Conselho de Bêbada - Rascunho
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EmanuelDias [email protected]
1.800 palavras
A BBADA
Por Emanuel Flix
Era uma madrugada fria de sbado. O bairro fazia um
silncio enorme. Trs famlias reunidas bebiam na calada do
bloco 28 do Conjunto Araturi, pendendo como uma jangada deriva
na imensidade do silncio. A luz anmica do poste dava-lhes
compleies amarelas; o vento corria forte, deixando calafrios;
um radinho tocava a msica brega mais empoeirada que existe.
Varuska era uma mulher casada. Mas, ali, no estava com o
marido. S suas duas filhas, a Aninha e a Las. "Quando foi a
ltima vez que o Darmisso saiu comigo?". Varuska parecia uma me
solteira daquele jeito. Varuska era uma mulher que ria, que
brincava, que bebia, que fumava, que trabalhava... Mas Varuska
era uma mulher triste. Ainda bem que sabia fingir. Tomou um gole
de cerveja e disse:
-- Eita, Babalu, essa do tempo do ronca!
E gargalhou com voz gasguita, arreganhando os dentes. A
amiga respondeu:
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Surname / Story Title / 2amiga respondeu:
-- Eu tenho sessenta e oito anos... e j escutava essa desgraa
quando era criana.
Falava como se tivesse levado um tiro na garganta e ainda
dava uma nfase danada nas tnicas, modo de impressionar. J
estava "alterada".
-- Eu no consigo entender... eu no consigo! Tava tocando forr
nesse instante! Cad o forr?
-- Acabou, Babalu, acabou. Disse Juliete.
Juliete era uma morena linda. J no era a mesma da
juventude, claro, mas conservava um corpo lindo. Tinha leves
traos indgenas, cabelos mais escuros que o cu de madrugada,
s um pouco desgastada pela idade. Estava mais gorda. Isso a
incomodava, por isso estava indo para academia. Quero dizer,
estava tentando. No era muito disciplinada, sabe. O marido
estava ali ao seu lado. Ricardo mais parecia um namorado porque
ficava flertando com ela como se no tivessem um filho, como se
no tivessem o Ncolas.
Os blocos daquele lugar eram um amontoado de apartamentos,
uns juntinhos aos outros, com porta e janela dando para a vala
dentre um e o bloco seguinte. Frente ao apartamento da Babalu,
que cercava-se de um murinho de cimento, trs crianas
enfileiravam-se a modo de se preparar para alguma coisa.
-- Eu vou fazer, eu vou fazer. Gritou o pequeno Ncolas.
-- Vai Ncolas. Do seu lado respondeu Aninha, feito uma
torcedora fantica.
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Surname / Story Title / 3
Ncolas comeou a rebolar seus quadrs minsculos tentando
imitar danarinos de forr, mas fazia mais o tipo lombriga
agonizando. As duas crianas, Aninha e Beatriz riam do colega,
mas no por chacota, e sim por admirao. O menino repetia sem
parar: em cima, em cima, em cima...enquanto movia em ritmo
contnuo os quadrs para trs e para frente.
-- Tira essa da, macho! Bota aquela do "em cima, em cima..."...
Disse Juliete
Gargalhava como um porco enquanto se deixava cair sobre o
corpo do marido. Os olhos de Ricardo suavam de lascvia.
-- No tem nesse pendrive aqui, no, gata.
Varuska disse que o Andr, filho da Babalu, tinha.
Pediu para sua outra filha, Las, buscar, mas essa continuou
roendo as unhas. O olhar da me fulminou a filha. A raiva fez o
gole de cerveja descer com dificuldade. "E se eu tacasse esse
copo de vidro na cabea dela?". Pensou, pensou, mas no tinha
coragem de faz-lo, nem mesmo se estivesse bbada. O amor de me
no entorpecido pelo lcool. No at esse ponto cruel. Pelo
menos em Varuska.
-- Las, tu no vai pegar essa porra no?
-- No. E continuou, pernas cruzadas, apoiando seus cotovelos
nos joelhos, roendo os cacos de unha. Um sorriso malvado queria
desabrochar-lhe do rosto. O seu sinismo atravessou a me como
uma arma branca. Mas esta, resignada, fingiu no se importar.
Fingiu no doer, como sempre fazia. Ela percebia sua fraqueza,
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Surname / Story Title / 4Fingiu no doer, como sempre fazia. Ela percebia sua fraqueza,
mas deixa para l. Esticou a mo at o copo ao lado. Estava
vazio. Um libe para fugir da cara de constrangimento que exibia
na frente dos amigos.
-- Eu vou pegar mais cerveja, Babalu. O porto t aberto?
-- T, minha filha. T aberto. T... Pega pra mim tambm,
rapariga.
Las deixou o riso sair-lhe da face. Parecia um insulto.
Mas na verdade no foi. Ela ria de tudo o que a Babalu falava.
Estava ali precisamente com esse objetivo: rir da embriaguez
alheia. Era uma criana de treze anos querendo brincar. Insultar
a me era um bnus.
-- Ei, aproveita e pega o pendrive! Gritou Ellen da ponta da
calada, de frente para a cacimba do bloco. Toda vestida de
preto, cabelos negros e longos, to longos que balanavam com a
ventania da madrugada, embora sem se embaraar. Uma mecha roxa
segurava-se no lado esquerdo do rosto afilado, contrastando com
os olhos verdes. Era magrrima, anorexica. Ela inclinou-se para
Las, deixando as costas toda curvada, e disse, encarando a
amiga:
-- C doida, mulher!
Levantou-se rapidamente da calada e abraou a Babalu.
-- Vamos beber, Babalu!
-- Sai! Sai! Rapariga.
A voz quase desvanecendo em rouquido pronunciava devagar
cada slaba. Quase tombou com o peso do corpo de Ellen sobre o
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Surname / Story Title / 5cada slaba. Quase tombou com o peso do corpo de Ellen sobre o
dela. Quando a menina se desvencilhou dela, j no tinha mais
equilbrio. Foi caindo lentamente no cho, esticando o brao
direito para trs a fim de aparar a queda. Deu de bunda no cho,
sentido aquela terra rida de entulho coberto de areia.
-- Ai! Rapariga!
Conseguiu se apoiar sobre o brao sem bater todo o corpo no
cho. Sentada daquele jeito, olhava pra cima com ar cmico.
Ento, esticou-se sobre a areia, os braos e as pernas
caqueticos esticados para todos os lados. Ficou assim,
estatelada. A algazarra foi grande. Todos riram da cena
ridcula. Ellen s ficou olhando, em p, de braos cruzados, com
a certeza de que no teve culpa.
-- A Babalu parece uma boneca! Disse Varuska, para agravamento
das gargalhadas. Voltava do interior do apartamento da amiga,
com quatro latas de cerveja apoiadas com as duas mos avanadas.
A velhinha levantou-se devagar, com esforo, sem a ajuda de
ningum.
Janete pediu ao marido para pr a msica que queria. Ele
encaixou o pendrive na caixinha de msica. Passava as faixas at
encontrar a desejada.
Janete repreendeu o filho que se distanciava com as meninas
para o outro lado do bloco. Deu um grito nele, que esse o modo
de se repreender tradicional daquelas bandas.
-- Ncolas! No vai muito longe no!
De longe, ele respondeu:
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Surname / Story Title / 6De longe, ele respondeu:
-- T bom, me. Eu no vou longe no.
Ento, a voz grave de D. Babalu rasgou o ar frio, dizendo:
-- Esta rapariga no me respeita.
Varuska senta na calada, ao lado de Janete, abre o lacre
da latinha de cerveja e a inclina com satisfao sobre o copo de
vidro. Oferece uma lata a amiga ao lado. Leva a bebida a boca,
lentamente, e cruza as pernas estriadas. O short jeans curto e a
blusa sem manga estupidamente tentavam dar ar de juventude
aquele corpo j debilitado e velho. Chegara aos quarenta com
pouca ou nenhuma sade. E mesmo assim resistia ao tempo a
vontade de amar -- farrear, namorar, beijar -- coisas que
reputava a adolescencia, prprias de sua filha de treze anos.
-- Essa da gosta de menina. -- Babalu apontou para Las -- ...
como o nome?... a... Ela heterossexual.
Depois de uma longa pausa de constrangimento, um ar pesado
porque todos ali tinham vergonha de falar assim to diretamente
sobre assuntos assim to estranhos, estranhos principalmente a
Varuska, que odiava esse comportamento da filha; depois de uma
pausa, a bbada continuou:
-- Essa da d tanto trabalho a me dela! Eu vejo...
Janete interrompe-a querendo dar cabo aquele assunto.
Queria ajudar a amiga, tir-la do poo de vergonha no qual
estava sendo jogada. Varuska, imvel, olhando fixamente para
frente, esforava-se para manter uma compleio indiferente. De
palpebras cadas, espasmos nos cantos da boca, a me remoia com
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Surname / Story Title / 7palpebras cadas, espasmos nos cantos da boca, a me remoia com
um prazer sadstico todo trabalho que Las tivera lhe dado.
Remoia em seus pensamentos.
-- Eu vejo, Janete, o quanto a me dela sofre, eu vejo! A
bichinha se mata de trabalhar, faz tudo por ela! E ela
ignorante. Ignorante! Olha, o pai dela j pagou colgio
particular pra ela, j pagou...celular caro pra ela, j
pagou...tudo no mundo! Os filhos do Emerson Jr. so do mesmo
jeito. Essa da, a Laurinha, chama a me de porra!
-- E ela no , no? Ellen provoca.
-- V...! -- joga as costas da mo contra o ar num gesto de
desprezo a amiga -- tu no sabe nem quem eu sou, tu... Eu
trabalhei no Jos Maria Marley durante vinte anos, depois me
aposentei.
E ainda acrescentou batendo no peito com um orgulho danado:
-- Eu fiz tudo. Eu tenho segundo grau completo.
Enquanto todos ouviam as reprimendas da bbada, Ricardo
ainda mudava as faixas do radinho. Um chiado roufenho arranhava
os ouvidos da gente, somando desconforto ao deboche.
-- Tu, eu vou dizer quem tu...no terminou nem o segundo grau!
Deixou os estudos e est a, desse jeito. Ela fuma... aquela
coisa... ela fuma... na lata, na lata...
Deu-se-lhe uma tosse seca seguida de um pigarrear, enquanto
ela tentava lembrar da palavra.
-- Crack, Babalu! Brincou Las.
Ellen j tinha sentado, de costas contra a parede, pernas
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Surname / Story Title / 8Ellen j tinha sentado, de costas contra a parede, pernas
sobre a calada, escostando o queixo nos joelhos e olhava sob as
sobrancelhas a sua acusadora.
-- Ela fuma maconha!
-- , Babalu. Ns estvamos fumando hoje. Ela trouxe um pra ns
fumar. Disse Janete.
-- Tu fuma tambm. Maconha.
E ficou repetindo a palavra como se contemplasse uma coisa
estranha nas suas mos.
-- Maconha.
-- Eu fumo tambm, eu. Deixa a gente enrolar um baseado aqui.
Janete ria, tentando dar a entender que tudo no passava de
uma brincadeira. Mas tudo o que Babalu falara era verdade. Todos
estavam sendo cnicos.
-- No lugar de farrear, tu deveria estudar, Ellen. Terminar o
segundo grau, fazer uma faculdade. Depois tu namora com aquele
loiro velho, noite. pra tu trabalhar como essa da, olha. A
Varuska, Ellen, me conhece a anos! E eu conheo ela. Quanto
tempo a gente mora aqui Varuska? Faz mais de trinta anos! Ela
s no...
E gesticulou a palavra dando um tapa para baixo, fazendo um
estalido com os dedos.
-- Se tu estuda, consegue tudo. Mas tu no quer... Vai morrer
assim, se matando de trabalhar, que nem a Varuska. Vai morrer
assim. Morrer... -- e uma tosse seca a interrompe -- ...assim.
Comea a tocar a msica do "agora sobe" com seus ifinitos
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Surname / Story Title / 9Comea a tocar a msica do "agora sobe" com seus ifinitos
sobes. Em um segundo, a cano leva todos a uma outra atmosfera,
longe daquelas palavras srias e chatas. Ento, Ricardo fala:
-- Que mundo esse em que uma bbada diz como a gente deve
viver? Passa, logo, uma loira gelada a e deixa de conversa!