Com testes genéticos fáceis e baratos como nunca, a ...precisão do teste todo. 12: Após uma...
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S E O S E U
D N A
F A L A S S E
Com testes genéticos fáceis e baratos como nunca, a descoberta da ancestralidade está ajudando a contar histórias esquecidas por famílias
do mundo todo, mas traz o medo do uso indevido de informações tão delicadas
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REPORTAGEM Marília Marasciulo
FOTOS Dulla
EDIÇÃO Giuliana de Toledo
DESIGN Feu
O PAULISTA Rodrigo Alves Silva tem uma história pare-cida. Ele sempre teve curiosidade e interesse por história, especialmente a do próprio passado. Por ser negro, não havia dúvidas de sua ascendência africana, mas ao fazer um teste genético de ancestralidade descobriu ter 50% de composição genética africana, principalmente da Nigé-ria, e 33% europeia. É quase tão europeu quanto africano.
O resultado do teste trouxe ainda outra revelação: Sil-va tem alta compatibilidade genética com um homem que mora nos Estados Unidos. Um primo de quem nun-ca tinha ouvido falar e despertou nele a curiosidade de saber mais sobre a história da família de seu pai, com quem teve pouco contato. Ele é descendente da família Campos, cujo patriarca, Filipe de Campos Banderborg, foi um importante senhor de escravos no interior pau-lista — interior este onde viveu sua bisavó, uma branca de olhos azuis e cabelos crespos.
Encontrar o primo desconhecido fez com que ele pes-quisasse mais a fundo esse lado da família e descobrisse aquilo de que desconfiava: sua tataravó viveu na condição de escrava e provavelmente foi violentada pelo patriarca da família Campos. Ao contar as descobertas ao primo, este não quis mais contato. Silva, no entanto, diz que com-preende o lado dele. “O que para mim foi uma relação de descoberta, para outra pessoa pode ser a revelação de um passado obscuro, e o Brasil é um país que busca muito fu-gir de um passado de escravidão e abusos”, destaca. “Mas está na genética, não podemos negar.”
Embora o estudo de genealogia remonte à Idade Mé-dia, talvez nunca tenha experimentado uma reviravolta tão grande quanto nos últimos três anos, com a populariza-ção dos testes genéticos de ancestralidade. Uma pesquisa divulgada pelo MIT Technology Review revelou que ao menos 26 milhões de pessoas já coletaram amostras de saliva ou de células da bochecha para ter parte do genoma analisado. Se o ritmo se mantiver, a expectativa é de que, em dois anos, mais de 100 milhões de pessoas no mun-do tenham acesso a detalhes sobre sua ancestralidade.
Esse boom parece estranho se considerarmos que há menos de 20 anos nem sequer conhecíamos o genoma hu-mano, cujo sequenciamento foi concluído em 2003. Mas foi justamente isso, combinado à tecnologia que avança a passos largos, que possibilitou a qualquer pessoa co-nhecer um pedacinho de seu código genético sem gastar muito. É que graças ao sequenciamento sabe-se que não é necessário analisar o genoma inteiro de uma pessoa, que tem cerca de 3 bilhões de pares de dados, para saber mais sobre ela — 99,9% é o mesmo em todos os seres humanos. Basta olhar para aquela pequena porcentagem que nos diferencia e, dentro dela, vasculhar cerca de 700 mil marcadores de ancestralidade.
Essa especificidade ajuda a baratear o processo. Com preços a partir de US$ 99 nos Estados Unidos e R$ 200 no Brasil, as amostras são coletadas pelo próprio cliente e enviadas para análise pelo correio. Os resultados ficam prontos em aproximadamente um mês. “Descobrir mais sobre o passado graças à genética virou uma realidade,
Anna Maria de Jesus, mãe da tataravó da catarinense Juliana Sakae, foi escravizada e viveu na atual Araquari, cidade de pouco mais de 30 mil habitantes, a 25 minutos de carro de Joinville, em Santa Catarina. A descoberta foi uma surpresa para a família: na região, fortemente colonizada por alemães, as pessoas e autoridades gostam de repetir que “Joinville não tinha escravos, pois o povo alemão era contra a escravidão” — ainda que a cidade tenha sido estabelecida por um senhor de escravos, Joaquim da Rocha Coutinho, em 1854.
Mas Sakae, que em 2015 começou uma ampla pesquisa so-bre sua árvore genealógica, sentia-se intrigada com a história daquela Anna Maria de Jesus, que com um pai “incógnito” teve Thecla Maria de Jesus, sua tataravó. Quem era Anna Maria? E quem era o homem desconhecido? O mistério começou a ser desvendado quando ela encontrou o registro de 1883 do ca-samento de Thecla com Francisco Xavier Vieira. E lá estava escrito em bom (ainda que antigo) português que Thecla “foi escrava de José da Rocha Coitinho [sic] e filha de Anna escrava do mesmo Rocha, e de pai incógnito”.
Além da surpresa de ver que a penta e a tataravó foram mulheres escravizadas, Sakae começou a suspeitar que o tal pai incógnito poderia muito bem ser José da Rocha Coutinho ou alguém da família Rocha Coutinho. A confirmação de que a suspeita tinha fundamento veio no ano passado, quando o tataraneto de José da Rocha Coutinho, que mora em Fortaleza, fez um teste genético de ancestralidade, a pedido de Sakae. Bastaram algumas cuspidas dele em um tubo e da avó de Sakae em outro, cerca de US$ 100, algumas semanas de espera e voilá: confirmado. Os dois têm grau de parentesco. A próxima missão de Sakae é descobrir exatamente quem da família Rocha Coutinho era o pai de sua tataravó.
AGLOSSÁRIO
O beabá dos estudos com genes
■ DNA: molécula presente no núcleo das células que
carrega a informação genética de um organismo.
■ GENE: segmentos de DNA, nos quais a combinação de quatro bases nitrogenadas (A, C, G e
T) em pares codifica proteínas ou moléculas reguladoras do
processo de expressão dos genes.
■ CROMOSSOMO: sequência de DNA que contém vários genes.
■ GENOMA: conjunto de todos os genes de um organismo. Nos humanos, o genoma é composto de aproximadamente 3 bilhões
de bases nitrogenadas, mas somente 10% formam os genes.
■ GENÓTIPO: composição genética de um indivíduo.
■ FENÓTIPO: característi-cas físicas ou manifestações
visíveis do genótipo.
P A S S O A P A S S OEntenda como são feitos os testes genéticos
mais populares hoje em dia
CONHEÇA O TESTE GENÉTICO DA REPÓRTER
Marília Marasciulo glo.bo/testedamarilia
■ 1:Os kits são vendidos online
ou mesmo em farmácias (no caso de países como os Estados Unidos). Cada kit vem em uma caixinha que, em geral, contém:
as instruções de ativação do kit, um saquinho de plástico com protetor e aviso de que contém
“material biológico”, um tubinho com líquido
estabilizador na tampa e cotonetes especiais para
coletar as amostras.
■ 2:Para começar, é necessário
ativar o kit pelo site da empresa. Cada kit tem
uma espécie de “número de série”, que deve ser
registrado no seu perfil.
■ 3:Siga as instruções para a coleta. Normalmente, é preciso cuspir no tubo ou coletar amostras da
parte interna da bochecha. Atenção: não se pode
ingerir nenhum alimento, fumar, mascar chicletes
ou escovar os dentes 30 minutos antes.
■ 4:Coloque a amostra dentro
do saquinho e lacre.Acomode todo o material
na caixa e feche.
■ 5:Envie a caixa pelo correio.
■ 6:A amostra chega ao labo-ratório, a grande maioria nos Estados Unidos. O do 23andMe fica na Carolina do Norte; o do Ancestry,
em Massachusetts; a empresa MyHeritage tem
também um espaço no Brasil, em Campinas (SP).
■ 7: A amostra é inspecionada para que se verifique se está tudo certo. Em caso positivo, é preparada em uma incubadora por duas horas a uma temperatura
de 50°C para desativar pos-síveis enzimas que podem quebrar o DNA. Em geral,
o risco é baixo: o DNA costuma ser bem estável em condições normais.
■ 8:O DNA, então, é copiado
milhares de vezes (melhor garantir, né?) antes de ser quebrado em muitíssimas
partes, limpo e medido.
■ 9:Começa a genotipagem.
Os cientistas desenvolve-ram uma tecnologia que
permite ler partes especí-ficas do genoma, só as que importam para essa análi-se. Vale lembrar que o DNA é composto de milhares de
pares de genes, que são como letrinhas de um livro (são as bases nitrogenadas Adenina, Guanina, Citosina
e Timina), mas as infor-mações que queremos ler estão só em cerca de 700 mil pares de genes. Então, em vez de ler o livro intei-ro, eles selecionam apenas o que interessa, quebrando
tudo e jogando em uma outra amostra de DNA
sintética que tem somente metade dos pares que
interessam. Por exemplo: o par que se quer ler é A T. Eles têm uma fita só com
A, e jogam apenas metade do DNA nessa amostra. Os genes vão buscar seu
“par” — com esse processo, consegue-se identificar a composição original.
■ 10:Um corante é usado para ressaltar quais foram os
genes da pessoa que “en-contraram” um par dentro
daquelas faixas, o que indica a variante que cada pessoa tem. Esse processo leva entre três e dez dias.
■ 11:Com isso em mãos, chega a hora de analisar o que esse monte de letrinhas e cores significa. Anos de pesquisa identificaram quais variá-
veis provêm de cada região do mundo. Por exemplo,
se o padrão seria ter A A em uma faixa, mas a pessoa tem A T, isso
significa que ela provavel-mente é da região X.
É por isso que os resultados vão sendo
atualizados conforme mais variações são mapea-das, o que aumenta a
precisão do teste todo.
■ 12:Após uma etapa de
controle de qualidade, os resultados são libera-
dos. O cliente é avisado e pode consultar sua
ancestralidade pelo site da empresa. A duração do processo, do início ao fim, é de um mês, em média.
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não tem mais volta”, afirma a professora Anita Foeman, do departamento de Comunicação e Mídia da Universi-dade da Pensilvânia West Chester, nos EUA.
Um novo olhar sobre raçaFoeman coordena o DNA Discussion Project (Projeto de Discussão sobre DNA), que desde 2006 forneceu testes genéticos de ancestralidade a mais de 3 mil estudantes, professores e funcionários da universidade. Sua ideia era fomentar uma discussão com embasamento científico so-bre raça e aceitação. “Naquela época, os testes ainda eram bem caros e ninguém entendia direito o que eu estava fa-lando”, conta a professora. “Mas eu pensava: ‘tenho certe-za de que a maioria das pessoas tem uma ancestralidade que desconhece completamente’.”
De fato, ela observou que a maioria das pessoas, es-pecialmente as brancas, superestimam a ancestralida-de europeia e se mostram surpresas ao ver que possuem componentes genéticos africanos ou indígenas. Nos EUA, onde grupos perpetuam ideias de supremacia branca com base em uma suposta pureza racial, descobrir a presença desses componentes pode ser um choque para alguns in-divíduos. E há relatos de supremacistas que usam esses testes como prova de “pureza”. Mas, na visão de Foeman e com base em sua experiência no projeto, são casos bas-tante isolados. “A maioria das pessoas começa a perceber que a construção de raça é algo cultural e que, na verda-de, estamos conectados por outras coisas que vão muito além da superficialidade de características físicas”, explica.
Essa construção fica evidente, por exemplo, se compa-rarmos os critérios do Censo de diferentes países. No caso dos EUA, o critério de raça é definido por ancestralidade; no Brasil, pela cor da pele. E até dentro de um mesmo país podem existir diferenças na percepção e autodeclaração dependendo do local onde a pessoa mora. Para o médico Alexandre Pereira, pesquisador do Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do Instituto do Coração (Incor), da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que atualmente mora em Boston, a discussão sobre raça no Brasil ainda não está madura o suficiente para que se possa identificar o impacto que os testes genéticos de ancestra-lidade podem ter na sociedade. “A sociedade brasileira é muito miscigenada, mas racista e conservadora”, diz. “Tal-vez os testes tragam à tona alguns conflitos, e com isso aju-dem a começar uma conversa mais séria sobre o assunto.”
Para os americanos, esse debate pode ganhar atenção durante a corrida presidencial nas eleições de 2020. O atual presidente, Donald Trump, e a senadora Elizabeth
Warren, do partido Democrata, que recentemente decla-rou que pretende se candidatar à Presidência, têm briga-do publicamente em virtude de uma questão que envolve o tema. Warren, branca e de olhos azuis, há anos afirma considerar-se nativo-americana (índia), razão pela qual é alvo de chacota de Trump, que a apelidou de Pocahontas.
No fim de 2018, ela fez um teste genético que revelou uma minúscula porcentagem nativo-americana, de seis a dez gerações anteriores. O resultado foi malvisto por líde-res cherokee, etnia indígena da qual ela dizia fazer parte, que defende que a cidadania tribal é baseada em tradições e cultura, não em testes de DNA. Questionada a respeito, ela se desculpou e declarou: “Não sou uma pessoa de cor. Não faço parte de uma tribo. Cidadania tribal é muito dife-rente de ancestralidade. Tribos — e somente tribos — de-terminam isso, e eu respeito a diferença”. Mas o assunto está longe de ser encerrado, principalmente consideran-do-se que Trump não perde oportunidades de tripudiar. Genética da aceitaçãoA mexicana Blanca Velázquez-Martin, que participou do DNA Discussion Project, percebeu essa diferença na cons-trução cultural do que é raça ao se mudar para os EUA há 16 anos, quando passou a se incomodar com a relação que os americanos têm com ancestralidade. “As pessoas aqui usam raça para descrever a própria identidade. Eles dizem ‘sou italiano’ e quando você pergunta se nasceram na Itália explicam que não, na verdade nem sequer falam italiano, mas seus tataravós eram italianos”, conta. Mas, com o tem-po, percebeu que saber mais sobre a própria composição genética poderia ajudá-la a se entender melhor como imi-grante. “Sempre me considerei mexicana, mesmo saben-do que sou fruto de uma grande mistura. O teste de DNA me ajudou a conhecer exatamente que mistura é essa e a construir melhor minha identidade nesse país.”
Bem longe da Filadélfia e sem ter participado do projeto de Foeman, a paulistana Silvia Vieira também encontrou em sua composição genética explicações e motivos para
PASSADO A LIMPOComo a genealogia evoluiu
O estudo de gerações de uma família, embora tenha mudado
muito ao longo dos séculos, ainda está atrelado a uma visão fortemente eurocentrista e rela-
cionada à Igreja — durante muitos séculos, foi a única instituição a registrar acontecimentos como
nascimento, casamento e morte.
■ IDADE MÉDIA — SÉCULOS 5 A 15Período no qual o mais im-portante era a perpetuação de títulos. Os registros eram
fantasiosos: monarcas se diziam descendentes diretos de Deus.
■ SÉCULOS 15 A 18Durante esses três séculos, nos
quais houve uma forte persegui-ção a judeus especialmente na Es-panha e em Portugal, a genealogia foi muito usada como ferramenta para mostrar quem era descen-
dente de “cristãos velhos”.
■ SÉCULO 19No Brasil, um século em que a
genealogia foi muito romanceada, com autores — em especial os paulistas — disseminando uma ideia de que todos os brasilei-
ros descendiam de índios.
■ SÉCULOS 20 E 21Chegou a vez de a genética entrar no jogo. Especialmente a partir de 2003, com o sequenciamento do genoma humano, testes de DNA
se tornaram uma realidade. Além de ajudar pessoas a descobrir seu passado, servem para confirmar ou desmentir registros até então
somente orais ou documentais (que podem ser forjados).
PESSOAS QUE JÁ FIZERAM TESTES DE DNA (EM MILHÕES)
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05
2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
S I L V I A V I E I R A
3,9% DO ORIENTE MÉDIO
2,3% INDÍGENA AMAZÔNICA
4,7% QUENIANA
4,8% NORTE-AFRICANA
6,5% JUDIA ASQUENAZITA
7,4% BÁLTICA
9,9% NIGERIANA
10,8% CENTRO-AMERICANA
12,1% ITALIANA
35,8% IBÉRICA
Fonte: MIT
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se aceitar melhor. Branca e com olhos verdes, ela nunca entendeu muito bem o cabelo crespo. “No Brasil, sabemos que nosso DNA é bastante misturado, mas nunca para-mos para pensar muito sobre nós mesmos, e eu não sabia se tinha ancestrais negros”, diz. Na adolescência, rejeita-va os cachos e fazia o possível para manter os fios lisos. Há sete anos, porém, resolveu assumir o cabelo natural, um processo que, mais do que a mudança estética, envol-veu autoconfiança e aceitação. No ano passado, quando fez um teste de DNA, descobriu ter ascendência africana. “Foi como se todo o processo pelo qual passei tivesse sido reforçado e validado, e consegui abraçar ainda mais quem eu sou”, afirma. A próxima etapa é descobrir de onde vem essa herança — ela desconfia que seja da família paterna, com a qual não teve muito contato.
Conhecer mais a história da família paterna foi justa-mente um dos motivos que levaram o paulista Leonardo Bamonte a fazer um teste genético de ancestralidade. Com uma família materna tão grande que foi necessário um dro-ne para fotografar um dos encontros dos parentes, sabia pouco sobre a parte do pai, que morreu quando ele tinha 8 anos. Quando veio o resultado, ficou surpreso ao ver que tem 10% de composição báltica, e desconfia que a expli-cação provavelmente esteja no lado paterno. Minorias esquecidasO desconhecimento do histórico familiar paterno, porém, não é praxe. Especialmente na genealogia documental e oral, o mais comum é saber bem que “o meu pai era pau-lista; meu avô, pernambucano; o meu bisavô, mineiro; meu tataravô, baiano”, como cantou Chico Buarque em Parato-dos. O histórico materno se perde com o passar do tempo, e um teste bastante simples para identificar o quanto você sabe sobre isso é olhar para os sobrenomes. Se tivesse que incluir todos os sobrenomes em seu nome, partindo de seus bisavós, você saberia dizer quais são? A pergunta é feita por Sakae, que, ao começar sua pesquisa e perceber que havia mais informações sobre os homens do que sobre as mulheres, mudou o foco para as matriarcas. “Eu mes-ma tenho medo de ser esquecida só por ser mulher”, diz.
A mexicana Velázquez-Martin tem preocupação pareci-da — tanto que já submeteu uma amostra do DNA de seu bebê de apenas oito meses por curiosidade de conhecer a herança genética dele, mas também para começar desde cedo a informá-lo sobre seu passado. “Meu marido, que é americano, sabe exatamente de onde veio, tem muita in-formação sobre sua família”, conta. “Quero que meu filho tenha a mesma quantidade de informações do meu lado.”
Os testes genéticos de ancestralidade abrem as portas para esse passado materno escondido. A potiguar Sabri-na Bezerra descobriu mais sobre a história da tataravó por parte de mãe graças a um deles. Sem identificar traços fí-sicos indígenas, seu resultado apresentou 12% de compo-sição genética indígena. Surpresa, comentou com a mãe e as tias, que contaram a história da tataravó. Ela era índia, morava em uma aldeia, e seu tataravô teria levado-a para viver na cidade — Bezerra não sabe se voluntária ou invo-
luntariamente. É um detalhe importante de seu passado que ela, em 32 anos de vida, nunca tinha sequer imaginado.
Além do padrão autossômico, que analisa o DNA her-dado por homens e mulheres dos pais e dos quatro avós, há testes específicos para saber a linhagem materna, os chamados mitocondriais. O DNA mitocondrial, ou mtD-NA, fica no citoplasma das células, em vez do núcleo, e só é transmitido da mãe para os filhos, sem mistura com as informações genéticas do pai. Isso significa que se você tem irmãos, o resultado do teste autossômico pode ser di-ferente, visto que a combinação genética herdada é alea-tória, mas o mtDNA será exatamente o mesmo em todos.
Apesar disso, porém, eles também podem ser suscetí-veis a desigualdades, conforme explica o pesquisador do Incor. É que, embora o teste não mude, ele depende de bancos de dados de referência, ou seja, a forma de anali-sar muda. Essa parte fica sujeita a pesquisas que identifi-cam os marcadores genéticos de populações e ao acesso delas aos exames, o que ajuda a refinar a base de dados. E aí as minorias saem prejudicadas. Por exemplo: nos pri-meiros anos após o lançamento da Ancestry no mercado, uma das empresas que realiza os testes, ela não continha em sua base de dados informações específicas sobre po-pulações indígenas. A ascendência indígena era engloba-da em uma única categoria, “nativo-americana”, ainda que sejam conhecidas diferentes tribos e etnias.
Com o aumento no número de usuários e novas pesqui-sas, a base foi refinada e outras etnias foram incluídas, atua-lizando os resultados. Ao mesmo tempo, os testes ainda
AQUELE 0,01%A parte do genoma avaliada em teste
Em geral, o genoma de dois seres
humanos é 99,9% idêntico. A maioria das diferenças entre as pessoas ocorre por polimorfismos de nucleotídeo único, conhecidos
como SNPs. Eles são locais no genoma que apresentam variação:
enquanto algumas pessoas têm um A naquela posição, outras têm um G, por exemplo. SNPs podem ajudar a definir a ancestralidade de um indivíduo. Para isso, essa
variação deve ter frequência diferente em distintas popu-
lações humanas. Alguns SNPs chegam a diferir em frequência
em praticamente 100% (em uma determinada população todos os indivíduos apresentam uma
base, enquanto em outra, para a mesma base, todos os indivídu-os apresentam um nucleotídeo
diferente). A grande maioria dos SNPs não implica em uma
alteração no fenótipo e não está em regiões que codificam genes.
R O D R I G O A L V E S
15,7% BANTO
35,8% SUDANÊS
33,6% IBÉRICO
14,9% NATIVO-AMERICANO
BLANCA VELÁZQUEZ-MARTIN
53% nativo-americana
20% espanhola
15% francesa
2% judia europeia2% portuguesa
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estão bastante restritos a pessoas de maior poder aquisi-tivo, em geral classes formadas por poucas minorias. Com isso, o efeito cascata ou de rede, que permite a identifica-ção de compatibilidade genética, exclui essas populações.
Os testes de DNA também não fazem milagres, nem têm poder de trazer respostas para tudo. A pesquisa genética remonta a mais ou menos 300 anos do passado de cada pessoa, e para saber detalhes sobre a história dos ances-trais é necessário recorrer a documentos ou relatos orais. Mais uma vez, as minorias saem prejudicadas. Os registros de africanos que foram escravizados, por exemplo, foram literalmente queimados, enterrados ou modificados, o que torna o resgate documental uma missão complexa. E os relatos orais se perderam entre pessoas difíceis de serem localizadas ou que não estão mais vivas.
Cenários de riscoMas a suscetibilidade dos testes às desigualdades não é a única — muito menos a principal — preocupação levantada desde que eles se popularizaram. Há quem fale na possibi-lidade de edição do código genético: será possível trocar um gene que provoca predisposição a síndromes e doenças por outro? E, se isso for possível, haverá pessoas tentando modificar aqueles que causam alterações no fenótipo? Por enquanto, essas suposições não passam de suposições. A preocupação mais grave (e real) é a proteção de todos esses dados sensíveis que milhares de pessoas estão entregando — e pagando por isso — a empresas privadas.
Uma leitura cuidadosa do termo de consentimento de dois dos testes mais populares levanta, no mínimo, al-guns temores. “Os dados que compartilhamos fora do Ancestry não incluem seu nome, informação de contato ou outras informações identificadoras”, diz um trecho do Ancestry, que tem a maior base de usuários, de 5 mi-lhões. O do 23andMe, uma das poucas empresas a ofe-recer também informações detalhadas sobre fatores ge-néticos que podem estar relacionados a doenças, é ainda mais explícito: “Existe uma chance muito pequena que alguém com acesso aos dados ou resultados possa ex-por suas informações pessoais. A 23andMe tem políticas e práticas para minimizar as chances de tais eventos”.
Em tese, é possível optar por não permitir que as empre-sas compartilhem informações pessoais com terceiros. Na prática, porém, o risco existe — e, em junho do ano passa-do, concretizou-se. O MyHeritage, que atualmente regis-tra a maior base de dados do mercado brasileiro, teve uma falha de segurança que expôs os dados de 92 milhões de usuários, dos quais 3,6 milhões eram brasileiros. Segundo
a empresa, as informações genéticas não foram expostas, e sim e-mails e senhas criptografadas.
O maior problema de os dados caírem em mãos erradas é que eles podem ser usados para finalidades muito dife-rentes do que conhecer melhor o próprio passado. E isso já vem acontecendo: a polícia americana usou as bases de da-dos das empresas para resolver crimes de mais de 30 anos atrás, como o caso do Golden State Killer e o de uma mulher que abandonou seu bebê. No Arizona, o senador republica-no David Livingston propôs uma lei que obrigue todos os funcionários públicos a fornecerem uma amostra de DNA, acompanhada de informações como nome, identidade, data de nascimento e endereço, para criar uma base de dados.
Nada garante que isso não seja usado para discriminar pessoas em razão da etnia ou mesmo da suscetibilidade a doenças — um plano de saúde poderia, por exemplo, utilizar essas informações para cobrar mais pelo serviço. Quando perguntado sobre o porquê da legislação, o sena-dor respondeu que “cidadãos do Arizona pediram”. Ques-tionado se esses cidadãos tinham ligação com agências, empresas ou grupos relacionados a seguros, Livingston respondeu simplesmente que sim.
No Brasil, a Lei nº 13.709, de agosto de 2018, que dis-põe sobre a proteção de dados, classifica informações ge-néticas como sensíveis e veda o uso delas para obtenção de vantagem econômica. Mesmo assim, prevê exceções para o uso por autoridades e, segundo a advogada Thaís Maia, especialista em Biodireito, o Brasil ainda tem poucas leis que tratam de assuntos vanguardistas no âmbito da saúde.
Apesar dos possíveis riscos, os usuários dos testes não parecem se preocupar com os cenários mais pessimistas. “Até pensei em me preocupar, mas hoje já vivemos em um mundo tão aberto que, se isso ajudar em pesquisas no futuro, não me importo em compartilhar minhas in-formações”, afirma Bezerra. A curiosidade de descobrir histórias até então esquecidas talvez ajude a superar o medo das piores distopias. O importante é lembrar que essas não são as únicas histórias que um DNA conta.
OUTROS USOSTestes vão além da ancestralidade
■ AUTORIA DE CRIMES Com o aumento do número de pessoas
que fazem testes para descobrir a ancestralidade, as bases de dados
genéticos também cresceram. Isso possibilita a autoridades a
comparação do DNA de suspeitos de crimes, encontrando familiares ou os próprios criminosos. O caso recente mais emblemático é o do Golden State Killer, que matou ao menos 13 pessoas e estuprou 50 entre 1978 e 1986, na Califórnia. No ano passado, a polícia conse-guiu identificá-lo cruzando uma amostra com a base de uma das empresas que realiza os testes.
■ MAPEAMENTO DE DOENÇA
O debate sobre o que pode ou não ser divulgado quando o assunto é suscetibilidade a diferentes doen-ças é contínuo. Até o momento,
entre as informações que podem ser divulgadas — e são — estão:
tendência a Alzheimer, Parkinson, doença celíaca e mutações BRCA,
que podem causar câncer de mama, ovário e próstata.
■ PARENTES PERDIDOS
Com a função “match”, os testes viraram praticamente uma rede social para encontrar parentes.
Isso também gera uma grande cor-rida de marketing, visto que a pro-babilidade de encontros aumenta
quanto mais pessoas fizerem o teste em uma mesma empresa.
■ PESQUISASOs dados podem ser usados em
estudos que relacionam genética a doenças e no desenvolvimen-
to de novos medicamentos.
L E O N A R D O B A M O N T E
61,6% IBÉRICO
1,9% CENTRO-AMERICANO
7,3% NORTE-AFRICANO
7,2% BÁLTICO
10% 4 OU MAIS ETNICIDADES
SABRINA BEZERRA
65,5% europeia
17,6% africana (subsaariana)
12,4% nativo-americana e leste-asiática
1,1% norte-africana/asiática (oeste)5,3% não reconhecido
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E S C O L H A S E U T E S T E
■ 23ANDMESede: Califórnia, EUA
Preço: US$ 99 (somente ancestralidade) e US$ 199 (ancestralidade e saúde)
Serviços: Testes do cromossomo Y (somente para homens),
para descobrir ancestralidade paterna, e mitocondrial,
para descobrir a linhagem materna, estão inclusos
no pacoteTipo de coleta: Saliva
Número de usuários: 5 milhõesSegurança dos dados: É possível
optar por não liberar os dados para pesquisa, mas eles são armaze-nados por tempo indeterminado
Disponível no Brasil: Não
■ NATIONAL GEOGRAPHIC GENOSede: Washington, D.C., EUA
Preço: US$ 99,99Serviços: O diferencial é contar
quanto em comum você tem com um Neandertal, mas testa
o cromossomo Y (para homens), para descobrir ancestralidade
paterna, e o DNA mitocondrial, para revelar a linhagem materna
Tipo de coleta: SalivaNúmero de usuários: 990 milSegurança dos dados: A em-presa mantém os dados até
que o usuário peça para serem destruídos. Para o pedido, é
preciso enviar e-mail. Uma vez destruído, o conteúdo não poderá
ser acessado novamente Disponível no Brasil: Não
■ AFRICAN ANCESTRYSede: Washington, D.C., EUAPreço: de US$ 299 a US$ 680
Serviços: Tem uma base mais de-talhada de ancestralidade indígena e africana do que os concorrentes
Tipo de coleta: SalivaNúmero de usuários: 100 mil
Segurança dos dados: A empresa se compromete a não compartilhar
os resultados com terceiros. No caso de um cliente não con-seguir resultado satisfatório no
teste, a empresa mantém o DNA salvo por até um ano para tentar
encontrar novas combinações Disponível no Brasil: Não
■ ANCESTRY DNASede: Utah, EUA
Preço: US$ 99 (somen-te ancestralidade)
Serviços: Somente teste de ancestralidade globalTipo de coleta: Saliva
Número de usuários: 3 milhõesSegurança dos dados: É possível
optar por não liberar os dados para pesquisa, mas eles são armaze-nados por tempo indeterminado
Disponível no Brasil: Não
■ FAMILY TREESede: Houston, Texas
Preço: De R$ 599 a R$ 1.596Serviços: Há pacotes específicos
para os testes do cromosso-mo Y (somente para homens), para descobrir ancestralidade paterna, e mitocondrial, para descobrir a linhagem materna
Tipo de coleta: Coto-nete na bochecha
Número de usuários: 850 milSegurança dos dados: São arma-zenados por, no máximo, 25 anos; recentemente incluiu a opção de
impedir autoridades de acessá-losDisponível no Brasil: Sim, por meio do laboratório Genera
■ MYHERITAGESede: Bnei Atarot, Israel
Preço: A partir de R$ 230Serviços: Somente teste de
ancestralidade globalTipo de coleta: Coto-
nete na bochechaNúmero de usuários: 1,7 milhão
Segurança dos dados: Os dados são armazenados por, no máximo, 25 anos
Disponível no Brasil: Sim; a empresa tem um ende-reço em Campinas (SP)
■ LIVING DNA Sede: Reino Unido
Preço: US$ 99Serviços: Ancestralidade global,
cromossomo Y e DNA mitocondrialTipo de coleta: SalivaNúmero de usuários:
Não informadoSegurança dos dados: Ficam
armazenados por tempo indeter-minado; o usuário pode pedir para
retirar quando não quiser mais que a informação fique salva
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