daphnis disse o Po-eta das Georgicas-.

Insere, Daphni, piros; carpent lua poma nepofes;

e muitos Daphnis, que aliás se vão dormir, aturdir-se, ou comer-se e matar-se de tristeza, enxertariam com effeito as suas tardias arvo-res, e gosariam como recompensa as bênçãos dos seus netos ainda não nascidos, que algum dia ali haviam de vir regalar-se com os fru-tos.

Obras completas de Castilho 99

No Acto V do meu Camões pintei eu, taes Como as conhecia, 011 as julgava conhecer, es-tas pungentes dúvidas de um poeta desaven-turado e desconhecido, que se revira a esprei-tar para dentro de si como para o fundo de um poço negro e vertiginoso. N'essas falas do talento chegado pelo infortúnio ao scepticismo, á horrível negação da própria individualida-de, pintei eu (e sei que muito bem) um estado que já então conhecia, e hoje conheço muito melhor. E o orgulho, o justo orgulho, que ali se debate contra a injustiça, como um condem-nado, sem culpa, alguma vez se viu lutar contra o verdugo, até ficar nu e em sangue. E' Ché-nier, dando murros na testa quando o levavam ao cadafalso, e exclamando, poeta até ao fim, e poeta ceifado em flor: II y avait pourtant là encore quelquc chose. E ' " Lavoisier, suppli-cando, e supplicando em vão, ao cutello revo-lucionário que espere algumas horas mais pa-ra o deixar concluir um descobrimento precio-so para a sciencia. E ' . . . este martyrológio nào se esgotaria tão depressa.

O orgulho, que transparece no fundo de to-dos estes factos, por uma parte honrosos, por outra infames para a Humanidade, pousará alguém, por ventura condemnal-o? ,;Não é el-le a voz da justiça, que ordena dar a cada um o que é seu, sem exceptuar o proprio indivi-duo? ^Não é o pregão reiterado das Letras santas, que ora nos ordenam curar do nosso bom nome, ora que não mettâmos sob o alquei-re a luz destinada a esclarecer ?

Sem duvida; sem duvida. Fique pois assen-tado que, tenho orgulho, mas não um orgulho impertinente, insultuoso, e a que melhor qua-

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100 Emprega 3a Historia de Portugal

drára o nome de vaidade; não nm orgulho que aspira a dominar, sim um orgulho que se indi-gna contra a oppressão, como a palma que sem estrondo se levanta com o pezo.

D'este orgulho, e de um poucochinho de philosophia estóica juntos, combinados chimi-camente (se assim se pode dizer), resultou-me uma certa indifferença para com a opinião, uma aversão para as sociedades, uma grande perguiça de falar, e mesmo de escrever, que por vezes me tem feito lembrar o Morra e vin-gue se, aconselhado por Vieira ao soldado mal galardoado.

Eu podia levar muito por diante este abor-recido capitulo, mas não quero.

X L

Vis trabalhandi, inertia Iazaronis.

Sou como o Vesúvio : ha sempre fogo den-tro em mim, mas só de tempos a tempos se manifesta em erupção. Fóra d'esses lances, só quem applicar o ouvido ao fundo da cratera, é que preceberá o que la vai por baixo, e de que algum dia borbotará uma torrente inflam-mada.

Poetar, pode-se dizer que poeto sempre; hoje, còmo n'outro tempo.

O meu espirito vive mais, por tendencia e por hábito, na realidade subjectiva de um mundo ficticio, do que nas falsidades desafina-das e mal compostas do mundo ..objectivo. Se não fosse esta reacção, ^que haveria sido de mim, ha j á muito, cercado e batido de tantas,

Obras oompletas de Castilho 101

tão duras, e tão contínuas, contrariedades? Mas eu, a Historia diluo-a na Poesia.

Não é quando me ponho a ditar, que mais phantasío e góso ; porque ahi está j á uma tes-temunha ; está uma penna, como que escar-neando com o seu sussurro o meu pensamento que ella materialisa; estão as demoras força-das ; está a reflexão importuna do como toarão depois, nos ouvidos dos indiíFerentes, dos ma-lignos, e dos despresadores, as expressões, que, por mais inspiradas do sentimento, ou por mais remontadas na concepção, não vão titiktl-os no seu gosto. Não ; os meus melhores poemas são os que eu não dito, nem digo ; são os que eu improviso comigo, e para mim, na cama antes do adormecer, na solidão de uma grande sociedade onde não converso, n'uma jornada a cavallo por uma estrada fora, e, mais que tudo, passadas as primeiras violências do enjoo, estendido no beliche, entrecortando os dias com somnos, e as noites com vigílias. N'estas, e n'outras semelhantes circumstancias, todo eu me desfaço em Poesia; é uma activida-de a que não conheço limites.

Logo que se trata de fazer um livro, mudou tudo ; é uma obrigação, ainda que imposta por mim mesmo; é um trabalho prescrito, e ser-vil, de que eu fui, sim, o architecto, de que sou o dono, mas em que lido como operário; aborrece-me, repugna-me. Por isso também, quando o concluo, sinto um alvoroço compará-vel ao de um estudante no dia do ponto; lem-bra-me laurear a penna, e illuminar o escri-tório.

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Ora, se isto é com o escrever uma obra de

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112 Empresa, da Historia de Portugal

prosa ou verso, mas sempre do dominio do coração ou da phantasia, ; que não será quan-do se trata de qualquer^outro trabalho árido, positivo, materialissimo, amaldiçoado das Mu-sas, como quasi tudo de que se compõe a galé da vida! Isso para mim é intolerá-vel. A tal custo, rejeitaria os maiores inte-resses.

Para corrigir a basófia de me ter compa-rado com o vulcão, comparo-me agora com o lazarone de Nápoles, que, em tendo para um prato de macarrão e um peixe frito, se es-tira ao sol um dia todo, a devanear, com os olhos n'uma barca ao longe no golfo de Ná-poles; e ninguém lhe proponha por um mi-lhão, e pelo palacio do Rei, o fazer um frete.

*

E' ainda por effeito d'esta minha nativa indolência (nem louvável, nem condemnavel, porque não fui eu que a fiz), é, com certeza o digo, só por effeito d'ella, que muitas e muitissimas vezes saio de assemblèas, mes-mo literarias, verbi-gratia das sessões da Aca-demia, sem ter despendido uma única plira-se, em quanto sobre asssumptos em que eu, se não sei mais, também não sei menos do que outros que os estafam, os mais some-nos arrotam erudição, bandejam philosophias, e destillam uma coisa que por ahi chamam espirito, e que, em ultima analyse, se não é um caput mortuum, não passa de uma quin-ta essencia de nada.

E ' ainda por effeito do mesmo vicio, ou virtude, que nunca preparei u-m discurso para

Obras completas de Castilho 113

qualquer dos muitos actos solemnes em que ténho sido constrangido a representar, con-tentando-me com o que o momento me offe-recer, em estylo qua"si sempre chão e desam-blcioso. E então, de banquetes onde ha espi-ches ostentosos, fujo eu sempre com horror, que antes comer uma sardinha onde m'a não obrigam a pagar com eloquencia.

Para essas festas do talento extemporâneo, em que tu brilhas maravilhosamente, sou eu um decepadinho. 1

E' , finalmente, em grande parte, por esta boa rasão negativa, além de outras positivas, que não quero ser Deputado, nem vou a bei-ja-mãos, nem jamais appareci em sessão Real da Academia, nem procuro Ministros, nem frequento o Grémio.

0 meu espirito aprendeu do meu corpo, se não foi o meu corpo que aprendeu do meu espirito, a viver em mangas de camisa, com o pescoço desengravatado, e estirado (bem sabes) em cima de uma esteira, a escutar pianos e cantorias, mas de longe.

Resultado liquido: não hei-de deixar gran-de coisa em testamento, nem hei-de ter nun-ca em minha casa uma corte de admiradores e desfrutadores, como tantos outros.

1 Verdade testa da por' .tfodo.s os que o conhece-ram, é que. Jo|é Feliqianí^pfimava como orador, ruti lava no imprcwiso, tinrça-m talento da intimativa, da imagem, da cor, auxiliado ^or uma voz sonora e mal-leavel, por um gesto largi e imperioso, e por uma bella figura. Nas Camaras bateu-se com as primeiras espadas; n'uma sessão literaria era encantador; n'um brinde de sobremeza era inimitável. Dotes quo seu ir-mão não possuía.

Os EDITJBES.

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*

Para quem faz confissão de perguiça, creio que não tenho escrito pouco. Assim, sim se-nhor; com este trabalho me entendo eu; é ca-vaquear correntemente; é deixar-me boiar á tona do pensamento.

*

Ainda uma reflexão. Sendo o meu génio assim, como t'o acabo

de pintar, imagina tu jquão sincero e ardente não deve ter sido o meu zelo pela civilisação contida na Instrucção primaria popular, quan-do por ella tenho andado ha tantos annos n'u-ma guerra viva, escrevendo obras, sustentando polémicas, multiplicando longas correspondên-cias, fazendo viagens, dando Cursos normaes, e requerendo a Ministros, a Parlamentos, e a Reis, que todos são surdos, etc etc. etc. !

Não ha nada mais frenético do que a acti-vidade do mandrião.

No que deixo candidamente exposto, está a explicação da minha insigne, e j á proverbial, despontualidade em correspondências epistola-res. Tu bem o sabes; e mas ainda não és tu dos que o sabem melhor; pelo contrário; nun-ca ningnem se benzeu com tantas cartas mi-nhas estiradas, como tu.

Quanto a isto de cartas, tenho ainda outra comigo, que é uma certa quesilia involuntária, instintiva, a recebel-as; quesilia que eu julgo

Obras oompletas de Castilho 101

não provir só da obrigação de responder, er& que tirannicamente me vem pôr cada missiva, mas que prende sobretudo n'um certo pressen-timento pusillanime, de que, dentro n'aquelle papel, fechado e mudo, ha-de vir alguma no -ticia desagradavel, alguma coisa que perturbe o meu descanço, ou (quando menos) me ex -travie do álveo costumado dos meus pensa-mentos.

Muitas vezes me tem succedido conservar cartas, recebidas em occasiÕes em que tenho que fazer, ou em que gósto de não fazer nada, fechadas muitos dias, e ás vezes semanas, á espera de uma hora de heróica resolução. Pa-ra isto podem ter contribuído as anonymas, com que n'outro tempo me mimoseavam, e de que emfim me descartei, já de annos para cá, por um modo muito simples.

Quero-te ensinar a receita, porque é boa, o todos a devem saber para seu uso, que se-rá o único modo de se dar cabo d'estas sevan-dijas invisiveis, cuja existencia só se denun-cia pela picada venenosa:

*

L o g o que se abre uma carta, e se vê que não traz assignatura, ou que a traz contrafei-ta e desconhecida (ellas conhecem-se pelo chei-ro), ou que a escritura das paginas é disfar-çada, queima-se sem mais inquirições assim como se esborracha uma aranha, sem mais exames, antes que ella nos morda. Se nenhum d'estes indicios materiaes nos revelou a anony-midade, começa-se a ler; mas, apenas se reco-nhece que é de inimigo sollapado, pára-se re-

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solutanente, inflexivelmente, e rasga-se tão miudinho, que, ainda que depois viesse tenta-ção de recompor a cataplasma, j á não seja possivel. Se é de noite, e ha lume ao-pé, quei-ma-se tudo. Se é de dia, deita-se pela janel-la fora; e, para sobremeza de um dever cum-prido, tem-se um divertimento, que é ver vol-tear nos ares aquellas borboletinhas brancas originadas todas de uma odiosa lagarta, cria-da n 'um casulo babado, e cujo desembargo do Paço é vir a ser aranhão.

Adoptado este systema, faz-se constar; e d'ahi por diante, bem asnos seriam os tratan-tes se perdessem, em se cartear com quem os não lê, a sua folha de papel, a sua estampi-lha, a sua preciosa eloquencia, e o tempo que tão ricamente empregam.

A efficácia deste recipe está provada. *

Duranto o Curso Normal que dei nos Pau-listas, causticavam-me com cartas anonymas; respondia-lhes verbalmente, no principio ou no fim da sessão; ellas continuavam, e recresciam. Uma noite disse eu:

Aqui estão duas cartas anonymas recebidas hoje ; nenhuma d'ellas foi l ida: — (e era ver-dade)— mas vão ser respondidas.

E pul-as immediatamente sobre a chamma de uma vella a arder, por entre o estrépito das palmas de todos os espectadores.

— Estas estão respondidas — conclui eu ; — os seus autores, que provavelmente se acham na sala, podem continuar; veremos quem pri-

Obras oompletas de Castilho 101

meiro cança: se elles de escrever, ou eu de queimar.

j Coisa notável! nunca mais recebi uma li-nha anonyma.

Lembra-me que sobre este assumpto j á eu ti-nha escrito um artigo na Revista Universal. A matéria parece-me digna de que faças uma boa digressão.

*

Dizem os physicos ser a inércia uma força natural dos corpos, com que elles resistem a mover-se, quando quedos, ou a quietar-se, quando em movimento. A minha alma tem essa força dos corpos: resiste quanto pode á mudança, não só da quietação para o movi-mento, mas também do movimento para a quie-tação. Esta segunda parte, que parece menos intelligivel, tenho-a averigado muitas vezes.

Quando ando com trabalhos didácticos, re-pugna-me pensar em versos ; quando faço ver-sos, desadoro com a lembrança de passar pa-ra a prosa. Passo oito dias deitado, e passarei quinze e trinta sem uma veleidade de sahir ; e passarei seis mezes sem desejo de me reco-lher. Esta inércia das duas especies, e applica-da a quasi tudo, é que me tem dado uma certa reputação de inconstante e inconsequente.

O que mais é para notar, é que, não tendo eu aproveitado senão a parte mínima do meu tempo para producção literaria, pois dedu-zidos os quinhões dos trabalhos prosaicos, dos doutrinaes, e dos impedimentos de toda a es-pecie, bem pouco é o que vem a sobrar, eu tenha todavia escrito tão alentado numero de obras como as que estão impressas, em volu-

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108 Emprwa 3a Historia de Portugal

mes e em jornaes ; não falando nas inéditas, e nas correspondências, que, se algum dia se colligissem, não dariam já hoje menos (nem, aqui para nós, seriam talvez muito menos im-teressantes) que as dé Voltaire.

X L I

O meu actual retiro na Lapa.

Logo que me convenci da inutilidade, da inconveniência, do grande prejuiso mesmo, que havia para mim, em teimar na utopia de mostrar praticamente, por via de um Collegio meu, o como se devia fazer o ensino e a educação, tomando por bases fundamentaes a intelligencia e a brandura, isto é, as duas mais bellas e naturaes coisas que ha no mun-do, a luz e o amor, senti-me de veras cançado, não tanto do exfôrço de criação mental, que fora muito, das lidas escolares, que eu proprio exercia quotidianamente desde a madrugada até ao sol posto, e dos sérios cuidados de uma admi-nistração quasi sem meios, como dos desgostos contínuos que de toda a parte me suscitavam, o ramerrão (que é uma omnipotência), e os mestres e directores das escolas e collegios communs (que são os seus ministros).

A tudo resistira eu pertinaz, cerca de tres annos.

#

Eis aqui o que a este proposito encontro nos àpontamentos:

Obras completas de VastUhò 109

«Quando estavamos para ir de S. Miguel para o Rio, e viemos para Lisboa, continuan-do o curso que havia dado ás minhas ideias para a civilisação, e entendendo que a instruc-ção e educação se deviam dar por modo mui-to diverso do que em geral se costuma, fazen-do do entendimento caminho para a memoria, e do praser o vestíbulo'para o estudo, em-prehendi a fundação de um Collegio: o Pór-tico.

«Abriu-se em Outubro de 1850 no palacio da rua dos Machadinhos. Trasladou-se em 52 para a rua dos Doiradores; de lá, n'esse mesmo anno, para o palaeio Sarmento á Es-trella, onde durou perto de um anno.

«O que devia dar vida a este estabeleci--mento, matou-o: o fundador e director decla-rava em tudo guerra ao ramerrão; succumbiu. E ' ahistoriade todos os innovadores. Foi ali, que elle encetou, com admiraveis resultados, a refor-ma philosóphica do ensino do latim. O livro, on-de esse systema, natural e ao mesmo tempo en-genhoso, fruto de muito trabalho, estudo, e experiencia, se acha explanado, é offerecido pelo autor á Academia Real das Sciencias de Lisboa, pela qual deverá ser impresso.»

*

Foi a minha torresinha de Babel arrojada e ambiciosa na traça, mas fadada a não vin-gar, porque fora emprehendida em menoscabo de uma divindade, a mais possante -das divin-dades terrestres: o preconceito universal petri-ficado pelos séculos. Obra que ninguém che-gou a ver senão em espirito, e de que apenas

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restam, como pedras soltas e meio desbastadas, o j á citado Methodo de latim, o Methodo por-tuguez, que ahi se desenvolveu na prática, o melhor ensino da Versificação, e o único racio-nal da philosophia da Linguagem, posta no lo-gar da Grammatica nonsense cunhada na me-moria com o balanceiro da férula.

Havia, com effeito, em tudo isto rasões de sobra para me sentir cançado, rendido, preci-sado de me refocillar n'um bom remanço, esque-cidas ou afugentadas as importunas imagens do passado sonho.

#

A Fortuna, que me devia uma compensa-ção, tirou d'essa vez a venda dos olhos, pro-curou, descobriu, e offereceu-me uma casinha tal qual eu mesmo a haveria riscado para o in-tento. E' esta, no beco do Norte, á Lapa, entre pateo e quintal, sem visinhos por cima nem por baixo, composta de rez do chão e um an-dar único, com muitas janellas sobre o quin-tal para o sul, e algumas sobre o páteo para o poente.

O bairro merece o seu nome de Buenos-ayres. O Tejo saúda-nos lá de baixo. Estron-do de carroagens e pregões não nos incommóda. Para animar o quadro, temos patos, gallinhas, pombos, rolas, e crianças; um cão, um gato, um papagaio, e um saguim; um tanque, arvo-res, roseiras, e parreiras; muito sol, grilos no tempo d'elles, e uma óptima livraria.

E ' um suburbano delicioso; é uma viven-da aldeana, que parece ter vindo espreitar a cidade, mas sem se atrever a entrar para den-tro. Aqui permaneço, com animo assente de

Obras oompletas de Castilho 101

não desertar, ha j á hoje cinco annos. Aqui me levanto tarde, e me deito tardíssimo, gosandO não obstante, e & despeito das regras hygieni-cas," óptima saúde em mim e em todos os meus. Aqui trabalho muito, ou mandreio muito. Aqui, emtim, estou livre d,í ser visita-do, salvo de longe em longe por algum amigo verdadeiro, e mesmo com um bom pretexto para eu não visitar.

Se alguma r.ira vez vou á cidade, como o Tityro de Virgilio, a quem o Melibeu pergun-tava

Eque tanta fu.it Rumam tibi causa viden íif

ê só para o theatro italiano, de que tu ahi me tornaste apaixonado, e onde nunca falto, ou para o theatro francez em Maria II , quando o ha. Em passeios, Marrares, e pasmatórios não me pilham senão uma vez na vida. ao menos como explorador (esta é a pura verdade) para comparar, e, pela comparaç to toda em favor da Lapa. me podei' repetir a mim mesmo, cada vez mais convicto:

.. Deus nnbis hm •. o/ia fecit.

Esta casa não é ainda exactamente a que eu, em quanto formava projectos, debuxava em espirito para meu definitivo e ultimo refu-gio. Faiíam-lhe muitas condi j f íes:

a 1 . '—é nào ser própria; a "2.a—é que, ainda que própria fo-se, care-

cia de reedificada, e não valia o custo, pois

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112 Empresa, da Historia de Portugal

está caduca. Tem cento e um annos. Não se parece com os preconceitos, que se reforçam com a velhice.

Depois, está riscada prosaicamente; e eu n'isto de domicilio para um poeta entendo que o bom-gôsto é uma condição essencial; e tenho a presumpção de que ninguém havia de edifi-car (sem grande dispêndio) vivenda mais vis-tosa, mais commoda, mais de apetite, do que eu, se não estivesse em fortuna muitos furos a baixo do Ariosto, que, extranhando-lhe um amigo, creio que foi o Cardeal d'Este, o ter edificado para si uma baiuca mal estreada, elle, que tão soberbos palaeios havia erigido no seu poema, lhe respondeu:

—Custa menos a ajuntar palavras, do que pedras.

No prologo, que se chegou a imprimir, do meu Presbyterio da montanha, está, se bem me lembra, alguma coisa menos mal escrita sobre o encantamento que eu punha em ser proprietário de uma vivendasinha campestre a meu modo.

O Marcial enumera, entre as clausulas da vida feliz, res non parta sed relida. Eu enten-do pelo avesso non relida, sed parta.

Um economista politico já me disse que este furor que eu tinha de dormir sobre um torrão a que chamasse meu, e entre paredes a que chamasse minhas, era uma estultícia, porque, segundo os aphorismos da sciencia lá d elle, o torrão e as paredes, cujo usufruto eu pagava com o meu dinheiro, eram meus. Não o mandei bugiar. por civilidade.

Emfim: uma vez que já não posso ter aquelle gáudio supremo das minhas ambições de toda

Obras completas de Castilho 113

a vida, hei-de fazer muito por me conservar n'esta choupana, apesar das paredes rachadas, e das táboas do solho a dançarem com demen-cia de velhas.

Antes me quero aqui, do que no palacio da Ajuda, que é longe de mais, ou na melhor casa do Rocio, que é demasiadamente coração da Babylonia. Aqui estou perto da cidade que serve, e longe da cidade que importuna. So-bretudo, respiro dos literatos que falam, por-que dos literatos que escrevem me descarto eu já ha muito tempo. Podem imprimir e reimprimir á sua vontade, que os não leio.

X L I I

As minhas medalhas de oiro. I.4 — A de S. Miguel.

Quer tu hajas de dizer que não, quer con-cordes, quer discordes, a pura verdade é esta: que a Torre-e-Espada e a Rosa não teem si-gnificação ou valia, que se compare- á das mi-nhas cinco medalhas de oiro.

Vou t'as descrever, e historiar quantum sa-tis de cada uma.

A l . a é da Ilha de S. Miguel. Por um lado tem: A Sociedade dos Amigos das Letras e Ar-tes em 8. Miguel a A. F. de Castilho. No re-verso, uma Minerva com todos os seus attri-butos de artes, e por cima Se queres podes. Essa medalha foi-me enviada para Lisboa de-pois da minha partida de S. Miguel.

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11* Emproa da Historia de Portugal*

*

Cabe aqui uma digressão. A 1> de Agosto de 47 -fui para S. Miguel,

na escuna Michaelense, procurar fortuna, por-que em Portugal não tinha meios para supprir a minha numerosa familia. Permaneci ali tres annos, durando os quaes tive muitos desgostos e pouco de fortuna.

A Sociedade de Agricultura nomeou-me seu Socio, e cometteu-me a redacção do seu jor-nal, a que satisfiz, coadjuvando-me para ahi efficacissimamente o meu grande ainigo e com-padre José do Canto, um dos homens de mais saber e gosto d'aquelle Archipelago, e que perfeitamente justifica a parcialidade que a fortuna tem para com elle. E ' o rico mais be-néfico, e de melhor gosto, de quantos tenho conhecido.

A Sociedade promotora da Agricultura, tra-tando-se n'uma sessão da necessidade de der-ramar pela povoação campestre muitos conhe-cimentos uteís de Agricultura, e de fundar pa-ra isso comícios ruraes, inclinava-se toda pa-ra que se começasse pela fundação de escolas primarias.

Ponderei eu, que, antes de tudo, convinha estudar seriamente se o ensino primário não poderia ser encurtado, simplificado, aperfeiço-ado de alguma sorte; que me parecia que sim, e o entrevia vagamente.

Pediram-me que examinasse essa questão; tomei-a a mim; procurei e scismei muito; dei com o Methodo de Lemare; imitei d'elle o que era imitavel; transformei o que exigia trans-formação; desenvolvi-o; accrescentei-o nota-

Obras completas de Castilho 115

velmente; e esse opusculo é o que, com ap-provação do Conselho superior de Instrucção publica do Reino, se imprimiu em Lisboa com o titulo de Leitura repentina no anno de 1850.

Esse Methodo, quando a experienci-a pro-pria,me amestrou, cessou de ser Lemare, tor-noiiíse original, e mereceu sahir na 2.a edição de 1853 j á com o titulo de Methodo Castilho. Reformado ainda, e já completamente nacio-nalisado da 2." para a 3.% sahiu com a deno-minação de Methodo portuguez Castilho em. . . . Finalmente no anno d e . . ! . . teve a 4.a edi-ção, de uma incontestável superioridade sobre as precedentes, edição de mil exemplares, of-ferecida gratuitamente pelo autor á Associação promotora da Educação popular, de Lisboa, para ajnda dos seus gastos.

#

Mas, voltando a falar de S. Miguel (porque esta historia de S. Miguel ha-de ser tratada á parte): fundei ali uma Sociedade, que se in-titulou dos Amigos das Letras e Artes em S. Miguel. Essa Sociedade fundou, e mantém a expensas suas, numerosas escolas de ler, es-crever, e contar, na cidade de Ponta-Delgada; e pelas aldeias escolas nocturnas regidas gra-tuitamente por Socios; escolas, que em actos públicos e solemnes provam por exames a sua proficiência e utilidade.

Nos tres annos da minha residencia ali, além do Agricultor Michaelense, compuz vá-rios livros: taes como Noções rudimentaes para uso das escolas da Sociedade dos Amigos das Letras e Artes, livrinho que fiz imprimir

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em proveito exclusivamente da mesma Socieda-de, Felicidade pela Agricultura, o drama Ca-mões, o jornal A Verdade, sem falar dos tra-tados de Versificação e Mnemónica, escritos lá, mas impressos posteriormente em Portugal.

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Encarregou-me a Sociedade dos Amigos das Letras de vir requerer em seu nome a conces-são da cerca do extinto convento das Freiras da Conceição, de Ponta-Delgada, e as ruinas da egreja de S. José, o velho, que lhe estão adjacentes, para ahi se edificar, segundo a mo-tivada proposta que eu mesmo lhe fizera, e que a Sociedade approvou unânime, uma for-mosa casa para as escolas literarias e indus-triaes, para hibliotheca, para gabinete de Phy-sica, sessões, etc. Este solar das Letras e Artes tinha de ser um brasão para aquella cidade; não só por ser util, mas até pelo con-vidativo do seu aspecto, e pela amenidade do seu jardim, que ficaria sendo um passeio pu-blico para a terra, além de um campo para exercícios gymnasticos dos alumnos.

A ideia do autor do projecto era que a So-ciedade só então se poderia julgar certa de permanecer, quando, tornando-se proprietária de todo o seu preciso, se houvesse agarrado ao solo com raizes de pedra.

Essa ideia aprouve de tal modo, que de toda a parte rebentaram espontâneos os offe-recimentos, j á de dinheiros, j á de madeiras para a auspiciosa edificação, logo qne o terre-no se conseguisse.

Como, porém, para o edifício, tal como se

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queria, e para a sua mobilação, e para a com-pra da livraria e de instrumentos de Physica, e para o árranjamento de um theatro, que tam-bém ali devia existir, era evidente que taes do-nativos não podiam bastar, completei eu a ideia da minha proposta, com a de mandar a Sociedade uma deputação do seu grémio correr todas as freguesias da Ilha mendigando para este fim a aceitação de esmolas, não só de dinheiro, mas até de generos.

Para esta mendicancia, que devia ser feita com solemnidade, e ao som da musica da So-ciedade, e por pessoas das mais distintas, para esta nobre mendicancia, digo, é que eu fiz o meu Hymno da caridade, publicado de-pois, com musica do Arthur Frederico Rein-hardt, nas Estreias poetico-musicaes para o anno de 53.

*

Vim pois a Lisboa requerer o referido ter-reno. O que n'isso se passou, está na Feli-cidade pela Agricultura, da qual muitíssimo se pode aproveitar para esta biographia. O que lá não vem, é que a concessão do terreno foi depois feita (quando j á se não esperava) por movimento espontâneo do Ministro da Fazenda Marino Miguel Franzini.

O solar das Letras e Artes, porém, apesar de tantas rasões, e de tanta possibilidade para existir, parou em nada, apesar de ainda hoje se conservar a benemerita Sociedade dos Ami-gos das Letras e Artes, e por ella muitas es-colas de leitura pelo Methodo portuguez.

O tal terreno, e as ruínas da egreja, foram concedidos em conjunto á Sociedade de que

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falamos, e á Promotora da Agricultura Mi-chaelense, que também o havia requerido. Esta ultima aproveitaria a parte agricultavel; a primeira, o edifício.

*

No grémio da mesma Sociedade se enceta-ram, por proposta minha, prelecções publicas de Geometria applicada ás artes, de Hygiene, de Chimica ao alcance do povo, de Versifica-ção e Poesia, de Desenho, de Francez, e de Inglez.

Houve mais, também por indicação minha, uma esplendidissima Exposição de industria in-sulana e estrangeira. Houve saráus poetico-musicaes magnificos celebrados no theatro.

Além d'isso, fundei ali uma typographia minha; com o que, se principiou a aperfeiçoar a impressão em Ponta-Delgada, arte tão atra-zada antes da minha ida para lá, que as pri-meiras provas que se tiravam eram logo de prelo, e nenhum compositor queria crer na possibilidade de as tirar á mão.

Finalmente: fiz encetar a gravura em ma-deira por filhos da terra, e sem mestre. Ten-tei ainda a lithographia. Fiz exfórços inúteis para que sahisse um jornal literário, poético, e artístico, A Sereia.

Tudo isto explica assaz o por que lá me fizeram o Hymno de Castilho, que tocavam em toda a parte. N'um saráu me oífereceram uma coroa de loiros com fitas bordadas de o iro ; e depois da minha retirada, não só me nomearam Presidente honorário e vitalicio da Sociedade dos Amigos das Letras, porém me enviaram a medalha de que tratamos.

Obras oompletas de Castilho 101

Ainda para a sessão legislativa passada mandou a Sociedade, pelos seus Deputados, um documento, em que dava testemunho, pe-rante o Corpo legislativo, das vantagens ahi obtidas pelo Methodo portuguez, para que essa noticia podesse servir de luz quando se tratasse da promettida reforma dos estudos.

,íQue valem, ou que significam, as Gran-Cruzes, comparadas com uma tal medalha?

Na Felicidade pela Agricultura, e creio que nas Estreias, tens com que completar este capitulo, se o achares conveniente; eu não faço questão ministerial d'isto, nem de coisa ne-nhuma.

X L I I I

2,a-Medalha. - A de Lisboa.

Tem no anverso um pelicano picando o peito. Por baixo d'elle: A. F. de Castilho; e no exergo: Offerta dos alumnos do Curso Nor-mal. 185?. No reverso tem dois ramos: um de carvalho, o outro de loiro, formando coroa; e dentro n'ella o mote Se queres podes. Estas são as palavras que dei por divisa á Sociedade de S. Miguel, e de que faço commummente o thema dos meus sermões civilisadores. Conse-gui tornal-as proveitosas, e bom é.

Este Curso normal de que a medalha résa, foi o dado nos Paulistas no ultimo trimestre de 53 aos mestres primários da Cidade, quasi todos, e alguns de fora.

Além d'esta medalha, foi-me n'esse Curso offerecido, em noite de saráu, o meu retrato bordado a seda pela poetisa e mestra primaria

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112 Empresa, da Historia de Portugal

D . Maria José da Silva Canuto, e em três diversas noites, também de sarau, tres co-roas: uma offerecida por uma senhora em nome das mães portuguezas; é de loiro; outra de perpétuas ornada de fitas das cores portu-guezas e brazileiras, offertada pela mesma Canuto de parte da sua escola, e symbolisando a fraternidade dos dois Paizes a que o Methodo promettia melhores futuros; a terceira de flo-res, tributada pelas meninas do Asylo da Lapa; tudo isto acompanhado de discursos e versos.

*

Este Curso foi o primeiro verdadeiramente Normal, porque, ainda que o curso popular, que eu n'esse mesmo anno havia dado no pa-lacio Sarmento a muitissimos centos de operá-rios, de rapazinhos rôtos, descalços, enfarrus-cados, pretos, criados de servir, emfim a gen-te de todas as castas, fôra immediatamente se-guido de outro, chamado Normal, para Of-ficiaes inferiores da Guarda Municipal e de outros corpos, não me atrevo a dar-lhe o no-me de Normal, pela irregularidade da frequên-cia dos militares, pelo pouco tempo que durou, e pelo imponderável do fruto que produziu.

Mas esse Curso do palacio Sarmento fôra muito brilhante, muito fecundo, ainda que mui-to tempestuoso.

Dos saráus d'elle nada te digo, porque ain-da tu apanhaste alguns. Ahi tocava-se e can-tava-se todas as noites o meu Hymno do tra-balho, executado muitas vezes por uma mu-sica marcial, pertencente a uma sociedade de operários chamada «de Minerva», e que me

Obras completas de Castilho 113

festejava com todas as demonstrações de af-fecto, como amigo prático do Povo, qual me via ser, e não tribuno de palavreado, como tantos, que só o são em quanto "se não podem fazer aulicos.

Foi também n'este Curso popular, que se estreou outro hymno feito a mim, tudo, musi-ca e palavras pelo nosso compositor, que eu então conhecia apenas, e boje é meu amigo, Francisco Antonio Norberto dos Santos Pinto. Era já o segundo hymno que me faziam, sem eu ser Rei.

X L I Y

3.a Medalha.—A de Leiria.

Tem no anverso um livro engrinaldado de loiros, e no exergo: O Centro promotor de Ins-trucção primaria no Districto de Leiria. — No reverso lê-se: A A. F. de Castilho o Centro e os seus alumnos em Leiria. —Abril de 1854.

O Centro promotor de Instrucçào primaria no districto de Leiria era uma coisa tão boa, que não podia durar muito. Teve por funda-dores principaes:

D . Antonio da Costa de Sousa de Macedo, filho do Conde de Mesquitella, moço de gran-de saber e talento, formado em Direito, escri-tor de mérito relevante, tanto em Sciencia co-mo em Literatura, Deputado na Camara ul-timamente dissolvida, mas n'aquelle tempo Secretario geral do Governo Civil de Le ir ia ; 1

1 E' engraçado notar que D. Antonio da Costa, al-guns annos depois tào conhecido pelos seus cargos, e

VOL. LXIV 9

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Antonio Xavier Rodrigues Cordeiro, tam-bém formado em Direito, Administrador do Concelho de Leiria, escritor historico e poeta, e que dera em Leiria, á sua custa, e com grande trabalho, dois Cursos de Leitura repen-tina, nas noites de dois invernos rigorosos, mo-rando elle a uma légua da cidade;

José de Barbosa Leão, facultativo militar, moço de muito saber, liberal de convicção e de obras; e

o proprio Governador Civil, Commendador Antonio Vaz da Fonseca e Mello, Portuguez antigo, homem crente no trabalho e no futuro, e Chefe administrativo como ha-de custar a encontrar outro.

Essa gente, só á sua custa, e á de alguns poucos amigos que se renderam á sua excita-ção, e quasi sem amparo algum do Governo, alugou umas casas grandes, mobilou-as e abas-teceu-as para escolas, illuminou-as, e proveu-as de mestres gratuitos de ler e escrever pe-lo Methodo portuguez, de Doutrina, de Arith-metica, de Grammatica, de Geographia, de Desenho, e de Francez. Este era o Centro promotor da Instrucção no Districto. Para ali affluia todas as noites (e também era o único divertimento da terra) tamanha multidão, que se enchiam as salas. Em todas ellas se traba-lhava com ardor; parecia uma Universidadesi-nha em miniatura.

principalmente pelas suas obras, precisava então ser qualificado assim, para o apreciarem. Tinha em 1858 trinta e quatro annos, e ainda pouco produzira; o seu periodo de fecundidade veio passados tempos. Foi um dedicado amigo e discípulo de Castilho.

Os EDITOBES

Obras oompletas de Castilho 101

O Centro recebeu-me com os braços aber-tos; o Governador Civil, com a Junta do Dis-tricto, vieram comprimentar-me em acto so-lemne; D . Antonio hospedou-me, e coadjuvou-me sempre nos meus trabalhos, que se realisa-ram na principal sala do mesmo Centro, tendo eu por ouvintes todos os mestres do Districto, que o Governador civil convocara, abonando-se a muitos, e abonando elle mesmo da sua algibeira a alguns, os gastos da jornada e os da residencia em Leiria.

Curso mais aproveitado nunca o tive. Criei ahi uma grande ninhada de bons mestres; gra-ças porém aos manejos do apaixonadissimo Com-missario do Conselho Superior n'aquelle Dis-tricto, que usou e abusou da sua influencia sobre os pobres homens, um apenas (coisa in-crível), apenas um perseverou fiel, intrépido, incorruptível, no novo ensino, de que tem sido um grande sustentáculo, até como escritor.

O Commissario já lá vai ; mas este profes-sor, José Joaquim Serra, teve ainda a glória de o obrigar a confessar, depois de um exame mais que severo, barbaro, que elle fez aos seus alumnos, que o Methodo era realmente coisa grande.

Quando eu não tivesse adquirido mais do que este Serra, j á dava por muito bem empre-gadas as minhas fadigas em Leiria; mas, de mais a mais", conservo saudosas lembranças d'aquelle Curso, porque nos cinco normaes que dei, quatro em Portugal e um ahi, foi este o único isento de interrupções, de mexericos, e dissabores; contribuindo muito para isso a pre-

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sença, quasi todos os dias, do Governador ci-vil ; do Secretario geral todos os dias; e todas as noites, n'outro Curso aos rapazinhos, a do Administrador do Concelho Rodrigues Cor-deiro.

*

Também aqui houve uma vez por semana saráus poéticos e músicos, frequentados a final até por senhoras, o que, para aquella terra, não foi pequena façanha. Posso dizer que rea-lisei a obra phantasiada por Francisco Rodri-gues L o b o : a Corte na aldeia.

Os poetas éramos poucos, mas faziamos o que podíamos. Éramos : eu e o meu filho Julio, que me tinha acompanhado, o D . Antonio e o Cordeiro, o Augusto Luso, e mais algum curioso.

Foi no ultimo d'estes saráus, que D . Anto-nio, como Presidente do Centro, me lançou ao pescoço a medalha, com um bello discurso, em que juntamente me offereceu, em nome do mesmo Centro, o diploma de seu Primeiro So-cio Honorário.

#

Hoje Leiria não tem já nem aquelle Gover-nador Civil, nem aquelle Secretario Geral, nem aquelle Administrador do Concelho, nem aquel-le Centro promotor, nem a escola do Cordeiro, que, desde que o fizeram Deputado ás Cortes passadas (e nem isso mesmo j á é), abriu mão de taes occupaçÕes. Do seu brilhante ensino ficou porém um monumento; e é um Relatorio dos sous trabalhos escolares enviado por elle ao Governador Civil, e pelo Governador Civil ao Conselho Superior, que havia requisitado

Obras completas de Castilho 125

informações na matéria, mas que nunca fez obra de verdade e de patriotismo, nem por esse nem por outro algum dos testemunhos que rece-beu, favoraveis á regeneração da escola, alar-deando aliás nos seus Relatorios ao Governo o que, em sentido contrario, lhe diziam mestres rábulas, tão asnos como elle, tão marotos como elle, e que, por mandreice, tanto como por es-tupidez, preferiam a tudo quanto podesse vir aquillo com que se tinham criado.

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4.3 Medalha. — A do Porto.

Mostra no anverso dois meninos lendo, sen-tados ao-pé de uma arvore. No exergo lê-se: Os alumnos do Carso normal dado no Porto; e no reverso: A. F. de Castilho.—Setembro de 1854.

Este Curso começado a 1 de Setembro de 54, e encerrado no ultimo d'este mez, foi o mais dessaboroso e o menos próspero que eu nunca dei. Conspiraram para isso diversas causas. O Secretario geral servindo de Gover-nador civil, , cumpriu com pouca vontade, e mal seguindo (ainda hoje o suspeito) as instrucções que do Governo re-cebêra para me coadjuvar. Os mestres do Dis-tricto não foram tão rigorosamente intimados para comparecerem, como era necessário; não se lhes concederam facilitações e ajudas de custo. Os Commissarios do Conselho Superior fizeram com elles o seu officio de sizaneiros. De mais, aquella Província, empapada em jor -

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naes malignos e asnaticos, tinha tomado da leitura de alguns d'elles, dos que menos cré-dito deviam merecer, mas que a sua maledi-cência tornava mais populares, uma opinião geral e profundamente avessa ao Methodo

Tinha-se feito obra no juizo público, segun-do é e ha-de ser sempre costume, pelos dicho-tes e chufas de quatro bandalhos corresponden-tes de aluguel dos snrs. redactores, que fala-vam do que não sabiam, do que nunca tinham estudado nem visto, mas contra que era fácil descambarem, de vez em quando, sua pulha de arrieiro, ou sua sentença de papalvo. Era entre as officinas d'estes periodicos, era mes-mo n'uma sala da Associação Industrial Por-tuense, que para esse fim me offerecêra, e por baixo da qual trabalhava o prelo de um dos taes publicistas de obra grossa, que eu tinha de dar,-que eu dei, as minhas prelecções, com as portas francas a amigos e a inimigos indis-tintamente, segundo o meu costume.

Como o Curso se havia de reduzir todo áquelle mez, trabalhei sem descançar, todas as manhans e todos os serões, excellentemente coadjuvado por dois bons mestres: José de Ma-cedo Araujo Júnior, estudante da Polytechnica do Porto, e que viera a Lisboa, mandado pela Associação Industrial, aprender comigo o Me-thodo, para lá o ir ensinar, como ensinou, não só a populares e operários, mas também a muitos curiosos, que das Províncias do norte acudir?m a escutal-o, e sahiram bem instruí-dos ; e além d'este Macedo de Araujo, um Fran-co, discípulo também d'elle, e que, mais tarde, foi encarregado, pela Camara Municipal do Porto, de dar outro Curso pelo meu Methodo.

Obras oomphtds de Castilho 127

Trabalhavamos pois, os tres, quanto se po-dia trabalhar, apesar de que o número escaço dos mestres-alumnos. a irregular frequência e ruim vontade de não poucos d'elles, não era muito para nos animar. A isto acrescia que parte da Imprensa nos não auxiliava, e uma folha, aquella cujos compositores e collabora-dores estavam ouvindo o nosso trabalho, todos os dias nos incommodava com as suas imper-tinências semsabores. A final, lá se fizeram os exames; lá se expediram diplomas de habilita-dos aos que pareciam merecel-os, ou não os desmerecer de todo ; e elles recolheram-se ás suas terras, para ensinarem quasi todos pela antiga, sem mesmo experimentarem a novi-dade ; no que os asnos dos Commissarios do Conselho demasiadamente descobriram o seu jogo .

Triste porém como era, e por isso mesmo que era triste, este Curso não devia ser privado de saráus; teve-os, e muito brilhantes, porque o Porto actualmente é uma terra literaria, e em que se contam poetas de muito mérito, alguns até de muitíssimo, como Alexandre Braga, Soares de Passos, Faustino Xavier de Novaes, etc. Aqui, como em toda a parte onde se fi-zeram saráus artísticos, havia um verdadeiro furor de assistir a elles. Nas salas e suas avenidas não cabia metade dos curiosos de um e outro sexo.

D'estes saraus, o ultimo, celebrado na bella e espaçosa sala da Assemblêa Portuense, foi para ficar lembrando aos que o presencearam, pela quantidade de senhoras, pela musica, e pela abundancia de poesia.

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Foi 11'esse acto, que uma menina de oito annos, D . Guilhermina de Macedo de Araujo, irman e discipula que fôra de leitura do já mencionado José de Macedo Araujo Júnior, criança vivíssima, e muito galante, vindo col-locar-se de pé junto á minha cadeira da presi-dência. e recitando-me de cór um bonito dis-curso. me offereceu e lançou ao peito, como emissária dos professores meus alumnos, e por entre uma salva de palmas, a medalha supra-descrita.

*

Houve n'este sarau um incidente curioso: Augusto Luso, de quem já falei, Professor

no Lyceu de Leiria, achava-se já então a fe-rias no Porto, d'onde é natural. Henrique Lu-so, seu irmno, ali residente, compôz com elle, sem dizerem nada a ninguém, uma poesia em diálogo, que n'essa noite se recitou, ou antes se representou; representaram-n-a elles com a maior naturalidade.

E ' um diálogo entre dois mestres, cada um sectário de um dos Methodos antagonistas; Augusto era pelo moderno, Henrique pelo an-tigo. Começou Augusto, como poeta, recitando o elogio do invento; quando, lá de um canto da sala, o interrompe o irmão, contradizendo-o, e chasqueando; o que dá origem a um debate entre os dois. levantando-se o Henrique do seu logar, e vindo para defronte do seu adversá-rio, mas recitando um e outro por tal arte, que pareceu estarem conversando'.

O curioso foi, que a piaior parte da gente, que os não conhecia, tomou a coisa por de veras; e alguns dos professores fieis da nova

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doutrina, enfurecidos com a profanação que se lhe intentava no dia do seu triumpho, se levantaram bramando para irem ás ventas ao temerário.

Nunca houve coisa mais bem calculada, e que mais fizesse rir.

Coisas d'estas, fora da sua sezão, perdem todo o valor; entretanto, ahi vai o diálogo, tal como depois foi impresso, mas ainda com asperezas, resultado da pressa com que foi for-jado.

Diálogo entre um mestre antigo e um moderno.

MODERNO Thesoiro immenso, que jamais roubado pode na vida pelos homens ser, és, ó estudo, cujo fruto amado

não amarga ao comer. Tu és o balsamo, que vens dulcíssimo ás mentes áridas frescor trazer.

Hoje, que a base do subido estudo um génio singular gostosa fez, mudando o mal em bem, o nada em tudo,

pelas letras, talvez; ,jquem chamar-te áspero pode, ó benéfico suave Methodo tão portuguez?

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Emprega 3a Historia de Portugal

ANTIGO ;Ora ahi vem o repentino a fazer-se agora fino, gabando-me as cantarolas, e aquellas cherinólas! Na verdade causa dó. i Já não prestam as escolas em que aprendeu minha avó ! . . .

MODERNO Ora agradecido, amigo; l quem foi que falou comsigo? <jp'ra que veio interromper-me ? Ora bem; queira attender-me; não dê coice sem ter p é ; mas sempre queira dizer-me: <;quem é o senhor? ,;quem é ?

ANTIGO Olhe p'ra mim, seu poeta; en não sou nenhum pateta; digo-o mesmo á bocca cheia; esta verónica feia que está vendo, meu senhor, saiba que é na minha aldeia a de um hábil professor.

MODERNO ,?Sim? aceite o meu respeito; mas diga se, com effeito, este Methodo o, enfada. Diga; não lhe custa nada; as rasões venham de lá; ou se o outro mais lhe agrada, por ser o do Bê a ba.

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ANTIGO Não senhor, não é por isso; mas é porque este toutiço não entende a tal história. ,;Pois como é que uma memoria ha-de taes coisas reter? je então sem palmatória p'ra na cabeça as metter!

MODERNO Deixe-se d'isso, collega. D a palmatória o que allega é falso; d'ella dê cabo. <>Pois pode ninguém dar gabo a tão barbara invenção? Foi invenção do diabo; são restos da Inquisição.

ANTIGO Mas olhe que era um respeito, quando um professor perfeito como eu (não sei se lh'o diga) fazendo inchar a barriga dizia com todo o gaz pegando na tal amiga: «Dê cá a mão ó seu rapaz.»

MODERNO Mas ao Methodo tornando, diga o que viu d'elle, e quando, e se d'elle faz ideia.

ANTIGO Isso não, pois lá na aldeia só tenho ouvido falar

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que na aula a patuleia não faz mais do que cantar.

MODERNO ,>Mas d'elle nunca viu nada?

ANTIGO Fui v e l - o . . . mas não me agrada, que nada d'elle entendia.

MODERNO tornou lá outro dia?

ANTIGO Era melhor; ;outra v e z ! . . .

MODERNO <>E que tempo lá estaria?

ANTIGO Um quarto de hora talvez.

MODERNO ^E com isso já resolve?! jEis como tudo se envolve! «Não presta; não quero tel-o, porque nada o entendi.» jOh! /Tosquia de um camelo! [quantos ficaram sem t i ! . . . ^E se vantagem tivesse tão grande, que o convencesse? . . .

ANTIGO Era o mesmo; j á lh'o disse. Não presta tal modernice. Hei-de pôr lhe a calva ao leo.

Obras completas de Castilho 138

Pois ,jnão acha uma tolice chamar a um P mastareo?!

MODERNO Não sei que mal isso tenha, quando a servir assim venha para ajudar as memorias.

ANTIGO Meu caro, sem palmatórias nada se pode aprender.

MODERNO Ora deixe-se de historias, e oiça o que lhe vou dizer. Se tomar os meus conselhos, verá que os methodos velhos perdem muito da bondade. N'este a superioridade em pouco tempo ha-de ver. Estude-o bem, e a verdade do que digo ha-de appar'cer. Verá, em tempo bem breve o bem que se lê e escreve, com branduras e consolos.

ANTIGO jOh, homem ! ,mias sem dar bolos como é que pode isso ser?

MODERNO ,$E como pode haver tolos que não n-o queiram saber?

ANTIGO Ora é verdade: eu devia

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Empresa da Historia de Portugal

ver primeiro o que dizia; devia ver se é verdade o que dizem na cidade; e d e p o i s . . . . ou sim, ou não; se sim, queimava a maldade; se não, *rapaz dá cá a mão.»

MODERNO Para a escola hoje as crianças correm como para as danças; porém no Methodo antigo fugiam (bem via, amigo) como o demónio da Cruz.

ANTIGO E eu n'isso pequei, e digo que nunca, nunca, o suppuz.

MODERNO <iE você não se arrepende? <>Então é assim que se aprende <;Assim lhes abre a memoria? IAssim os conduz á glória?

ANTIGO Tem rasão: é assim; é assim. Vou pegar na palmatória, e dar seis bolos em mim.

MODERNO ;Ah ! ,)Então j á se convence ?

ANTIGO Pois se tudo isso me vence, eu não quero ser caturra. Deixo isso p'ra a minha burra,

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que onde quer, afucinhou. Pois se elle atirai os rapazes, amigo, façamos pazes; ha-de ser bom; arrumou.

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Os cinco saráus do Porto, isto é as poesias de que se elles composeram, sahiram á luz em quatro folhetos, com o titulo de Saraus poéticos portuenses, publicados em beneficio do Asylo de mendicidade do Porto por J. A. de Freitas Júnior.

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5.a Medalha.—A de Coimbra.

Anverso : o sol a nascer; as insígnias do tempo, ampulheta e foice, quebradas. Exergo : Ao autor do Methodo portuguez. Reverso: uma coroa de loiro e carvalho; dentro: Novembro de 1854. Exergo : Os alumnos do Curso Normal em Coimbra.

*

Duríssima campanha foi este 4.® e ultimo Curso Normal, começado a 18 de Outubro e findo a 18 de Novembro de 54.

Sobre os meus trabalhos em Coimbra, e sobre tudo isto que ultimamente deixo tocado, tens de sobra no Ajuste de contas, que te re-metto, e no Leiriense, que te remetterei se o achar. A medalha foi-me offerecida pelos Pro-fessores meus alumnos.

Os saráus, que eram celebrados no lindo

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Theatro Académico, convertido o palco em sala para os poetas, foram de grande esplendor. Os camarotes eram apinhados de senhoras, len-tes, e estudantes; a platêa de estudantes e pes-soas da cidade. Havia satisfação, e enthusiasmo. Ali vieram de proposito figurar entre os recita-dores: de Leiria o Rodrigues Cordeiro, de Con-deixa o João de Lemos. Transcrever-te-hei aqui a poesia d'este, que faz, de algum modo, pendant ou correspondência symétrica á Lua de Londres:

COIMBRA.

(RECORDAÇÕES).

Coimbra, terra de encanto, do Mondego alegre flor, venho pagar-te em meu canto tributo de antigo amor. Não m'o enjeites por que é pobre, por que tens o canto nobre do Cantor da linda Ignez. Não m'o enjeitos desdenhosa, não, que est'alma saudosa se inflamma ao ver-te outra vez.

Sou quasi teu filho; amei-te da vida no alvorecer; de Minerva o sacro leite por tuas mãos vim beber. Foi n'estas margens virentes, que co'as azas incipientes meu estro voar tentou; foi aqui, que me sorria o mundo, a vida, a poesia; sou quasi teu filho, sou.

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Andei lá por longes terras; j tantas cidades que v i ! ; outros climas! ; outras serras! e ás vezes scismava em ti. De Londres vi a grandeza; vi o encanto de Veneza; de Paris a seducção; vi de Roma os monumentos; e, mesmo n'esses momentos, foi fiel meu coração.

O Rheno com seus castellos, Vienna, Milão, Berlim, da Suissa os cantões bellos, não me falavam a mim; não falavam como falas, Coimbra, nas tuas galas, que eu sei, que aprendi de cór; não diziam o que dizes n'esse estendal de matizes que tens de ti ao redor.

Se não contas tantas glorias quantas por lá querem tér, és um livro de memorias, que um Portuguez sabe ler. Eu, por mim, n'essa tua fronte, n'essas collinas defronte, no teu rio de crystal, na tua Fonte dos amores, no ar, na terra, nas flores, leio em tudo: Portugal.

Aos que pedirem façanhas de audaz guerreiro valor, tu as podes dar tamanhas,

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Empreza 3a Historia de Portugal

que os faças mudar de côr. Se quizerem da Cidade provas de antiga lealdade, apontas-lhe o teu Martim; tens sobeja altiva gloria; mas não é, não, tua Historia o que só me fala a mim.

Tudo aqui me fala, tudo, d'esse tempo que lá vai, quando nas lidas do estudo tive em cada mestre um pae. Fala-me o sino da torre com um som qne nunca morre nos eccos que a vida tem; falam-me os dias de outrora co'um folguedo em cada hora, com horas que mais não veem.

Lembram-me aquelles passeios lá em baixo no Salgueiral, ou na Lapa dos Esteios, ou no fulgente areal. Lembram-me as idas a Cellas, as suaves tardes bellas passadas da ponte no O, e quando, já n'essa edade, no Penedo da Saudade saudades gemia só.

Nem me ficais esquecidos, antigos sócios de então, que a esses dias volvidos vossos nomes nome dão. Foi vida de irmãos a nossa; aqui o palacio e a choça

'' Obras corriphtas de Castilho

eram lá por dentro eguaes; crenças vivas, rosto puro; olhos fitos no futuro; no amor da Patria, rivaes.

Esta mesma c a s a . . . ;oh! (quantas, quantas lembranças me traz! Palco amigo, tu me encantas co'as imagens que me dás; compÕe-me inteiro o passado, e d'esse viver sonhado deixa-me agora enganar . . . Mas não; logar ao presente, que eil-o se ergue nobremente com loiros novos sem par.

Quaes fomos, sois hoje a esp'rança, mancebos, da Patria a flor, do futuro a segurança, das nossas glorias penhor. Entre vós o rei da Lyra bem vêdes que vos inspira brandindo um facho de luz. Bem vêdes o immenso brilho, c o m que o nome de CASTILHO em nossas glorias reluz.

^ ;Eia, mancebos ! j Avante ! vencei-nos; vencei-nos vós. Seja a Patria triumphante, que é o que importa a todos nós. Tendes crença, fogo, e vida, e tendes a alma despida

i do fogo das vis paixões; ' levae ao mundo essa aurora;

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e sobre os brasões de outr'ora levantae novos brasões.

;Eia pois ! Coimbra seja primavera do porvir; e n'ella, mau grado á inveja, Portugal sempre a florir. [Oh! possa eterno este sólio, este augusto Capitolio das patrias Letras bilhar, que eu, tomado de respeito, eu sempre dentro do peito hei-de seu nome guardar.

Coimbra 25 de Novembro de 1854.

JOÃO DE LEMOS.

#

A Camara Municipal de Coimbra também me obsequiou no que poude, offerecendo-me para o Curso uma sala, de que me não apro-veitei, e illuminação.

N'aquelle Curso approvei crescido numero de mestres que o mereciam, e que ficaram de veras partidarios do Methodo. Entretanto, quasi todos, se não todos (des-graças ás suggestões do Conselho Superior pelos seus Commisasrios) continuaram no pseudo-ensino.

Foi por ver n'essa 4.a prova real, que to-dos os meus exfórços se despedaçavam em espuma contra aquelle penedo, ou penedia, do Conselho, que parei com os Cursos normaes, que aliás haveriam sido tantos como os Dis-

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trictos administrativos do Reino e Ilhas, e haveriam até chegado ás nossas outras posses-sões ultramarinas.

Para o meu commodo melhor foi assitn. Quem perdeu perda incalculável, foi o futuro nacional.

FIM DO VOLUME I

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ÍNDICE

Pag. Advertencia dos Editores 5

CASTILHO FIHTADO POB ELLE PBOPBIO:

I — Nascimento 11 II — Sarampão 11

I I I — Estudo do Latim 12 IV — Estudo da Rhetorica 13

V — Estudo do Grego 14 VI — Estudo da Philosophia 14

VII — Antonio Ribeiro dos Santos 15 VIII — José Agostinho de Macedo 17

I X — Thebaida de Estácio 18 X — Queima dos primeiros versos . . . 20

X I — Conselho de Ribeiro dos Sant03 ao nosso Pae 21

X I I — Os meus dois primeiros criticos: Ribeiro dos Santos e o Pae 23

X I I I — Collegio dos cathecumenos 26 X I V — Paço do Lumiar 27 X V — Ascendentes 32

X V I — Moradas 33 X V I I — Constituição de„20 33

X V I I I — Adriano Balbi 36 X I X — Escultura 36 X X — Morgado de Assentiz 39

X X I —Oiteiros. 41 X X I I — Festas da Primavera 42

X X I I I — Aimê Martin 43 X X I V — Estudos na Universidade 44

X X V — Casas de habitação 44

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144 Empresa da Historia de Portugal

P«g.

X X V I — Bindocci 49 X X V I I — Antonio Galleano Ravara 51

X X V I I I — Saraus poéticos 55 X X I X — Boa memoria 57 X X X — Memoria 61

X X X I — Quesilia á Jurisprudência 62 X X X I I — Amor á Antiguidade 66

X X X I I I — A noBsa viagem projectada 72 X X X I V — Declamação 74

X X X V — Post-scriptum 86 X X X V I — Ainda duas linhas sobre Decla-

mação. Theatro do Salitre 88 X X X V I I — As minhas correspondências com

o Governo 89 X X X V I I I — Génio violento e amoravel 90

X X X I X — Sentimento innato de indepen-dencia 95

X L — Vis trabalhandi, inertia lazaro-nis 100

X L I — O meu actual retiro na L a p a . . . 108 X L I I — As minhas medalhas de oiro.—

1.» A de S. Miguel 113 X L I I I — 2.* Medalha—A de Lisboa 119 X L I V — 3.' Medalha—A de Leiria 121 X L V — 4.' Medalha—A do Porto 125

X L V I — 5." Medalha—A de Coimbra . . 135