cin'surgente: o livro - léo pimentel e sandra nascimento (2012)
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Léo Pimentel Souto, Sandra M. Nascimento
http://amantedaheresia.blogspot.com / http://institutoautonomia.org.br
cin’surgente em O Livro
Com um posfácio de Julio Cabrera – Filósofo do Cinema
http://filosofojuliocabrera.blogspot.com.
– Brasília: Instituto Autonomia, 2012
Coletânea de textos que analisam os filmes assistidos no cineclube “cin’surgente” (no lounge nômade
“Perfume do Deserto” – http://perfumedodeserto.blogspot.com) entre os anos de 2009 e 2010
[2012]
As imagens que ilustram cada texto e sua versão ampliada, que estão em anexo, são colagens que serviram
como convite às sessões do cineclube.
Organização, textos e projeto gráfico: Léo Pimentel Souto
Revisão e textos: Sandra M. Nascimento
Índice
Insurge o SubverCine! terça-feira, 30 de junho de 2009 ... p. 07
Se...
sexta-feira, 3 de julho de 2009 ... p. 08 Zero pela conduta - Jean Vigo e nós! Suas crianças
segunda-feira, 10 de agosto de 2009 ... p. 08 A origem do SubverCine Sci-Fi
quinta-feira, 8 de outubro de 2009 ... p. 09 SubverCine Bunbu Itchi
segunda-feira, 26 de outubro de 2009 ... p. 11 2010, maio - O Retorno
quarta-feira, 5 de maio de 2010 ... p. 14 Latcho Drom (de Tony Gatlif) e a superação do urbano
quinta-feira, 13 de maio de 2010 ... p. 15 Waking Life: um ensaio sobre a cegueira cotidiana
quarta-feira, 19 de maio de 2010 ... p. 16 Sweet Movie - contra todos os regimes!
quinta-feira, 10 de junho de 2010 ... p. 17 A Vida dos Outros - ou o que fazemos com a nossa finitude?
domingo, 27 de junho de 2010 ... p. 19 Valsa com Bashir - dançando com a dor dos outros
terça-feira, 6 de julho de 2010 ... p. 21 I love you - ou, Podemos amar qualquer coisa, inclusive pessoas
segunda-feira, 19 de julho de 2010 ... p. 23 A Montanha Sagrada - ou a teologia materialista do Real
domingo, 8 de agosto de 2010 ... p. 25 Veludo Azul - ou nada decidiu a forma de existência que observamos
quinta-feira, 12 de agosto de 2010 ... p. 27 Senhor das Moscas - ou, a arte tribal das crianças da realidade suficiente.
domingo, 22 de agosto de 2010 ... p. 29
Sociedade do Espetáculo - ou, a narração da Ontologia do Vazio
domingo, 5 de setembro de 2010 ... p. 31 Lucio, o anarquista - ou, quem tem medo do anarquismo?
quarta-feira, 8 de setembro de 2010 ... p. 33 Virada Movies - 2010
quarta-feira, 15 de setembro de 2010 ... p. 35 Vida Cigana - ou adesão à existência sem remorso nem segundas intenções
quarta-feira, 29 de setembro de 2010 ... p. 37 Wood & Stock - ou o futuro de uma ilusão
sexta-feira, 1 de outubro de 2010 ... p. 39 Solaris - matando a Coisa e mostrando o ... a coisa mesma.
domingo, 17 de outubro de 2010 ... p. 41 Stalker - ou a transvaloração do turismo
domingo, 7 de novembro de 2010 ... p. 43 Outubro - ou a partir do modelo Chinês
terça-feira, 16 de novembro de 2010 ... p. 45 Surplus - ou o Arcaismo Revolucionário
domingo, 21 de novembro de 2010 ... p. 47 Queimada - ou Brincando com fogo
quarta-feira, 24 de novembro de 2010 ... p. 50 Lilian M. - ou Liberdade: só a Libertinagem vos Libertará
quarta-feira, 1 de dezembro de 2010 ... p. 52 El Topo - ou, Por uma Mística do Trágico
segunda-feira, 13 de dezembro de 2010 ... p. 55 Libertárias - ou Um exército disposto a desaparecer
terça-feira, 14 de dezembro de 2010 ... p. 57 Tetsuo, the Iron Man & Save the Green Planet - A Experiência Final
sexta-feira, 17 de dezembro de 2010 ... p. 59 Por um Posfácio Nada Difícil,
– Sobre Politizar Conceitos-Imagens - Julio Cabrera ... p.61
Anexo: Convites para as sessões do cin’surgente ... p. 61
Introito: o Cin‟surgente nasceu de duas necessidades de ver
cinema: deseducação imagética e cinema-limite.
A deseducação imagética é necessária, pois, desde que nascemos, somos inseridos em um universo
de imagens que nos condiciona a uma específica interpretação: imagens são substitutos de realidades. A
propaganda, cujo objetivo é vender algo, encharca as imagens de consumo rápido; educa nossa sensibilidade
de modo que cada imagem torna-se um objeto de desejo para ser consumido de imediato. A televisão, cujo
aparelho tornou-se objeto impossível de ser dispensado em cada lar, encharca as imagens com interesses e
compromissos dos donos e associados das estações de TV; educa nossa sensibilidade de modo que cada
imagem torna-se tanto duplo do real, com pretensão de substituí-lo enquanto tal, quanto informação de
assimilação imediata, sem silêncio algum para ser pensada, avaliada, , medida, comparada. O cinema, cujo
status de representação foi logo substituído pelo de entretenimento, encharca as imagens de linearidade e
grandiosidade; educa nossa sensibilidade de modo que cada imagem torna-se começo, meio e fim formador
de pensamentos unidimensionais. Portanto, esta tríade mínima de criação e reprodução de imagens, cria uma
educação unilateral que naturaliza a imagem ocultando seus artifícios naturais: desejo (consumo rápido),
interesse (apreensão imediata) e narrativa (entertainer).
No entanto, há uma fenda nessa educação: o cinema-limite. Este não deixa de ser desejo, interesse e
narrativa, no entanto, não faz a opção pela unidimensionalidade e pela exegese imagética de fácil absorção.
Não está comprometido em vender, propagar interesses em massa ou entreter. A fenda cinema-limite é
propriamente a criação e a reprodução da imagem cujo processo opera como necessidade deseducadora
para se reeducar. Deseducação necessária tanto aos conteúdos quanto às formas. Reeducação necessária
tanto aos conteúdos quanto às formas. O cinema-limite é beira do abismo; o horizonte de eventos de um
buraco-negro; a revolução permanente; é a impossibilidade da quietude e a irreversibilidade da volta. É
ferramenta para ao mesmo tempo destruir e construir.
Pois bem, em 2009, o lounge nômade Perfume do Deserto abre-se como espaço para essa
deseducação (abre semanalmente para realização de um cineclube); os livros sobre cinema de Julio Cabrera
tornam-se inspirações deseducantes, já que muitos daqueles e daquelas frequentadoras eram leitores de
seus livros; e o cinema-limite: um horizonte (assistir, pensar e realizar). Assim surge o Cin‟surgente: onde
fizemos exibições públicas de filmes; reunimos convidados e convidadas; discutimos, após a exibição, sobre
as situações limites que os filmes propunham, ora em seus conteúdos, ora em suas formas e ora em ambos;
e a cada sessão produzimos um texto cujo conteúdo não era resumo da discussão, mas sim apropriação livre
de seus tópicos mais interessantes. E que hoje, em 2012, reunidos , tornam-se e-livro e manifesto para “outro
cinema é possível”. Esse e-livro é, na sua forma original, a historicidade dos encontros que resultaram na
elaboração dos textos, como expressão atemporal. É assim, um diário selado.
Intermezzo: No Cin‟surgente a presença mais ausente e ao
mesmo tempo a ausência mais presente foi a de Julio Cabrera.
Filósofo desenvolvedor da interpretação original do cinema como sendo um modo de pensar ao mesmo
tempo em que este pensa: o cinema como pensamento e algo pensante, simultaneamente; como produto de
criação, representação e composição simultâneo à polissemia que o faz escapar das mãos e das cabeças de
seus próprios realizadores e realizadoras. O cinema como dependência e autonomia.
Julio Cabrera, espécie de Obi Wan Kenobi e Darth Vader do Cin‟surgente, deve tornar-se presente. Ecce
Homo!
1. Julio, antes de tudo, como é saber que suas ideias sobre cinema podem abrir estranhos horizontes,
como, por exemplo, o Cin‟surgente sendo um espaço para a deseducação imagética através de
filmes-limite? (a influência antecedente)
2. Julio, como você vê entende essa ideia de deseducação imagética? (perspectiva negativa da
educação – desobediência hermenêutica). (sobre ausência-presença)
3. Como você entende o que venha a ser filmes-limites, já que inclusive você mesmo sugeriu alguma
para nosso cineclube, como “i love you” e “senhor das moscas”? (as bordas e beiras do fazer filmes)
(sobre presença-ausência)
4. Julio! Comente e complete a seguinte frase: “Os crítico, os teóricos, os filósofos e intelectuais de toda
sorte têm apenas interpretado o cinema de maneiras diferentes; a questão, porém, é...”.
(a influência subsequente)
Mas... antes das respostas de Julio Cabrera ...
O lounge nômade Perfume do Deserto tem o orgulho de apresentar!
Antes, porém:
Insurge o SubverCine! terça-feira, 30 de junho de 2009
Enquanto o 'ser' conformista se transveste em 'ser'
realista... enquanto a juventude se torna prudente e carreirista...
enquanto a futilidade da opulência se torna meta... enquanto o
conceito de liberdade se transforma no conceito de
responsabilidade... o sonho não dorme. O sonho conspira.
Subverte a vigília. Avalia nossa condição consciente e
compreende libidinalmente nossas aspirações. Um sonho jamais
pode ser forçado. No entanto pode ser invocado. Não por
encomenda. Mas podemos maximizar a possibilidade de seu
florescimento. A conspiração do sonho é claramente sensível ao
ritual e à magia da sugestão. E o cinema é um tipo de máquina
onírica que se deixa infiltrar, dentre seu contraponto - o silêncio
de quem o assiste -, a realidade que desejamos viver: a grande
conspiração do sonho!
Assim o SubverCine insurge. Aparece para mover a si
mesmo. Libertar ou criar as condições do florescimento de outra
realidade. Mais viva e pulsante. Nada mais pode ser o que era
antes. Se bem deliciada inverte a ordem das coisas - que sabemos não é nada abstrata, e sim a tradução
concreta da dominação. E já estava anunciada nos muros de uma velha Paris: "A sociedade da alienação
deve ser varrida da história. Nós estamos inventando um mundo novo e original. A imaginação está tomando
o poder!". Que o cinema, a conversa, a magia, o sonho e até as estrelas sejam guias de tudo o que
desejamos.
Se... sexta-feira, 3 de julho de 2009
Uma das frases orientais mais célebre e usada em uma infinidade de contextos – já apareceu até
mesmo em um episódio da série “Os Simpsons” – pode ilustrar o que aconteceu ontem em nosso lounge
nômade. Vamos lá:
Qual é o som de uma árvore,
que cai no meio de uma floresta,
mas não tem ninguém para ouvi-lo?
Enquanto vocês pensam a resposta, farei algumas considerações sobre o filme 'If...'. Um dos mais
interessantes filmes da história do cinema. Primeiro por que vai muito além de uma experiência estética.
Devem-se ter olhos e ouvidos nada apressados. Deve-se ter força e delicadeza aguçadas. Deve-se estar
prestes a celebrar uma insurreição. Depois, por que é um acordar-se ao nascer do sol, totalmente desperto,
revigorado! Pois quem ainda se atreve a realizar uma mitopoese
para si mesmo/a? A responder três vezes que não se acredita em
deuses, ídolos e celebridades? E assim, realizar milagres através
de seus próprios poderes e forças?!
Esse filme evita a necessidade de um professor - e até
mesmo de seu diretor, Lindsay Anderson. Transborda em
inspirações e sintomas oníricos. Possíveis, até mesmo, aos
espíritos distantes de quem não vivenciou a contracultura dos anos
1960. É caos, nos moldes do pensamento chinês: está cheio de
potencial. Como a experiência da água em um vaso que, aos
poucos, transborda e, assim, cada gota acha seu caminho, fertiliza
a terra e traz tudo à vida. Mick Traveis (Malcom Mcdowell) encontra
seu significado, mas se potencializa ao dançar com o 'super-id' nos
porões escuros, porém amplamente visível, de nossa libido.
Ah, sim ... e então encontraram a resposta? Se não .... então, nos vemos em nosso próximo
SubverCine.
Zero pela conduta - Jean Vigo e nós!, suas crianças segunda-feira, 10 de agosto de 2009
Não é de se excitar a kundaline? Ler essa frase do poeta Raoul Vaneigem: "Tudo aquilo que pode ser
destruído, deve ser destruído para que as crianças possam ser salvas da escravidão". Ah, ela nos reconecta
às questões mais fundamentais de nossa existência: o que fazemos com aquilo que fizeram de nós?
Lembram de Jean Paul Sartre em seu Ser e o Nada?
Os dias na escola - do ensino fundamental à universidade - devem ser algo mais do que a soma de
coações, humilhação, isolamento, sofrimento e decadência. Deve haver algo mais do que uma estrutura
pedagógica voltada à ideia de que devemos aprender a sobreviver e não aprender a viver. Professoras e
professoras devem estar empenhados/as em fazer muito mais do que nos educar para que pensemos que
existe apenas uma forma certa de viver.
Pensemos na tragédia e do patético de estudantes,
professores e professoras por todo o planeta: quantos/as
estudantes já se suicidaram ou assassinaram e ainda se
suicidarão e assassinarão devido a anos de conscientização
cega estimulada e cultivada nas escolas? Abro aqui um
parêntese curioso: o modo de a psicologia interpretar o
suicídio (devo lembrar aqui que não estou tratando do
suicídio como boa-morte1) como um modo que revela as
condições as quais se viveu: os/as culpados/as enforcam-se;
os/as que se sentem sacrificados/as cortam suas gargantas;
quem se atira de prédios e de pontes são os/as
rejeitados/as; já os/as que têm mentes atormentadas se dão
um tiro na cabeça. Mas, voltando, e os/as estudantes os/as
que não fazem a opção por esse tipo pandêmico de suicídio
mas optam pelo assassinato, e assim se tornam
assassinos/as luciferinos/as revoltosos/as ? Como o ocorrido
em 1999, na Columbine High School, por exemplo. E o
patético professores e professoras que morrem de medo, por
se considerarem não responsáveis pela educação como um
todo, em entrar em sala de aula, pois podem ser espancados
por seus estudantes, sejam escolas públicas ou particulares? Aqui mesmo no Distrito Federal há outro tipo de
tragicomédia pedagógica: adultos/as frustrados/as em carteiras de faculdades particulares exigindo de
seus/suas professores/as que façam de tudo para entretê-los/las, que lhes deem ocupações anti-estresse ou
1 Tipo de suicídio que potencializa o modo como se viveu. Como por exemplo, aquelas pessoas que se suicidam exatamente por estarem em uma fase muito boa da vida, ou aquelas que querem sim viver, mas rejeitam, de boa-vontade, a forma de vida em que se vive.
que os façam correr atrás de coisas que não precisam. Que tipo de subjetividade se está construindo nas
escolas?
Eis que entra em cena "Zéro de Conduite" (Zero pela Conduta), de Jean Vigo, que assistimos no
SubverCine passado para lançar luzes à nossa questão sartreana fundamental: o que fazemos com aquilo
que fizeram de nós? O filme é de 1933, sem dúvida alguma, atemporal! Tranquilamente faz parte de uma
corrente subversiva que ainda não disse tudo – a qual o próprio diretor do filme anterior, “If...”, Lindsay
Anderson, abertamente dizer ter se inspirado em “zero de Conduite” para fazer o seu. Portanto, também nos
inspiremos na perspectiva dessas crianças que tiram zero pela conduta: que a garantia de não morrer de
fome não se troque pelo risco de morrer de tédio! Assim, orientalmente falando, esse filme também excita a
kundaline.
Em Zero pela Conduta, a opção por viver é, antes de tudo uma opção política. Esta que está nos
limites entre a antiga luta de classes e as atuais ações afirmativas. Ah, essas crianças bagunceiras... É um
mergulho em nossos sonhos. É uma fuga bem sucedida do lugar-comum cunhado a ferro e fogo. O mundo
está aí para ser refeito, o quanto for necessário. Especialista algum conseguirá impedir vontades que não
estão fadigadas pelo cotidiano. Não há álibi nenhum para a resignação. A inocência é lúcida e se organiza
por uma exuberância libidinal própria de uma insurreição bem sucedida contra a violência de um mundo
repressivo e tecnocrata. Crianças nos lembrando de que se esquecermos das misérias da militância, do
desespero do terrorismo e do voyerismo ao "bom selvagem", teremos "um mundo de prazeres a ganhar, e
nada além do tédio a perder".
A origem do SubverCine Sci-Fi quinta-feira, 8 de outubro de 2009
"Essa é a exploração que espera por você. Não mapear estrelas e o estudo de nebulosas, mas
catalogar as possibilidades da existência."
- Q para o Capitão Jean-Luc Picard, em "All Good Things..."
Às margens de um horizonte de eventos da fusão entre dois buracos-negros, galáxia NGC 6240,
Aviñoká resolveu reunir todo seu povo, mansos e bravos, para distribuir poderes. O primeiro foi Kuikúru. Este
tomou o arco de gravitação quântica. Feito isto seus parentes todos passaram a usar esse tipo de arco.
Depois, outro apareceu. Escolheu pegar um arco de relatividade geral. Finalmente, outro pegou o arco de
supercordas. Logo, Aviñoká com uma mão apontou em direção à constelação de Ophiuchus, com a outra,
apontou para o centro da fusão. Mandou que escolhessem. Escolhido, que por lá se distribuíssem. Como
essa constelação tem muitos bandeirantes, mercenários, latifundiários planetários e businessmen
intergalácticos, os nativos ficaram tentados. Aviñoká ficou zangado. Os nativos, então, energizaram só as
mãos e correram para desenergizar num punhado de antimatéria. Esse punhado tornou-se matéria escura -
prenúncio de um micro universo bebê. Um menos medroso aproximou de Aviñoká, tocou sua testa, em sinal
de entendimento, e seguiu. Nesse instante, do meio da fusão dos dois buracos-negros, um grito de guerra.
Os nativos estremeceram. Aviñoká disse: "Todo o universo morrerá um dia, também todos nós!". Novo grito
foi ouvido, desta vez, vindo do centro de Ophiuchus. Era o grito de pavor dos civilizadores. Então Aviñoká
predisse: "Buracos-negros nunca morrerão e, portanto, de lá nunca desapareceremos". Todos vislumbraram
que lá no meio da fusão entre os dois buracos-negros, há uma grande aldeia com bonitas roças e, portanto,
munidos de tais maravilhosos arcos, terão que protegê-las de novos civilizadores. Custe o que custar.
SubverCine Bunbu Itchi segunda-feira, 26 de outubro de 2009
De um modo geral, qualquer cidadão letrado, aqui pelas bandas do ocidente, imagina que a pena (a
palavra) é mais poderosa que a espada. Porém, lá pelas ilhas japonesas, imaginam bunbu itchi, ou "a pena e
a espada juntas". Estes modos de imaginação têm consequências vitais. O primeiro modo, nos torna, ou
pessoas falastronas, ou pessoas que acreditam demasiado que, apenas conversando, tudo se resolve.
Superestimamos, de tal maneira, o poder da palavra que nos esquecemos da espada. Desta seguimos ao
segundo modo. Espada não significa resolver a situação na porrada. Ela significa ação. Bunbu itchi é o
princípio o qual nos traz a sabedoria de que agir sem pensar é tão inútil quanto pensar sem ação. Es te modo
nos torna pessoas, ao mesmo tempo, mais corajosas e mais sábias. Ah, que belíssima estrela errante para
nos servir de guia. No entanto, SubverCine! Além da palavra, imagens em movimento - ideografia dinâmica.
Aqui imaginamos que tal movimento seja o de um exímio espadachim. Assim como o de escrever
ideogramas. Nenhuma tensão no corpo. Tudo é flexível, mesmo diante de uma morte trágica. Como um
bambu ao vento na beira de um precipício. Imagens sem a espada é tão inútil quanto espada sem imagens.
Talvez os povos que escrevem por ideogramas tenham mais algo a diz que os povos que escrevem por
fonemas e sílabas.
“Com que então pertenço aos céus?
Não fosse assim, por que é que os céus
Me olhariam assim com seu eterno olhar azul,
Me chamando, e à minha mente, mais alto,
Sempre mais alto, sempre mais acima,
Me chamando sempre para o máximo,
Para alturas que homem algum imagina?
Por que, estudado o equilíbrio
E o vôo planejado até a última minúcia,
Até não haver margem para o infortúnio,
Por que, até aí, deve a ânsia de subir
Ser associada à insânia?
Nada nesta terra vai me ver satisfeito;
Novidades do mundo, logo monótonas;
Algo me chama lá em cima, para cima,
Cada vez mais perto da faísca do sol.
Por que me queimam estes raios da razão.
Por que me destroem estes raios?”
Trecho do poema "Ícaro" de Yukio Mishima, traduzido por Paulo Leminski
2010, maio - O Retorno quarta-feira, 5 de maio de 2010
Após seis meses, o retorno. Novamente liberamos um espaço-tempo. O tornamos livre. No continuum
dos lugares retos de Niemayer, uma curva, uma esquina, uma sinuosidade. Na margem do centro do círculo
perfeito da Asa Sul, uma espiral, um fractal, um estranho atrator. Na ditadura civil do IPHAN, um reino
anarquista, uma ilha pirata, uma zona autônoma temporária, um quilombo virtual. Sintam o aroma. Sintam o
sabor. Sim, é o Perfume do Deserto.
Estará aberto todos os dias, de acordo com a lógica do desejo do/a visitante. É só entrar em contato.
É interativo. É recíproco.
O Subvercine muda de nome e torna-se Cin'Surgente. Todas as terças-feiras às 21hs nosso
cineclube tem sua vez. Cada terça-feira é um tema: Sci-Fi, Documentário, Arte, Político e Outro. Sempre um
filme seguido de debates. No entanto, uma orientação para as conversas: deseducação imagética – esvaziar
para voltar a preencher. Devidamente documentados para a composição de nossa revisita ao modo de
produzir, criar e difundir o cinema enquanto tratamento de imagens.
A Filodramaturgia urge aos sábados. A partir das 19hs. É a filosofia dramatizada pelas nossas
experiências cotidianas. São filósofos e filósofas convidadas para um café dramático. São os temas f ilosóficos
intimados a responder pelas suas origens mais banais e corriqueiras.
A Feirinha Subversiva aos domingos. Às 17hs. Tudo posto à troca. Vendas também são possíveis.
Semanalmente postaremos uma lista de coisas e serviços que se disponibilizarão. Pessoas interessadas,
entrem em contato conosco.
Nos demais dias da semana, a programação é livremente discutida com amigos e amigas que
desejam realizar seus anseios. O espaço foi liberado. Não está sujeito ao rolo compressor do dia a dia. Não
há motivos para sermos iguais. Muito menos para nos igualar por baixo. A exuberância é nosso estado de
espírito. Nosso humor mais refinado. Não se acanhem. Junte-se a nós. Estamos lhe esperando.
Consagraremos nosso retorno na próxima terça-feira (11 de maio, 2010) às 21hs com a abertura do
Cin‟surgente. Com a exibição do filme Latcho Drom (1993) de Tony Gatlif. Venham, venham todas/os! Somos
todo/as convidadas/os e anfitriões/as.
Latcho Drom (de Tony Gatlif) e a superação do urbano quinta-feira, 13 de maio de 2010
Nós, que num estranho e ambíguo sentimento
nos orgulhamos de sermos urbanóides, deixemos de
lado o apego à terrinha; deixemos de lado o amor à
arquitetura e ao urbanismo; tornemo-nos
estrangeiros/as em nossas próprias cidades; sejamos
imigrantes em nossa própria terra; ousemos jamais
pensar em sermos turistas; abdiquemos da condição
moderna de caçadores e caçadoras de suvenirs;
esqueçamos que o horizonte de viagem esteja
condenado ao consumo de cultura. Depois de tudo
isso nos perguntemos: o que nos resta? Nós
mesmos/as! Sem mediações. Vagando e
vagabundeando pelo mundo. Se com boa arte, vaga-
se à vontade; perde-se nas curvas e reentrâncias de
onde se está. Se com boa arte de abandonar-se,
atribui-se ao coração uma qualidade mais relaxada,
um tipo de amor: amante desterrado e desterrada do
ecocapitalismo urbano e turístico. Desse modo Tony
Gatlif emitiu seu próprio visto de viagem e ciganizou-
se: Latcho Drom.
Em língua cigana, Latcho Drom significa "estrada segura". No entanto é preciso construí-la. É preciso
abrir caminho. Estrada que se faz simultaneamente com o caminhar. No caso, Tony Gatlif usa uma câmera
para abrir caminho e caminhar. Ele parte da Índia – “aproximadamente mil anos atrás, por razões ainda
desconhecidas, os ciganos andaram pelas estradas de...” –, passa pelo Egito, Romênia, Turquia, República
Tcheca, Hungria, Alemanha, França e, por fim, chega à Espanha – “Para viver em liberdade”. Uma jornada
que dura um ano – “Deus nos condenou a ser errante”. Experimenta-se um ciclo completo da natureza:
primavera, verão, outono e inverno. O extraordinário é que quase dá para sentir os aromas e sabores dessa
viagem fílmica. Um documentário musical colorido com tintas fortes e vibrantes. Um antídoto contra a pureza -
esta forma perigosa de totalitarismo – “Fugimos da miséria e do ódio”.
“Cresça, melhore, evolua, você ainda é humano. E, um dia, quem sabe, poderá até chegar a ser
cigano. Viverá com nossa ciência. Sorrirá com nossa alegria. Saberá viver antes do sol e fará seu
próprio dia”.
Trecho do Sungrê de Ariel Magnovitch
"A terra é minha pátria, o céu, o meu teto; a liberdade, a minha religião" – lema cigano. Aqui, no
caminho que se abre à medida que se anda, não há medo da liberdade. Aqui, os meus que são mais meus
são outros “eus”. Ninguém é unidimensional. Nenhuma consciência é mercadoria. A experiência mais
significativa é a de que ainda há vida sem a indulgência fútil do romantismo.
“Nossa liberdade é a natureza, nela não existem muralhas para tirar nossa visão do campo aberto,
podemos ter contato com o solo, respirar o verde, sentir a brisa do vento, receber a força dos raios
solares, contemplar a Lua, o brilho das estrelas e tudo o mais que ela possa nos oferecer.”
Jordana Aristicth, no livro Ciganos – Verdade Sobre Nossas Tradições.
Traz-nos, à memória genética, de que jamais nos foi destruído a percepção transglobal e o senso de
vastidão e completude do nomadismo. Estas podem até estarem enfraquecidas, mas são como as plantas
do cerrado. Uma pequena chuva e estão lá elas com sua exuberância reconstituída. Ah, como é linda uma
flor de pequi. O mundo em branco e preto não tem sentido no imaginário cigano. Somente as cores fazem
sentido. É uma linguagem profunda; uma filosofia; uma cosmovisão muito sofisticada. Pois cada uma tem
aroma, sabor e música. Metafísica cromática. Metafísica perfumada. Metafísica às papilas gustativas.
Metafísica para se dançar.
Certo filósofo alemão, certa vez disse que jamais acreditaria em um deus que não soubesse dançar.
“Que semelhança temos com o vaso de rosa que treme apenas porque o oprime uma gota de
orvalho?
Sempre há alguma loucura no amor. Mas sempre há algum método na loucura.
Eu só acredito em um Deus que saiba como dançar.
E quando eu vi meu demônio, eu o encontrei sério, completo, profundo e solene: ele era o espírito
da seriedade (gravidade), através do qual todas as coisas caem.
Nós o derrotaremos não com ódio, mas com gargalhadas. Venha, vamos destruir o espírito da
seriedade!
Agora eu sou luz, agora eu posso voar; agora eu me vejo por trás de mim mesmo. Agora dançou
um Deus em mim.”
Assim falou Zaratustra.
Após assistirmos Lacho Drom, passamos a ciganizar tudo, até mesmo esse tal filósofo alemão, cujo
nome é Nietzsche, a assim saímos por aí dizendo: Eu só assisto um filme que saiba dançar. Sim! De agora
em diante, a dança é prova de nossas verdades!
Waking Life: um ensaio sobre a cegueira cotidiana quarta-feira, 19 de maio de 2010
Nas décadas de 1960 e 1970, por toda parte a
imaginação estava no poder, na verdade estavam
negando o poder, e assim as ideias tentavam destruir
e construir mundos – barricadas, pichações e
colagens. "O que queremos, de fato, é que as ideias
voltem a ser perigosas" - Guy Debord. Pois aquilo que
se queria que o mundo fosse estava a um passo de se
tornar real: revoluções permanentes por todo o
planeta. Havia desejo por mudanças radicais ou então
nada. Tudo deveria ser experimentado com muito
„tesão‟, ou então nada valeria apenas em ser
realizado. Da data do nascimento à data da morte era
tudo o que se tinha tanto a vida quanto a morte não
eram fins em si mesmos e sim meios. Quedas de
governos, revoluções culturais, sexo, drogas e rock'n
roll. Estas eram expressões diretas e inocentes de
uma radical adesão ao viver. Cada momento dessas
experiências bastava-se a si mesma em seu modo
cru. Podiam-se celebrar os aspectos efêmeros da vida
sem pretensões com a eternidade. Podia-se brindar ao momento e à finitude.
Foi na década de 1980, que as pessoas começam a sentir uma espécie de ressaca daquele tamanho
gozo incondicional das décadas anteriores. A grande depressão da vontade. O grande cansaço da liberdade
e das possibilidades. Preconiza-se o afastamento da existência fugidia e o caráter cambiante da vida – por
aqui no Brasil até mesmo conseguimos apontar a pessoas que compunham uma geração pós-abertura
política; uma geração que abre mão da invenção e que abraça o niilismo de estado. Inicia-se a cristalização
das vias de acesso às alegrias momentâneas rumo a uma busca abstrata pela felicidade duradoura e pelo
conforto na inação. Assim, o desejo de imobilidade brota em sua força maior. Dá seus primeiros frutos:
artefatos eletrônicos e tecnologias da informação. A alegria de estar por aí livre e em terminalidade eminente
são trocados pela força dos desejos por autopreservação, eternidade, imortalidade e permanência. Salvo,
apenas o movimento punk!
Eis que chega a década de 1990. A aceitação integral dos aspectos perigosos, problemáticos e
enigmáticos da existência foi esquecida há muito tempo. A imaginação estava morta. Tudo é desejo de
ordem. O futuro da ilusão, como Freud dizia, torna-se ordenamento em ilusão. A imaginação é trocada pela
literalidade. No poder, o establishment. Nele estão depositadas as esperanças por estabilidade, conforto e
segurança. A crueza do real torna-se incômoda, indigesta. Cresce o desejo de livrar-se dele. Os ambientes
tornam-se climatizados – shoppings centers, condomínios habitacionais, apartamentos personalizados. A
tolerância é zero. Toca-se fogo em quem mora nas ruas e em indígenas que aguardam na parada de ônibus
o nascer do próximo dia. A criminalidade deixa de ser uma questão social e torna-se questão de índole
individual. Assim prepara-se a entrada do século XXI: remédios, escapatórias, consolos, prisões e violência. A
crueza do real é soterrada pelas mais diversas realidades edificantes e cheias de alegrias obrigatórias por
meio de proibições.
Porém, Wakin Life, um filme de 2001 de Richard Linklater, que junto aos aviões lançados contra as
torres gêmeas nos EUA abrem o século XXI. Abertura melhor que a imaginada via a inteligência artificial HAL
de 2001: Uma Odisseia pelo Espaço, de Stanley Kubrick, cuja antecipação negativa podemos encontrar na
pergunta de Philip K. Dick, Do Androids Dream of Electric Sheep? Também melhor abertura que a preparada
pela estabilidade, o conforto e a segurança prometidas na década de 1990 pelos/as ativistas do capital –
lembremo-nos do colapso do Comunismo e do fim da chamada Guerra Fria como parâmetros de hegemonia.
Wakin Life abre a primeira década do século XXI nos intimando e assim nos instigando a estabelecer um
novo solo fértil para se ultrapassar os limites do até então pensado: não é mais a imaginação, o niilismo de
estado e o consumismo que é fonte do estar no mundo, mas sim um tipo especial de pensar e agir, a reflexão
crítica onírica e o sonho iniciático para insurgir junto ao real. Denso e leve. – como sonhar correndo junto a
lobos ou com jaguatiricas, ou ainda, nadar com as ariranhas. Afeito à criação – não ser formiga:
Eu não quero ser uma formiga. Passamos pela vida, esbarrando uns nos outros... sempre no piloto
automático, como formigas... não sendo solicitados a fazer nada de verdadeiramente humano.
"Pare". "Siga". "Ande aqui". "Dirija ali". Ações voltadas apenas à sobrevivência. Toda comunicação
servindo para manter ativa a colônia de formigas... de um modo eficiente e civilizado.
"O seu troco". "Papel ou plástico?" "Crédito ou débito?" "Aceita ketchup?"
Não quero um canudo. Quero momentos humanos verdadeiros. Quero ver você. Quero que você
me veja. Não quero abrir mão disso. Não quero ser uma formiga, entende?"
Identifica questões mal colocadas – como a do fim do existencialismo.
“A razão pela qual eu me recuso a encarar o existencialismo como outra moda francesa ou
curiosidade histórica é que eu penso que ele tem algo muito importante a nos oferecer, para o
novo século. Temo que estamos perdendo as verdadeiras virtudes de viver a vida
apaixonadamente no sentido de termos responsabilidade por quem somos, a habilidade de fazer
algo de si mesmo e se sentir bem em relação a vida. Existencialismo geralmente é discutido como
uma filosofia do desespero, mas eu penso que a verdade é realmente o oposto disso. Sartre, uma
vez entrevistado disse que ele nunca sentiu um dia de desespero na vida dele. Uma coisa que
aparece de ler esses caras não é tanto um senso de angústia sobre vida, mas um tipo verdadeiro
de exuberância de se sentir no topo dela, é como se a vida fosse sua para criá-la. Eu li os pós-
modernistas com algum interesse, até admiração, mas quando eu os lia eu sempre tinha esse
sentimento irritante horroroso que algo absolutamente essencial estava sendo deixado de lado.
Quanto mais você fala sobre uma pessoa como uma construção social ou como uma confluência
de forças ou como sendo fragmentada ou marginalizada, o que você faz é abrir um novo mundo
inteiro de desculpas. E quando Sartre fala de responsabilidade, ele não está falando de algo
abstrato. Ele não está falando sobre o tipo de “eu” ou “almas” que os teólogos falam. Ele está
falando de você e eu, conversando, fazendo decisões, fazendo coisas, e recebendo as
consequências. Pode ser verdade que existem seis bilhões de pessoas nesse mundo, e
aumentando, entretanto – o que você faz, faz a diferença. Faz a diferença, primeiramente, em
termos materiais, para outras pessoas e dispõe um exemplo. Resumindo, eu penso que a
mensagem aqui é que nós nunca deveríamos nos subestimar ou nos vermos como vítimas de
várias forças. A decisão por sermos quem somos é sempre nossa.“
Identifica falsos problemas – como a questão do "eu".
"A criação vem da imperfeição. Parece ter vindo de um anseio e de uma frustração. É daí, eu
acho, que veio a linguagem. Quero dizer, veio do nosso desejo de transcender o nosso isolamento
e de estabelecer ligações uns com os outros. Devia ser fácil quando era só uma questão de mera
sobrevivência. "Água". Criamos um som para isso. "Tigre atrás de você!" Criamos um som para
isso. Mas fica realmente interessante, eu acho, quando usamos esse mesmo sistema de símbolos
para comunicar tudo de abstrato e intangível que vivenciamos. O que é "frustração"? Ou o que é
"raiva" ou "amor"? Quando eu digo "amor" o som sai da minha boca e atinge o ouvido de outra
pessoa, viaja através de um canal labiríntico em seu cérebro através das memórias de amor ou de
falta de amor. O outro diz que compreende, mas como sei disso? As palavras são inertes. São
apenas símbolos. Estão mortas. Sabe? E tanto da nossa experiência é intangível. E, ainda assim,
quando nos comunicamos uns com os outros e sentimos ter feito uma ligação, e termos sido
compreendidos, acho que temos uma sensação quase como uma comunhão espiritual. Essa
sensação pode ser transitória, mas é para isso que vivemos."
Waking Life aposta na perda de parâmetro de uma racionalidade que oculta, como um bom
ilusionista, seus componentes irracionais. Aposta numa belíssima reivindicação da potência de estar vivo que
escapa de qualquer argumentação. O sonho transborda para tudo o que é lado. São antessala e sala do real.
Outro real para se engajar, não uma realidade ocultadora. Não é simulacro de simulação alguma. Não cria
fantasma algum do real. É espaço limítrofe. É lugar de modéstia e grandeza. Lugar de produção de verdades
incertas em que o universal é apenas um subconjunto das partes. Onde jamais dá para ser a mesma pessoa
nem no mesmo instante. É preciso que o sonhar seja uma luta. Não a luta mesquinha pelo poder como o
fazem quem quer reivindicar para si a sobreposição entre sonho e esperança. Sonhar é estar sem esperança,
sem âncoras. É sim uma exuberante e poderosa luta anti-poder. Talvez desse modo, não nossas ideias e
desejos voltem a ser perigosos, mas sim nossos sonhos. A quem quer manter privilégios, toda a crueza de
nossos sonhos! Wakin life!
Com dez anos de defasagem, assistimos Wakin Life. Interessante atraso, como um eco pela
infindável trama de cavernas que jamais se consegue sair para superfície alguma. Ressonância que nos
alerta aos investimentos psicológico-libidinais-coletivo feitos no passado e no agora. Ressonância nada fácil,
pois não se torna ruído-branco, torna-se sim alerta contra a autossatisfação autoilusória da cegueira
cotidiana.
Sweet Movie - contra todos os regimes! quinta-feira, 10 de junho de 2010
Quanto de liberdade somos
capazes de suportar? Liberdade
política, de imprensa e religiosa são a
minha liberdade? Liberdade do
indivíduo, da figura jurídica, cidadã são
a minha liberdade? Livre arbítrio,
liberdade de pensamento, de vontade,
de desejo são a minha liberdade? Livre
concorrência, ir e vir, escolher entre a
marca “a”, “b” ou “c” é a minha
liberdade? Preferimos a realidade
conformista (essa máquina de
ocultamento do real – legalidade,
direitos informais, moralidade,
cidadania, consumo...) ou a imaginação libertária (táticas de guerrilha contra a máquina ocultante –
singularidade, insurgência, rebeldia, personalidade...)? Ou mal deixamos de lado uma idiotice (sentimento de
vacuidade), uma crença (sapiência divinizada), uma irreflexão (viver para uma ideia) e prontamente nos
apressamos a substituí-la por outra?
E se, de repente, não mais que de repente, algo inesperado do implodisse os fundamentos
teológicos, tanto do capitalismo quanto do comunismo? Ou mesmo, implodisse os fundamentos tanto da
religião quanto da ciência? Onde e como ficaríamos? Esses defuntos serviriam minimamente para, ao menos
adubar um solo para outros frutos? Que implodisse o íntimo do capitalismo, suporte da ciência atual, que tem
em seu coração a utopia de nos transformar todos/as em supra-consumidores/as, no qual, a cada mercadoria
comprada compra-se um pedaço do paraíso. Que implodisse o íntimo do comunismo, suporte da religião
atual, que das entranhas prometeu a felicidade para todos/as, mas... faliu. Esse algo inesperado implosivo
apenas nos mostraria as ruinas de que ambos, acima mencionados, são incapazes de cumprir suas
promessas mesmo estando em suas mais plenas exuberâncias em edificação. De que ambos nos trazem um
gigantesco saldo de misérias, desgraças e obsessões: num a desigualdade abertamente é quem faz a
máquina funcionar, e na outra é propriamente a desigualdade ocultada. E agora? Cinismo? Mau-caratismo?
Irreflexão acomodada? Como encarar essa tragicomédia e seguir adiante? Como ir para além dessa falsa
dicotomia? Por onde começar? Açúcar, chocolate, ou...?
Pois bem, daremos uma dica. Para além dos sentimentos impostos que nos insuflam desde a
infância, comecemos assistindo Sweet Movie (1974), um filme de Dusan Makavejev. Como o fizemos no dia
08 de junho de 2010 em nosso cineclube. Cuja mensagem primitiva foi a de que, para início de conversa, é
através da carne que quebramos a tirania do espírito! Sweet Movie é um filme rapadura. Como assim? Tal
qual diz a sabedoria popular diz: "rapadura é doce mais não é mole, não". Saboroso, porém, incômodo,
desconcertante, intimista, um "mais que" doce e necessário soco no estômago. Logo nas primeiras cenas,
fica fácil de entender o motivo pelo qual o filme foi proibido à época em muitos países e ainda o é em alguns
deles até os dias de hoje: é muita liberdade! A carne e os ossos de cada indivíduo é inimigo irreconciliável de
toda a universalidade. É de corpo que podemos nos colocar contra qualquer regime – tanto no sentido de tipo
de governo quanto no sentido gastronômico. É perigoso ao "realismo" que sejamos livres demais, sem
pecado, nem culpa, nem vergonha, “ni dios, ni patróns, ni maridos” – tudo o que é realismo é um laço, um
grilhão. Na liberdade que vivemos sob os autoflagelos da moral e os hetero-castigos da lei, tudo está sob
controle, sob responsabilidade, sob limite preciso “que termina onde a do/a outro/a começa”, etc. Nela
qualquer crença é fortalecida para sempre – torna-se causa ora divina, ora humana. E sabemos que todos os
crimes legais e teológicos nascem dessas duas grandes ideias fixas: crença no divino, crença no humano.
Fortaleza impenetrável em si e por si, onde a pessoa que crê se dispõe a se sacrificar pela crença (por deus
ou pela humanidade); onde a pessoa que diz crer finge que nada quer saber de sacrifícios. No entanto, para a
pessoa indiferente ao controle, às responsabilidades, aos limites entre “eu e tu”, às causas universais, as
questões de crença e não crença são irrisórias. Não há universais, há apenas eu e tu: irracional, amoral e
antipatriótico – consciência própria sem ideias, representações, crenças, apenas consciência única, tal como
eu, sem me deixar reduzir ao “regime celular isolacionista”.
Não é dessa espécie de liberdade vigiada e punida a cinematizada por Sweet Movie, mas sim uma
que é levada para além de suas fronteiras comuns, para um terceiro que não é excluído (lógica
paraconsistente) além de: (1) o corpo como celebração e sacrifício – pênis de ouro, vulva achocolatada,
assassinatos documentados e sublimados; (2) as crianças não estão desprovidas de libido – pirulitos e Anna
Planeta; (3) o sexo nem sagrado nem profano – prêmio à virgem mais virgem e a virgindade é prêmio, orgias
escatológicas, sublimações e pacto de amor selado; no entanto, (4) a sedução como perigo e aspiração
universal. Esta é a doçura do poder: açúcar e chocolate – assepsia paranoica do capitalismo e a sujeira
neurótica do comunismo. Para nós, rapadura: ferramenta impura que joga com os desejos das pessoas e o
ato puro de se deixar levar pelo gosto; tática que desoculta a irracionalidade que compõe a razão da
humanização do capitalismo e a tática desoculta a irracionalidade que compõe a razão do progresso do
comunismo. Porém, açúcar e chocolate: ambos que nos seduzem só para nos trair, em seguida. Regimes de
morte – obesidade mórbida. Ambos adoçam nosso paladar, fazendo com que nos esqueçamos da amarga
marcha até a morte. Mata-se por ansiedade. Mata-se lentamente. Fora dos regimes de morte, também se
morre, porém sem excessos paranoicos de racionalidade. Na liberdade não há a curiosa aptidão de
imediatamente substituir uma bobagem por outra. Nela a tolice e o vazio não são indispensáveis ao
psiquismo. Nela o fora de moda, a desilusão e o fadado ao fracasso são nada e somente se manifestam,
quando são escolhidos como objeto de desejo, um desejo de coisa nenhuma, o niilismo, no qual os
sindicatos, as eleições representativas, o mercado de trabalho e o sistema financeiro de créditos, tentam nos
deixar apáticos/as diante do mundo. Sweet Movie é um filme para retirar as camadas de realidade do real,
que é, antes de tudo, singular, intrinsecamente doloroso, libidinal e trágico. Não há consolo ou escapatória.
Não há remédios nem doces. E como diz o filósofo francês Sartre: "Não importa o que as condições fazem
conosco. Importa o que fazemos com essas condições. O ser humano está condenado à liberdade".
A Vida dos Outros - ou o que fazemos com a nossa finitude? domingo, 27 de junho de 2010
Filme controvérsias. Filme decisões. Filme paixões. Filme mito. Dizem que a origem de todo
pensamento metafísico é a frustração de um músico fracassado enquanto tal. Em "A vida dos outros" tal
afirmativa está presente, porém de modo um tanto peculiar e invertido: um pensamento metafísico cuja
origem é uma bem sucedida música de um compositor nada frustrado, porém que frustra: sonate vom guthem
menschen - "sonata para um homem bom". Música cujo ritornelo é a reconstrução do Holocausto. Pois bem,
que metafísica originada é esta? A mais vil delas, a metafísica dos valores, já chamada de metafísica dos
costumes. Primeiro inicia-se com a velha discussão sobre o que é bem e o que é mal – antes revigorar do
que por questões ao mito fundador. Depois, a questão que movimenta a velha discussão: pode alguém
mudar? Onde o Humanismo é aquele em que uma pessoa se torna humana historicamente, e assim deixa em
aberto a possibilidade de que uma pessoa pode não ser considerada humana – sendo inumana uma pessoa
torna-se propriedade para a soberania ilimitada de quem é “humano”. E por fim, em terceiro, a resposta bélica
dos valores: garantir, a qualquer custo, que o uso e a valorização das ideias de um indivíduo de carne e osso
somente podem ser comunicadas apenas enquanto tais forem as de uma religião, de um estado, de uma
sociedade.
Vamos por parte, no início do filme, como já
anunciado, a velha discussão binária: o bem e mal. Ambos
cinematizados e ilustrados como a divisão da Alemanha
entre Oriental e Ocidental, vivenciada antes da queda do
muro de Berlim (ocorrida na noite de 09 de novembro de
1989). No caso o governo socialista, convertido em Estado
do hipercontrole – este último um sonho, prestes a ser
realizado, pelas grandes "democracias" atuais pós 11 de
setembro de 2001 – ilustrando o mal. Já o bem,
exaustivamente simbolizado pelos intelectuais – supostos
livres-pensadores; suposta vanguarda da humanidade
liberal. Estado opressor, o mal; indivíduo liberal, o bem.
Mocinhos intelectuais contra os bandidos políticos e no
meio desse tiroteio, uma vital artista e um ambíguo espião.
Curiosa ponta que aparece para tornar o que é binário em
um triângulo, cuja condição de terceiro é desaparecer para
que se restabeleça a eterna valsa do bem com o mal. A
arte (representada por Christa-Maria Sieland) surge como
elemento desestabilizador: seduz todos que cruzam seu
caminho – expressão de vitalidade, exuberância e
celebração da vida, cujo ato mais vivo é se apropriar
vorazmente de si mesma, mesmo que isso signifique seu
próprio fim. A polícia (na figura de Ulrich Müher) ao mesmo
tempo cega cumpridora de ordens superiores e voyer realizadora arbitrária de ordens inferiores – pura ironia;
puro talvez; puro "será?"; na pureza de qualquer torturador há uma boa pessoa (!?). É possível morrer em
vida para nascer uma pessoa completamente diferente?
No movimentar da questão: Acreditamos na mudança? Ou a desejamos? Pensamos como o mundo
se realiza ou como gostaríamos que ele se realizasse? Mudar é questão de crença ou da falta dede travestido
em desejo? Não importa a resposta, pois elas dão na mesma: a impossibilidade da realização do objeto –
realização tanto como objeto de crença quanto objeto de satisfação. Se acreditarmos, há a possibilidade de
deixarmos de acreditar. Se desejarmos, há a possibilidade de jamais termos o desejo saciado. No filme tal
impossibilidade é evidente até demais. Vejamos apenas três evidências:
(1) Um espião que conhece o conteúdo de todas as informações tornado carteiro, um
mero desconhecedor de qualquer conteúdo que ele mesmo entrega;
(2) Suicídio: artifício incentivado para que o assassino não suje suas mãos tornado,
artifício maior da afirmação da vida: "É claro que quero viver! Porém, não deste modo";
(3) Comprar um livro da livraria Karl Marx e poder escolher qual cartão de crédito que se
pode fazer o pagamento;
E a resposta? Poetizar a condição humana? Mudar enquanto pessoa é sempre para algo positivo? O
partido é propriamente cada um de seus membros? Toda forma de governo não socialista é neutra?
Romantizar as necessidades de sobrevivência? "A grama do/a vizinho/a é sempre mais verde"? Estetizar as
contradições e as misérias humanas? O mais alto valor do humanismo é que tudo é relativo? Pois bem, ao
menos há uma resposta sincera no filme A responda de que tudo é relativo... a algo absoluto: a finitude!
Valsa com Bashir - dançando com a dor dos outros terça-feira, 6 de julho de 2010
Outra porrada onírica (a primeira que
experienciamos nessa trajetória foi Walkin Lige) de
desfecho genial: o real. A escolha de seus realizadores
por contar a história via animação, amacia a carne, tal
qual um martelo para bife. No entanto, a náusea é
inevitável. O estômago tem seus próprios limites. À ele é
impossível a indiferença. Soco no estômago.
Desamparo. Desespero. Pequenez. Um indivíduo não é
nada. Ao menos o é algo se sempre reduzido.
Desprotegido. Um monstro lhe observa. Prestes a dar o
bote. Pessoa-presa. Impessoal-predador. Haveria algo
mais inumano que defender no olho por olho e dente por
dente qualquer Estado? É o que um soldado se pergunta
ao receber sua licença para matar. Mas um Estado não
tem olho, porém tudo vê. Mas um Estado não tem
dentes, porém tudo come, digere e defeca. Mas um
Estado só quer uma coisa: durar sobre os indivíduos.
Pois ele tem apenas um único interesse: o de ser rico ao
mesmo tempo em que se põe indiferente se eu ou tu é
rico ou pobre. Para isso não importa os meios. Pede-nos que cortemos nossas próprias cabeças e pomo-las
aos seus pés. No entanto, haveria algo mais humano que defender a dignidade da vida pelo cometimento do
suicídio? Manifestação radical da possibilidade de se autovalorizar – definir o próprio preço da vida se se
sublevando por meio da própria morte. Talvez o mais alto grau da dignidade humana seja suicidar-se para se
abster de matar. Lembremos que se isto for o caso podemos dizer que de modo indireto Mahatma Gandhi
cometeu suicídio. Não há ética possível para além do direito de legítima defesa? O que sabemos é que toda
ética vigente justifica o legítimo ataque: aniquilar a diferença, pois já sendo diferente, tal constitui de princípio,
uma ameaça à certeza de que “existe apenas uma forma de viver a vida”.
Ah, não venha com a bobagem de que é a condição humana cruel em sentido moral. O cru amoral é
anterior à crueldade moral/imoral. Nem mesmo que a alma é boa por essência. Tanto a alma quanto a
qualificação de boa por essência são um ideal, um espectro com pretensões a ser triunfo sobre a vida da
carne. A humanidade não é natural. É tal qual a natureza: engenhosa, artificial, limitada e em estado de
terminalidade. Qualquer humano defende, justifica e explica qualquer que seja a bobagem que o
interesse. Se há humanidade, há interesse. Se há sujeito, há interesse. Se há pessoa, há interesse. Se há
indivíduo, há interesse. Se há..., há artifício. O que seriam dos exércitos, se não fosse o exercício continuado
do interesse sádico? Matar do modo mais asséptico possível. Matar sem risco de morte. Matar a própria
morte.
E se virarmos o tabuleiro dos jogos de guerra? Óbvio que não. Guerra é tudo, menos jogo.
Burocracias da guerra. Eis o Direito Internacional. As regras básicas de como matar. Guerra justa. Guerra
santa. Não adianta a qualificação, a maquiagem, o ilusionismo. Guerra é profissionalização, industrialização e
especialização do ato de matar. E só! Reduzida à sua barbárie mais bárbara – industrializada.
Valsa com Bashir é um sonho, uma embriaguez, um transe, um privilégio de um ex-soldado, diretor.
Memória crua. Animação que anima a alma, o “anima". Confronto. Limiar. Memória. Escolha. Culpa.
Vergonha. Confronto fatal: humanidade vs. ideal; humanidade enquanto ideal; moral. Ou, Estado X indivíduo;
indivíduo-Estado (patriotada); Estado-indivíduo (exército). Quem é o inimigo? Quem está no limiar? A
memória? Sua dinâmica? Ser fantasma enquanto passado vivo? Ou seria a dor? Minha dor, sua dor? O que
faço a mim com a dor que vejo nos outros? E o medo? Quando e como morrerei? Quando e como matarei? o
medo me leva ao terror? De que tipo? Terrorismo de Estado? É possível vida para além do terror? É possível
viver em algum lugar nem pré nem pós-traumático? Na escolha? Na culpa? Na vergonha? Ou quem sabe,
fosse possível viver no centro de algum buraco-negro sem que se tenha que aceitar um lugar na hierarquia?
Onde o cotidiano não fosse um compromisso doutrinário? Onde não haja crianças lhe apontando uma RPG,
ou que sejamos esta mesma criança? O que seria a maturidade dessa infância? Ser cachorro? Ser soldado?
Depois ter o privilégio do esquecimento? Estar nu no mar... ou ser acalantado por uma mulher-mãe-azul-
gigante?
Dancem, dancem seres agonistas! Uma pessoa jamais pode ser reduzida à humanidade!
I love you - ou, Podemos amar qualquer coisa, inclusive
pessoas segunda-feira, 19 de julho de 2010
Quando o pensamento se colocar em movimento,
nossa atenção logo se volta ao que propriamente o
movimenta: a libido... Neste sentido, seria esta uma
energia originária, tal qual um combustível para que
máquinas funcionem? Será? Ou, quando a libido se
colocar em movimento, nossa atenção se volta ao que
propriamente a movimenta: o pensamento... Aqui, é objeto
pensado que se torna energia originária. Desse modo,
uma via de mão dupla ou um círculo, onde não se sabe
quando este se inicia ou tem seu término? Mão dupla ou
círculo a situação é que estamos numa questão
fundamental: seríamos seres tão especiais que, até
mesmo, nossas condições mais baixas e indizíveis
seríamos sublimes, ou seríamos seres tão desprezíveis
em baixeza que nos é necessário um esforço descomunal
para nos sentirmos o mínimo de sublime em nós?
Alto lá! Como assim? Sublimação para cima,
sublimação para baixo ou nada?
Ok, façamos a opção pelo nada e sugamos a um interessante experimento: I Love You (1986) – filme
de Marco Ferreri. Ah, o amor! Todo mundo fala dele. Todo mundo o reivindica. Para si, para os outros, para o
quê? Pois bem, que coisa é essa? Uma energia cega que nos arrasta pela vida? O ato mais sublime do
cálculo de uma divindade qualquer? O ato mais sacana do cálculo de um demoniozinho qualquer? Seria o
amor algo para se pensar? Algo para se sentir? Se isso, como pensá-lo? Como senti-lo? Afinal, e se tudo isso
não passou de um engano? O amor realmente existe? Ou seria mais uma antiga invenção que com o tempo
de uso tornou-se obsoleta? Pois bem, I Love You é resposta a todas essas questões. Resposta absurda, a
única possível para que salvemos nossas vidas... absurdas! Salvação, vida e amor: absurdos, impropérios,
imposturas.
Neste filme de Ferreri, as relações amorosas são todas singulares, portanto, cruas, reais. Sem
elaborações barrocas, românticas ou pós-modernas. Se arquitetônicas, poderiam ser chamadas de relações
amorosas Bauhaus? Como são as de Brasília e se amor arquitetônico. Garotos amam porcos e
computadores. Homens amam tudo o que passa na TV, ama uns aos outros e amam chaveiros. Mulheres
simplesmente amam – indiscriminadamente. Todo objeto de amor é ideal, portanto, passíveis de superação –
nós, os hiperobjetos a um passo de sermos superados/as, descartados/as. Todo objeto é ideal, portanto,
fantasmático. Fora disso o dinâmico: a libido. Esta é infantil. É inocente de qualquer culpa. Quer brincar. Sua
relação com os brinquedos jamais é banal. É crua e visceral. Amam com uma boa dose de crueldade,
apropriação e ciúmes. Niilismo e liberdade em si mesmo. Uma bifurcação fluida. Cujo único sinal é um
artifício, uma ferramenta, uma coisa útil humana demasiado humana: o amor. Neste tudo é cópula à dois,
casamento entre: máscaras e rostos, masturbação e TV, orgasmo e apatia, sarcasmo e identidade, bananas
e assobio, phalo e fala, excesso e falta, tempo psicológico de Michel (personagem central) e tempo de
direção de Ferreri. Também, no amor, tudo é único: atração pelo vazio; superficialidade como tudo o que
temos; todo o imaginário é autofágico; toda persona é nada mais que suas próprias fantasias; a única
realidade possível de ser experimentada é o fetiche.
I Love You é uma relação simbólica com resultados
diabólicos. É uma ideografia iconoclasta. Lá o mar está presente,
clássico símbolo do inconsciente, porém, junto ao seu duplo
marítimo: a TV. O assobio como a não linguagem do desejo que
busca satisfação – como os que fazemos para chamar cães,
estes parasitas afetivos que com tal parasitismo garantiram sua
sobrevivência quanto espécie. Mas não qualquer satisfação. Esta,
como algo inanimado. Passível de apropriação. "I love you", o
objeto de desejo. Dito em outra língua. Portanto, mais sedutor.
Michel símbolo do macho ocidental: bonito, independente, sem
esforço tem as mulheres todas atraídas por ele, e desse modo,
ambíguo com sua própria masculinidade. Pela banana e pelo
pênis ele se faz presente. Pelas entradas e pelas saídas tanto
pela porta quanto pela janela, se faz presente com todos os
nossos orifícios de entrada e saída – estes nossos múltiplos
modos de sentir prazer.
E assim... assobiemos à todo pulmão, para que
respondamos uns aos outros e as outras em um eterno retorno do
mesmo do parasitismo e das barganhas afetivas: I Love You! Por
favor, de novo, de novo e de novo...
A Montanha Sagrada - ou a teologia materialista do Real domingo, 8 de agosto de 2010
O filósofo alemão F. Nietzshe dizia que seu livro "Assim falou Zaratustra" era, nada mais nada menos,
que a versão alegórica de seu livro "Para além do bem e do mal". Como assim? Simples, os temas são os
mesmo. Só o tratamento que é diferenciado. Então, isso quer dizer que dá para falarmos sobre uma mesma
coisa de maneiras diferentes? Sim, é exatamente isso. Mas... o que isso tem a ver com "A Montanha
Sagrada" de A. Jodorowsky? Bem, diríamos que esse filme seria a versão alegórica do seguinte tema: a
alienação constitutiva do sujeito dentro da lógica simbólica. A Montanha Sagrada é um discurso logicamente
impecável, porém operando dentro de uma lógica diabólica. O símbolo une. O diábolo separa.
Jodorowsky não pretende estruturar uma realidade para nós. Através de um mimetismo distorcido de
rituais religiosos (por exemplo, um homem travestido é Maria, mãe de Jesus, e este um mero ladrão) ele
evidencia políticas estruturais (outro exemplo, a invasão espanhol-cristã ao México representada por sapos e
lagartos). A subida do Monte Carmelo (mística de João da Cruz) equivale à degenerescência de tudo o que é
sensual. (O atentado religioso contra tudo é o que é significante para nós). A civilização, (bem representada
pelos "escolhidos") em toda a sua pompa, glória, arte, tecnologia e poder, puxa as cordinhas, e fala por todos
os indivíduos. Estes apenas deliram. Cada um em sua singularidade delirante. O delírio é o que une cada
sujeito à sociedade e não a racionalidade. Sem ele não há experiência social possível. O delírio só pode
operar pela lógica simbólica. É o conectivo necessário para a ordem "natural" das coisas. Assim, tudo é
passível de desalienação é tudo aquilo que pode ser sublimado. O caos do mercado, os valores morais
decaídos e a manipulação asséptica do prazer, etc, não servem como culpados para a decadência social.
Apenas servem como aquilo que faz durar a sociedade. Pois o todo deve persistir sobre suas partes. É o
próprio sujeito em seu delírio o responsável pela duração da sociedade. Pois as partes devem se sacrificar
pelo todo. Em sua megalomania de hiper-vítima:
das circunstâncias, de outros sujeitos, da ordem
simbólica, etc. No entanto, Jodorowvsky pretende
estruturar o real em múltiplas realidades libertas da
ideia de moralidade – já que para as hiper-vítimas,
vez ou outra, se libertam de um costume moral
aqui, outro acolá, mas sem abrir mão da
moralidade mesma.
Até mesmo a revelação final de que o
filme é apenas um filme. Não é suficiente para
restabelecer um real diante da enorme trama entre
fantasia, ilusão e sedução – incapacidade de
reconstituir as dimensões abstraídas. O olho não
seletivo da câmera enquadra por mediação: o
olhar do fotógrafo e do diretor – transcodificação em conceitos das suas intenções para só depois filmar
(imagem transcodificada duplamente). O olhar do espectador já está condenado – o filmado é o real e o filme
é o pretexto. Em cada mediação, tudo é excesso, tudo é exuberante, tudo é pintado com as cores mais fortes
– colorir e jogar contra a luz e a sobra, contra o iluminismo que cega e a ignorância que tudo vê. Porém,
jamais sendo suficiente para ocultar o imenso deserto que é a realidade – trama de visões mágico-religiosas
e moderno-morais. Tanto o real quanto a ilusão são superficiais e regidas por regras estereotipadas de
exorcismo. Qualquer que seja a imperfeição, a miséria e o sofrimento, tanto no filme, quanto no mundo real
revelado ao fim, é ao mesmo tempo ilusão e realidade. Uma não se sustenta sem a outra. Uma apenas
aponta a outra, e assim a deixa intocável. Imperturbável. Real e ilusão como desprezíveis até o momento em
que cada uma delas transmite uma informação. Toda informação traga pela ilusão é transgressão inerente –
torna tolerável o real. Ao mesmo tempo em que se distorce sobre si mesma. Escondida por trás da textura
social explícita onde não há nada além de outra ficção simbólica consensual. O inverso também vale. Toda
informação traga pelo real é transgressão inerente – torna tolerável a ilusão. Ao mesmo tempo em que se
distorce sobre si mesmo. Escondido por trás da textura social explícita onde não nada além de outra
realidade diabólica consensual. Mais do que a alegoria simbólica narrativa de A Montanha Sagrada (uma
ficção com potência liberadora), é a sua lógica diabólica, que pode nos ajudar a sair da alienação das ficções
e da alienação das realidades. A lógica diabólica desse filme de Jodorowsky não nos revela o que está
escondido por de trás de todo ilusionismo, mas sim multiplica realidades transparentes frágeis como um copo
de cristal.
Veludo Azul - ou nada decidiu a forma de exsitência que
observamos quinta-feira, 12 de agosto de 2010
Comecemos com duas recusas
fundamentais: (1) Lynch enquanto crítica à
superficialidade e regras estereotipadas da vida
social, e (2) a sanidade para Lynch é deixar-se
submeter ao fluxo subconsciente da energia vital.
Essas recusas são fundamentais para mudar a
direção das interpretações comuns sobre Veludo
Azul. Portanto, desde já recusemos o comum. Assim
como David Lynch o faz.
Veludo Azul é um manifesto contra a
obediência (dever de) ontológica (ou metafísica) ao
grande, ora estimulante, ora anestesia ancestral que
nos parece inextirpável: a ideia de felicidade. Porque
manifesto contra a felicidade? Pois esta é a mais
sinistra e absurda disciplina para se divinizar algo. E
divinizar é o mais alto grau de cumplicidade
ideológica com a servidão à instância supranatural que acompanha qualquer aparição do real. Eis alguns
exemplos dessa cumplicidade: espírito, liberdade e natureza humana. Por que obediência ancestral? Pois
quanto mais antigo o imaginário, mais este se desdobra e se reforça em ordem moral, uma culpabilidade.
Assim, a ideia ancestral é sempre infalivelmente orientada por temas morais. Mais exemplos: primitividade,
autenticidade e pureza. E, porque inextirpável? Porque a realidade parece se sustentar em fantasias geradas
por uma unidade psicológica infalível chamada indivíduo (ou sujeito se preferir). Esta unidade infalível adquire
uma forma geral de crença de que os seres devem a realização de sua existência a um princípio não alheio
dele mesmo (interioridade/subjetividade) proporcional à imprecisão do mesmo. Um tanto confuso? Não, pois
quanto mais imprecisa essa unidade, mais se contribui para a crença em sua invulnerabilidade fundamental.
Assim o indivíduo torna-se invencível, pois o princípio que lhe dá consistência é vago, impreciso. Nada é tão
invencível quanto aquilo que não existe. Pois se sabe sempre dizer por que se crê nisso ou naquilo, porém
nunca se sabe dizer sobre aquilo em que precisamente se crê. Exemplos: muitos falam sobre como e porque
crer ou não crer em Deus-Pai, na Mãe-Natureza e na Felicidade, mas poucos falam sobre o que vem a ser
Deus-Pai, Mãe-Natureza e Felicidade. Claro, pois silenciar sobre tais coisas, os tornam impenetráveis à
críticas e à necessidade de demonstrações e até de descrições. Tudo se torna, portanto, normativo.
David Lynch substitui a demonstração impossível da obediência ontológica à felicidade pela
“mostração” do acaso imprevisível, singular e insoluvelmente contraditório dos gestos humanos – a dimensão
da impossibilidade do ordenamento pelas normatividades, sejam elas em sentido de norma ou de normal. O
grande inimigo dessa obediência não é a verdade a ser revelada, mas sim a precisão em que algo se mostra.
David Lynch é preciso. Sua ilusão e delírio é imagem precisa. Pois o diretor não se deixa mostrar nem como
ideológico (imagem imprecisa e prolixa) nem como cético (imagem silenciosa e moderada). Suas imagens
podem até serem imagens-erradas, mas jamais imagens-miragem. Pois Lynch aposta. Não há outra coisa,
escondida por trás do outro social que se explicita na perversão. Há sim uma multiplicidade de perversões
impossível de serem traduzidas umas às outras por serem elas mesmas positivadas por ocultamento. Todas
as perversões acontecem horizontalmente. É violência (diferente de violenta) tanto a relação de Frank e
Dorothy, quanto às relações de Jeffrey e Dorothy e de Jeffrey e Sandy. Nelas o desejo basta em si mesmo,
não como um fim em si mesmo, mas como meio entre dois nadas. Não se espera nenhuma confirmação da
experiência. Pois não existe nem mesmo uma ideia que possa confirmá-la. O desejo é um delírio simbólico
consensual. Não se pode acordar com quem já está acordado. É o mesmo que encontramos cotidianamente
tanto na instituição policial quanto na sociedade do crime – mal sabemos o que distingue mesmo um do outro.
E a produção desse limite escorregadio é tão mecânica e apressada que Lumberton é um mito formador de
nossa sociedade dita civilizada. Com seus jardins e flores bem cuidadas, essa cidade mitológica é o lugar
ideal para todo o tipo de violência e ocultamento. É somente nela que se representa um princípio original a
partir do qual a repetição (rito) somente é considerada por ter se começado a repetir. Mais aí vem a vertigem:
Lumberton é simultaneamente da ordem mitológica quanto na ordem ontológica. Pois é também lugar ideal
para besouros se bem alimentarem, para que em seguida, gordinhos, sirvam de alimento para pintarroxos.
Como também é lugar ideal para se morrer. Sua única função é negativa. Sinaliza sua presença e realidade
como tal, somente em oposição a sua ausência: que seria propriamente o caos pré-civilização.
Veludo Azul não é conivente nem com a ideologia realista (não faz pactos com a racionalidade
moderna que oculta uma violência irracional que lhe é própria) quanto com a ideologia ilusionista (não faz
pactos com a irracionalidade pós-moderna que multiplica uma violência racional que lhe é própria). Neste
filme é a inércia e o arbitrário quem permite conceber a passagem de uma perversão a outra, de uma
realidade a outra. A multiplicação de perversões/realidades nos mostra que o mundo (em suas dimensões
ôntica e ontológica) não é uma geração de uma Mãe-Natureza, muito menos um produto fabricado por um
Deus-Pai, mas sim algo fortuito e sem sentido. Sua impressionante narrativa não se reduz a nenhuma
promessa de explicação, muito menos uma representação surreal. É a expressão de um atentado a
desejosos e desejosas, ansiosos/as por ter uma realidade mínima que se possa interpretar, seja como
religião, superstição e ideologia.
Senhor das Moscas - ou, a arte tribal das crianças da
realidade suficiente. domingo, 22 de agosto de 2010
Comecemos este comentário com a belíssima mensagem de Raoul Vaneigem, para nós adultos/as:
"Tudo aquilo que pode ser destruído deve ser destruído para que as crianças possam ser salvas da
escravidão". Ahá! Que deliciosa tarefa. Imaginem só! Deixar como herança um mundo de prazeres e infernos
totalmente sem tédio. Deixarmos como herança algo além do realismo conformista e da paz perpétua. Se
achas penosa tal tarefa ou se achas arriscado demais! Então pensemos na hipótese de que tal empreitada
seja realizada pelas próprias crianças. Pensemos na hipótese de que as crianças é que devem experimentar
tal delícia – como as crianças que brincam com Barbarella. Sem nenhuma mediação – como as crianças no
episódio “Miri” de Jornada nas Estralas. Auto-herança! O que restaria para nós? Adultos/as obsoletos/as?
Adultos/as de uma última geração de adultos/as. Eis o experimento que nos convida às mais belas ideias
perigosas de um mundo sem adultos/as: Senhor das Moscas (Lord of the Flies, 1963, Peter Brook).
O título já incomoda: "Senhor das Moscas",
tradução do nome hebraico Ba'al Zebud. Sim, ele
mesmo! O sinônimo do diabo: Belzebu! O filme é uma
cinematização do homônimo clássico da literatura
inglêsa pós-guerra. A ideia central, de ambos, livro e
filme, é nas palavras da Wikpédia: "a regressão à
selvageria de um grupo de crianças inglesas de um
colégio interno, presos em uma ilha deserta sem a
supervisão de adultos, após a queda do avião que as
transportava para longe da guerra". E claro que esta
descrição é uma visão muito pobre do que ai se realiza.
Pois é muito difícil admitir que o real se constitua para
além de qualquer princípio exterior criado e endereçado
a fundá-lo, explicá-lo e claro, a justificá-lo. Daremos um
passo ao lado e numa esquiva contra esse olhar
miserável e arrisquemos uma visão mais rica,
exuberante e, portanto, perigosa: Senhor das Moscas é
a beleza crua da indiferença necessária pela esperança
e a certeza do nada constituinte do real. E assim o real inteiro celebra! Já que seu princípio é desprovido de
qualquer suprarealidade. Basta a si mesmo, enquanto dor, desamparo, tragédia, insignificância, efemeridade,
caráter único, crueza. Esta última, "crudus", cru, não digerido, indigesto. No entanto, sem tautologias abusivas
como: "verdade verdadeira" ou "realidade real". Sim, um protesto, como dizia Cioran, contra A Verdade. Ou
como dizia Nietzsche que a necessidade de uma fé forte é sim o seu próprio contrário.
Aos olhares empobrecidos é desagradável perceber que a tribo recém formada pelas crianças não
tem nenhum gosto pela certeza, portanto, não tem nenhum gosto pela servidão. Abolição de tudo o que é
adulto. São incapazes de se deixarem confiar em depositários da verdade. Abolição de todo amadurecimento.
São incapazes de trocar suas liberdades pela ilusão de que existe alguém que pensa por elas. Abolição da
Religião, do Estado e da Ciência. Tais não existem sem que eu tenha de fazer nada por isso. Agem
diretamente sem procuração. Não são funções nem ferramenta útil da humanidade. Crepúsculo dos símbolos
– não se quer nem mesmo ser escravizados pelas próprias máximas. Autonomia auto-revogável. O êxtase é
garantido por qualquer que seja a brincadeira selvagem. Ter condições de ser é o mesmo que atualmente
ser. Toda brincadeira é artifício. Toda história é suprimível a qualquer momento. Nada possui objeto concreto.
São paixões cujo centro está vazio. São lassidões banais. Desmistificações da crença (é desligião), do direito
(é anomia entrópica) e do futuro (é algo que está à espreita). A civilização é fantasia perdida, há muito deixou
de ser destinação. É preciso seguir – viver a vida até o fim sem se preocupar com o que é bom ou mal pra a
humanidade. É preciso restabelecer a sensualidade primordial e estérea – toda criação é mortal e perecível.
É preciso deixar para trás o ilusionismo que vincula um sujeito incerto a um objeto indeterminado – nenhum
pensamento existe, pois para existir precisa de corporeidade. É preciso uma arte em que a realidade seja
suficiente sem nostalgia alguma. É preciso um artifício que se veja enquanto tal, para somente aí, o natural
celebrar-se, em volta da fogueira, toda a sua natureza. É preciso um monstro! Em seu significado primordial:
aquele que mostra. Caprichoso e mutável – inconciliável tanto com o real quanto com o ideal. Mostrador de
que, qualquer que seja aquilo que se ocupe enquanto objeto de crença, nada mais é do que uma provisória
compensação da incapacidade fundamental de crer. O monstro é aquele que mostra a condição humana
mais crua e infernal: o eterno saltitar de um objeto de crença a outro, no qual todo crédulo está condenado
por sua fundamental incapacidade de crer verdadeiramente. Eis a arte tribal das crianças da realidade
suficiente do Senhor das Moscas: suas causas são as causa que se auto-consomem.
Sociedade do Espetáculo - ou, a narração da Ontologia do
Vazio domingo, 5 de setembro de 2010
Guy Debord, filósofo, cineasta e realizador da Internacional Situacionista, na França da década de
1960. Sociedade do Espetáculo, livro e filme, palavra e imagem. Enquanto livro, palavras, no entanto
invertidas. Palavras desatadas ao seu respectivo significado – em contra exercício do poder que assegura o
domínio da palavra. Tomada de poder é também aquisição de palavra. Mas as palavras de Debord é
destruição do poder e não luta por ele. Para tal o livro é composto como aforismos paráfrases, em
deturpação revolucionária – é palavra-líder guerrilheiro que nos indica o lugar real do poder. Seu tipo de
escrita incita quem lê a decifrar a visibilidade de suas ideias. Alastramento. Ação de vaguear. Ato errante.
Aventurar-se. Propagação. No livro, Guy Debrod mergulha seu pensamento nos diálogos das ilusões que
alienam e recusam o real. Recusa que está a meio caminho da cegueira voluntária de Édipo Rei e a estranha
aptidão humana de substituir uma besteira por outra como se fosse algo indispensável ao psiquismo.
Diálogos entre ilusões: o abuso público e individual cotidiano de uma visão de mundo dialogando com o
produto das técnicas de difusão massiva de uma visão de mundo. Cínica simbiose entre emissor e receptor.
No livro, a palavra critica a imagem quanto direto do poder; quanto única fonte de representação legítima.
Esta cujo poder é magistralmente conduzir nossa natureza irracional. Pois a palavra é tardia. É razão. É quem
tem a necessidade de precisar a imagem. É quem tem a necessidade de configurá-la em discurso. Uma só
imagem é um discurso em si. Mas o encadeamento de várias delas é estruturalmente intencional. Assim, eis
que surge a necessidade de Guy Debord em voltar a
um estágio relacional primário da imagem: o cinema!
Guy Debord faz do livro um filme. Inverte a
condição do poder e seu exercício e domínio das
imagens. Nada filma para compor a cinematização de
Sociedade do Espetáculo. As imagens são filtradas
pela montagem e não pela filmagem. Filtragem
apropriada. Ressignificada. Deturpada em dupla
ausência irremediável dos corpos representados. Um
jogo de espelhos da liquidação mágica de qualquer
realidade. Um jogo de espelhos que reflete muito
mais do que o reflexo. Um jogo de espelhos que
provoca o imaginário. Um jogo de espelhos que intima
a interpretação às situações patentes e latentes de
quem ali é refletido. O discurso da palavra-líder
guerrilheiro torna-se imagem-líder guerrilheiro.
Discurso vazio justamente por ser discurso contra-poder, pois nenhuma ordem pode mais ser dada.
O/a espectador/a é colocado/a como o extremo oposto da violência – esta essência do poder. Vê-se
em primeira e terceira pessoa ao mesmo tempo – garantia que impede que alguém se torne alguém de
poder. Desse modo, espectador e espectador não se vêm enquanto indivíduo (enquanto algo impossível de
divisão) se vê como a própria percepção do vazio do eu (adesão de certo eu a de certo algo). Na imagem
duplamente refletida do filme, Narciso não se vê. Não se encanta por si, nem pelo espelho. Narciso se vê
enquanto pura consciência impessoal do social. Seu reflexo é propriamente um imaginário espetacular. Aí se
encanta. Só se é único enquanto mímeses de seu meio coletivo. Um sujeito incerto ligado a um objeto
indeterminado. Uma atenção exagerada ao outro.
O filme é um meta-filme de um cineasta que nada filma, é apenas narrador – nada normatiza.
Narração sem paixões – paixões sem objeto concreto, como qualquer paixão; sem comando nem obediência.
Pois é narrador do filme narra uma ontologia do vazio – quem tem poder da palavra e da imagem e quer
usufruir de ambos, deve ser abandonado/a. Tudo o que está aí é propriamente transcodificado como imagem,
próprio não-estar-aí em presença é o núcleo vazio de todo dever-ser desobediente. Tudo o que está aí
desimaginado é propriamente coisa que pode vir a existir num horizonte anárquico e inquieto em recusar o
poder que o fascina. O estado natural do estar-aí: nada e tempo (terminalidade) – nenhum destino despótico,
nenhuma falta de instituições. Imagem e palavra como órgãos que não podem ser removidos do corpo pelo
princípio de reciprocidade entre tais. No entanto o conflito é aberto. Tudo o que está no filme Sociedade do
Espetáculo é um desejo de coisa nenhuma – abandono de autoridade da chefia. Uma inspiração por coisas
vagas – neutralização da virulência do poder político. Uma arquitetura mediadora para ocultar a angústia face
à existência – não-estar-aí é um mal menor, pois tem-se a garantia que ao menos foi imagem. Um precipitar
de acontecimento. Porém, precipitação de fortaleza inexpugnável. O espetáculo capaz de frustrar qualquer
possibilidade de ataque. Espetáculo que tem uma sociedade inteira que lhe permite afrontar, qualquer
questão e crítica, de modo sereno. Sociedade do espetáculo, o filme, a narração do excesso paranoico de
racionalidade da própria sociedade do espetáculo.
Lucio, o anarquista - Ou, quem tem medo do anarquismo? quarta-feira, 8 de setembro de 2010
No dia 31 de agosto de 2010, o Perfume do
Deserto em seu Cin‟surgente apresentou o filme
"Lucio, o anarquista" (2007) dos diretores Jose Mari
Goenaga e Aitor Arregi. Daí aconteceu um daqueles
acasos felizes: apenas uma única pessoa veio à
exibição e, esta, um brasileiro que imigrou para a
Espanha, já há alguns anos como imigrante ilegal,
hoje faz parte ativa do movimento anarquista local
frequentando o espaço cultural "Louise Michelle"
aberto pelo próprio Lucio (biografado pelo
documentário)!!!
Resultado: a conversa após filme foi ao
mesmo tempo diálogo de coisas solenes e fazer rir e
caçoar dos nossos próprios temores e misérias.
Tanto foi que, em um dado momento, resolvemos
fazer um experimento, tal qual o proposto pela
ativista e jornalista canadense, Naomi Klein em sua
tentativa de refundar o pensamento socialista no
mundo, decidimos que era hora de escrevermos um
texto inicial tentando também restituir forças originárias do socialismo, porém em sua forma que mais nos
agrada: o anarquismo. E assim, nos tornarmos anarquia e não anarquistas, ou nos termos de Edson Passetti,
explodir o anarquismo histórico em heterotopias anarquistas geográficas. Eis o resultado desse acaso feliz
irrepetível:
A anarquia sob as considerações quânticas de fisiologias desviantes
I
Nós, de instinto anarquista, sim! Espécie ilimitada de forças (em escala molecular) voltadas para a agitação
alquímica da sociedade. Espécie ilimitada de forças – com capacidades de produção e reprodução autônoma
– de um gênio químico e genético que transforma as qualidades íntimas da civilização átomo por átomo, gene
por gene. Nossa perspectiva é a da reação combustiva de forças em escala microscópica que auto-organiza
grupos de afinidades moleculares. Sendo assim, não nos é suficiente apenas libertar-nos de composições
macromoleculares – seja ela um governo ou mesmo um movimento que carrega a antimatéria “ismo”.
Libertemo-nos de nós mesmos enquanto indivíduos, enquanto pessoa! Nem altruísmos, nem solidarismos.
“Liberdade” em implosões micromoleculares utilizando todos os recursos das tecnologias finas das nano-
inteligências que compõem nosso corpo – tudo o que é vivo e tem sua consciência voltada para um viver
exuberante, sejam partículas atômicas, sejam células. Sem as hipóteses dos séculos XIX e XX que visavam a
organização de grupos por líderes, instituições ou mesmo causas. Hipóteses que não mais tocam o valor de
um ser humano de pulsões anarquistas. Valores até então baseados na história, no progresso, na
democracia, na verdade e em Darwin.
II
Nós, de instinto anarquista, sim! Precisamos de hipóteses mais ousadas para o nosso tempo que é agora!
Um tempo que não está regido por relógios ou calendários. Um tempo regido apenas por qualidades de ser. A
agitação e a velocidade em nossos corpos acontecem já em níveis quânticos, cujo processo é o das
mutações aleatórias (radioatividade: quebra espontânea de núcleos) em graus de complexidade (vide o
Princípio da incerteza de Heisenberg) que aumentam de acordo às suas respectivas precipitações. Níveis de
espaços livres que se auto-organizam e se autodeterminam sem liberdade de movimento (singularidades),
apenas jogos e configurações aleatórias de forças (eletromagnética, forte, fraca e gravitacional). Assim que
as mutações aleatórias passam para níveis não mais quânticos e, portanto, menos vibrantes da matéria –
nossas realizações socioeconômicas e culturais –, elas acabam por compor nosso conjunto de inteligências.
Tal conjunto não perde sua perspectiva da catástrofe e, ainda, ocupa pontos estratégicos para a
manifestação da vida. Não há como domesticar, controlar ou mesmo reapropriar tais formas de vida. Pois
suas identidades são nômades. Identidades quânticas! Nós, de instinto anarquista, sim!
III
A tragédia? É não conseguirmos subsistir por muito tempo. Tudo o que não é extremo é tudo aquilo que
mantém uma imortalidade aparente. Nossa realidade é extrema, portanto, impermanente. Temos um encontro
marcado inadiável com a morte. Somos propriamente morte. Nossa constituição corporal é frívola. É inocente.
Nela não há moralidades, apenas instabilidade. Somos leves, furtivos, portanto, sedutores. Um dia,
certamente, morreremos. Hoje, incertamente, vivemos. Em nós a morte potencializa a vida! Dos níveis
quânticos aos níveis menos vibrantes da matéria, é a destruição que cria. Toda partícula possui sua
antipartícula – sua mais própria possibilidade de aniquilação. O próprio cosmo é uma agitação e movimentos
realizados entre seu Big-bang e seu Big-crunch. Como a do cosmo, eis a nossa singular condição extrema:
* Nós, de instinto anarquista, sim! Não renunciamos a guerra – somos guerrilheiros (as)
entrópicos (as). Sim, desprezamos lutas entre nacionalismos, lutas entre dinastias
capitalistas, lutas entre a patriotada, e lutas entre ídolos.
* Nós, de instinto anarquista, sim! Renunciamos o “livre-arbítrio”, exaltando nossos
contrassensos fisiológicos. Basta nossa pulsão desgovernada agir para o extravio da
política de gabinete, para a recusa ofensiva do povo, da raça, do gênero, do trabalho e da
formação escolar, da classe, e enfim, basta nossa pulsão desgovernada agir para a
emancipação da civilização social e democrática de direito aparecer.
IV
Eis a vibração quântica reverberando em nossa fisiologia: a radioatividade quebrando espontaneamente os
núcleos de nossas crenças; a entropia medindo a desordem de nossos sistemas de pensamentos; a
singularidade dando cenários possíveis para o fim das metas até hoje existentes. É a anarquia acontecendo
em todos os níveis de nossa existência. É a anarquia quântica servindo como motivo condutor do instinto.
Breve, em sua realização. Plena, em sua energia. Bela, em seu acontecimento. Sublime, em sua destinação:
hipóteses com forças mais violentas de criação e autodestruição!
V
Nós, de instinto anarquista, sim! Uma reação contra todo não dizer e não fazer! Ou, uma cura para o dizer
excessivo e o fazer sem consequências!
Virada Movies - 2010 Quarta-feira, 15 de setembro de 2010.
Ah, o acaso... pleno de sentido epidérmico e de vantagens de entranhas... por vezes nos levando ao
momento oportuno... neste setembro de 2010, o acaso nos levou a uma comunidade intencional muito
interessante – de temporada curta, mas alegre. 12 horas de existência fílmica! Das 21hs da noite de 06 de
setembro às 09hs do dia 07. Uma singularidade de eventos efêmeros e libertários em conjunção dissimulada
de gai savoir indígena e cigano. Nela escolhemos cinco filmes que nos ajudariam em nosso auto
encaminhamento dos pontos de ruptura escolhidos por nós mesmo/as – somente para irmos para além de
nossos ideais, pois convém inverter as origens de nós mesmos/as. Foram eles os escolhidos: Blade Runner
(1982 – EUA – Ridley Scott), Persepolis (2007 – França – Marjane Satrapi), Nós que aqui estamos por vós
esperamos (1998 – Brasil – Marcelo Masagão), Zatoichi (2003 – Japão – Takeshi Kitano), e Zero pela
Conduta (1933 – França – Jean Vigo). E ao final dessa viagem fílmica, um delicioso café da manhã.
Com Blade Runner (1982 - EUA - Ridley Scott) aprendemos duas formas diferentes e opostas do desejo de
permanência: uma de gratidão e amor e outra de lei e coação. A primeira forma – Roy Batty consagrado pela
invisibilidade de suas lágrimas na chuva – representa a vontade de permanência enquanto insistência em um
tipo especial de amor: gratidão por estar-no-cosmos como paradoxo da existência – ser muito para ser
considerado nada e ser pouco para ser desprezado em relação a tudo. Roy não quer simplesmente
permanecer no mundo. Ele quer agradecer o devir, sua natu-mortalidade, com a morte de seu criador –
sacrificar seu criador em honra a si mesmo: consagrar os privilégios do ser com os privilégios do nada. Roy
basta a si mesmo e a única coisa que lhe falta é tempo. A segunda forma do desejo de permanecer é
Deckard consagrado com sua memória de um unicórnio. Ele sofre. É insignificância intrínseca: como mero
caçador, mercenário, não pode se sentir como necessidade alguma. É um torturado pela culpa. É
insignificância extrínseca: é também caça, não ocupa lugar imperceptível. Isso o faz querer que seu
sofrimento torne-se lei obrigatória – que sua crença em si mesmo se nutra do horror de sua própria lucidez.
Ele quer permanecer no mundo enquanto ingratidão do que se é – sacrificar a si mesmo em honra ao seu
criador. Ser de bom grado oprimido e opressor.
Em Persepolis (2007 – França – Marjane Satrapi), pudemos transitar por uma geo-autonomia muito peculiar:
um "retorno" ao mesmo tempo em que se dá um passo adiante – memória e história como um projeto de
autodenominação numa narrativa mnemônica de mesma grandeza que um conhecimento histórico. Marjane
Satrapi, uma estrangeira em sua própria terra (produz conhecimento local, no entanto está sem lugar de
intervir) que recusa ser um sujeito universal (abandono de qualquer macronarrativa) sob o horizonte do ser
englobante (recusa de que um discurso acadêmico, portanto letrado, seja por si só uma crítica cultural). Sua
trajetória geo-autônoma lhe dá a percepção de que o Ocidente não é algo para ser imitado (homogeneidade).
A nacionalidade não é algo para ser reencontrado (dominação). A personagem nos aponta para o risco mais
que necessário, para nossa boa saúde, de respondermos afirmativamente a seguinte questão: como
estaríamos sem a religião, o Estado e os trabalhos forçados?
Ah... e a maratona fílmica segue pela madrugada... em Aqui estamos por vós esperamos (1998 - Brasil -
Marcelo Masagão) tivemos acesso a um só tempo ao pensamento de vida (a busca por uma causa ou
pretexto externo que seja responsável por nossa terminalidade) e ao pensamento de morte (o profundo
respeito pelo outro tão desvalido, frágil e efêmero como eu). Provação e prova. A cinematização e da história
do século XX. Esta nos é apresentada como certeza do detalhe ao mesmo tempo em que é incerteza do
conjunto: o mesmo princípio que nos é próprio também nos é alheio. Nada mais justo para nós: tudo é único,
irremediável e inapelável, menos a narrativa sobre tais. O reino do cemitério é soberano, mas o do berçário
se pretende inviolável. Cada pessoa morta é um constrangimento para nosso estar-no-mundo atual.
Contando-nos suas histórias, mortos e mortas revividos por uma narrativa alheia, se apresentam como um
"poderia-ter-sido". Para nós uma mensagem do além, sem ser fantasmagórica: sejamos mestres da dança
(como as caveiras do Día de Los Muertos no México), incitadoras à aventura (como os piratas que sabem que
sua vida será encurtada pela própria pirataria), sedutor e tentadora (como as atrizes astecas que ao
representar suas divindades se sacrificavam assim como tais), educadores/as do por vir a ser (como políticas
negativas cabrerianas onde o pessimismo, a tristeza, o niilismo e o suicídio são formas de tomar posição
diante da exigência inevitável da existência) – tudo isso, enquanto há tempo!
Nossa quarta parada foi em Zatoichi (2003 - Japão - Takeshi Kitano), um ronin cego, massagista e jogador
de dados. Com ele aprendemos que a ética da servidão samurai a seu daimyo (senhor feudal), como a
descrita no Hagakure por Yamamoto Tsunetomo no século XVIII no Japão, pode ser pervertida em uma
estética de um samurai sem amo. Zatoichi é espadachim autonomista entrópico. Seus ensinamentos dizemo
seguinte: vivemos no mundo onde todo viver é um desviver; reagimos às coisas que nos rodeiam de modo
sempre difuso, indeterminado, informulado, impossível e absurdo; só que tais reações são orientadas pela
intuição de justeza entre a morte como condição da vida e a impossibilidade de uma vida não mortal. Justeza
enquanto esquecimento, inocência, jogo, afirmação, criação, abertura, possibilidade, início. Com sua espada-
bengala ou bengala-espada, Zatoichi nos ensina que é preciso seguir os instintos da cegueira que pode até
ser voluntária, caso contrário, somos persuadidos/as que o mundo é tão terrível que nem mesmo nos permite
ignorar o binômio comando-obediência.
Por fim, com o sol já alto, o último mirante dessa jornada-maratona de 12 horas seguidas de filmes: Zero pela
conduta (1933 - França - Jean Vigo). Rever este filme nos abriu uma perspectiva latente: Caussat e Bruel
como tutores-condutores: revolta infantil que nos abre o mais belo espaço de abrir mão daquilo que impede
nossa livre personalidade: ser livre sem garantias e preocupações com o futuro! Crianças cujas causas são
elas mesmas. Causas que não se sustentam mais sobre nada. Indeterminadas no que virão a ser. Novidade,
transgressão, invenções. Começo absoluto fora do tempo e da história. Após as férias e de volta às aulas que
Caussat e Bruel sejam kairós (momento oportuno) e aión (guardião do passado e do futuro) contra chronos (o
tempo sequencial). Luta contra o princípio de nossa educação: a inveja adulta para com a coragem e o vigor
da infância sem sofrer os danos da infantilização.
Após tão instrutiva caminhada... nada com um delicioso café da manhã ao estilo beduíno: todos e todas em
um único círculo em volta de uma farta mesa à altura do chão, compartilhando com a mão pães, homus,
frutas e chá preto. Ingredientes frescos e pães recém-saídos do forno. Quem sabe você não esteja na
próxima Virada Movies? Desde já, sinta-se convidado/a.
Vida Cigana - ou adesão à existência sem remorso nem
segundas intenções quarta-feira, 29 de setembro de 2010
Não é Deus quem organiza a
providência geral, mas sim, o acaso. Para sentir
tamanha felicidade é preciso uma vontade de se
desiludir e de se desrrealizar. Uma paixão que
não necessite da caução divina para disfarçar os
múltiplos inconvenientes ligados ao viver.
Provação e prova simultaneadas. Nenhum
lugar há para filosofias-Prozacs. Mas, sim, todo
espaço possível para a evidência da morte, do
efêmero e do sofrimento. Belíssima aliança
secreta entre o trágico e o jubiloso. Ocasião
muitas vezes vista como mórbida, mas
ao contrário tal aliança é sinal da maior saúde.
Eis "Vida Cigana", filme do diretor sérvio cirílico
Emir Kusturica. Com toda a certeza um dos
melhores filmes já passados pelo Cin‟surgente.
Desde o refinamento de seus elementos técnicos
passando pela delicadeza do delirado, até a
rudeza da afirmação do real que basta a si
mesmo.
Antes de tudo, é válido lembrar que, sem
música e dança, não haveria Kusturica. Não pelo
fato de Kusturica ser um cineasta músico, mas pelo fato de sua constituição cigana: vive-se com o olfato e
com o gosto, com o ouvido e com o tato, com o ventre e com a festa – não há hierarquia dos sentidos como a
imposta pela tradição metafísica dos olhos. Isto o leva a uma peculiar cinematização: o amplíssimo júbilo
sensorial cigano – como o já visto por aqui em Latcho Drom de Tony Gatlif. Cinema como consequência da
música e da dança: imagens fazem ver, comunicam uma visão, transmite perspectivas, recorta e fornece
distâncias, distribui formas e cores; no entanto, é preciso assisti-las com olhos múltiplos e interessados –
olho-olfato, olho-paladar, olho-tato, olho-audição. Um filme assim realizado, de olhos múltiplos de um júbilo
cigano, é relegado por muitos como vulgar, como pontos de vista de segunda ordem, pois a alegria cigana,
afirmação jubilosa mesmo no trágico, não é considerada digna de interesse para além do exotismo bufo. É
preciso cheirar as imagens. É preciso dançar com elas. Rir junto. Assim Kusturica ri, e ri alto, ao mesmo
tempo em que ouve as harmonias mais delicadas da música que são os ciganos e as ciganas. Kusturica faz
uma caricatura despreocupada de uma família da antiga Iugoslávia, se opondo radicalmente, tanto ao
romantismo e sua atmosfera carregada, quanto às vulgaridades interpretativas de sedentários, de
movimentos cansados e quase enfartando, e de outros coveiros e seus passinhos engenhosos pelas tumbas
do pensamento.
As personagens de A Vida Cigana são todas experiências imediatas à realidade sensível e empírica
de uma grande comemoração – casamentos e funerais. Sempre entre festas e festejos estão absolutamente
à vontade em suas existências – sua jovialidade e leveza são resultados da rara arte de dançar e fazer
dançar. Não sentem vergonha nem culpa – pois são ágeis e flexíveis. São expressões de certas forças vitais
que bailam com as forças mortais, que nada tem a ver com dissimulações, que estão mais para um ética da
crueldade (como diria o filósofo francês Clément Rosset) do que para as éticas europeias que os tornam
estúpidos e estúpidas: o lúcido louco, o noivo bêbado, os bastardos, o viciado em jogo – causas de si
mesmos, nenhuma resistência, toda valentia, flexibilidade, astúcia, portanto, nenhuma consciência obstinada
perante objeções – ciganos e ciganas sublimes e cruéis (não em sentido moral) que possuem todas as
qualidades do/a aventureiro/a que rejeitam os caminhos seguros e conhecidos da civilização e atrevem-se a ir
a lugares nos quais nenhum caminho está traçado. As crianças vendidas, as exploradas pela mendicância
semi-profissionalizada, a prostituição, a máfia, múltiplos coloridos selvagens. Danira, Pehran, sua avó, seu
peru de estimação, sua pretendente, todos/as preparados/as para um Carnaval em grande estilo: condição
radicalmente inversa a da Europa desanimada, desiludida e quase desfalecida. Todas as personagens
afinadas para a mais espiritual das gargalhadas: a liberdade libertada. Todos/as prontos/as para a exuberante
e carnavalesca sabedoria aristofântica: profunda sabedoria ambígua tragicômica que às vezes aparece
revestida de ingenuidade e exaltação. Nobres traidores/as de todas as coisas que podem ser traídas – os
ideais da velha tradição platônico-judaico-cristã-europeia! Pura expressão da alegria da mudança e da
passagem, do presente inatual, intempestiva.
A cosmologia da "Vida Cigana" é: jamais se render à violência da vítima, ou seja, ao deixar-se vítima,
a vitimização. Não há um externo eternamente culpável – a predação é generalizada e horizontal. Dessa
negação, a maravilhosa sabedoria trágica do povo cigano: a liberdade jamais deve ser substancializada – não
é uma relação entre “eu quero” e “tu deves”. Ou ainda: de que todo nacionalismo é nostálgico e teme o futuro
– viver em cigania nada tem a ver com o progresso e tampouco com a repetição. Não é pontuação do tempo
em direção ao passado, nostalgia de uma era de ouro, nem em direção ao futuro, nostalgia de um paraíso
inalcançável. Neste sentido, viver em cigania é, nem máximo, nem mínimo de nação possível. Nenhum leito
de enfermo para a política, como são impostas as vontades da maioria que, na falha do diálogo e da
negociação, votam e elegem. É bom lembrar que não lhes interessam o direito de ir e vir, pois querem apenas
passar, desse modo não são culturas glaciais, como são as que geração instituições como Ministérios e
Secretarias da Cultura. Também que não lhes interessam um humanismo que tenta imprimir com brasa uma
regularidade ao mundo e uma qualificação de inumanidade a quem lhe é diferente. Sim, a pessoa genial, no
filme de Kusturica, é a antítese mais radical de qualquer que seja o Estado, a Igreja e/ou o Trabalho forçado.
Wood & Stock - ou o futuro de uma ilusão sexta-feira, 1 de outubro de 2010
O maior, e talvez o único, problema humano é o tempo. A religião, a filosofia e a ciência já tentaram
defini-lo das mais variadas formas. Definições independentes e até em combinação entre si. No entanto, a
humanidade vive seu tempo como terminalidade, sem conseguir apreciar seus variados conteúdos de fins e
finalidades. Parecem precisar de se distanciar; de tornar o passado e o futuro presentes. Necessidade vã,
pois o tempo, sempre imperioso, se coloca virtualmente como o maior inimigo tanto desse distanciamento
quanto da própria humanidade. Isto, pois, necessariamente, sempre esteve identificado com a morte, ou
melhor, com a mortalidade sem levar em conta que cada minuto de desviver é um idêntico minuto de viver.
Estar no tempo é, irreversivelmente, estar vivendo/morrendo. A humanidade não está, espontaneamente,
inclinada a essa consciência simultânea. Pensa que há antídoto para a terminalidade: conforto,
entretenimento, metas sociais e profissões. Tudo isso para ocultar... o tempo.
E, é sobre as formas de ocultamento do tempo que trata esta terceira deliciosa alucinação animada
intitulada “Wood & Stock - sexo, orégano e Rock'n'roll” (2006), da Otto Animações, cinematizada a partir dos
cartoons de Angeli. Seu enredo é sobre dois velhos hippies que, supostamente, “pararam no tempo”; que
supostamente “ainda vivem no início deste século XXI do mesmo modo que viviam nos anos 70 do século
passado”. Digo supostamente, pois aos nossos olhos (apressados pelo oásis da velocidade técnica e pela
ilusão de progresso) temos a miragem de que nós, sim, seguimos no tempo – avançamos, progredimos.
Porém, o contraditório flash back de cogumelo que
lança Wood ao seu futuro mostra exatamente o
inverso. A liberação sexual, o uso de
potencializadores de prazer e a sempre saudável
aversão ao trabalho e ao sacrifício das paixões
perderam para a frustração dos desejos
impulsionais, para a proibição das liberalidades e
para a privação do patrimônio psíquico individual
tornando cada vez mais raras as opiniões próprias.
O futuro para Wood e o presente para nós, é a mais
alta potência da juventude mumificada. Em outras
palavras: é a potência de que cada visão individual
de mundo não brota da plenitude da natureza jovem,
e sim, de um eco daquilo que já foi pensado, falado,
censurado e elogiado à nossa volta. A arte de viver
em rejectivos liberadores, ensinada pelas velhas
gerações, foi trocada pela democracia de
supermercado, pela autonomia de self-service e pelo
hedonismo em que os prazeres são pagos para serem higienizados, pasteurizados e esterilizados.
Wood, Stock, e toda a "velha-guarda" (que se resume apenas ao amigo Paranormal) reunida no
banheiro de casa, não têm a menor necessidade de tornar suportável o desamparo humano frente ao tempo.
Não usam mais drogas pesadas, fumam orégano! E, encaram isso apenas como um ritual de lembrança
relativo ao desamparo da própria infância hippie, pois quem julga ser qualquer tipo de dono de uma verdade
fundamental, se sente no dever de promover inquisições. Apesar de parecerem estacionários, suas paixões
vagam livremente. E aqui surge a expressão máxima da animação: Sunshine! O porco musicista. Ele é a
própria exuberância libidinal não substituída pelo ciclo da mercadoria que o ser humano produz e reproduz. O
porco, e sua sujeira metafórica, surgem para fixa-se nos objetos apenas para garantir a impura satisfação de
desejos fundamentais, cujo neocapitalismo ecológico tenta, a todo custo, higienizar usando as liberdades
modeladas pela liberdade de comércio. Sunshine não é nenhum "como se". Sunshine, simplesmente é. Ou
seja, é o próprio real que basta a si mesmo. É nenhum esforço para criar ilusões. É irreligioso, por excelência.
Nele não há nenhuma insinceridade nem maus hábitos intelectuais. É manifestação de uma maior saúde que
significa o maior perigo para a cultura dominante do carreirismo e do realismo conformista. Sua postura e sua
expressão no exato momento anterior a seus vocais são de uma impressionante nobreza insurgente.
O futuro de uma ilusão – subtítulo escancaradamente roubado de um livro de mesmo nome de Freud
– é a mensagem de Wood para todas as pessoas sem imaginação que começam a desconfiar do lugar de
destaque conferido ao conforto, à cultura, aos lazeres que destruíram sua imaginação: é possível mudar de
monotonia, mudar de ilusão? Nesta espécie de último suspiro contracultural, um alerta é dado às futuras
gerações:
"... Cuidado crazy people! As instituições, as leis e as prescrições culturais serão a neurose
obsessiva da humanidade! Elas serão um sistema de ilusões que nega à realidade que a
imaginação esteja no poder! Cuidado crazy people! A humanidade só dará um passo adiante
rumo à evolução, quando nós soubermos que dependemos apenas de nossas próprias forças.
Apesar de minha imaginação ter um caráter delirante ela é corrigível..."
_______________________
Curiosidade: Wood, Stock e Sunshine nos pregaram uma peça engraçadíssima. Numa espécie de piada
metafísica. Assistimos toda a animação numa velocidade, quase imperceptível, mais lenta que o normal.
Somente em seu final, estranhamos que os 81 minutos da animação aconteceram em um tempo de 120
minutos! É que o VLC Media Player estava com o tempo de reprodução lento marcado. Desse modo
pudemos sentir na pele os efeitos, em tempo real e sincronizado aos personagens, de fumar orégano.
Solaris - matando a Coisa e mostrando o ... a coisa mesma. domingo, 17 de outubro de 2010
Não existe filme de ficção-científica que não seja projeção de nós mesmos/as – representação
amplificada daquilo que já conhecemos ou realização exagerada daquilo que possuímos virtualmente. Por
exemplo, todo alienígena é uma "coisa-alheia" que vem do espaço exterior cheio de intensões inumanas, no
entanto sempre acabam como "subjetividade" que imerge de nossas entranhas humanas demasiada humana
– pelos gregos esses alienígenas foram nomeados pelo termo genérico de Psique. Uma contradição bastante
interessante, pois o que está de fora não vem de fora, vem de dentro. A "coisa-alheia" é revelada como nós
mesmos/as! Assim, falar sobre essa questão seria propriamente tecer teorias psicológicas de alto nível, fazer
um ensaio tradicional sem escândalos interpretativos, sem realismo fantástico ou até mesmo sem iconoclastia
filosófica. Querem um exemplo de tratados desse tipo? Leiam o que foi escrito pelo filósofo Slavoj Zizek. No
entanto (!), a situação do filme Solaris, do cineasta russo Andrei Tarkovsky, exige algo além de rótulos
óbvios. Exige uma interpretação à altura do gênio de Fitzcarraldo. Sendo assim, utilizarei a pornografia (como
uma grafia pornô antes de qualquer coisa) como recurso metodológico para uma análise refinada desse
magnífico filme.
O que há de mais tranquilo, regular e monótono do que o percurso de uma estação espacial orbitando
um planeta qualquer? Os horários são precisos. A vida estudiosa monótona, sem aventura
espantosa! Porém, a "coisa-alheia" ronda como uma única perturbação possível: a hipocondria –
enfermidade da imaginação. Quanto mais se quer evitar a "coisa-alheia", mais ela é alimentada como não
alheio. Pulsão imaginativa. Força que age nas zonas mais nobres do psiquismo. Ação impura e louca! Desejo
amoroso! Orgias psíquicas! Assim é preciso curar o cientista. É preciso purgar-se desses amores proibidos. O
superego científico está de vigília, pois quer estar pronto
contra qualquer pulsão insurgente; contra qualquer
demônio artesão de devaneios – fantasmas sexuais.
Esses que se agitam em momentos delicados do dia: o
reino da noite. Os devaneios noturnos são os mais
perigosos. Pois, abrem espaço para a vagabundagem
dos desejos – o reino da masturbação! É preciso
escolher cientificamente: uma prostituta ou uma
masturbada?
Quem se masturba, deliberadamente, constrói
narrativa, evoca imagens. No entanto, seria Solaris uma
espécie de planeta cafetão? Um planeta que liberta a
ciência dos artifícios da fantasmagoria? Hari é
apresentada à Kelvin. Antes uma prostituta do que se
masturbar! – eis o escolhido. Também é evidente o pânico da masturbação de Gibarian. Teme que a
ejaculação seja nociva à saúde. Antes a morte que o desperdício de esperma! Sartórios esconde um anão:
devemos supor uma experiência íntima que transformou sua vida. Já Snaut está fascinado. Ele experimenta
algum tipo de sublime. Humano, talvez. Se isto, fascina-se por um sublime sexual: o ver a genitália. Talvez o
sexo feminino: a visão da vulva. E isso pode ser devastador! Pois, é a verdade sem véus, a verdade sem
calcinha. Olhar sob as saias da Realidade é a obsessão de todo cientista. Um desejo voyer: pode-se ver a
"coisa-alhiea", mas somente ver, pois se está, metodologicamente, proibido de tocá-la. E Solaris é o cúmulo
desse erotismo. Não só permite, mas obriga mulheres-fetiches no laboratório. Nada de verdade, nada, a não
ser sexo. Em Solaris ninguém se retira desse planeta, apenas o penetra. Porém, o nome da penetração é
trocado por melancolia – doença da solidão.
Kelvin está melancólico, portanto intoxicado, devastado, impregnado pela angústia pós-coito. Não
suporta mais depilar a "coisa-alheia" de Solaris, pois ela sempre volta mais e mais peluda. A vulva lhe
aparece sempre viva, em prontidão e lubrificada, jamais dorme. Impossível um cientista fazer experiências e
especulações entre as pernas de uma mulher. É melhor outra "coisa-alheia" para manter a sobriedade. Algo
mais viril, mais ereto: a Razão. Kelvin faz a opção, anti-Édipo e anti-Eléctramente, pela razão – esta um tanto
flácida, enrugada, cabisbaixa e já adormecida há algum tempo – de seu pai. Kelvin troca a vulva noturna
eternamente renovável e flexível de Hari pelo pênis diurno eternamente perecível e duro de seu pai, tudo pela
necessidade de ...
"Quem prometer à humanidade libertá-la das provações do sexo será acolhido como herói."
(Freud, em Carta a Ernest Jones)
Stalker - ou a transvaloração do turismo domingo, 7 de novembro de 2010
No século XIX, o inventaram. A forma mais
miserável e desprezível já vista percorrendo a face da
Terra. A assombração de monumentos. A grande
caçada de culturas. A grande coleta de imagens. O
grande consumo de diferenças. O grande corpo sem
órgãos que persegui souvenirs desvairadamente. Sim,
ele mesmo... o TURISTA!
Pois é... neste rincão do universo... neste
planetinha de quinta grandeza... inventaram o Turismo!
Esse compromisso com tudo o que é inautêntico.
Estrutura psíquica, filha do Imperialismo (ocupação,
estupro e pilhagem) com a Mercadoria (Sociedade do
Espetáculo e Empresas de Cartões de Crédito) que se
destaca como visitante de uma nova geografia sem
paixões. Fruto desse casamento também conhecido
como capitalismo pós-colonial de experiências vividas em tempos mortos. Turismo, a filha fetiche cujo único
propósito histórico é impedir que se faça história. Já maquiada e vestidinha com roupinhas insinuantes desde
a mais tenra idade. A quem quer seduzir? Quantos catálogos e filminhos promocionais já não fizeram com
ela? Ou... com ele?
Os valores gerados por essa forma desprezível de viajante são destruidores dos significados originais
dos lugares visitados – paraísos artificiais de mediações controladas. Tudo é avaliado como objeto de troca:
nada se sabe daquilo enquanto lugar, mas se sabe quanto é o seu preço. Não há nenhuma reciprocidade:
tudo se perde, nada se cria. Pois a valoração é mediada pelas Agências de Viagens: chantagem permanente,
mundo empobrecido, falsificação oficial. Muito menos são valores da abundância: a sobrevivência dos lugares
é garantida ao preço de uma nova alienação de quem os habita – pelourinho da submissão. Não há nenhuma
gratuidade em se dar presentes aos/às anfitriões/as: masoquismo do “o freguês tem sempre a razão”. Já que
não são hóspedes de ninguém, são fregueses de agentes de viagem. Estes que nada têm de anfitriãos/ãs.
Alguém deve estar pensando: "Nossa! Quanta virulência contra a figura do Turista! Quem escreve
estas palavras amargas deve ser um terrorista, que não quer estrangeiros em suas terras". Para evitar que
esse tipo de pensamento se alimente mais, coloquemos em cena Stalker (1979), maravilhoso filme-textura
com encantadores contrastes de luz, sombra e cores, fantástica fotografia e sublimes silêncios, maestrado
pelo cineasta russo Andrei Tarkovsky.
"Mas... o quê tem a ver Stalker contra o/a turista?". Ahá! Boa pergunta. Esse filme de ficção-científica
é um cuidadoso tratado de Transvaloração do Turismo. É um poderoso discurso que instaura outra motivação
para se viajar. Não é a guerra – para o/a imperialista. Não é a troca – para o/a antigo/a comerciante. Não é
peregrinação – para o/a religioso/a. Nem é a mediação predatória – para o/a turista. A motivação que Stalker
instaura é a árdua, mas edificante. É a fusão entre o objeto de desejo e o próprio desejo. Para quê viajar?
Simples, para se fundir ao lugar para qual se viaja.
A Zona é um espaço de flutuação, puro movimento e vida. Nela não há estações, rodoviárias e
aeroportos. Consequentemente não há carros, ônibus ou aviões. Não há hotéis, restaurantes, lojas de
souvenires e monumentos para serem fotografados ou filmados. Muito menos há catálogos, livretos ou
panfletos preparados por alguma mumificante Agência de Viajem. O espaço-tempo da Zona é a própria
viagem. É certo que ela, também, é uma invenção – como qualquer lugar que se pretende ir. Mas isso não é
problema, nem solução. Isso apenas nos sugere que podemos inventar o que quisermos sobre o lugar para o
qual queremos viajar. Invenção cujo propósito é a nossa fusão com o espaço e tempo. A introdução da quinta
dimensão, que é o desejo, como mais uma coordenada.
Stalker é um tipo de guia jamais pensado até então. Pois até então não existia esse tipo de viagem.
Não é um terapeuta, um pastor, nem mesmo um guia turístico. É apenas um guia-buscador também
interessado na fusão e na introdução da quinta coordenada. Tal qual quem se põe a visitar a Zona. Ambíguo,
duplo e sobreposto. Carrega tanto o desencantamento, por necessidade, da Ciência, quanto o encantamento,
por inutilidade da Religião. Um Stalker não tem nome em particular. Já é indivíduo fundido. Já é quinta
dimensão introduzida. Não é sujeito, é propriamente conjugação de verbo em um espaço de flutuação, de
puro movimento e de vida liberada. Assim como o cachorro – simbólico guia do retorno, pois não é possuidor
da quinta coordenada, é ela propriamente (instinto) – que dá o sinal de que a transvaloração foi realizada.
Pois apenas se pode desejar de modo incondicional irracionalmente. E esta, só se é garantida por boas
razões impensáveis. Assim, Stalker transvalora o turismo nos apontando uma sabedoria: recusar o apelo do
turismo ao auto sacrifício voluntário de desejos próprios em nome de um humanismo automutilado que nada
deseja propriamente.
Outubro - ou A partir do modelo Chinês terça-feira, 16 de novembro de 2010
Lendo o título deste post, alguém pode
muito bem estar se perguntando: Como assim,
Outubro a partir do modelo chinês? A revolução
russa não aconteceu antes da revolução cultural
chinesa? Pois bem, vamos esclarecer: o que trata
nosso assunto aqui pervertido da ordem histórica
é antes uma questão de forma do que de
conteúdo. É uma questão entre formas poéticas.
Primeiramente, o modelo chinês é a poesia
baseada em pictogramas. Em seguida, afirmamos
que a montagem fílmica de Eisenstein é desse
mesmo tipo de poesia só que colocada em
movimento.
No entanto, não deixarei de fazer a
seguinte provocação quanto ao seu conteúdo:
"Outubro" é um filme realizado em 1927, a pedido
do Estado Russo em comemoração aos 10 anos
da Revolução Bolchevique. Pois bem, seria esse tipo de filme-propaganda, diferente do "O nascimento de
uma nação" (1915) de David W. Griffith, ou de alguns dos filmes-propaganda de Leni Riefenstahl? Aqui se
abre mais um espaço para o "Como assim?". Bom, o que sustenta esta provocação é simples: o Estado, seja
qual for sua origem, sempre emerge de uma divisão política anterior da sociedade e não de uma divisão
econômica da mesma; assim, tanto um Estado governado pela Ku-Klux-Khan, quanto outro governado pelos
Bolcheviques, ou mesmo outro governado por judeus é ainda uma sociedade de classes, por simplesmente
não visar a superação das estruturas estatais que, desde seus fundamentos, são impossíveis de se realizar
numa sociedade sem hierarquias! Um Estado somente persiste pela manutenção policial-militar-judiciária de
que o bem do todo só é conseguido pelo sacrifício das partes. E que, o todo é propriamente um grupo
extrema e descaradamente pequeno em relação à multidão obrigada a se sacrificar. Qualquer Estado teve ou
teria uma classe de privilégios, por vezes uma burguesia não menos feroz que a mais feroz burguesia da
outrora Europa do século XIX. A indiferenciação provocativa é que, o conteúdo de todos esses filmes-
propaganda citados acima é uma comemoração elogiosa, historicamente efetivada (Russia), ou hipotética
(EUA e Alemanha), à irredutibilidade de uma sociedade com Estado para uma sociedade sem Estado - como
diria Pierre Clastres em seus textos de antropologia política.
Se ainda continuas aí após tal heresia radical, sem teologias e catecismos, sigamos ao tema central
deste post: a forma. Como na música ocidental, segundo Ernest Fenoloosa (filósofo norte-americano), há na
poesia chinesa "harmônicos". Tais transitam de ideograma para ideograma. Esse trânsito é o que transforma
um verso em algo pictórico. Os "harmônicos" da poesia chinesa formam rimas visuais. São harmônicos
imagéticos. No entanto, estariam mais para uma pintura ou mesmo para uma fotografia. Porém, esse
modelo, bem estudado por Eisenstein, é insuficiente, pois criam conceitos abstratos estáticos. Eisenstein
pretende atribuir dinâmica, atribuir teatralidade aos harmônicos imagéticos. Essa atribuição seria possível da
mesma maneira que se pinta um poema visual chinês, porém, seu ritmo gestual se daria mediante a
montagem fílmica. Onde dois objetos concretos dispostos sequencialmente (tais quais os harmônicos
imagéticos da poesia chinesa) criariam conceitos abstratos. Duas imagens colocadas em sequência criam um
terceiro significado. A montagem seria um instrumento intelectivo próximo a criação de conceitos até então
somente realizada pela linguagem escrita: frases de montagem.
A mensagem formal de Outubro é poética. Há seleção, combinação e ritmo entre metáforas visuais e
simbologias. Como exemplo, lembremo-nos apenas de quatro frases montagem de Eisenstein que já nos
seria suficiente para ilustrar nossa afirmação:
1) a Estátua de Alexandre III e o povo sobre ela = morte à monarquia;
2) burguesas histéricas e o linchamento do jovem manifestante = sublimação do gozo sexual;
3) Kerenski e o pavão = soberba própria tanto à monarquia quanto à burguesia;
4) Kerenski e os cavalos = vá à merda Governo Provisório!
Ironicamente tais metáforas-iconográficas e conceitos-imagens encontrados em Outubro não
conseguiram em sua época e, ainda não conseguem atingir a sensibilidade de todas as classes, pois há
certamente um processo intelectivo anterior necessário para absorver a mensagem proposta pela ideográfica
dinâmica de Eisenstein. A força que sua montagem intelectual tem é muito sutil, e refinadamente elaborada. E
a compreensão de uma poesia não se dá de primeira vez. Sua leitura exige audácia à sensibilidade comum
de objetivos pequenininhos, limitados e já dados de antemão. Audácia contra a olhada superficial do explícito.
É necessário dedicação, no entanto, dedicação indômita que se move para além dos limites do convencional
e do permitido. É preciso pensar, cuidadosamente, sem métodos seguros e bem delimitados. Também é
preciso uma boa dose de embriaguez. De leitura sem prazeres sensatos. De amor a labirintos; nada
pragmáticos nem trabalhador. Talvez seja nesse momento, um tanto aristocrático, que esse filme-propaganda
vá – como os outros filmes de Eisenstein – além do elogio às estruturas estatais e à efetiva superação da
sociedade de classes: se pôr a pensar e se envolver com inteligência nessa disposição, independe de
classificações coletivas, pois raras são as pessoas habilitadas a tal empreitada. Nitimur in vetitum!
(“Lançamonos em direção ao proibido!” – Ovídio, poeta romano da passagem do século 1 a.C. para 1 d.C.)
Surplus - ou O Arcaismo Revolucionário domingo, 21 de novembro de 2010
Surplus – Terrorized Into Being Consumers (Suécia – 2003) de Erik Gandini. Supérfluo, excedente,
superávit – aterrorizados para consumir; aterrorizados até o consumo. Eis o título. Genial como a montagem.
Na verdade, composição. Johan Söderberg, percussionista foi quem o montou. Filme-documentário-vídeo-
clipe-percussão. Falando em linhas grosseiras e gerais, o filme é uma crítica a dois estilos de vida: ao que
visa ser modelo do mais elevado modo de ser humano: consumidor (consumistas como espécie de
imperialista, e imperialistas como espécie de consumista); e ao estilo de vida militarizado (como o vivido em
Cuba): ambos alheamentos que articulam um sentimento falsamente romântico que se torna porta-voz de
uma solução inautêntica e forçosamente permanente. A voz que insurge contra tais modos de ser no mundo é
a de John Zerzan. Responsabilizado pelos progressistas de plantão de ser uma espécie de ghost-maker
(fantasma realizador) dos fantásticos distúrbios de rua contra o G8 em 2001. Onde as ideias de John Zerzan
são rotuladas com a estampa de anarco-primitivista. Destas linhas grosseiras e gerais sigamos a linhas mais
delicadas e, portanto, deliciosamente perigosas.
Surplus é uma análise dos
hábitos e costumes das
sociedades europeia e
estadunidense em contraponto
com os hábitos e costumes da
sociedade pós-revolucionária
cubana. A sociedade europeia é
colocada como dona de uma velha
cultura. A estadunidense, dona da
grande inveja e vingança contra a
velha cultura, e que não consegue
escapar do dever de justificar sua
existência perante a primeira. E a
terceira sociedade, a cubana, é
apresentada como dona de uma
ruptura anticolonial via a militarização e a aceitação da escassez como forma de vida: distribuição igualitária
da pobreza. Europa, soberba mãe da filosofia, das artes, da ciência e da história. Estados Unidos, soberba
mãe da tecnologia, do pragmatismo, do dinheiro e da guerra em série contra tudo o que não é judaico-
ocidental. Cuba, soberba mãe insurgente que sucumbiu sobre as próprias penas revolucionárias. A crítica
endereça a esses três tipos de mães pode ser endereça às elites econômicas e intelectuais do mundo inteiro
– como as elites mestiças de toda América Latina e as Teocracias Islâmicas Liberais. Pois são elas que,
virtualmente, participam da cultura europeia e usufruem da tecnologia estadunidense. Mesmo que ambas as
situações são experimentadas de modo defasado. É aqui que o filme se torna mais interessante para nós,
brasileiros/os (pretensa identidade determinada pelo acaso de se ter nascido/a em um território pluriétnico)
não participantes dessa pretensa elite ligada às comunicações globais e à imensa rede de trocas; aberta às
mensagens e à comunicação de experiências que incluem o mundo. Pois a crítica de Surplus toca onde nos é
experiência diária, acerta bem em cheio sobre nossa cotidianidade, na maioria das vezes experiência
cotidiana irrefletida: a miséria existencial do “ir levando a vida” e o alheamento (hegemonização) ao nosso
estilo de vida único e transvalorador – vivemos em um território que, só de indígenas são 225 etnias falantes
de 180 línguas diferentes.
Chamarei, somente pedagogicamente, esse estilo de vida como 'brasileiro', apenas para apontar uma
extensão territorial específica onde se pode viver uma multiplicidade gigantesca de formas de vida. Vivência
somente possível fora das vividas pela 'nossa' elite pretensamente global. Vivência tão radical que a nomeio
de Arcaísmo Revolucionário. Surplus nos mostra que a ideia de progresso é vivida, ao mesmo tempo, como
um espaço de grandes expectativas e de doces sonhos, como também um espaço que provoca insônia
povoada de pesadelos, "ser deixado para trás". Essa dupla vivência do progresso somente é possível apenas
para a minoria de pessoas não sobrantes do planeta. Possível á apenas aquelas pessoas que constroem
suas cidades como trincheiras e bunkers destinadas a separar e a manter distância daqueles que trazem
consigo o horror da fome (“por não terem supermercados 24 horas à sua disposição”), da escassez (“por não
terem uma infinidade de pessoas subalternas a elas”) e da precariedade da condição humana (“por não terem
acesso às soluções tecnológicas da monótona vida moderna”) – todas correspondentes à vivência do
progresso pelas elites econômicas, religiosas e intelectuais – e também para manter distância (por exemplo, a
relação entre a FUNAI e as etnias indígenas) daquelas pessoas que trazem consigo a condição de que
podemos muito bem viver das mais variadas formas indiferentes às obsessões causadas pelo progresso –
correspondência com a vivência de um Arcaísmo Revolucionário que nega a ideia de progresso desde suas
raízes mais profundas em nosso cotidiano.
Se o discurso de John Zerzan, para a superação desse modelo aterrorizador para o consumo, é por
via de um primitivismo revolucionário, é uma reação válida contra a miséria causada pelo excesso de
civilização, geograficamente localizada. Um discurso possível apenas nesse lugar chamado EUA, cuja razão
de ser é a pretensa superabundância de coisas propiciada pela tecnologia, o pragmatismo e o protestantismo.
Zerzan vê essa abundância excessiva como uma espécie de madrasta má: mãe e inimiga ao mesmo tempo.
Enquanto mãe ela nos mostra que podemos fazer qualquer coisa com o menor esforço possível, menos
fadiga e menores custos (automação). Enquanto inimiga ela nos mostra que é preciso estar definitivamente
dentro do sistema (ser peça substituível da automação). Contra isso não há alternativa. Apenas nesta
aceitação incondicional se está seguro/a. No entanto, viver em segurança não é viver a beatitude da
tranquilidade, e sim é viver a maldição do tédio. É ter empregos que odiamos e somos obrigados/as a amá-lo
incondicionalmente ao mesmo tempo em que abrimos mão de toda espontaneidade, flexibilidade, capacidade
de surpreender-se e de nos colocarmos em possíveis aventuras. Zerzan sugere que a superação é assumir
um risco. Risco este que é o de não mais viver obrigado a consumir objetos (e aqui também se inclui o
urbanismo) criados para descarregar os excessos de medo. É o risco de que nossos medos não tenha vida
própria. E como todos/as sabem que, quem não arrisca não petisca, assim é a mensagem primitivista de
Zerzan. Exemplo do modo como algumas pessoas, lá na Europa e EUA, aceitaram esse risco, é a onda de
destruição de propriedades privadas corporativas:
“Por que as pessoas vão pras ruas e tentam protestar ou fazer alguma coisa? Isso não é
violência idiota e sem sentido. Idiota e sem sentido é ficar sentado, usando drogas, assistindo a
MTV. E então você arranja um emprego e se arrasta. Para mim isso é violência. Destruição ou
dano a propriedades é necessário. Ela quebra a demarcação de política como "política do
mesmo". O que nós conseguimos segurando um cartaz fazendo os "protestos de sempre"? Vi
décadas disso. Isso nunca resolveu nada. As pessoas não prestam atenção. Por que deveriam?
Não vale a pena. Mas quando as pessoas lutam, isso é alguma coisa. Isso chama atenção e,
deveria, porque é real. Não é apenas o jogo de: "Eu me sinto bem. Tenho meu cartaz" Bem, (...)
Eu prefiro ser pacífico... pois, ninguém é posto em perigo... Ninguém se machuca ou é preso.
Ninguém é atingido por um policial na cabeça. Nenhuma janela é quebrada. Idealmente. O
problema é que não funciona desse jeito. Estou pedindo por uma nova ética. Propriedade
corporativa é o alvo mais óbvio e legítimo no meu ponto de vista. Bancos, lojas caras, e cadeias
como Starbucks e outras. As pessoas entendem isso como parte do sistema global, dessa...
...abusiva, massificaste, destrutiva forma... ...que esta exterminando todas as diferenças, toda a
liberdade.”
John Zerzan
Ahá! E o discurso de Zerzan não cabe a nós também? Claro... que sim... e não! O sim, dizemos à
destruição da propriedade privada ameaçadora... e o não, é que não precisamos voltar a algum estágio
anterior à revolução industrial. Pois não vivenciamos tal como revolução. Não por que nos faltou algo,
histórico ou materialmente, e sim porque a recusamos de modo fundamental. Por abundância. Esta gerada
pela nossa experiência dialética entre a síntese e mistura. Pois de modo vívido e aberto, nosso cotidiano é a
constante recordação de que a qualquer momento os muros podem ser derrubados - somos indígenas,
quilombolas e ciganos/as. Pois de modo vívido e aberto, nosso cotidiano é a constante recordação de que a
qualquer momento as fronteiras podem ser canceladas - somos refugiados/as e imigrantes provindos/as de
todos os cantos da terra. Vivenciamos diariamente os meios os quais aniquilam as misteriosas e
incontroláveis forças globalizantes: por exemplo, vivemos o comércio espontâneo, trocamos mercadorias
entre iguais. Existimos enquanto classe perigosa por sermos incapazes de integração - por vivermos as
múltiplas justiças, religiosidades e línguas indígenas. Existimos enquanto classe perigosa por sermos
incapazes de assimilação - por vivermos as múltiplas morais afrodescendentes e o movimentar-se constante
cigano. Existimos enquanto classe perigosa por sermos inaptos/as para sermos socialmente reciclados - por
vivermos as múltiplas esperanças (o lugar recebe o impacto do/a estrangeiro/a) e aberturas ao novo (o/a
estrangeiro/a recebe o impacto do lugar) de imigrantes e refugiados/as. Devido a esse perigo somos vistos/as
como supérfluos/as, ou seja, arcaicos/as, antiprogressista: por querermos aldeias e quilombos demarcados,
ou seja, ancestralidade assumida; por queremos certas experiências estrangeiras libertárias. Devido a esse
perigo somos vistos/as como excluídos/as de modo permanente, ou seja, revolucionário/as que precisam ser
impedidos/as de criar problemas e assim mantidos/as à distância da comunidade respeitosa das leis do
progresso e da globalização.
Assim, o Arcaísmo Revolucionário é a nossa forma natural de crítica e solução à tensão entre as
pressões globalizantes e o modo como nossas identidades são debatidas, modeladas e remodeladas. Nem
EUA, nem Europa... nem Cuba.
Queimada - ou Brincando com fogo quarta-feira, 24 de novembro de 2010
Queimada (1969 - Itália/França) de Gillo
Pontecorvo. Um filme força. Potência inebriante.
Inspirador. Filme que faz tudo o que é vivo em meu
corpo se rebelar contra a tirania do conforto. Mas se
retiro toda a sua força ele se resume no seguinte:
Século XIX. Uma ilha do Caribe sob domínio
português. É enviado para lá um representante da
coroa britânica. Sua missão: incentivar uma revolta e
promover a independência da ilha chamada
Queimada. Esta é assim nomeada, pois, os
portugueses atearam fogo nela para conter uma
insurgência indígena. No entanto, dez anos depois, o
representante inglês retornar à Queimada. Desta vez,
não como representante da coroa inglesa, mas sim
como mercenário contratado pela Companhia
Açucareira. Nova missão: desfazer as consequências
da missão anterior. Pois o momento econômico exige
um novo ordenamento político.
Agora, restituindo a força do filme, dá-se o seguinte:
Queimada nos coloca uma belíssima reviravolta de pensamento: não tem sentido falarmos em
história da civilização, e sim tem sentido falarmos em geografia da civilização – expansão territorial colonial. O
pensar histórico fez com que o tempo deixasse de ser uma dimensão do vivido e o tornasse um modo de
ordenar manifestações culturais em hierarquia. Queimada é anti-pensamento histórico. É localização
geográfica de um conhecimento. O filme propõe a ruptura com a pretensa hierarquia nítida do tempo; com a
pretensão do pensamento histórico ser algo universal, irreversível e último – abstrata e des-localizada. O filme
de Pontecorvo propõe uma importantíssima e inédita revolução: articular o sentido da vida humana com o
sentido espacial (geográfico) da vivência. Os portugueses importaram, à ferro e fogo, para a ilha, a identidade
cultural luso-cristã (ignorando que as histórias mundiais são muitas) e a memória de modelos como
"progresso" ocidental (esquecimento voluntário de que a história é um disciplinamento historiográfico).
O intuito dessa importação significava a continuidade histórica da civilização por sujeitos desencarnados da
história. Continuidade como forma colonial de domesticação do passado. Queimaram toda a ilha em nome
dessa continuidade: em nome dessa falácia desenvolvimentista que é o holocausto cultural da modernidade.
No entanto, mal sabiam que, com isso, estavam mesmo era brincando com fogo. Mal sabiam que, aqueles
que foram levados à força, os/as escravos/as negros/as, e que lá chegaram de mãos vazias (sem "civilização"
e tecnologia), chegaram com a potência de um novo modo de pensar tão radical que se tornaria
incompreensível para qualquer civilizado ou pretenso civilizado: o pensar concreto e espacial de uma
verdadeira cultura por construir. Apesar da miséria material na qual os/as africanos/as desterrados/as foram
aí lançados/as, seus gestos cotidianos se mostraram o que eles e elas tinham de mais rico e sofisticado: jogo,
festa e revolta.
O representante da coroa britânica, importador de progresso, chegou a Queimada trazendo em suas
malas, fases esgotadas da cultura ocidental, como se estas falências fossem esperanças para um futuro
promissor. Repetição do esgotamento vinda de navio (tempo da distância) e impressa em papel ( tempo da
comunicação como um olhar distante em direção a Europa; como um espiar do modelo a ser copiado). No
entanto, o futuro promissor trago pelo inglês foi ocupado territorialmente por Jose Dolores (convidado que se
tornou anfitrião). Tornou-se futuro imprevisível, pois se tornou geografia promissora. Deixou de ser mero
tempo – espaço da utopia. Tornou-se lugar. Atitude de violento insulto. Jose Dolores ocupou o tempo, como
se fosse um espaço; com isso trocou seu ritmo europeu histórico por um ritmo africano que o suspende das
trilhas da história. A revolução de ex-escravos/as em Queimada troca a técnica civilizada europeia pela arte
africana além da civilização. Troca o simbolismo "universalmente" convencionado por pensamentos concretos
mais vivos. Provoca a descoberta de si enquanto pensador e agente próprio – são guerreiros dançarinos por
um marco zero. Troca a restrição às verdades humanísticas pelo grande acordar – despertam do alheamento.
Não há mais sonho dogmático – cuja duração segue às custas da pena de morte. A guerrilha procura,
apenas, assumir-se autentica e honestamente para si e para o seu ambiente. No entanto, enquanto a revolta
se levanta rumo a uma nova situação, há uma pseudocultura nascendo: a república. Situação cômica de seus
participantes. Pois a tragédia pertence apenas a Jose Dolores.
Tragicomédia, portanto. Pois, por um lado, são escolhidos alguns dos "piores" elementos de cultura
para transformarem a cultura mesma: imitadores, sempre decadentes temporalmente, para manifestarem por
si espíritos alheios: imitação defasada da Europa. E por outro, são escolhidos os mais interessantes
elementos só para serem descartados: a guerrilha por progresso, só que ela mesma estando para além do
progresso. Resultado: incompetência. A república nasciente de Queimada é filha da civilização sempre
incompetente e ilusionista da mesma. Pois é uma debandada desesperada da realidade concreta e próxima
que lhe é insuportável: os/as escravos tornaram-se senhores/as de si, do ambiente, do futuro enquanto
presente e da cultura bela a ser cultivada. Tal pseudocultura-tragicômica-republicana é logo deposta por uma
junta militar aliada ao capital estrangeiro. Pois foi incapaz enquanto filha de amar sua mãe: "é para o seu
próprio bem". Portanto, horizonte fechado, mas ocupado por outra filha decadente a Ditadura Militar. Mas o
ritmo africano é incompreensível para ambas as decadências. Ele insiste e não se cala. É horizonte aberto. É
carnaval revolucionário ou revolução carnavalesca em seu sentido mais superior, algo tão refinado que
também é incompreensível a qualquer esquerda festiva. Pois o ritmo que toma conta de Queimada é
esperança utópica para além da história, para além das condições materiais - sem cair em nenhum tipo de
"euforia" religiosa além-mundo. É esperança inesperada, ou seja, é esperança cuja única função é
desaparecer.
Lilian M. - ou Liberdade: só a Libertinagem vos Libertará quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
Lilian M: Relatório Confidencial, filme
brasileiríssimo, pois nele não há as defasagens
intelectuais que se costuma importar da Europa e dos
EUA. É uma inovadora "tragicomédia de aventura" de
1974, dirigida pelo herói marginal Carlos Reichenbach,
cujo roteiro e fotografia também estiveram sob seus
cuidados. Obra de arte que ainda hoje não encontrou
sua devida reverberação. Talvez por ainda continuar
sem encontrar seu devido público, pois não é a
romantização de nada, muito menos a condenação
moral de algo. É um filme libertário que se liberta de si
mesmo. No entanto Lilian M., a personagem, é um
modelo fantástico e, portanto, mítico da singularidade
do agir que dessacraliza o pensar. Lilian M. coloca a
liberdade de pensamento em seu justo lugar: a
liberdade do corpo. O pressuposto de qualquer
pensamento é a própria pele. O pensar nada mais é do
que pura diversão e capricho amoroso. Nada de se
entregar à razão para cumprir o sacro dever de
sacrificar aquilo que mais se ama: a arbitrariedade descarada da aceitação de que sou apenas o eu próprio.
Não há pressupostos. Lilian M. apenas se põe. É posta. Ah, mas antes de continuarmos essa ideia mítica
dessacralizada, bisbilhotemos a sinopse do filme.
"Maria abandona o marido lavrador e os dois filhos pequenos. Foge com um mascate falador.
Após um acidente de carro, segue sozinha para São Paulo. Imigrante perdida é presa e
encaminhada a uma assistente social. Esta lhe arruma um emprego na casa de Braga, um
industrial filósofo. Tornam-se amantes. Maria é rebatizada de Lilian (nome da mãe de Braga). Isto
é só o começo. Ao longo de sua trajetória Lilian se envolve com todo o tipo de personalidades
singulares: o filho de Braga (artista autodestrutivo), um industrial alemão (financiador da repressão
militar), um grileiro de terras narcisista, um detetive infantil, uma dançarina e cafetina, um
marginal tuberculoso com cara Jesus Cristo e, por fim, um funcionário público submisso e sem
ambições e sua irmã, aparentemente apática. A trajetória de Lilian M., da roça à metrópole,
do casamento à prostituição, da estabilidade financeira à marginalidade instável, retorna, como na
música se retorna a um ritornelo, às origens: mulher humilde casada e mãe de duas crianças
pequenas. Mas como eu disse: ritornelo!"
Lilian M. é ao mesmo tempo criador e criatura. É dissolução que só interessa a ela mesma.
Dissolução da imensa noite do pensar e da fé. Abandona o reconhecimento de que qualquer coisa está acima
dela. Não tem vocação alguma, não está atrás de nenhuma, nem mesmo a de ser alguém livre. Pois, qual a
medida de sua liberdade? Já que não sente nenhuma limitação que a possa afligir. É causa de si mesma.
Não é causa de nada, de que alguém espere que ela trabalhe se sacrifique ou se entusiasme. Nenhuma
causa é superior senão ela mesma. Lilian M. é um nada grávido de tudo. Nela não há espaços vazios. Não há
nenhum sentimento de vacuidade. Não se esconde por detrás de coisa alguma. Está acima de tudo, porém
isso não significa que ela é superior. Lilian M. simplesmente é. Não está reduzida ao seu espírito, é mais que
isso. Não está reduzida ao seu corpo, é mais que isso. Não está reduzida a seu egoísmo, é mais que isso.
Ela não se prende, não se descobre, não está amedrontada pelas coisas do mundo e, muito menos tem
planos de salvação ou melhoramento da sociedade. É a insurreição aqui e agora sem deixar brechas para
niilismo algum. Não lhe cabe qualquer tipo de resignação hipócrita ou mesmo aceitação hipócrita. Aquilo que
assombra cada pessoa que assiste ao filme nada tem efeito sobre sua protagonista: o amor, o bem, a
verdade, etc. Lilian M. nada tem de vítima da renúncia de si mesma. É quebra da tirania do espírito através de
sua carne e ossos. "Liberdade de espírito" seria a pior injúria que alguém poderia cometer contra ela.
A liberdade não lhe é um sentimento imposto, não lhe é estranho e não lhe é sagrada. Não lhe é um
sentimento desperto por outrem. Não vem de fora, nem de dentro. É permeação completa. A liberdade só
pode ser toda a liberdade. Uma parte da liberdade (como amam dizer por aí "liberdade, mas sem
libertinagem") não é a liberdade. De que coisa você quer se libertar? De que serve uma liberdade que não lhe
dá nada? De que serve ser livre apenas de partes e do todo? De que serve uma liberdade que estabelece
uma nova dominação? De que serve uma liberdade ordenada pelo sentimento moral, pela consciência, pelo
sentido do dever, ou mesmo pelo "o que as pessoas pensarão"? De que serve uma liberdade na qual nos
assustamos com a nossa própria nudez e naturalidade? De que serve uma liberdade fundamentada no
desprezo de si e na veneração de ideias? Para melhor entendermos essa dimensão libertária de Lilian M. que
liberta até mesmo a liberdade, voltemos ao tempo dos dez anos passados após realização do filme: o fim da
ditadura militar brasileira em 1984. A abertura política triunfou, no entanto, em seu triunfo, destruiu aquilo que
pretendia realizar, a liberdade. Pois, ao invés de agir liberta de qualquer tipo de tutela, acharam outros meios
de colocar correntes em si mesmos. Civilização falida. Falência que se agrava até os dias de hoje (2010) e
continuará indefinidamente enquanto se tratar a liberdade como posse e não como relação. Relacionar-se
com a liberdade somente é possível na libertação. É no libertar-se a si mesmo – processo – que a liberdade
vai se dando, em partes rumo ao todo liberto. Apenas em um primeiro momento do processo faz-se livre,
depois é preciso seguir em frente, assim como Lilian M. o faz: esquecimento, inocência, jogo, afirmação,
criação, abertura, possibilidade, início. Ser livre não é a interiorização de lei alguma, é processo de abertura
do espaço da liberdade total sem garantias; é processo que não se sustenta sobre nada; é processo não
determinado pelo que somos, e sim que se determina pelo que viremos a ser; é processo da novidade, das
invenções e das transgressões; é começo absoluto fora do tempo e da história. É o próprio conselho da
libertinagem: tornar-se centro e essência da liberdade.
El Topo - ou, Por uma Mística do Trágico segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
Superfície. Antes de cavar: Oeste dos Estados Unidos da América. Antessala da Guerra Civil
Americana. Ocupação de terras, criação de gado, luta com indígenas, segregação. Cowboy solitário,
pistoleiros, aventureiros, jogadores, vagabundos errantes, xerifes, garimpeiros. Roupa do corpo, revólver,
cavalo. Cavando um pouquinho: Jogatina, álcool, prostituição. Futuro glorioso a ferro e fogo, ideais
patrióticos, presença militar dos colonizadores. História linear, enredos vazios, moral imperiosa. Civilização
como um bem a ser alcançado. Ahá encontrei algo. Ei, isso é o Western, um tipo de cinema estadunidense
por excelência!
Bem, me deixa cavar um pouco mais e
entrar mais a fundo no Western. Estimulante e
anestesia ancestral inextirpável do judaico-
cristianismo-europeu: o ser humano pode agir
sobre seu destino; ele não é mais um joguete dos
deuses pagãos; sob a insígnia do Deus único o ser
humano age sobre si mesmo, bastando apenas,
lutar ferozmente contra os três grandes demônios
que exercem domínio cruel sobre sua existência: o
artifício, a natureza e o acaso. O primeiro grande
demônio, o artifício (tudo o que é múltiplo - no caso,
materializado como diversas sabedorias
indígenas), deve ser moralizado. Pois o artifício,
não tem regras; é um capricho arbitrário; é filho da
faculdade de resolver e decidir e, portanto, uma
injustiça. O segundo, a natureza deve ser domada.
Pois a natureza sempre foi considerada como uma
forma eficaz contra toda forma de superstição e de
crença religiosa. A natureza é filha de nenhum
princípio gerador - perigo absoluto para qualquer
cristão. Desse modo, domada a natureza é apenas
demanda das terras prometidas aos mórmons e
demanda destinada à reforma agrária europeia
além mar. O terceiro grande demônio é o pior de
todos! E assim, deve ser aniquilado sem dó nem
piedade. É o acaso. Risco perigosíssimo, pois nele tudo foge do controle. É a própria insignificância radical de
todo acontecimento, de todo pensamento e de toda existência. Fonte invisível de tudo o que nos desagradam,
pois pode se admitir tudo, menos o acaso. Neste a civilização chegada ao novo mundo é, nada mais nada
menos, do que um destino lamentável. (Ah, lembremos: esse fundo a que cheguei não é privilégio somente
dos Estados Unidos, muito menos do Western.)
E agora? Já estou bem fundo... Opa, acho que alguém está se aproximando... Parece que está vindo
por baixo... Ah! É uma toupeira! Helo my friend!
- Hola mi amico! Yo soy el Topo!
- El Topo? Español? Entonces tu no habla inglês?
- Inglês? No. Pero, infelizmente, hablo la lengua de otro colonizador.
- Ah, entiendo. Eu também falo a de outro... mas el Topo, o que te trazes até aqui?
- Si, esta es una longa história. Pero yo hablaré a ti em tu lengua también no originária.
Minha história é a seguinte:
Minha trajetória é dupla. A primeira se situa no real, porém na forma de um manifesto (não surreal)
contra o homoreligious, esta absurda disciplina de viver à sombra de Deus; esta grande segunda chance que
ocultou a crueza do trágico irreversível de nossa existência. A segunda é o duplo da primeira: uma espécie de
ilusão oracular. O ardil e a ironia dos efeitos do real: o homonaturalis, esta absurda disciplina de viver às
sombras da promessa de explicação, que supera o homoreligious abandonando o heterocídio em prol do
suicídio: o nada que decidiu a forma de existência que observamos.
Meu manifesto, minha primeira trajetória é indiferente à própria ideia de causa; a existência não tem
nenhuma essência que a fundamente: nenhuma dissimulação nem mistério. O deserto é minha paisagem
mais própria. Minha indiferença é meu tipo na certeza de que a única causa possível é o acaso: o único apto
a trilhar mil caminhos possíveis. É preciso enterrar a mãe. Desse modo, sem mesmo a imagem da mãe, o
acaso é a melhor arma contra o desejo de elevação típico do absurdo homoreligious. Este desejo danoso que
recusa a admitir que nossa existência seja um produto sem causa nem desígnio, ou seja, toda dor ou tédio
que sentimos são apenas dor e tédio. Troco a convivência com meu filho pela convivência com uma estranha.
A partir daí a possibilidade de ficar cego, ao chegar à superfície, é somente um das possibilidades. No
entanto, há o dever de obediência, ou seja, o querer cegar-se, o estranho desejo de ficar cego. Pois este
dever/desejo seria a própria crença de que o melhor modo de ver as coisas é a cegueira: ambição obsessiva
de dar conta do conjunto das coisas conhecidas e desconhecidas ao mesmo tempo. O ver mais geral. O ver
acima. É contra esse tipo de ver sobre a natureza (visão sobrenatural) do homoreligious, que eu, el Topo, se
insurge. Foi preciso matar seus mestres. Superá-los até a indiferença. Insurgência trágica contra o credo
comum de toda denegação filosófica, científica ou religiosa da realidade. Denegação que oculta o caráter
único da vida, mantendo-a à distância de sua falta irremediável de recursos de conforto exterior a ela.
Denegação que visa atenuar o rigor de existir. Trágica, pois sua realidade é suficiente e tem a plena certeza
de seu nada constitutivo. Não é um mal terrível nenhum, ver as coisas tal como elas se apresentam:
heterocídio.
A segunda trajetória, como Dionísio ou Renato, ambos nascidos novamente: acordo em uma caverna
como algum tipo de salvador. Venerado, cuidado e esperado como alguém detentor de uma grande resposta.
No entanto, esta "segunda chance" me é o próprio ato de evitar o destino coincidindo como a sua própria
realização: suicídio – tentativa de extirpar o inextirpável, a morte. Um e mesmo gesto: o fatal (a caverna) e o
da esquiva (a cidade da superfície). A tentativa de se eliminar o acontecimento (a morte) elimina apenas uma
de suas versões (velhice, doença, acidente, heterocídio, suicídio). A frustração do acontecimento (preconceito
naturalista) é a mesma da expectativa do acontecimento (preconceito divinizador e divinista). A pedagogia
moral (processo) é a mesma consciência moral (resultado). Ao mesmo tempo em que exponho o criminoso,
me exponho como o criminoso. Coincidência rigorosa. Círculo tautológico. Renascido a força natural nem é
inércia material nem é o poder humano de intervenção, tampouco é alguma coisa pensada e definida. O filho
ressurge em seu desejo de matar o pai. Mas sua morte pode ser adiada até que seu trabalho platônico
termine. No entanto o privilégio de não existir já foi negado a todos/as. À necessidade da morte é impossível
de se escapar. Não há disfarces. Nada acrescentará algo à vida. Não é possível ter mais vida. A vida
somente se torna vida se disfarçada de morte: travestida. A eficácia da ideia de se ter mais vida, ou outra
vida, é proporcional a seu travestimento, em outras palavras, à sua imprecisão. Somente travestida, ou seja,
somente imprecisa a ideia de "mais vida" torna-se invulnerável. Essa minha segunda trajetória, torno-me, el
Topo, o grande inimigo da crença. Não enquanto verdade, e sim, enquanto precisão: somente é invencível
aquilo que não existe.
Libertárias - ou Um exército disposto a desaparecer terça-feira, 14 de dezembro de 2010
O registro da Guerra Civil Espanhola de 1936, desencadeada por um golpe militar, no filme as
Libertárias cumpre duas finalidades primordiais. Uma, preservar na memória a luta de dimensão ideológica e
a potência revolucionária de um povo que, organizado em frentes de resistência contra o fascismo, contra o
autoritarismo e contra a moralidade católica. A outra trazer o legado da luta de milícias de mulheres que não
apenas lutaram contra o autoritarismo, mas potencialmente contra a opressão feminina, tanto dos nacionais
quanto dos republicanos.
O que é expressivo no filme é a dimensão de que as mulheres reivindicam e exigem o a equivalência
aos homens.
“Somos equivalentes”! Essa a expressão mais simbólica das reivindicações das mulheres que
organizadas em uma frente armada, com mais de 20.000 filiadas, travaram a trajetória para educar e libertar
as mulheres da prisão da submissão, da escravidão e da maternidade reprodutiva.
A película nada tem de hiper-realidade, nem tampouco romantiza as personagens ou mesmo as
idealiza. A representação provoca a compreensão das motivações ideológicas e sociais pelas quais lutavam.
As mulheres foram vencidas e a dimensão da exclusão e da opressão se transforma na marca de uma cultura
masculina de raiz católica e fascista.
O Estado, o exército,
o latifúndio, a igreja e o
capitalismo se preservam
enquanto expressões
máximas da opressão de
gênero.
Mais do que um
registro histórico, o filme
produz os sentidos de uma
concepção ainda presente da
categorização de gênero que
desqualifica e exclui as
mulheres do espaço de vida
pública e reafirma os modelos de aprisionamento ao espaço domestico não político.
Como pensar essa dimensão dissociada da idealização sócio-política da igualdade de gênero? Em
práticas cotidianas de ódio ao sistema, ao autoritarismo masculino e à desumanidade de políticas e educação
que impõe a acomodação, a apatia e a insensibilidade.
“Mujeres Libres” desafiaram o modelo e se negaram a reproduzir a dinâmica burguesa da submissão,
da servidão e da moralidade católica que lhe impôs ô ônus da reprodução.
O registro do assassinato das mulheres que ainda resistiram no front de batalha foi registrado com a
sutil dimensão da “equivalência”:
As mulheres livres não têm medo... Não são poupadas... Não são vitimizadas... Não fogem e não se
salvam, porque não são cristãs, não preferem a vida a qualquer preço. Preferem a morte a viver como
escravas ou submissas.
O que se revela a partir da luta das “Mujeres Libres” é a memória para todas as gerações de
mulheres que decidiram entrar para a história pela luta e derrota pela morte, mas recompensadas por nunca
terem se curvado ante aos opressores.
Que nos inspire, pois a realidade do passado está impregnada em nosso presente, pois também
somos filhos e filhas da mesma e nefasta moralidade cristã, do autoritarismo político e do poder masculino
hoje dissimulado em discursos educativos de que “juntos (sic) tudo é possível”!.
Tetsuo, the Iron Man & Save the Green Planet - A Experiência
Final sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
O Cin‟surgente chega ao fim. Morte em grande estilo. Extreme experience. Asian cyberpunk! Futuro
proibido. Cybiose primitiva. Dois filmes que se insurgem contra a Ficção-Científica otimista e excessivamente
feliz e progressista do legado de Star Trek. Nenhum progresso. Nenhum happy end. No future. Enfim,
nenhum conformismo ególatra do desenvolvimentismo tecnológico vitoriano. A esperança triunfante da
Ficção-Científica é uma muleta para quem tem medo de trilhar caminhos à beira de abismos. Ao quebrar
esses parâmetros mentais da prudência conformista chega-se a lugares que ambos os filmes, "Tetsuo - the
Iron Man" (1989 – Japão) e "Save the Green Planet" (2003 – Coréia do Sul), chegaram: o zen do princípio da
crueldade (crudus – indigesto). A estrutura cartesiana reduz-se às cinzas. O princípio de causalidade, tão
caro à ciência, é desprezado. A separação entre sujeito e objeto, completamente ignorada. O tédio...
ridicularizado! Experiência direta, imediata, não filtrada com a tecnologia e com alienígenas. E sim, como diz
um provérbio zen: "só encontrará a sua vida aquele que a perdeu"! Voi lá!
Tetsuo - the Iron Man, ou a arte cruel de um cybionte primitivo zen - este filme de Shinya Tsukamoto é um
magnífico tratado cinematográfico. Primeiro por ser cinema em sua mais intensa experiência: libertação da
literatura. E, em segundo, por ser uma inquietante tese sobre a relação entre nós humanos e nossos
artefatos: somos um círculo vicioso, ou fita de Möebius entre ser vivo e ser máquina. É por esta segunda via
que trilharemos. Na interface humano/máquina, somos realidade última: não há objetivos, resultados práticos,
evolução ética ou mesmo aprimoramento estético. Nela qualquer domínio técnico é insuficiente. É uma
téchne sem téchne, arte sem arte. É um duplo desprendimento de si próprio: se o nada é o próprio infinito, o
infinito é propriamente nada. Esse duplo desprendimento é a relação estreita entre intuição (no entanto, uma
intuição especial, pois está mais próxima possível da sexualidade – intuição sexual que simultaneamente
capta a totalidade e a individualidade das coisas) e a consciência cotidiana (o cálculo que inspira e sustenta
toda a "luta" diária). Ser humano/máquina não é uma simples especulação, mas experiência única que o
intelecto não pode conceber.
Somente é possível conhecer quem
profundamente o ignorar. Pois deixa
de ser uma perseguição por um
resultado exterior ou interior, e torna-
se uma experiência onde ambas as
esferas se confundem. Desse modo
tudo o que é anterior é constituído a
posteriori. Tudo o que é histórico é
constituído não historicamente. São
as condições para a formação de
instintos - o filho nasce antes da
mãe. Insólita noção de sucesso: é
preciso que se afunde ao máximo
nos próprios fracassos - superar os
pensamentos. A techné genuína de Tetsuo não conhece nem fim nem intenção. Tetsuo é um deixar para trás
tudo o que se tem e o que se é lançando-os ao futuro. É expectativa livre de intenções. Tudo o que se faz
está feito antes que se saiba. Adaptação ao acontecer. Nenhum significado de imitação. Apenas absorto na
sua ação. O terror é sua criação autêntica. Sentimento terrorista desprendido de si mesmo. O/a criador/a não
está presente enquanto criador/a, mas sim apenas enquanto criação. A morte como forma de vida. Não
existindo qualquer distância entre o gesto de se esquivar e o de atacar. Não existindo qualquer distância entre
o vivo e o autômato. Tudo é um mesmo vazio. Um reencontro da segurança ingênua do/a principiante
absorvida como traço dominante de personalidade. Indiferença a tudo o que pode amedrontar. Assim, Tetsuo
é um viver no mundo sempre preparado a abandoná-lo. A ideia da morte não lhe é mais perturbadora. Tetsuo
domina a vida e a morte, o humano e a máquina, portanto está livre de todo temor. É mestre zen de uma arte
cruel. Apenas revela o que tiver de revelar com atitudes, jamais com palavras. Tetsuo a extrema expressão
de um cybionte primitivo zen.
Save the Green Planet, ou a Próxima Grande Aventura Póstuma da Humanidade – a visão de Jun-Huan
Jeong, com este seu filme, é diabolicamente inteligente e inspiradora. Sua questão norteadora é terrível: do
que estamos falando quando dizemos em salvar o mundo? É do planeta Terra em si? É do mundo animal,
vegetal e mineral? É preservar as culturas, como elas se encontram neste exato momento? Ou seria
simplesmente salvar o lugar onde habitam os humanos? Mas... salvar? De quê e/ou de quem? Da morte? Da
dor? Do tédio? Da conquista? De outra pessoa? De mim mesmo/a? Save the Green Planet dá algumas dicas:
absolutamente nenhum programa; a melhor maneira de não viver; anti-padrões de vida; a única forma certa
de vida é incerta; corresponsabilidade de minhas misérias; cuidado com os bons selvagens; aversões e
medos civilizados; nova história para velhas tragédias. Mas que tipo de dicas são essas que não ajuda em
nada para respondermos a questão norteadora? Simples, o filme é um sistema complexo tal qual o tratado
pela Teoria do Caos e suas ideias são meros estranhos atratores. Estes são pontos para os quais toda órbita
que passar perto é atraído por eles. Nos sistemas caóticos esses pontos são denominados "estranhos",
devido ao elevado grau de incerteza dos resultados desses sistemas. Ainda assim, não é possível entendê-lo.
Pois bem, mais uma chance. O filme visa contrabalancear com estranhezas aquilo que desde já supomos
como certa: é preciso salvar o mundo. Seu enredo é uma espécie de anarcopsicanálise antiedipiana,
polissexualidade, esquizocultura e pânico diante a possibilidade do fim. A cada momento surge uma
estranheza para aterrorizar nossas certezas que supostamente gosta da liberdade de expressão. Save the
Green Planet não recalca desvios de comportamento nem reprime os ataques a sua própria consciência. É
uma resposta poderosa sem os clássicos niilismos sorrateiros do ocidente: drogas free, surrealismo, New
Wave, Nova Ordem Mundial, Terrorismo eco-capitalista, Turismo sustentável. Resposta poderosa por ser
belamente ultrajante; não há nenhum novo paradigma social; não confirma nenhuma visão quântica ou
existencialista; nenhum vazio budista; nenhum abismo nietzscheano; nenhum vazio da incerteza de Joyce;
nenhum tipo de iluminação pela Relatividade Especial de Einstein; enfim, nenhum Produto Interno Bruto. Hã,
não há milagres? Como assim? E agora, o que vamos fazer? Abandonar o barco? Tão próximo da margem...
BUM!!! Um final maravilhoso? Não, obrigado.
Por um Posfácio Nada Difícil – Politizando os
Conceitos-Imagens – Julio Cabrera
Em transcrição....
“Eu acho que vocês politizaram os conceitos-imagem. Vocês politizaram meu livro. Isto é mérito de
vocês por que não é o que eu fiz; eu não pensava isso quando bolei esse livro na década de 1990. Esse livro
saiu na Espanha; lembra? No final da década de 1990, então eu devo ter estado pensando nesse livro nos
anos 1995, 1996 e ele saiu em 1999. O Cinema Pensa, você sabe, é uma tradução tardia de 2006 do livro
que saiu na Espanha no final do século. E essa politização não estava...
Eu estive fazendo uma autocrítica nesse meu livro novo De Hitchcock a Greenaway e em outros
artigos, enfim, que eu publiquei. Mas não no sentido político. Então, é, enfim, mérito de vocês ter feito isso.
Então eu posso me posicionar a respeito do que você diz, de uma maneira ou outra... é o seguinte:
Talvez eu tenha uma discordância com vocês, os do cinema insurgente, uma coisa: eu acho que
vocês ainda se mantêm no plano semântico da análise, no sentido de pensar ainda, mais ou menos como
pensa... digamos... a intelectualidade bem pensante esquerdosa brasileira de que há um cinema comercial,
um cinema alienado, um cinema destruidor da sensibilidade, e há um cinema contestador, limite, culto,
artístico, crítico, etc. Eu tendo a não acreditar nessa dicotomia, tanto que, no livro de 1999, O Cinema Pensa,
e o que foi depois do Cinema Pensa, de 2006, eu analiso filmes comerciais. Por exemplo, Steven Spielberg,
Clint Eastwood e vários outros, misturados com Antonioni, com... enfim, com filmes que se diriam que são
filmes artísticos. Por quê? Por que a mim, me parece que o olhar crítico, analítico, político, etc., etc., não está
tanto na semântica do filme. Se não, nisso em que você chamou a pouco de... “o que você faz com o filme”,
tanto como espectador como a pessoa que faz o filme. Por exemplo, eu, para te dizer algo escandaloso, não
acho que a “Lista de Schinder” seja um filme mais crítico de Spielberg que “Tubarão”. Para mim Tubarão... eu
o leio como um filme crítico... é um filme absolutamente 100% comercial ou 100% hollywoodiano. Ele não é
crítico na forma, pois tem uma forma completamente tradicional, apesar de que tem uns achados
interessantes, mas é modesto do ponto de vista da forma, enquanto Schindler é um filme ambicioso no ponto
de vista formal. Mas não é mais crítico por que seja um filme contra o nazismo, ou por que seja um filme
sobre um tubarão assassino que ataca uma praia... Percebe? Não sei se você tem algo a dizer sobre isso...
ou seja, a mim me parece que vocês ainda pensam que o crítico, o alienado, etc., está no filme. E eu cheguei
a pensar, ao longo do tempo, que os filmes são ultrapassados sempre; são transcendidos pela tua visão.
Então... você sabe... a mim me interessa, fundamentalmente, como forma de pensar, como forma de fazer
filosofia. Então eu acho que é você que faz filosofia; é você que vai transcender a Spielberg, ou a Bergman...
ou a Fellini, ou a Clint Eastwood... ou a Buster Keaton... ou a quem você quiser. Você vai transcender o filme,
pragmaticamente, em direção a alguma coisa que lhe interessa. Então... se você adota esse viés interativo do
filme, que é uma coisa que eu não assumia na época do livro, que eu assumo, fundamentalmente, em um
artigo que eu acho muito importante... que é esse artigo... que está por aí... sobre David Lynch. Que foi
publicado na Venezuela, na revista Enlaces, que se chama “Para uma descompreensão filosófica do cinema
– o caso Inland Empire de David Lynch”. Nesse artigo que foi publicado em 2009, eu, realmente, me entrego
assim a... interatividade do filme. Eu supero todo o intuito hermenêutico que eu tinha ainda em “O Cinema
Pensa”. Acho que o cinema é sempre interativo, mesmo o cinema de Hollywood, mesmo o cinema mais
comercial. Não sei o que você acha disso. Ou seja, eu acho que é politicamente mais interessante, você
conseguir... implantar a crítica no coração mesmo do cinema comercial, do que você criar um olimpo de
cinema esclarecido. “Vamos escolher cinemas que desafiam o sistema Hollywood. Então são esses os filmes
que vão nos deseducar”. Talvez aqui aja uma discordância nossa. Parece que, você pode se alienar em um
filme de Bergman; você pode se conscientizar em um filme comercial; você pode ser crítico com uma
animação; você pode ser um pateta com Tarkovski; não são os filmes... é um pouco a interação com o filme.
É aquilo que os existencialistas chamam de a “Trancendance”; é o estar sempre além do que o filme te
propõe. Outro dia, por exemplo, estávamos comentando sobre o filme “Um conto chinês”, aquele filme
argentino, e você se decepcionou por ele, por que parece um filme instranscendente, porque... é um filme de
uma fábula... inclusive parece moralista... por que... enfim... como se um homem amargurado e egoísta se
reencontrasse o sentido da vida e o amor... através da experiência com o chinês... etc., etc., e aí tudo parece
uma balela, uma coisa estúpida. Mas aí, como eu te falei, me ocorreu ver esse chinês na vida daquele
pequeno capitalista argentino, que tem uma vida perfeitamente regrada, onde esse chinês não cabe. Parece
o objeto de desejo que não consegue ser colocado na sexualidade standard daquele cara... daquele indivíduo
automatizado que dorme, inclusive... numa hora determinada... aquele chinês quebra essa estrutura
capitalista, burguesa, ambiciosa, egoísta, mesquinha... etc., etc., ele não sabe onde coloca-lo. E, isso me
parece crítico; me parece interessante, dentro de um filme cuja proposta é de uma fábula... meio estúpida...
meio ridícula... etc., etc. Então não são os filme que vão... é claro, você tem razão de que os filmes tem um
intuito, uma comédia... da década de 1940... com Spencer Tracy... com Katharine Hepburn... enfim... tem o
intuito de divertir, de passar um momento, etc., etc., mas o que o filósofo vai ver nesses filmes... é outra coisa.
O Zizek no seu filme, aquele... sobre... Perverts... e o Godard em “História do Cinema”, que você está
assistindo agora e eu também, você vê eles analisam todo tipo de filme: comedietas americanas
hollywoodianas... Tarkovski... aí está tudo. Eu estou um pouco nessa... via também. Então, estou de acordo e
me parece interessante essa politização dos conceitos-imagem. Mas, me parece que a politização é um
processo mais abstrato do que vocês pensam. É uma espécie de exercício de imaginação política que pode
surgir em qualquer caso, em qualquer momento, com qualquer filme, etc., etc... sem se deixar amedrontar
pelos objetivos explícitos da peça cinematográfica que vocês estejam vendo. Se não você pode cair nessa
situação daquele personagem tão penoso e tão bem construído da “La Chinoise” de Godard... “A Chinesa”. ..
aquele maoísta que se sentia culpado por que tinha costado de “Johnny Guitar”. Johnny Guitar é um bang -
bang, um clássico norte-americano da década de 1950, e o maoísta ficava meio com culpa por que tinha
gostado do filme, tinha achado um grande filme; ele não tinha gostar, por que ele era maoísta, ele era anti-
norte-americano. Uma coisa que Godard, por exemplo, debocha muito disso. Eu gostaria de saber o que você
pensa disso também... agora ou em algum momento, etc. Você não acha que vocês estão concretizando,
corporizando demais a politização do cinema? E fazendo dicotomias muito... talvez... simples?
Tem uma revista de cinema na Argentina que se chama “La Ventana Indiscreta”, que é o título do
filme de Hitchcock em espanhol, e um pouco eles colocaram esse título por causa do meu livro também. Eu
analiso aí esse filme. Eles entraram em contato comigo, e eu fui lá... eles estão em La Plata, que é uma
cidade ao lado de Buenos Aires... bom, dai eu acabei publicano vários textos em La Ventana Indiscreta... não
sei se essa revista ainda sai... e um deles, um dos rapazes argentinos tinha escrito uma matéria sobre alguns
filmes alemães recentes... não sei de já te contei isso... eles escreveram sobre aquele filme... “A Queda” que
é sobre os últimos dias, e dois filmes alemães que pareciam brincadeiras. Um deles se chama “Corra, Lola,
corra” e o outro “Adeus Lenin”. Bom, e aí o artigo dizia: “Corra, Lola, corra e Adeus Lenin são filmes bem
feitos, porém, intranscendentes. Enquanto que a Queda é um filme importante, por que analisa um momento
histórico grave... da Alemanha, como o Nazismo, e que tenta humanizar a figura de Hitler de uma maneira
controversa e...” Eu escrevi um artigo contra – e, acho que o autor não gostou muito, por que quando eu fui à
Argentina, ele não estava... não apareceu para falar comigo... – contestando totalmente isso. A mim me
parece, por exemplo, que “Corra, Lola, corra” é um filme extremamente subversivo, extremamente político; é
um filme de uma moça que sai... umas quinhentas vezes... a história dela se conta de três formas diferentes
e... corre para salvar o namorado que está sendo acuado por uma gangue... um grupo de gangster, etc., uma
coisa bem intranscendente, parece até um quadrinho, o filme utiliza, inclusive, personagens de quadrinho,
que parece completamente uma... porém, eu acho esse filme como uma espécie de conceito-imagem da
temporalidade da internet, da temporalidade moderna, e faz uma observação amável e cordial, porém, crítica
a respeito dessa temporalidade. Ou seja, quantos fatos relevantes da vida das pessoas você pode colocar em
um lapso de tempo estreito? Me pareceu muito profundo esse filme. Enquanto que “A Queda” é mais um filme
sobre nazismo, muito interessante, muito bem feito, com algumas coisas realmente duvidosas, mas eu não
sei se... a reflexão sobre nazismo... talvez esteja um pouco mais fatigada, mais exaurida, mais esgotada, do
que uma reflexão travessa, aparentemente frívola sobre a temporalidade moderna. Então, eu inverti
completamente os cânones dele, que achava que aqueles filmes eram intranscendentes, enquanto que o
filme importante era o filme sobre o nazismo. Aí, como em tantas coisas que me assim no mundo... a filosofia,
eu acho que você tem que ir contra os clichês. Por exemplo, o cinema como dentro da indústria cultural, junto
com a filmografia de consumo e as propagandas, etc., enquanto que nas livrarias e nas bibliotecas você tem
o esclarecimento. Eu acho que... enfim, portanto... na visão de Godard quanto na visão de Zizek... por
exemplo, dois caras que conhecem toda a história do cinema, você não encontra essas dicotomias. O caso,
do último filme de Stanley Kubrick, que se chamou “De olhos bem fechados”. Todo mundo caiu em cima
desse filme, dizendo que era um filme menor de Kubrick, de que era uma pena de que ele não tivesse feito
uma grande obra para despedir, etc. Quando você lê Zizek falando desse filme, ele encontra uma série de
coisas importantes nesse filme, mas em nenhum momento Zizek se refere a esse filme como uma obra
menor. Em nenhum momento lhe ocorre avaliar a obra. Ele entra dentro da estrutura de pensamento... da
estrutura estética desse filme, e não lhe ocorre dizer: “Ah sim, é uma obra menor”. Ou seja, essas avaliações
dicotômicas, “‟2001‟ é uma obra prima.” e “De olhos bem fechados uma obra menor”. Então, eu um pouco
estou dentro tendência e me dando mal, por que as pessoas gostam dessas dicotomias e... se sentem melhor
começar quando sabem aonde é que está o espírito crítico, aonde é que está o alienável, que não deve ser
consumido, etc., etc. Só que tudo isso é dialético. Eu vejo o sentido de criar esse cineclube para ver, por
exemplo, formas cinematográficas duvidosas e que quebram a temporalidade linear, etc. etc. O que estou
dizendo é que tudo isso você pode fazer na sua cabeça com o filme mais tradicional do mundo. Você pode
subverter um filme tradicional... na sua cabeça, na sua imaginação, nos seus livros... nas coisas que você
escrever. Talvez um sério filme de Bergman pode paralisar tua função crítica. Você entende? ... Não sei... é
um pouco por aí...
Mas você tem razão que a maioria das pessoas simplesmente consome essa filmografia, e vai
educando sua sensibilidade nisso. Então, se você quer dizer que a maioria das pessoas que vêm filmes,
inclusive grande parte dos estudantes, das pessoas mais cultas, etc., estão sendo doutrinadas de alguma
maneira para ver filmes... você tem razão. Só que eu acho que, quando você se liberou disso, não há nada
que possa lhe mostrar que vai te levar a uma mecanização, a uma aceitação das imagens. Possivelmente a
gente tenha que pensar nos outros, em pessoas que a gente tem que tentar de mostrar alternativas. Nisso
vocês estão certos. É bom mostrar filmes, por exemplo, não lineares. Mas, por exemplo, os Estados Unidos
começaram a fazer filmes não lineares já há um tempo. O caso emblemático foi nos anos 1990 com o “Pulp
Fiction”, que é um típico filme americano, eu acho, não hollywoodiano, mas norte-americano, com tempos
invertidos... Estávamos falando, outro dia na aula, acerca das éticas particularistas e você estava... digamos,
criticando o universalismo... e dizendo... que há conveniência de ver as situações concretas e particulares,
em lugar de descarregar grandes universais em cima da cabeça das pessoas, mas é isto o que os norte-
americanos estão fazendo agora. A ética norte-americana se tornou extremamente particularista e anti-
universalista, caso típico é o Rorty, que é um dos mais importantes pensadores norte-americanos dos últimos
anos, e ele é um ético particularista, e não acredita em universais. Então, é complicado isso... eu acho que o
mal não está concentrado em um lugar, nunca. Ele é muito sutil, para falar metafisicamente, eu não acredito
no mal. Digamos, os alvos, os inimigos, etc., não estão concentrados num lugar só. É uma coisa ambígua,
então, por isso, a forma nossa de ver cinema também tem que ser ambígua. Tem que ser uma forma
transcendente, ambígua, travessa, traiçoeira... sem regras restritas. A mim, parece que no Brasil, tem uma
espécie de intelectualidade crítica standard, frankfurtiana... estes indivíduos que leem Adorno, Benjamin, etc.,
são críticos... então, parece que há uma espécie de establishment do criticismo. Me parece que, com
categorias muito padronizadas, muito fixas. Acho que o cinema pode mostrar uma maneira de criticar,
extremamente, sensível. De criticar mostrando. E ai está um pouco do que você dizia da forma e do
conteúdo. Por exemplo, “Corra, Lola, corra” me parece que é um filme crítico na forma e não no que conta.
Que o que conta é uma banalidade, mas... “Corra, Lola, corra” é uma espécie de experimento de pensamento
de dizer: “Em quantos minutos se pode salvar a vida de um homem?”. E isso é venenoso do ponto de vista
ético... é muito interessante, e, enfim, trabalha com essa temporalidade vulgar imageticamente. Eu faria essa
reflexão...
Só faltou comentar o que você disse sobre “fazer filmes”... Em decorrência do que lhe disse antes...
eu que você, ao fazer um filme, você não deveria ter uma preocupação de fugir de certa forma tradicional, e
tentar a qualquer custo de inserir formas novas e contemporâneas em narrar, etc., para você se sentir
moderno. Eu acho que você teria que ter uma sensibilidade perversa, no sentido freudiano... uma
sensibilidade multiforme, cética... ou cínica... etc., de tomar as funções da estética de Frank Capra, por
exemplo, que é o diretor de “A Felicidade não de compra”, com Spielberg, com Tarantino, mas também com
Wong Kar-Wai, e com Nanni Moretti, e fazer uma mistura de estilos, sem obrigações morais, sem grandes
bandeiras. Me parece que... talvez, a diversidade de estilos e de estéticas é o que melhor acompanha essa
cultura fragmentada, essa cultura toda aberta, etc., que caracteriza um pouco o cinema de hoje. Mas, me
parece que momentos escandalosos de classicismo e de cinema bem comportado, podem ser um choque
interessante, também. Outro dia eu li a respeito desse filme que saiu agora... “O espião que sabia demais”,
que é um filme muito transgressor do ponto de vista formal. Isto significa que você não entende nada, não
entende coisa nenhuma... pelo menos os primeiros quarenta minutos são quase ininteligíveis. Então, eu li
um... em algum lugar... numa revistinha que dizia: “Bom, não importa não entender, estamos diante de
cinema contemporâneo. Não se trata de perder tempo contando uma historinha”. Isso me parece uma atitude
um pouco estéreo, ou seja, você tem que se situar dentro do que se está fazendo agora, que é inversão de
tempo... experimentos formais. Mesmo que isso seja vazio. Este filme é muito vazio. Realmente eu não gostei
nada deste filme, por que o conteúdo dele não é nada instigante. E a forma, precisamente pelo seu
hermetismo, acaba sendo uma coisa mais... puramente estética do que conceitual, digamos. Então eu diria
isso: fazer filmes com as partes mais perversas, ou seja, com estéticas e formas de crítica múltiplas.”