Como Se Forma Os Sujeitos Do Campo Caldart Palludo Doll

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    Roseli Salete CaldartConceio Paludo

    Johannes Doll

    Organizadores

    IDOSOS, ADULTOS, JOVENS, CRIANAS E EDUCADORES

    Como seformam

    os sujeitos

    do campo?

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    Como se formamos sujeitos do campo?IDOSOS, ADULTOS, JOVENS, CRIANAS E EDUCADORES

    Roseli Salete CaldartConceio Paludo

    Johannes Doll

    Organizadores

    Fevereiro de 2006

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    dos autores1aedio: 2006

    Direitos reservados desta edio;

    Programa Nacional de Educao naReforma Agrria - PRONERA

    Projeto grfico, capa e diagramaoCaco Bisol Produo [email protected]

    RevisoRita de Cssia Avelino Martins

    Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA)

    www.mda.gov.br

    Distribuio:Ncleo de Estudos Agrrios eDesenvolvimento Rural (NEAD)SCN Quadra 1 - Bloco C, Edifcio Trade Center,5 andar, sala 501CEP 70711-902 - Braslia/DFTelefone: (61) 3328-8661www.nead.org.br

    Luiz Incio Lula da SilvaPresidente da Repblica

    Miguel Soldatelli RossettoMinistro de Estado do

    Desenvolvimento Agrrio

    Guilherme CasselSecretrio-executivo do Ministrio

    do Desenvolvimento Agrrio

    Rolf HackbartPresidente do Instituto Nacional de

    Colonizao e Reforma Agrria Incra

    Valter BianchiniSecretrio de Agricultura Familiar

    Eugnio PeixotoSecretrio de Reordenamento Agrrio

    Jos Humberto OliveiraSecretrio de Desenvolvimento Territorial

    Caio Galvo de FranaCoordenador do Ncleo de EstudosAgrrios e Desenvolvimento Rural - NEAD

    PCT MDA/IICA Apoio s Polticas e Participao Socialno Desenvolvimento Rural Sustentvel

    P184c

    Caldart, Roseli Salete, Paludo, Conceio, Doll, Johannes.Como se formam os sujeitos do campo? Idosos, adultos, jovens,

    crianas e educadores. / Roseli Salete Caldart, Conceio Paludo, Johannes

    Doll (organizadores). - Braslia: PRONERA : NEAD, 2006.160p. ; 21x28 cm.

    1. EducaoBrasil 2. Educao do Campo. 3.Formao de educadores4. Sujeitos do campo I. Caldart, Roseli Salete. II. Paludo, Conceio. III. Doll,Johannes. IV. NEAD. V. PRONERA.

    CDD 630.7

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    Educar depositar em cada pessoa toda a obrahumana que a antecedeu; fazer de cada pessoauma sntese do mundo at o dia em que vive...

    Jos Mart

    necessrio que a revoluo democrticase aprofunde para estabelecer condies

    de criar uma universidade capaz de serviraos trabalhadores, sem submet-los a condiesde escravos; onde possam receber uma educaoinstrumental, til para sua auto-emancipao e,sobretudo, para que no se desvencilhem, em suaidentidade, e em seus papis sociais, dos objetivos

    que definem a relao da classe trabalhadoracom a transformao da sociedade capitalista.Florestan Fernandes

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    Sumrio

    Prefcio 7

    Introduo 11

    Pesquisa e formao de educadores do camponos movimentos sociais 19

    Envelhecimento: conhecendo a vida de homens emulheres do campo 31 Post scriptumdos orientadores 45

    Sujeitos adultos do campo: sua formaonos movimentos sociais 51

    Sujeitos jovens do campo 75

    Jovens em movimento(s) 99

    A infncia e a criana no e do campo 113Formao de educadores e educadoras no e do campo 141

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    7COMOSEFORMAMOSSUJEITOSDOCAMPO?

    Prefcio

    Mnica Castagna Molina1

    Senti-me extremamente honrada em prefaciar o livro Como se formam os sujeitosdo campo?. Ele traz contribuies relevantes para o avano da construo dos paradigmasda Educao do Campo, que tem como um de seus pressupostos a necessidade de cons-truirmos um novo projeto de Nao, popular e revolucionrio, e um novo papel para ocampo nesse projeto.

    Projeto de Nao cujas bases prioritrias sejam a promoo da igualdade e da justi-a social, por meio da efetiva garantia dos direitos a todos os cidados. No h possibili-dade de construo de justia social no Brasil sem efetuarmos profunda e radical mudan-a no acesso a dois bens fundamentais: terra e educao. Democratizar o acesso terra,por meio da Reforma Agrria, e democratizar o acesso ao conhecimento e aos processosque viabilizam sua produo so imperativos para criarmos as condies que possamgerar justia social em nosso pas.

    Este livro simultaneamente um produto da democratizao do acesso terra e dademocratizao do acesso ao conhecimento. Seus autores so protagonistas da luta pelodireito terra, ao trabalho, ao conhecimento. Educandas e educandos do Curso de Peda-gogia da Terra, desenvolvido pelo Instituto Tcnico de Capacitao e Pesquisa da ReformaAgrria (Iterra) e pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), com o apoiodo Programa Nacional de Educao na Reforma Agrria (Pronera), nos mostram a belezae a dor da realidade rural brasileira, em distintos territrios. Trazem-nos a vida e os pro-cessos de humanizao e desumanizao aos quais esto submetidas as crianas, os jovens,os adultos e os idosos do campo.

    Constituem-se pesquisadores durante o prprio processo que os forma educadores.Como sujeitos do campo, desafiaram-se a olhar para dentro, a mergulhar na constituiode sua prpria identidade e da identidade dos diferentes ciclos de vida de suas comunida-des. Re-educar o olhar para ver relaes humanas e condies socioeconmicas antesnaturalizadas. Aprender e apreender a construo das categorias cientficas como instru-mento de leitura crtica de suas realidades.

    Um dos fundamentos da Educao do Campo que s h sentido em construirprocessos pedaggicos especficos s necessidades dos sujeitos do campo vinculados

    1. Doutora em Desenvolvimento Sustentvel, coordenadora do Programa Nacional de Educao na Reforma Agrria (Pronera/Incra) e professorapesquisadora da Universidade de Braslia.

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    construo de outro modelo de desenvolvimento cuja base produtiva principal d-se apartir das unidades familiares de produo e no do agronegcio e do latifndio. Pois, nohaveria sentido desencadear esforos para a produo de teorias pedaggicas para umcampo sem gente, para um campo sem sujeitos, ou, dito de outra forma, para uma rurali-dade de espaos vazios.

    A base fundamental de sustentao da Educao do Campo, qual se vincula oPronera, que o territrio do campo deve ser compreendido para muito alm de um es-pao de produo agrcola. O campo territrio de produo de vida; de produo denovas relaes sociais; de novas relaes entre os homens e a natureza; entre o rural e ourbano. O campo um territrio de produo de histria e cultura, de luta de resistnciados sujeitos que ali vivem.

    A relevncia dessa experincia e do registro neste livro traduz-se pela afirmaoprtica e exitosa de valores estruturantes da concepo de formao de educadores docampo. Primeiro, porque prioriza o que consideramos mais importante nesse paradigmade modelo de desenvolvimento e de campo: os seres humanos so os protagonistas de

    qualquer processo de transformao social. Este livro prioriza compreender as contradiese os conflitos entre os projetos de desenvolvimento para o campo, a partir das condiesde vida de seus sujeitos.

    Segundo, porque a sua criao tambm prioritariamente produto do trabalho des-ses mesmos sujeitos do campo. Rompe-se com a clssica dicotomia sujeito e objeto doconhecimento. Avana-se para a produo de um novo tipo de cincia, que questionaprincpios consolidados, e que servem somente para manuteno da (des)ordem vigente,como a neutralidade cientfica.

    Terceiro, porque nos ensina muito sobre o processo de construo coletiva de umprojeto social de conhecimento. D-nos pistas concretas para avanarmos na edificao

    de um outro papel para as universidades pblicas brasileiras. Demonstra-nos como pos-svel recuperarmos a necessria vinculao das universidades construo de um projetode Nao, num momento histrico, no qual a globalizao capitalista deseja exatamentesufocar tais projetos, subsumindo as necessidades dos pases lgica da mxima concen-trao da riqueza. Garantir a presena dos movimentos sociais do campo nos cursos su-periores e, com eles, construir projetos de pesquisa que pensem sadas para os problemasdo povo brasileiro que vive no e do campo, significa resistir aos interesses do sistema docapital privatizao do processo de produo do conhecimento que vem ocorrendo nasinstituies pblicas, ao mesmo tempo que se prope uma outra lgica para esta produo,muito mais democrtica e coletiva.

    Quarto, porque tambm oferece elementos para resgatarmos parte de nossa d-vida histrica com os sujeitos do campo que, alm de todos os dbitos no tocante

    garantia do acesso aos direitos, tambm uma dvida de conhecimento. Num pas com

    as dimenses rurais como o Brasil, e com o papel que teve e tem na histria este terri-

    trio, de fato impressionante a ausncia e o desconhecimento sobre o que a infn-

    cia no campo; sobre a juventude; sobre a velhice no mundo rural. Como ressalta Miguel

    Arroyo, cada tempo da vida uma sntese da condio humana. Desconhecer as ca-

    ractersticas e necessidades tpicas de cada tempo da vida significa tambm reduzir

    nossa capacidade, como educadores, de contribuir para a completa humanizao des-

    ses tempos, e para garantir, que os sujeitos que neles se encontram tornem-se, de fato,

    sujeitos de direito.

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    urgente e necessrio construir e reconhecer poltica, social e culturalmente o di-reito infncia no campo; juventude; velhice no meio rural. No h possibilidade deconstruirmos sistemas educativos para esses tempos da vida no campo, enquanto nolegitimarmos seus titulares como sujeitos de direito. Esse , ao meu ver, um dos grandesmritos do processo coletivo de produo do conhecimento deste livro: contribuir para

    avanarmos na compreenso e no conhecimento das especificidades desses tempos, edas carncias as quais esto submetidos esses sujeitos.

    O tempo da infncia no campo est privado de todos os benefcios j produzidospelo grande acmulo de conhecimento cientfico sobre a centralidade desse tempo nosprocessos de construo dos saberes e da psique humana, porque a infncia no campono um tempo de direitos. Praticamente no h acesso educao infantil ofertada peloEstado no meio rural pesquisado. Um tempo central e riqussimo de possibilidades deaprendizado ignorado e desperdiado pelo Estado e por partes da sociedade que, cul-turalmente, ignora a existncia da infncia no campo. Seria por que a infncia no campo a infncia das classes trabalhadoras?

    Apesar da ausncia do Estado, significativo o esforo de reconhecimento e valori-zao desse tempo da vida por parte de alguns movimentos sociais do campo. As pesqui-sas encontraram experincias e prticas relevantes de educao infantil, organizadas emantidas por organizaes sociais, que tm contribudo para ampliar a conscincia dostrabalhadores e suas comunidades sobre os cuidados necessrios com a infncia.

    Entre outras privaes, marcante o relato dos jovens pesquisados sobre sua ex-cluso do direito educao e cultura. Ainda mais forte a reivindicao de renda, poistrabalho tm muito, porm sem reconhecimento financeiro e sem valorizao. A diversi-dade encontrada nas situaes pesquisadas exige que falemos em juventudes do meiorural. Ao mesmo tempo que confirmam aspectos que tm nos orientado na construo

    dos paradigmas da Educao do Campo como, por exemplo, a centralidade das relaesfamiliares para os jovens rurais, os achados das pesquisas tambm interrogam parte dasespecificidades at ento defendidas, avanando nos questionamentos sobre os dbeislimites do rural e do urbano para este ciclo da vida.

    A velhice no campo carrega a sabedoria da natureza. Ainda que os relatos das pes-quisas desnudem mais uma vez que, culturalmente, ignoramos esse tempo da vida nocampo como um tempo de direitos, revelam-se tambm os valores e as particularidadesdas relaes sociais construdas por sujeitos cujo trabalho, de uma vida inteira, estevesempre ligado vida da natureza. marcante a fora e o peso da espiritualidade nessetempo da vida. Das vrias riquezas encontradas pelos estudantes do curso de Pedagogia

    da Terra em suas pesquisas, vale destacar a beleza do encontro com o ser idoso. Comoso sensveis os relatos de quem, vivendo outro tempo da vida, tempo de fora e vigor,soube penetrar num tempo de balano e incertezas. A mudana do olhar dos estudantessobre o tempo de ser idoso no campo nos ensina a importncia de nos aproximarmos dossujeitos, e ouvirmos sua prpria voz, ainda que seja rouca e frgil.

    So instigantes os resultados do grupo de pesquisa que analisou criticamente oprprio processo de formao de educadores e educadoras do campo. Apontam inovaesnas teorias e prticas pedaggicas que orientam a formao destes educadores. Mas tam-bm, ao estruturarem os resultados de suas investigaes, focando os limites existentesno processo formativo desses futuros profissionais, em aspectos relacionados ao mtodoorganizativo dos coletivos onde atuam; s relaes pessoais e coletivas por eles estabele-

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    cidas; as suas prticas de estudo e prticas educativas, as pesquisas trazem indicativos denecessrias e inadiveis alteraes em alguns procedimentos adotados, caso queiramoscontinuar cultivando a coerncia entre a prtica e a teoria nos processos formativos doseducadores do campo.

    Nos diferentes grupos pesquisados, embora haja dificuldades enfrentadas em seus

    processos formativos, existem tambm, simultaneamente, importantes potencialidadesdescobertas, derivadas exatamente de encontrarem-se esses sujeitos no territrio rural.Ao trmino da leitura deste livro, fica-nos a confirmao de que os movimentos sociaisproduzem conhecimento e a formao para pesquisa um elemento pedaggico estrat-gico, que deve ser cultivado, ensinado e praticado em todos os nossos cursos. O conhe-cimento construdo a partir da prtica desses educadores, confrontado com as teoriasexistentes, possibilita a rica construo de um conhecimento coletivo, de novo tipo, apartir das prticas sociais e que ser uma das condies para podermos produzir as mu-danas to necessrias no meio rural e na sociedade brasileira.

    Expressamos aqui nosso reconhecimento ao valoroso trabalho realizado pelas equipes

    do Iterra, da UERGS, do Incra/RS, que, com sua determinao e competncia, contriburamao lado das diferentes organizaes dos trabalhadores presentes neste Curso, Movimentodos Pequenos Agricultores, Movimento dos Atingidos por Barragens, Movimento dos Traba-lhadores Rurais Sem Terra, Movimento das Mulheres Camponesas, Movimento dos Traba-lhadores Desempregados e Pastoral da Juventude Rural, para formar mais uma turma depedagogos(as) da terra que, com certeza, faro avanar a garantia do direito educao aossujeitos do campo e, principalmente, atuaro como educadores comprometidos com aconstruo de um projeto popular de desenvolvimento para o Brasil.

    Agradecemos tambm a frutfera parceria com o NEAD, que tem valorizado a pro-moo dos debates dos paradigmas da Educao do Campo, promovendo a disseminao

    destas publicaes.

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    IntroduoRoseli Salete Caldart2

    A pesquisa foi uma das estratgias pedaggicas do nosso curso. Num

    primeiro momento foi necessrio que entendssemos a importncia dapesquisa para as nossas organizaes e para o perfil de pedagogo que ocurso estava propondo. (...) Um dos aprendizados do processo foi sobre oprprio ato de pesquisar, sobre como observar, coletar dados, como fazeranlise, buscando dialogar com os elementos tericos estudados, e comoisso nos remete a ter que construir uma metodologia prpria da pesquisa.Pelo exerccio, percebemos que somos capazes de produzir conhecimentos,e entendemos como a pesquisa importante, podendo se constituir numaferramenta (de formao e de luta) para a classe trabalhadora (Memriada Turma Jos Mart).3

    Este livro pretende-se testemunho de um processo de formao de educadores queinclui a pesquisa como estratgia pedaggica e foi desenvolvido ao longo de um curso degraduao em Pedagogia, especfico para educadoras e educadores do campo vinculadosa movimentos sociais. Formar-se educador pela prtica da pesquisa e iniciar-se na pesqui-sa formando-se como educador foi um dos desafios importantes propostos pelo curso aosseus participantes.

    O que apresentamos na seqncia uma amostra dos resultados do trabalho depesquisa realizado pelos estudantes da Turma Jos Mart, do curso Pedagogia da Terra da

    Via Campesina Brasil, que teve como tema comum a formao dos sujeitos do campo.So artigos produzidos pelos estudantes organizados em grupos de pesquisa, junto comos professores-orientadores, a partir dos trabalhos monogrficos e atravs da reflexocoletiva sobre a trajetria e os resultados do processo de construo de conhecimentovivenciado no grupo.

    Um dos objetivos da publicao deste livro o de valorizar a produo coletiva feitapela turma e pela equipe de orientao. A elaborao dos artigos em cada grupo de pes-

    2. Doutora em Educao, integrante da Unidade de Educao Superior do Instituto Tcnico de Capacitao e Pesquisa da Reforma Agrria (Iterra)e da equipe de coordenao do curso de Pedagogia.

    3. A Memria da Turma Jos Mart foi o registro feito pelos estudantes autores deste livro sobre a experincia educativa no curso, a cada etapa.Na ltima, concluda em setembro de 2005, a turma construiu, a partir do conjunto de seus registros, um texto narrativo com elementos deanlise sobre sua trajetria coletiva. Esse trecho escolhido como epgrafe foi retirado do captulo sobre as Estratgias Pedaggicas do Curso.

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    quisa foi um momento pensado inicialmente apenas como culminncia do processo, emum exerccio de sntese das diferentes produes individuais em torno do foco temticogeral da pesquisa. Consideramos depois que, alm de demonstrarem a importncia peda-ggica do exerccio feito, os textos acabaram se constituindo em uma boa expressomaterial de seus resultados.

    Outro objetivo que temos com a socializao desses textos contribuir em umareflexo que nos parece muito importante, e que diz respeito formao de educadores, atuao dos movimentos sociais do campo, produo do conhecimento e valorizaodos sujeitos e de sua experincia humana. Trata-se de pensar a pesquisa como estratgiapedaggica na formao de educadores e de militantes sociais, como parte do prpriodesafio de produo do conhecimento comprometido com as questes atuais da vida noe do campo, e da construo de um projeto educacional emancipatrio para seus sujeitos,protagonizadas ambas por eles prprios.

    Mais do que apenas informar aos leitores sobre o contedo de cada um dos artigos,queremos nesta introduo dizer algo sobre os seus autores e sobre o contexto e o pro-

    cesso de formao e(m) pesquisa que os produziu. Consideramos, nesse caso, que aprpria rememorao do processo apresenta o produto, medida que estamos tratandode experincias de formao de sujeitos do campo.

    A turma que se batizou como Jos Mart, em homenagem ao poeta educador revo-lucionrio cubano, composta de estudantes que participam das seguintes organizaese movimentos sociais do campo: Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimen-to dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra(MST), Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), Movimento dos Trabalhadores De-sempregados (MTD) e Pastoral da Juventude Rural (PJR). Concluram o processo do curso45 estudantes (dez homens e 35 mulheres) originrios de comunidades rurais dos estados

    do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paran e So Paulo.O curso uma graduao em Pedagogia Anos iniciais do ensino fundamental: crian-as, jovens e adultos, realizado pelo convnio entre o Instituto Tcnico de Capacitao ePesquisa da Reforma Agrria (Iterra) e a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UER-GS), com o apoio do Programa Nacional de Educao na Reforma Agrria (Pronera/Incra).A Turma Jos Mart fez seu curso em Veranpolis, Rio Grande do Sul, na sede do Iterra, noperodo de maro de 2002 a setembro de 2005.4

    O nome Pedagogia da Terra indica uma especificidade de pblico e de projeto peda-ggico que caracteriza tambm outras experincias do curso de Pedagogia desenvolvidaspor meio de parcerias entre diferentes universidades, movimentos sociais do campo e

    Pronera.

    5

    No caso da experincia do Iterra com a UERGS, h tambm a particularidade deser uma iniciativa que integra, em uma mesma turma, diferentes organizaes sociais queparticipam da Via Campesina,6e tambm da articulao nacional Por uma Educao doCampo. Trabalhar esse pertencimento, essa identidade, tem sido outro grande desafiopedaggico para os sujeitos desse curso.

    4. Desse mesmo convnio de Pedagogia, h uma segunda turma em andamento no Iterra, a Turma Margarida Alves, que iniciou o curso em 2003e dever conclu-lo no primeiro semestre de 2007.

    5. O primeiro Pedagogia da Terra iniciou em 1998, numa parceria entre Iterra, Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul(Uniju) e Pronera. Hoje, incio de 2006, h 11 turmas em diversos estados. Outras informaes sobre a construo dessas iniciativas podem serencontradas em: Cadernos do Iterraano II, n. 6, dezembro de 2002.

    6. A Via Campesina uma articulao internacional de organizaes camponesas criada no incio da dcada de 1990 a partir de diferentes aesna Amrica Latina e Europa. Atualmente, composta por 127 organizaes de todos os continentes e sua secretaria executiva funciona emJacarta, na Indonsia. No Brasil, integram a Via Campesina: MST, MAB, MPA, MMC, PJR, CPT (Comisso Pastoral da Terra) e Federao dosEstudantes de Agronomia do Brasil (Feab).

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    As turmas de Pedagogia da Terra so especficas para educadoras e educadores docampo que atuam em espaos educativos de comunidades rurais e tm se desenvolvidoespecialmente pela iniciativa de movimentos sociais. No projeto pedaggico desse cursoh uma intencionalidade formadora que reconhece a especificidade do campo e de seussujeitos, no apenas acolhendo suas necessidades educativas, mas tambm abrindo a

    universidade para novas alternativas de formato da oferta da educao superior, de modoa permitir o acesso e a permanncia nos cursos para aquelas pessoas que vivem e traba-lham longe (geogrfica e socialmente) dela.

    Essa adequao metodolgica uma das razes do porqu essas experincias tmseu currculo organizado em etapas, com tempos e espaos alternados entre universidade(tempo escola) e locais de origem e de trabalho dos estudantes (tempo comunidade). H,pois, um tempo intensivo de aulas e de outras atividades pedaggicas que so realizadasno local do curso (em nosso caso, no Iterra), entre 40 e 50 dias letivos em cada etapa, eum outro tempo de atividades, vinculadas ao curso, mas tambm ao trabalho e militn-cia nos movimentos sociais, que acontece em suas comunidades de origem, num perodo

    aproximado a 90 dias por etapa. No curso Iterra/UERGS, foram oito etapas.A organizao de tempos acaba sendo aceleradora de dimenses pedaggicas im-

    portantes na formao dos educadores, entre elas a de intencionalizar o processo deformao na perspectiva da prxis, no que as atividades de pesquisa podem contribuirsignificativamente.

    O curso de Pedagogia da UERGS, criado no mesmo perodo da negociao do con-vnio para este Pedagogia da Terra, nasceu com a marca da Educao Popular,7e incluiua pesquisa como uma de suas principais estratgias de formao do educador. Em suabase curricular, foram garantidos alguns componentes (disciplinas) responsveis pela arti-culao e coordenao do processo em cada etapa, ao longo de todo o curso, culminan-

    do com a elaborao do trabalho de concluso.Na discusso especfica do projeto pedaggico do curso do Iterra definimos com auniversidade, por meio de sua coordenao especial para as turmas de convnio commovimentos sociais, que seria construdo um projeto de pesquisa geral para cada turma,desdobrado na constituio de grupos de pesquisa e de projetos individuais que culmina-riam em trabalhos monogrficos a serem defendidos publicamente, perante banca, at astima etapa do curso. A escolha do tema caberia aos prprios estudantes, por meio dodilogo com suas organizaes sociais de origem.

    O que se pretendia era desenvolver um processo que, alm de exercitar/iniciar osestudantes na produo de conhecimento mais rigorosa e metdica, gerasse como resul-

    tado conhecimentos relevantes para as questes das prticas pedaggicas dos movimen-tos e para seu desafio comum de construo da Educao do Campo.Buscou-se, na experincia concreta, incluir a pesquisa no ambiente educativo do

    curso, no apenas como atividade, mas como ao articuladora da produo do conheci-mento e da sua atuao de pedagogos e pedagogas da terra, educadoras e educadoresdos sujeitos do campo, estes mesmos sujeitos que foram afinal transformados em seuobjeto de pesquisa.

    O tema escolhido para a pesquisa da Turma Jos Mart foi o da formao dos sujei-tos do campo. O recorte proposto foi o da formao dos sujeitos coletivos (especialmen-

    7. A UERGS foi criada em 2001 e entre as caractersticas de seu processo inicial destacam-se a articulao com os movimentos sociais e o debatede um projeto de desenvolvimento regional vinculado aos referenciais da educao popular.

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    te de como os prprios movimentos sociais vo se constituindo como sujeitos coletivose com dimenso pedaggica), articulado a questes do desenvolvimento humano em seusdiferentes ciclos etrios.

    Quem so os sujeitos do campo? Como se formam/se educam nos diferentesespaos onde desenvolvem sua experincia humana: na famlia, no trabalho, nas relaescomunitrias, na escola, no movimento social? Quem so e como se educam as crian-as, os jovens, os adultos, os idosos do campo? Como se constituem a infncia, a ju-ventude, a idade adulta e a velhice no campo? E quem so e como se formam os edu-cadores dos sujeitos do campo? Que processos formadores vivenciam na prpria aode educar? Essas questes, formuladas nas etapas iniciais do curso, orientaram todo oprocesso de pesquisa e certamente permanecem como possibilidades fecundas paracontinuidade da reflexo.

    A deciso sobre o tema foi tomada pelo Colegiado da Via Campesina, instnciacriada para coordenao geral dos convnios com a UERGS.8As discusses principaisaconteceram no perodo das duas primeiras etapas do curso, momento em que os seus

    sujeitos j eram para ns pessoas concretas, e que podiam tomar posio sobre a pro-posta da pesquisa junto com suas organizaes. Foi ali tambm que se decidiu trabalharcom os ciclos etrios da infncia, juventude, idade adulta e velhice, e tambm ter um gru-po trabalhando especificamente com a questo da formao do sujeito educador, incluin-do gnero como uma das categorias a ser abordada pelos trabalhos, ou pelo menosconsiderada na escolha dos sujeitos da pesquisa emprica.

    No contexto de atuao dos movimentos sociais, estudar sobre a formao de su-jeitos significa afirmar uma concepo de histria que, sem desconsiderar as condiesobjetivas dos processos sociais, inclui o movimento dos sujeitos humanos, pessoas ecoletividades, suas experincias, iniciativas, escolhas, e as relaes, contradies, tenses

    e conflitos que vivem e provocam. Os movimentos sociais tm como fundamento de suadinmica a convico de que o ser humano sujeito da histria, e de que possvel (almde necessrio) formar cada pessoa, cada grupo social, para que passe (ou pelo menos semovimente) de sujeitado, passivo, a sujeito, portador de ao.9

    No caso desse processo de pesquisa, o recorte temtico dos sujeitos do campo foicompreendido pelas organizaes, e depois pelos prprios estudantes, a partir de duassignificaes principais. De um lado, como uma oportunidade de conhecer-se mais pro-fundamente, enquanto sujeitos coletivos, e tambm de conhecer melhor os sujeitos hu-manos que integram a sua base social e ento poder qualificar seu trabalho organizativo,pedaggico; sua poltica e seus mtodos de formao. De outro, pensando em parte da

    sociedade (que inclui parte da universidade) que ainda reluta em admitir a pertinncia deum tratamento especfico, especialmente na rea das polticas pblicas, para o povo que

    8. Inclui a participao de representantes dos movimentos sociais e pastoral, do Iterra, da Fundep, da UERGS e dos estudantes de cada turma. AFundao de Desenvolvimento, Educao e Pesquisa da Regio Celeiro (Fundep) a entidade que realiza o curso de Desenvolvimento Rural eGesto Industrial, tambm em convnio com a UERGS.

    9. Esta tenso conceitual est na prpria trajetria da palavra sujeito. Segundo Leandro Konder, o termo sujeito mais complexo do que podeparecer primeira vista (...) A palavra existia no latim medieval, escolstico, empregada em contraposio a objectus. Em sua origem latina,anterior ao seu uso medieval, subjectus o particpio passado masculino do verbo subjicere(...) que, entre muitos outros sentidos, significasubmeter, subjugar... Ou seja, nesta acepo original, sujeito quer dizer sujeitado, subordinado e reduzido passividade. Mas, tambm segundonos chama a ateno Konder, paralelamente histria de conservao do sentido antigo, o termo passou a se firmar com o sentido novo dadistino entre sujeito e objeto. Kant e Hegel, na passagem do sculo XVIII para o XIX, na Alemanha, foram os filsofos que enfrentaram comdisposio radical o desafio de repensar a relao sujeito/objeto luz das novas condies histricas, nas quais os indivduos, em nmerocrescente, estavam se reconhecendo como sujeitos capazes de se afirmarem sobre os objetos, intervindo, de algum modo, no processo histricoda mudana da realidade objetiva. Marx, em que pese todo seu acerto de contas com o idealismo alemo, incorporou e levou adiante este novosentido de sujeito, que hoje mais comum entre ns. (Konder, Leandro.A questo da ideologia. So Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 24-28.) Nos movimentos sociais geralmente a palavra sujeito empregada indicando ao.

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    vive no campo, esta pesquisa poderia integrar o esforo de afirmao destes sujeitos, comsua existncia concreta, suas questes e identidade. O reconhecimento dos sujeitos docampo materializa os chamados direitos universais em direitos coletivos especficos,objeto de lutas sociais concretas, e uma condio necessria para a construo de polti-cas como as de Educao do Campo.

    Mesmo assim, a deciso de compor os grupos de pesquisa pelos ciclos etrios impli-cou uma discusso mais demorada; pela novidade que isso representava para as organizaese tambm pelos limites que esse recorte imporia aos trabalhos. E a novidade maior ficoupor conta de pesquisar sobre os idosos do campo, o que ainda no tinha sido feito porcursos ou pesquisadores vinculados a essas organizaes sociais. Na turma, este tambmfoi o grupo constitudo por ltimo, porque os estudantes temiam que sua escolha pudesseparecer esquisita para suas comunidades de origem, j que em nenhum dos movimentoshavia uma intencionalidade de atuao com os idosos, o que j existe h um certo tempo,pelo menos em alguns deles, com as crianas e com os jovens, por exemplo.

    A opo pelo estudo dos sujeitos, e especialmente pelos ciclos etrios, exigiu dos

    estudantes-pesquisadores uma reeducao do olhar, que precisou ser exercitada tambmem outras atividades do curso. E talvez essa reeducao do olhar tenha sido um dos prin-cipais resultados desse processo de pesquisa, especialmente do ponto de vista da forma-o do pedagogo, do educador: uma atitude de prestar ateno aos sujeitos e como seeducam, que foi se tornando uma convico pedaggica, testada tambm durante asprticas educativas e os estgios de docncia acompanhados pelo curso. Sobre essareeducao do olhar refletiu uma das educandas em seu Memorial de Aprendizados:10

    Para mim, o maior significado da realizao deste trabalho de pesquisafoi o de aprender a olhar para o ser humano como centro de tudo. E, a

    partir deste olhar, aprender a conhecer desde as suas razes culturais ato meio em que vive hoje. Saber por que determinada pessoa atua ou agede tal forma, compreendendo as relaes que se estabelecem no meio emque vive, extraordinrio para qualificar a prtica de pedagogos militantes(Marilene Cupsinski).

    A partir das discusses e do detalhamento da proposta da pesquisa com a turma, eda escolha individual do grupo a pertencer (ou dos sujeitos a olhar), comearam os mo-vimentos da pesquisa, que perpassaram todas as etapas, a partir da segunda, com tempose ritmos marcados pela prpria circunstncia dos tempos/espaos do curso, j que al-gumas atividades podiam ser melhor desenvolvidas durante o tempo escola (como pes-

    quisa bibliogrfica, produo escrita e interlocuo mais direta com os orientadores) eoutras no tempo comunidade (como o trabalho de campo ou o encontro com os sujeitos/objetos da pesquisa).

    Destaque-se que uma das grandes riquezas do processo foi a constituio dos gruposde pesquisa. Sua composio incluiu estudantes de diferentes movimentos sociais e, por-tanto, de diferentes lugares, s vezes de diferentes estados, o que permitiu um dilogofecundo para o conjunto do processo pedaggico do curso. H uma breve descrio dacomposio e do processo de trabalho dos grupos em cada artigo. E foi uma experinciaespecialmente significativa a de buscar construir a identidade do grupo pelos sujeitos:

    10. Cada estudante escreveu um Memorial de Aprendizados do Curso, concludo na ltima etapa, em setembro de 2005.

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    grupo dos jovens, grupo das crianas,... a ponto de que este pertencimento acabavasendo o destaque das apresentaes pblicas de cada grupo, estendendo-se para diferen-tes tempos e atividades do curso: os idosos esto chegando...

    Podemos identificar dois tipos de movimentos (entrecruzados) da pesquisa quedo conta, de certo modo, de descrever o processo vivenciado pela Turma Jos Mart:

    movimentos ligados s aes que foram se desdobrando at chegar produo dos textosque compem este livro, e movimentos ligados aos aprendizados ou formao de umadeterminada postura de pedagogo-pesquisador que estiveram permeando o movimentoentre as aes.

    Ressaltam-se como movimentos importantes nessa trajetria: o movimento entre oencontrar-se de cada estudante consigo mesmo na tarefa de pesquisador, percebendo (svezes com certa dor) que ningum podia fazer a tarefa por ele, e o constituir do grupo depesquisa como coletivo de interlocuo e entre-ajuda solidria.

    O movimento entre o trabalho individual e a construo coletiva, passando pelodilogo (s vezes enfrentamento) com o orientador, a orientadora da pesquisa, com o

    grupo, a turma e a organizao de origem. Entre fazer o projeto e fazer a pesquisa; entreo trabalho de campo e a leitura da bibliografia, com a descoberta de que o dilogo entreo emprico e o terico mais complexo do que parece.

    O movimento entre observar, pensar, falar e escrever, aprendendo que nem sempreessas aes coincidem e geram os mesmos significados, que os processos no so linea-res e nem sempre se caminha para frente. Entre a exposio oral dos resultados para oscolegas do grupo e para a orientao e a defesa perante a banca, e depois (ou antes) pe-rante os prprios sujeitos pesquisados e os representantes de sua organizao.

    O movimento entre sensibilizar-se para o estudo daqueles sujeitos especficos, apai-xonar-se pelos achados de pesquisa, racionalizar a compreenso da realidade e entusias-

    mar-se com as novas possibilidades de estudo e de ao. Entre dar-se conta e aproveitar osconhecimentos que j se tem sobre a realidade pesquisada, medida que a maioria dosestudantes fez o trabalho de campo no mesmo lugar em que mora ou trabalha, e estranharou desnaturalizar essa mesma realidade, formulando perguntas, muitas perguntas.

    Tambm o movimento entre analisar e propor, compreender e tomar posio, distin-guindo (enquanto processos) o tempo da pesquisa do tempo da interveno ou da mili-tncia poltica; e entre buscar o rigor intelectual, quebrar a resistncia ao estudo das teoriase, ao mesmo tempo, valorizar a experincia e as prprias idias, suas e da sua organizao.

    De cada um desses movimentos se poderia compor uma densa narrativa e refletirsobre mltiplas possibilidades de aprendizados desdobrados e lies que ficam para outros

    processos. Isso fica como convite, especialmente aos prprios sujeitos da experincia.Olhando para a cronologia desse processo, podemos dizer que as etapas tiveramalgumas nfases, relacionadas aos passos dados na pesquisa. O projeto de pesquisa tevesua elaborao principal durante a terceira etapa; iniciou-se no tempo comunidade dasegunda e teve decretada sua verso final no incio da quarta. O trabalho de campocomeou no tempo comunidade da terceira etapa, mas concentrou-se principalmente nostempos comunidade da quarta e quinta etapas e para alguns se prolongou at a sexta; oexerccio coletivo de anlise dos dados teve nfase no tempo escola da quinta etapa, ondetambm iniciou para a maioria dos estudantes a produo escrita da monografia e acon-teceu um exerccio de defesa oral (perante a turma e a coordenao do curso), do planoprovisrio do trabalho monogrfico.

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    As bancas de defesa pblica foram realizadas em duas fases, respeitando-se o tem-po de produo de cada estudante. Na sexta etapa, foram 22 defesas e na stima 23.Tambm na stima etapa os grupos de pesquisa comearam a produo dos artigos e fi-zeram uma apresentao dos principais resultados das suas pesquisas para o Colegiadoda Via Campesina e outras pessoas convidadas de cada organizao.

    A equipe de orientao foi constituda durante o tempo comunidade da segundaetapa e passou a atuar com os estudantes a partir do tempo escola da terceira, exatamen-te no momento principal da elaborao dos projetos individuais de pesquisa. Comeounesse momento porque foi necessrio um certo tempo para que o curso conseguisse ar-ticular pessoas dispostas tarefa (voluntria e generosa), com experincia de pesquisa econhecimento especfico sobre o recorte dos ciclos etrios. Devido recente criao daUERGS, no era possvel contar somente com seus professores. Foi acionada a rede deeducadores colaboradores do Iterra e da Via Campesina.

    A maioria dos orientadores veio da Faculdade de Educao da UFRGS e todos tive-ram que incluir a tarefa de orientao em uma agenda j carregada de trabalho. Fizeram

    isso, como disseram em vrios momentos, pelo compromisso social e pela convico deque se tratava de um processo com mltiplas possibilidades de aprendizado mtuo. Paraalguns, a novidade era o recorte do campo; para outros, da relao mais direta com ossujeitos dos movimentos sociais e para outros ainda, no era a novidade, mas a continui-dade de um trabalho que j faziam com outros grupos de estudantes, do prprio Iterra.

    Cada grupo de pesquisa teve dois professores-orientadores. Primeiro, a idia era com-binar a orientao de grupo, feita nos encontros de cada tempo escola, com uma orientaoindividual feita por outra pessoa, que seria buscada pelos prprios estudantes em seus locaisde origem. Logo depois de comear o processo, a equipe decidiu que assumiria tambm aorientao personalizada de cada membro do grupo, prosseguindo o trabalho durante o tem-

    po comunidade, do jeito que fosse possvel. A reflexo era de que uma dupla orientaopoderia mais confundir do que orientar quem estava se iniciando em atividades de pesquisa.Cada grupo de pesquisa foi constituindo sua prpria dinmica, a partir de diferentes

    formas de relao, de estilos de trabalho, de mtodos de orientao. De certo modo, pode-se dizer que vivenciaram diferentes processos, dentro de um processo comum. Gruposmaiores acabaram se dividindo para facilitar o dilogo, ficando um orientador para cadasubgrupo. O desafio era combinar a ao autnoma de cada grupo, de cada dupla deorientadores, com metas comuns e com a perspectiva terico-metodolgica que orienta-va a proposta geral da pesquisa. As tenses dessa escolha fizeram parte dos aprendizadosdo processo para todos. Trabalh-las a cada etapa com a turma foi uma das tarefas assu-

    midas pela coordenao do curso e pelas aulas de metodologia da pesquisa.Os movimentos da orientao em cada grupo tambm poderiam compor uma ricanarrativa. De certo modo, ficam um pouco expressos nos textos produzidos pelos grupos.Mas o que ficou demonstrado no processo , de fato, a importncia da orientao efetiva(de grupo e personalizada) em um processo de iniciao pesquisa como esse. E nosdepoimentos da Turma Jos Mart, possvel perceber que se trata de uma relao que,centrada no conhecimento, e no seu mtodo de construo, no se restringe a ele:

    No comeo eu ficava incomodada com tantas perguntas. Ele s meperguntava; em vez de me dizer o que fazer, o que ler, ele me fazia perguntas,muitas perguntas. Aos poucos fui entendendo por qu.

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    A tarefa dos orientadores era nos fazer pensar, muito; e nos fazer reescreverum mesmo texto muitas vezes; no comeo a gente fica chateado; depoisque a distncia se quebra, fica mais fcil.Os nossos orientadores nos ensinaram a amar e ser ousados; nunca

    esquecerei isso, parece que sinto eles fortes dentro de mim quando

    penso na alma e energia que nos repassaram durante todo o processo,a cada etapa.

    O mais importante que eles no nos disseram como fazer; eles fizerama gente entender como deveria fazer...11

    A produo coletiva dos artigos nos grupos foi um desafio especfico. Comeouainda no calor das defesas individuais da stima etapa e se prolongou at depois do finaldo curso. Como fazer uma sntese de trabalhos monogrficos, s vezes to diversos? Ecomo trabalhar abstraindo das pesquisas individuais, mas sem perder talvez a parte maisrica dos trabalhos, que foi a sua pesquisa emprica? E como escrever um texto a tantas

    mos? Novamente, cada grupo estabeleceu sua prpria dinmica, e a tarefa teve menosdificuldades para aqueles que j tinham conseguido instituir no processo uma prtica deconstruo coletiva. O que se buscou garantir em todos os textos foi combinar a partici-pao ativa dos orientadores no prprio processo de escrita com a efetiva autoria dosestudantes. Os resultados so apresentados a seguir.

    Por fim, algumas informaes sobre a estrutura deste livro.So sete artigos. O primeiro, Pesquisa e formao de educadores nos movimentos

    sociais do campo foi escrito por ltimo. Seus autores, que tambm foram orientadoresde grupos de pesquisa, buscaram fazer uma reflexo sobre o significado deste processopara pensar a formao de educadores e a produo de conhecimento nos movimentos

    sociais. A deciso de escrever o texto foi tomada durante o processo de organizao dolivro, por entendermos que ele ajudaria a chamar a ateno para questes relevantes, al-gumas delas j brevemente indicadas nesta introduo, suscitadas por esta experincia,mas que integram um debate bem mais amplo e atual.

    Depois comea a seqncia dos seis artigos produzidos pelos grupos de pesquisada Turma Jos Mart: idosos, adultos, jovens (que so dois textos porque foram dois grupos),crianas e educadores, este ltimo, o que no trabalhou com a questo especfica de cicloetrio. Cada texto procurou responder, do seu jeito, e a partir das pesquisas realizadaspelos estudantes, a pergunta que comeou tudo isso: Como se formam os sujeitos docampo? E iniciar com o que pareceria o fim uma provocao para pensarmos: ondemesmo est o comeo? Talvez esteja na constante possibilidade de continuar.

    Porto Alegre, janeiro de 2006.

    11. Estes depoimentos foram extrados das anotaes de um balano sobre o processo da pesquisa, feito pela turma logo depois da primeira fasedas bancas de defesa das monografias.

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    Pesquisa e formao de educadoresnos movimentos sociais do campo

    Conceio Paludo e Johannes Doll12

    Um dos aprendizados significativos que tive no processo desta pesquisae na construo da monografia est ligado prpria importncia depesquisar para entender, de fato, uma realidade. A tendncia que temos de pensar que conhecemos um determinado espao e o povo com quemtrabalhamos, e durante o processo de pesquisa fui percebendo comosabemos pouco e precisamos aprofundar este conhecimento, para fazerum trabalho organizativo e educativo melhor fundamentado. Nesse sentidoaprendi a estranhar aquilo que parecia normal, que era consenso. Outroaprendizado est ligado ao mtodo de pesquisa, no sentido dos aspectosque devem ser olhados pelos pedagogos/as: a necessidade de perceber os

    sujeitos e as relaes entre eles, como vivem, como se relacionam, qual omovimento que percorrem na sua formao, qual sua historicidade,cultura, quais as contradies da sua realidade; ou seja, preciso olharas pessoas na relao com sua realidade, no movimento e nas suascontradies.... (Alexandra Borba da Silva).13

    Pesquisa um elemento necessrio para formar educadores? Durante muito tempono se viu essa necessidade, e alguns autores ainda defendem a idia de que o trabalho

    do educador no tem nada a ver com pesquisa e que, portanto, no seria necessria paraa sua formao. Por outro lado, especialmente no contexto da Didtica, cresceu nos ltimosanos a literatura que destaca a pesquisa como um dos eixos da formao do educador.Ainda, de modo geral, h uma tendncia em considerar a pesquisa como importante nagraduao e em outros nveis de ensino.

    Consideramos que a tendncia de valorizao da pesquisa tambm pode ser as-sociada Terceira Revoluo Industrial e s mudanas no padro de acumulao do

    12. Conceio Paludo, doutora em Educao, professora pesquisadora da UERGS. Johannes Doll, doutor em Educao, professor pesquisadorda Faculdade de Educao da UFRGS. Ambos integraram a equipe de orientao da pesquisa de que trata este livro.

    13. Alexandra uma das estudantes do curso de Pedagogia e tambm autora deste livro. Essa citao foi extrada do seu Memorial deAprendizados, escrito em setembro de 2005.

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    capital, aliados a outras transformaes mundiais, como a globalizao e a supremaciado mercado, ocorridas nas ltimas dcadas, que possibilitaram um destaque muito gran-de ao conhecimento, evidenciando a necessidade de o ter e provocando uma verdadei-ra corrida em sua busca. Isto to palpvel que, no Brasil, a exemplo de muitos outrospases, a educao prevista para todos a Educao Bsica, que inclui o Ensino Mdio o que, at bem pouco tempo no se colocava na Legislao sobre Educao, o que sebuscava era o Ensino Fundamental, determinado em lei, na obrigatoriedade dos oitoanos de estudo.

    nesse contexto que a palavra pesquisa vem ganhando destaque. sobre o ato depesquisar, seu papel na graduao e, especificamente, na formao de educadores, quenos propomos a refletir desde a experincia que vivenciamos nos movimentos sociais docampo, parte dela apresentada neste livro, sob a forma de artigos.

    Num primeiro momento, refletimos sobre a importncia da democratizao do aces-so das ferramentas da produo do conhecimento na graduao, o que ocorre por meioda iniciao cientfica, de modo a propici-las ao conjunto dos estudantes sem que impli-

    que perda da qualidade e do papel que deve ser desempenhado pela pesquisa no proces-so de produo do conhecimento. Num segundo momento, trazemos alguns significadosda pesquisa para os movimentos sociais do campo e algumas das tenses que se apre-sentam nestes processos quando inserem, na agenda dos estudantes, o aprendizado darealizao de pesquisas e, finalmente, buscamos refletir sobre a pesquisa na formao deeducadores, sujeitos especficos da experincia da qual participamos.

    Pesquisa na graduao

    Uma das tendncias atuais ainda define o espao da pesquisa, compreendida como

    um processo formal, rigoroso e sistemtico de produo de conhecimento relevante,14como sendo a academia, na qual, o seu lcus privilegiado continua sendo reconhecidocomo a ps-graduao, cujo objetivo o de formar pesquisadores. Nesse caso, vinculadaao contexto cientfico, pesquisa aparece como uma forma, para um leigo incompreensvel,de descobrir uma verdade escondida. Pesquisa comprova que o primeiro homindeo foimorto, dois milhes de anos atrs, por uma grande ave de rapina. Para dominar os mto-dos cientficos, que revelam tais segredos, necessrio, ser cientista, doutor, e acessvelsomente a um pequeno grupo de pessoas escolhidas e com dedicao total.

    Hoje, entretanto, acompanhando a grande nfase dada ao conhecimento, ampla-mente reconhecida a importncia da iniciao cientfica na graduao. Ela tida como um

    instrumento que permite a introduo dos estudantes de graduao na pesquisa cientficacumprindo, entre outros, com os objetivos de formar recursos humanos; incentivar poss-veis talentos para a pesquisa; contribuir para a reduo do tempo mdio de titulao demestres e doutores; qualificar para a realizao de pesquisas e qualificar a formao pro-fissional e geral dos estudantes.15

    O Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), porexemplo, embora desde sua criao, em 1951, tenha institudo algumas bolsas de iniciaocientfica, em 1989 criou o Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Cientfica (Pibic),

    14. Conhecimento relevante est sendo compreendido como o que importante para a sociedade e como o que possui possibilidade de aplicaoem reas externas a do desenvolvimento da pesquisa.

    15. Paludo, 2005.

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    ampliando significativamente o apoio pesquisa na graduao. Assim como o CNPq, ou-tras instituies de fomento possuem programas semelhantes. As universidades tambme cada vez mais instituem tais programas, realizando, mostras de iniciao cientfica.16

    O que importante resgatar, neste texto, que atualmente h um conjunto de ini-ciativas que objetiva vincular somente alguns estudantes da graduao, das diferentes

    reas do conhecimento e cursos, a programas de pesquisa existentes nas universidades,na sua maioria vinculados a ps-graduao. Embora alguns alunos participem voluntaria-mente, os programas institudos fomentam essas iniciativas com bolsas de iniciao cien-tfica. Da mesma forma que a anterior, essa tendncia continua privilegiando uns em de-trimento de outros, como se, na graduao, tambm tivesse de ter somente alguns poucosescolhidos para realizar tal trabalho.

    H a terceira tendncia, tambm fruto de um contexto em mudanas, que apontapara certa banalizao da palavra pesquisa, principalmente na sua forma de verbo pes-quisar. Pesquisamos os preos e quando os alunos na escola procuram uma informaoem um livro, costuma-se dizer que pesquisam. Assim, a pesquisa tornou-se sinnimo de

    procurar algo ou de comparar coisas. Uma atividade nada misteriosa, bem simples, quasebanal. No poucas vezes, tal tendncia se apresenta sob o nome de a pesquisa comoprincpio educativo, indicando, o que nem sempre a prtica confirma, a importncia doaprendizado da investigao, desde cedo, pelos estudantes.17

    Desde a experincia que vivenciamos, tivemos um processo de pesquisa que aomesmo tempo em que se aproxima, se distancia das tendncias apontadas.

    A proximidade com a primeira tida pelo reconhecimento de que o ato de pesquisar um processo formal, rigoroso e sistemtico de produo de conhecimento relevante e,dela se afasta, quando elege a academia e a ps-graduao e uns poucos que a podemfreqentar como os que so capazes de realizar pesquisas.

    Da segunda tendncia nos aproximamos quando estende a pesquisa para a gradu-ao, reconhecendo a importncia da mesma para a formao dos estudantes, mas nosdistanciamos quando, do mesmo modo, privilegiam alguns para o aprendizado e realizaoda pesquisa.

    Da terceira tendncia, nos afastamos quando banaliza o processo de realizao daspesquisas e nos aproximamos quando resgata a importncia para as prticas educativasdos educadores, em todos os nveis, se pautarem por procedimentos que possibilitem aosestudantes se apropriarem de ferramentas que os levem para alm de ser repetidores decontedos. Ou seja, h um ambiente de aprendizagem, no cotidiano, que torna relevante,sob a orientao do educador, o esforo de busca e elaborao por parte dos estudantes.(Demo, 2002)

    Sendo assim, faz-se necessrio refletir um pouco sobre a pesquisa e o papel quedesempenha na graduao. Alguns aspectos merecem destaque:

    1) A pesquisa na graduao deve ser compreendida como iniciao cientfica. Comoa prpria nomeao se refere, diz respeito ao aprendizado das ferramentas que permitem,para alm de organizar o conhecimento, produzir conhecimentos relevantes socialmente.Esse um aprendizado que requer mais do que algumas aulas de metodologia cientfica.

    16. Consultamos as pginas, na Internet, de algumas Universidades brasileiras: Unicamp; Unifest; UFMG; PUC-SP; UFPR; UFRGS e UCS. Ver,tambm, Rocha, 2003.

    17. Gatti (2002) trabalha no sentido de diferenciar a pesquisa em sentido amplo e a pesquisa em sentido restrito. O primeiro trata da pesquisacomo o ato de procurarmos obter conhecimento sobre qualquer coisa (p. 9); o segundo, visando criao de um corpo de conhecimentos sobreum certo assunto, o ato de pesquisar deve apresentar certas caractersticas especficas (p.9). A autora se refere da sistematicidade, darigorosidade nos procedimentos, no rompimento com o senso comum, na busca do desvendamento de processos, entre outros.

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    Em nossa experincia, demandou uma disciplina que atravessou os semestres e anos deformao dos estudantes.18Esse tempo necessrio, porque os estudantes trazem ac-mulos de conhecimento e de experincias diferenciadas e, na medida em que se querpossibilitar este processo de aprendizagem para todos, preciso partir do que uma turmade estudantes pode coletivamente, mas tambm respeitar o processo de cada um, respei-tando as individualidades e apostando em todos e em cada um sempre.

    2) Outro elemento importante no ter a pretenso de que o aprendizado vai fazerde todos os estudantes profissionais da pesquisa. O processo de pesquisa na graduao,para muito alm de encurtar o tempo de realizao de uma ps-graduao, formar recur-sos humanos,...tem que ser compreendido na sua potencialidade para a realizao daformao humana, para a emancipao humana. Isto , na possibilidade que propicia paraa formao de sujeitos crticos, com capacidade de problematizao, organizao, mane-jo e produo de conhecimento que os coloca no patamar efetivo de poder se renovarpermanentemente, com autonomia. Isso, independentemente do local de atuao, colocao estudante em condies de garantir meios de sobrevivncia e de ampliar as possibilida-

    des de se colocar como sujeito frente aos desafios apresentados pela realidade, discutirestes desafios, tendo condies posicionar-se e de nela intervir.

    3) Pensar assim a iniciao cientfica requer que ela seja pautada, alm do rigorformal, pela desmistificao da cincia19como a que tudo pode, porque quem faz cinciaso seres humanos que, como lembra Freire (2003), so seres de opo, e a atividadecientfica, como toda a atividade humana, est voltada para valores e fins.

    4) Enquanto procedimentos terico-metodolgicos e de cientificidade das propostasde pesquisa, nossas experincias nos cursos que envolvem movimentos sociais tm mos-trado que, em primeiro lugar, devemos realizar a discusso sobre a cincia e o conhecimen-to, o que no impede de, numa articulao entre teoria e prtica, os estudantes realizarem

    observaes de algum aspecto da realidade acompanhada de registro e de anlise. impor-tante, entretanto, os estudantes terem a compreenso de que a cincia tambm produohumana e, como tal, sujeita a diferentes concepes e mtodos. Igualmente, necessrioque compreendam a crise de paradigmas hoje instaurada (Kuhn, 2001).

    fundamental, ainda, que compreendam os mtodos cientficos como caminhosque podem nos levar a obteno de anlises e resultados confiveis se houver sistemati-cidade na busca das respostas.20Tambm, preciso a discusso da tica cientfica, comoforma de submeter o ato de pesquisa a fins e valores condizentes com a cincia, comoatividade humana a servio do bem-estar humano. Enfim, apesar das normatividades, acincia e o campo cientfico so permeados por conflitos e contradies e sumamente

    relevante que os estudantes tenham acesso a estas controvrsias.21

    Somente depois de iniciada a discusso dos aspectos tericos, metodolgicos,polticos e ticos implicados sob o pomposo nome de cincia, que, de forma sistem-tica, se inicia o processo de elaborao do projeto de pesquisa que deve garantir os

    18 Concordamos com Demo (2002), quando diz que este processo de Iniciao Cientfica no deveria constituir um programa em separado e quea pesquisa deveria permear toda a vida acadmica. Enquanto as condies para viabilizao de um ambiente educativo desta natureza no seefetivarem, um componente ou programa nesta direo contribui para o avano nesta perspectiva.

    19. Isso no significa desvalorizar, ao contrrio, valorizar o conhecimento e os mtodos cientficos, conhecendo seu poder, suas possibilidades,ao mesmo tempo tambm saber das suas limitaes.

    20. O processo de iniciao cientfica no um faz-de-conta, trazendo, em muitos casos, resultados interessantes e cientificamente relevantes,como os artigos deste livro demonstram.

    21. Referimo-nos, por exemplo, aquelas que dizem respeito cientificidade das cincias sociais na sua comparao com as cincias da natureza; asupremacia do conhecimento cientfico sobre os outros conhecimentos; a relao entre mtodos quantitativos e qualitativos; a relao entreconhecimento e ideologia e a questo da verdade e da relatividade do conhecimento.

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    critrios de rigorosidade, para a realizao da pesquisa. No processo de formulao eimplementao do projeto, muitas e muitas vezes se retorna discusso dos aspectosanunciados.

    Dos aspectos metodolgicos22envolvidos no ciclo da pesquisa (Minayo, 1994), quedevem ser compreendidos como em permanente movimento e de modo interconectado,

    destacamos as seguintes fases: a inicial, exploratria, que precede a definio do objeto; a da definio e formulao clara do objeto e da compreenso dos seus vnculos com arealidade e com um campo de conhecimento, da elaborao de questes secundrias,importantes de serem investigadas para se chegar questo ou problemtica principal23 eda preciso e formulao dos objetivos; a da busca de um quadro terico que, nessenvel, pode ser o de definir, no dilogo com autores, os principais conceitos relacionadoscom a problemtica de estudo; a de elaborao dos procedimentos de coleta e de dados;a de anlise e escrita de relatrio; a de apresentao pblica dos resultados e de planeja-mento da devoluo para os sujeitos envolvidos no processo de pesquisa.

    O desenvolvimento de processos de iniciao cientfica, bem como a orientao aos

    grupos e a cada um individualmente no uma tarefa fcil. Essa tarefa tem-se revelado,entretanto, fundamental para o processo de aquisio de autonomia intelectual por partedos estudantes. Assim como para conseguirem compreender que a realidade movimen-to e que o movimento do pensamento tem de ser direcionado no sentido de captar estemovimento, o que os coloca tambm na condio de estar sempre se renovando, saben-do verificar tendncias, e poder, apesar de todos os condicionantes, se colocarem comosujeitos na direo da interveno qualificada na realidade.

    Pesquisa nos movimentos sociais do campo24

    hora de entrarmos em mais um nvel de aproximao com a experincia vivencia-da. Nesse nvel, falamos dos movimentos sociais do campo que integram a Via Campesina25e dos estudantes do Movimento dos Trabalhadores Desempregados, que tambm realizamo curso. O que nos interessa destacar alguns elementos de potencialidades e tambmde limites que observamos, na relao entre os movimentos (seus estudantes) e os pro-cessos de pesquisa.

    Uma primeira observao quer chamar a ateno sobre a insero desses movimen-tos nas atividades formais de educao. So estes movimentos que tm impulsionado esustentado, desde a sociedade civil, o que se chama de Educao do Campo, que umanova forma de conceber e realizar a formao dos sujeitos que vivem no e do campo, in-fluenciando, tambm, na formulao de polticas pblicas, um dos passos necessrios, no

    Brasil, para instituir direitos. Ainda, esses movimentos possuem um grande trabalho deeducao de jovens e adultos e realizam experincias de formao em todos os nveis,inclusive em nvel de graduao e em alguns cursos de extenso de grande durao, ondeso realizados processos de pesquisa com os estudantes.

    22. Metodologia est sendo compreendida como o caminho do pensamento e a prtica exercida na abordagem da realidade (Minayo, 1994).

    23. Neste nvel de Iniciao Cientfica nem sempre os estudantes conseguem formular uma hiptese. Isso depende de uma srie de aspectos datrajetria de cada um. Todos conseguem, entretanto, formular questes secundrias. Esta formulao tem ajudado na preciso do objeto etambm tem contribudo para o aprofundamento da rigorosidade nos procedimentos.

    24. Movimentos sociais do campo se referem, no processo de pesquisa de que este livro trata, a formas de mobilizao de massa e organizaoda classe trabalhadora do campo que passaram a fazer parte da dinmica da sociedade brasileira, pela agenda poltica que pressionam e pelafora pedaggica na formao de novos sujeitos sociais. As pesquisas dos estudantes da Turma Jos Mart do curso Pedagogia da Terra, convnioIterra/UERGS, tiveram ainda um outro recorte: entre os movimentos sociais do campo, aqueles que integram a Via Campesina.

    25. Ver a introduo deste livro que explica o que a Via Campesina e nomeia os movimentos que a integram.

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    A exemplo do que ocorre na sociedade em geral, aqui tambm se verifica a buscapelo conhecimento, ainda que com objetivos diferenciados, porque no se trata, para oconjunto desses movimentos, de melhorar a vida de alguns, trata-se de garantir um direitohistoricamente negado s populaes que vivem no e do campo, assim como ocorre comcontingentes de pessoas que vivem na cidade, e trata-se, igualmente, de qualificar a for-

    mao humana para a emancipao humana, que s acontecer plenamente com a trans-formao social. Ainda, trata-se de qualificar os dirigentes, lideranas e pessoas das co-munidades e assentamentos, na perspectiva da superao dos desafios colocados poruma realidade cada vez mais difcil, tanto para a construo cotidiana de alternativas, comopara a instituio de direitos e para transformaes em nveis mais profundos, na direode colocar no centro das preocupaes o ser humano concreto e o seu bem-estar.

    Desse modo, a pesquisa, para os movimentos sociais do campo, alm da produosistemtica e rigorosa do conhecimento da realidade, deve propiciar a qualificao da inter-veno dos militantes nos diferentes espaos de atuao e deve contribuir para o avano daorganizao como um todo, na perspectiva de superao dos desafios que enfrenta.

    Da que, nesses processos, a dialtica da relao entre teoria e prtica, processo eproduto, produo de conhecimento e relevncia social, produo de conhecimento einterveno, tende a ter um melhor equacionamento do que se observa, por exemplo, nasuniversidades, quando grande parte da produo fica, literalmente, estocada e, muitasvezes, no apresenta relevncia social.Por outro lado, h nesses processos, tenses quese apresentam. Algumas que conseguimos observar so:

    1a) a escolha pessoal e a necessidade coletiva, do conjunto da organizao. Na expe-rincia que vivenciamos, a escolha da linha de pesquisa Como se formam os sujeitos docampo e os eixos de pesquisa crianas, jovens, adultos, idosos e educadores, foi de-finido pelo colegiado da turma. Os estudantes discutiram a proposta e, com base em critrios

    definidos coletivamente, optaram por um dos eixos de pesquisa. O que se observa o dire-cionamento da pesquisa para as necessidades de qualificao da atuao dos prpriosmovimentos, em aspectos considerados relevantes, nesse caso, a formao dos sujeitos,visando qualificao das prticas a partir dos desafios da Educao do Campo. Ao contr-rio de outros espaos, onde as pesquisas ocorrem, nesse caso, o limite da escolha pessoalfoi dado pela definio coletiva, o que, num primeiro momento, gerou tensionamentos.Entretanto, importante salientar a viso global que esse processo possibilitou dos sujeitosdo campo e seus processos formativos trazendo, inclusive, informaes que so, em muitoscasos, novas e importantes para a qualificao das prticas educativas e formativas.

    2a) O estranhamento, distanciamento, ruptura epistemolgica, do contexto concre-

    to ao contexto terico, do senso comum ao conhecimento cientfico. Essas diferentesnomeaes apontam para a necessidade, que foi um dos grandes tensionamentos dosestudantes, de conseguirem fazer a anlise dos seus objetos de estudo. Trata-se, nesseaspecto, da produo de um conhecimento que ultrapasse nosso conhecimento imedia-to na explicao ou na compreenso da realidade que observamos (Gatti, 2002, p. 9).Ainda, de acordo com a autora, um conhecimento que tem de negar as explicaes oucompreenses bvias, superficiais no sistemticas, e que v alm dos fatos, desvelandoprocessos e explicando os fenmenos segundo algum referencial.

    Nesse caso, estamos fazendo pesquisa para construir o que entendemos porcincia, ou seja: tentando elaborar um conjunto estruturado de conhecimentos

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    que nos permita compreender em profundidade aquilo que, primeira vista,o mundo das coisas e dos homens nos revela nebulosamente, sob umaaparncia catica. Vamos ento percorrendo aqueles caminhos que nos

    parecem, segundo critrios, mais seguros para compreenso mais aproximadados homens, da natureza, das relaes humanas, etc. (Gatti, 2002, p.10).

    Parece-nos, entretanto, que h muito que investigar, no que diz respeito a postura

    e capacidade de busca para alm da aparncia, porque est associada a aspectos que voalm da simplificao de que devemos nos colocar como se fssemos estranhos ao obje-to investigado. Fazer a ruptura com as explicaes simplistas e lanar-se ao desafio decompreender os processos, requer aprendizado e acmulos que a educao/formao eescolarizao anterior, por exemplo, nem sempre propiciaram aos estudantes. Por sua vez,a insero dos estudantes nos movimentos sociais pode contribuir para o adentramentona realidade porque, se acompanhada de postura e procedimentos condizentes, podefazer emergir aspectos que so facilitados pela insero, que permite uma aproximao

    com questes da dinmica dos movimentos: concepes, organicidade, lutas,... que sofundamentais para a compreenso mais profunda dos processos.Enfim, a ruptura com o senso comum uma necessidade e o estudante acaba por

    incorporar essa duplicidade de papis: ser dos movimentos e, ao mesmo tempo, ser pes-quisador, o que lhe confere as possibilidades de expresso criativa da condio simult-nea de sujeito dos movimentos sociais e sujeito pesquisador .26

    3a) A relao entre a qualidade formal e poltica. Esse tensionamento acontece por-que os estudantes demoram em compreender que a qualidade formal na apresentaodos trabalhos, resultantes da pesquisa, principalmente no que diz respeito s normastcnicas, assim como o rigor e sistematicidade de busca dos referenciais tericos e dolevantamento dos dados empricos, bem como a necessidade da rigorosidade nos proce-dimentos quando da anlise, no podem ser confundidos com a dimenso do assumir oconhecimento como estando a servio da transformao da realidade e explicitar, semmedo, o seu carter poltico. Quando a compreenso do significado do ato de pesquisar suficientemente incorporada, o que se manifesta na postura investigativa e tica, o medoem ser panfletrio desaparece e o conhecimento apresentado num nvel de profundida-de e de reflexo que, muitas vezes, tratando-se da iniciao cientfica, surpreende. Quali-dade poltica e qualidade formal, portanto, so processos complementares que esto in-timamente associados ao processo da aprendizagem do ser pesquisador.

    4a) Tempo da militncia e tempo da pesquisa. Esse tensionamento se traduz na di-ficuldade apresentada pelos estudantes, durante o perodo de realizao da pesquisa, em

    conseguir um tempo prprio para a produo do conhecimento sem deixar de atuar nomovimento. Essa dificuldade, na experincia em questo, pode estar associada a umacerta resistncia ao estudo terico que se manifesta, de modo diferenciado em cada es-tudante, revelando uma distncia entre o entendimento de que preciso o conhecimentorigoroso e a disposio de enfrentar o estudo. No processo, foi possvel perceber quequando a compreenso terica e o desejo/gosto pela pesquisa se encontram, os estudan-tes avanam rapidamente no sentido da superao destas tenses.

    26. Esta citao da pesquisadora Andrea Paula dos Santos, do Ncleo de Estudos em Histria Oral da USP. Foi escrita num pequeno texto deavaliao do processo da turma de Especializao em Educao do Campo, (parceria Iterra-UnB-Pronera) em 2005. Ainda, de acordo com aprofessora, muitos sujeitos acadmicos e pesquisadores, principalmente nas reas da Histria, Sociologia, Educao, Antropologia, tambm foramsujeitos de acontecimentos investigados e, nem por isso seus trabalhos deixaram de ter aceitao como pesquisas consistentes e relevantes. Umdos exemplos que pode ser citado o do educador Paulo Freire.

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    5a) Por fim, gostaramos de comentar um ltimo aspecto de tensionamento, que dizrespeito s relaes entre a expresso oral e a escrita. Isso pode ser analisado sob doisngulos.

    O primeiro se refere dificuldade de escrita, e novamente nos deparamos com in-suficincias que, antes de serem dos sujeitos, devem ser atribudas escolarizao anterior,

    uma vez que, para fazer a graduao, como se sabe, tem de se ter o ensino mdio com-pleto. Nesse aspecto, h uma proximidade destes estudantes com os demais, quandoiniciam a graduao. Uma especificidade dos estudantes dos movimentos sociais do cam-po, nesse aspecto, que apresentam uma oralidade muito desenvolvida que expressa comriqueza de detalhes o conjunto de suas vivncias. Quando se trata, porm, de traduzir essaoralidade para a linguagem escrita, aparecem os problemas.

    O segundo aspecto j bem especfico dos estudantes dos movimentos sociais.Nesse caso, trata-se de algumas nuances da oralidade desenvolvida pela prtica da mili-tncia que acaba sendo questionada pelo processo de pesquisa e que se traduz, porexemplo, pelo discurso poltico de convencimento, que se contrape racionalidade exi-

    gida pelo ato de pesquisar, que analtica, demonstrativa e reflexiva.Em ambos os casos, os tensionamentos no se resolvem mandando fazer uma cor-reo de textos. necessrio fornecer o referencial terico e metodolgico para a com-preenso da importncia e o aprendizado da forma de linguagem expressa em texto, assimcomo fundamental o aprendizado dos significados e do instrumental necessrio ao atode pesquisar. Esse aprendizado, entretanto, no pode significar a perda da fora de ex-presso apresentada na linguagem oral, tampouco significa colocar-se como se no fosseo autor do texto. Antes, significa a compreenso de que esses aprendizados ampliam aspossibilidades criativas e de comunicao do sujeito dos movimentos sociais que est seformando tambm para a pesquisa.

    Pesquisa e formao do educador

    Dando mais um passo na direo da aproximao com a experincia que vivenciamos,podemos voltar pergunta: A pesquisa um elemento necessrio para formar educadores?Quando o trabalho do professor era visto como uma passagem de contedos preestabe-lecidos de forma metodologicamente correta, no havia necessidade disso. Mas a partirde olhares novos sobre o processo de ensino-aprendizagem cresceu, nos ltimos anos, aliteratura que destaca a capacidade de pesquisar como uma das bases para o trabalhoeducativo.27

    Um dos primeiros passos dessa mudana foi tomado com uma reviso das teorias de

    aprendizagem, saindo de um paradigma principalmente comportamentalista, para uma pers-pectiva construtivista. Na perspectiva do construtivismo, no existe uma transmisso deconhecimentos por parte do educador, e a aprendizagem vista como uma (re)construode conhecimentos e saberes pelo prprio estudante. A funo do educador, nessa perspec-tiva, criar condies: questionamentos, ambiente estimulador e caminhos para a busca deinformaes, para que o estudante, da melhor forma possvel, construa seus conhecimentos.

    A idia de que o aluno deveria (re)inventar para si os saberes trabalhados na escola, aproximao processo de ensino-aprendizagem do processo de pesquisa. O conceito pesquisa , comoj nos referimos, tornou-se bastante popular no meio escolar, por vezes, de forma banalizada.

    27. Para ver o desenvolvimento da idia de professor pesquisador, ver Ldke, 2001.

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    A mudana na percepo do processo de ensino-aprendizagem trouxe conseqn-cias para o educador. Para poder organizar o contexto educacional da forma adequadapara os estudantes, tornou-se necessrio conhecer os educandos, seus saberes, suasexperincias, seu mundo simblico, sua cultura, sua linguagem, seus sonhos. Para teracesso a isso, de forma confivel, existe somente um caminho: a pesquisa. Isso se tornou

    mais importante ainda no momento em que a escola admitia que os educandos nas salasde aula so, na maioria dos casos, um grupo altamente heterogneo.28De certa forma,retomava-se com a necessidade da pesquisa que Paulo Freire, por exemplo, j tinha usadonas suas campanhas de alfabetizao, onde surgem os temas geradores a partir do estudoda realidade dos educandos e da organizao dos dados por parte dos educadores.

    Dessa forma, a pesquisa como eixo da formao do educador introduz alguns ele-mentos-chave para seu trabalho, como o aspecto da reflexo, a questo de instrumentosadequados para suas observaes e questionamentos, o rigor cientfico no levantamentode dados e na interpretao dos mesmos e na capacidade em lidar com modelos tericospara orientar e fundamentar seu trabalho. Essas capacidades se fazem hoje mais necess-

    rias, devido instabilidade do conhecimento (Hargreaves, 2003), a entrada de novos gruposnos processos educativos, como os adultos e idosos, e a necessidade de uma formaocontinuada (Maldaner, 1999). Alm disso, o aumento do interesse pela pesquisa pode seratribudo ao contexto mais geral que, como j pontuamos, marcado por profundas trans-formaes que requerem a formao de um outro perfil de profissional, capaz de sercompetitivo num mercado que, cada vez mais, normatiza a vida em sociedade.29

    Desde uma concepo de educao como formao humana para a emancipaohumana, que o ncleo duro, em torno do qual giram as elaboraes da Educao doCampo, e que a afasta da concepo de educao como mercadoria,30podemos afirmarque a pesquisa se revelou como fundamental para a formao dos educadores. impor-

    tante explicitar que se trata de diferentes concepes de educao, que atribuem impor-tncia para o aprendizado da pesquisa por parte dos estudantes.31No esse o momen-to para fazermos um quadro comparativo dessas concepes. No entanto, para o avanoda compreenso do papel da pesquisa na formao dos educadores, desde a Educaodo Campo, um quadro como esse se revelaria muito elucidativo.

    Nesse aspecto, a experincia do curso de Pedagogia do Iterra/UERGS foi bastantesignificativa. O trabalho em pequenos grupos de pesquisa possibilitou uma boa introduo temtica especfica a cada grupo, ao mesmo tempo em que destacou o aspecto socialda produo de conhecimento. Muito importante foi o processo da pesquisa ser desen-volvido durante todo o perodo de realizao do curso porque possibilitou aos estudanteslidar com seus medos e capacidade criativa e tambm com as frustraes em relao pesquisa. Em outras palavras, desmistificar a pesquisa e, ao mesmo tempo, ressignificar apesquisa com suas possibilidades e limites. Para isso, o processo de formao em tempoescola e tempo comunidade ajudou muito. Cada volta para as suas comunidades e, comisso, ao campo de pesquisa, revelou novos elementos, mas tambm trouxe novas insegu-ranas, dvidas e perguntas. O tempo escola, a cada volta, foi o espao para discutir, es-clarecer e reencaminhar o trabalho de pesquisa. Esse vai-e-vem, esse processo dialtico

    28. Para aprofundar esta questo, ver Zacur, 2002.

    29. Hargreaves, 2003.

    30. Frigotto, 1995.

    31. Santos, 1997, apresenta um excelente estudo sobre as mudanas de nfase na formao do professor a partir de 1980, no Brasil. Este estudo feito tendo por base a pedagogia crtica.

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    de observar, atuar e refletir, de aproximar e de distanciar do campo da pesquisa, por exem-plo, raramente percebido na pesquisa cientfica, apesar de se constituir em um dosseus elementos-chave. Dessa forma, a aproximao pesquisa cientfica aconteceu atravsda prtica da pesquisa com os elementos-chave de observao, reflexo, teoria, inserosocial da produo de saber e com a tentativa da vivncia de relaes ticas com a comu-

    nidade, com a cincia, com o grupo e consigo mesmo.Queremos finalizar trazendo o argumento que nos parece central e que justifica todo

    o esforo empreendido no sentido de propiciar a iniciao cientfica para as estudantesdo curso de Pedagogia.

    O processo realizado indicou que o aprendizado da pesquisa, consiste fundamen-talmente na compreenso do seu papel para a cincia e dessa, para o avano do bem-estar humano, quando realizada tendo como base fins e valores que buscam esse objetivo;na importncia da busca terica do campo de conhecimento implicado no objeto emestudo; no aprendizado da necessidade de construo de instrumental consistente paraa produo do conhecimento; e na vivncia do exerccio de realizao da pesquisa, tendo

    como critrios a sistematicidade e rigorosidade nos procedimentos, abre possibilidadespara que os estudantes envolvidos:

    a) avancem na construo da sua autonomia intelectual, de opes, o que implicavalores, e tcnica;

    b) realizem intervenes transformadoras nas realidades em que se inserem;c) desenvolvam com os seus educandos, independentemente do nvel de ensino, ou

    dos espaos onde acontecem, prticas educativas/formativas que se pautem para a cons-truo de suas autonomias e pela capacidade de ampliao dos seus potenciais de seremsujeitos dos processos.

    Educar para autonomia dos sujeitos envolvidos significa, tambm, usar mtodos e

    procedimentos que possibilitam que isso acontea. Para tanto, preciso que o educadorseja educado e este, justamente, o elemento central que sustenta a necessidade de aEducao do Campo continuar, apesar de todas as dificuldades, possibilitando esse apren-dizado aos seus educadores.

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    Envelhecimento: conhecendo a vidade homens e mulheres do campo

    Carmen Lucia Bezerra Machado32

    Elisiane Jahn

    Fabiane Purper

    Gibrail Cordeiro

    Inajara Bogo

    Johannes Doll

    Katiane Machado

    Soniamara Maranho

    Introduo

    Este texto resultado do trabalho coletivo dos educandos e das educandas do

    curso de Pedagogia da Terra, da Turma Jos Mart da Via Campesina. Vejamos como se

    deu este processo.

    No dia 03 de agosto de 2002, teve incio a caminhada da Turma Jos Mart, quan-

    do ocorreu a diviso dos grupos por linhas de pesquisa, que abordam a formao dos

    sujeitos do campo, como educadores/as e agrupados por faixas etrias: crianas, jovens,

    adultos/as e idosos/as. Assim se formou o grupo de pesquisa voltado ao estudo do en-

    velhecimento. Aps a diviso feita em sala de aula, fomos ao primeiro encontro, en-

    quanto grupo de pesquisa, buscando responder a quatro questes que permeavam a

    discusso. So elas:

    O que cada um/a sabe, conhece sobre o sujeito de sua pesquisa;

    Como buscar informaes/dados sobre o sujeito da pesquisa; Como cada um/a compreende a velhice;

    Quais as expectativas sobre o desenvolvimento da pesquisa.

    Destaca-se que no incio tudo era muito novo e nem sabamos de fato o que cada

    um/a buscava nesse grupo de pesquisa especfico.

    Assim, no decorrer da caminhada foram se constituindo expectativas, medos,

    questionamentos, dvidas, ansiedades e apaixonamentos em relao ao tema de cada

    um dos coletivos de pesquisa. Porm, consolidamo-nos como grupo de pesquisa, dis-

    32. Carmen Machado e Johannes Doll, Doutores em Educao e professores pesquisadores da FACED/UFRGS foram os orientadores dos trabalhosmonogrficos que deram origem a este artigo. Os demais autores so estudantes do curso de Pedagogia UERGS/Iterra que integraram o Coletivode Pesquisa sobre o Envelhecimento da Turma Jos Mart.

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    postos a nos desafiar a entender o envelhecimento, enquanto grupo etrio e sua iden-

    tidade social.

    Posteriormente, tivemos a contribuio para a orientao dos trabalhos do compa-nheiro Johannes Doll, profissional na rea de gerontologia da Universidade Federal do RioGrande do Sul (UFRGS), e da companheira Carmen Lucia Bezerra Machado, educadora na

    mesma universidade, que se dispuseram a caminhar conosco. No primeiro encontro, rea-lizamos o levantamento de idias acerca do que buscvamos compreender sobre o enve-lhecimento, iniciamos o dilogo de modo mais intencional e reflexivo sobre o tema.

    Tudo isso nos entusiasmou para o retorno as nossas bases (comunidades, acampa-mentos, assentamentos e reassentamentos) a fim de realizarmos a nossa primeira aproxi-mao ao campo na perspectiva de uma pesquisa, objetivando nossa identificao com otema e o grupo. E, no decorrer desse perodo, todas as observaes e constataes foramsendo registradas em dirio de campo individual, seguindo as orientaes aprendidas nadisciplina Prtica de pesquisa.

    De volta escola com as anotaes registradas em nossos dirios de campo, inicia-

    mos a anlise dos dados e continuamos a construo de nossos projetos de pesquisa.Esse foi um momento de definies, tanto em relao ao tema quanto em relao a per-manncia nesse coletivo de pesquisa. E, para darmos continuidade ao aprofundamentodos estudos, retornamos mais vezes a campo, buscando compreender melhor o gruposocial que nos desafiamos a entender.

    Contudo, ressalta-se que, entre anlises, conflitos, produes e reflexes, nos foiproporcionado um momento de socializao dos primeiros resultados obtidos com a pes-quisa. Nesse momento fomos questionados pelos companheiros e companheiras dos outrosgrupos da Turma Jos Mart quanto escolha e forma de desenvolvimento da temtica.Aps a apresentao do grupo como um todo, envolvendo tambm a mstica,33surgiram

    questionamentos e debates sobre o contedo e a forma da apresentao e da pesquisa,envolvendo as pessoas, despertando o interesse pelo tema do envelhecimento e sensibili-zando a coletividade na qual nos inserimos, o Instituto de Educao Josu de Castro.

    A construo de nossos trabalhos de concluso de curso (monografias) objetiva noapenas atender a uma exigncia legal da Universidade Estadual do Rio Grande de Sul(UERGS), mas principalmente responder a uma necessidade da Via Campesina no sentidode buscar compreender quem so e como se formam os sujeitos do campo. Nesse pro-cesso, buscamos tambm nos reconhecermos enquanto pessoas, compreender um pou-co mais aos outros envolvidos no processo (sujeitos pesquisados) e qualificar nossa atu-ao como pedagogos/as em movimento, na troca com os demais grupos de pesquisa.

    Assim, continuando nossa caminhada chegamos a defesa pblica de nossos traba-lhos, sendo que, num primeiro momento, no tempo escola 6, foram apresentados ostrabalhos:A Arte de Construir Seres Humanos (Soniamara Maranho), A Histria de Vida dos Idosos esua Contribuio com o MST (Gibrail Cordeiro), A Vida de uma Lutadora: O Enraizamento da SemTerra Maria Siqueira (Katiane Machado). Num segundo momento, no tempo escola 7, respei-tando os tempos necessrios s pesquisadoras e aos sujeitos da pesquisa, os trabalhosdefendidos foram:A Vivncia do Idoso no Campo, o Resgate do Hoje (Fabiane Purper), A Trajetriadas Mulheres do Campo e suas Transformaes do Corpo (Inajara Bogo), Trabalho e Envelhecimento:Constituio do Papel Social do Ser Mulher (Elisiane Jahn).

    33. A mstica dentro da organizao dos movimentos sociais e, em particular, da Via Campesina se constitui um espao e tempo de troca e devivncia cultural, atenta aos princpios ticos, estticos e espirituais, estruturantes