Construtivismo social: A ciência sem sujeito e sem mundo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO LÓGICA E METAFÍSICA Gustavo Arja Castañon CONSTRUTIVISMO SOCIAL: A CIÊNCIA SEM SUJEITO E SEM MUNDO Rio de Janeiro Agosto de 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS 

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS 

PROGRAMA DE PÓS‐GRADUAÇÃO LÓGICA E METAFÍSICA 

  

 

  

Gustavo Arja Castañon 

 

CONSTRUTIVISMO SOCIAL: A CIÊNCIA SEM SUJEITO E SEM MUNDO 

 

  

 

 

 

 

 

 

Rio de Janeiro

Agosto de 2009

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II

 

Gustavo Arja Castañon  

 

 

 

 

 

 

 

 

CONSTRUTIVISMO SOCIAL: A ciência sem sujeito e sem mundo 

 

 

 

 

          Um volume  

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós‐Graduação Lógica  e Metafísica do  Instituto de  Filosofia  e Ciências Humanas  da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários  à  obtenção  do  título  de  Mestre  em Filosofia (Lógica e Metafísica). 

 Orientador: Alberto Oliva 

 

 

 

 

     

Rio de Janeiro, 2009. 

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III

 

Gustavo Arja Castañon   

 

CONSTRUTIVISMO SOCIAL: A ciência sem sujeito e sem mundo 

  

Dissertação de Mestrado  apresentada  ao Programa de Pós‐Graduação Lógica  e Metafísica  do  Instituto  de  Filosofia  e Ciências Humanas  da Universidade  Federal  do  Rio  de  Janeiro,  como  parte  dos  requisitos necessários  à  obtenção  do  título  de  Mestre  em  Filosofia  (Lógica  e Metafísica). 

  

Aprovada por:    

      ________________________ (Alberto Oliva, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro) 

   

________________________ (Antonio Augusto Passos Videira, Doutor, Universidade do Estado do Rio de Janeiro) 

   

________________________ (Marco Antonio Caron Ruffino, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro) 

   

Rio de Janeiro, 03 de agosto de 2009. 

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IV

      

Dedico esta dissertação a Nathalie, meu amor, que ao viver ao meu lado faz com que eu me sinta em casa 

neste mundo insano e sem valores.      

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V

  

Agradeço aqui,   

A meu orientador Alberto Oliva, amigo mais antigo do que gostaria de confessar, que nunca se furtou ao trabalho a ele confiado e me ajudou 

competente e generosamente na pesquisa para esta dissertação;   

A meu professor Marco Ruffino, que teve sobre mim influência marcante no curso que ora completo, e que por suas ótimas aulas e estilo direto me 

ajudou decisivamente a desembarcar na filosofia analítica;   

Ao professor Antonio Augusto Passos Videira, que aceitou o convite para participar desta banca sem qualquer conhecimento prévio de meu 

trabalho;   

Ao Programa de Pós‐graduação em Lógica e Metafísica, que me ofereceu todas as condições necessárias para a conclusão de meu curso sem abrir mão do projeto de construção de uma pós‐graduação com padrões de exigência muito superiores aos usualmente encontrados na filosofia 

brasileira;   

A meus pais, sem os quais não estaria aqui hoje e com os quais tenho convivido tão pouco nos últimos seis anos de estudos interruptos; 

  

E a minha esposa Nathalie, que tem enfrentado a falta de viagens e lazer que minha sucessão de empreitadas acaba também lhe impondo, sempre 

com compreensão, ajuda e amor.   

     

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VI

             

  

Rien n’est plus dangereux qu’une idée, quand on n’a qu’une idée.  

Alain   

          

    

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VII

RESUMO  CASTAÑON, Gustavo Arja. Construtivismo  Social: A  ciência  sem  sujeito  e  sem mundo. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Filosofia: Lógica e Metafísica) – Programa de Pós‐graduação Lógica e Metafísica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. 

 Esta dissertação avalia o construtivismo social, abordagem filosófica associada 

ao strong programme da sociologia da ciência. Os problemas específicos investigados são  o  da  validade  de  sua  classificação  como  forma  de  construtivismo  e  de  sua pretensão  de  fazer  da  sociologia  a  única  metaciência  legítima.  A  investigação  é filosófica  e  baseia‐se  em  pesquisa  bibliográfica.  Para  a  avaliação  dos  problemas propostos, começa por um sucinto inventário dos principais tipos de construtivismo contemporâneo  (kantiano,  piagetiano,  radical,  lógico,  construcionismo  social  e socioconstrutivismo),  concluindo  por  sua  definição  como  tese  epistemológica  que defende a rejeição ao objetivismo, que a mente impõe formas prévias à experiência e que nossas teorias sobre o mundo são construções hipotético‐dedutivas. Além disso, conclui que não há  implicação necessária entre o construtivismo e o  idealismo. Em seguida,  avalia  as  teses  do  construtivismo  social  começando  por  idéias  de  seus principais  precursores,  Wittgenstein,  Kuhn  e  Feyerabend.  Identifica  suas  teses ontológicas  principais  reconhecendo‐as  como  a  maior  fonte  de  dispersão  no movimento,  que  se  divide  acerca  delas  em  ao menos  duas  correntes  gerais:  um ʹconstrutivismo  social  epistêmicoʹ  e  um  ʹconstrutivismo  social  ontológicoʹ,  este último,  uma  variante  de  idealismo.  Já  suas  teses  epistemológicas  principais  são classificadas  como  variantes de  relativismo,  objetivismo  sociológico  e  cientificismo anti‐positivista. Com  base  nesta descrição,  o  construtivismo  social  é  criticado  com alguns  argumentos  originais  em  duas  linhas  principais.  Primeiro  por  tratar‐se,  a despeito de seu cientificismo, simplesmente de mais uma abordagem em filosofia da ciência totalmente dependente das teses filosóficas de seus precursores, além de não usar em nenhum momento, como propugna, métodos científicos adequados para o teste  de  suas  hipóteses.  Segundo  por  não  ser,  apesar  do  uso  do  termo,  um construtivismo, uma vez que defende um sujeito passivo na relação com o objeto do conhecimento, consistindo num estranho tipo de objetivismo, no qual o mundo físico não tem papel. Conclui‐se que esta abordagem se afastou profundamente da tradição filosófica construtivista, uma vez que renuncia à  idéia de sujeito construtor de suas cognições  em  prol  de  uma  sociedade  que  as  causa. Além  disso,  o  construtivismo social  não  só  não  tem  qualquer  semelhança  com  a  investigação  científica,  como sequer pode  ser  considerado uma  teoria  filosófica  consistente, pois  reedita  antigas auto‐refutações  relativistas e  cientificistas, usa de  forma descuidada a  linguagem e beira em alguns momentos ao irracionalismo. 

DESCRITORES: CONSTRUTIVISMO SOCIAL, CONSTRUTIVISMO, FILOSOFIA DA CIÊNCIA, SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA. 

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VIII

ABSTRACT  CASTAÑON, Gustavo Arja. Construtivismo  Social: A  ciência  sem  sujeito  e  sem mundo. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Filosofia: Lógica e Metafísica) – Programa de Pós‐graduação Lógica e Metafísica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. 

 This dissertation evaluates the social constructivism, a philosophical approach 

associated  to  the  strong programme of  sociology of  science. The  specific problems investigated  are  those  about  the  validity  of  its  classification  as  a  kind  of constructivism  and  of  its  pretension  of  making  sociology  the  unique  legitimate metascience. This is a philosophical investigation based on a bibliographical research. For  the evaluation of  the proposed problems,  it begins with a succinct  inventory of the contemporary constructivism main variants  (kantian, piagetian,  radical,  logical, social  constructionism  and  socioconstructivism),  concluding  by  its  definition  as  a epistemological  thesis  that  defends  the  rejection  to  objectivism,  that  the  mind imposes previous  forms  to  the  experience  and  that  our  theories  on  the world  are hypothetical‐deductive  constructions.  Moreover,  it  concludes  that  there  isnʹt necessary implication between constructivism and idealism. Soon after, evaluates the thesis  of  social  constructivism  begining  with  the  ideas  of  its  main  precursors, Wittgenstein, Kuhn and Feyerabend. The dissertation identifies its main ontologicals thesis recognizing them as the greatest cause of division on the movement, which is divided  in at  least  two general  tendencies: a  ʹepistemic social constructivismʹ and a ʹontological  social  constructivismʹ,  this  one,  an  variant  of  idealism.  Its  main epistemologicals  thesis  are  classified  as  variants  of  relativism,  sociological objectivism  and  anti‐positivist  scientificism.  Based  on  this  description,  social constructivism is criticized with some original arguments in two main lines. First for being  itself,  in  spite  of  its  scientificism,  just  one more  approach  in  philosophy  of science  totally  dependent  of  the  philosophical  thesis  of  its  precursors,  besides  it doesn’t use in any moment, as it proposes, adequate scientific methods for the test of its hypotheses. Second for not being, in spite of its use of the term, a constructivism, once  it  defends  a  passive  subject  in  the  relation  with  the  object  of  knowledge, consisting in a strange kind of objectivism, in which the physical world doesnʹt have role.  It  concludes  that  this  approach  has  moved  itself  away  from  constructivist philosophical  tradition,  once  it  renounces  to  the  idea  of  a  building  subject  of  his cognitions  in  behalf  of  a  society  that  causes  them.  Moreover,  the  social constructivism  doesnʹt  have  any  similarity with  scientific  investigation,  as  also  it cannot  be  considered  a  consistent  philosophical  theory,  because  re‐edits  old relativists and scientificists auto‐refutations, uses language in a neglected way and in some moments comes closer to irrationalism. 

 KEY‐WORDS:  SOCIAL  CONSTRUCTIVISM,  CONSTRUCTIVISM,  PHILOSOPHY OF SCIENCE, SOCIOLOGY OF SCIENCE. 

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IX

SUMÁRIO 

  1. – Introdução                    01 

2. – Construtivismo                   10 

2.1. – Construtivismo em Kant              12 

2.2. – Construtivismo em Piaget              19 

2.3. – Outros Construtivismos contemporâneos        26 

2.3.1 – Construtivismo Radical            27 

2.3.2 – Construcionismo Social            34 

2.3.3 – Socioconstrutivismo            41 

2.3.4 – Construtivismo Lógico            47 

2.4. – Definição de Construtivismo            54 

3. – Construtivismo Social                 62 

3.1. – Caracterização geral               63 

3.2. – Idéias antecedentes em Filosofia da Ciência        71 

3.2.1 – Wittgenstein e a dissolução linguística da epistemologia  71 

3.2.2 – Kuhn e a sociologização da epistemologia      79 

3.2.3 – Feyerabend e a anarquização da epistemologia    89 

3.3. – Construtivismo Social e Ontologia           100 

3.3.1. – O que existe para o construtivismo social?      100 

3.3.2. – Construção social de quê?           107 

3.3.3. – O Construtivismo Social Ontológico        117 

3.4. – Construtivismo Social e Epistemologia          126 

3.4.1. – É possivel conhecer algo sobre o mundo?      127 

3.4.2. – O que é e como se legitima o conhecimento?      133 

3.4.3. – O problema do relativismo          137 

3.4.4. – Qual é a relação entre o sujeito e o objeto?      143 

3.4.5. – Qual é o método científico de investigação da ciência?  154 

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X

4. – Avaliação crítica do Construtivismo Social           161 

4.1. – Uma filosofia da ciência sem filosofia          162 

4.1.1. – A circularidade da pretensão cientificista      162 

4.1.2. – Não existe descritivismo puro          166 

  4.1.3. – Mais do mesmo: CS é a Nova Filosofia da Ciência    168 

4.2. – Uma investigação sem método            171 

4.3. – Um construtivismo sem sujeito            180 

4.4. – Uma ciência sem mundo              185 

4.5. – Um conhecimento sem verdade            198 

5. – Conclusão                    208 

Referências Bibliográficas                  217 

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1

 

 

 

Capítulo 1 

Introdução 

 

 

O tema abordado aqui é o do construtivismo social contemporâneo, conjunto 

de  teses  filosóficas  associadas  ao  strong  programme  da  sociologia  da  ciência.  Os 

problemas  específicos  investigados  sobre  o  tema  são  o  da  validade  de  duas  teses 

dessa abordagem. A primeira é sua alegação de que é uma abordagem construtivista, 

a segunda sua pretensão de fazer da sociologia não só uma disciplina metacientífica, 

como ainda a única reconstrução metacientífica legítima.  

Esta  investigação  é de  natureza  filosófica  e  se  baseia  em  fontes primárias  e 

secundárias selecionadas através de pesquisa bibliográfica conduzida principalmente 

nas bases de dados SSCI e Philosopherʹs Index. Sua necessidade se dá uma vez que 

nos últimos anos assistimos a uma proliferação da utilização do termo construtivismo, 

não somente na filosofia, mas também na psicologia, educação, neurociência, lógica, 

matemática e, particularmente,  sociologia. Não há, até hoje, nenhuma pesquisa em 

larga  escala  de  todas  essas  alegações  de  construtivismo  (ROCKMORE,  2005), 

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portanto, nenhum consenso sobre a definição do termo pode ser alcançado de forma 

completa. No  entanto,  se o  tomamos  em  seu  significado  tradicional  – posição que 

defende o papel ativo do sujeito na sua relação com o objeto do conhecimento e na 

construção de suas estruturas cognitivas e representações da realidade – vemos que 

diversas posições autodenominadas  ‘construtivistas’ assumem  teses que contrariam 

o espírito original dessa  tradição  filosófica. Assistimos hoje,  sob o abrigo do  termo 

‘construtivismo’, uma multiplicação de posições que identificam essa tese com o anti‐

realismo,  atacando  o  pressuposto  do  realismo  ontológico  que  está  na  base  do 

pensamento  científico moderno. Algumas  dessas  posições  inclusive  consideram  o 

sujeito um elemento passivo do processo de “construção” do conhecimento.  

Esta dissertação realiza uma investigação dos pressupostos filosóficos de uma 

das mais  influentes utilizações contemporâneas do termo, o Construtivismo Social de 

Barry Barnes e David Bloor, também denominado às vezes socioconstrutivismo ou tese 

forte da sociologia da ciência, assim como rastrear suas origens filosóficas. Atualmente, 

outras  influentes utilizações do  termo são efetuadas pela epistemologia genética de 

Jean Piaget  (o  construtivismo piagetiano), pelo  construcionismo  social  (abordagem 

pós‐moderna  da  psicologia  social),  pelo  construtivismo  radical  (tese  filosófica  que 

espalha  sua  influência  por  setores  da  educação,  psicoterapia  e  neurociência),  pelo 

socioconstrutivismo  (abordagem da psicologia  social e do desenvolvimento) e pelo 

construtivismo  lógico.  No  entanto,  estas  utilizações  só  serão  abordadas  nesta 

investigação  a  título  de  delimitação  do  conceito  geral  de  construtivismo  e 

diferenciação em relação ao construtivismo social. 

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A  visão  tradicional  do  conhecimento  científico  o  concebe  como  produto  de 

uma atividade de investigação que só aceita dois tipos de veredicto: o da lógica e o 

da experiência. O construtivismo social  representa uma aberta e  radical oposição a 

essa  visão,  e  questiona  o  pressuposto  de  que  a  ciência  possui  uma  racionalidade 

intrínseca para atribuir‐lhe o estatuto de uma construção social como qualquer outra. 

Uma vez que esta espécie de relativismo exerce influência cada vez maior nos meios 

acadêmicos brasileiros, particularmente nos  cursos de pedagogia,  faz‐se necessária 

uma  investigação  pormenorizada  de  seus  pressupostos.  O  sociologismo  e  o 

historicismo característicos do construtivismo social, que é uma variante da filosofia 

pós‐moderna, disseminam  a  idéia de  que  são  as  relações de poder  e  os  interesses 

políticos que determinam a aceitação ou a  rejeição de  teorias científicas. A questão 

aqui  é, portanto, definir  se a análise  filosófica pode determinar a  racionalidade da 

investigação científica, reconstruindo‐a epistemicamente, ou se este papel caberia aos 

estudos voltados para a identificação dos aspectos políticos e sociais desta atividade. 

 

 

1.1 – Delimitação do Problema  

 

Os problemas específicos a serem objeto de  investigação  filosófica dentro do 

tema escolhido podem ser definidos através de duas perguntas: P1) O construtivismo 

social  é  construtivista? P2) O  construtivismo  social pode  ser  formulado  como uma 

metaciência consistente?  

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Podem‐se  ainda  desmembrar  os  problemas  acima  com  as  perguntas:  P1a) 

Como  definir  construtivismo?  P1b)  Qual  o  papel  do  sujeito  no  processo  de 

construção  do  conhecimento  para  o  construtivismo  social?  P1c) O  que,  para  esta 

abordagem, se pode conhecer?  

Em segundo  lugar temos que perguntar: P2a) A  imagem de ciência oferecida 

pelo  construtivismo  social  é  consistente?  P2b) A  pretensão  de  independência  em 

relação  à  filosofia  da  ciência  que  apresenta  o  construtivismo  social  é  sustentável 

filosoficamente?  

Assim,  a  análise  desses  problemas  passa  por  três  questões  intermediárias 

fundamentais,  que  determinarão  a  seqüência  lógica  do  desenvolvimento  da 

dissertação: 

Primeira, o que é construtivismo e quais são suas  raízes  filosóficas? Ou seja, 

qual  é  a história  filosófica da  elaboração deste  conceito? Aqui, particularmente,  se 

procurará  estabelecer  o  conceito  de  construtivismo  com  o  qual  trabalharemos  na 

dissertação e responder se há uma  implicação necessária entre o construtivismo e o 

idealismo. 

Segunda, quais são as abordagens filosóficas ou teóricas contemporâneas que 

usam  o  termo  ‘construtivismo’  para  se  identificarem?  Em  que  sentido  elas  se 

afirmam  construtivistas?  Que  posições  assumem  frente  ao  realismo  ontológico,  à 

relação com o objeto do conhecimento e à atividade do sujeito? 

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Terceira,  quais  são  as  teses  adotadas  pelo  construtivismo  social? Quais  são 

suas posições ontológicas e epistemológicas? Como se distingue de outras alegações 

de construtivismo contemporâneas?  

Assim,  se  estabelecerão  as  condições necessárias para  a  formulação de uma 

resposta aos dois problemas investigados pela dissertação, o do caráter construtivista 

e o da consistência do construtivismo social. 

 

 

1.2 – Hipóteses  

 

As hipóteses que serão investigadas aqui referentes aos problemas primários e 

secundários acima propostos são, começando pela hipótese geral, as seguintes: 

O construtivismo social é simplesmente mais uma abordagem em filosofia da 

ciência derivada de  idéias surgidas da obra do segundo Wittgenstein e de Thomas 

Kuhn e Paul Feyerabend. Não pode ser considerada construtivista, pois defende uma 

imagem de sujeito passiva na relação com o objeto do conhecimento, se constituindo 

num  tipo  de  objetivismo,  e  em  suas  versões mais  radicais,  num  estranho  caso  de 

idealismo sem sujeito. A renúncia à concepção construtivista de sujeito construtor de 

suas  cognições  em  prol  de  uma  sociedade  que  constrói  os  sistemas  de  crenças, 

caracteriza  uma  posição  que,  utilizando‐se  do  termo  construtivismo,  se  afastou 

profundamente dessa tradição filosófica.  

Esta hipótese geral é sustentada por três hipóteses auxiliares: 

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Primeira: Apesar  de  encontrarmos  traços  precursores  do  construtivismo  na 

filosofia socrático‐platônica, assim como em autores como Epicteto ou ainda Vico, o 

construtivismo  é  tese  característica da  filosofia  contemporânea,  sendo derivado da 

obra de Kant. É um equívoco grave a construção artificial de  supostas polaridades 

entre realismo e construtivismo e entre objetivismo e relativismo. De fato, as polaridades 

existentes  são  as  estabelecidas  entre  objetivismo  e  construtivismo  (em  relação  à 

questão da origem do conhecimento), realismo e idealismo (em relação à questão da 

natureza do objeto), e criticismo e relativismo (em relação à questão da possibilidade 

do  conhecimento).  Com  base  nestas  posições,  devem  ser  avaliadas  todas  as 

reivindicações  de  construtivismo  filosófico,  que  se  define  necessariamente  pela 

rejeição ao objetivismo, mas pode oscilar  entre o  realismo  e o  idealismo,  e  entre o 

criticismo e o relativismo. 

Segunda:  o  construtivismo  depende  de  uma  concepção  ativa  de  sujeito  do 

conhecimento, como construtor primeiro de intuições sensíveis e depois de hipóteses 

causais. Assim,  considera‐se  o  construtivismo  social  como  não‐construtivista,  uma 

vez  que  dissolve  o  conceito  de  sujeito  ativo  no  processo  de  construção  do 

conhecimento. Assim, tanto a primeira quanto a segunda hipótese auxiliar afirmam 

que não há vinculação necessária entre construtivismo e idealismo. 

Terceira: o construtivismo social é  inconsistente por  tentar colocar no âmbito 

da sociologia as questões epistemológicas relativas à sua própria validade. Ainda, em 

sua vertente mais  radical que  rejeita o  realismo ontológico, o construtivismo  social 

faz das concepções socialmente construídas da realidade a única e própria realidade, 

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afastando‐se assim dos limites da sociologia do conhecimento tradicional e entrando 

no terreno do pós‐modernismo. Além disso, esta corrente se sustenta flagrantemente 

em  concepções  derivadas  das  obras  de Wittgenstein,  Kuhn  e  Feyerabend,  sendo, 

portanto, dependente da filosofia da ciência e incapaz de erigir‐se como a disciplina 

metacientífica auto‐suficiente. 

 

 

1.3 – Estrutura da dissertação  

 

No  capítulo  dois,  que  se  segue  a  esta  introdução,  serão  definidas  as  teses 

ontológicas  e  epistemológicas  centrais  do  construtivismo  contemporâneo.  Será 

exposta a origem das teses construtivistas contemporâneas em Kant e na abordagem 

que  introduziu  o  termo  no  século  XX,  a  Epistemologia  Genética  de  Jean  Piaget. 

Posteriormente,  serão  avaliados  os  usos  contemporâneos  do  termo  pelo 

construtivismo  radical,  construcionismo  social  (que  não  se  deve  confundir  com  o 

construtivismo social), socioconstrutivismo e construtivismo lógico. Finalmente, com 

base  nas  posições  investigadas,  será  estabelecido  o  que  há  de  comum  entre  as 

correntes e que, desse modo, poderia caracterizar de um modo menos controverso o 

construtivismo como um todo. 

  No  capítulo  três  serão  apresentadas  as  principais  teses  do  construtivismo 

social,  com  especial  ênfase  nas  ontológicas  e  epistemológicas.  Começa  com  uma 

sumária  contextualização  e  apresentação  conceitual  do  construtivismo  social,  para 

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logo depois abordar algumas idéias de Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend que tiveram 

influência fundamental na configuração filosófica da corrente. Os dois últimos itens 

do  capítulo  serão  dedicados  a  uma  avaliação  cuidadosa  das  teses  ontológicas  e 

epistemológicas do construtivismo social, buscando estabelecer o que pode ser dito 

de consensual e o que há de divergência entre as correntes e principais proponentes 

do autodenominado “strong programme”. 

No quarto capítulo apresentarei cinco críticas gerais ao construtivismo social, 

das quais duas pretendem ter o caráter de críticas originais. A primeira diz respeito 

ao fato de que, apesar de se apresentar como ciência da ciência e crítico da filosofia, o 

construtivismo social nada mais é que outra filosofia da ciência; só que inconsistente 

e  praticada  sem  rigor  algum. A  segunda  diz  respeito  ao  fato  de  que  os métodos 

usados pelo  construtivismo  social para  investigar  cientificamente a  ciência não  são 

científicos  e  são  incapazes de  testar alegações acerca de  relações de  causa  e  efeito, 

fato  este  que  aparentemente  nunca  foi  abordado  na  literatura  sobre  o  strong 

programme. A  terceira  é  a  de  que  o  construtivismo  social  não  é  estrito  senso  uma 

variante de  construtivismo, não  faz parte dessa  tradição do pensamento ocidental, 

pois não existe, para esta abordagem, um sujeito ativo. A quarta, é que ela defende 

uma das teses mais descabidas da história da filosofia da ciência, a de que o mundo 

não  faz  diferença  na  obtenção  de  conhecimento  científico.  Por  fim,  abordarei 

novamente o problema do relativismo e da definição de conhecimento adotada por 

essa  vertente,  criticando  as  consequências  de  se  rejeitar  a  verdade  como  ideal 

normativo. 

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Por  fim  concluo  a  dissertação  recapitulando  os  motivos  que  me  levam  a 

acreditar  que  as  hipóteses  expostas  nesta  introdução  foram  bem  fundamentadas, 

além  de  chamar  a  atenção  para  os  potenciais  efeitos  práticos  danosos  do 

construtivismo social. 

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Capítulo 2 

Construtivismo 

 

 

Neste  capítulo  serão  definidas  as  teses  centrais  do  construtivismo 

contemporâneo, com o objetivo de estabelecer o quanto o Construtivismo Social as 

assume. Para tal, serão avaliados os principais usos contemporâneos do termo a fim 

de esclarecer como se posicionam em relação a três questões. A primeira é ontológica: 

Q1)  Existem  objetos  independentes  da  mente  humana?  À  posição  que  dá  uma 

resposta afirmativa a esta questão chamaremos realismo ontológico, e uma resposta 

negativa, idealismo.  

A segunda e  terceira a se averiguar é como as abordagens construtivistas se 

posicionam quanto às questões epistemológicas: Q2) É possível conhecer algo sobre 

os objetos que existem  independentemente da mente?; Q3) Qual é a relação entre o 

sujeito e o objeto do conhecimento? Quanto à Q2, as respostas serão classificadas em 

três posições: dogmatismo (é possível conhecer o objeto em si mesmo), criticismo (é 

possível conhecer o modo como os objetos afetam nossas representações sensíveis) e 

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ceticismo  (não  é possível  conhecer nada  sobre os objetos  reais). As  respostas à Q3 

serão  classificadas  como objetivistas  (o objeto determina  em nós  as  representações 

que  temos  dele)  ou  construtivistas  (nós  construímos  nossas  representações  do 

objeto). 

Será evitado durante a dissertação, na construção de argumentos próprios, o 

uso  dos  termos  realismo  e  idealismo  para  quaisquer  outras  posições  que  não  as 

ontológicas,  sejam  epistemológicas,  semânticas  ou  axiológicas.  Procurarei 

fundamentar a hipótese de que grande parte da confusão que cerca a utilização do 

termo  ‘construtivismo’ é devida a utilização dos  termos  ‘realismo’ e  ‘idealismo’ em 

sentido epistemológico (é possível ou não o conhecimento acerca de objetos reais) e 

semântico (a verdade é ou não uma relação objetiva entre o mundo e a linguagem). 

Começaremos  pela  exposição  da  origem  das  teses  construtivistas 

contemporâneas em Kant e pela abordagem que introduziu o termo no século XX, a 

Epistemologia  Genética  de  Jean  Piaget.  Posteriormente,  avaliaremos  os  usos 

contemporâneos do termo sucessivamente na abordagem do construtivismo radical, 

construcionismo social (que não se deve confundir com a tese forte da sociologia da 

ciência, o construtivismo social, objeto desta dissertação que não será abordado neste 

capítulo),  socioconstrutivismo  e  construtivismo  lógico.  Finalmente,  com  base  nas 

posições investigadas, será estabelecido o que há de comum entre as correntes e que 

portanto  poderia  caracterizar  de  um  modo  menos  controverso  o  construtivismo 

como um todo. 

 

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2.1 – Construtivismo em Kant 

 

O  termo  ‘construtivismo’  tem  origem  no  verbo  latino  struere,  que  significa 

organizar,  dar  estrutura.  Assim,  desde  sua  origem  esta  palavra  assume 

implicitamente a existência de um sujeito que organiza. A diferença é clara quando a 

comparamos  com  o  verbo  ‘formar’,  ou  quando  comparamos  o  termo  ‘construção’ 

com o termo ‘formação’. Uma estrutura que se forma, não pressupõe um sujeito que 

a organiza. Uma estrutura que se constrói, pressupõe a atividade de um sujeito.  

Ainda que muitas vezes encontremos referências ao suposto caráter precursor 

da filosofia de Sócrates em relação ao construtivismo, ou ainda de Epicteto, de Vico, 

ou até da teoria platônica da hipótese superior, para uma correta compreensão desta 

corrente de pensamento na  filosofia contemporânea é necessário recorrer à obra de 

Immanuel Kant. 

A  inversão do  sentido da  relação  entre  sujeito  e objeto presente na obra de 

Kant  é  usualmente  (BROUWER,  1983;  HACKING,  1999;  MAHONEY,  2004; 

PHILLIPS, 1995; RYCHLAK, 1999; ROCKMORE, 2005; VON GLASERSFELD, 1984;) 

considerada a  raiz do  construtivismo  contemporâneo. Tradicionalmente, a  filosofia 

ocidental pensava o conhecimento como uma determinação do  sujeito cognoscente 

pelo  objeto  conhecido. Kant  (2001)  apresenta  o processo de  conhecimento  como  a 

organização ativa por parte do sujeito do material disperso e fragmentário que nos é 

fornecido pelos sentidos,  impondo a este as  formas da sensibilidade e as categorias 

do  entendimento.  Ou  seja,  para  o  construtivismo,  o  sujeito  constrói  suas 

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representações  dos  objetos,  e  não  recebe  passivamente  impressões  causadas  por 

estes. O sujeito para o construtivismo é proativo, é foco de atividade do universo, e 

não um recipiente passivo de estímulos do ambiente. 

O construtivismo só pode ser adequadamente compreendido a partir da idéia 

que  Kant  chamou  de  “grande  luz”  e  que  de  fato  condicionou  toda  produção 

filosófica posterior  à  sua  obra. Esta  é  a distinção  entre  fenômeno  e  númeno. Para 

Kant,  o  conhecimento  sensível  não  nos  revela  as  coisas  como  são,  e  sim,  como 

aparecem  para  o  sujeito.  Por  isso  nos  dão  acesso  a  fenômenos.  Já  o  conhecimento 

intelectivo  é  faculdade  de  representar  aqueles  aspectos  das  coisas  que,  por  sua 

própria natureza, não podem  ser  captados por meio dos  sentidos, os númenos. São 

conceitos  do  intelecto,  por  exemplo,  os  de  possibilidade,  existência,  necessidade  e 

semelhança, que não derivam dos sentidos.  

  Assim, o que conhecemos do mundo são fenômenos, não númenos. Conhecemos 

o aparecer das coisas para nossa consciência, não a essência daquilo que acreditamos 

estar fora de nós:  ‘fenômeno’, ordinariamente, significa  ‘aparição’. Isso não  implica, 

obviamente, que não há um mundo  lá  fora, mas somente que não  temos acesso ao 

que este mundo é em si mesmo. As classificações corriqueiras de Kant como idealista 

são equivocadas e  foram de  resto contestadas pelo próprio. Nos “Prolegômenos” ele 

reapresenta sua posição sobre a questão do idealismo de forma inequívoca: 

 O  idealismo  consiste na  afirmação de que não  existem outros  seres excepto os seres pensantes; as restantes coisas, que julgamos perceber na  intuição, seriam apenas representações nos seres pensantes a que não corresponderia, na  realidade, nenhum objecto exterior. Eu, pelo 

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contrário,  afirmo:  são‐nos  dadas  coisas  como  objectos  dos  nossos sentidos e a nós exteriores, mas nada sabemos do que elas possam ser em si mesmas; conhecemos unicamente os seus fenômenos, isto é, as representações  que  em  nós  produzem,  ao  afectarem  os  nossos sentidos. Por conseguinte, admito que  fora de nós há corpos,  isto é, coisas que  ,  embora nos  sejam  totalmente desconhecidas quanto  ao que  possam  ser  em  si  mesmas,  conhecemos  mediante  as representações  que  o  seu  efeito  sobre  a  nossa  sensibilidade  nos procura, coisas a que damos o nome de um corpo, palavra essa que indica apenas o fenômeno deste objecto que nos é desconhecido, mas nem  por  isso,  menos  real.  Pode  a  isto  chamar‐se  idealismo?  É precisamente o seu oposto. (KANT, 2003, p.58) 

 

Para  Kant  (2001),  nossa mente  tem  uma  estrutura  dada,  que  enquadra  os 

dados da experiência em suas formas e categorias a priori. Desta forma, só podemos 

conhecer  em  si mesmos  aqueles  conceitos  que  são  resultado  de  uma  especulação 

racional. 

E  é  na  busca  pela  condição  de  possibilidade  da  ciência matemática  que  o 

termo  ‘construção’  começa a  ser utilizado  em Kant. Para ele, a  ciência em geral  se 

basearia num  tipo de  juízo que a um  só  tempo acrescenta algo de novo ao  sujeito 

(sintético) e também não depende da experiência, ou seja, é universal e necessário (a 

priori): este é o juízo sintético a priori. Todo Prolegômenos e toda Crítica da Razão Pura 

gravitam  em  torno  deste  problema  central.  Encontrar  o  fundamento  do 

conhecimento, para Kant, é explicar como são possíveis juízos sintéticos a priori. 

Os  juízos  sintéticos  a  priori  unem  a  aprioridade,  ou  seja,  universalidade  e 

necessidade,  com  a  fecundidade,  ou  seja,  a  sinteticidade.  Exemplos  seriam  as 

operações aritméticas, os juízos da geometria (como por exemplo, todo triângulo tem 

sua área calculada em função de sua base multiplicada por sua altura e dividida por 

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dois) e os  juízos da  física  (em  todas as mudanças do mundo  físico a quantidade de 

matéria  permanece  invariada).  Nestes  conceitos,  ultrapassamos  o  conceito  de 

triângulo ou de matéria para acrescentar‐lhes a priori algo que não pensávamos nele. 

Assim  temos  três  tipos de  juízos, e  três  fundamentos diferentes para eles. A 

verdade ou  falsidade de um  juízo  analítico  a priori é determinada pelo princípio da 

identidade e da não‐contradição uma vez que o sujeito e o predicado se equivalem, 

ou  seja,  pela  lógica.  A  verdade  ou  falsidade  de  um  juízo  sintético  a  posteriori  é 

determinada  pela  experiência  sensível.  Por  fim,  temos  que  responder  qual  é  o 

fundamento do juízo sintético a priori. 

Para  Kant  (2003),  é  a  capacidade  de  construção  que  torna  possível  o  juízo 

sintético  a priori, e portanto, a matemática. Esta precisa  ter  como  fundamento uma 

intuição pura, “na qual ela possa representar todos os seus conceitos in concreto e, no 

entanto,  a  priori,  ou,  como  se  diz,  construí‐los”  (KANT,  2003,  p.  48).  Quando 

demonstramos um teorema em geometria, compreendemos que não devemos seguir 

passo  a passo  aquilo que  se vê na  figura nem nos  apegarmos  ao  simples  conceito 

desta  para  apreender  suas  propriedades.  O  que  devemos  fazer  é  pensar  e 

representar, por nossos próprios conceitos, o objeto geométrico em questão, ou seja, 

construí‐lo. Construindo este objeto, podemos saber com segurança alguma coisa a 

priori  (independentemente da  experiência), pois  sabemos não  atribuir  a  este objeto 

senão aquilo que nós próprios colocamos nele: 

 

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Aquele que primeiro demonstrou o triângulo  isósceles (fosse ele Tales ou como quer que se chamasse) teve uma iluminação; descobriu que não tinha que seguir passo a passo o que via na figura, nem o simples conceito que dela possuía, para  conhecer, de  certa maneira, as  suas propriedades; que antes deveria produzi‐la, ou construí‐la, mediante o que pensava e o que representava a priori por conceitos e que para conhecer,  com  certeza,  uma  coisa  a  priori  nada  devia  atribuir‐lhe senão o que fosse consequência necessária do que nela tinha posto, de acordo com o conceito. (KANT, 2001, 17) 

 

Mas e quanto aos objetos presentes no mundo? Afirma Kant (2001) na Crítica 

que a razão vê só aquilo que ela própria produz segundo seu projeto, e que, com os 

princípios dos seus juízos ela deve estar à frente e obrigar a natureza a responder às 

suas  perguntas. Caso  contrário,  se  feitas  ao  acaso  e  sem  um  plano  prévio,  nossas 

observações não reconheceriam nem se ligariam entre si, portanto, não construiriam 

relações que unissem estes fenômenos na forma de leis. A razão procura na natureza 

o que põe nela, e necessita de um plano, ou seja, uma hipótese prévia: 

 ...a razão só entende o que produz segundo seus próprios planos; que ela  tem  que  tomar  a  dianteira  com  princípios,  que  determinam  os seus  juízos  segundo  leis  constantes  e  deve  forçar  a  natureza  a responder  suas  indagações  em  vez  de  se  deixar  guiar  por  esta;  de outro modo,  as  observações  feitas  ao  acaso,  realizadas  sem  plano prévio, não se ordenam segundo a lei necessária, que a razão procura e de que necessita. A  razão,  tendo por um  lado os  seus princípios, únicos a poderem dar aos  fenômenos concordantes a autoridade de leis  e,  por  outro,  a  experimentação,  que  imaginou  segundo  estes princípios,  deve  ir  ao  encontro  da  natureza,  para  ser  por  esta ensinada, é certo, mas não na qualidade de aluno que aceita  tudo o que o mestre afirma, antes na de juiz investido nas suas funções, que obriga as  testemunhas a  responder aos quesitos que  lhes apresenta. Assim,  a  própria  Física  tem  que  agradecer  a  revolução,  tão proveitosa, do seu modo de pensar unicamente à idéia de procurar na natureza  (e não  imaginar), de acordo com o que a razão nela pos, o que  nela  deverá  aprender  e  que  por  si  só  não  alcançaria  saber... (KANT, 2001, p.18) 

 

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Nesta passagem, Kant nos apresenta o que será posteriormente a essência do 

construtivismo e da revolução que ele provoca. Até então, se havia tentado explicar o 

conhecimento  supondo  que  era  o  objeto  (quer  empírico,  quer  ideal  como  idéias 

inatas) que determinava, num sujeito passivo, uma representação de si mesmo. Kant 

inverteu estes papéis, afirmando que não é o  sujeito que,  conhecendo, descobre as 

leis do  objeto, mas  sim,  ao  contrário,  que  é  o  objeto,  quando  é  conhecido,  que  se 

adapta  às  leis  do  sujeito  que  o  conhece.  Ou  seja,  é  o  sujeito,  na  atividade  de 

representar o objeto, que o enquadra, ativamente, nas formas a priori de sua mente, 

construindo a representação deste: 

 Até hoje admitia‐se que o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos; porém, todas as tentativas, para descobrir a priori, mediante conceitos,  algo  que  ampliasse  nosso  conhecimento, malogravam‐se com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se  resolverão  melhor  as  tarefas  da  metafísica,  admitindo  que  os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor  com  o  que desejamos,  a  saber,  a possibilidade de um  conhecimento  a priori desses objetos, que  estabeleça  algo  sobre eles antes de nos serem dados. (...) Se a intuição [dos objetos] tivesse que  se  guiar  pela  natureza  dos  objetos,  não  vejo  como  deles  se poderia conhecer algo a priori; se, pelo contrário, o objeto (enquanto objeto  dos  sentidos)  se  guiar  pela  natureza  da  nossa  faculdade  de intuição, posso perfeitamente representar essa possibilidade. (KANT, 2001, p.21‐22) 

 

Assim podemos indicar dois sentidos em que o termo ‘construção’ é usado em 

relação  à  filosofia kantiana. O primeiro, mais básico  e original,  é o que ocorre  em 

nossas  intuições empíricas e, por exemplo, nos é  lembrado por Longuenesse (1998), 

que indica que nossas representações dos objetos empíricos são construídos de forma 

automática, pelas estruturas inatas de nossa mente. Neste sentido, a mente consciente 

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é obrigada a construir representações do mundo que obedeçam estas leis. Boghossian 

(2006) chama este modelo de cookie‐cutter, pois a mente recortaria o material caótico 

dos sentidos impondo‐o limites de acordo com suas formas inatas. 

O segundo, mais geral e superficial, indica o processo autônomo de construção 

de hipóteses sobre a natureza para posterior teste experimental de sua validade, que 

vimos na última  citação de Kant. Novamente Longuenesse  (1998)  afirma que para 

Kant  os  conceitos  empíricos  são  dados  a  posteriori,  pois  construídos  a  partir  de 

representações singulares. 

A “revolução copernicana na  filosofia” de Kant  teve vários desdobramentos, 

gerando  interpretações  construtivistas  idealistas  (como  as  de  Fichte,  Schelling  e 

Schopenhauer), pragmatistas (como a de Hans Vaihinger) e realistas (como a de Karl 

Popper). Schopenhauer  (1950) afirma na primeira  frase de O Mundo como Vontade e 

Representação: “O mundo é uma representação minha.”. Hans Vaihinger (1924), em A 

Filosofia  do  “como‐se”,  defende  que  nossas  teorias  seriam  ficções  conscientes  cujo 

objetivo  não  é  alcançar  a  verdade  sobre  o  mundo,  e  sim,  orientar  nossas  ações 

eficientemente,  pragmaticamente.  Karl  Popper,  que  dá  o  nome  à  escola  filosófica 

fundada por ele de Racionalismo Crítico em homenagem ao criticismo kantiano, julga 

(POPPER, 1977) sua filosofia uma interpretação realista da filosofia kantiana.  

Resumindo  a  posição  kantiana  em  relação  às  questões  investigadas  aqui, 

podemos afirmar que ela dá as respostas do realismo, criticismo e construtivismo. 

 

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19

2.2 – Construtivismo em Piaget 

 

Jean  Piaget,  através  do  desenvolvimento  de  sua  Epistemologia  Genética,  foi 

aquele que introduziu o termo ‘construtivismo’ no século XX (VON GLASERSFELD, 

1998),  em  sua  obra  Logique  et  connaissance  scientifique,  de  1967.  A  Epistemologia 

Genética é a tentativa efetuada por Piaget (1973) de abordar cientificamente algumas 

questões da teoria do conhecimento através da investigação da gênese das estruturas 

cognitivas do sujeito, problema central de sua obra. Aceitando a distinção de Leibniz 

entre verdades de razão e verdades de fato, Piaget distingue conhecimento formal de 

conhecimento empírico. As afirmações das ciências formais não obtêm seu valor de 

verdade através de observações empíricas; são verdades necessárias e universais. Já 

as afirmações das ciências empíricas adquirem seu valor de verdade em  função da 

possibilidade de serem verificadas à luz dos fatos que enunciam. Esses dois tipos de 

conhecimento  são  irredutíveis. Assim  sendo,  as  verdades  de  fato  não  podem  ser 

alcançadas por algum tipo de dedução lógica a priori já que são contingentes, nem as 

verdades  formais podem  ser  alcançadas  a partir da  experiência  empírica, pois  são 

necessárias. No entanto, apesar dessa  irredutibilidade, os  fenômenos  físicos podem 

ser  representados  e  inclusive  antecipados por modelos matemáticos. Mas de  onde 

vêm esses dois tipos de conhecimento?  

As respostas  tradicionais a esta pergunta são as empiristas e as racionalistas. 

Para  o  empirismo,  que  defende  aquilo  a  que  posições  construtivistas  se  referem 

geralmente  como  ‘objetivismo’,  a  origem  do  conhecimento  estaria  na  realidade;  o 

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objeto  “imporia”  suas  formas  de manifestação  a  uma mente  encarada  como  um 

receptáculo passivo. Para o racionalismo, o conhecimento é inato e sua evolução seria 

apenas  atualização  de  estruturas  pré‐formadas.  Piaget  postula  a  terceira  resposta 

possível, que é a construtivista. Para ele, a construção do conhecimento exige uma 

interação necessária entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido. É o sujeito que, 

ativo e a partir da ação, constrói suas  representações de mundo  interagindo com o 

objeto do conhecimento. A diferença principal do construtivismo piagetiano para o 

construtivismo kantiano é que para Piaget, além das representações dos objetos, nós 

construímos  também  as  próprias  estruturas  da  mente  através  das  quais 

posteriormente construiremos as representações dos objetos. 

Piaget  (1979)  desenvolve  um  modelo  de  desenvolvimento  cognitivo 

construtivista,  ricamente  sustentado  por  dados  empíricos,  que  apresenta  o  sujeito 

como artífice principal, através da sua ação no mundo, de suas próprias estruturas 

cognitivas. Dois dos conceitos principais de Piaget, que esclarecem a forma como ele 

explicava o processo de construção do conhecimento por parte do sujeito, são os de 

assimilação  e  acomodação.  Quando  uma  criança  ou  qualquer  pessoa  tem  uma 

experiência  que  não  se  coaduna  com  seus  esquemas  e  teorias,  ela  primeiramente 

tenta  assimilar  essa  experiência  em  seus  esquemas  existentes.  No  entanto,  se  ela 

percebe  que  suas  explicações  e  predições  são  repetidamente  desmentidas  pela 

experiência, prevalece a tendência de o esquema se modificar de modo a acomodar‐se 

a  essa  nova  informação.  É  fundamental  perceber  aqui  o  papel  do  ambiente  no 

processo de  construção do  conhecimento. Ao  se  opor  às  expectativas do  esquema 

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para o funcionamento do mundo, a informação que vem do ambiente se revela como 

independente  da  vontade  e  das  crenças  do  sujeito  do  conhecimento.  Piaget, 

claramente, é um realista. De  forma semelhante a Popper  (1975), ele acredita que o 

mundo vai moldando nossos esquemas quando os desmente seguidamente, exigindo 

uma nova acomodação.  

Muitos autores que se consideram ligados à tradição construtivista confundem 

o  construtivismo,  que  é  uma  tese  epistemológica,  com  o  idealismo,  que  é  uma  tese 

ontológica.  O  construtivismo  nos  oferece  uma  resposta  para  como  obtemos 

conhecimento. O  idealismo  e  o  realismo  nos  oferecem  respostas  sobre  a  natureza 

daquilo que conhecemos. Como o construtivismo  rejeita o objetivismo,  tipicamente 

muitos  autores  acabam  concluindo  que  essa  rejeição  equivale  a  uma  rejeição  ao 

realismo, o que é um equívoco. É o que observa Held  (1998, p.194) quando afirma 

que os construcionistas sociais (uma das correntes a serem avaliadas neste capítulo) 

tipicamente presumem que um processo de conhecimento ativo por parte do sujeito, 

que  está  implícito no próprio  termo  ‘construcionismo’, necessita de uma ontologia 

anti‐realista  para  se  sustentar. Discordando  desta  interpretação,  ela  lembra  que  a 

própria  epistemologia  genética  de  Piaget  é  uma  forma  de  construtivismo  que  se 

baseia numa ontologia e epistemologia realistas, ao mesmo tempo em que defende a 

possibilidade de acesso racional do sujeito a uma realidade objetiva e independente.  

Se por um lado a definição de Piaget como realista é clara e não‐problemática, 

não  podemos  dizer  o  mesmo  em  relação  à  definição  de  sua  posição  acerca  do 

inatismo. Por mais que para Piaget não devamos falar em estruturas inatas, isto está 

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tão  distante  quanto  possível  da  crença  num  sujeito  passivo,  construído  pelo  seu 

ambiente.  Para  Piaget,  somos  ativos  quando  interpretamos  a  experiência  para 

assimilá‐la aos nossos esquemas e teorias, e também somos ativos quando mudamos 

nossos esquemas e teorias de forma a acomodarem‐se à realidade. Um sujeito ativo é 

o centro da  teoria piagetiana, o que a opõe  totalmente – como veremos adiante – à 

nova teoria ambientalista contemporânea, o construtivismo social. Mas nesse sujeito 

não encontraríamos nenhuma estrutura inata: 

 Cinquenta  anos de  experiências  fizeram‐nos  saber  que  não  existem conhecimentos  resultantes  de  um  registro  simples  de  observações, sem uma estruturação devida às atividades do sujeito. Mas  também não existem (no homem) estruturas cognitivas a priori ou inatas: só o funcionamento da inteligência é hereditário e só engendra estruturas por  uma  organização  de  ações  sucessivas  exercidas  sobre  objetos. Daqui  resulta  que  uma  epistemologia  conforme  os  dados  da psicogênese não poderia ser empirista nem pré‐formista, mas consiste apenas num construtivismo, com a elaboração contínua de operações e  de  estruturas  novas.  O  problema  central  é,  então,  compreender como  se  efetuam  estas  criações  e  porque,  visto  resultarem  de construções  não  pré‐determinadas,  se  podem  tornar  logicamente necessárias, durante o desenvolvimento. (PIAGET, 1987, p.51) 

 

Nesta passagem, Piaget evita a palavra  inato, e usa em seu  lugar hereditário e 

pré‐formista, alternando a defesa e o ataque à existência de algo inato no ser humano. 

Apesar disso,  esta passagem mostra que  é  evidente a necessidade de ao menos  se 

postular algo como “o funcionamento da inteligência” geral como inato. O problema, 

como  enfatizaram  Jerry  Fodor  (1987)  e Noam  Chomsky  (1987),  dois  dos maiores 

defensores  do  inatismo  contemporâneo,  é  que  nenhum  construtivista  define 

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claramente,  de  forma  a  tornar  falsificável,  o  que  seria  tal  “mecanismo  geral  de 

inteligência”. Piaget o resume aos mecanismos de assimilação e acomodação. 

Um dos mais conhecidos argumentos de Piaget contra o empirismo é aquele 

no  qual  ele mostra  que  o  objetivismo  assenta‐se  sobre  a  idéia  de  cópia.  Se  para 

conhecer precisamos copiar, para copiar antes precisamos conhecer o que se copia, o 

que  seria  um  paradoxo.  Como  apontei  anteriormente  (CASTAÑON,  2007),  esta 

crítica poderia ser falsa em relação ao empirismo na medida em que ele defende uma 

espécie de impressão passiva fixada na mente do sujeito pelo objeto (como se dá, por 

exemplo, com um  filme numa  fotografia ou com uma  fita magnética cassete numa 

gravação).  Mas  provavelmente  esta  crítica  não  é  falsa  em  relação  ao  próprio 

construtivismo piagetiano. 

Fodor (1987) afirma que é surpreendente ver Piaget afirmar que alguém pode 

aprender  um  novo  conceito  através  da  ação  motora.  Como  ele  bem  lembra  ao 

resgatar um antigo argumento platônico, não podemos aprender um conceito novo a 

não ser que tenhamos antes a capacidade de aprendê‐lo, seja porque o esquecemos e 

ao aprender lembramos (e neste caso  já o tínhamos), seja porque o hipotetizamos (e 

neste caso de alguma forma já o tínhamos ao menos em potência). 

Na verdade, não se pode, em nenhuma forma de construtivismo, prescindir de 

alguma estrutura ou capacidade  inata  (CASTAÑON, 2007). Excluindo a posição de 

Fodor (1975) que é radicalmente inatista, a divergência entre o inatismo cognitivista e 

o  construtivismo  piagetiano  –  como  entre  Chomsky  (1987)  e  Piaget  (1987)  –  é 

predominantemente  de  grau:  ambos  reconhecem  os  processos  de  construção  e  a 

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existência de instâncias inatas. O problema se torna então determinar qual é o nível 

de elaboração das estruturas e capacidades com as quais seres humanos nascem, e o 

quanto  das  habilidades  desenvolvidas  é  fruto  de maturação  biológica:  estaríamos 

determinando então o que e o quanto é fruto de construção.  

Como afirmou Piatelli‐Palmarini  (1987), o núcleo duro do programa de pesquisa 

racionalista ou “chomskyano”, consiste em não atribuir qualquer estrutura intrínseca 

ao ambiente: 

 “Só  existem  leis de  ordem provindo do  interior; quer dizer,  toda  a estrutura  ligada à percepção, quer  seja de  fonte biológica,  cognitiva ou outra, é imposta ao ambiente pelo organismo e não extraída deste. As  leis  desta  ordem  são  concebidas  como  relativas  à  espécie, invariáveis através das épocas, dos indivíduos e das culturas.” (1987: 32) 

 

Mas  como  podemos  intuitivamente  perceber,  o  texto  acima  poderia  ser 

atribuído  tanto  ao  construtivismo  piagetiano  como  ao  inatismo,  porque  o  que 

distingue  os  dois  é  uma  questão  de  ênfase,  não  de  natureza.  É  possível  haver 

inatismo  sem  construtivismo,  sem  que  isto  se  revele  incoerente  (embora  pouco 

verossímil). Mas  é  impossível  haver  construtivismo  coerente  sem  algum  tipo  de 

inatismo,  em  relação  a  um  estágio  inicial  a  partir  do  qual  ou  contra  o  qual 

construímos  nosso  conhecimento,  ou  ainda  sem pressupor um  inatismo potencial, 

condicional,  em  relação  às  capacidades  de  determinado  organismo  em  obter 

estruturas e conteúdos. Nosso conhecimento pode ser em parte, ou na maior parte, 

construído, mas isto implica potencial genético para tal. 

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Mas Piaget era  fortemente  construtivista, e  rejeitava qualquer posição  inatista 

pré‐formista.  Em  um  argumento  célebre,  Piaget  (1987b)  parte  dos  pressupostos 

evolucionistas do inatismo para justificar a existência de capacidade de construção de 

novas  estruturas  cognitivas.  Em  resumo,  se  supusermos  que  todas  as  estruturas 

cognitivas humanas são inatas e em última instância inscritas no programa genético 

de um indivíduo, como poderemos explicá‐las? O inatismo tem que responder sobre 

os mecanismos gerais que permitiram a um programa genético de  tal ordem  ter se 

reunido.  Para  Piaget  (1987b),  o  processo  de  mutação  aleatória  defendido  pelos 

neodarwinistas  além  de  ineficiente,  ainda  não  possui  explicação,  e  condenaria  as 

estruturas inatas da razão a uma condição contingente, quando seu caráter distintivo 

é  a  necessidade. Trabalhando  sobre  este ponto, Hillary Putnam  (1987)  afirma  que 

Chomsky deliberadamente afasta a questão posta por Piaget sobre o que poderia ser 

a evolução de um modelo  inato de  linguagem. Como ele chegou evolutivamente a 

ser o que é? Defendendo a posição de Piaget, ele afirma que uma resposta possível é: 

a  linguagem  primitiva  foi  fruto  de  uma  invenção,  efetuada  por  um  membro  da 

espécie fora do comum. Como esta  trazia vantagens evolutivas óbvias,  foi utilizada 

por  todos  aqueles  membros  da  espécie  que  foram  capazes  de  adquirir  seus 

rudimentos,  isto  fez  com  que  aqueles  de  lóbulos  esquerdos  maiores  fossem 

progressivamente selecionados, procriavam, e assim por diante. Qualquer coisa que 

não existe no programa,  lembra Piaget  (1987),  tornou‐se  tal por auto‐organização e 

auto‐regulação.  

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Ou  seja,  para  Piaget  (1987),  tem  de  haver  no  processo  de  evolução  da  vida 

reunião de características ou auto‐organização sem a ajuda de programas genéticos, 

senão  seríamos  forçados  a  admitir  que  tudo  o  que  existe  no  código  genético  do 

homem estava presente nos primeiros vírus e protozoários: 

 Se  estas  [as bases da  lógica  e da matemática]  fossem pré‐formadas, isto significaria, pois, que o bebê, ao nascer, já possuiria virtualmente tudo o que Galois, Cantor, Hilbert, Bourbaki ou MacLane puderam atualizar depois. E como o homenzinho é ele próprio uma resultante, seria preciso  remontar aos protozoários e aos vírus para  localizar o foco do “conjunto dos possíveis. (PIAGET, 1987, p.53‐54) 

 

Piaget, assim como Kant, é essencialmente  realista, criticista e construtivista. 

Mas  a  despeito  da  introdução  do  termo  ‘construtivismo’  no  século  XX  (VON 

GLASERSFELD,  1998)  efetuada  por  ele  e  de  sua  herança  kantiana,  este  termo  foi 

apropriado  por  formas  contemporâneas  de  idealismo  e  relativismo.  É  o  que 

passaremos a ver agora. 

 

 

2.3 – Outros construtivismos contemporâneos 

 

O  construtivismo  contemporâneo  teve desdobramentos nas  ciências  formais, 

humanas  e  aplicadas,  indo muito  além  dos  limites  da  epistemologia  genética. Da 

matemática  à  lógica,  da  psicologia  à  sociologia,  da  educação  à  psicoterapia  e  à 

neurociência.  Aqui  serão  descritas  sumariamente  as  principais  correntes 

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contemporâneas que fazem uso do termo, com o objetivo de estabelecer como elas se 

posicionam em relação às questões  levantadas no  início do capítulo e  identificar, se 

existirem,  características  em  comum  entre  elas  que  permitam  definir  o 

construtivismo como um todo, assim como diferenciar o construtivismo social destas 

outras derivações ou utilizações do termo. 

 

2.3.1. Construtivismo Radical 

Uma  das  principais  correntes  do  construtivismo  contemporâneo  é  o 

Construtivismo  Radical,  defendido  por  teóricos  como  Ernst  von  Glasersfeld,  Paul 

Watzlawick  e Heinz  von  Foerster. O  construtivismo  radical  é  uma  abordagem  ao 

problema do conhecimento que parte do pressuposto de que este não é nada mais do 

que  uma  construção  que  fazemos  com  base  nos  dados  subjetivos  de  nossa 

experiência. Nós  viveríamos  somente  no mundo  que  construímos,  e  não  teríamos 

nenhuma  base  objetiva para de nossas próprias  construções. Assim,  se  o  sujeito  é 

quem determina absolutamente o objeto dentro da relação de conhecimento; ou seja, 

se o que nós  chamamos de  realidade  é  somente  aquilo que  construímos  como  tal, 

nossas construções acerca do mundo não sofrem a influência de um mundo externo 

objetivo e  independente. Em outras palavras, o construtivismo radical é uma forma 

contemporânea de solipsismo, sendo um tipo especial de idealismo. Esta avaliação é 

também compartilhada com Efran e Fauber (1997), que sustentam que esta corrente 

é  idealista,  não  se  preocupando  com  a  natureza  última  da  realidade. 

Diferentemente dos “construtivismos sociais”, esta abordagem de fato se mantém fiel 

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à  tese  do  sujeito  construtor  de  suas  representações, mas  como  seu  próprio  nome 

indica, de forma radicalmente fiel, o que a leva a consequências muito distintas das 

suas homônimas sociais. 

Apesar  de  possuir  influência  pouco  relevante  na  filosofia  da  ciência,  assim 

como nas neurociências (MATURANA e VARELA, 1987), e de ter sua  influência na 

psicologia  restrita  a  um  pequeno  campo  da  psicoterapia  (NEIMEYER,  1997; 

CASTAÑON,  2005),  o  construtivismo  radical  tem  incontestável  influência  na 

pedagogia  contemporânea,  na  qual  o  nome  de  Ernst  von Glasersfeld  ocupa  lugar 

proeminente. Glasersfeld  (1998) pode  ser  visto  como propondo uma  interpretação 

solipsista  radical do pensamento de Piaget. Ele afirma que a  idéia‐chave de Piaget 

seria que o “que chamamos de conhecimento” não tem como propósito a produção 

de  representações  de  uma  realidade  independente, mas  somente  uma  função  de 

adaptação ao meio‐ambiente. Glasersfeld  interpreta o pensamento piagetiano como 

um  “irrevogável  rompimento”  (1998,  p.  19)  com  a  tradição  epistemológica  da 

civilização  ocidental,  e  afirma  que  segundo  Piaget  não  deveríamos  mais  buscar 

atingir  o  que  ele  chama  de  “visão  do mundo  real”.  Como  tipicamente  se  vê  em 

autores pós‐modernos, Glasersfeld recorre de forma superficial e equivocada à Física 

Quântica para “provar” de que  tal  coisa  seria  impossível. Ele acredita que quando 

Piaget  fala em  interação, “isso não  implica um organismo que  interage com objetos 

como  eles  realmente  são, mas  antes,  um  sujeito  cognitivo  que  está  lidando  com 

estruturas  perceptivas  e  conceituais  anteriormente  construídas”  (VON 

GLASERSFELD, 1998, p.21). A tradução desta afirmação é que Glasersfeld parece de 

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fato  acreditar  que Piaget defende  que  os  sujeitos não  têm  acesso  a uma  realidade 

independente  de  suas  próprias  mentes.  Em  texto  anterior,  no  entanto,  ele  não 

demonstra  convicção  sobre  a  posição  ontológica  de  Piaget  (VON GLASERSFELD, 

1984, p. 25), quando afirma que esta é um tanto “ambígua”, e que às vezes Piaget dá 

a  impressão  de  estar  comprometido  com  o  realismo  metafísico.  Glasersfeld  tem 

obviamente todo o direito de defender a posição que bem entender, mas não parece 

razoável interpretar a obra de um autor contra suas próprias palavras. Afirmar que a 

posição piagetiana é construtivista radical consiste em grave equívoco. 

Pode parecer difícil aceitar que é realmente um  idealismo solipsista o que os 

construtivistas  radicais  querem  afirmar  com  sua  proposta  epistemológica.  Vamos 

então seguir os argumentos de Glasersfeld e Foerster expostos em obra de referência 

da  corrente,  “The  Invented  Reality”,  editado  por  Paul Watzlawick,  para  entender 

melhor  o  que  os  levam  a  adotar  esta  tese.  Criticando  o  que  chama  de  ‘realismo 

metafísico’, que ele identifica com uma de suas conseqüências, a adoção da teoria da 

verdade como correspondência  (que denomino aqui  ‘realismo semântico’, seguindo 

Niiniluoto,  1999), Glasersfeld  (1984)  usa  uma  de  suas  costumeiras metáforas  para 

distinguir a noção de conhecimento ‘match’ da de conhecimento ‘fit’ (que poderíamos 

respectivamente  traduzir neste contexto por algo como “igualar” versus “encaixar” 

ou “ajustar”). Quando vemos uma declaração de conhecimento como algo que tenta 

se igualar ao objeto real, teríamos uma adesão ao realismo metafísico (1984, p.21); no 

entanto, quando com a palavra ‘conhecimento’ pretendemos nos reportar somente a 

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algo que  “se  ajusta”  (“something  fits”)  ao objeto  real  temos  em mente uma  relação 

diferente entre uma proposição e a realidade: 

 A key fits if it opens the lock. The fit describes a capacity of the key, not  of  the  lock. Thanks  to professional  burglars we  know  only  too well that there are many keys that are shaped quite differently from our own but which nevertheless unlock our doors. (p. 21) 

 

Para Glasersfeld, este é o sentido que a palavra  ‘fit’  recebe no darwinismo e 

neo‐darwinismo.  Uma  teoria,  assim  como  uma  mudança  genética  aleatória  num 

organismo, sobrevive se servir bem na solução de uma situação que é um obstáculo 

para alcançar uma meta. Nada disso  implicaria uma grande diferença  entre o que 

defende o construtivismo radical e o que defende o racionalismo crítico de Popper. O 

critério de verdade  como  correspondência  estaria  simplesmente  sendo  trocado por 

uma concepção pragmática de conhecimento e verdade. O trecho transcrito a seguir 

da mesma obra poderia ser atribuído inadvertidamente a Campbell ou a Popper sem 

dificuldades: 

 If we take seriously the evolutionary way of thinking, it could never be that organisms or ideas adapt to reality, but that reality, by limiting what  is  possible,  inexorably  annihilates  what  is  not  fit  to  live.  In phylogenesis, as in the history of ideas, ‘natural selection’ does not in any  positive  sense  select  the  fittest,  the  sturdiest,  the  best,  or  the truest, but it functions negatively, in that it simply lets die whatever does not pass the test (VON GLASERSFELD, 1984, p.22) 

 

No  entanto,  o  construtivismo  radical  não  fica  somente  nesta  defesa  de  um 

pragmatismo  evolucionista.  Duas  posições  claras,  uma  epistemológica,  outra 

ontológica, o distinguem das pressuposições tradicionais do construtivismo filosófico 

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de  Kant,  Piaget  ou  Popper.  A  primeira  é  a  negação  de  que  há  progresso  no 

conhecimento ou, particularmente, do conceito popperiano de verossimilhança. Não 

há como escolher dentre duas  teorias que “servem” para abrir uma porta, qual das 

duas  é mais  “semelhante”  à  fechadura.  Uma  teoria  que  funciona  não  nos  daria 

nenhuma pista sobre como o mundo objetivo é, somente daria o conhecimento de um 

caminho  viável  para  atingir  uma meta.  O  conhecimento  ordenaria  e  organizaria 

somente  o mundo  constituído  por  nossa  própria  experiência. A  diferença  para  a 

teoria popperiana da verossimilhança que hoje  tem em  Ilkka Niiniluoto  (1999)  seu 

representante mais  sofisticado,  é  que  para  o  racionalismo  crítico  a  quantidade  de 

previsões bem e mal sucedidas de uma teoria, se comparada com a quantidade das 

feitas  por  outra  teoria  que  igualmente  serve  para  atingir  uma meta,  oferece  um 

critério  racional  para  se  escolher  a  mais  verossimilhante.  Para  o  construtivismo 

radical, não existe meio de estabelecer a melhor entre duas teorias que “servem” para 

atingir uma meta, o que faz dele uma forma de relativismo, e até de ceticismo, que o 

afasta do criticismo. 

A segunda posição distintiva do construtivismo  radical, a ontológica, afirma 

que  de  fato  o  objeto  do  conhecimento  é  construído  por  nossa  mente. 

Epistemologicamente,  não  temos  qualquer  acesso  a  um  mundo  externo  à  nossa 

experiência.  Apesar  de  não  negar  nem  afirmar  a  existência  de  uma  “realidade” 

independente de nossa mente, o construtivismo radical nega qualquer tipo de acesso 

hipotético  a  esta.  Mesmo  considerando  que  o  mundo  “real”  dá  sinais  de  sua 

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existência ao não  se  comportar de acordo  com nossos  esquemas  construídos, nega 

(contraditoriamente) que ele tenha papel na construção do conhecimento: 

 This means  that  the  ‘real’  world manifests  itself  exclusively  there where our constructions break down. But since we can describe and explain  these  breakdowns  only  in  the  very  concepts  that we  have used  to  build  the  failing  structures,  this  process  can  never  yield  a picture of a world which we could hold responsible for their failure. (VON GLASERSFELD, 1984, p.39) 

 

Von  Foerster  (1984)  tenta  defender  a  mesma  posição  baseado  em  alguns 

resultados selecionados do  início da maré neurocientífica,  interpretados em  termos 

cibernéticos. Ele propõe  interpretar a cognição como um processo recursivo  infinito 

de  computação  (p.48),  uma  “infinite  recursion”  de  descrições  de  descrições,  sem 

referência  a  uma  realidade  independente.  Interpreta  aspectos  de  fenômenos 

sensoriais e perceptivos como o ponto cego, o escotoma, a interpretação auditiva de 

palavras  repetidas e a  transdução visual  como evidências de  impenetrabilidade do 

sistema nervoso  central. Um de  seus  argumentos, derivado de Varela  e Maturana 

(1987),  indica  que,  uma  vez  que  temos muito mais  receptores  sensoriais  voltados 

para dentro do organismo do que para fora, na razão de 100 para 1, somos em igual 

medida mais receptivos a mudanças no ambiente interno do que no externo. 

Mas  como  sair  do  solipsismo  estéril  a  que  parece  estar  condenada  esta 

posição?  Von  Foerster  oferece  um  argumento  inconsistente,  ancorado  no  que  ele 

denomina  ‘princípio da  relatividade’. Por  conta de  sua  estranha  formulação,  julgo 

adequada sua transcrição integral: 

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According  to  the  Principle  of  Relativity which  rejects  a  hypothesis when  it does not hold  for  two  instances  together, although  it holds for  each  instance  separately  (Earthlings  and  Venusians  may  be consistent  in  claiming  to  be  in  the  center  of  the universe,  but  their claims  fall  to pieces  if  they should, ever get  together),  the solipsistic claim  falls  to pieces when besides me  I  invent another autonomous organism. However,  it  should  be  noted  that  since  the  Principle  of Relativity is not a logical necessity, nor is it a proposition that can be proven  to be  either  true or  false,  the  crucial point  to be  recognized here  is  that  I  am  free  to  choose  either  to  adopt  this principle  or  to reject it. If I reject it, I am the center of the universe, my reality are my dreams  and my  nightmares, my  language  is monologue,  and my logic monologic.  If  I  adopt  it,  neither me  nor  the  other  can  be  the center of the universe. As in the heliocentric system, there must be a third that is the central reference. It is the relation between Thou and I,  and  this  relation  is  IDENTITY:  Reality  =  Community  (VON FOERSTER, 1984, p.59‐60) 

 

Assim vemos que a suposta saída do solipsismo apontada por Foerster ocorre 

quando  o  sujeito  do  conhecimento  “inventa  outro  organismo  autônomo”,  o  que, 

acompanhado  da  adesão  ao  princípio  da  relatividade,  cria  uma  “realidade”  para 

além da prisão solipsista (a qual, curiosamente, não é o mundo, inimigo número um 

do construtivismo  radical, mas essa comunidade  inventada na mente do sujeito do 

conhecimento).  Aqui  percebemos  que  Foerster  preferiria  ceder  antes  ao 

construtivismo  social  do  que  ao  realismo  crítico, mas  de  forma  alguma  consegue 

fugir ao solipsismo. 

Como  afirmado  anteriormente  (CASTAÑON,  2005),  se  vivemos  na  prisão 

solipsista de nossas próprias mentes, como os construtivistas radicais poderiam nos 

tentar convencer a adotar sua própria teoria? Como poderiam defender algo que eles 

próprios  sequer  podem  dizer  que  seja  verdadeiro  para  pessoas  que  não 

compartilham das mesmas “estruturas cognitivas”? Em outras palavras, se eles não 

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podem  defender  que  sua  teoria  é  melhor  que  as  outras,  se  ela  como  as  outras 

somente  “se  encaixa”,  “serve”,  porque  devem  aceitá‐la  aqueles  que,  em  seus 

constructos – tão úteis quanto os deles – acreditam que sua teoria é uma aproximação 

da verdade melhor do que a deles? 

Claramente  construtivista,  idealista  ou  cético  com  relação  à  ontologia  e  à 

epistemologia, o construtivismo radical se torna radical justamente quando dá o salto 

que separa a epistemologia construtivista da metafísica idealista, assumindo crenças 

extremas sobre o que é nosso objeto de conhecimento e sobre a  inacessibilidade de 

um  mundo  real  que  não  passa  para  esta  abordagem  de  uma  hipótese  sem 

importância.  

 

2.3.2. Construcionismo Social 

Construcionismo  Social  (e  não  construtivismo  social)  é  o  nome  que  passou  a 

designar  o  movimento  de  crítica  à  Psicologia  Social  “modernista”  que  tem  sua 

principal  referência  teórica  em  Kenneth  Gergen.  Em  dois  artigos  que  hoje  são 

referências básicas do movimento, “Social Psychology as History” de 1973, e “The Social 

Constructionist Movement  in Modern Psychology”, de 1985, Gergen (1973, 1985) traçou 

os  fundamentos e o panorama dessa abordagem da Psicologia Social, que se baseia 

em  três  grandes  pressupostos:  O  primeiro  é  que  a  realidade  é  dinâmica,  não 

possuindo  qualquer  tipo  de  essência  ou  leis  imutáveis.  A  segunda  é  que  o 

conhecimento  é  somente  uma  construção  social,  baseado  em  comunidades 

linguísticas. A  terceira  é que o  conhecimento  tem  consequências  sociais,  e que  são 

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estas que devem determinar se ele é válido ou não. O construcionismo social ataca 

todos  os  pressupostos  filosóficos  da  ciência  moderna,  como  o  otimismo 

epistemológico,  o  realismo  ontológico,  o  método  empírico  de  investigação  da 

realidade, a regularidade do objeto e o progresso científico (CASTAÑON, 2001).  

Para  os  autores  que  se  inserem  nesta  “virada  pós‐moderna”  da  psicologia 

social, esses princípios básicos da received view não só são negados como substituídos 

por  seus  opostos.  Kendall  & Michael  (1997)  avaliam  que  esse  movimento  “pós‐

moderno”  na  psicologia  social  possui  quatro  características  teóricas  básicas.  A 

primeira é a tentativa de dissolver o objeto tradicional da psicologia, substituindo a 

realidade da mente e do comportamento pelas convenções e recursos linguísticos que 

“constroem  socialmente”  o  mundo.  A  segunda  é  o  abandono  da  busca  por 

propriedades universais na pesquisa psicológica  e a adoção da  reflexão histórica  e 

contextual na psicologia. A terceira é a marginalização do método e sua classificação 

como  um  truque  retórico.  A  quarta  seria  o  abandono  da  grande  narrativa  do 

progresso da ciência rumo a uma verdade objetiva para a adoção de uma concepção 

de  conhecimento  como  fragmentário  e  contingente  histórica  e  socialmente.  Como 

afirma Zuriff  (1998), a essência da posição ontológica do construcionismo social é a 

proposição  de  que  não  há  realidade  objetiva  a  ser  descoberta;  seres  humanos 

constroem o conhecimento. Held (1998) acrescenta a isso o termo “socialmente”. Para 

o  construcionismo  social  nós  construímos  teorias  a  respeito  do  funcionamento  do 

mundo através da interação social. 

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  Esta posição  foi  reiteradamente defendida por Kenneth Gergen  (1985,  1992, 

1994) em  seus argumentos anti‐representacionistas. Por  representacionismo Gergen 

(1994) entende a doutrina que defende existir ou poder existir uma  relação estável 

entre as palavras e o mundo que elas  representariam. Adotando os argumentos de 

Wittgenstein  (1975)  e  Richard  Rorty  (1989),  Gergen  (1985,  1994)  defende  que  a 

linguagem nao passa de um  conjunto de  convenções. O  significado não deriva da 

referência  que  fazem  aos  objetos;  não  se  baseia  no  processo mental  ou  em  entes 

ideais. O significado é produzido através do contato social com outros habitantes da 

cultura na qual se está  inserido. Fora da  linguagem não há ponto de apoio objetivo 

nem  independente do pensamento; portanto, a  linguagem não representa nada fora 

dela mesma, é auto‐referente; estritamente falando, não há linguagem independente 

de múltiplos jogos de linguagem atrelados a diferentes formas de vida. Assim, para o 

construtivismo  social  (SHOTTER, 1992) nossas  teorias  socialmente  construídas não 

nos  aproximam  de  uma  descrição  mais  acurada  do  “mundo  como  ele  é”.  Isso 

acarreta em algum grau envolvimento com alguma  forma de anti‐realismo, seja no 

sentido ontológico, seja no sentido epistemológico (ou seja, ceticismo), uma vez que 

não  há  ou  não  se  pode  atingir  a  realidade  objetiva,  independente  do  sujeito  do 

conhecimento.  

  Held  (1998,  p.198)  classifica  duas  posições  ontológicas  dentro  do 

construcionismo  social,  uma  “mais  radical”  e  outra  “menos  radical”.  A  versão 

ontologicamente  “mais  radical” desse movimento  entende que o  sujeito  constrói o 

conhecimento  através  da  linguagem  e  com  nada  mais  que  ela;  sendo  assim,  a 

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linguagem  se  constitui na  realidade mesma para o  sujeito. Não existe  realidade para 

além  da  linguagem  construída  no  sujeito  em  suas  interações  sociais.  Essas 

manifestações de  anti‐realismo ontológico  estão presentes basicamente nos  autores 

deste movimento mais  influenciados pelo desconstrucionismo de  Jacques Derrida; 

dos quais dois representativos são Paul Richer (1992) e John Shotter (1992). 

Contrastando com a posição acima, teríamos a tese ontológica “menos radical” 

de alguns outros autores  como Gergen  (1985, 1992)  e Donald Polkinghorne  (1992), 

que consideram que a teoria construída sobre os objetos do conhecimento através da 

linguagem, intermedeia a relação entre o sujeito e o mundo de forma impermeável, 

de modo que a  realidade objetiva,  independente do sujeito, pode até existir, mas é 

inacessível. Aqui, apesar de não aderir a um estrito anti‐realismo ontológico, vemos o 

construcionismo social endossando um ceticismo ontológico e epistemológico. 

  Rom Harré  (1989)  é  um  dos  construcionistas  sociais mais  representativos  e 

mais preocupados com a questão ontológica. Ele afirma ter pretendido desenvolver 

uma  ontologia  que  pudesse  escapar  do  dilema  anti‐realista  exposto  acima. Harré 

(1989,  p.440)  assume  o  pressuposto  de  que  existem  duas  realidades  humanas 

distintas, ambas investigáveis cientificamente. Uma é fisiológica, a natureza biológica 

do ser humano e seus “sistemas de interação molecular”. A outra é nossa “natureza 

social” como elementos de uma rede de “interações simbólicas mediadas”. Para ele, a 

Psicologia  precisa  tratar  os  processos  fisiológicos  e  as  interações  sociais  como 

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ocorrentes  em  realidades  independentes,  reconhecendo  que  sua  posição  consiste 

num novo dualismo.  

  Assim, para a natureza biológica do homem, crê Harré (op. cit.), o tratamento 

das  pessoas  como  indivíduos  seria  adequado.  Mas  para  a  natureza  social  esse 

tratamento seria inadequado, pois as pessoas não seriam mais do que “nós numa rede, 

nódulos  numa  estrutura,  elementos  num  coletivo”  (1989,  p.440).  Ele  defende  que, 

tomados de um ponto de vista biológico, indivíduos podem ter propriedades únicas, 

como  átomos  isolados,  mas  tomados  coletivamente,  os  atributos  de  uma  pessoa 

somente podem existir em virtude de suas relações com outras. 

  Harré (1989) sabe que esta é uma ontologia radical. Ele pretende, ao adotá‐la, 

se  opor  ao  que  denomina  “ontologia  cartesiana”,  que  seria  a  ontologia  das  ciências 

cognitivas. Enquanto a ontologia do construcionismo social de Harré define o objeto 

da psicologia como sendo as  interações sociais, a “ontologia cartesiana” proporia que 

existe uma substância mental, onde se dão os processos psicológicos. Uma conclusão 

possível diante dos argumentos expostos é a de que a ontologia proposta por Harré 

nega a existência da mente humana como entidade real. Isto se pode depreender da 

estranha afirmação feita por ele em outra obra (1984), de que “devemos começar com 

o  pressuposto  de  que  o  local  primário  dos  processos  psicológicos  (em  ambos  os 

sentidos temporal e lógico) é coletivo antes que individual” (1984, p. 4 e 5). 

  Gergen (1989) também defende que o construcionismo social é outra revolução 

em  curso  na  psicologia,  que  se  contraporia  ao  cognitivismo  e  à  sua  ontologia  e 

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epistemologia, que se comprometeria com os princípios de uma metafísica dualista 

cartesiana,  onde  a mente  deve  funcionar  como  espelho  do mundo. Gergen  (1989) 

formula  sua versão para uma  “revolução  epistemológica” na psicologia,  o que  ele 

chama  de  “epistemologia  social”,  partindo  do  princípio  de  que  o  local  do 

conhecimento não é mais visto como sendo a mente individual, mas sim os padrões 

das  narrativas  sociais.  Ele  procura  explicar  esta  afirmação  argumentando  que  ao 

abandonarmos o  foco de nossa  concentração na mente e no mundo e o dirigirmos 

para  o problema da  relação  entre  as palavras  e  o mundo, mudaríamos  também  a 

atenção antes dirigida às “proposições em nossa cabeça” (p.471) para as proposições em 

nossa linguagem escrita e falada. Partindo do pressuposto de que a linguagem não é 

privada,  mas  por  definição  deve,  sendo  social,  permitir  a  comunicação,  Gergen 

acredita poder concluir que as proposições de conhecimento não são conquistas da 

mente individual, mas produtos sociais. 

Podemos  dizer  com  John Maze  (2001),  que  o  construcionismo  social  é  na 

verdade  um  desconstrucionismo,  incapaz  de  afirmar  qualquer  coisa  a  respeito  de 

qualquer coisa em virtude de seu anti‐representacionismo e seu argumento de que o 

“objetivismo”  (que ele confunde com o  realismo) é  inerentemente autoritário. Uma 

das muitas contradições internas desta abordagem se dá quando, embora aceite que 

toda  teoria  epistemológica  coerente  deva  valer  para  si mesma,  o  construcionismo 

social  nega  que  qualquer  assertiva  possa  ser  verdadeira,  assim  como  nega  existir 

realidades  independentes  a  serem  referidas por  essas  assertivas. No  entanto,  trata 

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dos  discursos  como  tendo  existência  objetiva  e  assume  que  sua  própria  assertiva 

sobre  o discurso  é  verdadeira. Para uma  extensa  avaliação das  contradições desta 

abordagem, remeto a meu estudo anterior “Psicologia Pós‐moderna?” (CASTAÑON, 

2007b). 

Se tomamos por posições ontológicas e epistemológicas do construtivismo as 

vistas em Kant e Piaget, podemos afirmar que o construcionismo social está muito 

longe de fazer parte desta tradição filosófica. O realismo é por ele rejeitado tanto em 

termos epistemologicos quanto ontológicos. Mesmo a definição da abordagem como 

idealista  fica  comprometida  pela  estranha  posição  acerca  do  sujeito,  que  a 

compromete  mais  ainda  em  relação  ao  construtivismo  tradicional.  No 

construcionismo  social,  o  sujeito  está  totalmente  dissolvido  na  rede  de  relações 

linguísticas na qual está  inserido e que o constrói, e não é construída por ele. Caso 

considerássemos esta  corrente  construtivista, estaríamos diante de um caso bizarro 

de  construtivismo  sem  mundo  nem  sujeito,  onde  quem  constrói  são  as  redes 

linguísticas ou  jogos de  linguagem  (Rychlak, 1999), que se  tornam assim entidades 

autônomas  de  sentido  questionável  e  aspectos  quase místicos.  Se  o  que  há  para 

conhecer é  só a  linguagem e a  linguagem constrói o  sujeito, poderíamos classificar 

essa abordagem até mesmo como objetivista. Se não há mundo ou não há mundo a 

conhecer, cética. O caráter construtivista do construcionismo social precisa ser bem 

clarificado para não dar azo a confusões reconstrutivas. 

 

 

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41

2.3.3. Socioconstrutivismo 

O  Socioconstrutivismo  é  uma  abordagem  da  psicologia  contemporânea,  com 

ênfase na psicologia do desenvolvimento, que tem recebido denominações variadas, 

algumas vezes ‘Socioculturalismo’, outras ‘Construtivismo Social’. Com o objetivo de 

diferenciá‐lo  da  abordagem  da  sociologia  do  conhecimento  que  é  objeto  desta 

dissertação, escolhemos aqui para designá‐lo o termo ‘socioconstrutivismo’. 

James Wertsch (1998) define como objetivo da abordagem socioconstrutivista 

da Psicologia a explicação das relações entre o funcionamento da mente humana e as 

situações  culturais,  institucionais  e históricas nas quais  este  funcionamento ocorre. 

Esta  abordagem  rejeita  a  noção  de  que  o  local  da  obtenção  do  conhecimento  é  o 

indivíduo,  adotando  uma  das  reivindicações  básicas  do  strong  programme,  o 

construtivismo social, que é a de que o conhecimento é uma construção social. 

Ainda  segundo Wertsch  (1998),  podemos  afirmar  os  dois  conceitos  básicos 

definidores da pesquisa socioconstrutivista são os de ação humana e de mediação. Para 

ele, o objeto da pesquisa  socioconstrutivista  é  a  ação humana. Mas  essa  ação para 

Wertsch  e os  socioconstrutivistas pode  ser  externa bem  como  interna,  assim  como 

pode  ser  conduzida  por  grupos  ou  indivíduos.  Esta  abordagem  pretende  se 

contrastar  com  outras  unidades  que  encontramos  na  psicologia,  como  atitudes  de 

descrição e interpretação, conceitos, estruturas linguísticas e de conhecimento, entre 

outras. No  entanto,  a  verdade,  como  reconhece  o  próprio Wertsch  (1998),  é  que: 

“...uma das coisas que  se  torna clara na categoria da ação é que ela parece  ser um 

tanto  ‘incerta’”  (1998,  p.60).  Essa  incerteza  faria  com  que  muitas  vezes  aqueles 

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pesquisadores que a adotam como objeto de pesquisa se percam, e acabem adotando 

outras categorias correlatas. 

A abordagem socioconstrutivista é desenvolvida basicamente a partir da obra 

do psicólogo russo Lev Vygotsky, enfatizada em seus aspectos histórico‐culturalistas. 

Vygotsky,  influenciado  por  Marx  e  Spinoza,  tentou  encontrar  uma  resposta  de 

caráter  nuclear  para  as  funções  psicológicas  superiores  humanas  que  evitasse  o 

dualismo  mente‐corpo.  Acreditou  realizar  esta  tarefa  aplicando  o  materialismo 

histórico  ao  estudo  do  desenvolvimento  do  homem,  pretendendo  explicar  a 

consciência mediante  a  história  da  consciência,  a  conduta mediante  a  história  da 

conduta, e assim por diante. 

O  modelo  de  aprendizagem  de  Lev  Vygotsky  (1984)  representa  uma 

alternativa “marxista” na psicologia à concepção construtivista piagetiana  centrada 

no  indivíduo.  Para  o  autor  russo,  o  desenvolvimento  biológico  e  psicológico  dos 

primatas superiores mantém um corte qualitativo com o desenvolvimento humano 

infantil:  as  funções  psicológicas  naturais  que  caracterizariam  aqueles  e  as  funções 

psicológicas superiores, que apareceriam no ser humano. Para ele, a psicologia havia, 

até  sua  época,  reduzido os processos psicológicos  complexos  aos  elementares  (por 

exemplo,  ao  reflexo  ou  à  conexão  estímulo‐resposta)  e  as  funções  psicológicas 

superiores às naturais  (por exemplo a memória  simbólica à memória natural).  Isso 

quando não  foram,  ao  contrário,  consideradas  espirituais  e não‐determinadas pela 

evolução e pela história. Para Vygotsky, as funções psicológicas superiores são fruto 

do desenvolvimento cultural, não do biológico. 

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43

Coll,  Palacios  &  Marchesi  (1996)  nos  mostram  que,  partindo  do  modelo 

dominante na psicologia soviética, a reflexologia pavloviana, Vygotsky constrói um 

modelo em que o homem controla estímulo (E) e resposta (R) ativamente, impondo‐

lhes  sua  “vontade”  e  criando  um  sistema  complexo.  Ele  pretende  desvelar  as 

características  dessas  funções  psicológicas  superiores  partindo  da  investigação  do 

que  denomina  condutas  vestigiais.  Estas  últimas  seriam  condutas  primitivas, 

características dos primórdios da espécie, que ainda podemos encontrar na conduta 

do ser humano atual. Segundo Vygotsky (1984), elas nos explicariam o grande passo 

que representa a superação das funções psicológicas básicas, sem precisar extrapolar 

as leis biopsicológicas da conduta animal. 

A conduta de que Vygotsky se serve para seu argumento é a do mecanismo 

externo de memória, que pode ser encontrado em culturas com diferentes graus de 

sofisticação. O nó no lenço ou a troca de anel para outro dedo, com o objetivo de se 

lembrar posteriormente de alguma tarefa, são exemplos típicos. Um estímulo A, aqui 

e  agora,  leva‐me  a  dar  uma  resposta  apropriada  se  eu  a  situo  em  outro  lugar  e 

momento. Uma  pessoa  a  qual  desejo  fazer  o  favor me  pede  emprestando,  aqui  e 

agora, um livro que tenho em casa. Dessa forma, para poder realizar o empréstimo, 

teria  antes  que me  lembrar  do  pedido  em  outro  contexto,  em minha  residência. 

Assim, depois de haver pegado o livro, posso realizá‐lo quando fosse vê‐la em outra 

ocasião. 

No  exemplo  acima,  o  sujeito  cria  uma  resposta  material  e  psicológica  ao 

mesmo tempo, aqui e agora (X), que se constitui em uma conexão física e mental com 

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outra ocasião, em que a resposta apropriada será possível. Essa conexão pode ser um 

nó no  lenço,  trocar  o  anel de dedo, uma  anotação na  agenda: qualquer  coisa que, 

percebida  na  situação  apropriada,  vai  conectá‐la  com  o  que motivou  a  formação 

desse  sinal.  Vygotsky  denominou  esta  conexão  física  e  mental  ‘instrumento 

psicológico’. Este último  é  todo  objeto  cujo uso  serve para  ordenar  e  reposicionar 

externamente a informação, de modo que o sujeito possa escapar da prisão do aqui e 

agora.  Falando  em  termos de psicologia da memória,  é  toda pista de  recuperação 

deliberadamente associada a uma informação que queremos recuperar no futuro. O 

instrumento psicológico pode  ser  tanto o nó no  lenço  como a moeda  corrente, um 

sinal de trânsito, e, acima de tudo, os sistemas de signos; o conjunto de instrumentos 

fonéticos,  gráficos,  táteis  que  constituímos  como  grande  sistema  de  mediação 

instrumental, ou seja, a linguagem. 

Coll et. al.  (1996) afirmam que Vygotsky encontra, com essas  idéias sobre as 

funções psicológicas mais primitivas, algumas características especificas das funções 

psicológicas  superiores  humanas. A  primeira  delas  é  que  essas  funções  permitem 

superar o condicionamento do meio e possibilitam a reversibilidade de estímulos e 

respostas  de  maneira  indefinida.  A  segunda  é  que  elas  supõem  o  uso  de 

intermediários externos, os instrumentos psicológicos. A terceira é que implicam um 

processo  de  mediação,  através  de  instrumentos  psicológicos,  cujo  objetivo  é 

modificar a nós mesmos: assim como  instrumentos  físicos modificam o meio  físico, 

instrumentos psicológicos alterariam diretamente nossa mente. 

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45

Assim Vygotsky (1984) afirma que é dessa forma que as funções psicológicas 

superiores  se  formam  através  da  atividade  prática  e  instrumental.  Para  ele  a 

mediação  instrumental  converge  para  outro  processo  de  mediação  que  a  torna 

possível, e sem a qual o homem não haveria desenvolvido a  representação externa 

com instrumentos: a mediação social. Esta última diferiria da instrumental por ser além 

de  instrumental  também  interpessoal.  É  este  processo  de mediação  social  que  o 

psicólogo  russo  define  em  sua  lei  da  dupla  formação  dos  processos  psicológicos 

(VYGOTSKY, 1984): 

 No desenvolvimento  cultural da  criança,  toda  função  aparece duas vezes: primeiro em nível social e, mais  tarde, em âmbito  individual: primeiro  entre  pessoas  ‐  interpsicológica  ‐  e  depois,  no  interior  da própria criança ‐ intrapsicológica. Isto pode ser aplicado igualmente à atenção  voluntária,  à  memória  lógica  e  à  formação  de  conceitos. Todas  as  funções  superiores  se  originam  como  relações  entre  seres humanos. (pp. 93‐94) 

 

Vygotsky nega que a atividade  interna e externa do homem  sejam  idênticas 

ou,  ao  contrário,  totalmente  desconectadas.  Para  ele,  sua  conexão  é  genética  ou 

evolutiva: os processos externos são transformados para gerar processos internos. O 

nome que deu a este processo de  transformação  foi processo de  interiorização. Assim, 

segundo Vygotsky, as funções psicológicas superiores humanas são transmitidas, dos 

adultos  que  já  as possuem para  os  novos  indivíduos  em desenvolvimento. E  essa 

transmissão é produzida mediante a interatividade da criança com adultos ou outras 

crianças. 

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Em “Formação Social da Mente”, Vygotsky distingue quatro posições básicas na 

Psicologia  a  respeito  do  relacionamento  entre  desenvolvimento  e  aprendizagem. 

Comparando  estas  concepções  de  desenvolvimento  e  aprendizagem,  Vygotsky  se 

distancia  da  posição  de  Piaget,  que  segundo  ele  atribuiria  à  maturação  papel 

fundamental  no  desenvolvimento.  Vygotsky  concentra  sua  pesquisa  na  busca  de 

explicar o desenvolvimento humano  como desenvolvimento  social da  criança. Este 

desenvolvimento  social  é  a  aquisição,  por  parte  dela,  dos  sistemas  e  estratégias 

sociais de mediação‐representação.  

Esta tese é oposta a de Piaget (1975), que vê o desenvolvimento das estruturas 

cognitivas como necessário para possibilitar a aprendizagem. Podemos perceber aqui 

a  oposição  entre uma  concepção  individualista  e  outra  sociologista  em psicologia, 

assim como no construtivismo. Para Piaget a  transmissão social é necessária para o 

desenvolvimento das  funções cognitivas, mas não suficiente, porque a ação social é 

ineficaz sem assimilação ativa da criança, o que pressupõe instrumentos operatórios 

adequados. Podemos perceber aqui que o fulcro da oposição entre os dois teóricos é 

o  papel  que  cada  um  deles  atribui  ao  sujeito  no  processo  de  construção  do 

conhecimento. Enquanto que em Vygotsky o processo é atribuído à mediação social, 

em Piaget este é atribuído à ação do sujeito no mundo e sua consequente elaboração 

e reelaboração de esquemas.  

  A abordagem socioconstrutivista tem em comum com o construtivismo social 

a  convicção de que o  conhecimento é uma produção  social. No entanto, apesar de 

suas indefinições ontológicas, não se pode afirmar que essa abordagem não adote um 

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tipo de realismo ontológico e algumas crenças a respeito da regularidade de alguns 

aspectos do funcionamento psíquico humano. Na verdade, o materialismo implícito 

nas abordagens  socioconstrutivistas  impede uma adesão à ontologia pós‐moderna. 

Além  disso,  o  socioconstrutivismo  é  epistemologicamente  otimista,  adotando 

metodologias  experimentais  que  pretendem  ser  capazes  de  estabelecer  um 

conhecimento que, apesar de ser construído socialmente, se refere a realidades que 

têm  existência  objetiva,  o  que  permite  caracterizá‐lo  como  criticista.  Sua  posição 

como  construtivista  é  que,  curiosamente,  fica  comprometida.  Todo  conhecimento 

seria obtido através de interação social, e não de interação com o mundo. Apesar de o 

sujeito ter um papel ativo na interação social, a natureza desta interação é, talvez até 

deliberadamente,  obscura.  Essa  obscuridade  não  foi,  no  entanto,  suficiente  para 

salvar  Vygotsky  das  acusações  oficiais  de  ‘idealismo’  que  recebeu  do  governo 

soviético, e que o condenaram,  junto com sua obra, ao banimento por muitos anos, 

levando‐o inclusive precocemente à morte.  

 

2.3.4. Construtivismo Lógico 

  O  Construtivismo  Lógico,  mais  conhecido  como  intuicionismo,  é  uma 

abordagem  da  lógica  que  surgiu  dentro  da  filosofia  da matemática,  no  bojo  dos 

esforços  do  início  do  século  XX  em  busca  dos  fundamentos  da  disciplina.  Seu 

principal proponente foi Luitzen Brouwer (1881‐1966) e teve como expoentes Arend 

Heyting e Michael Dummett. Também aqui, Brouwer (1983, p.78) reconhece em Kant 

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a  primeira  forma  de  construtivismo  matemático,  na  qual  tempo  e  espaço  são 

tomados por formas de pensamento inerentes à razão humana. 

  O  construtivismo  matemático  ganhou  força  quando  os  dois  principais 

programas  filosóficos  de  fundamentação  da matemática  colapsaram  (DUMMETT, 

1977, p.2) ao se depararem com demonstrações de sua  incompletude. O primeiro, o 

logicismo  de  Frege,  encontrou  seu  obstáculo  intransponível  na  descoberta  do 

paradoxo  de  Russell;  o  segundo,  o  formalismo  de  Hilbert,  foi  refutado  com  o 

segundo teorema da incompletude de Gödel. 

Em  matemática,  o  construtivismo  defende  que  objetos  matemáticos  são 

construções mentais que ocorrem numa forma de pensamento pré‐linguística, o que 

leva  Brouwer  (1984b)  a  recusar  qualquer  tentativa  de  limitar  a  matemática  à 

capacidade expressiva de qualquer  linguagem, natural ou  formalizada. Afirma que 

para provar a existência de um objeto matemático é preciso demonstrar que há ao 

menos  uma  forma  de  construí‐lo  através  de  uma  sequência  finita  de  operações 

mentais. Demonstrar que sua inexistência implica contradição, como na matemática 

tradicional,  não  seria  prova  suficiente  de  sua  existência,  pois  ele  não  teria  sido 

encontrado com esta operação. Assim, o que define uma posição construtivista em 

matemática é esta tese epistemológica, acerca da forma de obtenção do conhecimento 

matemático: 

 Hence  the  platonistic  picture  is  of  a  realm  of mathematical  reality, existing  objectively  and  independently  of  our  knowledge,  which renders our statements true or false. On an intuitionistic view, on the other hand, the only thing which can make a mathematical statement 

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true is a proof of the kind we can give: not indeed, a proof in a formal system, but an  intuitively acceptable proof,  that  is, a certain kind of mental construction. (DUMMETT, 1977, p. 7) 

 

O construtivismo matemático tem sido correntemente tomado como sinônimo 

de  sua  mais  famosa  corrente,  o  intuicionismo,  que  esta  sim,  defende  não  só  o 

construtivismo  como método de prova, mas  também  a  construção mental  como  a 

natureza  de  todo  objeto matemático.  É  importante  destacar  que  o  construtivismo 

matemático não depende de uma ontologia idealista para ser adotado, e é totalmente 

compatível também com uma visão realista da matemática.  

O  intuicionismo  matemático  se  destaca  como  corrente  do  construtivismo 

matemático em função principalmente da tese ontológica de que objetos matemáticos 

não  têm  realidade  transcendente:  são  construções  do  pensamento  humano.  A 

assunção desta  tese ontológica  juntamente com a  tese epistemológica construtivista 

da  matemática,  leva  à  consequência  de  que  o  ato  de  estabelecimento  do 

conhecimento  lógico  e matemático  é um ato de  construção, não de descoberta. Na 

lógica  e  matemática  clássicas,  denominadas  pelo  programa  intuicionista  de 

“platonistas”, se considera que objetos matemáticos existem de forma independente 

do pensamento humano, o que implica uma forma de realismo lógico e matemático. 

Se objetos lógicos e matemáticos existem de forma independente da mente humana, 

seu  conhecimento  depende  de  um  ato  de  descoberta.  Mas  para  o  intuicionista, 

objetos  matemáticos  são  construídos  pelos  seres  humanos.  A matemática  é  uma 

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atividade  puramente  mental,  e  os  objetos  matemáticos  não  existem  de  maneira 

independente de atos de pensamento humanos: 

 ...to a platonist, a mathematical theory relates to some external realm of  abstract  objects,  to  an  intuitionist  it  relates  to  our  own mental operations:  mathematical  objects  themselves  are  mental constructions, that  is, objects of thought not merely  in the sense that they are thought about, but in the sense that, for them, esse est concipi. They exist only in virtue of our mathematical activity, which consists in mental operations, and have only those properties which they can be recognized by us as having. (DUMMETT, 1977, p. 7) 

 

Nem sempre, no entanto a opção ontológica intuicionista é afirmada de forma 

tão  clara  e  inequívoca.  Em  texto  no  qual  trata  dos  fundamentos  filosóficos  do 

programa,  seu  principal  sistematizador,  Arend  Heyting,  coloca  o  problema 

ontológico do intuicionismo desta forma: 

 ...we do not attribute an existence independent of our thought, i.e., a transcendental existence, to the integers or to any other mathematical objects. Even though it might be true that every thought refers to an object conceived to exist independently of it, we can nevertheless let this remains an open question. In any event, such an object need not to be completely independent of human thought. Even if they should be  independent  of  individual  acts  of  thought, mathematical  objects are by their very nature dependent of human thought. Their existence is  guaranteed  only  insofar  as  they  can  be  determined  by  thought. (HEYTING, 1983, p.53) 

 

Este  trecho  é  bem  ilustrativo  da  hesitação  ontológica  que  caracteriza  o 

construtivismo na filosofia da lógica e da matemática, assim como em todas as suas 

outras  áreas de  influência. Neste, Heyting  tenta  suavizar o  radicalismo da posição 

ontológica intuicionista, mas aparentemente não nos sentimos mais esclarecidos com 

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a  tentativa.  Começa  com  uma  negação  categórica  da  existência  transcendente  de 

objetos matemáticos, o que parece determinar uma opção  clara pelo  idealismo. Na 

frase  seguinte,  assume  que  a  existência  independente  de  objetos  concebidos  deve 

permanecer uma questão em aberto, o que parece conduzir a um ceticismo regional. 

Depois defende a posição estranha de que os objetos podem  ser  independentes de 

atos individuais de pensamento, mas não de pensamento humano, o que consistiria 

num estranho caso de idealismo sem sujeito. Por fim, volta ao porto seguro de todo 

construtivismo  lógico,  que  é  a  tese  epistemológica  de  que  só  podemos  garantir  a 

existência de um objeto matemático quando podemos determiná‐lo por um número 

finito de atos de pensamento.  

Aqui é fundamental destacar aspecto que é muito importante para a estrutura 

do  argumento  desta  dissertação:  é  perfeitamente  concebível  que  para  um  realista 

lógico  e matemático  o método  de  prova  seja  construtivo  porque  esta  construção 

poderia levar à descoberta de um objeto matemático com existência independente e 

real. A tese epistemológica do construtivismo lógico não leva necessariamente à tese 

ontológica do  intuicionismo, assim como a epistemologia construtivista não  implica 

uma ontologia idealista. Stephen Kleene é, por exemplo, um lógico construtivista que 

adota  uma  perspectiva  realista  do  intuicionismo.  De  forma  semelhante,  Ilkka 

Niiniluoto  (1992),  partindo  da  idéia  popperiana  de mundo  três,  apresentou  uma 

outra forma de conciliar o construtivismo e o realismo em matemática.. 

O  construtivismo  matemático  faz  uso  do  construtivismo  lógico  ou 

intuicionismo  lógico, que se distingue da  lógica  tradicional  fundamentalmente pela 

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rejeição da  lei do  terceiro  excluído. É  sempre  importante, no  entanto,  lembrar que 

isto  significa  dizer  simplesmente  que  no  construtivismo  a  lei  do  terceiro  excluído 

deixa  de  ser  considerada  um  axioma,  mas  continua  válida  para  operações  com 

conjuntos finitos.  

A  diferença  para  a matemática  clássica  é  que  nesta  se  pode  demonstrar  a 

existência de um objeto simplesmente demonstrando que a inexistência deste objeto 

implicaria uma contradição, ou seja, se valendo da lei do terceiro excluído. Brouwer 

(1984b, p.91) enuncia assim a forma dessa lei na matemática: “Every assignment t of a 

property to a mathematical entity can be judged, i.e. either proved or reduced to absurdity”. O 

intuicionismo rejeita essa  lei  fundamental da  lógica e matemática clássica porque o 

seu uso não oferece um método de construção do objeto “demonstrado” e, uma vez 

que  não  acredita  numa  existência  transcendente  dos  objetos matemáticos,  se  não 

temos explicitada uma  forma de construí‐lo mentalmente em um número  finito de 

passos, então não temos motivos para assumir sua existência como demonstrada. 

Também no que diz  respeito à  lógica, uma das principais diferenças entre a 

intuicionista e a clássica diz respeito à rejeição deste axioma. Mas outras diferenças 

importantes são bem gritantes, como a defesa pelo intuicionismo lógico de uma visão 

oposta ao programa logicista fregeano. O intuicionista nega que a lógica fundamente 

a  matemática,  defendendo  que  primeira  simplesmente  resume  os  esquemas  de 

raciocínio  utilizados  na  segunda.  Em  outras  palavras,  para  o  intuicionismo  é  a 

matemática que é o fundamento da lógica, não o contrário. 

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53

Mas  voltemos  à  questão  da  rejeição  pela  lógica  intuicionista  do  axioma  do 

terceiro  excluído.  Esta  rejeição  deriva  da  transformação  no  intuicionismo  do 

significado dos operadores lógicos (VAN DALEN, 1980, p. 166). Partindo da tese de 

que o valor de verdade de uma proposição só pode ser estabelecida se  temos uma 

prova para ela, e de que por prova  se quer dizer uma construção matemática, não 

dedução, que  estabeleça a verdade da proposição, nesta abordagem os operadores 

passam a representar diferentes necessidades de processos de provas para os termos 

que estão relacionados. Assim, uma disjunção nada mais é que uma indicação que a 

verdade daquela proposição depende de uma prova construtiva da existência de um 

dos  termos, e uma conjunção a  indicação de que a verdade da proposição depende 

de uma prova construtiva da existência de ambos os termos.  

Assim,  se  temos determinadas proposições,  como  a  conjectura de Goldbach 

(todo número par é igual à soma de dois números primos ímpares), para as quais não 

podemos  (até  o  momento)  encontrar  provas  nem  de  sua  verdade  nem  de  sua 

falsidade,  não  poderíamos  afirmar  nem  que  g,  nem  que    g.  Logo,  para  o 

intuicionismo, não poderíamos tampouco afirmar g V  g, pois não temos como provar 

nenhum dos  termos. É uma consequência, sem dúvida, bastante contra‐intuitiva de 

se admitir como válidos os pressupostos epistemológicos do programa intuicionista. 

Retomando as questões colocadas no início do capítulo, podemos sintetizar a 

posição  ontológica  do  construtivismo  lógico  como  variável,  mas  de  forma 

predominante, idealista regional (no caso do intuicionismo). Também regionalmente 

é  dogmático,  pois  pressupõe  que  a  construção  do  objeto matemático  permite  um 

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conhecimento  absoluto  sobre  ele. Por  fim,  é  obviamente  construtivista  no  que diz 

respeito a relação entre o sujeito e o objeto matemático. 

 

2.4 – Definição de Construtivismo 

Joseph Rychlak, filósofo da psicologia contemporâneo, declaradamente adepto 

do  construtivismo  filosófico,  afirma  (1999)  que,  desafortunadamente,  o  termo 

construtivismo  é usualmente  empregado  em dois  sentidos  básicos,  o  que provoca 

uma grande confusão em discussões  teóricas  (p.383). O primeiro é o que considera 

construção o processo de associação de partes separadas para a formação de algo. Esse 

processo dispensa a presença de um sujeito que constrói e, para Rychlak, é o sentido 

com o qual o construtivismo social usa o termo. O segundo sentido do termo, que é 

aquele por ele aceito, é o da  tradição kantiana e piagetiana. Para Piaget, construção 

indica  o  processo  de  criação  mental  de  algo,  incluindo  conceitos,  interpretações, 

deduções  e  análises.  Esta  acepção  do  termo  pressupõe  a  existência  de  um  sujeito 

ativo e construtor de suas cognições. Como afirma Sismondo  (1993), a metáfora da 

‘construção’  vem  da  geometria,  quando  matemáticos  gregos  construíam  figuras 

geométricas a partir de poucos pontos e  instrumentos: “we  think of constructing as a 

process  involving  active  rather  than  passive  movements,  and  often  goal‐directed  ones” 

(p.520). 

Para estabelecer o conceito de construtivismo que será adotado aqui, é preciso 

responder  a  alguns  problemas  fundamentais  relacionados  a  ele.  O  primeiro  é  a 

posição  do  construtivismo  acerca  da  realidade.  Para  alguns  autores  como  Von 

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Glasersfeld (1998) ou Watzlavick (1984), na raiz da contenda epistemológica entre o 

“objetivismo”  e  o  construtivismo  está  a  questão  da  natureza  da  realidade.  Para 

posições “modernas” objetivistas a realidade seria concebida como objetiva, externa e 

independente do  sujeito do  conhecimento,  além de passível de  ser descoberta  em 

alguns de  seus aspectos pela  ciência. Para o que eles  chamam de  construtivismo a 

ciência cria, ela própria, a realidade no curso de sua prática. A pergunta então é de se 

a  realidade  existe  de  forma  independente  dos  sujeitos  ou  os  sujeitos  criam  a 

realidade.  Defendo  (CASTAÑON,  2007)  que  esta  é  uma  falsa  questão,  fruto  da 

confusão de setores pós‐modernos do construtivismo entre as teorias validadas sobre 

a  realidade  (o  conhecimento),  a  verdade  e  a  própria  realidade. Defendo  também 

nesta  dissertação  que  a mesma  falsa  questão  é  fruto  também  da  confusão  entre 

realismo ontológico e realismo epistemológico (se é que é adequado o uso do termo 

aqui),  que  defenderia  que  podemos  conhecer  algo  sobre  as  coisas  em  si mesmas 

(NIINILUOTO, 1999). 

  O construtivismo  filosófico oferece uma resposta nova para a antiga questão 

da  origem do  conhecimento  e  sua  relação  com  a  realidade. Para  o  construtivismo 

refletido nas obras de Piaget (1973) ou de Popper (1975), nós criamos hipóteses sobre 

o  real,  e  apesar  de  nossa  relação  com  o  real  se  dar  através  destas  hipóteses,  esta 

relação  existe, pois  através da  resistência de nossas  sensações  em  se  comportarem 

como nossas hipóteses preveem, a realidade se mostra  independente destas últimas 

influenciando aquelas. As hipóteses que são justificadas por uma metodologia aceita 

passamos a considerar conhecimento, porém, conhecimento provisório. Assim, para 

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56

o  construtivismo derivado da  tradição kantiana o  sujeito não  constrói  a  realidade, 

constrói suas representações da realidade. 

O construtivismo tradicional é realista e defende o sujeito epistêmico como a 

fonte de todas as representações da realidade. Mas o realismo ontológico não define 

o  construtivismo,  pois  é  comum  a  praticamente  todas  as  doutrinas  sobre  o 

conhecimento. O que define o  construtivismo é a  tese original de Kant de que é o 

objeto que se adapta à mente do sujeito, e não o contrário. Num sentido mais geral e 

de  segunda  ordem,  é  a  tese  epistemológica de  que  construímos  hipóteses  sobre  o 

funcionamento  da  realidade  e  as  testamos  através  das  predições  de  como  vão  se 

suceder nossas sensações.  

Os  dois  sentidos  de  construtivismo,  de  primeira  e  de  segunda  ordem, 

assumidos  como  essenciais  à  sua  definição,  eliminam  de  seu  campo  tanto  o 

construcionismo  social  como  o  construtivismo  social,  que,  como  exporei  nesta 

dissertação, defende uma estranha espécie de anti‐objetivismo sem sujeito e, em sua 

versão mais  radical,  também  sem  objeto, no qual  tudo  o que  existe  são  as  formas 

culturais estruturadas pela linguagem.  

De  forma complementar podemos  também definir construtivismo através de 

sua oposição conceitual ao objetivismo. Se podemos encontrar algo comum a todas as 

correntes  que  se  autodenominam  construtivistas  é  a  rejeição  ao  que  denominam 

‘objetivismo’.  As  formas  “sociais”  do  construtivismo,  no  entanto,  rejeitam  o 

objetivismo  através  de  sua  rejeição  tanto  da  “natureza”  quanto  do  “sujeito”, 

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57

parecendo implicitamente assumir que a rejeição ao objetivismo é suficiente para se 

caracterizarem como construtivistas. 

  Podemos  definir  ‘objetivismo’  como  a  posição  filosófica  que  defende  que  o 

objeto  determina  no  sujeito  a  representação  que  este  tem  dele.  Ou  seja,  para  o 

objetivismo, o objeto é algo dado, com uma estrutura que é de alguma forma imposta 

ao  sujeito  na  relação  de  conhecimento,  e  as  representações  que  temos  do mundo, 

mesmo que não idênticas ao objeto, são determinadas em nós por ele. Não se pode, 

portanto,  como  fazem  muitos  autodenominados  construtivistas,  confundir 

objetivismo  com  a  solução pré‐epistemológica para  o problema da  relação  sujeito‐

objeto, que considera as representações mentais cópias perfeitas do mundo externo 

(CASTAÑON, 2007). Nem o empirismo  filosófico defendia esta  tese. Mesmo Locke 

(1952) já distinguia nas qualidades dos objetos que nos eram dados pelos sentidos o 

que  seriam  suas  qualidades  primárias  de  suas  qualidades  secundárias.  Só  as 

primeiras  (como  a  extensão,  solidez  ou  movimento)  pertenceriam  ao  objeto, 

enquanto as segundas (como a cor, sabor ou cheiro) pertenceriam à mente do sujeito, 

não  tendo  existência objetiva  (só  subjetiva). Assim, esta  existência  subjetiva não  se 

assemelharia às propriedades que estão nos corpos e que as produziram.  

Da mesma  forma, não podemos  confundir o objetivismo  com o  realismo. O 

objetivismo  é  uma  das  possíveis  posições  epistemológicas  derivadas  do  realismo 

ontológico. Outra é o criticismo, que defende que nossas representações se referem a 

objetos  que  têm  existência  independente  de  nossa mente,  e  que de  alguma  forma 

influenciam as nossas teorias sobre eles. Com o progressivo abandono do objetivismo 

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58

observado  na  filosofia  pós‐kantiana,  o  tipo  de  realismo  defendido  na  filosofia 

contemporânea é geralmente comprometido com uma posição epistemológica crítica, 

e paga de uma forma ou de outra seu tributo a Kant. Referirei‐me nesta dissertação a 

esta espécie de realismo como ‘realismo crítico’, deixando claro, no entanto, não me 

referir  ao  tipo  de  posição  que  também  reivindicou  esta  denominação  e  que  foi 

defendida  no  volume  coletivo  “Essays  in  Critical  Realism”  (DRAKE  et  alli,  1920). 

Como exemplo de posição simultaneamente realista, criticista e construtivista temos 

o tipo de realismo crítico defendido por Popper e desenvolvido por Ilkka Niiniluoto, 

que defende (NIINILUOTO, 1999) a teoria do realismo crítico científico. Para Popper 

(1975b),  nossas  teorias  sobre  a  realidade  são  construídas  por  nós,  e  condicionam 

nosso  olhar  e  interpretação  sobre  ela.  Condicionam,  porém,  não  determinam. 

Quando  nos  deparamos  com  um  erro,  ou  seja,  quando  nossas  teorias  sobre  a 

realidade  são  seguidamente  contraditadas  por  observações  que  não  se  adaptam  a 

elas, acabamos por modificar nossas teorias e representações do mundo de forma a 

adaptá‐las  à  experiência.  Assim,  nossas  teorias,  apesar  de  condicionarem  nossa 

experiência da realidade, não a determinam. É ao falharem em predizer a sucessão de 

sensações que teremos, que nossas teorias provam que não são a realidade mesma. 

Já para Niiniluoto (1999), que elabora vigorosa defesa do realismo em sua obra 

Critical  Scientific  Realism,  o  realismo  crítico  se  posiciona  ontológica,  semântica, 

epistemológica e axiologicamente, e pode‐se definir pelas teses: 

   

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‐ At least part of reality is ontologically independent of human minds. ‐  Truth  is  a  semantical  relation  between  language  and  reality.  Its meaning  is  given  by  a  modern  (Tarskian)  version  of  the correspondence  theory, and  its best  indicator  is given by systematic enquiry using the methods of science. ‐ The  concepts of  truth  and  falsity  are  in principle  applicable  to  all linguistic  products  of  scientific  enquiry,  including  observation reports, laws and theories. In particular, claims about the existence of theoretical entities have a truth value. ‐ Truth  (together with  some other epistemic utilities)  is an essential aim of science. ‐  Truth  is  not  easily  accessible  or  recognizable,  and  even  our  best theories can fail to be true. Nevertheless, it is possible to approach the truth,  and  to make  rational  assessments  of  such  cognitive progress (NIINILUOTO, 1999, p.10). 

 

O  racionalismo  crítico  (POPPER,  1975; WATKINS,  1984; ANDERSON,  1994; 

NIINILUOTO, 1999) é um exemplo  típico de  filosofia construtivista – pois acredita 

que  o processo de  conhecimento parte da  atividade do  indivíduo, do  sujeito,  que 

constrói, não a realidade mesma, mas suas teorias e hipóteses sobre ela – e realista, 

pois considera que é a realidade, estável e independente do sujeito, que constrange e 

julga  as  hipóteses  e  teorias deste último  sobre  ela. Evidentemente,  o  racionalismo 

crítico de forma alguma é objetivista, pois considera que nossas crenças e teorias não 

são  cópias  fiéis  da  realidade  nem  provocadas  por  ela,  mas  somente  modelos 

simplificados  daquela  que  de  tempos  em  tempos  são  falsificados  e  exigem  a 

construção de um novo modelo por parte do sujeito. 

Ao  recapitular  as  posições  construtivistas  apresentadas  aqui,  podemos 

estabelecer que, em relação à Q1, sobre a existência ou não de objetos independentes 

da mente, Kant, Piaget, o socioconstrutivismo e o racionalismo crítico se posicionam 

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com  o  realismo;  enquanto  o  construcionismo  social,  o  construtivismo  radical  e  o 

intuicionismo se posicionam com formas de idealismo. 

Em  relação  à  Q2,  sobre  a  possibilidade  do  conhecimento  de  aspectos  dos 

objetos  do mundo, Kant,  Piaget,  o  socioconstrutivismo  e  o  racionalismo  crítico  se 

posicionam  com  o  criticismo,  o  intuicionismo  e  o  construtivismo  lógico  não  se 

aplicam  ao  problema,  e  o  construtivismo  radical  e  o  construcionismo  social  são 

claramente céticos. 

Em  relação  à  Q3,  sobre  a  origem  do  conhecimento,  Kant,  Piaget,  o 

socioconstrutivismo, o racionalismo crítico, o intuicionismo, o construtivismo lógico 

em  geral  e  o  construtivismo  radical  são  claramente  construtivistas  no  sentido 

limitado e prévio em que usamos o termo, como a posição que defende o papel ativo 

do  sujeito  na  construção  de  suas  representações  do  objeto.  Já  o  construcionismo 

social em hipótese nenhuma é claro em relação ao que é o sujeito, o objeto e a relação 

entre eles. 

  Assim, mesmo com a indefinição do construcionismo social (que de resto não 

adota  o  termo  ‘construtivismo’  mas  sim  ‘construcionismo’)  podemos  definir  o 

construtivismo  como  uma  tese  epistemológica,  e  não  ontológica,  pois  o  que  o 

caracteriza não é a posição acerca da natureza do objeto do conhecimento, e  sim a 

posição  acerca  do  processo  de  obtenção  do  conhecimento.  Sintetizando,  define‐se 

aqui construtivismo pelas teses: 

  a)  As  representações  (intuições  sensíveis)  que  temos  da  realidade  são 

condicionadas pela estrutura de nossa mente, e construídas por ela; 

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b)  num  segundo  nível,  as  hipóteses  que  construímos  sobre  como  o  objeto 

funciona podem ser alteradas e substituídas voluntariamente tão logo a sucessão de 

intuições sensíveis que esperávamos não se manifestem e portanto as hipóteses em 

questão se revelem inadaptadas ao objeto; 

c)  O  objetivismo  é  uma  tese  equivocada,  pois  o  objeto  não  determina 

completamente em um sujeito supostamente passivo as representações que este tem 

dele; 

Assim, podemos concluir destas teses que, se tratando de tese epistemológica, 

o  construtivismo  se divide  em vertentes ontológicas  realistas  e  idealistas, pois não 

assume posição unitária acerca da natureza do objeto do conhecimento. 

  A partir desta definição de  construtivismo, vamos  agora  avaliar o quanto o 

construtivismo social se encontra aderido a ela. 

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Capítulo 3 

Construtivismo Social 

 

 

  Neste capítulo serão apresentadas as principais teses do construtivismo social, 

com especial ênfase às ontológicas e às epistemológicas. Os resultados alegadamente 

empíricos  desta  abordagem  não  são  objeto  desta  dissertação,  portanto,  quando 

mencionados,  só  o  serão  como  ilustração  de  conseqüências  ou  fundamentos 

filosóficos.  Começaremos  com  uma  sumária  contextualização  e  apresentação 

conceitual do construtivismo social, para logo depois abordarmos algumas idéias de 

Ludwig  Wittgenstein,  Thomas  Kuhn  e  Paul  Feyerabend  que  tiveram  influência 

fundamental na configuração filosófica da corrente. Os dois últimos itens do capítulo 

serão dedicados a uma avaliação cuidadosa das  teses ontológicas e epistemológicas 

do construtivismo social, buscando estabelecer o que pode ser dito de consensual e o 

que  há  de  divergência  entre  as  correntes  e  principais  proponentes  do 

autodenominado “strong programme”. 

 

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3.1. – Caracterização geral do Construtivismo Social  

O  construtivismo  social  é  uma  abordagem  da  sociologia  que  se  resume 

essencialmente  em um  conjunto de pressupostos  filosóficos  e diretrizes políticas  a 

serem aplicadas à disciplina da sociologia do conhecimento. Seu ancestral sociológico 

é Karl Mannheim, pioneiro da disciplina que defendia a tese de que a distinção entre 

conhecimento e crença pessoal é meramente o endosso coletivo dado as crenças do 

primeiro  tipo. No  entanto, Mannheim não  cedeu  à  tentação do  sociologismo, uma 

vez que acreditava que forças sociais determinavam toda ideação humana, exceto os 

conceitos  físico‐matemáticos  (MANNHEIM,  1971).  Esta  restrição  rendeu  duras 

críticas por parte de David Bloor,  que  acusou Mannheim  abertamente de  falta de 

“nervos”  (1991,  p.11)  para  assumir  o  que Bloor  acha  inevitável,  ou  seja,  que  toda 

ideação humana é causada socialmente, portanto, deve ser objeto da sociologia.  

A  expressão  ‘construção  social’,  surge  da  obra  de  Peter  Berger  e  Thomas 

Luckmann  (1973), The Social Construction  of Reality, de 1966. Este auto denominado 

tratado  sobre  sociologia  do  conhecimento  exerceu  grande  influência  sobre  a 

psicologia social e a sociologia contemporânea. Um de seus pontos principais hoje é 

considerado  senso  comum:  o  fato  de  instituições  serem  construídas  socialmente  e 

terem  realidade  independente  de  nossa  vontade  particular  (ver  Searle,  1995). 

Instituições existem porque uma parcela significativa da sociedade acredita que elas 

existem, e age de acordo com sua existência. Isso não faz delas entes menos reais: não 

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podemos  individualmente  fazê‐las  desaparecer  não  acreditando  nelas  ou  não 

desejando sua existência, porque muitas outras pessoas acreditam nelas e agem como 

se elas existissem. Assim, precisamos agir  como  se elas existissem, o que  reforça a 

existência destas  instituições. Esta  lição  fundamental desse  livro clássico  forneceu o 

modelo de construção social que posteriormente o construtivismo social aplicaria a 

praticamente tudo, não apenas às instituições. 

A reivindicação principal de Berger e Luckmann (1973) é a de que a “realidade” 

é  construída  socialmente.  Definem  ‘realidade’  como  a  qualidade  pertencente  a 

fenômenos que reconhecemos ter um ser independente de nossa própria volição, e o 

conhecimento  como  a  certeza  de  que  os  fenômenos  são  reais  e  possuem 

características  específicas.  Eles  esclarecem  que  usam  esses  termos  fora  de  seu 

significado estrito. Eles o usam com o sentido do que o homem comum  julga como 

real e  como  conhecimento. É uma análise, portanto, não do  conhecimento, mas de 

suas  representações  sociais,  das  concepções  de  conhecimento  construídas  pelo 

homem  comum,  independentemente  de  sua  adequação  à  realidade.  Afirmam 

claramente Berger & Luckmann: “incluir as questões epistemológicas concernentes à 

validade  do  conhecimento  sociológico  na  sociologia  do  conhecimento  é  de  certo 

modo o mesmo que procurar empurrar o ônibus em que estamos viajando”  (1973, 

p.27). Com  isso, eles não se afastam do princípio  tradicional que afirma não estar a 

sociologia  habilitada  a  definir  a  natureza  da  ciência  ou  do  conhecimento,  mas 

somente a investigar como estes conceitos são aceitos, concebidos ou operados. 

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No  entanto,  é precisamente  isso o que  faz o  construtivismo  social  ao  crer  ter 

colocado no âmbito da sociologia as questões epistemológicas relativas à sua própria 

validade.  Esta  abordagem  surge  de  um  grupo  de  sociólogos  da  universidade  de 

Edimburgo, em meados dos anos  setenta, que  liderados por Barry Barnes e David 

Bloor lançam o programa forte da sociologia da ciência. São marcos fundadores deste 

programa as obras Scientific Knowledge  and Sociological Theory, de 1974, e Knowledge 

and Social Imagery, de 1976 (BLOOR, 1991). 

Entre as principais diferenças do “strong programme” em  relação ao  trabalho 

que  era  efetuado  em  sociologia  do  conhecimento  antes  de  seu  surgimento  está  a 

convicção  de  que  pertencem  ao  âmbito  da  própria  sociologia  as  questões 

epistemológicas relativas à sua própria validade como ciência, além da concentração 

do  foco  de  estudo  no  conhecimento  científico,  em  detrimento  de  todas  as  outras 

alegações de conhecimento. 

Como  afirma Oliva  (2003),  enquanto  as  filosofias  da  ciência  tradicionais  se 

comprometiam  com  a  universalização  dos  métodos  das  ciências  naturais,  as 

epistemologias  “heterodoxas”  passaram  a  acalentar  a  pretensão  que  os  próprios 

Berger  e  Luckmann  consideraram  contraditória:  a  de  explicar  a  racionalidade  das 

ciências,  incluindo  as  naturais,  recorrendo  às  ciências  sociais,  em  especial  à 

sociologia. Isso constitui uma grande inversão: uma disciplina altamente questionada 

em  sua  cientificidade  passa  a  querer  explicar  a  condição  de  cientificidade  de 

disciplinas como a  física. Oliva  (2003, 2005) defende que essa mudança  radical nas 

pretensões  da  sociologia  não  decorre  de  nenhuma  mudança  causada  pelo 

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desenvolvimento interno da disciplina, e sim das novas concepções epistemológicas 

surgidas  da  “Nova  Filosofia  da  Ciência”,  particularmente,  das  idéias  de  Thomas 

Kuhn e Paul Feyerabend. 

Para Bloor  (1991), o programa  forte é essencialmente um conjunto de quatro 

requerimentos metodológicos  desenvolvidos  para  os  sociólogos  do  conhecimento 

científico: causalidade, imparcialidade, simetria e reflexividade.  

Talvez  a  tese mais  característica  do  construtivismo  social  seja  a  da  simetria. 

Esta  consiste na  crença, expressa originalmente na obra  referência de Barry Barnes 

(1974),  de  que  os  sociólogos  devem  tratar  e  investigar  todas  as  crenças  sobre  a 

natureza  e  a  sociedade  da  mesma  forma,  considerando  que  tanto  as  crenças 

alegadamente “corretas” ou “científicas” quanto as “incorretas” ou “não‐científicas” 

são  derivadas  das  mesmas  fontes,  estão  sujeitas  às  mesmas  causas,  e,  portanto, 

submetidas às mesmas formas de explicação sociológica. Como crenças verdadeiras 

não  teriam  uma  credibilidade  intrínseca  maior  que  crenças  falsas,  sua  aceitação 

depende das mesmas espécies de  forças sociais que produzem a eventual aceitação 

de crenças falsas. Isto leva ao princípio complementar de imparcialidade, que prega a 

necessidade de o  investigador colocar em suspenso suas crenças pessoais quanto à 

falsidade ou veracidade última das crenças que ele está investigando. 

A terceira diretriz que caracteriza o construtivismo social é sua demanda por 

explicações  sociológicas  causais,  não  meramente  descritivas,  a  qual  Bloor  (1991) 

denomina  ‘causalidade’.  Assim  o  “strong  programme”  não  aceita  uma  produção 

descritiva ou  interpretativa, sua meta é produzir explicações sociológicas de caráter 

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causal sobre o que provoca e sustenta uma disciplina científica e seu alegado corpo 

de  conhecimento.  Isso  não  significa  para  Bloor  (1991)  que  somente  causas  de 

natureza  social  determinam  a  construção  do  conhecimento.  Para  ele  um  dos 

pressupostos  básicos do  construtivismo  social  é  o  de  que  sistemas  de  crenças  são 

propriedades de entidades biológicas que interagem umas com as outras e com seu 

ambiente natural. 

Como veremos neste trabalho, este é um ponto de divisão no construtivismo 

social, que  se expandiu para além do programa  forte da escola de Edimburgo. Ele 

varia desde a posição supostamente moderada, mas  imprecisa, do strong programme 

de  Bloor  ou  Barnes  sobre  o  papel  do  sujeito  e  do mundo  natural  no  processo  de 

construção do conhecimento até as posições mais extremas de Steve Woolgar (1988), 

Harry Collins (1981), Lynn Nelson (1993) ou do primeiro Bruno Latour (LATOUR & 

WOOLGAR,  1986),  que  defendem  abertamente  que  o  conhecimento  é  totalmente 

construído socialmente e que aquilo que chamamos de fatos naturais são na verdade 

produtos da atividade científica.  

As declarações de Barnes e Bloor em defesa do realismo de sua posição, que 

geralmente  surgem  como  respostas  a  críticos do  strong  programme,  são na verdade 

postas em dúvida por outras ao longo de sua obra, como veremos nesta dissertação. 

Mesmo depois de mais de  trinta  anos da publicação de  suas  obras  fundamentais, 

literalmente dezenas de  críticos de peso  como Thomas Kuhn  (2003), Larry Laudan 

(1981), Mário Bunge  (1991, 1992),  Ilkka Niiniluoto  (1999), Alan Sokal  (2001), André 

Kukla  (2000) entre muitos outros  continuam, apesar das  respostas e  replicações de 

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ambos,  ininterruptamente a acusar sua posição de  idealismo, ainda que geralmente 

de  um  “idealismo  epistemológico”  (ceticismo).  No mínimo,  tal  nível  de  possível 

incompreensão,  que  se  estenderia  até  a  colegas  da  Universidade  de  Edimburgo 

simpáticos  ao  projeto  geral  do  strong  programme  como  o  sociólogo  Stephen Kemp 

(2005), indica um alto grau de imprecisão ontológica de sua posição, mesmo mais de 

trinta anos depois de sua primeira formulação. 

Por fim, temos a proclamação do princípio de reflexividade, que segundo Bloor 

(1991)  indica a necessidade de sociólogos do conhecimento não  reivindicarem uma 

posição de segunda ordem em relação ao conhecimento científico, ou dito com suas 

palavras, um ponto de vista transcendente para justificar suas alegações. Bloor (1991) 

afirma que nenhuma teoria sociológica do conhecimento é aceitável a menos que seja 

aplicável  a  si mesma,  assim,  as  crenças do  construtivismo  social  são  também  elas 

causadas socialmente. Acreditam os construtivistas sociais que a mera proclamação 

deste princípio pode livrá‐los do problema da auto‐refutação. Abordaremos de novo 

este problema no subitem dedicado à epistemologia do strong programme. 

Podemos  neste momento  ampliar  a  definição  provisória  dada  no  início  do 

capítulo  sintetizando  fundamentalmente  o  construtivismo  social  como  uma 

abordagem filosófica sobre a sociologia que se apresenta como programa de pesquisa 

empírica, tendo como essência a tese de que as crenças científicas têm causas sociais. 

Nascida do programa forte em sociologia da ciência, ela se expandiu para além das 

fronteiras  da  Escócia,  gerando  abordagens mais  radicais  ontologicamente,  como  o 

que denominaremos aqui “construtivismo social ontológico”, de Woolgar, Collins e 

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Nelson, o programa do construtivismo social material, de Karin Knorr‐Cetina (1981), 

e  também  o  campo  de  estudos  sociológicos  da  construção  social  de  sistemas 

tecnológicos, começado por Trevor Pinch e Wiebe Bijker (1987).  

Além  destes,  num  “capítulo”  à  parte,  ainda  podemos  citar  as  abordagens 

mutantes e hesitantes de Bruno Latour, que começando no programa forte, se tornou 

famoso  lançando  com  Woolgar  o  construtivismo  social  ontológico  (LATOUR  & 

WOOLGAR,  1986  [1979]),  transitou  por  uma  posição  que  pretendia  investigar 

antropologicamente a ciência interpretando cientistas como maquiavélicos atores de 

redes  sociais  lutando  para  acumular  recursos  financeiros  de  pesquisa  (LATOUR, 

1987,  1992),  e  por  fim  voltou  à  cena  com  uma  estranha  posição  ontológica  que 

pretende refundar todo o pensamento ocidental abolindo a oposição sujeito‐objeto e 

afirmando  que  natureza  e  sociedade  são  ambas  causa  e  efeito  uma  da  outra 

(LATOUR, 1999, 2000). 

Deixando  de  lado  as  posições  menos  compreensíveis  e  mais  instáveis  do 

movimento,  podemos  apresentar  o  construtivismo  social  como  defensor  das  teses 

assim sintetizadas por Oliva (2003): primeira, a renúncia à enunciação de um critério 

de cientificidade, de demarcação entre ciência e não‐ciência. A segunda, a rejeição da 

subordinação  do  teórico  ao  observacional,  sustentada  pela  crença  de  que  é 

impossível separar minimamente o componente teórico do observacional. A terceira 

é a rejeição do “objetivismo”, que segundo esta abordagem seria a crença de que os 

resultados da ciência são determinados pela natureza, para substituí‐lo pela crença 

de que os resultados da ciência são predominantemente fruto de “interação social”. 

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A quarta é a concessão de primazia à história da ciência para  julgar a ciência e suas 

pretensões  de  conhecimento,  que  não  poderiam  ser  a‐históricas.  A  quinta  é  a 

inversão  do  naturalismo:  em  vez  de  a  ciência  natural  ser modelo  de  ciência,  é  à 

sociologia que é dado o poder de explicar ciências maduras como a  física, que são 

tradicionalmente vistas como modelos de cientificidade. A sexta é a adoção da  tese 

kuhniana  da  incomensurabilidade  dos  paradigmas,  que  abordaremos  no  próximo 

subitem.  A  sétima,  por  fim,  é  a  rejeição  da  idéia  de  progresso  científico  e  de 

superioridade  epistêmica  da  pesquisa  científica  em  comparação  com  outras 

modalidades de saber. 

O construtivismo social afirma que a ciência não é um modo de produção de 

conhecimento superior aos outros, e que a distinção entre contexto de  justificação e 

contexto de descoberta é artificial. A posição epistemológica tradicional afirma que a 

produção  da  pesquisa  (contexto  de  descoberta)  pode  ser  explicada  em  termos  do 

ambiente sócio‐cultural em que a pesquisa se dá, mas a sua validação, a aferição do 

valor epistêmico dela (contexto de justificação), é determinada por critérios lógicos e 

empíricos  que  em  nada  dependem  do  contexto  social.  Esses  critérios  é  são 

questionados  por  sua  suposta  a‐historicidade  e  falha  universalidade  por  Kuhn  e 

Feyerabend,  cujos  argumentos  são  endossados  e  reescritos  pelo  construtivismo 

social. Este último julga tais critérios tão condicionados pelo ambiente sócio‐cultural 

como as  teorias científicas,  já que no  fim das contas, estes critérios  também seriam 

teorias.  Para  abordarmos  adequadamente  este  debate  nos  próximos  itens,  vamos 

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então  antes  avaliar  a  fonte  filosófica  de  onde,  realmente,  brotou  esta  abordagem 

sociológica (ou filosófica sociologista) do problema do conhecimento científico. 

 

 

 

3.2. – Idéias antecedentes em Filosofia da Ciência 

 

3.2.1 –Wittgenstein e a dissolução lingüística da epistemologia 

Ludwig Wittgenstein  foi  um  filósofo  efetivamente  profundo  e  peculiar.  A 

peculiaridade a que me refiro aqui é bastante conhecida: encontramos em sua obra 

duas  fases  nas  quais  seu  pensamento  se  divide  de  forma  radical.  O  “primeiro 

Wittgenstein”, como se  tornou conhecida a primeira  fase de sua obra, se apresenta 

como  um  filósofo  que  defende  a  existência  de  uma  realidade  plenamente 

significativa independente dos sujeitos cognoscentes, e que  julga ser tarefa daqueles 

que  buscam  conhecimento  dessa  realidade  descrevê‐la  da  forma  mais  lógica  e 

semanticamente  rigorosa  possível.  Para Richard Rorty  (1989)  sua  teoria  figurativa 

sobre a realidade é um exemplo de filosofia fundacional “modernista” que defende 

que a mente reflete a natureza.  

É o mesmo Rorty (1989), confessadamente profundo devedor de Wittgenstein, 

que credita à segunda metade da obra deste pensador a maior responsabilidade pelo 

enfraquecimento  da  estrutura  epistemológica  da  modernidade.  O  “segundo 

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Wittgenstein” rechaça completamente os pressupostos “modernistas” assumidos na 

primeira  fase de seu pensamento. Sua obra “Investigações Filosóficas”  talvez seja a 

mais  importante  precursora  do  pensamento  pós‐moderno. Wittgenstein  (1975)  se 

dedica  na  segunda  fase  de  sua  obra  a  desmantelar  seus  primeiros  conceitos  de 

atomismo lógico e da teoria como representação da realidade. Rechaça as noções de 

que os elementos referenciais da  linguagem devam se reportar a objetos, de que as 

proposições  atômicas  devam  se  constituir  de  maneira  tal  que  sua  verdade  ou 

falsidade determina o valor de verdade do enunciado composto, de que a estrutura 

da linguagem logicamente perfeita espelha a estrutura da realidade e de que todas as 

linguagens são intertraduzíveis quando presas ao uso referencial.  

Wittgenstein (1975) defende que o pensamento não se separa das palavras que 

são usadas para expressá‐lo. Ele chega a essa conclusão através de sua  teoria social 

da mente que por sua vez se deriva de sua  teoria social do significado. Esta afirma 

que não existe nada parecido com uma linguagem privada. Para ele, a idéia de que a 

linguagem  e  o  pensamento  começam  por  experiências  privadas  é  um  dos  erros 

filosóficos mais fundamentais. A linguagem é produto de convenções. O significado 

não se baseia nos objetos, no processo mental ou em entes ideais. Adquire‐se através 

do contato social com outros habitantes da cultura em questão. 

À  experiência  comum  a  todos  os  seres  humanos  de  um momento  no  qual 

parece que os pensamentos se desenvolvem com uma rapidez muito além de nossa 

capacidade  de  expressá‐los,  Wittgenstein  (1975)  opõe  o  argumento  de  que 

compreendemos  de  golpe  um  pensamento  da mesma  forma  que  podemos  tomar 

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nota dele e resumi‐lo em poucas palavras. Ele insiste que fora da linguagem não há 

ponto de apoio objetivo nem independente. O pensamento não seria nada mais que 

uma atividade que usa signos adquiridos durante o processo de socialização. 

Outra idéia básica do pensamento do segundo Wittgenstein (1975) é a de que 

realidades  significantes  são  criações  humanas  sem  nenhuma  preocupação  formal 

primária com o que a natureza dessas criações possa ser. As realidades particulares 

que qualquer sujeito cria dependem da participação do sujeito nos processos sociais 

de experiências que efetivamente abranjam um ou mais “jogos de linguagem”. Esse é 

um conceito que Wittgenstein (1975) usa para abranger em uma determinada cultura 

“o  conjunto  da  linguagem  e  das  atividades  com  as  quais  está  interligada”  (p.16). Com  a 

linguagem, podemos fazer as coisas mais variadas, as funções que as palavras podem 

assumir não se reduzem à referencial.  

Os jogos de linguagem são inúmeros, porque são inúmeros os tipos diferentes 

de  emprego  de  tudo  o  que  chamamos  sinais,  palavras,  proposições.  E  essa 

multiplicidade  não  é  algo  fixo  ou  dado  de  uma  vez  por  todas:  novos  tipos  de 

linguagem,  novos  jogos  lingüísticos  surgem  continuamente,  enquanto  outros 

envelhecem  e  são  esquecidos. Falar uma  língua  faz parte necessariamente de uma 

forma de vida: 

 “Quantas  espécies  de  frases  existem?  Afirmação,  pergunta  e comando,  talvez? – Há  inúmeras de  tais espécies:  inúmeras espécies diferentes  de  emprego  daquilo  que  chamamos  de  “signo”, “palavras”,  “frases”.  E  essa  pluralidade  não  é  nada  fixo,  um  dado para  sempre;  mas  novos  tipos  de  linguagem,  novos  jogos  de linguagem,  como poderíamos dizer, nascem  e  outros  envelhecem  e 

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são  esquecidos.  (Uma  imagem  aproximada  disto  pode  nos  dar  as modificações da matemática.) O termo “jogo de linguagem’ deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida”. (WITTGENSTEIN, 1975, §23) 

 

Para Wittgenstein,  esses  jogos  de  linguagem  determinam  essencialmente  a 

realidade experimentada pelos  sujeitos. Perguntar qual é a verdadeira natureza da 

realidade é efetuar uma  falsa questão, pois descrições da realidade só são possíveis 

mediantes um dado jogo de linguagem. 

Assim, para o que nos interessa particularmente nesta dissertação, a atividade 

científica  tal qual  é  concebida  tradicionalmente  é diretamente  atingida. Não  existe 

observação experimental ou mensurada que não seja ela própria uma sensação, um 

estado privado de consciência do cientista. Diz Wittgenstein sobre este problema:  

 

Mas seria também pensável uma linguagem na qual alguém pudesse, para uso próprio, anotar ou exprimir suas vivências interiores – seus sentimentos, seus estados de espírito? – Não podemos  fazer  isto em nossa  linguagem  costumeira?  –  Acho  que  não.  As  palavras  desta linguagem devem referir‐se àquilo que apenas o  falante pode saber; às  suas  sensações  imediatas,  privadas.  Um  outro  pois,  não  pode compreender esta linguagem. (WITTGENSTEIN, 1975, §243) 

 

Wittgenstein  ilustra  a  tese  da  incomunicabilidade  do  estado  mental  e  da 

natureza essencialmente social da linguagem através do seu famoso dilema do inseto 

na caixa. O significado dos termos não é dado, diz Wittgenstein, por estados mentais 

referentes  a  sensações, mas  por  “jogos  de  linguagem”  que  emergem  das  relações 

sociais. Não podemos saber se o ‘vermelho’ que aparece para mim é o ‘vermelho’ que 

aparece para outrem. Portanto,  convencionaríamos dentro de determinado  jogo de 

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linguagem que  tipos de ações  são eficientemente  coordenadas pelo uso da palavra 

‘vermelho’, e nada mais. É também famosa a exortação que Wittgenstein fazia a seus 

alunos  em  Cambridge,  quando  dizia  que  não  devemos  nos  perguntar  sobre  o 

significado  de  uma  palavra,  e  sim  sobre  o  seu  uso. O  ‘inseto’  de Wittgenstein  são 

nossos estados mentais (o termo é ‘beetle’): 

 

Ora,  alguém me  diz,  a  seu  respeito,  saber  apenas  a  partir  de  seu próprio caso o que sejam dores! – Suponhamos que cada um tivesse uma  caixa  e  que  dentro  dela  houvesse  algo  que  chamamos  de ‘besouro’. Ninguém pode olhar dentro da caixa do outro; e cada um diz que sabe o que é um besouro apenas por olhar o seu besouro – Poderia  ser  que  cada  um  tivesse  algo  diferente  em  sua  caixa.  Sim, poderíamos  imaginar  que  uma  tal  coisa  se  modificasse continuamente. – Mas, e se a palavra  ‘besouro’  tivesse um uso para estas pessoas? – Neste caso, não seria o da designação de uma coisa. A  coisa  na  caixa  não  pertence,  de  nenhum  modo,  ao  jogo  de linguagem nem mesmo como um algo: pois a caixa  também poderia estar vazia. – Não, por meio desta coisa na caixa, pode‐se  ‘abreviar’; seja  o  que  for,  é  suprimido.  Isto  significa:  quando  se  constrói  a gramática da expressão da  sensação  segundo o modelo de  ‘objeto e designação’ então o objeto cai fora de consideração, como irrelevante. (WITTGENSTEIN, 1975, §293) 

 

O  referente,  portanto,  é  irrelevante.  Ele  é  uma  ficção,  como  diz  Daniel 

Robinson  (1985)  sobre Wittgenstein,  não  ontológica, mas  gramatical.  É  claro  que 

Wittgenstein  acredita  na  existência  das  sensações  que  seriam  os  referentes  das 

palavras. Mas  o  problema  aqui  não  é  o  da  existência  do  objeto,  e  sim  o  de  sua 

referência. Se um  termo  é  inteligível,  seu  referente deve  ser público. Assim,  termos 

que descrevem sensações privadas têm seu significado estabelecido pelos padrões de 

comportamento  associados  inicialmente  a  eles  (como  gritos  e  choro  à  ‘dor’),  aos 

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76

quais, com o tempo, eles virão a substituir. O problema é que essa posição elimina o 

aspecto  especificamente  psicológico  de  todos  os  comportamentos  humanos,  da 

mesma  forma como o behaviorismo o  faz. Porque a questão psicológica continua a 

ser  se  determinadas  palavras  que  buscam  expressar  estados  psicológicos 

efetivamente  o  expressam,  ou  seja,  a  questão  é  sobre  o  que  de  fato  existe 

psicologicamente. 

Outro  problema  é  que  a  posição  de  Wittgenstein  acaba  resultando  em 

reducionismo lingüístico, uma vez que ao insistir na tese de que devemos basear os 

modelos  psicológicos  e  sua  linguagem  estritamente  nos  comportamentos 

inicialmente  associados  às  palavras,  ele  ainda  assim  está  falando  de  experiências 

internas. Ora, não existe observação de um comportamento que não seja ele próprio 

uma sensação, e como tal, um estado privado de consciência do cientista, um besouro 

na caixa.  

Quando  se  soma  a  estes  problemas  o  da  radicalização  das  insinuações  de 

Wittgenstein,  efetuada por autores  construtivistas  sociais, de que o pensamento  se 

resume  à  linguagem,  entramos  numa  infinita  casa de  espelhos  onde  cada palavra 

reflete outras palavras sem nunca se referir diretamente a um significado percebido 

como  estado  subjetivo.  Desta  forma,  o  conhecimento  se  tornaria  impermeável  às 

experiências  sensoriais  puras,  às  intuições  sensíveis,  pois  estas  sempre  seriam 

experimentadas através dos óculos da linguagem socialmente construída. Não parece 

um quadro nada verossímil da experiência humana.  

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77

Seguindo as teses de Wittgenstein, não temos como obter definições de termos 

teóricos  através  de  termos  observacionais. Os  termos  teóricos  têm  seu  significado 

determinado pelo uso que  têm no  enunciado  em que ocorrem  e pela  estrutura da 

teoria como um todo. O próprio processo de teste de hipóteses não se referiria jamais 

a uma asserção individual, mas a teorias vistas como totalidades, e em última análise 

a  todo  conhecimento  científico,  o  que  faz  o  holismo  semântico  se  transformar  em 

holismo metodológico: não são hipóteses isoladas que são testadas em experimentos, 

mas  sim  redes  inteiras de suposições. Se uma bactéria não  se comportou como era 

esperado  depois  de  entrar  em  contato  com  uma  substância  química,  não  é  só  a 

hipótese de influência bacteriológica da substância que está sendo testada, mas toda 

a rede de suposições químicas, biológicas, ópticas (do microscópio utilizado) que não 

funcionou como o esperado. Dessa forma, o mundo não daria a palavra final sobre a 

teoria que  iria prevalecer. E  foi assim que a  tese da construção  lingüística dos  fatos 

abriu  caminho para que o  construtivismo  social defendesse  a  tese de que  tudo na 

ciência, inclusive o conteúdo de suas teorias, é construção social.  

A filosofia da linguagem se tornou no século XX uma disciplina central para a 

elucidação  da  racionalidade  científica.  O  atomismo  referencialista  do  primeiro 

Wittgenstein  está  na  base  de muitas  das mais  importantes  teses  defendidas  pelo 

positivismo  lógico,  enquanto que o holismo  semântico de autores  como Quine  e o 

segundo Wittgenstein dá sustentação às teses de autores como Thomas Kuhn e Paul 

Feyerabend, e diretamente ao construtivismo social (Bloor, 1983, 1997a). A adoção da 

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teoria  do  significado  como  uso  por  esses  autores  leva,  necessariamente,  à  tese  da 

incomensurabilidade dos paradigmas. 

Para o holismo  semântico  as partes de um discurso não  têm  em  si mesmas 

significado. Quine,  seguindo  a  tese de Pierre Duhem,  sintetiza  esta perspectiva na 

sentença:  “o  todo da  ciência  é  a unidade de  significância  empírica”. A  implicação 

epistemológica  dessa  tese  é  a  de  que  diante  de  qualquer  evidência  empírica 

desfavorável, qualquer teoria pode ser salva de refutação através de uma hipótese ad 

hoc. Filosofias da ciência que adotam essa tese costumam, como aponta Oliva (2005), 

negligenciar a especificação dos mecanismos por meio dos quais se atribui ao todo a 

capacidade  de  gerar  e  reproduzir  significados,  sustentando  que  todo  sistema 

explicativo  é  indecomponível  e as  crenças  científicas,  formando um  todo,  evoluem 

juntas e se reforçam mutuamente.  

Isso acaba implicando a tese da incomensurabilidade dos paradigmas, pois, ao 

considerar  que  o  significado  de  uma  lei  ou  conceito  depende  do  uso  que  têm  no 

interior da totalidade do conhecimento científico, se fazem altamente problemáticas 

as  comparações entre  sistemas explicativos gerados por  formas de vida  totalmente 

diversas.  Mesmo  quando  empregam  o  mesmo  vocabulário  básico,  não  haveria 

compartilhamento  do  mesmo  significado  na  mecânica  clássica  e  na  teoria  da 

relatividade. Os significados dos termos derivam do papel que têm no enunciado e 

os significados dos enunciados da função que desempenham no  interior das teorias 

concebidas como totalidades  irredutíveis às partes. As teses de Wittgenstein de que 

“o significado de uma palavra é seu uso” e “sentenças têm o mesmo sentido quando 

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79

têm  o mesmo  uso”  irão  propiciar  o  surgimento  dos  pensamentos  que  veremos  a 

partir de agora. 

 

3.2.2 – Kuhn e a sociologização da epistemologia 

Talvez o autor mais fundamental para entendermos as teses do construtivismo 

social  seja Thomas Kuhn. Sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas, publicada 

pela primeira vez em 1963, é a mais importante precursora do “strong programme”, 

muito  embora  o  próprio  Kuhn  tenha  rechaçado  este  programa  classificando‐o  de 

relativista  e  desconstrucionista  (KUHN,  2003). O  importante  para  entendermos  a 

influência do pensamento de Kuhn sobre o construtivismo social como um todo é a 

sua idéia de que diferentes teorias gerais aceitas generalizadamente sobre o universo 

e  o  método  científico,  os  paradigmas,  são  incomparáveis  entre  si,  irredutíveis  a 

qualquer elemento em comum (pois não o teriam), são incomensuráveis. 

Assim, vamos definir os  termos da questão. Na primeira versão  surgida do 

conceito, na  introdução de sua obra, Kuhn define paradigmas como “as realizações 

científicas  universalmente  reconhecidas  que,  durante  um  tempo,  fornecem 

problemas  e  soluções  modelares  para  uma  comunidade  de  praticantes  de  uma 

ciência” (1991, p.13).  

Poderíamos  dizer  que  o  sentido  predominante  do  termo  ‘paradigma’  na 

Estrutura das Revoluções Científicas é o de uma espécie de teoria ampliada formada por 

leis  universalmente  aceitas,  métodos  compartilhados  pela  grande  maioria  da 

comunidade científica, regras para avaliação de teorias e formulações de problemas e 

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idéias metafísicas universalmente compartilhadas das quais não se  tem consciência. 

Como vemos, num sentido estrito, o termo paradigma pode ser usado para se referir 

a uma quantidade muito restrita de teorias gerais. Talvez mesmo só o aristotelismo e 

o  modelo  newtoniano  de  ciência  e  universo  tenham  um  dia  se  encaixado  nesta 

descrição. 

No  entanto  Kuhn  na  mesma  obra  às  vezes  parece  usar  o  conceito  de 

paradigma  num  sentido mais  restrito,  direcionado  a  um  único  campo  da  ciência. 

Neste caso, poderíamos considerar a teoria copernicana como exemplo de um antigo 

paradigma  da  astronomia,  assim  como  a  teoria  newtoniana  como  um  antigo 

paradigma  da  Física.  Kuhn  foi  muito  criticado  por  pensadores  como Margareth 

Masterman (1974) por ter usado o termo paradigma de modo vago e um tanto confuso 

(Masterman contou vinte e dois sentidos diferentes para o termo na obra A Estrutura 

das Revoluções Científicas). 

Em obra de 1977, Kuhn aceita as críticas de Mastermann e de outros autores e 

torna explícito os dois únicos  sentidos nos quais gostaria que o  termo  ‘paradigma’ 

fosse  utilizado:  o  de  matriz  disciplinar  e  o  de  exemplar. Matriz  disciplinar  seria  o 

conjunto  de  crenças  compartilhadas  por  um  grupo  de  praticantes  especialistas  de 

uma disciplina específica que inclui: generalizações simbólicas, modelos metafísicos, 

valores epistemológicos, metodologia e exemplos‐padrão de problemas resolvidos. Já 

o exemplar seria um sentido mais estrito do termo paradigma, é um subconjunto da 

matriz disciplinar e  refere‐se aos exemplos‐padrão de problemas  resolvidos que os 

cientistas encontram nos  laboratórios de estudantes e  livros‐texto. Podemos definir 

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81

que  a  partir  daqui  usarei  o  termo  ‘paradigma’  no  sentido  do  que  Kuhn  (1977) 

denominou matriz disciplinar. 

Para  compreender  adequadamente  a  tese  da  incomensurabilidade  dos 

paradigmas  é  ainda  importante  compreender  a  visão  de  Kuhn  sobre  o 

desenvolvimento científico. O empreendimento científico para Kuhn é constituído de 

duas fases gerais. A ciência normal e a ciência extraordinária. Por ciência normal, Kuhn 

entende uma fase homogênea da ciência, onde o crescimento do saber é cumulativo. 

A  ciência  é  neste  período  uma  atividade  baseada  no  pressuposto  de  que  a 

comunidade científica sabe como é o mundo; é um empreendimento que: 

 Parece ser uma tentativa de forçar a natureza a encaixar‐se dentro dos limites  preestabelecidos  e  relativamente  inflexíveis  fornecidos  pelo paradigma. A  ciência  normal  não  tem  como  objetivo  trazer  à  tona novas espécies de fenômeno; na verdade, aqueles que não se ajustam aos  limites  do  paradigma  freqüentemente  nem  são  vistos.  (KUHN, 1991, p. 45) 

 

Na  fase  da  ciência  normal,  as  práticas  teóricas  e  experimentais  são  regidas 

pelas regras ou princípios do paradigma vigente, e não os podem contradizer. Vista 

dessa maneira, a ciência normal assemelha‐se a uma resolução de quebra‐cabeças: as 

soluções admissíveis para os problemas  científicos  (que  são estes mesmos  também 

definidos pelo paradigma)  estão  restringidas  como numa palavra‐cruzada ou num 

puzzle.  Para Kuhn  (1991),  os  princípios  do  paradigma  vigente  são  semelhantes  às 

regras de um jogo, com a diferença de que em um jogo as regras são todas explícitas, 

e  seu  caráter  meramente  convencional  e  arbitrário  é  óbvio.  Já  nos  paradigmas, 

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embora  as  regras  sejam  convencionais  e  arbitrárias,  esse  caráter  não  é  explícito  e, 

portanto, muitas vezes não é consciente. 

O  sucesso  e a  longevidade desse  tipo de  fase do  empreendimento  científico 

dependem da habilidade e perseverança da comunidade científica para defender que 

seus  pressupostos  sobre  o  universo  estão  corretos. Quando  surgem  novidades  no 

campo experimental que não são explicáveis pela estrutura conceitual e axiomática 

em vigor, elas são num primeiro momento alvo do obsessivo e sistemático exame e 

investigação dos mais hábeis membros dessa comunidade, e num segundo momento, 

simplesmente postas de  lado à espera de novos  instrumentos de medida ou  teorias 

paralelas e integradas que possam explicá‐las.  

Para ele, quando esses novos  fatos – que subvertem pressupostos básicos do 

sistema  conceitual  em  vigor  –  sobrevivem  ao  ataque  sistemático  da  comunidade 

científica, à criação de novos e mais refinados aparelhos, e começam a se cercar de 

outros  fatos empíricos que as  corroboram, é  reconhecida uma  anomalia no  sistema. 

Estas aparecem depois de uma exploração extensa das possibilidades das  teorias e 

práticas experimentais delimitadas pelos princípios e regras do paradigma vigente. 

É assim que a ciência normal, que não seria um empreendimento dirigido para 

novidades,  se  torna  eficaz  em  provocá‐las.  Quanto  mais  aumenta  o  conteúdo 

informativo de uma teoria, mais ela se arrisca a ser falseada. Com efeito, quanto mais 

se diz, mais se está arriscado a errar. Essas anomalias a princípio são marginalizadas, 

e só abalam a solidez dos paradigmas que não estão dando conta de sua existência 

quando aparece uma nova teoria geral, candidata a paradigma, capaz de explicá‐las. 

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Abre‐se  então  o período da  ciência  extraordinária. O paradigma dominante  e 

seus  pressupostos  são  postos  em  dúvida,  surgem  outras  propostas  de  paradigma 

investindo  sobre  o  dominante,  e  então  se  suavizam  as  normas  que  governam  a 

pesquisa  normal. O  acúmulo  de  anomalias  provoca  uma  perda  de  confiança  dos 

cientistas na teoria que haviam abraçado. A busca agora é por um novo paradigma, e 

a crise resultante disso só findará quando conseguir erguer‐se esse novo paradigma, 

onde as anomalias antes encontradas sejam resolvidas e os dados obtidos através do 

paradigma anterior reintegrados em uma nova rede de relações, abrindo‐se um novo 

período de ciência normal, ad infinitum. 

Revolução  científica  para  Kuhn  (1991)  é,  portanto,  a  substituição  de  um 

paradigma  que,  tendo  acumulado  um  número  de  anomalias  suficientes,  gerou  as 

condições necessárias para o surgimento de um novo paradigma que dê conta destas. 

É um momento de evolução não‐linear da história de uma ciência. 

Para Kuhn, quando entramos num período de crise científica, ou seja, de crise 

da ciência normal, só o podemos superar de três maneiras. A primeira é  incorporar 

as anomalias ao paradigma com pequenas alterações em suas  teorias. A segunda é 

deixar  a  anomalia  de  lado,  desde  que  ela  não  esteja  interferindo  na  resolução  de 

outros problemas ou de objetivos tecnológicos. A terceira é a revolução científica, ou 

seja, a mudança de paradigma. 

Segundo  Kuhn,  no  momento  do  conflito  de  paradigmas,  seus  respectivos 

partidários  os  defendem  com  base  em  argumentos  extraídos  dos  próprios 

paradigmas. Cai‐se  assim  inevitavelmente numa  circularidade, pois  se  toma  como 

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pressuposto  os  princípios  do  próprio  paradigma  em  sua  defesa.  Para  Kuhn, 

paradigmas sucessivos dizem coisas diferentes acerca do universo e de seus objetos, 

eles são ontologicamente irredutíveis um ao outro, eles são incomensuráveis. Isso quer 

dizer que para Kuhn, nas revoluções científicas as mudanças de paradigma não são 

realizadas  a  partir  de  regras  metodológicas  com  fundamento  na  racionalidade 

interna do sistema científico: 

 

Existem razões intrínsecas pelas quais a assimilação, seja de um novo tipo de fenômeno, seja de uma nova teoria científica, devam exigir a rejeição  de  um  paradigma mais  antigo? Observe‐se  primeiramente que  se  existem  tais  razões  elas não derivam da  estrutura  lógica do empreendimento científico. (KUHN, 1991, p. 129) 

 

Uma  vez  que  Kuhn  altera  todo  conjunto  fundamental  de  termos  para 

descrição do empreendimento científico, caracterizando‐os de forma vaga, ele acaba 

por  enfraquecer  logicamente  o método  hipotético‐dedutivo  da  ciência moderna,  o 

que  faz David  Stove  acusá‐lo de  tornar  impossível uma  tradução  lógica  estrita do 

processo de investigação científica: 

 

Once you mix the history with the logic of science, the possibilities of such sabotage [of logical expressions] are limitless; and almost every possibility has been  realized. Recall  for example Kuhn’s willingness to dissolve even the strongest logical expressions into sociology about what  scientists  regard  as decisive  arguments;  recall  that  the  logical expressions most  important  to him  (namely  the positive “solves  the problem of”, and  the negative “is  an anomaly  for”) are weak ones, and  are  therefore  easily  sabotaged;  recall  his  express  and  repeated assertion  that what  constitutes  solution  of  a  problem  is  paradigm‐relative;  and  you  will  see  that  his  entire  philosophy  of  science  is actually an engine for the mass‐destruction of all  logical expressions 

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whatever:  a  ‘final  solution’  to  the  problem  of  the  logic  of  science. (Stove, 2001, p.72‐73) 

 

Embora  Kuhn  alegue  que  defende  a  racionalidade  como  característica  do 

empreendimento científico, ele o faz somente em sua forma instrumental em relação 

aos  pressupostos  do  paradigma  vigente,  interna  ao  sistema,  no  contexto  de  uma 

ciência  normal.  Mas  mesmo  essa  racionalidade  interna  é  minada  pelo 

enfraquecimento lógico que suas teses causam. Além disso, enumera vários motivos 

que levam cientistas a adotar um novo paradigma, como reorganização gestáltica do 

quadro conceitual e factual,  interesse e pressão política ou mesmo fé, no sentido de 

acreditar que o novo paradigma será capaz de responder, no futuro, a uma série de 

perguntas  e  problemas,  sabendo  somente  que  o  paradigma  antigo  não  conseguiu 

responder  a  algumas. Assim,  podemos  dizer  que Kuhn  é  anti‐racionalista  porque 

nega que a razão tenha  jurisdição sobre aquilo que é a questão mais  importante do 

empreendimento  científico:  a  revolução  científica  e  suas mudanças  estruturais. Ele 

não  reconhece  o  empreendimento  científico  como  uma  empreitada  teleológica  em 

direção à verdade. Para ele o desenvolvimento  científico  se dá a partir de algo  (os 

estágios primitivos de desenvolvimento), e não em direção a algo (a verdade).  

É  aqui  que  Kuhn  sai  do  campo  da  descrição  sociológica  e  se  aventura  no 

campo da filosofia propriamente dita, estabelecendo a grande fissura da filosofia da 

ciência contemporânea: a tese da incomensurabilidade dos paradigmas. O que Kuhn 

quer  dizer  quando  defende  que  dois  paradigmas  são  incomensuráveis,  é  que  é 

impossível  justificar  racionalmente  nossa  preferência por  uma  teoria  em  relação  a 

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outras teorias de paradigmas rivais. Não temos como comparar teorias de diferentes 

paradigmas de um mesmo ponto de vista, como medi‐las com a mesma escala. 

Esta  impossibilidade de comparação racional entre duas  teorias viria do  fato 

de que entre dois paradigmas diferentes existiriam distinções  radicais, os conceitos 

não  seriam os mesmos: massa, por exemplo, para Newton  significaria uma  coisa e 

para Einstein outra diferente.  Isso  requereria portanto um sistema de  tradução dos 

termos de uma  teoria para a outra, como meio para efetuar uma comparação. Mas 

como não existe uma  linguagem neutra para além de paradigmas particulares, esta 

tradução seria impossível. 

A  forma  de  interpretar  os  fenômenos  e  o  que  é  um  fato  relevante  ou  não 

também muda, e, principalmente, mudariam os métodos para avaliação das teorias. 

É  como  se  a  comunidade  científica  estivesse  jogando um  jogo,  com  suas próprias 

regras, e parte desta comunidade resolvesse mudar de jogo, com novas regras. Sendo 

as regras de cada  jogo diferentes, como podemos  julgar a pontuação de um  jogador 

de  basquete  com  as  regras  do  tênis,  e  vice‐versa?  Não  dá  para  comparar  as 

performances,  porque  os  diferentes  grupos  não  concordam  com  uma  regra  de 

comparação. Teria sido mais ou menos o que aconteceu quando Galileu acreditava 

ter  provado  através  de  observações  pelo  telescópio  que  havia  luas  em  Júpiter. A 

observação  empírica  não  foi  aceita  como  prova  contra  a  demonstração  dedutiva 

especulativa, porque nas regras do jogo aristotélico, demonstrações racionais valiam 

mais  que  evidências  empíricas.  Para  Galileu  ao  contrário,  especulações  racionais 

acerca do mundo jamais poderiam se sobrepor a dados empíricos sobre este. Assim, 

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não teríamos como comparar racionalmente as duas teorias, porquanto o julgamento 

de qual seguir se tornaria uma questão a ser decidida por critérios extra‐racionais. 

Outro  problema  para  Kuhn  (1991)  é  que  quando  ocorre  uma mudança  de 

paradigma,  há  sempre  ganhos  e  perdas  na  capacidade  de  explicação  e  previsão. 

Contra o princípio da verossimilhança do racionalismo crítico, Kuhn afirma que uma 

nova  teoria  explica  alguns  fatos  novos  que  a  teoria  antiga  não  explica, mas  esta 

geralmente continua a explicar fatos que a nova não teria como explicar. Assim, não 

se justificaria afirmar que uma teoria é como projeto explicativo superior à outra. 

Por  fim,  diante  de  toda  esta  gama  de  dificuldades,  os  cientistas  acabariam 

recorrendo a critérios particulares para comparar teorias e paradigmas concorrentes, 

entre  os  quais  estariam  a  simplicidade,  o  poder  preditivo,  a  abrangência,  a 

abordagem  de  problemas  considerados  importantes  ou  solução  de  problemas 

tecnológicos candentes. Mas como cada cientista confere pesos diferentes para cada 

um destes  critérios, a babel estaria definitivamente  instalada. É por  isso que Kuhn 

acredita que fatores políticos e ou propagandísticos importam muito mais na hora da 

escolha entre dois paradigmas concorrentes do que critérios lógico‐empíricos. 

Alguns  anos  depois,  em  “Reflections  on  my  critics”,  Kuhn  (1974)  revê  o 

radicalismo  desta  posição,  aceitando  as  críticas  feitas  a  sua  tese  por  alguns 

racionalistas críticos. Neste artigo Kuhn admite que nem todos os conceitos mudam 

de  significado  de  um  paradigma  para  outro,  e  que  como  restam  intersecções 

conceituais  e  empíricas  entre  teorias,  no  fim  das  contas,  elas  poderiam  ser 

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comparadas à  luz de uma base  comum, elas poderiam  ser  co‐mensuradas. Mas esta 

revisão de sua teoria veio tarde.  

Em O Caminho  desde  a Estrutura, Kuhn  (2003)  tentou pela derradeira  vez  se 

desvencilhar dos indesejados seguidores afirmando a necessidade de se defenderem 

os conceitos de verdade e conhecimento do relativismo pós‐moderno que ele atribuía 

ao construtivismo social. Chegou a declarar (p.139) que se incluía “entre aqueles que 

consideram absurdas as alegações do programa forte: um exemplo de desconstrução 

desvairada”: 

 Interesses,  política,  poder  e  autoridade  sem  dúvida  desempenham um papel significativo na vida científica e em seu desenvolvimento. Mas a forma que os estudos da ‘negociação’ tomaram, como indiquei, tornou difícil perceber o que mais também pode desempenhar papel relevante.  De  fato,  a  forma  mais  extrema  desse  movimento, denominada  por  seus  proponentes  o  ‘programa  forte’,  tem  sido geralmente  entendida  como  a defesa de que poder  e  interesses  são tudo que há. A própria natureza, seja lá o que for isso, parece não ter papel algum no desenvolvimento das crenças a seu respeito. O falar de  evidência,  da  racionalidade  das  asserções  extraídas  dela  e  da verdade  ou  probabilidade  dessas  asserções  foi  visto  como simplesmente a  retórica atrás da qual a parte vitoriosa esconde  seu poder.  O  que  passa  por  conhecimento  científico  torna‐se,  então, apenas, a crença dos vitoriosos. (KUHN, 2003, p. 139) 

 

Mas  nada  disso  mudou  o  fato  de  que  suas  idéias,  particularmente  a  da 

incomensurabilidade  (que ele de  fato abandonou em grande parte em seus últimos 

escritos),  se  tornaram,  como  havia  previsto  Popper  (1974,  p.  56),  o  baluarte  do 

irracionalismo de nossa época. Isto aconteceu porque os paradigmas no contexto do 

pensamento kuhniano  referem‐se a modelos de mundo  construídos de uma  forma 

que impede que, em última análise, sejam julgados por uma realidade objetiva.  

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Assim,  a  considerável  aceitação  das  teses  heterodoxas  de  Kuhn  foi 

fundamental  para  a  propagação  de  enfoques  cada  vez  mais  externalistas  no 

pensamento epistemológico (OLIVA, 2005), que advogam a tese da determinação da 

cientificidade de  teorias por critérios externos à  lógica da  investigação científica. O 

construtivismo  social,  ao  considerar  esta  filosofia  “pós‐positivista”  como  a  grande 

vencedora do debate  epistemológico, passou  a  invocá‐la  como  a  fonte decisiva de 

argumentos a  favor do  relativismo  epistêmico,  e a  interpretou de  forma bem mais 

radical do que Kuhn desejaria. Ela foi recebida por autores como Barry Barnes (1982) 

como  o ponto de partida de um  novo  enfoque  sociológico  sobre  a  ciência,  já  que 

provia  o  indispensável  fundamento  epistemológico  a  uma  abordagem  sociológica 

que pretendia explicar a ciência no que tem de essencial: sua cognitividade.  

Apesar de ter lutado a vida inteira contra o rótulo de relativista, Thomas Kuhn 

foi mal‐sucedido nesta  luta. Sua  situação piorou quando  seguidores da  sua versão 

original  da  incomensurabilidade  dos  paradigmas  resolveram  levar  esta  tese  às 

últimas conseqüências. Este  foi o caso de Paul Feyerabend  (1989), criador do auto‐

denominado “anarquismo epistemológico” que marcou o lance mais radical do jogo 

irracionalista na filosofia da ciência. 

 

3.2.3 – Feyerabend e a anarquização da epistemologia 

Antes  de  tudo  é  importante  pontuar  que  não  se  pretende  aqui  examinar  o 

conjunto da  obra de Paul  Feyerabend, mas  somente  analisar  aquele  seu  texto  que 

ilustra  melhor  as  teses  relativistas  que  foram  incorporadas  pelo  construtivismo 

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social.  Em  Contra  o  Método,  de  1975,  ele  lança  seu  anarquismo  epistemológico, 

defendendo que a metodologia científica é na verdade o grande fator de entrave ao 

progresso  da  ciência  e  levando  o  movimento  de  revisão  da  filosofia  da  ciência 

tradicional ao seu ponto mais radical. 

Esta obra pretende ser a defesa de uma revolução permanente em ciência, que 

implica na visão da regra metodológica como sendo sempre reacionária. Seu ataque 

às regras, como sintetiza Oliva  (1990), se dá com base em  três  teses. Primeira, a de 

que  a  história  demonstra  que  os  mais  autênticos  progressos  do  conhecimento 

contrariam de uma ou de outra maneira  todas as metodologias até hoje propostas. 

Não  haveria  uma  só  regra  que  embora  plausível  e  bem  fundada  deixasse  de  ser 

violada em algum momento. Segunda, a de que há um grande descompasso entre o 

que propõem as regras e o que efetivamente  fazem os cientistas. Terceira, a de que 

todas as metodologias teriam deficiências de fundamentação, daí inferindo que só o 

vale‐tudo é capaz de manter‐se. Sustenta estas teses com interpretações de exemplos 

históricos que  indicariam que  as  regras  se  constituem,  em momentos decisivos da 

ciência, em autênticos entraves à marcha do conhecimento. 

Feyerabend (1989) afirma em outro ponto de sua obra que seu objetivo não é o 

de  substituir  um  conjunto  de  regras  por  outro  com  o mesmo  perfil  dos  cânones 

tradicionais.  Seu  objetivo  seria,  antes,  o  de  convencer  o  leitor  de  que  todas  as 

metodologias,  inclusive  as mais  óbvias,  têm  limitações. No  entanto,  esta  segunda 

formulação  é  um  truísmo.  Neste  movimento  vemos  uma  característica  típica  da 

filosofia pós‐moderna: afirmações grandiloqüentes e propagandísticas, que  levam a 

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conseqüências  absurdas,  lançam  seu  autor  na moda  filosófica do momento;  assim 

que refutadas, são geralmente seguidas de retificações em obscuros artigos‐resposta, 

retificações estas que no entanto levam a posições comuns e sem interesse filosófico 

algum. Este é um movimento parecido com o que André Kukla (2000, p.X) denomina 

o pecado  filosófico do  “reverse  switcheroos”: difundir  a versão  forte de uma  tese,  e 

assim que seus problemas forem apontados de forma cabal, recuar para uma versão 

fraca da mesma  tese,  fingindo que  era  essa versão  fraca que  se  tinha  em mente  o 

tempo todo.  

Feyerabend  (1989)  afirma  que  há  circunstâncias  em  que  é  aconselhável 

introduzir,  elaborar  e  defender  hipóteses  ad  hoc,  hipóteses  que  se  colocam  em 

contradição  com  resultados  experimentais  aceitos  e  estabelecidos,  hipóteses  de 

conteúdo  explicativo  mais  reduzido  que  o  da  hipótese  existente  e  até  hipóteses 

contraditórias porque: 

 Os  que  tomam do  rico material da  história,  sem  a preocupação de empobrecê‐lo para agradar aos seus baixos instintos, a seu anseio de segurança  intelectual  (que  se  manifesta  como  desejo  de  clareza, precisão,  ‘objetividade’,  ‘verdade’),  esses  vêem  claro  que  só  há  um princípio que pode ser defendido em todas as circunstâncias e todos os  estágios  do  desenvolvimento  humano:  É  o  princípio:  tudo  vale. (FEYERABEND, 1989, P.34) 

 

Para ele, só tem chance de sucesso na dura empreitada científica o pesquisador 

que esteja disposto a se comportar como um “oportunista brutal”  (1989, p. 19) que 

não  se prenda  à  filosofia  nenhuma  e  adote  a diretriz mais profícua para  a  qual  a 

ocasião  aponte.  A  adesão  a  novas  idéias  tem  de  ser  conseguida  por meios  não‐

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racionais,  como  a propaganda,  a  emoção,  as hipóteses  ad  hoc  e  os preconceitos de 

toda a espécie. Isso tudo é necessário até que se disponha de ciências auxiliares, fatos 

e argumentos que  transformem a  fé  em  conhecimento bem  fundado. Teorias  só  se 

tornariam  claras  depois  de  terem  sido  usadas  por  longo  tempo  várias  das  partes 

incoerentes que as compõem. Nesse contexto se torna importante o aparecimento de 

uma nova classe secular dotada de nova visão e acentuado desprezo pela ciência das 

escolas. Mesmo  porque,  segundo  Feyerabend,  não  é  na  razão  que  reside  a  força 

argumentativa máxima  de  uma  teoria  nem  seu  valor  intrínseco, mas  sim  na  sua 

capacidade de influenciar pessoas. 

Só recorrer a teorias alternativas quando a teoria ortodoxa já foi refutada seria 

botar  o  carro  adiante  dos  bois:  para  ele  a  evidência  capaz  de  refutar  uma  teoria 

muitas  vezes  só  é  revelada  por  uma  teoria  alternativa  incompatível.  Por  isso  o 

princípio  da  proliferação  de  Feyerabend  (1989)  defende  que  o  cientista  deve  adotar 

metodologia pluralista. Já que a construção teórica é criação explicativa e os fatos são 

especificados  pelos  próprios  pressupostos  interpretativos,  só  sairíamos  dessa 

circularidade através da confecção do maior número possível de teorizações, já que a 

multiplicação de diferentes óticas teóricas ampliaria o universo de fatos testadores da 

teoria  por  nós  patrocinada.  Além  do  mais,  certos  “fatos”  refutadores  só  se 

identificariam a partir da elaboração de alteridades explicativas, não sendo possível 

sequer percebê‐los como fatos, segundo ele, a partir do referencial teórico dominante. 

Assim  sendo,  tudo  é  justificável para  conseguir  a diversificação,  a proliferação de 

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teorias,  até mesmo  a  força  e  a  intervenção  política  nas  ciências  que  se  tornaram 

“rígidas e intolerantes” (p.69), como foi feito na China de Mao Tsé Tung (p.464). 

Esse ataque ao ideal empirista de ciência equipara epistemologicamente todas 

as modalidades  de  alegação  de  conhecimento,  incluido  o mito.  Feyerabend  (1989) 

centra  sua análise na  rejeição às distinções  clássicas entre contexto da descoberta e 

contexto da  justificação, entre  linguagem observacional e  linguagem teórica, e entre 

ciência  e metafísica/mito. Essa postura parte do  fato de que  a  ciência não  conhece 

fatos nus: os fatos de que tomamos conhecimento são vistos como fatos porque uma 

série de pressupostos observacionais recortou a massa de percepções de determinada 

forma, e não de outra. Bem até aí, nada de novo. Mas partindo da tese de que não há 

fatos que possam ser descritos independentemente de uma teoria, Feyerabend (1989) 

postula  não  haver  domínio  observacional  autônomo.  Assim,  se  não  há  verdade 

objetiva a alcançar, sequer verossimilhança, não há como comparar duas  teorias na 

busca  de  uma mais  próxima  da  verdade,  pois  são  esquemas  conceituais  e  factuais 

incomensuráveis.  Aqui  Feyerabend  pretende  demonstrar  a  insustentabilidade  da 

velha distinção entre linguagem teórica e linguagem observacional. 

Assim como Feyerabend (1989) quer abolir a distinção entre termos teóricos e 

termos observacionais, quer também abolir a distinção entre contexto de justificação 

e contexto de descoberta. Diz que nenhuma dessas distinções  tem papel na prática 

científica, uma vez que o contexto da justificação também pertenceria ao domínio da 

construção, da criatividade, que pode validar uma  teoria com critérios que venha a 

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desenvolver. Dessa forma, a fronteira entre a criação e descoberta e o contexto de sua 

prova e validação perante os fatos ficaria dissolvida. 

Com  base  nestes  argumentos,  uma  vez  que  “a  ciência  é  uma  das  muitas 

formas de pensamento desenvolvidas pelo homem e não necessariamente a melhor” 

(1989,  p.  447),  ele  introduz  uma  questão  que  parece  se  revelar  a maior  de  suas 

motivações  teóricas  (assim  como  parece  ser  também  a  da  maioria  dos  autores 

construtivistas sociais): a crítica ao poder social especial do discurso científico. Tenta 

fazer de sua obra um libelo pela separação entre Estado e ciência: 

 Como  a  aceitação  e  a  rejeição  de  ideologias  devem  caber  ao indivíduo, segue‐se que a separação entre Estado e a Igreja há de ser complementada por uma separação entre o Estado e a ciência, a mais recente, mais  agressiva  e mais  dogmática  instituição  religiosa.  Tal separação será,  talvez, a única  forma de alcançarmos a humanidade de  que  somos  capazes,  mas  que  jamais  concretizamos.” (FEYERABEND, 1989, p.454) 

 

Feyerabend  (1989)  afirma que não há porque os objetivos da  ciência devam 

restringir as vidas, os pensamentos e a educação dos  integrantes de uma sociedade 

livre, uma vez que  a  ciência não  tem  autoridade maior que qualquer  outra  forma 

cultural. Ataca a atitude de conferir à ciência uma “lógica” própria que lhe concede 

um poder especial, socialmente exorbitante. Deve‐se separar estado e ciência. Além 

do mais, afirma Feyerabend, a ciência moderna  se  impôs a  seus oponentes, não os 

convenceu.  A  ciência  dominou  os  mais  ignorantes  pela  força,  e  não  através  de 

argumentos  racionais  (p.450).  Afirma  com  revolta  que  apesar  dos  esforços  da 

desrazão a ciência continua a reinar soberana, porque seus praticantes são incapazes 

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de tolerar ideologias diferentes e usam a força para impor seus desejos. Reclama que 

a maneira como aceitamos ou rejeitamos teorias científicas não é democrática. Não há 

votação  sobre  as  teorias  científicas  que  são  ensinadas  a  nossos  filhos,  porque  os 

cientistas não as submetem à votação (p. 456). 

Por isso e por tudo o que ele crê ter demonstrado sobre o discurso científico, a 

ciência se equipara ao mito. As conquistas tecnológicas da ciência moderna (como a 

ida à Lua) são exageradas pela ideologia cientificista, tribos primitivas possuíam um 

sistema de saber próprio, capazes às vezes de coisas de que a ciência é incapaz: 

 Por  certo que  [na  idade da pedra] não houve  excursões  coletivas  à Lua, mas indivíduos isolados, desprezando grandes perigos que lhes ameaçavam a alma e a sanidade mental elevaram‐se de esfera a esfera e  finalmente  encararam  Deus  em  todo  Seu  esplendor,  enquanto outros homens se transformavam em animais para depois readquirir a figura humana. (FEYERABEND, 1989, P.463) 

 

Afirma que a ciência é a “mais desprezível  forma de escravidão  intelectual e 

institucional” (p.454), e que deveríamos numa sociedade ideal contar com cientistas 

escravos  voluntários  que  seriam  bem  tratados  para  nos  dar  pílulas,  gás,  bombas 

atômicas  e  refeições  congeladas  (p.454). Por  fim  classifica  a  filosofia da  ciência de 

“disciplina espúria” (p. 455). Crê que devemos lutar politicamente para evitar que a 

identificação de eventuais superioridades da explicação científica acabe por dotá‐la 

de poderes sociais especiais, nos conclamando ao final de sua obra: 

 Cabe  aos  cidadãos  da  sociedade  livre  aceitar  o  chauvinismo  da ciência  sem  contraditá‐la  ou  subjugá‐la  pela  força  oposta  da  ação geral.  Ação  geral  foi  utilizada  contra  a  ciência  pelos  comunistas chineses na década de 1950 e voltou a  ser usada, em  circunstâncias 

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muito  diversas,  por  algumas  pessoas  que  se  opunham  à  teoria  da evolução,  na  Califórnia  da  década  de  1970.  Acompanhemos  esses exemplos e livremos a sociedade do aperto estrangulador da Religião verdadeira e Única. (FEYERABEND, 1989, p. 464) 

   

O estudante da “espúria disciplina” da filosofia da ciência que se depara com 

a obra de filosofia da ciência de Feyerabend percebe imediatamente que está diante 

de uma provocação  filosófica, não de uma  teoria  filosófica. Mas mesmo  entendida 

como  uma  provocação,  sua  obra  é  excessivamente  confusa  e  incongruente.  A 

debilidade  básica  dessa  “epistemologia”,  da  qual  decorre  a  maioria  das  outras 

incongruências,  parte  do  dilema,  apresentado  por  Oliva  (1990),  entre  propor 

alternativas epistemológicas superiores às regras metodológicas  já formuladas ou se 

opor  a  toda  e  qualquer  epistemologia.  Essa  contradição  é  dissimulada  com  uma 

alternância confusa, durante  toda a obra, entre essas duas posições, aparentemente 

com o objetivo de  evitar  as  conclusões desagradáveis deriváveis de qualquer uma 

delas, se consideradas em separado.  

Existem outras incongruências sérias em sua obra. A rejeição de Feyerabend à 

metodologia em  si, é uma delas. Ao  formulá‐la,  como observou Oliva  (1990), ele a 

justifica  recorrendo  ao  método  de  indução  que  diz  incompetente,  apoiando‐se 

pobremente em uns poucos exemplos históricos. Como ele pode afirmar que o  fato 

de que seriam falhas todas as metodologias que a epistemologia tenha formulado até 

hoje pode determinar que  todas as metodologias que venham a ser criadas  tenham 

que  apresentar  falhas?  Em  outra  incoerência,  vemos  que  enquanto  algumas  vezes 

acusa  a  razão  e  o método  como  travadores do progresso,  em outras  afirma que  o 

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progresso não existe porque as  teorias científicas  são  incomensuráveis. Feyerabend 

não se decide, durante toda a sua argumentação, entre acusar a razão de obstáculo ao 

progresso humano apresentando‐se como seu defensor, ou acusá‐la de criadora do 

mito  do  progresso,  apresentando‐se  como  seu  desmascarador.  O  que  importa  o 

tempo todo, ao que parece, é acusar a razão de alguma coisa. 

Uma última  crítica  (em virtude do espaço aqui dedicado) pretendo dirigir ao 

princípio da proliferação. Uma vez que a construção teórica é criação explicativa e o 

ponto de vista cria o objeto, Feyerabend (1989) afirma que o ideal a perseguir é o do 

confronto entre perspectivas diferentes e não o modelo tradicional que testa a teoria 

com  base  nos  “fatos  pertinentes”.  Se  os  fatos  são  especificados  pelos  próprios 

pressupostos  interpretativos, só saímos dessa circularidade através da confecção do 

maior  número  possível  de  teorizações,  já  que  a multiplicação  de  diferentes  óticas 

teóricas vai ampliar o universo de fatos testadores da teoria por nós patrocinada. Mas 

de que valem novas  teorias  se os  sistemas  interpretativos  serão outros e, portanto, 

outros  serão os objetos abordados? O princípio da proliferação  só  seria defensável 

segundo Oliva (1990), na hipótese de uma ordem epistêmica superior às duas versões 

alternativas,  onde  elas  pudessem  ser  confrontadas.  Pois  se  as  teorias  são 

incomensuráveis, o princípio de proliferação não serve para nada. 

  Em  suma:  o  anarquismo  epistemológico  de  Feyerabend  é  tão  cheio  de 

incongruências e aporias, que leva quem sobre ele se debruça com olhar benevolente 

a pensar que toda sua obra pode não passar de uma mera peça de publicidade, um 

trabalho de animação cultural, concluindo que suas confusões e contradições podem 

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ser uma brincadeira  com vistas a provocar  as  convicções  racionalistas do  leitor  ao 

martelar  teses manifestamente  irracionalistas. Uma disposição menos  favorável, no 

entanto, pode  levar o  leitor a  concluir  simplesmente que a obra  é um  exercício de 

mera desonestidade intelectual, como ele próprio insinua (1989):  

 Tenha‐se sempre em mente que as demonstrações e a retórica usada não expressam profundas convicções minhas. Apenas mostram como é fácil, através de um recurso ao racional, iludir as pessoas e conduzi‐las ao nosso bel‐prazer. Um anarquista é como um agente secreto que participa  do  jogo  da  Razão  para  solapar  a  autoridade  da  Razão (Verdade, Honestidade, Justiça e assim por diante) (p. 43) 

 

Rejeitando  o  critério  de  demarcação,  recusando  a  legitimidade  de  toda  e 

qualquer  regra metodológica,  a  distinção  entre  linguagem  teórica  e  observacional 

(tese da imbricação entre ambas), a distinção entre contexto da descoberta e contexto 

da  justificação  e  a  noção  de  progresso  dada  a  incomensurabilidade  das  teorias, 

Feyerabend  se  tornou  um  autor  influente.  Todas  essas  radicalizações,  algumas  de 

teses  defendidas  por  Thomas  Kuhn,  foram  incorporadas,  como  veremos,  pelo 

construtivismo social em seu ataque à epistemologia tradicional. No entanto, o nome 

de  Feyerabend,  desgastado  pela  forma  pouco  coerente  como  expõe  suas  idéias,  é 

muito pouco citado pelos autores do strong programme. 

 

Nas  páginas  que  nos  levaram  até  aqui  foi  apresentada  boa  parte  dos mais 

importantes ataques que o século XX testemunhou contra a epistemologia tradicional 

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antes do construtivismo social. Larry Laudan (1990) define desta forma os objetivos 

do tipo de epistemologia que se tornou o alvo do irracionalismo contemporâneo: 

 A  search  for  incorrigible  givens  from  each  the  rest  of  knowledge could be derived; A  commitment  to  given  advice  about  how  to  improve  knowledge; and the identification of criteria for recognizing when one had a bona fide knowledge claim. (LAUDAN, p.134) 

 

De  fato  a maioria de nós,  afirma Laudan,  concorda que o primeiro objetivo 

deve ser abandonado. O problema é que construtivistas sociais como Barnes e Bloor, 

e  epistemólogos  naturalistas  como Quine  defendem  a  questionável  tese  de  que  o 

descarte do programa  fundacionalista  implica  também o abandono dos outros dois 

objetivos, o que de fato caracterizaria o fim da busca dos meios pelos quais se dá a 

validação do conhecimento. O próprio Quine (1969, p.87) reconhece que a perda do 

status de  filosofia primeira pela  epistemologia desencadeou uma onda de niilismo 

epistemológico.  

Vistas  as mais  importantes  teses  filosóficas  nas  quais  se  baseia,  e  que  são 

anteriores historicamente ao  seu  surgimento, a partir dos dois próximos  capítulos, 

vamos  investigar em mais detalhes o  tipo de atividade que o construtivismo social 

pretende estabelecer em lugar da epistemologia tradicional. 

 

 

 

 

 

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3.3. – Construtivismo Social e Ontologia 

 

  Neste  item  abordarei  fundamentalmente  as  teses  e  posições  ontológicas  do 

construtivismo social. Digo  ‘fundamentalmente’ porque no  interior desta corrente é 

pouco natural a distinção entre teses ontológicas e epistemológicas.  

  Começaremos por investigar como o construtivismo social se posiciona sobre 

a mais básica das questões, a Q1 da caracterização geral do segundo capítulo: existem 

objetos independentes da mente humana? Em seguida, abordaremos uma complexa 

questão  que  se  coloca  ao  construtivismo  social:  do  que  existe,  o  que  é  fruto  de 

construção  social  e  o  que  não  é? Que  tipos  de  objetos  são  construídos?  Por  fim, 

veremos que quando a resposta dada à questão acima é a de que os próprios  fatos 

são  construídos,  estamos  diante  de  uma  cisão  irremediável  no movimento.  É  em 

virtude  destas  questões  ontológicas  e  de  suas  várias  e  confusas  teses,  que  o 

construtivismo  social  se  fragmentou,  restando  somente  como  identidade  comum 

algumas posições epistemológicas fortemente heterodoxas. 

 

3.3.1. O que existe para o construtivismo social?  

Grande parte da dificuldade em se separar teses ontológicas e epistemológicas 

no  construtivismo  social  vem  do  uso  da  própria  palavra  ‘construção’.  Palavras 

terminadas  com  o morfema  ‘ção’  na  nossa  língua  carregam  grande  ambiguidade, 

podendo denotar tanto o processo de chegar a algo como o produto desse processo 

(produção  pode  se  referir  ao  processo  de  produzir  ou  ao  produto,  inflexão  ao 

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processo  de  inverter  uma  tendência  ou  ao  resultado  dessa  inversão  e  assim  por 

diante). Assim, quando alguém  fala na  ‘construção social’ da moeda, pode estar se 

referindo a um estudo tanto do processo de construir uma moeda nacional (e nesse 

caso  o  estudo  tem  um  caráter mais  histórico)  quanto  de  um  produto  final,  uma 

moeda (e nesse caso o estudo tem um caráter mais sistêmico). 

Para  tornar o quadro ainda mais complexo, quando um construtivista  social 

afirma  que  um  objeto  (como  quarks)  é  construído  socialmente,  ele  pode  estar 

afirmando que a) as crenças generalizadas socialmente sobre quarks são socialmente 

construídas;  b)  as  crenças  científicas  sobre  quarks  são  socialmente  construídas, 

inclusive o conceito de quark; c) os  fatos sobre quarks são socialmente construídos; 

ou  ainda  d)  os  quarks mesmos  são  socialmente  construídos.  Claro  que  podemos 

esperar  também  que,  às  vezes,  surja  alguma  opção  diversa  e mais  estranha  que 

alguma das quatro acima.  

No entanto há algo comum a todas essas abordagens ontológicas, e é uma tese 

epistêmica:  o  tipo  de  dados  empíricos  que  pode  fundamentalmente  ser  alcançado 

quando  falamos de  (a) crenças, são suas expressões verbais, quando  falamos de  (b) 

conhecimento científico, são o conjunto de proposições publicadas que expressam as 

observações e leis admitidas como reais, quando falamos de (c) fatos, são somente as 

descrições  linguísticas  de  observações.  Assim,  temos  aqui  mais  um  ponto  de 

dispersão  do  construtivismo  social,  pois  da  versão  social  da  tese  kantiana  de 

inacessibilidade  da  coisa‐em‐si  que  está  na  origem  do  relativismo  e  ceticismo 

epistemológicos presentes em todo o campo pode‐se avançar, e autores como Latour, 

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Woolgar  e  Collins  o  fazem,  para  a  tese  ontológica  de  que  tudo  o  que  existe  é  o 

discurso  (ou  como  diziam  Latour  e  Woolgar  (1986)  em  “Laboratory  Life”  sob  a 

influência de Jacques Derrida: inscriptions). É curioso ver que em seu limite extremo, 

estas  posições  autodenominadas  construtivistas  chegam  às  mesmas  teses 

desconstrucionistas de Derrida: 

 There is no sense in which we can claim that the phenomenon (...) has an existence  independent of  its means of expression (…) There  is no object  beyond  discourse  (…)  the  organization  of  discourse  is  the object.  Facts  and  objects  in  the  world  are  inescapably  textual constructions. (WOOLGAR, 1988, p. 73) 

 

Como vemos, o construtivismo social neste ponto faz uso das teses de autores 

como Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend  contra as bases atomistas e  referencialistas 

que a filosofia da ciência tradicional identificava na ciência moderna, o que é crucial 

para o estabelecimento de sua versão social da ciência. Ao adotar como o faz Bloor 

(1983, 1997a) a tese wittgensteiniana do significado como uso no interior de um jogo 

de linguagem particular, termos científicos passam a ser considerados fruto do  jogo 

de  linguagem  específico  à  ciência  e  de  suas  negociações  sociais;  e  os  termos 

observacionais,  que  não  teriam  como  prescindir  desses  óculos  lingüísticos  sociais, 

não  são  capazes de  sair dessa  redoma pois afinal de  contas  também  são entidades 

linguísticas cujo significado será dado pelo uso naquele contexto social. 

Há algo implícito nas teses construtivistas sociais que é plenamente assumido 

pelo  seu  congênere  psicológico,  o  construcionismo  social:  a  tese  da  relatividade 

linguística  de  Benjamin Whorf  (1979),  que  afirma  que  o  pensamento  se  resume  à 

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linguagem e que portanto diferentes  linguagens constrangem diferentemente o que 

podemos  ou  não  podemos  perceber.  Tal  tese  não  é  somente  filosófica,  ela  tem 

consequências testáveis muito simples e já foi refutada experimentalmente de forma 

extensa  e  diversificada  (Cf.  CASTAÑON,  2001).  Esta  visão  da  linguagem  é 

dependente da  tradição do behaviorismo  linguístico  impulsionada a partir da obra 

de Wittgenstein e implica uma visão passiva de sujeito e empobrecida dos processos 

cognitivos  humanos,  além  de  se mostrar  alienada  dos  resultados  da  neurociência 

contemporânea.  

É necessário no entanto dizer que, apesar de Bloor (1983) assumir esta tese em 

sua  obra,  ele  recentemente  começou  a  apresentar  a  disposição  de  se  afastar  da 

relatividade  linguística  (BARNES,  BLOOR  E  HENRY,  1996),  ao  admitir  que  a 

percepção  sensorial  pode  ser  um  processo mental  humano  altamente modular  e 

relativamente  independente dos  filtros  lingüísticos. Exploraremos este problema no 

item seguinte, dedicado a questões epistemológicas. 

Por  hora,  o  que  importa  é  lembrar  que  Kuhn  e  Feyerabend  assumem 

implicitamente  esta  tese  ao  se  comprometerem  com  o  pressuposto  de  que  no 

processo de construção de conhecimento fazemos uso de uma linguagem particular 

que carrega consigo os constrangimentos e hipóteses ontológicas  implícitas de uma 

visão particular de mundo, de uma forma de vida. Partindo disso, o construtivismo 

social ontológico dá o passo que decreta que se a linguagem é um produto social, e 

tudo o que chamamos de fatos, observações, teorias e leis científicas são comunicados 

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e negociados unicamente através de uma linguagem, então fatos, observações, teorias 

e leis científicas são construções meramente linguísticas de natureza social.  

  Quando Berger & Luckmann (1973) cunharam o termo ‘construção social’, eles 

tinham  em  mente  um  objeto  do  tipo  a  acima  mencionado,  isto  é,  crenças 

compartilhadas  sobre  a  realidade.  Na  verdade,  não  pretendiam  sequer  estudar 

sociologicamente o processo de obtenção de conhecimento científico, mas somente as 

crenças  compartilhadas por  setores da  sociedade  sobre o que  é  e  como  funciona  a 

realidade, ou  seja, o que é  tido como conhecimento. Barnes e Bloor, ao  lançarem o 

programa  forte em sociologia da ciência  tinham pretensões do  tipo b. Eles queriam 

investigar e estabelecer quais são os processos sociais que levam ao estabelecimento 

de uma crença científica compartilhada pela comunidade científica relevante, e esses 

processos  seriam  seu  objeto  primário  de  estudo.  A  ambição  última  do  strong 

programme  é  o  estabelecimento de  leis  causais de  formação das  crenças  científicas, 

assim, suas proposições sobre o  tema serão avaliadas no subitem dedicado às suas 

teses epistemológicas. Mas essa ambição não altera a crença básica sobre o que são 

seus  dados  primários  e  o  que  sustenta  a  estabilidade  das  observações,  e  não  é  o 

“mundo” do realismo ontológico tradicional: 

 There  is  indeed  truth  in  the  conviction  that knowledge and  science depends on something outside of mere belief. But  that outside  force which  sustains  it  is not  transcendent. There  is  indeed  something  in which  sustains  it  is  not  transcendent.  (…)  What  is  ‘outside’ knowledge; what  is  greater  than  it; what  sustains  it,  is  of  course, society itself. (BLOOR, 1991, p. 82) 

   

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Por mais que Bloor se explique, e o tem feito seguidamente desde a publicação 

de Knowledge  and Social  Imagery,  é muito difícil ver onde  sua posição difere da de 

Harry  Collins,  que  argumentando  em  prol  da  tese  da  ilimitada  flexibilidade 

interpretativa dos dados empíricos declara que “the natural world has a small or non‐

existent role in the construction of scientific knowledge” (COLLINS, 1981, p.05) 

  Apesar  de  declarações  de  efeito  como  a  de  Collins,  poucos  membros  do 

construtivismo social aceitam a qualificação de idealistas. Estes protestos, em virtude 

de seu caráter conflitante em relação a outras teses  importantes da abordagem, não 

são muito  levados em consideração por seus principais críticos, como Mário Bunge 

(1992), que considera que para o construtivismo social construtivismo é a rejeição da 

visão  de  que  os  fatos  naturais  são  independentes  da  atividade  humana,  dos 

processos  sociais,  e  de  que  a  realidade  que  as  teorias  científicas  descrevem  é 

independente  de  nossos  pensamentos  e  compromissos  teóricos.  As  comunidades 

científicas, imersas em uma rede lingüística e cultural, construiriam não apenas suas 

explicações dos fatos, mas os próprios fatos.  

Mas como afirma Niiniluoto (1999, p.261), a posição do construtivismo social 

não  é  idealista  em  sentido  estrito, ontológico: poderíamos  falar no máximo de um 

“idealismo metodológico”. Seguidamente Bloor (1983, 1991, 1999, 2007) declara ser o 

strong  programme  aderido  a  um  monismo  materialista,  sendo  assim,  não  existe 

natureza e sociedade, mas uma sociedade que faz parte da natureza: 

 

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The  Strong  Program  is  part  of  a  naturalistic  and  causal  enterprise. From  the  standpoint of  the Strong Program,  society  itself  is part of nature.  The word  ‘natureʹ  refers  to  the  all‐encompassing, material system  in  which  human  animals  and  the  entire  pattern  of  their interactions,  and  all  the  products  and  consequences  of  these interactions,  have  their  allotted  place.  To  talk  about  society explaining  nature, when  it  is  but  one part  of  nature,  is  incoherent. Knowledge  itself  is  just  one more  natural  phenomenon.  (BLOOR, 1999, p.87) 

 

De  fato, não  se pode dizer que o programa  forte  é  idealista, mesmo porque 

sequer  considera  o  papel  da  mente  individual  na  construção  do  social,  antes, 

considera que a linguagem é que constrói a ilusão da mente individual (Bloor, 1983). 

Não  é  a  subjetividade  o  que  existe,  é  o mundo  físico  e  nele  os  sistemas de  sinais 

físicos que constituem os jogos de linguagem. Mas apesar de não ser idealista estrito 

senso, a abordagem é  francamente oposta àquilo que Niiniluoto  (1999) classifica de 

realismo  epistemológico,  seja  ele  dogmático  ou  crítico.  Por  considerar  nula  ou 

próxima de nula, e de nenhuma  forma direta, a  influência do mundo na  formação 

das  crenças  científicas,  o  construtivismo  social  decreta  que,  por  uma  questão 

metodológica,  na  hora  de  procurarmos  explicar  a  causa  de  crenças  científicas, 

deveríamos  desconsiderar metodologicamente  o mundo  e  nos  concentrarmos  nas 

determinantes  sociais  da  crença.  Ou  seja,  o  programa  forte  é  cético  acerca  da 

obtenção de conhecimento aproximadamente verdadeiro sobre o mundo. 

Em  sua última  tentativa de dar uma  forma  canônica  ao  strong programme, 

Barnes, Bloor & Henry  (1996) publicaram Scientific Knowledge: a  sociological analysis, 

onde  entre  outras  coisas,  voltam  a  tentar  defender  a  tese  forte  das  reiteradas 

acusações de esposar um  idealismo que  contraria o  espírito empirista e  realista da 

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ciência moderna. De maneira inequívoca, se colocam contra a abordagem sociológica 

idealista do conhecimento científico, que “denies the existence of an external world and 

gives  no  role  to  experience  in  the  generation  of  knowledge  and  belief”  (p.76,  202).  O 

problema  é  que  não  indicam  claramente,  como  veremos  no  próximo  item  do 

capítulo, a  forma  como o mundo  interferiria na  formação de nossas  crenças. Além 

disso,  raros  são os autores  construtivistas  sociais que  em algum momento de  suas 

carreiras afirmaram diretamente a inexistência do mundo físico, e dos que o fizeram 

houve quem não tardasse a retificar suas afirmações (LATOUR, 2000). 

Assim podemos dizer que, de maneira geral, autores construtivistas sociais se 

alternam  entre o  realismo ontológico  e o  ceticismo ontológico, mas dificilmente  se 

declaram  idealistas, qualificação que costuma a ser a eles atribuída por seus muitos 

críticos.  No  entanto,  são  céticos  quanto  à  possibilidade  de  se  estabelecer 

conhecimento  de  aspectos  da  realidade,  e  relativistas  quanto  aos  critérios  de 

avaliação  de  crenças  científicas.  Logo,  não  é  muito  significativo  declararem 

benevolentemente que acreditam na existência do mundo, quando sua existência não 

faz, para eles, a menor diferença epistêmica. 

 

3.3.2. Construção social de quê?  

  Ok,  há  um  mundo  lá  fora,  pelo  menos  nos  concedem  os  principais 

proponentes do strong programme. Mas o que está lá fora? Se a ciência moderna é tão 

interpretativa quanto a filosofia e se todo pensamento depende da linguagem, então 

não  temos  acesso  ao  objeto do  conhecimento  nem mesmo  indiretamente. Então,  a 

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ciência  não  descobre.  Mas  se  ela  não  é  capaz  de  descobrir  aspectos  do  objeto 

independentes  da  consciência,  que  tipo  de  conhecimento  temos  sobre  ele?  O 

construtivismo  social  dá  a  este  beco  sem  saída  epistemológico  uma  resposta 

ontológica: conhecemos o objeto que é construído socialmente. Mas o que afinal de 

contas isso quer dizer? Ele não existe de forma independente? Da mente individual, 

sim. 

Tudo hoje em dia parece ser construído socialmente, a julgar pelos títulos dos 

artigos  e  livros  de  sociologia.  Há  dez  anos  Ian  Hacking,  filósofo  originalmente 

simpático  às  teses  do  strong  programme,  publicou  um  dos  livros  atualmente mais 

influentes e citados no debate sobre o construtivismo social: o The Social Construction 

of What?. Diz nas  linhas  iniciais de seu prefácio que a expressão  ‘construção social’ 

teve seu uso  tão difundido, generalizado e confundido, que hoje é pouco mais que 

um  código.  Se  você  usa  a  expressão  favoravelmente  é  porque  se  considera  um 

radical, se usa desfavoravelmente, se declara alguém racional, razoável e respeitável 

(HACKING, 1999, p.VII). 

  Em  uma  pesquisa  informal  no  sistema  de  busca  da  biblioteca  de  sua 

instituição, Hacking (1999) encontra e lista mais de trinta obras com título contendo 

“Social  construction  of X”ou  “Constructing X” nos vinte  anos  anteriores  a  1999.  Isto 

sem levar em consideração as obras encontradas sob o título “Inventing X”, também 

geralmente associadas ao movimento. Do óbvio ao surpreendente, tudo é tido como 

socialmente construído pela abordagem majoritária da sociologia contemporânea: da 

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autoria  à  doença,  do  nacionalismo  Zulu  à  realidade,  da  natureza  às  mulheres 

refugiadas. 

  A expressão ‘construção social’, à qual Hacking (1999, p.3) reputa atualmente 

a  condição  de  “células  cancerosas”  que  se  replicam  sem  controle,  começou  a  ser 

usada num contexto muito específico da construção social do conhecimento (Berger 

& Luckmann, 1973) e se generalizou após ser aplicada à investigação do que seria a 

construção  social  do  conhecimento  científico,  no  âmbito  do  programa  forte  da 

sociologia da ciência. 

  Hoje, Hacking  defende  que  seu  uso  vem  acompanhado  de  uma  atitude  de 

revolta ou inconformidade com a realidade, ou ao menos com a forma determinista, 

naturalista ou inevitável com que determinados objetos são apresentados pela ciência 

ou pela  cultura  em geral. Ao  escrever  sobre  a  “construção  social de X”, um  autor 

tende a sustentar que: 

 (1) X need not have existed, or need not be at all as it is. X, or X as it is at  present,  is  not  determined  by  the  nature  of  things;  it  is  not inevitable.   Very often they go further, and urge that: (2) X is quite bad as it is. (3) We would be much better off if X were done away with, or at least radically transformed. (HACKING, 1999, p.6) 

 

  Assim, por exemplo, se um sociólogo ou historiador resolve  investigar o que 

ele alega ser a construção social do gênero (como fizeram Lorber e Farrell (1991)), o 

objetivo da investigação provavelmente é demonstrar que (1) o gênero sexual não é 

algo  determinado  pela  natureza  das  coisas,  a  existência  de  gêneros  sexuais  não  é 

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110

inevitável.  A  categorização  de  seres  humanos  em  dois  únicos  tipos  foi  trazida  à 

existência pela  confluência de  forças  sociais,  interesses,  eventos históricos  e  sociais 

que poderiam, todos eles, terem sido diferentes, pois são contingentes. Por exemplo, 

o  que  parece  natural,  poderia  ter  sido  gerado  por  interesses  moralizantes  e 

repressores de alguma espécie. 

  Geralmente quem despende muito tempo e esforço para justificar a afirmação 

de que  ‘gênero’ é uma  construção  social, é porque  julga que o  conceito, a  idéia de 

gênero, não só é de natureza puramente social sem necessária base biológica como (2) 

é  de  alguma  forma  nefasta  para  um  determinado  grupo  (as  mulheres,  os 

homossexuais,  os  transexuais)  e  que  (3)  deveria  ser  eliminado  ou  radicalmente 

transformado, pois estaríamos melhores sem este tipo de conceito ao menos da forma 

como ele está posto atualmente. 

  Mais do que isso, Hacking (1999) identifica uma precondição de interesse (não 

pressuposto) para a eleição de um tema como objeto de análise construtivista social: 

“(0) In the present state of affairs, X is taken for granted; appears to be inevitable” (p.12). Ou 

seja,  não  é  alvo  de  interesse  de  um  sociólogo  a  construção  social  de  algo  que  é 

evidentemente uma  construção  social. Provavelmente  não  nos depararemos  numa 

bancada  de  sociologia  com  o  livro  “A  Construção  Social  do  Partido  dos 

Trabalhadores” ou ainda  sobre “A Construção Social do Plano Real”. Esses  seriam 

objetos desinteressantes de análise. O que interessa a um construtivista social é eleger 

algo consensualmente tido como inevitável e natural, como quarks (Pickering, 1984), 

fatos  (Latour  &  Woolgar,  1979)  ou  natureza  (Eder,  1996),  e  mostrar  através  de 

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111

interpretações de dados empíricos como este algo é, na verdade,  resultado de uma 

construção contingente de natureza social. 

  John  Searle,  diante  da  proliferação  descontrolada  da  expressão  ‘construção 

social’, resolveu entrar no debate e produziu um dos livros mais esclarecedores sobre 

o  tema,  o  The  Construction  of  Social  Reality,  de  1995.  Nesta  obra,  Searle  trata  da 

“construção  da  realidade  social”  ao  invés  da  “construção  social  da  realidade”. 

Reafirmando  enfaticamente  o  realismo  ontológico  e  a  teoria  da  verdade  como 

correspondência, Searle procura discriminar as  características de  todo um domínio 

de fatos objetivos que são, efetivamente, construídos socialmente, particularmente as 

instituições.  Searle  (1995)  argumenta  pela  completa  inadequação  de  se  atribuir  a 

objetos  do mundo  físico  a mesma  natureza  de  objetos  institucionais  e  contratuais 

(como  uma moeda,  um  congresso,  um  estado  nacional)  estes  últimos  se mostram 

claramente  dependentes  dos  processos  históricos  e  sociais  que  os  criaram  e  os 

sustentam. Por tudo isso, obviamente o livro de Searle não se filia ao construtivismo 

social, pois  o  que  este último pretende  é  estender  os domínios da  sociologia para 

objetos  ou  aspectos  de  objetos  generalizadamente  considerados  independentes  de 

processos sociais. 

  Assim, a preocupação original do construtivismo social é com o conjunto de 

crenças  justificadas socialmente como conhecimento científico, particularmente, das 

ciências naturais. O projeto original de Barry Barnes e David Bloor tinha o objetivo de 

aplicar a sociologia à explicação da  formação de crenças científicas, mas o discurso 

baseado  em  abordagem  empírica  de  estudos  de  casos  para  justificar  alegações  de 

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construções  que  eles  estabeleceram  se  generalizou  para  temas muito  diversos  dos 

originalmente eleitos pela escola de Edimburgo. Hoje, segundo Hacking, temos três 

espécies de coisas que encontramos socialmente construídas nas obras contrutivistas 

sociais: objetos, idéias e o que Hacking (1999, p.21) denomina elevator words. 

  Objetos  são  coisas  que  estão  no mundo,  como  pessoas,  estados,  condições, 

práticas,  ações,  comportamentos,  classes,  experiências,  relações,  objetos materiais, 

substâncias  e  partículas  fundamentais.  Seguindo  a  terminologia  de  Searle  (1995), 

podemos  dizer  que  alguns  desses  objetos  são  ontologicamente  subjetivos  mas 

epistemologicamente  objetivos.  Uma  prática  como  o  salário,  por  exemplo,  é 

ontologicamente subjetiva porque depende da existência de seres humanos e de suas 

instituições para existir, mas é epistemologicamente objetiva porque você pode saber 

de forma nada subjetiva se seu dinheiro foi depositado no dia do pagamento. 

  O  segundo  tipo  de  coisa  alegadamente  construída  socialmente  pela 

abordagem são idéias: conceitos, crenças, atitudes e teorias. Elas obviamente não são 

abordadas  pelo  construtivismo  social  como  idéias  privadas,  mas  somente  como 

idéias compartilhadas por algum grupo social. Por  fim,  temos as “elevator words”, 

denominadas assim por mudarem a ordem do discurso filosófico (levar a questões de 

segunda  ordem  o problema discutido)  e  implicar questões de  reflexividade  (como 

‘verdade’,  ‘fatos’,  ‘realidade’  ou  ‘conhecimento’).  Estas  palavras  são  usadas  para 

dizer  coisas  acerca  de  objetos  e  idéias,  portanto,  são  classificadas  à  parte,  mas 

obviamente não escapam de ser atacadas pela abordagem. 

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113

Sergio Sismondo (1993) procurou responder uma pergunta parecida com a de 

Hacking em  seu artigo “Some Social Constructions”, que  se  tornou o mais citado no 

Social Sciences Citation Index sobre construtivismo social. Este ótimo trabalho procura, 

através de uma disposição positiva em relação aos social studies, classificar os tipos de 

construtivismo social em função do que significa para cada um deles a metáfora da 

construção. Assim, ele identifica quatro usos diferentes da metáfora: 

 (a)  the  construction,  through  the  interplay  of  actors,  of  institutions, including  knowledge, methodologies,  fields,  habits,  and  regulative ideals;  (b)  the construction by scientists of  theories and accounts,  in the  sense  that  these are  structures  that  rest upon bases of data and observations;  (c)  the  construction,  through material  intervention,  of artifacts  in  the  laboratory;  and  (d)  the  construction,  in  the  neo‐Kantian  sense,  of  the  objects  of  thought  and  representation (SISMONDO, 1993, p.516) 

 

O primeiro uso como  já vimos,  foi o dado por Berger & Luckmann  (1973), o 

segundo, o dado pelo strong programme. Mas dois novos usos do termo construção 

surgem aqui. O terceiro uso é na verdade um uso bem concreto do termo, e se refere 

ao  que  chamaremos  construtivismo  social  material,  formulado  principalmente  por 

Karin Knorr‐Cetina. Knorr‐Cetina  (1981)  chama  nossa  atenção  para  o  fato  de  que 

laboratórios científicos costumam a ser vistos como lugares onde idéias são testadas e 

algumas  vezes  geradas.  Mas  em  sua  opinião  eles  na  verdade  são, 

predominantemente,  lugares  onde  coisas  são  feitas  (construídas)  e  feitas  para 

funcionar.  Em  sua  visão  pragmática  do  que  realmente  aconteceria  em  um 

laboratório, ela nos apresenta o que seria uma progressiva seleção do que  funciona 

através do uso daquilo que funcionou no passado e parece que funciona no presente. 

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114

Ou seja, o  laboratório não é um  lugar onde se  testa a natureza, a  ‘natureza’ estaria 

altamente  excluída  deste  ambiente  pré‐fabricado  (construído)  de  aparelhos, 

substâncias  purificadas,  bactérias  isoladas  e  condições  ambientais  artificialmente 

controladas.  

Assim Cetina usa o  termo  ‘construção’ em dois sentidos. Primeiro o material 

visto acima, e ilustrado pela passagem: 

 In  the  laboratory  scientists  operate  upon  (and  within)  a  highly preconstructed  artificial  reality  (…)  but  the  source  materials  with which  scientists work  are  also preconstructed. Plant  and  assay  rats are specially grown and selectively bred. Most of the substances and chemicals  used  are  purified  and  are  obtained  from  the  industry which  serves  the  science  or  from  other  laboratories  (…)  In  short, nowhere in the laboratory we find the ‘nature’ or ‘reality’ which is so crucial  to  the descriptivist  interpretation of  inquiry: To  the observer from  the  outside  world,  the  laboratory  displays  itself  as  a  site  of action  from which  ‘nature’  is  as much  as  possible  excluded  rather than included. (KNORR‐CETINA, 1981, p.119). 

 

  O segundo sentido no qual ela usa o termo construção é em relação à segunda 

categoria  de  Sismondo  (e  de  Hacking):  o  que  nós  construímos  em  ciência  são 

modelos científicos, modelos que precisam ser adequados ao fenômeno. Ela discorda 

que  a  atividade  científica  é  uma  atividade  de  descoberta  da  verdade,  e  o  que  o 

sociólogo estuda é o processo de construção de modelos que funcionam: “theories are 

like  the  cocoons  left  behind  when  practice  is  abstracted  from  the  conduct  of  inquiry” 

(KNORR‐CETINA, 1979, p.370).  

  Assim,  Cetina  está  interessada  em  investigar  não  somente  estes  produtos 

subjetivos  da  atividade  científica  (as  teorias),  mas  também  seus  produtos  (ou 

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construções)  materiais:  as  técnicas,  os  ambientes  materiais,  os  aparelhos,  as 

substâncias  sintetizadas,  enfim,  toda  uma  categoria  de  objetos  “artificiais”  e 

construídos. Ela se interessa particularmente em descrever cientistas atuando em um 

mundo que eles próprios construíram: o do laboratório, não a natureza. 

  Parecem teses e objetivos razoáveis. O problema começa quando entendemos 

que para Knorr‐Cetina essa construção material dos ambientes, objetos e aparelhos 

com os quais a ciência trabalha, constrói os fatos científicos, que para ela, nada tem a 

ver  com a  realidade não  construída. Não é  razoável  ignorar o  fato óbvio de que a 

matéria prima de que são feitos todos os objetos construídos pela atividade científica 

vem de uma natureza não‐construída, e que o laboratório onde eles são testados faz 

parte  da  natureza  não‐construída,  que  enfim,  tudo  o  que  existe materialmente  é 

natureza e continua nela.  

  No  entanto  esta  não  é  razão  suficiente  para  considerar,  como  o  faz  Kukla 

(2000, veremos adiante), Knorr‐Cetina aderida a um construtivismo social metafísico. 

O  próprio Kukla  no  primeiro  capítulo  de  sua  obra  reconhece  que Knorr‐Cetina  é 

realista  no  mesmo  sentido  em  que  Kant  é  realista,  e  que Michael  Devitt  (1991) 

denomina  ironicamente  “fig‐leaf  realism”:  onde  se  admite  que  existe  a  coisa 

independentemente  da  mente  humana  mas  se  nega  a  possibilidade  de  obter 

conhecimento  absoluto  de  qualquer  de  suas  propriedades.  É  Karin  quem  se 

pronuncia:  “a  constructivist  interpretation  of  knowledge  is  not  to  be  confused  with  an 

idealist ontology” (KNORR‐CETINA, 1979, p.369) 

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  Mas  a  abordagem  construtivista  social  de  Knorr‐Cetina  é  cética  quanto  à 

obtenção de conhecimento da natureza. Os objetos alegadamente “construídos” são 

objetos materiais  construídos  de  fato,  e  não metaforicamente. Os  fatos  a  respeito 

deles  que  são  provocados  (a manipulação  experimental)  pelos  cientistas  em  seus 

laboratórios  são  também,  neste  sentido,  não  naturais.  É  isso  que  ela  quer  dizer 

quando afirma, ai sim metaforicamente, que os cientistas constroem a realidade sobre 

a qual constroem  teorias. Neste sentido podemos conceder que  fatos científicos são 

construídos sem cair num idealismo ontológico. 

  Já  Paul  Boghossian  (2006)  considera  que  existem  três  teses  básicas  no 

construtivismo  social  sobre  o  que  é  construído  socialmente.  Uma  delas  é  a  da 

construção social da justificação, que defende que fatos da forma “informação x justifica 

crença y” não são  independentes de nós e de nosso contexto social, antes, tais fatos 

são  construídos  de  forma  a  refletir  nossos  interesses  e  necessidades  contingentes. 

Outra  é a da  construção  social da  explicação  racional, que defende nunca  ser possível 

explicar porque nós acreditamos no que acreditamos somente em virtude de termos 

tomado conhecimento de uma evidência relevante, nossas necessidades contingentes 

e  interesses  sempre  contam  entre  as  causas  de  uma  crença.  Estas  duas  teses,  o 

relativismo epistêmico e a causalidade social da crença serão abordadas no próximo 

item  dedicado  às  posições  epistemológicas  do  construtivismo  social. Mas  há  para 

Boghossian uma  terceira alegação geral de  construção  social, a  construção  social dos 

fatos, que postula que o mundo que procuramos entender e conhecer não é o que é de 

forma independente de nós e de nosso contexto social, todos os fatos são construídos 

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socialmente de uma forma que reflete nossos interesses e necessidades contingentes. 

É esta alegação ontológica radical que avaliaremos agora. 

 

3.3.3. O Construtivismo Social Ontológico 

  O que dizer da tese da construção social dos fatos? Ela é o mesmo que o uso 

metafórico  ‘d’  de  Sismondo  (1993)?  Existem  autores  no  construtivismo  social  que 

realmente  esposam  alguma  forma  de  idealismo  neo‐kantiano  e  consideram  que  o 

objeto  do  conhecimento,  o  objeto  real  e  independente,  é  construído  socialmente? 

Consideremos esta passagem famosa: 

 Like  scientists  themselves,  we  do  not  use  the  notion  of  reality  to account  for  the  stabilization  of  a  statement,  because  this  reality  is formed as consequence of this stabilization.  We do not wish to say that facts do not exist nor that there is no such thing as reality. In this simple sense our position is not relativist. Our point  is  that  “out‐there‐ness”  is  a  consequence  of  scientific  work rather than its cause. (LATOUR & WOOLGAR, 1986, p.180) 

 

O que será que Latour e Woolgar querem dizer aqui por  ‘fato’? Em sua obra 

marco “Laboratory Life”, de 1979, encontramos a vaga descrição de uma contradição 

entre  sentidos atribuídos à palavra. O primeiro  sentido, derivado de breve análise 

etimológica, lembra a origem latina da palavra em factum, que por sua vez deriva do 

particípio passado de facere, ou fazer. Ou seja, isso é suficiente para que eles afirmem 

que  fatos  são  feitos. O  segundo  sentido  é  o de  que  ‘fato’  se  refere  a uma  entidade 

independentemente objetiva que “by reason of  its  ‘out  there‐ness’ cannot be modified at 

will and is not susceptible to change under any circumstances” (LATOUR & WOOLGAR, 

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1986, p.174). Poderíamos portanto pensar que os autores acreditam que há dois tipos 

de significados para ‘fatos’ e estão se referindo somente ao primeiro. Mas não é esse 

o caso. O caso é que eles acham que só existe o primeiro tipo de fato. 

Ordinariamente,  entendemos  por  fato  algo  que  é  o  caso,  um  determinado 

estado  de  coisas  que  é  relatado  por  uma  proposição  verdadeira.  Fato  portanto  é 

aquilo  que  torna  verdadeira  uma  sentença,  e  não  a  sentença  que  corresponde 

adequadamente à realidade: esta última é uma verdade, que se refere a um fato. Se 

afirmo que a cor desta folha é branco, não é a afirmação que é o fato em questão (ela 

é  um  outro  fato),  mas  esta  afirmação  se  faz  verdadeira  por  causa  do  fato  de  que 

percebemos  as  ondas  eletromagnéticas  refletidas  pela  folha  como  branco. 

Poderíamos dizer que fato é uma parcela da realidade.  

Em  filosofia da  ciência  e metodologia  científica, o  termo  ‘fato’  se  reveste de 

uma centralidade ainda maior. Quando nos referimos a um “fato científico”, estamos 

na verdade nos  referindo  àquilo que gera uma objetiva, verificável  e  reproduzível 

observação, que pode  confirmar  e  refutar  teorias  e hipóteses,  criadas para explicar 

uma  coleção  de  fatos. Assim,  apesar  do  uso  imprudente  e  impreciso  da  palavra, 

temos que lembrar que um fato científico é um estado de coisas no mundo externo, 

independente de mentes individuais. No entanto, muitas vezes encontramos o termo 

‘fato’ usado para referir‐se às assertivas que descrevem fatos.  

Boghossian  (2006)  acredita  que  é  aqui  que  o  que  ele  chama  de  fact‐

constructivism se confunde com uma tese bem menos controversa, a da relatividade 

social  das  descrições.  Isto  segundo  Boghossian  “a  faz  parecer  a  seus  proponentes 

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bem  menos  implausível”  (p.29).  Para  esta  tese,  o  esquema  que  adotamos  para 

descrever o mundo depende do esquema que achamos útil adotar, e o esquema que 

achamos  útil  adotar  depende  de  nossas  necessidades  contingentes  e  interesses 

sociais. 

É portanto  o  sentido de  “assertivas que descrevem  fatos” que geralmente  é 

assumido  pelo  construtivismo  social  quando  afirma  que  “fatos”  são  construídos 

socialmente.  Uma  vez  que  este  não  acredita  na  nossa  capacidade  de  ter  acesso 

independente  da  linguagem  a  qualquer  aspecto  da  realidade  objetiva,  não  é 

surpreendente que autores  como Latour, Woolgar e ainda Andy Pickering acabem 

em  algum momento  assumindo  a  consequência  necessária  dessa  tese:  “fatos”  (no 

caso,  as  assertivas  sobre  observações  objetivas  e  verificáveis),  seriam  socialmente 

construídos, e uma vez construídos, determinariam o que observamos e percebemos 

na natureza. A passagem a seguir sustenta minha interpretação:  

 

While  the  agonistic  process  [de  estabilização  dos  fatos]  is  raging, modalities  are  constantly  added,  dropped,  inverted,  or  modified. Once the statement begins to stabilize, however, an important change takes place. The statement becomes a split entity. On the one hand, it is a set of words which represents a statement about an object. On the other hand, it corresponds to an object in itself which takes on a life of its own. Before long, more and more reality is attributed to the object and less and less to the statement about the object. Consequently, an inversion takes  place:  the  object  becomes  the  reason why  the  statement was formulated  in  the  first place. At  the onset of stabilization,  the object was  the virtual  image of  the statement; subsequently,  the statement becomes  the mirror  image  of  the  reality  ‘out  there’.  (LATOUR  & WOOLGAR, 1986, p.176‐177) 

 

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120

Podemos  explicar  esta  posição melhor  através  do  conceito  dos  autores  de 

“inscription device”, ou aparelhos produtores de  inscrições  (no  sentido de Derrida 

(1973) de sinais físicos gráficos linguísticos): 

 

An  inscription  device  is  any  item  of  apparatus  or  particular configuration of such items which can transform a material substance into  a  figure  or  diagram  which  is  directly  usable  by  one  of  the members of the office space (LATOUR & WOOLGAR, 1986, p.51) 

 

Dando um passo além de Knorr‐Cetina, Latour e Woolgar chamam a atenção 

para o fato de que no ambiente pré‐construído de um laboratório contemporâneo, as 

conversas e “negociações” giram principalmente em torno das “inscrições” (tabelas, 

gráficos,  números,  imagens)  geradas  pelos  inscription  devices  (predominantemente 

computadores de  todo  tipo), e cada vez menos em  torno das  substâncias materiais 

reais que  tiveram algo a ver  com  sua geração. Usando o  conceito de Bachelard de 

“phenomenotechnique”, afirmam que a realidade com a qual a ciência lida é totalmente 

construída artificialmente pelo uso destes aparelhos, e somente  tem a aparência de 

fenômeno real porque foi construída através de técnicas materiais. 

Mas afirmar isso não é tão simples. O mesmo Ian Hacking que consideramos 

acima era, em 1988, um entusiasta do construtivismo social ontológico proposto por 

Latour  e Woolgar,  e  escreveu um artigo apologético de “Laboratory Life” quase  tão 

citado  quanto  o  mesmo:  “The  participant  irrealist  at  large  in  the  laboratory”.  Nele, 

oferece uma boa descrição da confusão ontológica de Latour e Woolgar: 

 

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There  seems  to  be  an  air  of  trivial  paradox  here.  Has  not  the hypothalamus of the higher vertebrates been secreting this substance ever since the animals came into being? Has it not always been a fact that  this  substance  has  a  certain  structure,  a  structure  that  became known  in  the  laboratories  of  Texas  and  Louisiana?  Latour  and Woolgar do not say that something in the hypothalamus changed in 1969. But they think that what logicians would call the modality and tense  structure  of  assertions  of  fact  is  misunderstood.  Let  F  be  a relatively  timeless  fact,  say  the  fact  that TRH  has  such  and  such  a chemical structure. The official view would be: before 1969 one was not  entitled  to  assert,  categorically,  that  F  is  a  fact,  nor  that  F  has always been a fact. But since then we know enough to be justified in asserting that F is a fact and has always been so. Latour and Woolgar say no: Only after 1969 and a particular  series of  laboratory events, exchanges and negotiations did F become a fact, and only after 1969 did  it  become  true  that  F was  always  a  fact.  The  grammar  of  our language  prevents  us  from  saying  this.  Our  very  grammar  has conditioned us  toward  the  timeless view or  facts.  (HACKING, 1988, p.281‐82) 

 

Tal  posição  implica  uma  contradição,  e  não  se  trata  de  uma  incapacidade 

expressiva de nossa gramática. A contradição é que, dado que a produção de  fatos 

pela  ciência  é  contingente,  podemos  produzir  no  ponto  do  tempo  T1  o  fato  X0, 

pretendendo que ele, a partir de T1 tenha sido sempre verdadeiro. No momento T2, 

posterior a T1, a contingência da produção científica pode nos levar a construir o fato 

¬X0, e isso implicaria que ele também sempre existiu. Mas como X0 e ¬X0 podem ser 

verdadeiros ao mesmo tempo? Como pergunta André Kukla (2000, p.111), autor do 

argumento  acima,  não  seria  mais  simples  postular  que  diferentes  gerações  de 

cientistas  em  diferentes  sociedades  simplesmente  tinham  crenças  e  perspectivas 

diferentes acerca do mesmo e único mundo  independente? Porque alguém precisa 

defender  as  teses  ontológicas  que  Latour  e Woolgar  defendem? O  construtivismo 

social certamente não precisa. 

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Steve Woolgar,  depois  da  colaboração  com  Latour,  seguiu  caminho  solo  e 

assumiu plenamente seu idealismo em “Science: The Very Idea”, de 1988. As teses de 

Woolgar expostas nesta obra serão consideradas mais amiúde no próximo item, por 

tratarem predominantemente de questões relativas a reflexividade da sociologia da 

ciência (ciência aplicada à ciência precisa ser aplicada à ela própria), e à relação entre 

sujeito e objeto de conhecimento. Mas sobre este último tópico é necessário dizer aqui 

que Woolgar considera que existe uma direção  tradicional em que é considerado o 

processo  de  conhecimento,  que  parte  do  objeto  para  a  representação  dele,  e  do 

mundo natural para o  conhecimento  científico. O que  ele propõe  é a  resolução do 

dilema típico da sociologia da ciência, que é o de considerar que o mundo existe mas 

que  o  conhecimento  é  causado  socialmente,  invertendo  a  direção  do  processo  do 

conhecimento. Ou seja, solução para Woolgar é afirmar que as representações é que 

constroem os objetos. 

Era  de  se  esperar  que Woolgar  classificasse  toda  epistemologia  tradicional 

como objetivista, no sentido que o objeto altera as representações que fazemos dele. 

Para  Woolgar,  isso  é  falso  porque  os  objetos  são  inacessíveis  para  nós  sem 

representações, não  temos acesso  independente a eles. Mas no que  isso  implica sua 

“reversão de direção”, ficamos sem saber. Mais sofrível é seu segundo “argumento”, 

ou justificativa, ou interpretação para sustentar seu idealismo. Ele é baseado em sua 

interpretação de dois estudos de caso, um deles sobre o descobrimento das Américas. 

Sua  interpretação é que a variação de  interpretações sobre o que  foi descoberto em 

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diferentes redes sociais mina a tese da existência objetiva de características no objeto 

descrito. É o que lemos por exemplo nesta passagem: 

 

Crucially, this variation undermines the standard presumption about the existence of the object prior to its discovery. The argument is not just  that  social  networks  mediate  between  the  object  and observational work done by participants. Rather,  the social network constitutes  the  object  (or  lack  of  it).  The  implication  for  our main argument  is  the  inversion  of  the  presumed  relationship  between representation and object;  the representation gives rise  to  the object. (WOOLGAR, 1988, p.65) 

 

Steven  Weinberg  faz  uma  interessante  observação  sobre  essas  estranhas 

posições. Ele suspeita que o alvo do construtivismo social não é o mundo lá fora, mas 

algo um pouco diferente: “the issue is not the belief in objective reality itself, but the belief 

in the reality of the laws of nature” (op. cit. HACKING, 1999, p.88). A questão seria não 

a  realidade  ontológica  dos  objetos,  mas  das  leis  que  os  governam.  Para  o 

construtivismo,  e  digo  construtivismo  em  geral,  seria  sempre  possível  haver  uma 

multiplicidade  de  teorias  e  leis  que  governariam  determinado  fenômeno,  ou  fato. 

Mas Weinberg  constata  que  não  existe  nenhuma  teoria  alternativa,  ou  qualquer 

multiplicidade de leis, e que não parece que seja possível criar essas leis alternativas 

que dêem  conta dos mesmos  fenômenos que  as  equações de Maxwell dão. E  isso, 

mesmo depois de tanto tempo do aparecimento dessas  leis. Tal fato dá a ele a forte 

convicção de que as equações de Maxwell são objetivamente verdadeiras. Atacar essa 

convicção não é possível pela criação de novas teorias que dêem conta dos mesmos 

fatos (se nem os físicos são criativos a este ponto, não seria sensato esperar tamanha 

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criatividade  naturalista  de  construtivistas  sociais),  logo,  a  estratégia  deles  para 

manter a crença de que o mundo é instável é afirmar que os fatos são construções e 

poderiam  ser  outros  (claro,  eles  não  oferecem  outros).  Ou  seja,  o  alvo  é  o 

determinismo natural, que quer se substituir por um determinismo social. 

Mario Bunge  (1994, p.39)  acredita  que  os praticantes da  nova  sociologia da 

ciência  têm  revivido a velha  tese  idealista de que o sujeito constrói a  realidade em 

vez de explorá‐la e descobri‐la, com a única diferença que em vez do sujeito agora é o 

grupo, é a sociedade a responsável por essa construção. Para ele, os construtivistas 

sociais  são  incapazes  de  distinguir  os  fatos  dos  enunciados  e  teorias  que  criamos 

sobre os fatos. Como consequência necessária disso, o conceito de verdade objetiva é 

descartado, a sociedade constrói suas verdades enquanto negocia seu discurso sobre 

o mundo. Assim  uma  instituição  que  quer  “impor”  seu  discurso  sobre  o mundo 

como  melhor  que  os  outros,  a  ciência,  torna‐se  uma  ideologia  autoritária  e 

instrumento de poder político para os cientistas e aqueles que se interessam por seu 

discurso. Em suma, para Bunge não resta dúvida: o construtivismo social é idealista e 

relativista. Mas  como  vimos,  esta  avaliação  de  idealismo  não  pode  se  aplicar  ao 

movimento como um todo. 

Vimos várias posições do construtivismo social, através de autores‐chave do 

movimento  que  são  legítimos  representantes  destas  diferentes  concepções  de 

construção. Estas posições ontológicas variam desde um realismo sem consequência 

epistêmica até o mais estranho tipo de idealismo social. 

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Diante dessa cisão, a partir deste momento da dissertação passarei a me referir 

a duas correntes gerais, mesmo que com várias nuances internas, do construtivismo 

social. Esta diferença geral é baseada na resposta dada a Q1 sobre o construtivismo. 

A  primeira  denominarei  construtivismo  social  epistêmico  (CSE),  tanto  do  programa 

forte,  de  Barry  Barnes, David  Bloor  e  John Henry,  como  do  construtivismo  social 

material  de  Karin  Knorr‐Cetina.  É  epistêmico  porque  nesta  corrente  o  que  é 

construído  são modelos  e  crenças  científicas,  e  o mundo  lá  fora  é  assumido  como 

independente.  A  segunda  denominarei  construtivismo  social  ontológico  (CSO), 

professada por,  entre outros, o primeiro Latour,  Steve Woolgar, Andy Pickering  e 

Henry Collins. É ontológico porque de formas diferentes, este autores afirmam que o 

que  é  construído  é  o  mundo,  não  representações.  Quando  quiser  me  referir  à 

abordagem como um todo, usarei simplesmente o termo ‘construtivismo social’.  

Eis o que André Kukla (2000) diz sobre o CSO, diferenciando‐a do relativismo 

epistemológico  que  é  comum  a  todo  construtivismo  social  (ressalva  feita  à minha 

exclusão de Knorr‐Cetina da posição, já justificada): 

 There’s  no  contradiction  in  saying  that  belief  in  X  is  warranted relative to the methods and assumptions of S1 [society one], and that belief in not‐X is warranted relative to the methods and assumptions of  S2.  But  (metaphysical)  constructivism  isn’t merely  an  epistemic thesis.  Latour,  Woolgar,  Collins,  Pinch,  Knorr‐Cetina,  Ashmore, Pickering,  etc.,  don’t  regard  the  social  negotiations  relating  to  a scientific  hypothesis  as  merely  providing  epistemic  warrants  for certain beliefs. The negotiations  supposedly  turn  the hypothesis  (or its  negation)  into  a  fact.  But  then  the  problem  of  the  two  societies needs an answer. We can’t simply say that negotiations in S1 turn X into a fact and that negotiations in S2 turn not‐X into a fact, and leave it at that – for how can X and not‐X both be facts? (KUKLA, p.91) 

 

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Uma explicação possível para essa posição é a confusão entre fatos e assertivas 

sobre  fatos.  O  CSO  estaria  somente  afirmando  que  fatos  científicos  (para  eles 

assertivas  sobre  observações  controladas)  seriam  socialmente  construídos.  Embora 

seja  uma  tese  altamente  questionável  e  dependente  de  outras  teses  altamente 

questionáveis,  não  leva  ao  absurdo da  conclusão de  que  o mundo  físico  lá  fora  é 

construído socialmente.  

Mas quero concluir este  item chamando a atenção para o  fato de que minha 

definição de construtivismo como tese epistemológica e não ontológica mais uma vez 

se  mostrou  consistente  com  outra  abordagem  auto‐alegada  construtivista.  Como 

vimos, tanto posições realistas como idealistas podem ser encontradas em alegações 

de construtivismo social, o que portanto, não o define como movimento. São as teses 

epistemológicas que veremos no próximo item que determinam sua identidade. 

 

 

 

3.4. – Construtivismo Social e Epistemologia 

 

  Neste  item descreveremos  as  teses  epistemológicas do  construtivismo  social 

como um  todo,  tendo por base as duas questões epistemológicas das  três questões 

formuladas  no  segundo  capítulo  que  tem  guiado  nossa  comparação  entre  as 

diferentes alegações de construtivismo: Q2) É possível conhecer algo sobre os objetos 

que existem independentemente da mente? E Q3) Qual é a relação entre o sujeito e o 

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objeto do conhecimento? No primeiro sub‐item,  investigaremos a resposta cética da 

abordagem  à  questão  dois.  No  segundo  subitem,  analisaremos  o  tipo  de 

conhecimento e epistemologia que o construtivismo social pretende afirmar contra a 

concepção  tradicional de epistemologia. No  terceiro, examinaremos o problema do 

relativismo  típico  da  abordagem.  No  quarto  subitem,  avaliaremos  sua  posição 

quanto à Q3, defendendo tese de que não há praticamente papel algum reservado ao 

sujeito no processo de construção do conhecimento de acordo com o construtivismo 

social, o que fundamenta uma das hipóteses deste trabalho de que a abordagem não 

é, estrito  senso, construtivista. Por  fim, uma vez que esta abordagem alega  ser um 

programa de pesquisa empírica  científico, descreveremos o que ela alega  serem os 

procedimentos metodológicos científicos que usa para investigar a ciência. 

 

3.4.1. É possivel conhecer algo sobre o mundo? 

  Bruno  Latour  tem  razão  quando  afirma  (1999)  que  o  construtivismo  social 

trabalha  sob  a  tese  kantiana  da  inacessibilidade  da  coisa‐em‐si. Mas  para Kant,  o 

mundo  constrangia  nossas  crenças  sobre  ele  na medida  em  que  nossas  intuições 

sensíveis nem sempre se sucediam de acordo com nossas previsões ou expectativas. 

Essa  posição,  que  classificamos  aqui  de  criticismo,  confere  ao  mundo  um  papel 

determinante na construção e escolha de nossas crenças sobre ele. 

  Quando  avaliamos  a  posição  do  construtivismo  social  acerca  da  crença  na 

possibilidade  de  obtenção  de  conhecimento  de  algum  aspecto  de  um  mundo 

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independente  de  nossas  mentes,  temos  que  dar  duas  respostas,  em  virtude  das 

diferentes posições ontológicas vistas no item anterior. 

  No  que  tange  ao  construtivismo  social  ontológico,  a  resposta  é  clara: 

evidentemente não. Para autores como Steve Woolgar (1988) e Lynn Nelson (1993), o 

“mundo” que conhecemos é o mundo que construímos, e nesse sentido não  temos 

qualquer acesso a um mundo  independente. Kukla  (2000) apresenta o  conjunto de 

crenças que  leva o CSO ao ceticismo. Começam por proclamar que a natureza não 

cumpre nenhum papel em nossas decisões epistêmicas. Depois, repetem o slogan de 

que não há  fatos naturais não‐construídos,  o que quer dizer na verdade  a  tese de 

origem  wittgensteiniana  de  que  as  sentenças  não  têm  conteúdo  empírico 

determinado. Assim, a natureza não pode de fato constranger ninguém a aceitar ou 

rejeitar  determinada  asserção.  Como  afirma  Oliva  (2005),  nessa  visão  a  própria 

natureza  da  linguagem  impediria  que  o  “mundo  independente”  fosse  invocado, 

como árbitro, em nossas práticas epistêmicas. Logo, ceticismo. 

  Mas e o construtivismo social epistêmico, é de alguma  forma diferente nesta 

questão? Na  verdade,  a  única  diferença  é  a  falta  do  slogan  de  que  não  há  fatos 

naturais não‐construídos, e a presença de declarações de que “a natureza  importa”. 

Essas  declarações  são  no  entanto  incoerentes  com  a  tese  da  subdeterminação  dos 

fatos  e do  auto‐referencialismo. Em uma das muitas  vezes  que  tentou defender  o 

strong  programme  da  acusação  (desta  vez  de  Latour,  1999,  em  fase  de  ataque  ao 

idealismo) de que o mundo não  tem papel em seu modelo de conhecimento, Bloor 

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(1999) oferece o argumento que, por ser um dos mais claros que ele produziu sobre 

este aspecto obscuro da posição da corrente, merece ser transcrito: 

Imagine some prominent macroobject  that  is a salient  feature of  the environment of two observers. Call the object X and the observers O1 and  O2.  After  inspection,  O1  declares  that  X  belongs  to  class  C1, while after  the same kind of  inspection O2 puts  it  in class C2. They agree it cannot truly be both, so each thinks the other is wrong. Why do they classify differently? The underdetermination thesis says that in  these  circumstances  their  encounters  with  X  are  insufficient  to explain  this difference. Something else, something about O1 and O2 themselves, is needed for the explanation. Now, is this the thesis that the  observation  of  X  ‘makes  no  difference’?  (…)  Clearly  not.  The general difference made by  the presence of X  is  that,  in appropriate circumstances, it is capable of prompting acts of classification and, in this case, giving rise  to  the disagreement between O1 and O2. If  the object were absent there would be no occasion for disagreement or, if there were a disagreement,  it would be precipitated by other causes and would arise by another route. We can at  least say  that  it would not  be  this dispute  between  them.  So  the  object makes  a difference even  though,  in  the  above  scenario,  it  cannot  explain  the  other difference about divergent classification. (BLOOR, 1999, p.133‐34) 

 

A  tradução  da  explicação  acima  é  que  o  objeto  X  faz  diferença  para  o 

conhecimento porque  se ele não  tivesse  surgido não haveria versões  sobre ele! Ou 

seja, a diferença que importa, epistêmica, X não pode ajudar a resolver: ele não pode 

oferecer subsídios  independentes sequer para resolver uma divergência sobre como 

classificá‐lo. Razões epistemicas  isoladamente não causariam nunca crenças sobre o 

mundo,  tudo o que acreditamos  seria  causado ao menos em parte por  interesses e 

processos sociais. É uma tese estranha, que realmente parece motivada por interesses 

de natureza social. Como pergunta Boghossian (2006, p.113), “Couldn’t my seeming to 

see the cat on the roof fully explain why I believe that the cat is on the roof on some occasion?” 

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O fato é que Bloor não pode reservar outro papel para o mundo que não o de 

ocasião de  controvérsia. Se  ele diz que X pode  resolver a diferença,  então o  social 

perde  a  condição  causal  exclusiva  e  o programa  forte  vira  fraco.  Se  ele  aponta  os 

diferentes  sujeitos  como  a  origem  da  diferença,  por  sua  atividade  interpretativa 

particular  livre,  então  da mesma  forma  o  social  perde  o  caráter  determinante  na 

aceitação da crença. Se o sujeito é passivo e o objeto não determina a crença, ele tem 

que explicar com base na sociedade a diferença de  interpretação do dado empírico, 

que sim, faz diferença porque provoca a ocasião de interpretação, mas não determina 

o resultado, o conteúdo dela. Até Bruno Latour ironiza, com sagacidade, a posição de 

Bloor:  

 I  agree: we  are  interested  in  differences. Now,  I want  someone  to explain  to me what  it  is  for  an  object  to  play  a  role  if  it makes  no difference. On a stage, when someone or something  is said  to play a role,  and  even  an  ‘important’,  a  ‘crucial’,  a  ‘decisive’  role—which would  be necessary  to  counteract  the  charge  of  idealism—it has  to produce differences. (LATOUR, 1999, p.117) 

  

Claro,  a  diferença  que  o  objeto  tem  que  produzir  é  entre  diferentes 

interpretações dele, não entre o nada e o seu aparecimento. Diante de tudo isso, pode 

parecer óbvio que Bloor se coloca contra a objetividade do conhecimento científico, 

mas... 

 Does  it  say  that  truly  objective  knowledge  is  impossible? Emphatically it does not. What was proposed (…) was a sociological theory of objectivity.  If objectivity had been held  to be non‐existent there would have been no need to develop a theory to account for it. Nor is this a way of saying that objectivity is an illusion. It is real but 

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131

its  nature  is  totally  different  from what may  have  been  expected. (BLOOR, 1991, p.160) 

 

Essa é uma estrutura de evasiva tipicamente pós‐moderna. Ao ser acusado de 

defender que X não existe, nega defender esta posição com retórica enfática, depois 

declara que sim, acredita em ‘X’, o termo, mas com um significado novo, totalmente 

diferente do original. 

Essas  afirmações  e  desmentidos  podem  exasperar  mesmo  o  leitor  mais 

paciente da  literatura  construtivista  social,  caso  ele não  seja um membro do  clube 

social em questão. O que intriga nisso não é a posição de Bloor, mas como ele pode 

querer nos  fazer  acreditar que  o mundo  importa para o CSE,  e  continuar durante 

anos a replicar com argumentos como estes apresentados acima aqueles que acusam 

o programa forte de não deixar lugar pro mundo na explicação científica.  

Para todo o construtivismo social os conceitos e os esquemas de classificação 

são artifícios humanos que não espelham espécies naturais, e as  teorias e hipóteses 

sobre  o  funcionamento  das  coisas  nada  mais  são  que  o  fruto  de  processos  de 

negociação  e  intercâmbio  linguístico no  contexto de determinadas  formas de vida. 

Não  faz  sentido  portanto  a  atividade  epistêmica  de  distinguir  entre  conceitos 

construídos  que  representam  adequadamente  a  realidade  dos  igualmente 

construídos que se revelam ineptos. Essa inaptidão é na verdade também construída 

pelo  fracasso  do  conceito  ou  teoria  nos  processos  de  negociação  social  que 

estabeleceram os conceitos e teorias aceitos. A inaptidão de uma teoria ou conceito é 

a  consequência,  e  não  a  causa  do  resultado  de  uma  investigação  científica.  O 

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problema  pragmático  desta  tese  é  simples.  Como  observa  Oliva  (2005),  isso  não 

esclarece por que determinadas teorias são acolhidas sob a alegação de que são mais 

bem‐sucedidas que outras no enfrentamento de certos problemas. 

Steven Kemp  é outro  com o qual Bloor  se  envolveu  em um de  seus  longos 

debates sobre a natureza do strong programme. Mas Kemp (2005, 2007) ofereceu três 

argumentos pelos quais o construtivismo social deva ser considerado um programa 

cético  (ou  idealista epistemológico) que considero de  fato uma resposta definitiva à 

questão. No primeiro, (KEMP, 2005) ele lembra que de acordo com o construtivismo 

social,  conceitos  que  são  auto‐referentes  em  caráter  são  definidos  como  fazendo 

referência  somente  a  outros  usos  de  conceitos  (BLOOR,  1997b).  Essa  limitação  na 

auto‐referência  implica  que  se  conceitos  são  auto‐referentes  em  caráter,  eles  não 

podem  ser  referentes  externamente.  Logo,  não  pode  haver  conexão  genuína  entre 

conceitos científicos e realidade. 

Em segundo  lugar  (KEMP, 2007), a defesa de uma versão  radical da  tese da 

subdeterminação da  teoria pela  observação  significa  que  qualquer  teoria pode  ser 

reivindicada  como  instrumentalmente  bem  sucedida,  não  importa  que  tipo  de 

evidência empírica surja. Logo, o mundo não decide nossas crenças. A passagem de 

Barnes abaixo ilustra este tipo de defesa radical generalizada na abordagem: 

 It  had  long  been  recognized  that  theories  constituted  an  important part of verbal culture of science. But theories are human inventions or constructs  which  go  beyond  the  facts,  and  any  specific  body  of accepted  facts  is  formally  compatible with  any number  of  theories. (BARNES & EDGE, 1982, p. 66) 

 

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Em  terceiro  lugar,  a missão de  explicar  a  credibilidade de  teorias  científicas 

sem  referência à  racionalidade científica que o programa  forte se atribui, ou seja, a 

crença de que não há critérios racionais universais que possam guiar a obtenção de 

conhecimento, significa que não há como se obter conhecimento válido,  teorias são 

escolhidas por questões políticas e sociológicas: ceticismo. 

 

3.4.2. O que é e como se legitima o conhecimento?  

Como  afirma  Oliva  (2005),  a  crise  contemporânea  do  observacionalismo 

gerada por teses como as de Wittgenstein e Kuhn minou a crença central da ciência 

moderna  de  que  a  experiência  é  a  única  fonte  capaz  de  prover  os  conteúdos,  a 

estabilidade  referencial,  com  base  nos  quais  se  produz  significado  cognitivo.  O 

construtivismo  social,  ao  esposar  a  tese  feyerabendiana  extremada  de  que  não  há 

como distinguir minimamente  a dimensão  teórica da observacional,  faz da  ciência 

uma atividade interpretativa de natureza social. Se o significado de uma observação 

é  função  de  sua  localização  numa  rede  de  hipóteses  e  de  inferências  não  é  a 

observação  que  leva  à  teoria,  e  sim  o  inverso.  Se  a  teoria  é  vista  como 

subdeterminada pelos fatos, então várias teorias igualmente plausíveis são possíveis, 

toda eventual falsificação é protegida com hipóteses ad hoc, e a escolha entre elas é 

feita com base em interesses políticos, econômicos, religiosos... relativismo.  

  Então,  o  que  é  conhecimento?  Por  certo  o  conceito  platônico  de  crença 

verdadeira  justificada  tem  que  ser  descartado,  porque  verdades  sobre  o  mundo 

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seriam inalcançáveis e justificativa universal não existe, tudo é doxa. O trecho abaixo 

de Bloor é representativo do que encontramos por todo o movimento: 

 The  appropriate  definition  of  knowledge  will  therefore  be  rather different from that of either the layman or the philosopher. Instead of defining  it  as  true  belief  –  or  perhaps,  justified  true  belief  – knowledge for the sociologist is whatever people confidently hold to and  live  by.  In  particular  the  sociologist  will  be  concerned  with beliefs which  are  taken  for granted or  institutionalized, or  invested with authority by groups of people. (BLOOR, 1991, p.5) 

 

  Ou seja, a diferença do conhecimento para a mera crença não é a adequação ao 

real ou um critério racional e empírico de validação, mas o endosso coletivo: a crença 

é  individual,  conhecimento  é  crença  coletivamente  compartilhada. É  conveniente  e 

interessante para  sociólogos: eliminam‐se os aspectos  físicos, psicológicos e  lógicos 

do conhecimento e tudo o que sobra é sociologia. Se o sujeito não cria, o mundo não 

constrange  e  a  lógica  não  elimina,  então  o  trabalho  epistemológico  se  resume  a 

explicar que fatores sociais causaram o abandono ou  insucesso coletivo de algumas 

crenças e o endosso coletivo de outras: epistemologia é sociologia. 

  A sociologia do conhecimento científico  tem como projeto explicar com base 

em  investigações  empíricas  o  conhecimento  como  um  fenômeno  natural  causado, 

particularmente o conhecimento aceito socialmente como cientifico. Como ele alcança 

esse status? Tudo o que resta é mapear como ele é  transmitido, como se estabiliza, 

como é criado, como se generaliza, como se mantém, como é organizado e dividido 

em disciplinas, e assim por diante. Barnes & Edge acreditam que, mesmo antes de 

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toda  a  investigação  empírica  do  campo  começar  a  ser  levada  à  cabo,  já  sabiam  a 

resposta sobre o motivo real da autoridade social da ciência: 

 Cognitive  authority  and  political  authority  are  inextricably intertwined:  the recognition of  technical expertise, of whatever kind, is fraught with political significance. Needless to say, this has much to do with why strict hierarchies of cognitive authority are maintained in all societies, and why heavily  idealized conceptions of science are insistently propagated in ours. (BARNES & EDGE, 1982, p. 9) 

 

Assim, para o construtivismo social, a superioridade explicativa que se atribui 

à  ciência  nada mais  seria,  como  afirma Oliva  (2005),  “que  uma  forma  ilusória  de 

racionalizar  seu  poder  instrumental:  apregoa‐se  ser  obra  da  razão  o  que  nela  é 

socialmente  construído”  (p.114).  Uma  vez  que  não  é  possível  o  estabelecimento 

absoluto  de métodos  epistemicamente  superiores  que  façam  a  ciência  superior,  a 

sociologia  assume  a  tarefa  de  identificar  as  causas  que  a  fazem  parecer  superior. 

Hacking  (1999)  enumera  algumas  destas  “fontes  externas  de  estabilização  das 

explicações científicas”  (p.90)  tais como a adequação política, a  inserção numa rede 

de agentes de reputação, a reputação estabelecida de seus proponentes, a quantidade 

de experts e resultados citados na publicação da pesquisa e interesses econômicos. 

  As várias correntes do  construtivismo  social acreditam que  se  conhecimento 

não é o que se  justifica, mas sim o que se aceita coletivamente, a filosofia da ciência 

não  tem utilidade. O  trabalho é descrever a  investigação científica  real e explicar a 

(determinar  as  causas da)  crença, não  justificá‐la: o  erro do  filósofo  é  se dedicar  a 

determinar o estatuto epistemológico da crença: 

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 Nearly all of these accounts of science are very heavily idealized, and represent the various utopias o four philosophers and epistemologists rather  than  what  actually  goes  on  in  those  places  which  we customarily call science  laboratories.  In contrast,  the present need  is for  a  general  description which  treats  the  beliefs  and  practices  of scientists  in a  completely down‐to‐earth, matter‐of‐fact way,  simply as a set of visible phenomena. (BARNES & EDGE, 1982, p. 3) 

 

Todas as crenças têm que ser igualmente explicadas com base em suas causas 

sociais,  independentemente  de  sua  adequação  última  à  realidade,  pois  todas  as 

crenças, verdadeiras ou não, têm os mesmo tipos de causas, e por tudo o que vimos 

no primeiro subitem, são igualmente verossímeis. Crenças verdadeiras não têm uma 

credibilidade intrínseca maior que crenças falsas. Barnes e Bloor (1982, p. 27) afimam 

que “for the relativist there is no sense attached to the idea that some standards or beliefs are 

really rational as distinct from being locally accepted as such”. 

Esse  é  o  conceito  de  simetria  proposto  pelo  programa  forte,  que  postula  que 

sociólogos têm que se dedicar tanto ao estudo e explicação das crenças aceitas quanto 

das rejeitadas, de forma a adquirir um entendimento adequado do problema geral da 

diferença  na  credibilidade  social  das  duas.  Ele  é  complementado  pelo  de 

imparcialidade, que  simplesmente  recomenda que  se mantenham  em  suspenso  suas 

próprias crenças acerca de quais das crenças em estudo correspondem e quais não 

correspondem à realidade. 

Justificar  uma  crença  como  racional  seria  uma  forma  subrreptícia  de  tentar 

livrá‐la  da  determinação  causal,  como  se  crenças  racionais  tivessem  uma  origem 

diferente das outras, não  causadas:  seria anti‐naturalismo. Bloor  (1991)  chama  este 

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princípio de  ‘causalidade’, mais um dos quatro princípios  filosóficos  (que ele chama 

de requerimentos metodológicos) do programa forte. Ou seja, para esta abordagem, 

justificar uma  crença  com base  em  sua  intrínseca adequação aos padrões  lógicos  e 

empíricos da ciência moderna seria contra o espírito da ciência naturalista. Esse tipo 

de  justificação seria psicologista, o que quer dizer para Bloor que a  tese de que um 

sujeito pode aderir a uma crença por razões, contraria a imagem de um mundo onde 

só operam causas. A questão aqui é o determinismo radical, não o naturalismo. 

 

3.4.3. O problema do relativismo 

  Os  princípios  acima  evidenciam  o  relativismo  da  abordagem  e  levantam 

automaticamente a questão da auto‐refutação que está implicada em qualquer versão 

desta milenar tese filosófica. Bloor estava ciente disso desde os primeiros passos do 

strong programme, e deu uma solução  retórica ao problema: enunciou a contradição 

como  um  novo  princípio  filosófico,  a  chamou  de  requerimento  metodológico  e 

passou  trinta anos a  repetindo  como  se  fosse uma vantagem a  todas as  críticas de 

auto‐refutação que se dirigiram contra o programa. O princípio em questão, o quarto 

de seus requerimentos originais, é o da reflexividade. 

  Bloor  (1991)  chama  de  reflexividade  a  crença  de  que  sociólogos  do 

conhecimento não podem  reivindicar para  si nenhum  acesso  a um ponto de vista 

transcendental,  de  segunda  ordem,  nem  se  colocar  em  posição  especial  ou 

privilegiada  epistemologicamente  para  justificar  suas  próprias  crenças.  Ou  seja, 

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nenhuma teoria sociológica do conhecimento é aceitável a menos que seja aplicável a 

si mesma.  Ele  reconhece  que  tal  requerimento  rende  acusações  de  auto‐refutação, 

pois  se  as  próprias  proposições  supostamente  científicas  dos  sociólogos  não  têm 

qualquer privilégio  epistemológico  sobre  outras  e  são  socialmente determinadas  e 

justificadas, porque alguém precisaria adotá‐las? 

  Bloor  (1991)  acredita que  o  relativismo do programa  é uma  força, não uma 

fraqueza. Para ele, relativismo é o oposto do absolutismo, e seria a crença de que não 

existem  justificações absolutas para nenhuma alegação de conhecimento. O  fato de 

que  todas  as  justificações  acabam  por  se  sustentar  em  algo  injustificável  tomado 

como certo é o suficiente para sua conclusão de que o relativismo é a única posição 

epistemológica possível. É claro que ele não considera que exista algo diferente do 

que os extremos da dicotomia relativismo‐absolutismo. Deve ser por isso que evoca a 

autoridade de Popper para se defender da acusação de relativismo  (que ele diz em 

outros momentos que é uma força):  

 Who  charges  Popper’s  theory  with  relativism?  Indeed,  when  this charge  is  pressed  against  the  sociology  of  knowledge  doesn’t  it frequently come  from  those who are  impressed by  that philosophy? And yet the sociology of science can easily formulate the essentials of its own  standpoint  in  the  terms of  that philosophy. All knowledge, the  sociologist  could  say,  is  conjectural  and  theoretical. Nothing  is absolute  and  final.  Therefore  all  knowledge  is  relative  to  the  local situation of the thinkers who produce it (…) What are all those factors other  than naturalistic determinants  of  belief which  can  be  studied sociologically and psychologically? (BLOOR, 1991, p.159) 

 

Não é  surpreendente que Bloor não compreenda o  fato de o programa  forte 

ser  atacado  por  popperianos  e  pelo  próprio  Popper,  já  que  ele  parece  não 

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139

compreender  a  teoria  da  ciência  popperiana.  Para  esta,  o  conhecimento  científico 

pode  ser  relativo  à  situação dos  “pensadores” que o produzem, mas porque  ele  é 

relativo  às  evidências  empíricas  a  que  eles  têm  acesso.  No  entanto,  a  teoria  da 

verossimilhança  (Popper, 1975b), em qualquer  lugar e época, permite aos cientistas 

locais  a  escolha  da  melhor  teoria  entre  as  concorrentes  em  face  das  evidências 

empíricas  disponíveis  e  refutações  tentadas.  Ela  postula  que  devemos  optar  pela 

teoria que, em face das evidências reproduzíveis, prevê mais e erra menos, e seria um 

critério  racional universal, prescritivo,  independente do  que  a  sociedade  aceite  ou 

não.  Além  disso,  novas  teorias  e  hipóteses  para  Popper  não  são  causadas 

socialmente, elas são criações de mentes individuais que trazem elementos inéditos à 

cultura. O que isso pode ter a ver com o strong programme? Bloor acha que tudo (1991, 

p.159): “To  see all knowledge as conjectural and  fallible  is  really  the most extreme  form of 

philosophical relativism”. 

  O problema é que a afirmação acima não reflete o pensamento de Popper. Ele 

não vê  todo conhecimento como conjectural e  falível,  só o conhecimento acerca do 

mundo  empírico.  Isso não  se  estende à  lógica, que permite  estabelecer um  critério 

racional para decidir entre duas teorias dado um conjunto de crenças acerca de dados 

empíricos  tomados  como  verdadeiros.  A  crença  científica  pode  ser  relativa.  A 

proposição  observacional  considerada  também.  Mas  a  racionalidade  da  escolha 

naquele momento histórico, depois de o conjunto de observações X ser tomado como 

verdadeiro, não é. 

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  Afirma  ainda  Bloor  (1991,  p.159)  que  um  sociólogo  pode  referendar  a  tese 

popperiana de que o que  torna  científico o  conhecimento não é a verdade de  suas 

conclusões e sim as regras procedurais, os padrões e as convenções  intelectuais aos 

quais ele se conforma. Mais uma vez isso não é verdade. A regra procedural geral em 

questão é para Popper universal e nada  tem a ver  com  convenções  intelectuais ou 

normas arbitrárias geradas no seio de um “jogo de linguagem” ou de uma “forma de 

vida”. Popper, definitivamente, não é um relativista, não é ele a fonte de suas teses, 

não é a ele que Bloor pode recorrer.  

  Mas  é  claro  que  não  há  solução  fácil  para  este  problema,  nem  a  posição 

popperiana é imune a críticas. Essa passagem de Bloor, depois de mais de 30 anos de 

respostas  às  críticas  ilustra  o  amadurecimento de  sua posição  e  alguns problemas 

reais que surgem quando se abandona uma postura prescritiva acerca da ciência e se 

tenta descrever como de fato ela funciona: 

 To understand the historian’s procedure, consider the reasoning that might  take  place  in  the  context  of  a  scientific  dispute.  All  the opposing  scientists would  typically  advance  evidence  and  reasons but:  (a)  the  opposed  parties  would  frequently  make  different selections from the range of facts that might have been cited, and (b) they often put different  interpretations on  the same experimental or observational  outcomes  and  often  attached  different  degrees  of significance  to  facts  even when  their  interpretation was  the  same. Furthermore (c) the terms of the debate could themselves be seen as historically contingent and neither compelling nor necessary. For the historians,  then,  the deployment of  reason by  the  scientists posed a problem,  and  the  answer  to  the  problem was  neither  obvious  nor provided by the scientists themselves. The problem was: why do the proffered  reasons  typically  convince  some  scientist  but  not  other scientists? (BLOOR, 2007, p.218) 

 

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Para o relativismo, ao contrário de Popper, não existem critérios universais de 

racionalidade que determinem o que deva ser a metodologia científica. Como afirma 

Oliva  (2005,  p.111),  “Não  há  Tribunal  Epistêmico  Superior  que  se  sobreponha  às 

rotinas  das  práticas  e  dos  praticantes”.  Esse  tipo  de  argumento  não  pode  ser 

sustentado pela filosofia popperiana, mas sim pela kuhniana, como já indiquei nesta 

dissertação. É para Kuhn que não há padrão acima do assentimento da comunidade 

relevante, que todas as justificações só o são relativamente a um paradigma.  

Bloor  (1991)  argumenta que  o  relativismo não  implica que nunca há  razões 

para se aceitar o que alguém diz, mas que todas as razões são locais e contingentes. 

Ele  acredita  que  sua  posição  não  é  auto‐refutada,  pois  o  argumento  de  que  suas 

próprias razões seriam locais e contingentes é consistente com sua crença básica. Ao 

contrário, a acusação de auto‐refutação decorreria do pressuposto absolutista de que 

as  únicas  razões  adequadas  são  as  absolutas,  o  que  implicaria  uma  petição  de 

princípio para o que ele denomina absolutismo. 

  Devemos  aqui  ainda  chamar  a  atenção para o  fato de que o  construtivismo 

social não é  relativista  somente em virtude da  tese da  causação  social das  crenças. 

Este é somente o segundo dos dois sentidos apontados por Alan Nelson (1994). Pelo 

menos no que tange ao CSO e sua tese da construção social dos fatos científicos que 

vimos no item anterior, ele é relativista em ao menos mais um sentido: 

 The  philosophical  constructivism  defended  in  these  works  is relativistic  in  two  senses.  First,  there  is  an  ontological  relativism about entities and processes. We are not  to  think of  the phenomena studied  by  scientists  as  the  inevitable manifestations  of  objectively 

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existing  entities  and  processes;  instead,  theoretical  entities  and processes are constituted or constructed by scientists post hoc. After scientists agree on a theoretical description of what the facts are, they might adopt a realistic attitude toward what that theory talks about, but  the  reality of  these  things  is no part of  the  explanation of why they end up with the beliefs and the theory that they do. (NELSON, 1994, p. 535) 

 

Bem, a posição do CSO  tem problemas maiores que  seu  relativismo. Collins 

(1983, p. 99), um de seus principais proponentes, defende que mesmo na mais pura 

ciência,  os  debates  só  chegam  ao  fim  quando  são  empregados  meios  que  não 

costumam  ser  caracterizados  como estritamente  científicos. É  claro que essa é uma 

posição irracionalista. Mas como é comum no campo, depois de criticado Collins se 

apressa em afirmar que não queria dizer o que disse, ou que não quer a consequência 

necessária de sua tese:  

 A  loss of confidence  in  the scientific enterprise  is a disaster  that we cannot afford. For all  its  fallibility,  science  is  the best  institution  for generating  knowledge  about  the  natural  world  that  we  have. (COLLINS, 1985, p. 165) 

  É a melhor? Sob que critérios? E se todo o trabalho do strong programme visa 

enfraquecer a posição privilegiada do discurso científico na sociedade e sua própria 

racionalidade,  como  se  pode  esperar  que  um  eventual  sucesso  deste  projeto  não 

acarrete  a  perda  de  confiança  no  empreendimento  científico?  Ou  será  que  a 

equiparação do valor epistêmico da ciência às teorias aborígenes sobre o universo ou 

às  teses  integralistas  de  organização  social  não  acarretaria  perda  de  confiança  em 

suas  explicações?  Consideremos  estas  duas  incríveis  passagens  de  Latour  (1983), 

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143

onde  ele  sintetiza  o  que  “aprendeu”  depois  de  sua  estada  de  dois  anos  em  um 

laboratório assistindo e descrevendo uma pesquisa cujo resultado deu o Nobel a seus 

dois autores: 

 Now  that  field studies of  laboratory practice are starting  to pour  in, we are beginning to have a better picture of what scientists do inside the walls of these strange places called “laboratories”. (…) The result, to summarize it in one sentence, was that nothing extraordinary and nothing “scientific” was happening  inside  the  sacred walls of  these temples. (LATOUR, 1983, p.141)  …the  moment  sociologists  walked  into  laboratories  and  started checking  all  these  theories  about  the  strength  of  science,  they  just disappeared. Nothing special, nothing extraordinary,  in fact nothing of any cognitive quality was occurring there. (LATOUR, 1983, p.160) 

 

O  artigo  onde  estes  trechos  foram  publicados,  tem  o  título  de  “Give Me  a 

Laboratory and I Will Raise the World”. Bem, a sorte para (o segundo) Collins é não só 

que  ninguém  dará  um  laboratório  a  Latour,  mas  também  que  a  abordagem  do 

construtivismo  social  ontológico  à  sociologia  do  conhecimento  parece,  como  irei 

apresentar aqui, estar condenada a uma retumbante irrelevância científica. 

 

3.4.4. Qual é a relação entre o sujeito e o objeto? 

Neste  subitem  avaliaremos  uma  questão  fundamental  para  os  objetivos  da 

dissertação.  É  o  problema  do  posicionamento  do  construtivismo  social  quanto  à 

relação entre o  sujeito e o objeto do  conhecimento. Por  tudo o que vimos até aqui 

sobre  as  teses  ontológicas  e  epistemológicas desta  abordagem,  seria perfeitamente 

justificável afirmar que, dados seus princípios de causalidade e simetria, assim como 

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144

seu estrito determinismo e sociologismo, não há praticamente papel algum reservado 

ao  sujeito  no  processo  de  construção  do  conhecimento  de  acordo  com  o 

construtivismo social. Ou seja, o construtivismo social não é um construtivismo, pelo 

menos em função da definição a que chegamos no segundo capítulo. Mas muito mais 

ainda  pode  ser  esclarecido  sobre  como  esta  abordagem  entende  a  relação  sujeito‐

objeto do conhecimento. 

Há um silêncio ensurdecedor na retórica construtivista social. Fala‐se o tempo 

todo de crenças, às vezes como se elas fossem só o que existe, algumas vezes se fala 

até  de  um mundo  que  seria  construído  na  atividade  científica: mas  nunca  se  fala 

sobre o sujeito da crença nem sobre o sujeito da ação científica. Ao contrário, se falam 

em crenças sociais e construção social da ciência, como se houvesse sociedade sem 

sujeitos, ou no mínimo, sem entidades biológicas individualizadas. 

Slezak (1994) identifica a origem deste silêncio na tese de Bloor de que há um 

conflito entre dois modelos de explicação para o comportamento humano: o que o 

último chama de ‘teleológico’ e o causal. ‘Teleológico’ para Bloor não é simplesmente 

o comportamento movido por razões e direcionado à metas, mas também a evocação 

de razões, da racionalidade, da  lógica e da evidência empírica como razões de uma 

crença científica ou de uma decisão científica. Em contraste, o modelo “naturalista”, 

verdadeiramente científico, seria o causal, que para ele é sinônimo de sociológico, já 

que em última análise não haveria outra  fonte determinante de causalidade no que 

tange o comportamento  individual. Isso é o máximo das considerações psicológicas 

que Bloor realiza na sua primeira versão do strong programme: 

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 Does not individual experience, as a matter of fact, take place within a  framework  of  assumptions,  standards,  purposes  and  meanings which are shared? Society furnishes the mind of the  individual with these  things  and  also provides  the  conditions whereby  they  can be sustained and reinforced. (BLOOR, 1991, p.15) 

 

A meta do construtivismo social é identificar as condições que causam estados 

de crença considerados conhecimento científico em grupos sociais. Seus estudos de 

caso  sempre  levam  à  interpretação  de  que  crenças  têm  causas  sociais,  não  causas 

psicológicas, como se isso não estivesse implicado desde o início em suas “diretrizes 

metolológicas”. Mas  como  observa Oliva  (2005,  p.268),  “para  dar  plausibilidade  à 

tese de que as razões não determinam a aceitação ou rejeição das teorias científicas é 

preciso  recorrer  a  razões”.  É  isso  o  que  o  construtivismo  social  faz  para  tentar 

modificar  nossas  crenças,  mas  com  isso  se  põe  em  conflito  com  a  ciência 

contemporânea.  A  moderna  ciência  cognitiva  indica  claramente,  por  resultados 

acumulados  em uma  série de  campos de  aderência metodológica  inquestionável  à 

ciência  moderna  (inteligência  artificial,  psicologia  cognitiva,  neurociência)  e  aos 

padrões  tradicionais  da  racionalidade  ocidental,  que  a  psicologia  desponta, 

preservada a condição  fundante da epistemologia, como mais elucidativa acerca da 

obtenção  de  crenças  científicas  (e  quaisquer  outras),  que  a  sociologia.  Processos 

cognitivos individuais surgem para a própria ciência como mais importantes que os 

condicionamentos ou determinantes sociais. 

Bloor, nos  afterwords  escritos para a  segunda  edição de  sua obra  fundadora, 

quebra o silêncio sobre a questão da ciência cognitiva para responder à críticas, como 

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as de Laudan (1981) e Slezak (1989), sobre este problema. O resultado são declarações 

superficiais  onde  eventualmente  concede  algum  papel  às  entidades  biológicas  no 

processo de obtenção do conhecimento:  

 The only sociologists to be upset by it would be those foolish enough to deny the need for a background theory about individual cognitive process. I  take  it as evident  that you could have no social structures without neural structures. Cognitive science, of the type described, is a study of just that background of ‘natural rationality’ that advocates of the strong programme take for granted. (…)The correct position for the  sociologist  to  take  is  that,  while  a  theory  of  our  individual reasoning capacities is necessary to an account of knowledge, it is not sufficient (BLOOR, 1991, p. 168) 

 

Essa alegação é suficientemente menos forte do que a formulação original, que 

lançou o strong programme na moda sociológica. Estamos aqui diante de mais um 

caso  de  “reverse  switcheroos”  (Kukla,  2000).  Como  ressalva  Slezak  (1994),  a  atual 

versão  de  Bloor  de  que  simplesmente  existem  “social  aspects  of  knowledge”  é  um 

truísmo  sobre o qual ninguém prestaria atenção, muito menos  criticaria  com  tanta 

veemência, e mal lembra a tese forte original. Mas logo no mesmo texto Bloor volta a 

sua  real preocupação,  que  é  garantir um  espaço político  central para  a  sociologia. 

Ressalta  que  a  sociedade  teria prioridade  ontológica  sobre  as  entidades  biológicas 

que a constituem, e a sociologia prioridade epistemológica sobre a ciência cognitiva: 

 The sociologists thus have a subject matter that exists over and above that  of  the  cognitive  scientists whose work  has  been  cited  against them.  The  former,  but  not  the  latter,  study  how  a  collective representation  of  the  world  is  constituted  out  of  individual representations (BLOOR, 1991, p. 169) 

 

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Como poderia uma “representação coletiva” existir que não em várias mentes 

individuais? Está óbvio que o que quer que seja o sujeito, ou a entidade biológica que 

compõe  grupos  sociais,  para  o  construtivismo  social  este  é  concebido  como  uma 

entidade passiva e meramente respondente. Como ironiza Latour: 

 I have never said that Bloor was an idealist but that his position was an  elaboration  on  that  of  Kant  with  the  only  difference—due  to Durkheim’s emendation—being that the Ego had been replaced by a sui generis society (LATOUR, 1999, p.116) 

 

Esta é também a opinião de Phillips (1995), que em artigo que analisa as várias 

formas de construtivismo afirma: 

 Members of  the  ʺstrong programʺ  in  sociology of knowledge  (…) – who  are working  on  the  origin  of  the  public  bodies  of  knowledge known  as  the  disciplines,  especially  the  sciences  –  can  be  read  as being  far  from  the  ʺnature  as  templateʺ view, but  also  as being  far from the ʺindividual creation of knowledgeʺ view; when in their least compromising mood, they hold the view that sociopolitical processes can  account  fully  for  the  form  taken  by  the  bodies  of  knowledge codified as the various disciplines. (PHILLIPS, 1995, p.08) 

 

Mas de onde vem o modelo implícito de ser humano assumido aqui? Ele não 

é,  na  verdade,  tão  implícito  assim.  Barry  Barnes  foi  o  primeiro  a  identificar  a 

negligência da sociologia em fornecer um modelo do papel do sujeito no processo de 

construção do conhecimento. Em artigo de 1976, ele postula uma disposição indutiva 

natural  no  ser  humano,  semelhante  ao  condicionamento  operante  skinneriano, 

baseado na autoridade psicológica de Mary Hesse. Ele afirma explicitamente (p.116) 

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que sua posição se alinha a uma orientação estritamente materialista e mecanicista, 

caracterizando o ser humano como uma máquina de aprender. 

Anos  depois,  Barnes  (1983)  desenvolve  sua  posição  no  artigo  intitulado 

caracteristicamente  “Social  life  as  bootstrapped  induction”.  O  termo  ‘bootstrapp’, 

literalmente  tira  ou  correia  de  bota,  aqui  é  usado  no  sentido  da  característica 

expressão idiomática americana: “to raise oneself by one’s own bootstrapps”, e pretende 

ilustrar sua posição de que a sociedade não é construída por agentes, mas em algo 

como  o  famoso  vôo  do  Barão  de Munchausen,  se  constrói  a  si  mesma.  A  vida 

psicológica  é  retratada  neste  artigo  como  sendo  nada  além  de  uma  construção 

hipotética para retratar o funcionamento de uma máquina simples de associação de 

padrões. Nele, é defendida uma visão, já anacrônica na época, de percepção humana 

como sendo um processo de associação automática entre um “input” sensorial e uma 

forma, um padrão armazenado internamente. Esse foi o grande esforço de Barnes em 

tornar a sociologia do conhecimento compatível com a nova ciência cognitiva. 

Bloor (1983) trata desta questão em considerável maior profundidade em uma 

obra  importante para a configuração teórica do construtivismo social, “Wittgenstein: 

A Social Theory of Knowledge”. Como é óbvio, ele recorre novamente à  filosofia para 

tentar  sustentar  melhor  seus  pressupostos  problemáticos,  e  novamente  a 

Wittgenstein. Faz suas as palavras deste (BLOOR, 1983, p.6) de que explicações que 

postulam  a  existência  de  estados  mentais  estão  infectadas  pela  doença  do 

psicologismo,  e  que  nada  é mais  equivocado do  que dizer  que  significado  é uma 

atividade mental (p.7). Para o naturalismo que ele postula, isso seria absurdo: 

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 From  a  naturalistic  standpoint  our  social  life  and  higher  mental processes are the outgrowth of simpler patterns of animal interaction and  response.  Any  satisfactory  theory must  do  justice  to  the  new orders  of  fact  that  emerge  without  losing  sight  of  the  matrix  of connections and continuities. (BLOOR, 1983, p. 172) 

 

Assim como as idéias de Wittgenstein resultaram no behaviorismo lingüístico 

(Ryle, 1968), as  idéias sobre o sujeito de Bloor, ao seguir Wittgenstein chegaram ao 

behaviorismo  de  Skinner.  Bloor  recorre  ao  abandonado  projeto  behaviorista  de 

explicação da aquisição da linguagem como exemplo da materialização científica da 

visão de Wittgenstein. Para ele, Skinner  (1975) desenvolveu no Verbal Behavior uma 

teoria  científica  da  linguagem  similar  a  que  Wittgenstein  teria  desenvolvido  se 

tivesse a isso se dedicado (BLOOR, 1983, p.52). 

Bloor  acredita  que  pode  explicar  todo  o  processo  humano  de  aquisição  de 

crenças  e  linguagem  em  termos  de  condicionamento  operante,  e  para  entender  o 

processo  precisamos  somente  entender  como  uma  comunidade  verbal  maneja  e 

constrói uma agenda de reforçamento. Chega a endossar a opinião de Skinner de que 

aquilo que chamamos consciência é  simplesmente uma  forma de  reagir ao próprio 

comportamento,  um  produto  social  (BLOOR,  1983,  p.53‐54).  Ian  Hacking  (1999) 

observa que o self (que é diferente de consciência) é um dos objetos prediletos pelos 

estudos construtivistas sociais, que procuram apresentá‐lo como um produto social, e 

não  construção  individual  ou menos  ainda  objeto natural. Bloor  ainda  tem  outros 

nomes para este alvo prioritário de desconstrução, adversário natural de uma visão 

sociologista de mundo: ‘ego’ ou ainda ‘mente’. 

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 This is the part of ourselves that is often assumed to be known most intimately. It seems to be the location and source of our identity and individuality. There  is  therefore a sense  in which  this  is  the keep of the individualist’s castle. (BLOOR, 1983, p.50) 

 

Slezak  (2000)  apelida  o  construtivismo  social  de  “behaviorismo  renascido” 

(p.20). Para ele, a conexão causal entre idéias e contexto social proposta por ele não é 

nada mais que uma versão sociológica da teoria estímulo‐resposta do behaviorismo 

skinneriano. Slezak vê o ataque  frontal de Bloor ao poder  explanatório de  estados 

mentais como uma parte fundamental da sua defesa de uma alternativa sociológica 

radical  à  explicação da  ciência. O problema  é  que  isso deixa  seu programa muito 

dependente  das  teses  wittgensteinianas,  e  quando  elas  entram  em  conflito  com 

resultados da ciência cognitiva, a sociologia da ciência entra por tabela.  

Como  exemplo,  Slezak  (2000)  cita  a  tese  psicologicamente  anacrônica  da 

rejeição da  existência de  estados mentais  como  imagens,  como  estando  trinta anos 

atrasada  em  relação  à  ciência,  e  ele  está  certo. Desde  o  estudo  clássico  de  Roger 

Shepard  (Shepard  &  Metzler,  1971),  uma  enorme  quantidade  de  evidências 

(experimentais,  não  de  estudos  de  caso)  se  acumularam  de  que  seres  humanos 

pensam também através de imagens, ao ponto de hoje termos inclusive algumas leis 

(do  tipo  das  que  o  construtivismo  social  não  possui  nenhuma)  de  imagética  que 

conseguem prever com exatidão a diferença de tempo entre respostas que o mesmo 

sujeito dá a diferentes problemas visuais  (Sternberg, 2008; Eysenck & Keane, 2007). 

Eu mesmo tenho conduzido uma pesquisa que construiu um programa para replicar 

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o experimento original de Shepard com alunos como sujeitos experimentais, porque 

ele é hoje um clássico da psicologia cognitiva. 

Mas este não é o único anacronismo de Bloor, como aponta Slezak (2000). Ele 

ignora o  fato de que  a  tese de  aprendizagem verbal de  Skinner  (1975)  é uma  tese 

filosoficamente  frágil  e  cientificamente  refutada,  e  tenta  fundamentar  o  strong 

programme  com  esta.  Ignora  as  críticas  dirigidas  a  ela  pela  importante  resenha  de 

Chomsky  (1967)  que  nunca  foi  sequer  respondida  por  Skinner, mesmo  tendo  se 

tornado  generalizadamente  reconhecida  como  um  dos maiores motivos  da  rápida 

decadência do movimento behaviorista e ascensão das ciências cognitivas. Se dirige 

(BLOOR,  1983,  p.191)  às  referidas  teses  de Chomsky  como  sendo  simplesmente  a 

crítica “padrão” ao behaviorismo, numa nota de  rodapé de duas  linhas. Tudo  isso 

leva Slezak a afirmar que: 

 Bloor’s  failure  to  indicate  the  magnitude  and  import  of  these developments  is  comparable  to  defending  Creationism  today  by dismissing the Origin of Species as merely “fashionable” and failing to let  one’s  readers  know  anything  of  modern  biology  founded  on Darwin’s theory. (SLEZAK, 2000, p.20) 

 

Como afirma Slezak (2000), não deveria constituir surpresa o recrutamento da 

teoria psicológica behaviorista para defender o sociologismo do programa forte, uma 

vez que o behaviorismo nega um papel  explicativo aos  estados mentais  internos  e 

portanto  está  em  oposição  diametral  ao  que  Bloor  chama  de  ponto  de  vista 

teleológico: 

 

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If  scientific  beliefs  are  to  be  construed  as  the  causal  effects  of  an external  stimulus,  they  are  precisely  analogous  to  Skinnerian “respondents”  or  “operants”  and,  therefore,  science  is  the  result  of conditioning.  In  short,  the  deep  insight  of  radical  social constructivism is that Isaac Newton’s Principia is to be explained just like  a  rat’s  bar‐pressing  in  response  to  food  pellets.  Bloor’s  recent protest  that his views  are  entirely  consistent with  cognitive  science cannot be taken seriously (…). (SLEZAK, 2000, p. 21)  

 

Slezak  está  certo. Na  verdade,  nada  substancial mudou  em  trinta  anos  nas 

teses de Barnes e Bloor à respeito do papel do sujeito na construção do conhecimento. 

E  o motivo  é  simples,  como  Barnes  explica  em  outro  artigo  com  título  anedótico 

sobre o problema do sujeito na sociologia, “Agency as red hering in social theory”: 

 “Agency”  stands  for  the  freedom of  the  contingently  acting  subject over  and  against  the  constraints  that  are  thought  to  derive  from enduring  social  structures.  To  the  extent  that  human  beings  have agency, they may act independently of and in opposition to structural constraints, and/or may  (re)constitute social structures  through  their freely  chosen  actions.  To  the  extent  that  they  lack  agency,  human beings are conceived of as automata,  following  the dictates of social structures  and  exercising  no  choice  in  what  they  do.  (LOYAL  & BARNES, 2001, p.507) 

 

E novamente Bloor: 

 An  alternative  strategy, more  in  keeping with  the  Strong Program, would be  to adopt an approach  loosely derived  from  the empiricist tradition. The  sociologist needs  to have  a grasp of what  the  agents under  study  are  responding  to,  that  is, what  aspects  of  the world have  been  disclosed  to  them  in  their  experience,  and  what predicament  they  take  themselves  to  be  in.  If  we  can  isolate  the ‘stimulusʹ  then  perhaps  we  can  begin  the  task  of  explaining  the ‘responseʹ. Of  course,  the  real  concern will  not  be with  individual, psychological  responses  as  such,  but  with  those  responses  as mediated  by  a  collective  understanding, with  its  shared  traditions and conventions. (BLOOR, 1999, p.90) 

 

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E  ainda  ambos,  em  tentativa  conjunta  de  responder  aos  problemas 

acumulados em trinta anos de strong programme, ainda recorrendo ao behaviorismo:  

 Sociologists should be willing  to acknowledge  the existence and  the causal  relevance  of  the  physical  environment when  they  study  the growth of knowledge. And having  acknowledged  this,  they  should acknowledge also the ability of  individual human beings to monitor the physical environment and learn about it. Individual animals learn directly from experience. The psychologist’s rat pushes the lever and looks  to  the  arrival  of  a  food pellet.  (BARNES, BLOOR & HENRY, 1996, p.76) 

 

A  crença  na  nulidade  do  papel  do  sujeito  na  obtenção  do  conhecimento  é 

generalizada  no  construtivismo  social,  até  no  ontológico,  que  não  defende  que 

indivíduos constroem o mundo, mas que a sociedade o constrói. Veja o que diz sobre 

isso a “epistemóloga feminista” Lynn Nelson: 

 In  suggesting  that  it  is  communities  that  construct  and  acquire knowledge, I do not mean (or ʺmerelyʺ mean) that what comes to be recognized or  ʺcertifiedʺ as knowledge  is  the  result of  collaboration between,  consensus  achieved  by,  political  struggles  engaged  in, negotiations  undertaken  among,  or  other  activities  engaged  in  by individuals who, as individuals, know in some logically or empirically ʺpriorʺ  sense.  (…) My arguments  suggest  that  the  collaborators,  the consensus  achievers,  and,  in more  general  terms,  the  agents  who generate  knowledge  are  communities  and  subcommunities,  not individuals. (NELSON, 1993, p. 124) 

 

Creio  que  está  suficientemente  fundamentada  acima  a  principal  parte  do 

argumento que demonstra uma das hipóteses defendidas nesta dissertação, qual seja, 

a  de  que  o  construtivismo  social  não  é  construtivista,  sendo  uma  forma  de 

objetivismo.  Em  qualquer  autor  auto‐denominado  construtivista  social,  nós 

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encontramos a mesma resposta à Q3 desta dissertação, sobre a relação entre sujeito e 

objeto do  conhecimento. E  essa  relação  é de  absoluta passividade. O  sujeito não  é 

nada mais que um histórico de reforçamento, um conjunto de associações estímulo‐

resposta verbais. O sujeito é construído pelo conhecimento, não o constrói:  

 Everyone has been assuming  that knowledge  is  to be analyzed  into two  ingredients:  one  furnished  by  the  object,  the  other  by  the knowing  subject. Theories of knowledge  are  just  the  stories we  tell about how these two supposed ingredients are to be  identified, how they  interact, and  in what proportions. Some will  lay great stress on the complexity of the knowing subjectʹs contributions; others will see it as a passive receptacle, or  like a blank sheet waiting  to be written on.  Some  accounts  of  knowledge  will  treat  the  subject  as  an individual  mind;  others  will  identify  it  as  a  group  or  a  culture. Obviously, for a committed sociologist, the ultimate knowing subject will be social in character, in short, ‘societyʹ. (BLOOR, 1999, p.83) 

 

 

3.4.5. Qual é o método científico de investigação da ciência?  

  Enfim  chegamos  ao  último  item  de  nossa  caracterização  do  construtivismo 

social, e ele diz respeito à questão metodológica. Já que esta abordagem da sociologia 

do conhecimento se apresenta como um programa de pesquisa empírica, destinado a 

aplicar  a  ciência  ao  estudo  da  ciência  e  descartar  o  anacronismo  apriorista  da 

epistemologia,  é  fundamental  que  se  defina  o  que  esta  abordagem  entende  por 

metodologia científica capaz de estabelecer as relações causais que constituem, afinal 

de contas, a diretriz programática número um do strong programme. 

  Quando Bloor fala em metodologia, ele na verdade apresenta um conjunto de 

pressupostos  filosóficos que chama de  requerimentos metodológicos para o estudo 

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sociológico  da  ciência,  são  os  princípios  já  vistos  da  causalidade,  simetria, 

imparcialidade  e  reflexividade.  Alguns  destes  têm  remotamente  o  formato  de 

sugestões metodológicas, mas são na verdade um conjunto de petições de princípio. 

O  sociólogo  deve  pressupor  que  toda  crença  tem  uma  causa  e  não  razões,  deve 

estudar ambas as crenças  tanto aceitas quanto rejeitadas,  levantar o  juízo acerca da 

verdade ou falsidade última das crenças, e considerar que tudo isso também se aplica 

a suas próprias crenças e sua própria disciplina. Mas nada disso diz como o sociólogo 

deve  investigar seu objeto, que padrões ele deve seguir na observação e tratamento 

dos  dados  e  muito  menos  como  ele  poderia  testar  hipóteses  causais  (cujo 

estabelecimento o programa forte diz que em última análise é o seu objetivo).  

  Não é só Bloor que parece considerar metodologia somente como análise de 

pressupostos  filosóficos  e  diretrizes  gerais  de  uma  disciplina.  Bruno  Latour  em 

“Science  in  action”,  seu  livro declaradamente dedicado à metodologia,  resume  toda 

sua obra em um quadro sinótico na seção de apêndices, que tem como título “Latour’s 

Rules  of Method”. Peço ao  leitor a permissão para a  transcrição  integral do quadro, 

para que não reste dúvida de que não houve uma seleção tendenciosa. Eis o que são 

as  regras  do método  científico  com  o  qual  Latour  espera  elucidar  as  verdadeiras 

causas  do  surgimento  e  aceitação  da  teoria  da  relatividade  de  Einstein  ou  a  da 

descoberta do hormônio TRH: 

 Rule  1 We  study  science  in  action  and  not  ready made  science  or technology;  to do so, we either arrive before  the  facts and machines are  blackboxed  or  we  follow  the  controversies  that  reopen  then. (Introduction) 

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Rule  2  To  determine  the  objectivity  or  subjectivity  of  a  claim  the efficiency  or  perfection  of  a mechanism, we  do  not  look  for  their intrinsic qualities but at all the transformations they undergo  later  in the hands of others. (Chapter 1) Rule 3 Since  the settlement of a controversy  is  the cause of Nature’s representation,  not  its  consequence;  we  can  never  use  this consequence, Nature, to explain how and why a controversy has been settled. (Chapter 2) Rule 4 Since  the settlement of a controversy  is  the cause of Society’s stability,  we  cannot  use  Society  to  explain  how  and  why  a controversy has been settled. We should consider symmetrically  the efforts to enroll human and non‐human resources. (Chapter 3) Rule 5 We have to be as undecided as the various actors we follow as to what technoscience is made of; every time an inside/outside divide is built, we  should  study  the  two  sides  simultaneously  and make  the list, no matter how  long and heterogeneous, of  those who do work. (Chapter 4) Rule 6 Confronted with the accusation of irrationality, we look neither at what rule of logic has been broken, nor at what structure of society could  explain  the  distortion,  but  to  the  angle  and  direction  of  the observer’s  displacement,  and  to  the  length of  the network  thus being built (Chapter 5) Rule  7  Before  attributing  any  special  quality  to  the mind  or  to  the method of people, let us examine first the many ways through which inscriptions  are  gathered,  combined,  tied  together  and  sent  back. Only if there is something unexplained once the networks have been studied  shall  we  start  to  speak  of  cognitive  factors.  (Chapter  6) (LATOUR, 1987, p.258) 

 

  O leitor mais familiarizado com os métodos quantitativos de investigação que 

são a essência mesmo da ciência moderna, e que tem uma vaga noção dos inúmeros 

procedimentos‐padrão  que  são  usados  para  controlar  variáveis,  recolher  dados, 

eliminar  interferências  e  tratar  estatisticamente  os  resultados  pode  não  estar 

entendendo bem o que está acontecendo aqui. Mas é simples. A sociologia nunca usa 

o método experimental, e usa muito raramente qualquer método descritivo típico da 

ciência moderna, geralmente, quando usa, executa levantamentos de dados seguidos 

de  estudos  estatísticos  de  correlação.  Isto  porque  diante  da  impossibilidade  de 

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conduzir  experimentos  sociológicos,  tudo  o  que  resta  é  estabelecer  empiricamente 

correlações entre fatores sociológicos (como no famoso estudo de Durkheim sobre o 

suicídio).  

Mas o método de  levantamento de dados, até onde eu pude  investigar para 

esta dissertação, jamais foi aplicado ao estudo sociológico do conhecimento científico 

no  âmbito  do  construtivismo  social.  Ao  contrário,  para  estudar  a  aplicação  dos 

métodos nomotéticos da ciência moderna, a sociologia do conhecimento  lança mão 

de métodos  idiográficos de dois campos não‐científicos: a história e a antropologia. 

Da  história,  utiliza  o  estudo  de  caso  baseado  em  recolhimento  de  documentos  e 

testemunhos,  da  antropologia,  utiliza  o  método  da  observação  participante,  nos 

termos de Knorr‐Cetina (1983), estudos etnográficos do trabalho científico. 

Esta é a ciência que estuda a ciência para o strong programme. Levantamento de 

dados  históricos  e  sua  interpretação  hermenêutica,  e  participação  em  laboratórios 

durante a produção real de conhecimento científico,  levantando  todo tipo de dados 

supostamente  sem  prévia  interpretação  ou  pré‐concepção,  ‘outsiders’  fazendo 

observação  participante  na  estranha  tribo  dos  cientistas  e  testemunhando  seu 

comportamento bizarro. 

  Trinta  anos  de  estudos  de  casos  e  observações  participantes  realmente 

geraram uma grande massa de dados empíricos e suas interpretações. Algumas das 

mais célebres são os estudos históricos de Steve Shapin (1994) sobre a Frenologia, de 

Elisabeth Potter (1993) sobre a lei dos gases de Boyle, e de Latour (1988) sobre a teoria 

da  relatividade  de  Einstein.  Entre  as  mais  célebres  observações  participantes  do 

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construtivismo  social  estão  as  de  Latour & Woolgar  (1986)  sobre  a  descoberta  do 

TRH e de Andy Pickering (1984) sobre quarks. 

  Alguns  dos  resultados  “científicos”  destes  estudos.  Elisabeth  Potter  (1993) 

concluiu  através  de  seu  estudo  histórico  da  lei  dos  gases  de  Boyle  que  o 

conhecimento de que o gás tem peso foi determinado por considerações de gênero e 

classe  social.  Robert  Boyle  era  um  puritano,  e  portanto  contra  a  liberação  das 

mulheres  de  seu  papel  doméstico  convencional,  e  sua  consciência  de  classe  era 

sustentada  pelo  mecanicismo.  Portanto  partiu  para  derrotar  a  posição  holista  e 

organicista de Hermes, Paracelsus e Campanella, pois esta era advogada pela plebe e 

predominantemente  por  mulheres.  Potter  conclui  que  o  trabalho  de  Boyle  teve 

implicações diretas para as mulheres daquele período histórico. Foi mais um caso de 

chauvinismo da ciência patriarcalista ocidental. 

  Já Steve Shapin (1994) demonstrou que a disputa sobre a frenologia na Escócia 

do  século XIX  foi  uma  questão  de  disputa  de  classe. Os  defensores  da  frenologia 

vinham da  classe média, portanto  interessados em encontrar  conhecimento prático 

capaz de orientar e legitimar os propósitos de reformas sociais igualitárias, enquanto 

seus  oponentes  vinham  de  círculos  acadêmicos  da  elite  escocesa.  A  estrutura  da 

explicação de Shapin é apresentada assim por Niiniluoto (1999): 

 The members of the community C belong to social class S. The members of S have the social interest I. The members of C believed that theory T would promote interest I. Therefore,  the members  of C  believed  in  theory  T.  (NIINILUOTO, 1999, p.255) 

 

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  E é claro, temos a celebre explicação de Latour sobre o que realmente está por 

trás de teoria da relatividade, avaliada pelos físicos Alan Sokal e Jean Bricmont (2001) 

no já clássico “Fashionable Nonsense”: a busca obsessiva de poder e controle por parte 

de Einstein. Mas  como  estamos  falando de Latour,  o mais  apropriado  é  sempre  a 

transcrição literal: 

 However,  it  is only when the enunciator’s gain  is taken  into account that the difference between relativism and relativity reveals its deeper meaning.  (…)  It  is  the  enunciator  that  has  the  privilege  of accumulating all  the descriptions of all  the  scenes he has delegated observers  to.  The  above  dilemma  boils  down  to  a  struggle  for  the control of privileges, for the disciplining of docile bodies, as Foucault would have said. (LATOUR, 1988, p.15)  Who is going to benefit from sending all these delegated observers to the embankment,  trains,  rays of  light,  sun, nearby  stars, accelerated lifts,  the  confines of  cosmos?  If  relativity  is  right, only one of  them (that is, the enunciator, Einstein or some other physicist) will be able to accumulate in one place (his laboratory, his office) the documents, reports and measurements sent back by all his delegates. (LATOUR, 1988, p.23) 

 

  Estes são alguns de muitos resultados dos estudos sociológicos sobre a ciência. 

Talvez, diante de alguns destes, alguns pesquisadores do strong programme devessem 

cogitar que há algo errado com a metodologia que produz semelhantes conclusões. 

Veremos  isso no próximo capítulo. Mas é claro que entre os reticentes não poderia 

estar  Bruno  Latour. De  fato,  ele  está muito  convencido  do  valor  das  suas,  como 

podemos inferir desta afirmação: 

 Did we  teach Einstein anything? No matter how presumptuous  the question  seems  to  be,  it  is  the  necessary  counterpart  of  this more equal  status  the method  requests. My claim would be  that, without the enunciator’s position (hidden in Einstein’s account), and without 

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the  notion  of  centers  of  calculation,  Einstein’s  own  technical argument is ununderstandable. (LATOUR, 1988, p.35) 

 

  É por estas e muitas outras que afirma Slezak (2000): 

 Based on  their own experience,  it  is not difficult  to  see why Latour and Woolgar might arrive at the conclusion that science is a more or less  arbitrary  construction  and  negotiation  with  fictions  and  that “nothing  of  any  cognitive  quality  was  occurring”  in  scientific laboratories. (SLEZAK, 2000, p.26)    

  Concluímos  portanto  este  capítulo  atribuindo  ao  construtivismo  social  a 

defesa  de  teses  realistas  e  idealistas  em  ontologia,  e  céticas  e  objetivistas  em 

epistemologia.  Em  vista  das  várias  teses  apresentadas  neste  capítulo,  vamos 

finalmente apresentar detalhadamente as críticas a esta abordagem indicadas desde a 

introdução desta dissertação. 

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Capítulo 4 

Avaliação crítica do Construtivismo Social 

 

 

Neste capítulo apresentarei cinco críticas gerais ao construtivismo social, das 

quais duas pretendem  ter o caráter de críticas originais. A primeira diz respeito ao 

fato de que, apesar de se apresentar como ciência da ciência e crítico da  filosofia, o 

construtivismo social nada mais é que outra filosofia da ciência; só que inconsistente 

e praticada sem rigor. A segunda diz respeito ao fato de que os métodos usados pelo 

construtivismo social para investigar cientificamente a ciência não são científicos, são 

incapazes  de  testar  alegações  acerca  de  relações  de  causa  e  efeito,  fato  este  que 

aparentemente nunca foi abordado na literatura sobre o strong programme. A terceira, 

alegada aqui desde o início da dissertação, é a de que o construtivismo social não é 

estrito  senso  uma  variante  de  construtivismo,  não  faz  parte  dessa  tradição  do 

pensamento  ocidental,  pois  não  existe,  para  esta  abordagem,  um  sujeito  ativo. A 

quarta, é que ela defende uma das  teses mais descabidas da história da  filosofia da 

ciência, a de que o mundo não faz diferença na obtenção de conhecimento científico. 

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Por  fim,  abordarei  novamente  o  problema  do  relativismo  e  da  definição  de 

conhecimento adotada por essa vertente, criticando as consequências de se rejeitar a 

verdade como ideal normativo. 

 

 

 

4.1. – Uma filosofia da ciência sem filosofia 

Apesar de se apresentar como uma disciplina científica, o programa  forte da 

sociologia da ciência é fundamentalmente um manifesto metacientífico. Ao rejeitar a 

filosofia  como  campo  legítimo  de  inquérito  sobre  a  natureza  da  ciência,  acaba 

apresentando  suas  alegações  de  maneira  inconsistente,  alegando  serem  fruto  de 

investigação empírica. Esta característica faz do conjunto de idéias que professa uma 

filosofia da ciência praticada sem o rigor da filosofia. 

 

4.1.1. A circularidade da pretensão cientificista 

O strong programme é só um caso particular de uma patologia que acomete a 

filosofia desde a ascensão cultural irresistível da ciência moderna: o cientificismo. De 

tempos em  tempos a  cultura antifilosófica  se manifesta proclamando a  caducidade 

da  filosofia  e  a  necessidade  de  eliminá‐la  em  prol  de  uma  vigência  universal  do 

modelo científico de  investigação. É comum se propor sua substituição por alguma 

disciplina  específica  como  mostram  os  casos  do  psicologismo  e  fisicalismo.  Os 

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reducionismos  capitaneados  por  um  ‘ismo’  são  uma  das  marcas  da  tradição 

genericamente rotulável de (neo)positivista. 

O novo aqui é que uma corrente que se declara antipositivista tenha incorrido 

no  mesmo  tipo  de  ingenuidade  filosófica  que  já  malogrou  tantas  vezes.  A 

ingenuidade  é não perceber que qualquer discurso que visa  a obter  conhecimento 

sobre uma forma de obter conhecimento é um discurso de segunda ordem, e como 

tal,  dependente  de  pressupostos  filosóficos  acerca  de  conceitos  como  ‘verdade’, 

‘conhecimento’,  ‘realidade’,  ‘justificação’. Alguma  coisa deve  estar  errada  em uma 

disciplina altamente questionada em sua cientificidade, que não apresentou até hoje 

uma  única  lei  geral  aplicável  a  processos  sociológicos,  declarar  a  prioridade 

epistemológica  da  ciência,  principalmente  quando  a  ciência  em  questão  é  a 

sociologia. E há. Como veremos no próximo item, aquilo que eles chamam de ciência 

(1)  que  investiga  a  ciência  (2)  é  na  verdade  um  conjunto  de métodos  históricos  e 

antropológicos  (1)  estudando  experimentos  (2). Mas, a história  é  ciência moderna? 

Como não é, não temos ciência estudando a ciência. Pelo menos, não temos a ciência 

moderna, que é o suposto objeto de interesse do construtivismo social, estudando a 

ciência moderna. 

É  banal  que  em  qualquer  investigação  científica  tenhamos  de  partir,  no 

mínimo de forma implícita e irrefletida, de alguma concepção de ciência, e que esta 

última  não  tenha  sido  estabelecida  cientificamente.  O  próprio  Bloor  parece  ter 

perfeita  consciência disso  quando  afirma:  “Of one thing we can be sure: nobody can

develop any position in a wholly presuppositionless way” (BLOOR, 1999, p.91). 

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164

O construtivismo social, ao negar à filosofia da ciência o papel de reconstruir a 

atividade  científica,  assume de  forma  tácita uma  teoria geral da  cientificidade. Na 

verdade,  como  toda  forma de  cientificismo, o que  temos aqui  é a desconfiança ou 

mesmo ódio em relação à razão e à racionalidade  transferida à  filosofia, através do 

discurso  filosófico  de  descrença  na  capacidade  da  filosofia  de  produzir 

conhecimento. A partir daí, se propõe que estudos sobre a ciência sejam conduzidos 

de  forma  científica,  pressupondo‐se  filosoficamente  que  só  a  ciência  produz 

conhecimento: 

 To think about the nature of knowledge is at once to immerse oneself in  an  abstract  and  obscure  enterprise.  To  ask  questions  of  the  sort which philosophers address  to themselves  is usually  to paralyze  the mind (BLOOR, 1991, p.52) 

 

Talvez  Bloor  não  tenha  suportado  o  peso  de  se  fazer  perguntas  sobre  a 

natureza do conhecimento, pois tudo o que ele apresenta é uma filosofia descuidada, 

uma vez que não conduz estudos de campo. Não é para menos. Tudo o que de mais 

importante se tem dito sobre a ciência, o tem dito a filosofia. Invariavelmente, e isso 

já  inclui  o  programa  forte  da  sociologia  da  ciência,  as  diferentes  versões  de 

cientificismo se revelaram com o tempo superficiais e alienadas da ciência real, como 

foi  o  caso  do  psicologismo  do  fim  do  século XIX  e  do  fisicalismo  do  positivismo 

lógico. Em  todas elas, se provaram  facilmente a presença  implícita de uma  filosofia 

da  ciência  rústica  (como mostraremos  aqui)  e  ingênua,  geralmente  similar  a  um 

empirismo simplista como o professado por Newton, que repetia que não elaborava 

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hipóteses.  É  por  isso  que  Niiniluoto  (1991)  acredita  que  devamos  tratar  os 

construtivistas sociais como colegas filósofos. 

Qualquer teoria que se volte ao objeto da própria ciência ou conhecimento faz 

um discurso de segunda ordem, que não pode extrair sua  fundamentação de  lugar 

nenhum  que  não  a  filosofia.  É  claro  que  a  este  discurso  de  segunda  ordem,  que 

define o que é ciência, não pode se atribuir o estatuto de ciência. Como afirma Oliva:  

 Estudar a ciência demanda o uso de conceitos e categorias que não se localizam  no  mesmo  plano  do  discurso  de  primeira  ordem  da pesquisa  científica.  Tarefas  como  a  de  definir  a  cientificidade, identificar  as  formas  de  interação  entre  fatos  e  teoria  e  buscar fundamentação  para  os  modelos  explicativos  não  têm  como  ser realizadas de modo científico. (OLIVA, 2005, p.45) 

 

Bloor reclama deste tipo de crítica. Afirma que “if sociology could not be applied 

in  a  thorough‐going  way  to  scientific  knowledge  it  would  mean  that  science  could  not 

scientifically  know  itself”  (BLOOR,  1991,  p.46).  Mas  é  óbvio  que  não  pode.  E  se 

pudesse, a sociologia não seria a disciplina científica mais adequada para isso.  

Esta  disputa  entre  sociologia  e  filosofia  não  é  nada  mais  que  o  reflexo 

sociológico de polêmicas internas da filosofia da ciência. Oliva (2005) argumenta que 

este  confronto  não  se  dá,  como  nos  tentam  fazer  crer  os  sociólogos,  entre  o 

apriorismo  e  a  ciência  empírica.  É,  na  verdade  uma  luta  entre  epistemologias 

internalistas  e  externalistas. Epistemologia  internalista  é  aquela que  acredita que  a 

decisão  entre  teorias  científicas  é  totalmente  interna  à  lógica  de  investigação 

científica,  se  concentrando  na  identificação  dos  atributos  lógicos  e  empíricos  das 

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teorias. Epistemologia externalista é aquela que atribui a escolha de teorias científicas 

a causas externas à  lógica e às evidências empíricas, como  interesses de grupos ou 

classes e mecanismos sociais gerais 

 

4.1.2. Não existe descritivismo puro 

Isto  nos  leva  à  problemática  da  contraposição  entre  descritivismo  e 

prescritivismo.  Na  verdade,  toda  a  argumentação  do  strong  programme  parte  da 

admissão  implícita da  tese de que  a pergunta que deve  ser  feita  sobre  a  ciência  é 

sobre  o  que  é,  de  fato,  a  ciência.  Esta  não  é,  no  entanto,  a  questão  da  filosofia. A 

filosofia não se dirige a questões de fato, contingentes, estas são realmente tarefas da 

ciência. A filosofia se dirige a questões de razão. A tarefa da filosofia é apresentar o 

que  deveria  ser  a  investigação  científica  para  se  conseguir  teorias  com  a  melhor 

qualidade possível sobre o mundo, não investigar o que anda sendo feito de fato nos 

laboratórios. 

Não é que questões de fato não interessem ao filósofo, é que elas não são o que 

distingue  seu  objeto  de  investigação.  Ele  pode  prescindir  de  questões  de  fato. O 

mesmo  não  acontece  com  uma  abordagem  descritiva  da  ciência.  Ela  se  dedica  a 

descrever questões de  fato  sobre  a  ciência, mas não pode,  como  acreditam  alguns 

ingênuos descritivistas, prescindir de questões de razão e pressupostos apriorísticos 

acerca da ciência. Afinal de contas, de que forma a) abordariam adequadamente seu 

objeto  e b)  saberiam o que procuram? O descritivismo que  ingenuamente  acredita 

não partir de posições aprioristas,  fica na verdade  escravo da  racionalidade ou da 

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prática em uso, do que é nomeado científico por determinada sociedade, que pode 

ser desde investigações em aceleradores de partículas até rituais vodoos.  

O construtivismo social não é nada além de uma abordagem da ciência que se 

assume  como descritivista, mas que  sequer  logra mostrar  como a  ciência  de  fato  é, 

como  é  realmente praticada. Tacitamente  estipula  o  que  a  ciência  é para  justificar 

suas próprias  teses com  fatos escolhidos de acordo com suas próprias necessidades 

metacientíficas. O  construtivismo  social  acusa  indevidamente  a  filosofia da  ciência 

de, ao recorrer a uma lógica da ciência, desconsiderar a ciência real. Mas não se pode 

acusar uma disciplina de não abordar algo para o qual não é feita, e para o qual não 

tem competência metodológica. Filosofia da ciência não é história da ciência, não é 

psicologia da ciência e também não é, não pode ser, e não tem como ser substituída 

por uma sociologia da ciência. Propor que a história da ciência substitua a filosofia da 

ciência é propor que ciência é aquilo que foi chamado de ciência ao longo da história. 

Propor que a sociologia da ciência substitua a filosofia da ciência é propor que ciência 

é  aquilo  que  se  assume  como  ciência  hoje. Nenhuma  das  duas  abordagens  pode 

substituir o papel da filosofia de apontar como a ciência pode ser melhor praticada. 

Mas como aponta Stove (2001, p.22), o que origina o irracionalismo epistêmico 

característico  do  construtivismo  social  é  a  recusa  em  distinguir  o  descritivo  do 

prescritivo, que tem sua origem na recusa da distinção entre contexto de descoberta e 

de justificação. Como não há critérios de justificação a prescrever, os que são usados 

têm de ser descritos como qualquer outro fator de tipo contingente. Esta abordagem 

herda  e  usa,  neste  ponto,  todas  as  teses  da  Nova  Filosofia  da  Ciência  como  se 

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tivessem sido provadas, mas não reconhece que parte, como uma espécie de a priori, 

desta base epistemológica. 

 

4.1.3. Mais do mesmo: construtivismo social é a Nova Filosofia da Ciência 

Este argumento é o centro da obra de Oliva  (2005), que defende que a nova 

sociologia da ciência só se tornou possível pela disseminação nas ciências sociais das 

teses da Nova Filosofia da Ciência que expusemos nesta dissertação, notadamente as 

de Kuhn e Feyerabend. Para ele, “toda argumentação do Programa Forte nada mais 

faz  que  traduzir  para  a  linguagem  sociológica  as  conclusões  a  que  chegaram  as 

filosofias da ciência autoproclamadas pós‐positivistas”. (OLIVA, 2005, p.251): 

 ...as  profundas  diferenças  subsistentes  entre  os  Programas  Fraco  e Forte em sociologia da ciência não devem ser creditadas a mudanças de  enfoque  causadas  por  transformações  na  dinâmica  interna  – inovações teóricas ou  introdução de novas técnicas de pesquisa – de produção  do  conhecimento  sociológico. Mesmo  porque  despontam como  totalmente  dependentes  da  adoção  de  divergentes  modelos epistemológicos. A  sociologia  só deixa de  adstringir  seus  estudos  à gênese  dos  produtos  científicos  quando  passa  a  ser municiada  por argumentos  epistemológicos  heterodoxos  que  desqualificam distinções entre, por exemplo, contexto da descoberta e contexto da justificação, observação e teoria. (OLIVA, 2005, p.225) 

 

É a repetição de um movimento antigo e conhecido, céticos geralmente negam 

que  exista  epistemologia ou que  ela diga algo  relevante,  e  recorrem a  ela  em  seus 

debates o  tempo  todo para defender  suas  teses,  como observaram Nola &  Sankey 

(2000).  O  truque  do  construtivismo  social  é  negligenciar  questões  relativas  à 

metodologia  e  sua  fundamentação  acusando‐as  de  falsas  questões,  com  base  na 

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169

suposição  de  que  todo  e  qualquer  pensamento  é  socialmente  determinado.  Ao 

mesmo  tempo, usa métodos primitivos  e  ingênuos  como  se  fossem procedimentos 

naturais  da  racionalidade  que  julga  não‐natural.  Mas  se  procedimentos 

metodológicos não  são mais que  convenções de determinado grupo  social, não há 

razão para outros grupos sociais que não possuem as mesmas convenções  levarem 

em consideração seus resultados. 

Se, como quer o neo‐wittgensteinismo presente no construtivismo social, toda 

e  qualquer  regra  científica  é  expressão de uma  forma de  vida,  o  que  cabe  fazer  é 

procurar  identificar  as  causas  que  levam  os  cientistas  a  escolher  uma  teoria  em 

detrimento de outra. Mas isso se aplica também, até pelo princípio da reflexividade, 

ao próprio construtivismo social: quais são os  interesses que determinam a escolha 

de  suas  teorias?  Eles  parecem  óbvios,  mas  abordaremos  isto  no  último  item  do 

capítulo. 

O  projeto  de  estabelecer  cientificamente  os  eventuais  determinantes  sociais 

das  crenças  científicas  se  revela  extremamente  frágil  tão  logo  percebamos  que  as 

supostas  teorias  sociológicas causais do conhecimento não  têm nem a mais  remota 

semelhança na aparência e desempenho com as poderosas teorias físicas, químicas e 

biológicas que este projeto tenta sociologizar: 

 Como pode a sociologia com sua cientificidade questionada ‐ a ponto de Poincaré (1912, p. 12‐3) afirmar que “cada tese sociológica propõe um método novo  (...) o que  faz  com que  a  sociologia  seja  a  ciência com o maior número de métodos e o menor número de resultados” ‐ ambicionar explicar as outras ciências? (OLIVA, 2005, p.17) 

 

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Para  contornar  este  fato duro, o  construtivismo  social  como  sempre  apela  à 

retórica proclamando a  tese  feyerabendiana de que  todas as  formas de  teorização e 

metodologias se equivalem; desse modo, se exime das necessárias demonstrações de 

adequação aos fatos que tanto cobra da filosofia. O problema é que a ciência vive do 

negócio da explicação e previsão acurada dos fatos, e que a evidência histórica a qual 

a sociologia do conhecimento alega recorrer demonstra reiteradamente que o método 

experimental  é  o melhor  para  se  alcançar  esse  fim.  Se  o  projeto  da  sociologia  da 

ciência  é o de  ser a  ciência da  ciência, precisa  testar empiricamente  suas hipóteses 

causais, e não  interpretar retroativamente dados históricos selecionados ad hoc nem 

proclamar,  aberta  ou  tacitamente,  princípios  epistemológicos  professados  por 

Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend como se fossem resultados empíricos. 

Mas como mostra Larry Laudan (1981) o programa forte foi mal‐sucedido – e 

continua assim até hoje – na determinação de qualquer mecanismo causal ou lei para 

sustentar as pretensões científicas de suas teses. No fundo o programa forte: 

 is not a  sociological  theory,  in any  costumary  sense of  that  term.  It specifies no detailed causal or functional mechanisms and no laws. It is,  rather,  a meta‐sociological manifesto.  It  lays  down  certain  very general  characteristics which  any  adequate  sociology  of  knowledge should possess. (LAUDAN, 1981, p.174) 

 

  Enfim, o programa  forte nada mais é que uma  filosofia praticada em versão 

sociológica de maneira descuidada,  cheia de  teses  controversas que  tentam passar 

por científicas, isto é, portadoras da condição de ciência da ciência. É, para tomarmos 

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a expressão de Laudan (1981), “a pseudociência da ciência”. Uma filosofia da ciência, 

afinal de contas, mas sem o rigor analítico e linguístico que a boa filosofia exige. 

 

 

 

4.2. – Uma investigação sem método 

   

A pretensão de ser uma ciência que explica o que é essencialmente a ciência é, 

portanto,  inconsistente, num nível muito primário. Mas há outra questão que ainda 

não foi levantada quanto a esta pretensão, e que merece ser apresentada aqui. Como 

apontou Laudan (1981), Bloor (e isso se estende a todo construtivismo social) não nos 

fornece uma definição do que distinguiria a investigação científica da não‐científica, 

mesmo porque  isso  explicitaria uma de  suas  incoerências  (a de  querer  estabelecer 

cientificamente que a ciência não tem valor epistêmico superior).  

Para Laudan (1981), isto nos tiraria a condição de avaliar a alegação de que o 

programa forte é científico. Creio, no entanto, que Laudan se equivoca neste ponto. 

Na  falta  de  uma  definição  explícita,  resta‐nos  uma  forma  objetiva  de  avaliar  esta 

alegação. Se Bloor, como vimos, reiteradamente afirma que o método da sociologia 

da  ciência  é  o mesmo  que  o das  ciências naturais,  e  que  sua  inovação  é  aplicar  a 

ciência ao  estudo de  si mesma,  temos que avaliar  esta alegação à  luz dos padrões 

metodológicos das disciplinas que o strong programme investiga. 

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O  construtivismo  social  afirma  que  se  deve  produzir  um  conhecimento 

científico  sobre  a  ciência. Mas  o  que  esta  abordagem  da  sociologia  faz  é  aplicar 

métodos  idiográficos,  estranhos  à  ciência  moderna,  ao  estudo  de  procedimentos 

conduzidos  por  métodos  nomotéticos,  tipicamente  empregados  pela  ciência 

moderna. Utiliza métodos qualitativos para  estudar métodos quantitativos. Estuda 

casos  únicos  para  extrair  conclusões  universais.  Ou  seja,  não  aplica  métodos 

científicos à ciência, ou dito mais especificamente, não aplica a ciência moderna, que 

é  a  fonte da  reputação do  termo  ‘ciência’,  ao  estudo da  ciência moderna,  que  é  o 

objeto de seu interesse.  

O programa  forte quer  estabelecer,  através de  investigação  científica,  as  leis 

causais que regem a construção social do conhecimento científico. Mas aquela ciência 

que ele afirma estudar, como a física dos estudos de Latour (1988) e Pickering (1984) 

ou a bioquímica do estudo de Latour & Woolgar (1986), só aceita como método capaz 

de  estabelecer  uma  relação  causal  o  experimento,  por  causa  da  rigorosa  estrutura 

dedutiva de  seu  inquérito. Evidentemente, o  strong programme nunca produziu um 

experimento  sociológico.  Como  então  pretendem  estabelecer  cientificamente  uma 

relação de causa e efeito? 

A sociologia da ciência, que alega descrever a ciência  real, deve saber que o 

processo  geral de  investigação  científica  tradicional  – praticado  na  física,  química, 

biologia e psicologia – tem quatro etapas. A primeira é a do problema, cujo objetivo é a 

descrição do fenômeno investigado da melhor e mais precisa maneira possível. Nesta 

etapa entram em cena os métodos descritivos, como os estudos de casos (no plural), as 

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observações  naturalistas  e  os  levantamentos  de  dados. A  segunda  ordem  é  a  da 

hipótese; aqui o objetivo é a construção de um modelo ou elaboração de uma hipótese 

causal. Tradicionalmente, nesta etapa da  investigação científica, principalmente nas 

ciências  sociais,  os  procedimentos  adotados  são  de  natureza  lógico‐matemática,  e 

tomam a forma de estudos de correlação. Estes só podem ser aplicados a uma massa de 

dados  quantitativos  padronizados  recolhidos  por  levantamentos  de  dados  ou 

estudos  ex  post  facto.  Na  etapa  da  investigação  científica  em  que  o  objetivo  da 

pesquisa  é  o  teste  de  uma  hipótese  ou modelo,  a  ciência moderna  conta  com  dois 

métodos de validade diferenciada: o provisório estudo quase‐experimental e o método 

experimental,  “supremo  tribunal”  da  investigação  científica.  Neste,  uma  previsão 

sobre o comportamento de um  fenômeno é  feita e o mesmo é provocado de  forma 

controlada de forma a testar a previsão. A última ordem de objetivos dos métodos de 

pesquisa é a crítica; nesta etapa  final da  investigação, busca‐se a análise do alcance, 

validade  e  significância  dos  resultados  obtidos  no  teste.  Os  procedimentos  aqui 

podem  ser  de  dois  tipos.  Um  concerne  aos  instrumentos  de  análise  estatística, 

notadamente o teste de hipótese, que possibilitam o estabelecimento da significância 

estatística dos resultados do experimento. O outro tipo é a análise do metodologista 

quanto à adequação do desenho, execução do experimento e alcance da conclusão.  

  O Estudo de casos é geralmente confundido com o estudo de caso único e às 

vezes tomado mesmo por seu sinônimo. No entanto, duas características marcantes 

podem distinguir estes dois procedimentos de pesquisa. O primeiro é o objetivo de 

cada um. O segundo a quantidade de técnicas e procedimentos que cada método está 

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autorizado  a  lançar  mão.  O  estudo  de  caso  único  é  um  estudo  idiográfico  e 

qualitativo. Seu objetivo é a descrição minuciosa e completa de um fenômeno único 

qualquer, geralmente um fenômeno social ou quadro psicopatológico. Este fenômeno 

é  geralmente de  especial  relevância,  como uma patologia desconhecida  ou  evento 

histórico de grandes implicações. Já o estudo de casos, que geralmente é baseado em 

vários  estudos  de  caso  único  diferentes  (mas  não  necessariamente),  tem  como 

objetivo  a  identificação  de  padrões  presentes  em  vários  casos  particulares  de  um 

determinado  fenômeno.  Ele  se  insere,  portanto,  em  um  processo mais  amplo  de 

investigação  que  tem  como  objetivo  final  o  estabelecimento  da  frequência  e 

quantidade  da  presença  de  determinadas  variáveis  associadas  ao  fenômeno 

investigado. Em última análise, seu objetivo não é o registro de um caso único, mas 

ser  uma  etapa  da  busca  de  leis  científicas  que  sejam  válidas  universalmente;  um 

processo nomotético de investigação. 

O estudo de casos pode lançar mão de uma série de procedimentos de coleta 

de  dados,  como  documentação,  pesquisa  histórica,  observação  naturalista, 

entrevistas  e  assim  por  diante,  mas  seja  como  for  a  coleta,  ela  precisa  ser 

padronizada. Portanto, podemos perceber  que  estudos de  casos  são  sempre  feitos 

com objetivos gerais. Apesar da  evidente  fragilidade das  conclusões que podemos 

alcançar  com  tais  pesquisas,  não  podemos  esquecer  que  estas  possuem  elevada 

validade  ecológica  (relativa  ao  contexto  real  onde  de  fato  se  dão  os  fenômenos 

investigados) e são  fonte  riquíssima de  informações para elaborarmos hipóteses de 

pesquisa.  Mas  elas  não  têm  uma  estrutura  que  permita  sequer  estabelecer 

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175

matematicamente a probabilidade da existência de uma relação qualquer entre duas 

variáveis. Que dirá uma relação causal. 

São  os  estudos  de  correlação  que  permitem  estabelecer,  ao  menos,  a 

probabilidade  da  existência  de  uma  relação  real  entre  duas  variáveis.  A  análise 

correlacional não tem como objetivo a descrição pura e simples do problema (como 

nos métodos  descritivos)  nem  o  teste  de uma  hipótese  (como  no  caso  do método 

experimental). Seu objetivo final não é o estabelecimento de uma relação causal, mas 

a  construção  de  um  modelo  ou  hipótese  causal.  São mais  bem  compreendidos  como 

fazendo parte do  esforço de  criação de hipóteses que ocorre na  segunda  etapa do 

processo geral de investigação científica, através da aplicação de análises estatísticas 

a uma massa de dados recolhida de maneira quantitativa e padronizada. 

Estabelecer estatisticamente a correlação entre duas variáveis (como  interesse 

econômico definido operacionalmente e crença científica definida operacionalmente) 

significa somente provar que, se os dados padronizados recolhidos são reais, então a 

variável  1  (interesse  econômico  x)  está  co‐relacionada  com  a  variável  2  (crença 

científica y), num determinado nível de significância  (tem w de probabilidade de a 

co‐incidência  das  alterações  nos  valores  das  variáveis  ter  ocorrido  ao  acaso):  elas 

variam  conjuntamente. Não podemos  no  entanto,  com  base  nestes dados,  apontar 

qual a direção desta relação: se x causa y, se y causa x ou se um terceiro fator z causa 

ambos  x  e  y.  Ainda  temos  uma  quarta  possibilidade  de  relação,  que  é  a 

retroalimentativa,  onde  x  varia  y  e  a  variação  de  y  provoca mais  variação  de  x. 

Podemos  chamar metaforicamente  esta  característica  do  estudo  de  correlação  de 

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176

“efeito Tostines”. Ser mais  fresquinho pode causar vender mais, vender mais pode 

causar ser mais fresquinho, ser mais barato pode causar ser mais fresquinho e vender 

mais ou, ainda, pode haver uma relação retroalimentativa onde ser mais fresquinho 

causa vender mais que causa ser mais fresquinho que causa vender mais ad infinitum. 

Assim,  ao determinar  a  relação  entre um  interesse  x  e uma  crença  y  (como 

construtivistas  sociais  presumem  que  exista),  poderiam  ser  formuladas  quatro 

hipóteses  de  relação  causal  (por  exemplo,  é  perfeitamente  concebível,  diga‐se  de 

passagem mais verossímil, que uma crença y cause o interesse x do que o contrário, 

alegado  pelo  construtivismo  social).  Estas  hipóteses,  no  entanto,  precisam  ser 

testadas  por  um  delineamento  de  pesquisa  experimental,  o  que,  caso  não  seja 

possível  por  limitações  éticas  ou  metodológicas,  deixa  ao  menos  as  hipóteses 

surgidas desta maneira em melhores condições que as surgidas da pura especulação 

sobre resultados de estudos de caso único meramente descritivos. Mas em hipótese 

nenhuma  um  cientista  estaria  autorizado  metodologicamente  a  afirmar  que 

estabeleceu a probabilidade de uma destas relações ser verdadeira. 

A ciência que o strong programme alega  fazer e que de  fato é o seu objeto de 

estudo, só reconhece como teste de uma hipótese causal e, portanto motivo suficiente 

para afirmação de que a crença em sua existência é uma crença científica, o método 

experimental.  Este  é  dependente  de  três  fatores  fundamentais:  o  controle  das 

variáveis  relevantes para o problema  investigado,  a  livre manipulação da variável 

independente (a que se supõe ser a causa do efeito investigado) e o uso de amostras 

representativas  e  aleatoriamente distribuídas. Ou  seja, um  experimento  controla  as 

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177

variáveis que não estão envolvidas na relação, manipula o fator que supõe ser a causa 

de um efeito provocando seu surgimento ou variação de intensidade, e mede o efeito 

dessa manipulação na variável que chamamos de dependente. Controlar, provocar e 

medir  a  consequência. É  isso  o  que  faz  a  ciência moderna,  aquela  que Woolgar  e 

Latour  (1986) viram em ação na bioquímica e que Pickering  (1984) viu em ação na 

física.  Logo,  não  temos  esta  ciência  que  está  sendo  estudada  pelo  construtivismo 

social investigando ela própria. 

Se  o  construtivismo  social  ainda  se  valesse  de  estudos  de  correlação, 

poderíamos  dizer  que  ele  poderia  vir  a  estabelecer  a  probabilidade  de  uma 

determinada crença y estar relacionada a determinado  interesse x.  Isso, no entanto, 

não o autorizaria a concluir que o interesse x causa a crença y, pois possuir crenças y 

poderiam causar o interesse x. Mas sabemos que nem isso faz a sociologia da ciência. 

Na verdade, ela não promove nem estudos de casos, somente estudos de caso único, 

que, estrito senso, é um método qualitativo idiográfico que quando vemos associado 

à ciência moderna  tem um caráter puramente exploratório, do começo da primeira 

fase geral que tem o objetivo de descrever o fenômeno. 

Mesmo como estudo idiográfico, a sociologia da ciência oferece interpretações 

retroativas  de  esparsos  estudos  históricos,  diga‐se  de  passagem,  interpretações 

muitas  vezes  bizarras.  Para  cada  uma  destas  interpretações  retroativas,  podemos 

apresentar  inumeráveis  interpretações diferentes, e com certeza, algumas bem mais 

convincentes. Na  ânsia  de  relativizar  os  resultados  da  ciência moderna,  Barnes & 

Edge afirmam: 

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 It  had  long  been  recognized  that  theories  constituted  an  important part of verbal culture of science. But theories are human inventions or constructs  which  go  beyond  the  facts,  and  any  specific  body  of accepted  facts  is  formally  compatible with  any number  of  theories. (BARNES & EDGE, 1982, p. 66) 

 

  A diferença  é  que  na  ciência moderna, uma  teoria  tem  que prever  os  fatos 

antes  de  seu  acontecimento.  No  construtivismo  social  ela  é  retroativa.  Mas  se 

podemos  criar  em  tese  (o que  é  raríssimo na história da  ciência) duas  teorias que 

aparentemente  prevêem  a  mesma  quantidade  de  fatos,  podemos  criar  de  fato 

infinitas teorias que expliquem fatos que já aconteceram. Porque então teríamos que 

aceitar as que são produzidas pelo strong programme? É o que afirma Nelson: 

 The RCA [Rationalist Counterfactual Argument]  is similarly capable of  supporting  rationalist  accounts;  in  fact,  it  is  virtually  impossible that  there  not  be  a  retrospective  account  that  renders  scientific decisions  uniquely  rational.  The  failure  of  constructivism  to overcome  rationalism on  its own  terms  is a  result of  its  inability  to elicit  uncontroversial  empirical,  inductive  arguments  from  case studies. (NELSON, 1994, p.546). 

 

Mas  não  é  só.  Uma  vez  que  a  “metodologia”  do  strong  programme  tem  a 

maioria das vezes como resultado conclusões polêmicas e inverossímeis como as que 

vimos em Latour (1988), Potter (1993) e Shapin (1994), não seria o caso de questionar 

a validade da “metodologia” empregada? 

 And  if  this  ‘result’  were  correct  –  e.g.  there  are  only  sociological differences between modern medical  laboratories, Zande magic and Renaissance astrology – would not  that undermine  the credibility of the empirical studies of science as well? (NIINILUOTO, 1999, p.270) 

 

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179

O que quer que  seja o  construtivismo  social, não  se  justifica encará‐lo  como 

resultado  da  investigação  científica,  em  nenhum  de  seus  aspectos  e  teses.  Na 

verdade,  ele  é  completamente  estranho  ao  espírito  de  controle,  manipulação  e 

medição da ciência moderna. Tampouco oferece a seus praticantes qualquer tipo de 

orientação  especificamente  metodológica  de  pesquisa  para  proporcionar  a 

padronização e análise estatística dos dados própria da ciência moderna.  

Poderia  se  objetar  à  argumentação  acima  com  a  alegação  de  que  a  ciência 

moderna  é  uma  realização  social  e  histórica  e  como  tal  seus  princípios  são 

construídos socialmente, enquanto a sociologia da ciência parte de outro modelo de 

ciência. Mas esta objeção tem dois problemas. Primeiro, não é isso que afirma Bloor 

(1991), nem que ambiciona o strong programme. Para ele, a sociologia da ciência é um 

empreendimento científico do mesmo tipo que a física: “The search for laws and theories 

in  the  sociology  of  science  is  absolutely  identical  in  its  procedure with  that  of  any  other 

science”  (BLOOR,  1991,  p.21).  Segundo,  se  não  se  trata  da  mesma  concepção  de 

ciência, não  se pode  afirmar  como  o  faz  o  construtivismo  social que nele  temos  a 

ciência investigando a ciência. O que temos é a concepção de ciência x investigando a 

concepção de ciência y. 

Assim, a relação de causa e efeito entre fatores sociais e crenças científicas, ou 

crenças de qualquer espécie, nunca poderia ter sido respaldada cientificamente com 

o tipo de pesquisa que faz a sociologia da ciência, ou seja, o estudo de caso histórico 

ou  com  observação participante. É  claro  que, desta  forma, nunca  foi  e nunca  será 

estabelecida qualquer lei com capacidade preditiva (o que distingue leis científicas de 

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180

formulações meramente  especulativas)  sobre o  surgimento ou desaparecimento de 

crenças científicas como resultado de tal ou qual fator social. Nem sequer poderiam 

ter  estabelecido  quaisquer  leis  que  prevejam  uma  correlação  entre  determinados 

fatores sociais e o conteúdo das explicações científicas.  

Assim  sendo  o projeto  científico do programa  forte, podemos dizer  trinta  e 

cinco anos depois de sua formulação, era muito fraco, e redundou em um completo 

fracasso  científico,  apesar  de  seu  sucesso  social  disciplinar. Mas  talvez  para  seus 

defensores e praticantes, esta última realização seja tudo o que conta. 

 

 

 

4.3. – Um construtivismo sem sujeito 

 

É  sempre  importante  lembrar  que  o  ‘sujeito’  ao  qual  estamos  nos  referindo 

aqui é o  sujeito do conhecimento. Quando o construtivismo afirma que a ciência é 

uma  construção,  é  necessário  determinar  quem  é  o  sujeito  da  construção.  Quem 

constrói.  Pois  se  algo  simplesmente  é  formado,  sem  um  agente  que  organiza  e 

estrutura  os  elementos  que  estão  se  combinando,  temos  que  chamar  tal  coisa  de 

‘formação’  e  não  de  ‘construção’.  É  por  isso  que  nos  referimos  a  uma  formação 

geológica  e  a  uma  construção  egípcia.  A  primeira,  se  formou.  A  segunda,  foi 

construída por  sujeitos  ativos  orientados  a metas. Não  falamos da  “construção do 

Pão  de  Açucar”  (a  não  ser  que  seja  sobre  um  supermercado  da  rede)  nem  da 

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181

“formação  da  Torre  Eifel”.  Como  afirma  Boghossian  (2006),  dizer  que  algo  foi 

construido é dizer simplesmente que isto não estava ali para ser descoberto, mas antes 

que precisou ser  feito,  trazido à existência pela atividade  intencional de alguém em 

dado ponto no tempo. 

Não  importa determinar  se a  construção  é uma atividade  individual ou um 

empreendimento coletivo. Afirmar que a Torre Eifel é uma construção social não é 

nada mais  que  afirmar  que  ela  foi  construída  por  um  conjunto  determinado  de 

sujeitos  individuais. Cada parafuso daquela  torre  foi colocado ali por um operário, 

que organizou ou montou as partes daquela  construção  segundo um plano  e uma 

meta.  Quanto  ao  conhecimento  científico,  o  mesmo  se  aplica.  Afirmar  que  o 

conhecimento científico é uma construção social não deveria significar nada mais do 

que dizer que ele é o conjunto de dados recolhidos por muitos, e  idéias criadas em 

mentes individuais ou articuladas em mentes individuais. Esse mau uso da metáfora 

da construção, aplicada a alegações de formações sem sujeito, é que leva Hacking a 

afirmar (1999, p.49‐50) que a metáfora da construção é uma metáfora morta. 

Não há uma entidade mística chamada sociedade, para além do conjunto de 

sujeitos  individuais e suas crenças que a construíram e a mantém. Parafraseando o 

psicólogo Floyd Allport, podemos dizer que é ocioso  falar em crenças  sociais, pois 

sociedades não possuem sistema nervoso central. Bloor (1991, p. 168) reconhece isso 

(como  vimos  no  item  3.4.4  desta  dissertação),  ao  afirmar  que  não  pode  haver 

estruturas sociais sem estruturas neurais. 

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182

Mas  assim  sendo,  seria  a  psicologia,  e  não  a  sociologia,  a  disciplina mais 

adequada para o entendimento do processo de aquisição de crenças científicas. Mas 

isso a ciência cognitiva já sabe e faz há mais de cinqüenta anos. A diferença é que faz 

sem  as  ingênuas  pretensões  cientificistas  do  construtivismo  social. O  que  é  difícil 

aqui é entender exatamente qual poderia ser o objeto de  investigação da sociologia 

do conhecimento, uma vez que conhecimento científico nada mais é que um conjunto 

de crenças possuídas por várias mentes individuais. 

A  crença  de  que  a  sociedade  constrói  o  conhecimento,  adotada  pelo 

construtivismo social, é baseada na tese de que a linguagem é um produto social. Se 

ela é um produto social, passa a ser responsável por ela mesma e por tudo o que nela 

se constrói: sociologismo. Todos os padrões de existência e conhecimento são sociais. 

Só a sociedade existe em si, é a nova causa sem causa, é o novo Deus desse bizarro 

tipo  de  idealismo  marxista,  desse  círculo  vicioso  de  uma  “matrix”  sem 

“programador”, dessa casa de espelhos sem ninguém para olhar para eles. 

Como o conhecimento é expresso através da linguagem e transmitido através 

dela,  se  conclui que  ele  se  reduz  a  linguagem. Mas  estas  consequências  só  seriam 

necessárias se o pensamento humano se reduzisse à  linguagem. Se as classificações 

de  objetos  e  as  crenças  sobre  seu  funcionamento  sofrem  influência  direta  das 

interações  entre  o  sujeito  e  o  objeto  do  conhecimento,  sem  intermediação  da 

linguagem, então a linguagem não poderia ser totalmente auto‐referencial. 

É  claro  que,  como  vimos  no  subitem  3.4.4,  a  tese  de  que  a  linguagem 

determina  o  pensamento  e  condiciona  a  sensação  e  a  percepção  é  uma  tese 

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183

anacrônica  cientificamente  e  filosoficamente  insustentável. Caso  se  concedesse que 

fosse  possível  que  nossas  crenças  sejam  diretamente  afetadas  por  estímulos 

sensoriais,  e  que  só  posteriormente  usemos  a  linguagem  para  expressar  aspectos 

dessas  experiências  sensoriais  e mudanças  em  nossas  crenças,  então  não  haveria 

sustentação para a  tese do  construtivismo  social, pois  fontes  externas à  linguagem 

estariam  impondo mudanças  em mentes  individuais. É  aqui que  o  construtivismo 

social se agarra com  força às  teses de Wittgenstein, ou ainda às suas radicalizações 

em Ryle (1968), que defende não haver conteúdo mental ou representação mental. 

Mas  como  se  relaciona  esta  mente  individual  com  seus  objetos  de 

conhecimento? Como vimos no segundo capítulo, podemos classificar as respostas à 

essa  pergunta,  a  despeito  de  suas  variações,  em  duas  grandes  categorias:  o 

construtivismo  e  o  objetismo.  Para  o  primeiro,  a  representação  do  objeto  do 

conhecimento  é  predominantemente  construção  da  mente  individual,  uma  idéia 

construida  de  acordo  com  a  estrutura  prévia  da  mente.  Para  o  segundo,  a 

representação não é construída pelo sujeito, mas produzida pelo objeto através dos 

órgãos sensoriais numa mente predominantemente passiva.  

Como  quer  o  construtivismo  social,  há  dois  modelos  de  explicação  das 

crenças,  os  racionais  e  os  causais. A  questão  é  que  como  observa Oliva  (2005),  a 

justificação epistêmica de uma crença científica pode ser também a explicação causal 

de por que é aceita; mas o  inverso não se  sustenta. O estabelecimento da causa de 

uma  crença  não  a  justifica  como  conhecimento,  nunca.  Pois  o  que  justifica  um 

conhecimento é uma evidência reproduzível da adequação de uma crença a parcela 

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184

do  mundo  ao  qual  ela  se  refere.  A  dicotomia  razão‐causa  equivale  à  dicotomia 

construtivismo‐objetivismo. A alegação de que adquirimos conhecimento em função 

de uma decisão pela adoção de uma crença em virtude de razões apresentadas a seu 

favor  é  um  processo  ativo,  só  sustentado  por  uma  visão  epistemológica 

construtivista. Já a alegação de que adquirir conhecimento equivale ao surgimento de 

uma crença causada por um fator externo ao sujeito, seja físico ou social, é sustentada 

por uma visão epistemológica objetivista. 

Por  todo o  exposto acima,  e por  todo o argumento apresentado no  subitem 

3.4.4,  podemos  concluir  que,  tomando  por  construtivismo  a  definição  dada  no 

segundo capítulo desta dissertação, o construtivismo social não é um construtivismo. 

A estrutura do argumento pode ser resumida como se segue: 

Se por construtivismo entendermos o conjunto das teses definidas no capítulo 

dois: 

a)  As  representações  (intuições  sensíveis)  que  temos  da  realidade  são 

condicionadas pela estrutura de nossa mente, e construídas por ela; 

b)  num  segundo  nível,  as  hipóteses  que  construímos  sobre  como  o  objeto 

funciona podem ser alteradas e substituídas voluntariamente tão logo a sucessão de 

intuições sensíveis que esperávamos não se manifestem e, portanto, as hipóteses em 

questão se revelem inadaptadas ao objeto; 

c)  O  objetivismo  é  uma  tese  equivocada,  pois  o  objeto  não  determina 

completamente em um sujeito supostamente passivo as representações que este tem 

dele; 

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185

E  como,  de  acordo  com  o  subitem  3.4.4.,  podemos  afirmar  que  o 

construtivismo social defende que: 

aʹ)  As  representações  que  temos  da  realidade  são  causadas  por  processos 

sociais e estímulos sensoriais; 

bʹ) num segundo nível, as hipóteses que temos sobre como o objeto funciona 

são condicionadas pela linguagem e causadas socialmente; 

cʹ) O sujeito individual não é o agente do conhecimento, mas sim a sociedade 

ou algo indefinido como o “sujeito social”; 

Então o construtivismo social não é um construtivismo. 

Não  é  aceitável, nem para  a mais  simples  análise  etimológica,  conceber um 

construtivismo  sem  sujeito. A  apropriação  do  termo  ‘construtivismo’  e  adoção  da 

denominação  ‘construtivismo social’ (que não se deve a Barnes nem a Bloor), assim 

como a utilização da metáfora da construção, comum a todo o campo, é só mais um 

indício da verdadeira  tendência desconstrucionista à  la Derrida desta abordagem, e 

de seu descompromisso com a clareza e o rigor. 

 

 

 

4.4. – Uma ciência sem mundo 

 

Como mostrado  no  item  3.3  desta  dissertação,  a  posição  do  construtivismo 

social quanto ao papel do mundo na investigação científica varia. A proclamação de 

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186

sua  existência  se  faz  acompanhar,  como  ocorre  no  programa  forte  tradicional,  da 

ressalva de que é  incapaz de determinar a escolha de uma das  teorias  formuláveis 

sobre o que é o caso. E, chega ao extremo da proclamação de que ele próprio é uma 

construção  social  (no  construtivismo  social  ontológico). É  como  resume  a  frase de 

Collins: “the natural world has a small [CSE] or non‐existent [CSO] role in the construction 

of scientific knowledge” (COLLINS, 1981, p.05) 

Como citado no mesmo item desta dissertação, Bloor declara (1991, p.160) que 

existe algo objetivo que garante  certa  estabilidade no  conhecimento  científico, mas 

esse  algo não  é o mundo  físico  como  se  costumava pensar:  é  a  sociedade. Ele, no 

entanto,  reiteradamente  afirma que não  está  com querendo dizer que não há  algo 

independente como o mundo físico lá fora. O problema é que segundo Bloor (1999), 

essa realidade independente não garante a uniformidade das crenças científicas sobre 

o mundo, uma vez que dois cientistas diferentes podem chegar a crenças diferentes a 

partir das mesmas observações, das mesmas evidências empíricas. Com isso, apesar 

de  reiteradamente  afirmar  que  o  mundo  conta  para  a  causação  das  crenças 

científicas,  nos  poucos  textos  em  que,  diretamente  acuado  pelos  críticos,  Bloor 

formula qual  seria esse papel, ele  se  revela pífio: “The general difference made by  the 

presence  of  X  is  that,  in  appropriate  circumstances,  it  is  capable  of  prompting  acts  of 

classification“ (BLOOR, 1999b, p. 134) 

Isso  significa que, para Bloor,  tudo o que um objeto  faz quando de  alguma 

forma  afeta  nossos  órgãos  dos  sentidos,  é  provocar  o  ato  de  seu  enquadramento 

linguístico em alguma categoria. Ele nada tem a dizer de decisivo sobre as diferentes 

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187

interpretações e teorias sobre seu comportamento. Em outras palavras, todo papel do 

objeto para o programa forte é o de ser ocasião para se tornar objeto de disputa. Até 

Latour,  em  sua  última  fase,  ironiza  a  falta  de  coragem  de  Bloor  para  admitir  seu 

ceticismo ou, como classifica Niiniluoto (1999), “idealismo epistemológico”: 

 

When David gives the example of the electron, we clearly see where the problem  resides: Once we  realize  this  [that Millikan believes  in the  electron  and  that  Ehrenhaft  does  not  believe  in  it]  the  electron ‘itself’ drops out of  the  story because  it  is  a  common  factor behind two  different  responses,  and  it  is  the  cause  of  the  difference  that interests  us.  I  agree: we  are  interested  in  differences. Now,  I want someone  to explain  to me what  it  is  for an object  to play a role  if  it makes no difference. On a stage, when someone or something is said to play a role, and even an ‘important’, a ‘crucial’, a ‘decisive’ role—which would be necessary  to  counteract  the  charge of  idealism—  it has to produce differences. (LATOUR, 1999, p.117) 

 

São  de  fato  inócuas  as  reiteradas  tentativas  de  Bloor  de  defender  o  strong 

programme das  acusações de que  este último desconecta os  conceitos da  realidade, 

quando a única influência que Bloor concede aos objetos é a de estimular os sentidos 

dos  cientistas  provocando  processos  automáticos  de  classificação  que,  diga‐se  de 

passagem, foram também construídos socialmente e são auto‐referentes. 

Como  afirma  Kemp  (2005),  ao  conceber  os  conceitos  das  ciências  naturais 

como  auto‐referenciais  em  caráter,  Bloor  elimina  a  ligação  entre  os  conceitos  e  a 

realidade. É fato que Bloor (1997b) defende que para o strong programme conceitos de 

caráter auto‐referencial são definidos como fazendo referência apenas a outros usos 

de conceitos. Assim, Kemp conclui que se conceitos auto‐referenciais em caráter não 

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podem ser externamente referentes, então não pode haver qualquer conexão genuína 

entre os conceitos e a realidade. 

Em outro  texto, Kemp  (2007)  lembra que Bloor não pode  conceder nenhum 

papel mais substancial à influência que a interação direta com os objetos físicos tem 

em suas classificações porque, ao fazê‐lo, comprometeria a tese de que a adequação 

de conceitos científicos é totalmente derivada de processos sociais auto‐referenciais: 

“If  concept–reality  interactions  had  some  important  role  in  determining  the  validity  of 

classifications,  then  the  rightness  of  these  classifications  would  not  be  self‐referential” 

(KEMP, 2007, p.245). Com  isso, concluo eu, comprometeria uma de suas principais 

metas  desde  o  lançamento  do  strong  programme:  a  de  dar  à  sociologia  um  papel 

relevante entre as ciências. 

Vários problemas graves são gerados uma vez que adotemos a  tese da auto‐

referência  dos  conceitos  científicos.  Bloor  (1991)  sempre  reconheceu,  como  se  isso 

eliminasse o problema da  auto‐refutação, que o princípio da  reflexividade  implica 

que a crença na causação social deve ser ela mesma socialmente causada, e que seu 

significado se refere somente a usos de outros conceitos. Mas como demonstra Kukla 

(2000), num argumento que pretende ser uma refutação do strong programme, se toda 

crença é socialmente causada, então a crença C’ de que toda crença C é socialmente 

causada deve  ter sido ela mesma socialmente causada, e a crença C’’ de que C’  foi 

socialmente  causada  deve  ter  sido  causada  socialmente  e  assim  sucessivamente, 

gerando o problema da regressão infinita. Como lembra Kukla, o que faz a regressão 

infinita ser um problema  insolúvel é que ela requer para a criação de alguma coisa 

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um montante  infinito de  trabalho. Ou  seja, para que C  fosse  socialmente  causada, 

seria  necessária  a  causação  de  um  número  infinito  de  crenças.  Logo,  C  não  seria 

possível. Mas se já é fato que C existe, então a tese de que ela requer uma quantidade 

infinita  de  trabalho  para  ser  feita  tem  que  ser  falsa. Logo,  a  tese de  que  todas  as 

crenças  são  causadas  socialmente  é  falsa. Kukla dá  um  exemplo  bem  concreto da 

questão: 

 There are no tricky  logical steps or exotic metaphysical claims about the  infinite  involved.  It’s  really  a  very  down‐to‐earth  dilemma. Suppose, for instance, that someone claims that he has always rung a bell before performing  any  action.  If  this were  true,  then he would have  had  to  ring  a  bell  before  imparting  this  information  to  us. Moreover, since the ringing of the bell was itself an action, he would have had to ring a bell before the last ring, and so on. (…) this is the mundane fact that establishes that what he told us can’t have been the truth: he didn’t ring  the bell  infinitely many  times;  therefore  it’s not the  case  that  he  has  rung  a  bell  before  performing  any  action. (KUKLA, 2000, p.72‐73). 

 

Talvez  seja  desnecessário  lembrar  que  isso  acaba  atingindo  duplamente  o 

construtivismo social ontológico, pois além de ele defender a tese epistemológica da 

causação social das crenças, defende a tese ontológica da construção social dos fatos. 

Mas se todo fato é construído, então o fato F’ de que o fato F foi construído deve ter 

sido ele mesmo construído socialmente, o  fato F’’ de que F’  foi construído deve  ter 

sido construído socialmente e assim sucessivamente. 

Não  é  só  isso.  A  defesa  da  subdeterminação  radical  das  teorias  pelas 

observações  significa  a  defesa  de  que  qualquer  teoria  pode  ser  declarada 

instrumentalmente bem sucedida, não importa o que o mundo diga sobre ela, ou dito 

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mais precisamente, não  importando que tipo de evidência apareça. Ou seja, mesmo 

que  abandonássemos  a questão da  auto‐referência,  a  tese da  subdeterminação das 

teorias  implica  a  crença  de  que  uma  teoria  nunca  é  abandonada  por  causa  de 

evidências  empíricas,  mas  somente  por  causa  de  interesses  políticos,  sociais, 

econômicos ou religiosos. 

É  claro  que  isso  não  explica  porque  nos  curvamos  a  crenças  que  não 

gostaríamos  que  fossem  verdadeiras. Não  foram  as  evidências  que,  a  despeito  da 

oposição  de  todo  poder  temporal  e  religioso  do  ocidente,  fizeram  com  que  a 

comunidade  científica  acabasse  adotando  a  teoria  copernicana  contra  a  teoria 

ptolomaica? Não é mais  fácil se atribuir a relativa estabilidade do uso das palavras 

referentes ao mundo físico, em vez de a longos processos de negociação e interação 

social,  às  características  relativamente  estáveis  que  o  objeto  físico  traz  para  os 

encontros com o sujeito? 

Além disso, se o processo de  inquérito científico não é ele mesmo nada mais 

do que o produto de processos sociais sem referência externa à natureza do mundo e 

à de nossa mente  além de  sem  submissão  a  crivos  lógicos,  suas  conclusões  têm  o 

mesmo valor que as obtidas em qualquer outro domínio. A sociologia da ciência se 

apresenta como a disciplina científica adequada para determinar o que a ciência é. 

Mas sendo, ela própria, uma construção social, assim como também sua pretensão de 

ser  ciência,  e  aquilo  que  ela  afirma  que  é  ciência,  a  sua  postulação  de  validade 

científica  ou  de  sua  condição  especial  de  investigação  em  relação  à  ciência  fica 

fragilizada.  Assim,  tudo  o  que  defende  tem  o  mesmo  valor  que  as  alegações 

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191

contrárias  de  seus  adversários,  ou  ainda  que  qualquer  outra.  Porque  então 

deveríamos  aceitar  esta  pretensão  do  strong  programme,  já  que  a  maioria  da 

comunidade científica não a aceita? 

Por  fim,  o  problema  mais  óbvio  com  abordagens  relativistas  como  o 

construtivismo social, não é, de fato, fruto de inconsistência interna. É um singelo fato 

empírico.  Se  todas  as modalidades de  crença  têm  as mesmas  fontes de  causalidade, 

como  podemos  explicar  o  variado  sucesso  explicativo  e  prático  delas?  Dito 

objetivamente, se todas as crenças científicas são fruto de mera construção social, o que 

pode ser responsável pelo incrível sucesso empírico delas comparado ao sucesso mais 

modesto (ou fracasso completo) de outras modalidades de crença? Como diz Putnam, o 

sucesso  da  ciência  seria  um  milagre  se  nossas  teorias  não  fossem  ao  menos 

aproximadamente  verdadeiras.  Sem  que  a  natureza  constranja  nossas  crenças,  como 

elas podem  tornar‐se bem‐sucedidas em antecipar o que ocorrerá nela? É  importante 

pontuar que não se trata aqui de explicar a estabilidade das crenças científicas, mas sim 

sua eficácia preditiva. Como afirma Oliva (2005), “o sucesso em persuadir pessoas pode 

ter  uma  base  exclusivamente  social,  mas  a  capacidade  de  antecipar  e  controlar 

fenômenos, não”.  

É claro, a não ser que se considere que a suposta prisão  linguística da mente é 

impermeável a estímulos provocados pelo objeto. A crença de que estamos nos curando 

de um  câncer, ou que  estamos voando  a 12000 metros  sobre o oceano  em direção à 

Europa  pode  ser,  não  fruto  da  ação  real  do  conhecimento  científico, mas  fruto  de 

construção social...  

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O  tipo de  crença acima expressa  fica de  fato abonado  tão  logo passemos do 

“idealismo” epistemológico (ceticismo) do CSE para o idealismo ontológico do CSO.

Invertendo  o  pressuposto  básico  da  ciência  moderna  de  que  todo  conhecimento 

científico é fruto da descoberta de fatos e invenção de teorias, o CSO postula a tese de 

que não há descoberta, tudo é construído. Por algum momento, é conveniente deixar de 

lado a necessidade de análise  interna das  teses, para  lembrarmos o nível do absurdo 

com o qual estamos  lidando aqui. Autores como Woolgar, Collins, Lynn Nelson ou o 

primeiro Latour afirmam que o mundo que é objeto da ciência, é construído por ela. 

Para eles (WOOLGAR, 1988, p.65‐67) objetos como pulsares não existem antes de sua 

“descoberta”  (ou estabelecimento científico), mas são construídos ou “constituídos” 

por práticas representacionais e “redes sociais”. Este tipo de afirmação é equivalente a 

declarações  que,  em  outro  contexto,  como  uma  entrevista  inicial  em  hospital 

psiquiátrico, são tomadas como fortes indícios de esquizofrenia.  

Não podemos  negar  que,  filosoficamente,  o CSO  oferece uma  solução para  o 

problema que o CSE enfrenta em explicar o sucesso das teorias científicas em prever e 

controlar eventos empíricos: as teorias constroem os eventos. O singelo problema com 

esta tese é que se trata de uma tese absurda e completamente inverossímil. 

Como afirma Kukla (2000, p.105), de acordo com o CSO, a construção de fatos 

sobre o mundo natural segue o mesmo modelo de construção dos fatos sociais, tais 

como  o  dinheiro,  as  convenções  sociais,  os  significados  das  palavras,  e  assim  por 

diante.  Há,  porém,  uma  diferença  radical  entre  a  construção  do  dinheiro  e  a 

construção  do  TRH  do  estudo  de Woolgar &  Latour  (1986). No  primeiro  caso,  o 

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construtor  e  a  construção  são  contemporâneos.  O  dinheiro  não  existia  antes  da 

atividade  social que o  constituiu  e  se deixássemos de  acreditar  em  seu valor para 

trocas e parássemos de usá‐lo  (como na República de Weimar), o dinheiro deixaria 

de existir. Mas em relação à construção do TRH, Latour e Woolgar não podem dizer 

que  uma  nova  substância  começou  a  existir  no  hipotálamo  no  ano  em  que  foi 

descoberta (construída). O que se tornou “verdadeiro” (conhecido) em 1969 é o fato 

de que TRH existia pelo menos há  tanto  tempo quanto hipotálamos. Nesse caso, o 

construtor e o construído têm datas diferentes. Este fenômeno não ocorre nos casos 

de construção dos fatos sociais. 

Como  já  apontamos  no  capítulo  três,  esta  tese  é  contraditória.  Kukla  (2000, 

p.111) mostra que podemos construir no ponto T1 do tempo o fato X0, pretendendo 

que ele, a partir de T1 tenha sido sempre verdadeiro. No momento T2, posterior a T1, 

a  contingência da produção  científica pode nos  levar a  construir o  fato ¬X0, e  isso 

implicaria  que  ele  também  sempre  existiu.  Mas  como  X0  e  ¬X0  podem  ser 

verdadeiros  ao mesmo  tempo? Contradição. Como  afirma Kukla,  se  você  concluir 

que um dos dois fatos não pode ser construído, então existem fatos independentes. 

Além desta violação do princípio da não‐contradição, que também identifica, 

Boghossian (2006) aponta dois problemas. O primeiro é o que posso aqui denominar 

“causação  retroativa”.  É  um  truísmo  sobre  a maioria  dos  objetos  e  fatos  de  que 

falamos  (como montanhas, girafas  e  lagos) que  sua  existência  antecede  a nossa. A 

tese da construção social dos fatos implica numa bizarra forma de causalidade para 

trás, onde a causa (nossa atividade) vem depois do efeito (montanhas). 

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O  segundo problema  ele  chama de  conceptual  competence,  e  é  analítico. Para 

Boghossian (2006, p.39), mesmo que supuséssemos que o universo só existe enquanto 

existirmos, ainda é parte do conceito mesmo de “elétron” que estas coisas que caem 

sob este conceito não foram construídas por nós. De acordo com a posição padrão da 

física  de  partículas,  elétrons  estão  entre  os  blocos  fundamentais  da matéria.  Eles 

constituem  os  objetos  que  vemos  e  com  os  quais  interagimos,  inclusive  nossos 

próprios corpos, portanto não poderiam  ser construídos por nós. Se nós  insistimos 

em  afirmar  que  eles  são  construídos  por  nossas  descrições  deles,  estamos  não 

somente  afirmando  algo  falso,  mas  conceitualmente  incoerente,  como  se  não 

tivéssemos compreendido o que um elétron deveria ser. 

Como  afirma  Searle  (2000),  os  ataques  ao  realismo no  construtivismo  social 

não  são motivados  por  argumentos,  porque  todos  estes  são  “obviamente  débeis”. 

Para ele, estes ataques são motivados por uma vontade de potência: 

 Nas universidades, principalmente em várias disciplinas das ciências humanas, parte‐se do princípio de que, se um mundo real não existe, então  a  ciência  natural  repousa  sobre  a  mesma  base  das  ciências humanas.  Ambas  lidam  com  interpretações  sociais,  não  com realidades  independentes. Partindo desse princípio,  formas de pós‐modernismo,  desconstrucionismo  e  assim  por  diante  são desenvolvidas  com  facilidade,  já  que  foram  completamente desvinculadas das enfadonhas amarras e limites de ter de enfrentar o mundo  real.  Se  o  mundo  real  é  apenas  uma  invenção  –  uma interpretação social destinada a oprimir os elementos marginalizados da sociedade – então vamos nos  livrar do mundo  real e construir o mundo que queremos. Esta, acredito, é a verdadeira força psicológica em ação por  trás do anti‐realismo no  final do  século XX.  (SEARLE, 2000, p.27)  

Ou ainda: 

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195

 Se  toda  realidade  é  uma  ‘construção  social’,  então  somos  nós  que estamos  no  poder,  e  não  o mundo. A motivação  profunda  para  a negação  do  realismo  não  é  este  ou  aquele  argumento,  mas  uma vontade  de  potência,  um  desejo  de  controle,  e  um  ressentimento profundo e duradouro. Esse ressentimento tem uma  longa história e aumentou no final do século XX devido a um grande ressentimento e ódio em relação às ciências naturais. (SEARLE, 2000, p. 39)  

 

Gostaria, no entanto, de me concentrar em várias consequências absurdas de 

ordem prática desse disparate. Uma delas é apontada por Niiniluoto (1999, p.274). Se 

é  literalmente  verdadeiro  que  os  cientistas  constroem  os  fatos  que  investigam  e 

estabelecem após longos processos de negociação social, então podemos afirmar que 

o Doutor Robert Gallo  é o  responsável por  todas  as  infecções  causadas pelo vírus 

HIV  antes  (já  que  sua  existência  passou  a  ser  verdadeira  somente  depois  de  usa 

construção)  e  depois  de  sua  construção  social  (não  descoberta).  Também  é  fácil 

concluirmos  a  partir  daí  que  cientistas  não  deviam  mais  se  dedicar  a  descobrir 

(construir)  novos  vírus  e  bactérias,  ou  procurar  prever  terremotos,  nem  rastrear 

asteróides candidatos a se chocar contra a Terra. 

Da mesma  forma,  a  educação  se  transforma  em  um  processo  de  arruinar 

mentes  infantis. Considere‐se esta afirmação  feita em  livro de pedagogia brasileiro 

caracteristicamente intitulado A produção do conhecimento em aula: “Um indivíduo que 

vem  ao  mundo  encontra  uma  realidade  já  construída,  isto  é,  um  conjunto  de 

conhecimentos  estabelecidos,  estruturados,  institucionalizados  e  legitimados” 

(MORETO,  2002,  p.18). Não  é  difícil  perceber  porque  professores  atualmente  tem 

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196

tanta  dificuldade  em  distinguir  conhecimento  de  realidade,  assim  como  crença 

compartilhada  de  verdade.  Como  podemos  depreender  do  título  do  livro,  o 

conhecimento sobre a órbita de Vênus ou a estrutura química do dióxido de sódio 

deve  ser  produzida  nas  salas  de  aulas  brasileiras,  sem  telescópio  ou  laboratório 

químico disponíveis. Mas provavelmente Moreto não estava pensando nisso quando 

deu  o  título  em  questão.  Ele  estava  pensando  numa  produção  (variante  de 

construção) social do conhecimento, algum tipo de assembléia democrática onde os 

alunos decidiriam pelo voto  se  a órbita de Vênus  está mais próxima do  sol que  a 

órbita de Marte. Como Catherine Fosnot, que declara que numa sala de aula regida 

pela concepção construtivista (a dela): “as idéias são aceitas como verdade apenas à 

medida que  fazem sentido para a comunidade e, assim, alcançam o nível de  ‘tidas‐

como‐partilhadas’”  (FOSNOT,  1998, p.47). Podemos  concluir  com  isso que  se para 

seus  alunos  não  faz  sentido  que  dois  corpos  se  atraiam  a  distância  então  está 

construído  socialmente  que  isto  é  falso,  ao menos  para  aquela  comunidade,  que 

então  teria  sido  deixada  na  Idade Média.  Que  tipo  de  educação  é  essa  que  não 

pretende preparar o aluno para compreender e lidar melhor com uma realidade que 

existe  e  possui  uma  estrutura  independente  de  suas  crenças  e  desejos?  Não  é 

coincidência a educação brasileira ser, em termos relativos às verbas despendidas, a 

pior  do  mundo,  uma  verdadeira  fábrica  de  analfabetos  funcionais,  indigentes 

matemáticos e pessoas sem traço de pensamento crítico ou abstrato. 

Em pior situação fica a política. Nossos deputados e senadores parecem bem 

inclinados a defender a  construção  social da  realidade no  congresso nacional. Se o 

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197

resultado  da  negociação  de  uma CPI  for  a  de  que  nunca  houve  atos  secretos  no 

senado, então eles nunca terão existido. Sokal & Bricmont (2001) narram uma história 

passada na Índia, onde a “ultrapassada e autoritária” obra do Iluminismo nunca se 

completou. Nela, um político foi aconselhado a entrar em seu escritório pelo portão 

voltado para o leste, de forma a acabar com seus problemas. Mas um outro problema 

foi gerado por esse conselho: a entrada  leste estava bloqueada por uma  favela. Ele, 

então, mandou demolir a  favela. A diferença é que nestes  tempos, a esquerda não 

apareceu para protestar  contra  a demolição, muito menos  contra  a  superstição  na 

qual  se baseou  a  ação, pois  ela  está  infestada  com  este  tipo de  relativismo. Como 

protestar  contra  um  conhecimento,  ou  seja,  uma  crença  amplamente  partilhada 

naquela  cultura?  No  terceiro  mundo,  os  políticos  não  hesitam  em  recorrer  ao 

conhecimento  científico  diante  de  um  problema  sério,  afirmam  Sokal &  Bricmont 

(2001), como uma doença potencialmente fatal, e ao mesmo tempo simulam acreditar 

em superstições locais, estimulando a população a ficar presa à sua ignorância. 

Mas os absurdos não param aí. Como afirma Newton  (1997), se os  fatos são 

construídos  através  e  durante  sua  investigação,  podemos  concluir  que  quando 

detetives  se  dedicam  a  estabelecer  a  autoria  de  um  assassinato,  eles  constroem  a 

autoria através da investigação. Assim, ao encontrar DNA de um criminoso debaixo 

das  unhas  da  vítima  eles  estariam  construindo  a  autoria  do  crime.  Ou  seja,  o 

assassino é um constructo social, o acusado é culpado por definição da investigação e 

do  julgamento.  Por mais  cínico  e  desonesto  intelectualmente  que  alguém  seja,  se 

fosse  confrontado  com  o  problema  de  um  assassinato  do  qual  estivesse  sendo 

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198

injustamente  acusado,  não  se  curvaria  ao  fato  de  que  simplesmente  perdeu  a 

negociação social em torno da questão da autoria do crime e, portanto, a partir deste 

momento, passou a ser verdade que é o assassino. Desonesto intelectualmente talvez, 

por  simular  acreditar  nisso,  mas  assassino  não:  mesmo  um  construtivista  social 

ontológico não negaria nesta situação a existência de uma realidade independente e 

subjacente  ao  ato  cometido  por  alguém  cuja  identidade  a  polícia  deveria  tentar 

descobrir,  não  construir.  Não  é  muito  mais  simples  assumir  que  as  crenças 

compartilhadas  acerca da  autoria do  assassinato  são  construídas  socialmente  e  em 

interação com o mundo, mas a realidade da ação criminosa não? 

 

 

 

4.5. – Um conhecimento sem verdade 

 

A estória acima pode parecer somente um exemplo hipotético radical, mas não 

é tanto assim. Sokal & Bricmont (2001, p.103‐4) narram um caso ocorrido na Bélgica 

onde uma série de assassinatos de crianças causou comoção nacional e revolta pela 

inépcia da polícia. Uma  sessão pública,  transmitida  ao  vivo  em  rede  nacional,  foi 

convocada  para  examinar  os  erros  cometidos  pela  investigação  policial. Nela,  um 

policial e uma juíza foram acareados e interrogados sobre a entrega de um arquivo‐

chave, com o policial jurando ter feito a entrega à juíza e a juíza jurando jamais a ter 

recebido. No dia seguinte, entrevistado por um jornal, um antropólogo afirmou que 

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199

não  existia  uma  verdade  única  sobre  o  caso,  apenas  verdades  relativas  a  grupos 

maiores ou menores de pessoas. Portanto, concluiu ele, ambos estariam contando a 

sua verdade.  

Afirmar  que  existem  “várias  verdades”,  por  definição,  implica  que  devem 

existir  “várias  realidades”,  o  que  é  racionalmente  inaceitável.  Enquanto  somente 

alguns  antropólogos,  sociólogos  e  filósofos  (além dos psicopatas) professarem  este 

tipo de relativismo selvagem, não estaremos em perigo. Mas o que aconteceria a uma 

sociedade se o carteiro que entrega sua correspondência, o bancário que recebe seu 

depósito e a babá que toma conta dos seus filhos passassem a acreditar, de fato, que 

“verdade”  é  nada mais  que  uma  crença  compartilhada  por  um  grupo maior  ou 

menor  de pessoas?  Esta  crença,  tomada  ao  pé  da  letra  e  generalizada,  só  poderia 

conduzir ao caos e à selvageria, com grupos sociais diversos afirmando “verdades” 

opostas  sobre  os mesmos  fatos  sem  critério  algum  para  decidir  entre  eles. Mas  a 

verdade, a verdade em sentido bem tradicional, é que não há ninguém que acredite 

de fato nisso fora dos hospitais psiquiátricos. Não conhecemos grupos sociais que se 

reúnam para construir coletivamente o fato de que voam ao se jogar do nono andar. 

Isto nos  leva  à última  crítica que pretendo  aqui  formular  ao  construtivismo 

social,  e  que  diz  respeito  à  completa  desconstrução  do  significado  tradicional  do 

termo  ‘conhecimento’.  Desde  o  Teeteto  até  Russell,  a  filosofia  ocidental  aceitou  a 

definição  platônica  de  conhecimento  como  “crença  verdadeira  justificada”. Mas  o 

construtivismo social ao utilizar o termo ‘conhecimento’, na verdade está se referindo 

a outra coisa. Como vimos no item 3.4 desta dissertação, para o construtivismo social 

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200

conhecimento  é  “crença  socialmente  aceita”,  uma  crença  tomada  por  certa  ou 

institucionalizada, ou ainda investida de autoridade por grupos de pessoas (BLOOR, 

1991, p.5). 

Prestando atenção nesta nova definição de conhecimento, percebemos o que 

mais, além do mundo e do sujeito, foi sacrificado no altar da sociologia: a verdade. A 

justificação de conhecimento não vem do crivo da lógica ou de um método especial, 

mas do  crivo político de um grupamento  social. Que  tipo de  conhecimento  é  esse 

onde  o  ser  humano  constrói  suas  representações  unicamente  através  de  suas 

interações  sociais,  sem  nenhuma  influência diferencial  vinda do  contato  com uma 

realidade  objetiva  que  independe  tanto  dele  quanto  dessas  interações?  Este 

conhecimento é conhecimento de que? 

A adoção do conceito de verdade como  ideal regulador é uma das fronteiras 

que colocam a ciência moderna e a filosofia de um lado e a sociologia construtivista 

social de outro. A epistemologia  tradicional  faz deste conceito  sua meta,  seu  ideal, 

enquanto o programa  forte da  sociologia da  ciência o  encara  como mera  ficção ou 

ideologia. Ao  fazê‐lo,  evidentemente,  desemboca  no  relativismo,  que  nada mais  é 

que a crença de que não há verdades objetivas e universais. É o que defendem Barnes 

&  Bloor  (1982,  p.  27)  em  passagem  já  citada  neste  trabalho,  ao  afirmarem  que  as 

crenças  não  se  diferenciam  quanto  às  causas  de  sua  credibilidade,  e  que  para  o 

relativista (título reivindicado por eles) a idéia de que alguns padrões ou crenças são 

realmente racionais e vão além da aceitação local não tem sentido.  

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201

Do  truísmo de  que  os  sistemas de  crenças  variam de  época para  época, de 

contexto  para  contexto,  de  um  grupo  social  para  outro,  eles  passam  em  seu 

argumento non  sequitur à conclusão de que nada é  transcontextual,  tudo  se explica 

pela posição de quem pensa e age. Bloor também afirma em outra obra: 

 It  [science]  does  not  need  any  ultimate  metaphysical  sanction  to support it or make it possible. There need be no such thing as Truth, other  then  conjectural,  relative  truth,  any more  than  there  need  be absolute moral standards rather than locally accepted ones. If we can live  with  moral  relativism,  we  can  live  with  cognitive  relativism. (BLOOR, 1991, p. 159) 

 

A  passagem  acima  ilustra  um  erro  bem  comum.  Relativistas  costumam 

confundir  conhecimento  e  verdade.  Não  existe  verdade  conjectural,  verdade  é  a 

adequação  de  uma  proposição  a  um  aspecto  da  realidade.  O  que  existe  é 

conhecimento conjectural. Mas este não é simplesmente um problema abstrato. Bloor 

afirma que podemos viver tanto com o relativismo moral quanto com o relativismo 

epistêmico. O  problema  é  que  não  podemos  viver  nem  com  uma  coisa  nem  com 

outra, a não ser quando estas crenças são professadas por um grupo muito restrito da 

sociedade. Conviver  com o  relativismo  epistêmico  e moral  é  fácil quando  só meia 

dúzia de antropólogos, sociólogos e filósofos defendem que quarks são construções 

sociais, que a medicina voodoo e a ocidental tem o mesmo valor epistêmico ou que é 

moralmente aceitável o apedrejamento de homossexuais e a amputação de clitóris em 

alguns  países  mulçulmanos.  Mas  como  já  expus  aqui,  se  este  tipo  de  crença, 

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202

realmente, se espalhasse por todos os estratos da sociedade, nada poderia advir disto 

que não a completa dissolução social.  

É  claro  que  os  construtivistas  sociais  não  se  vêem  desta  forma.  Eles  não 

pensam no princípio da reflexividade quando querem nos convencer de que, de fato, 

seu empreendimento epistemológico é superior aos outros, e sua descrição da ciência 

é mais próxima da realidade que as “descrições  idealizadas” da filosofia da ciência. 

Enquanto  os  construtivistas  sociais  negam  qualquer  privilégio  epistemológico 

especial  à  ciência  se  comparada  à  intuição metafísica  ou  à  narrativa do mito,  eles 

reclamam implicitamente para si próprios um plano epistemológico superior a partir 

do qual  julgam  a  ciência. Mas quando  isto  é  apontado  como  inconsistente,  eles  se 

escondem  atrás  da mera  enunciação  do  princípio  da  reflexividade.  Como  afirma 

Niiniluoto (1999), há aqui uma dramática diferença em suas descrições da ciência em 

dois níveis. Como método do sociólogo da ciência, a última é um empreendimento 

implicitamente  tomado  como  expressão  de  uma  racionalidade  natural,  capaz  de 

obter conhecimento de nível superior (por exemplo em relação à filosofia da ciência), 

à moda do velho empirismo indutivista. Mas como objeto de estudo, a ciência é um 

fenômeno social, cujos métodos e conclusões sobre o mundo são relativos a interesses 

sociais e causados por fatores sociais: “It seems as if Bloor is assuming the objectivity of 

science in order to prove that science is not objective” (NIINILUOTO, 1999, p.254). 

É a velha  e banal  contradição do  relativismo. A  ela estão  condenados  todos 

aqueles  que  abandonam  o  conceito  de  verdade  como  ideal  regulador  desde 

Protágoras, a quem, diga‐se de passagem, o construtivismo social não agregou muita 

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coisa nova. Afirma‐se que a verdade  (não o conhecimento)  tem validade  limitada a 

um grupamento sócio‐histórico, ou seja, que não há verdade universalmente válida, 

mas  esta  própria  afirmação  é  falsa  analiticamente.  Se  definimos  como  verdadeira 

uma asserção  sobre a  realidade objetiva que em  sua estrutura e  conteúdo  reflete a 

parcela da  realidade à qual busca  se  referir, então uma verdade  só existe  se existe 

universalmente  para  todos  os  indivíduos,  uma  vez  que  a  realidade  objetiva  é  a 

mesma para todos os indivíduos.  

Mas outras  contradições decorrem desta  curta declaração. Se a verdade  tem 

validade  limitada  a  um  grupamento  sócio‐histórico,  ou  seja,  se  não  há  verdade 

universalmente válida, então esta própria declaração tem sua validade limitada a um 

grupo  sócio‐histórico. Mas  ela  se  pretende  universal  e  pretende  referir‐se  a  uma 

realidade objetiva: em todos os lugares, grupos e tempos a verdade é que a verdade é 

relativa a um lugar, grupo e tempo. Como coloca Thomas Nagel: 

 

Suponhamos,  para  tomar  um  exemplo  extremo,  que  fôssemos convidados a acreditar que nossos raciocínios lógicos, matemáticos e empíricos,  constituem  a  manifestação  de  hábitos  de  pensamento historicamente  contingentes  e  culturalmente  localizados  e  que  não têm maior validade para além disso. De um  lado,  isso aparenta  ser um  pensamento  a  respeito  de  como  as  coisas  realmente  são  e,  de outro,  nega  que  sejamos  capazes  de  tais  pensamentos.  Qualquer reivindicação  radical  e universal desse  tipo precisaria  estar apoiada num argumento poderoso, mas a própria reivindicação parece privar‐nos da capacidade para esse tipo de argumento. (NAGEL, 1998, p. 22‐23) 

 

Ainda  podemos  extrair  uma  terceira  contradição  que  decorre  da  curta 

sentença  que  estamos  considerando  aqui.  Se  a  verdade  é  válida  somente  para 

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determinado grupamento social, para o grupo R, do relativista, é fato que ¬v (não há 

verdade universal). Mas eu poderia, pertencendo à mesma realidade que o grupo R, 

ser membro de um grupamento social diverso do relativista, o grupo D (dogmático), 

onde é fato que v (há verdade universal). Assim, se a verdade para o grupo R é que 

cada  grupo  tem  sua  verdade,  e  se  ambas  as  proposições  sendo  verdadeiras  se 

referem à mesma realidade, eles tem que aceitar como igualmente verdadeiro o que é 

verdade para R e o que é verdade para D sobre o mesmo aspecto do mundo. Logo, R 

teria que aceitar como verdadeiras as proposições ¬v (não há verdade universal) e v 

(há verdade universal para aqueles que acreditam em verdade universal). 

O  dilema  real,  pragmático  (além  de  lógico),  em  que  um  relativista  está 

mergulhado é resumido por Boghossian (2006) da seguinte forma: se ele afirma que 

sua  tese  é  válida  universalmente,  ele  se  auto‐refuta,  e  ninguém  o  leva  a  sério;  se 

afirma  que  sua  tese  é  válida  relativamente  a  seu  grupo  social,  os  outros  não  tem 

motivos para considerar o que ele diz, pois não fazem parte de seu grupo social. 

É claro que nenhuma destas  formas de argumento é nova. De  fato, elas vêm 

sendo repetidos com variações desde Platão. Isso indica que há algo errado aqui, pois 

é  também desde Platão que os  relativistas  continuam as  ignorando. Como observa 

Kukla  (2000, p.127), alguém, certamente, está sofrendo algum distúrbio psíquico. O 

problema é que não sabemos quem, se os “dogmáticos” ou os relativistas. 

Será que nenhum destes argumentos demonstra uma contradição? Se não, não 

sei mais qual é o significado do termo. Ou talvez eles demonstrem contradições, mas 

como  para  os  construtivistas  sociais  a  própria  lógica  é  uma  construção  relativa, 

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205

minha preocupação com a consistência deve ser  resultado da  reacionária ortodoxia 

coercitiva autoritária que esta disciplina (a  lógica) exerce sobre a  livre expressão do 

pensamento (ou da falta dele). O que está acima obviamente deveria ser uma piada. 

Mas  não  é.  Kukla  (2000)  denomina  esta  consequência  do  construtivismo  social 

‘construtivismo  lógico’  (o  que  é  bastante  inadequado  por  gerar  confusão  com  o 

intuicionismo). Se você responde a demonstração de uma contradição afirmando que 

a lógica que usei no argumento é ela própria uma construção social, o resultado está 

além  do  relativismo.  O  resultado  é  irracionalismo.  Como  lembra  Kukla,  um 

irracionalista  acha  que  as próprias  regras da  argumentação  são negociáveis,  então 

quando  ele  está  perdendo  o  jogo,  simplesmente muda  as  regras.  É  como  se  ele 

estivesse jogando uma partida de xadrez na qual, quando as coisas começam a ir mal, 

ele pudesse, a  seu  turno, mudar as  regras de movimento das peças: “What  are you 

going to acuse irrationalists of? Irrationality? The only way to defeat logical constructivists is 

to shoot them.” (KUKLA, 2000, p.123) 

Porque estes argumentos não parecem oferecer grandes conflitos psicológicos 

para o relativista? Não é porque a maioria deles se considere irracionalista. Em meu 

julgamento, é porque a maioria confunde conhecimento e verdade. Não distinguem 

claramente, ao menos em  seu discurso, uma  crença  justificada da proposição  ideal 

que  reflete  adequadamente um  aspecto da  realidade. Na  verdade,  na maioria das 

vezes  não  acreditam  nem  na  capacidade  representativa  da  linguagem. Mas  neste 

caso, não poderiam falar em verdade. Podemos dizer que R conhece que ¬v e que D 

conhece que v, sem problema aparente nenhum (embora continue a haver problema, 

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se conhecimento se define como crença verdadeira justificada); e dizer que R crê que 

¬v  é  verdadeiro  e  que D  crê  que  v  é  verdadeiro,  finalmente,  sem  problema  real 

algum. Mas um relativista não está interessado em proposições moderadas. 

O fato é que, para além da consequência lógica, o relativista acredita que sua 

posição  reflete  uma  situação  objetiva,  e,  portanto,  válida  para  todos  os  sujeitos 

pensantes. A  consequência prática  e política  é  que  quem não  aceita  sua posição  é 

qualificado  como  autoritário  e  reacionário,  e  a  organização  política  da  sociedade 

sofre efeitos altamente nefastos. Uma sociedade  livre e uma ciência  livre, só podem 

florescer  onde  o  conceito  de  verdade  é  adotado  como  ideal  regulador  tanto  em 

termos  morais  quanto  epistêmicos.  A  alternativa  a  isso  é  necessariamente 

conhecimento baseado  em  tradições, onde prevalece a “verdade” do mais  forte. O 

construtivismo  social  rejeita  a  tese  de  que  as  teorias  deveriam  ser  avaliadas  em 

termos de consistência lógica e evidência empírica. Em seu lugar, quer instaurar uma 

alternativa  “epistemológica”  que  reivindica  que  a  cientificidade  de  uma  teoria  é 

função única e exclusiva de negociações sociais entre interesses de toda ordem.  

No entanto, abandonando a evidência empírica e a consistência  lógica como 

critérios de escolha entre teorias, o construtivismo social abre a porta para a aceitação 

de jogos de poder e intimidação política como mecanismos inerentes à ciência, como, 

aliás,  já  o  tinha  feito  Feyerabend.  Ao  rejeitar  os  conceitos  tradicionais  de 

conhecimento  e  verdade,  o  construtivismo  social  converte  a  ciência  em  política, 

inaugurando  uma  forma  de  justificação  de  crenças muito mais  autoritária  do  que 

qualquer  coisa  que  pudessem  denominar  ‘objetivismo’.  É  evidente  que  quando 

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207

adotamos  uma  teoria  o  fazemos  porque  a  julgamos  preferível  à  outra. À  que,  no 

entanto,  podem  os  construtivistas  sociais  recorrer  para  alegar  a  superioridade 

intelectual de sua abordagem? À política? Ao poder? À propaganda? À força bruta? 

Para  esta  “epistemologia  social”  uma  teoria  não  precisa  ser  sequer  internamente 

consistente, precisa somente ser aceita por uma comunidade científica. Assim, uma 

comunidade  científica  que  sirva  a  certos  interesses  políticos  pode  afirmar  como 

proposições científicas teorias sem nenhum compromisso com a lógica ou a validade 

empírica. 

Mas  nada  disso  importa,  para  eles,  não  há  verdade,  e  para  alguns,  até  a 

realidade é construção social. Como coloca Slezak sobre o livro de Latour & Woolgar: 

 A measure of  the perversity of  this work  is  the  fact  that  in  the new edition  of  their  book,  Latour  and Woolgar  tell  us  that  laboratory studies  such  as  their  own  should,  after  all,  not  be  understood  as providing  a  closer  look  at  the  actual  production  of  science  at  the workbench,  as  everyone  had  thought.  This  view  would  be  “both arrogant  and  misleading”,  and  would  presume  they  had  some “privileged  access  to  the  ‘real  truth’  about  science” which  emerged from a more detailed observation of  the  technical practices.  Instead, Latour and Woolgar explain that their work “recognizes  itself as the construction of  fictions about  fiction constructions”.  (SLEZAK, 2000, p.26‐27) 

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208

 

 

 

Conclusão 

 

 

 

As  conclusões  a  que  esta  investigação  chegou  quanto  aos  dois  problemas 

principais  investigados  foram  que  o  construtivismo  social  não  é parte da  tradição 

construtivista  da  filosofia  ocidental,  e  que  também  não  é  formulado,  nem  como 

metaciência consistente, nem sequer como ciência consistente.  

A tese de que o construtivismo social não é um construtivismo foi sustentada 

em primeiro lugar por um trabalho de definição das teses centrais desta abordagem 

filosófica. No segundo capítulo  foram avaliados os principais usos contemporâneos 

do  termo,  através  da  apresentação  das  teses  centrais  do  construtivismo  kantiano, 

construtivismo  piagetiano,  construtivismo  radical,  construcionismo  social, 

socioconstrutivismo e construtivismo  lógico. Foram estabelecidas as posições destas 

abordagens  em  relação  a  três  questões.  Uma  ontológica:  Q1)  Existem  objetos 

independentes da mente humana? E duas epistemológicas: Q2) É possível conhecer 

algo  sobre  os  objetos  que  existem  independentemente  da mente?;  e Q3) Qual  é  a 

relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento? 

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209

Assim  os  diferentes  construtivismos  foram  classificados  em  relação  a  suas 

respostas  às  questões  Q1  (realistas  ou  idealistas),  Q2  (dogmáticos,  criticistas  ou 

céticos)  e Q3  (objetivistas  e  construtivistas).  Buscou‐se  fundamentar  a  hipótese  de 

que  grande  parte  da  confusão  que  cerca  a  utilização  do  termo  ‘construtivismo’  é 

devida à utilização dos termos ‘realismo’ e ‘idealismo’ em sentido epistemológico (é 

possível ou não o conhecimento acerca de objetos reais). 

Ao recapitular as posições construtivistas apresentadas, estabeleci que se pode 

definir  o  construtivismo  como  uma  abordagem  epistemológica,  e  não  ontológica, 

pois  o  que  o  caracteriza  não  é  a  posição  acerca  da  natureza  do  objeto  do 

conhecimento, e sim a posição acerca do processo de obtenção do conhecimento. Esta 

abordagem epistemológica é resumida essencialmente pelas teses: 

  a)  As  representações  (intuições  sensíveis)  que  temos  da  realidade  são 

condicionadas pela estrutura de nossa mente, e construídas por ela; 

b)  num  segundo  nível,  as  hipóteses  que  construímos  sobre  como  o  objeto 

funciona podem ser alteradas e substituídas voluntariamente tão logo a sucessão de 

intuições sensíveis que esperávamos não se manifestem e, portanto, as hipóteses em 

questão se revelem inadaptadas ao objeto; 

c) O objetivismo é uma tese equivocada, pois o objeto não determina em um 

sujeito supostamente passivo as representações que este tem dele; 

Conclui  também a dissertação que, em se  tratando de  tese epistemológica, o 

construtivismo  se  divide  em  vertentes  ontológicas  realistas  e  idealistas,  pois  não 

assume posição unitária acerca da natureza do objeto do conhecimento. 

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210

  No terceiro capítulo, foram apresentadas as principais teses do construtivismo 

social, com especial ênfase às ontológicas e às epistemológicas, e ficou estabelecido o 

que  pode  ser  dito  de  consensual  e  o  que  há  de  divergência  entre  as  correntes  e 

principais proponentes deste movimento. Foram apresentadas  igualmente algumas 

idéias  de  Wittgenstein,  Kuhn  e  Feyerabend  que  julgo  terem  tido  influência 

fundamental na configuração filosófica da abordagem aqui criticamente analisada.  

  Em relação à Q1 do segundo capítulo, concluímos que quando a resposta dada 

por alguns membros da abordagem é a de que os próprios fatos são construídos, se 

está diante de uma cisão  irremediável no movimento, só restando como  identidade 

comum  algumas  posições  epistemológicas  fortemente  heterodoxas.  Podemos 

pragmaticamente  dividir  a  abordagem  em  duas  grandes  linhas,  que  denominei 

construtivismo social epistemológico e construtivismo social ontológico. A primeira é 

cética  em  relação  ao  conhecimento  do  mundo  empírico.  A  segunda  é  de  fato 

idealista,  muito  embora,  trate‐se  de  um  caso  muito  especial  e  inconsistente  de 

idealismo sem sujeito. 

Aqui também, a hipótese defendida no capítulo dois se mostrou coerente com 

o  resultado da pesquisa: a definição de  construtivismo  como  tese epistemológica e 

não  ontológica  também  se  estende  a  esta  abordagem  auto‐alegada  construtivista. 

Tanto posições  realistas quanto  idealistas podem  ser  encontradas  em  alegações de 

construtivismo social, o que, portanto, não o define como movimento.  

O  que  define  o  construtivismo  social  são  suas  teses  epistemológicas,  como 

vimos no item 3.4. Neste item foi estabelecido que o construtivismo social como um 

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211

todo dá a resposta cética à Q2, e que defende tese de que não há praticamente papel 

algum  reservado  ao  sujeito  no  processo  de  construção  do  conhecimento,  o  que 

fundamenta  uma  das  hipóteses  deste  trabalho  de  que  a  abordagem  não  é,  estrito 

senso, construtivista. 

  Como apresentado, o construtivismo social pode se apresentar em sua forma 

realista  (CSE)  ou  idealista  (CSO)  em  ontologia,  mas  como  um  todo  é  cético  e 

objetivista  em  suas  teses  epistemológicas.  Só  que  seu  ceticismo  toma  a  forma  de 

relativismo,  e  seu  objetivismo  é  uma  bizarra  variante  de  objetivismo  sem mundo 

natural, onde o objeto em questão é a sociedade.  

  Com base nisso, o construtivismo social foi criticado seguindo‐se cinco linhas 

de argumento. As duas primeiras  fundamentam a  resposta dada por  este  trabalho 

quanto à  consistência do projeto do  strong programme  (projeto  sociológico berço da 

abordagem filosófica do construtivismo social) de ser a metaciência fundamental.  

A primeira crítica é a de que ele não é nada além de uma versão sociológica da 

Nova  Filosofia  da  Ciência  e  de  algumas  idéias  de  Wittgenstein,  totalmente 

dependente de  teses heterodoxas geradas em debates  internos à  filosofia da ciência 

que  ele  afirma  substituir,  apesar de  apresentar‐se  como uma metaciência proposta 

como uma  ciência  empírica da  ciência. Pode, nesse particular,  ser visto  como uma 

versão pós‐moderna do velho cientificismo positivista. 

  A  segunda  crítica,  que  pretendo  original  e  complementa  o  argumento  da 

inconsistência deste projeto  sociologista, é a de que a afirmação do  construtivismo 

social de que sua abordagem é uma investigação científica da ciência é falsa, uma vez 

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que  não  usa  os métodos  da  ciência  que  estuda  para  investigá‐la. A  utilização  de 

métodos idiográficos é estranha às ciências naturais, e não habilita cientificamente o 

investigador a estabelecer relações de causa e efeito com poder preditivo. O método 

que garante à ciência moderna seu elevado poder para estabelecer relações causais é 

o experimental, e qualquer alegação de estabelecimento científico de leis causais com 

poder preditivo não pode prescindir do teste com base em experimentos. 

  A terceira linha de argumentação, também com pretensões de originalidade, é 

a de que o  construtivismo  social  em hipótese nenhuma  é um  construtivismo, uma 

vez que  reserva à mente humana um papel passivo em  relação à  sociedade, que a 

constrói e constitui. O construtivismo social rejeita todas as três teses filosóficas que 

caracterizam  o  construtivismo,  e  usa  a  metáfora  da  construção  fora  do  sentido 

tradicional do termo que pede por um sujeito que constrói e não que é formado. 

  A quarta crítica geral chama a atenção para o absurdo de se considerar que o 

mundo empírico não faz diferença para a escolha das crenças científicas, assim como 

para  as  consequências  inusitadas  de  se  sustentar  tal  tese.  Fundamentalmente,  o 

problema  fundamental com ela é explicar como a ciência pode ser  tão eficiente em 

prever a sucessão de nossas experiências em determinadas situações. 

  Por fim, a dissertação alerta sobre a ressurreição do relativismo e o abandono 

da verdade como ideal regulador, apesar das banais contradições desta tese e de sua 

evidente e inevitável ligação com a dissolução de padrões éticos e epistemológicos na 

sociedade. 

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213

  Diante  de  tantas  inconsistências,  o  leitor  poderia  estar  se  perguntando 

justamente porque  alguém deveria perder  tempo  estudando  e dissertando  sobre o 

construtivismo  social. Eu particularmente  apresento  quatro motivos. O primeiro  é 

que, a despeito da severidade das críticas que se possa fazer a suas teses filosóficas, 

vários dos estudos de casos promovidos pela sociologia da ciência são relevantes, e 

ajudam  a  lançar  luz  sobre  os  fatores  extra‐racionais  que  influem  de  fato  (e  não 

deveriam influir) na disputa entre teorias científicas. O segundo é que inconsistências 

têm  que  ser  expostas,  caso  contrário  continuam  despercebidas  por  incautos.  O 

terceiro  é  que  o  construtivismo,  como um  todo,  é uma das  abordagens  filosóficas 

mais importantes e influentes de nosso tempo, e está sendo confundido e denegrido 

com a falsa alegação do construtivismo social de fazer parte dessa tradição filosófica. 

Por fim, é que nossas escolas e faculdades de pedagogia estão  infestadas com essas 

teses  algumas  vezes  confusas,  outras  absurdas  e  em  certos  casos,  irracionais.  O 

esclarecimento  desta  confusão  entre  as  várias  alegações  de  construtivismo  é  vital 

para  a distinção de  teses piagetianas  e  vygotskyanas das  concepções  sociologistas 

que (des)norteiam várias das teorias pedagógicas populares no terceiro mundo. 

  É claro que a preocupação não é defender a ciência moderna. O  impacto do 

construtivismo social no prestígio social e nas práticas metodológicas reais da física, 

química e biologia é  equivalente ao  impacto de uma mosca  contra uma parede de 

concreto: devastador, para a mosca. O  físico Alan Sokal  (1996)  ficou mundialmente 

famoso  por  humilhar  o  construtivismo  social  e  boa  parte  da  filosofia  francesa 

contemporânea  através  de  uma  paródia  de  artigo,  intitulado  Transgressing  the 

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boundaries:  Toward  a  transformative  hermeneutics  of  quantum  gravity,  submetido  ao 

periódico  Social Text,  bíblia dos  social  studies.  Se  o  título  é  ridículo,  o  artigo  é um 

aglomerado  de  frases  sem  sentido,  argumentos  non  sequitur  e  citações  de 

“autoridades” pós‐modernas. É uma peça humorística cínica e refinada, misturando 

física contemporânea e matemática com as afirmações absurdas que construtivistas 

sociais e filósofos, geralmente franceses, fazem utilizando os termos destas ciências. 

Mas apesar disso, o artigo não só foi aceito como publicado numa edição especial da 

revista, acompanhado de  loas dos editores à entrada da  física na era pós‐moderna. 

Publicado, Sokal revelou a piada.  

  Este evento não marcou a refutação do construtivismo social ou o descarte da 

filosofia  francesa  contemporânea.  Ele  só  mostrou  a  todos  o  nível  de  impostura 

linguística, filosófica e científica ao qual chegamos. Ele mostrou que o rei estava nu, 

há muito tempo. Da mesma forma, nenhuma obra que possa ser escrita será capaz de 

fazer  a  maioria  dos  construtivistas  sociais  mudarem  de  opinião,  pelo  menos, 

publicamente. A questão não é racional, é política. A maioria sofre de um distúrbio 

comportamental  que Kukla  (2000,  p.123)  denominou  ‘Montypythonesque  logic’,  que 

consiste na única regra de negar o que quer que seu oponente diga. Se alguém diz 

que  eles  afirmaram  que  x  é  ¬x,  eles  afirmam  “não,  não  afirmei”. Mostrando‐se  o 

texto, eles dizem “não era isso que quis dizer, era y”. Se alguém afirma então “mas y 

é contraditório”, eles afirmam “não, não é”, e assim indefinidamente. 

  A caravana da ciência moderna vai continuar a passar porque, a despeito do 

avanço  do  relativismo  e  do  irracionalismo  em  alguns  círculos,  ela  é  a  cada  dia 

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215

praticada  com  um  otimismo  epistemológico  maior,  ancorada  em  resultados 

espetaculares  acumulados  nos  últimos  trezentos  anos. A  diferença  abissal  entre  o 

otimismo  e  a  reputação  epistêmica  da  ciência  entre  a  população  e  os  próprios 

cientistas,  e  o  pessimismo  epistemológico  dos  sociólogos  e  de  certos  filósofos,  só 

serve  para  ilustrar mais  uma  vez  a  enorme  alienação  destes  últimos. No  negócio 

científico das explicações causais, seu fracasso é completo.  

O  sucesso  da  dessa  nova  sociologia  da  ciência  é  político‐acadêmico,  não 

científico. Isto se dá como apontou Searle  (2000) porque a  idéia de que  tudo é uma 

construção  social,  de  que  não  existe  mundo  real,  é  libertadora  para  muitos, 

fornecendo um discurso para a racionalização do ódio e rancor em relação às ciências 

naturais. Entre  estes  se  encontram  todo um  conjunto de praticantes de disciplinas 

imaturas cientificamente e relegadas a um segundo plano acadêmico e social, como a 

antropologia, a sociologia e a análise literária. Cavalgando os instrumentos retóricos 

do construtivismo social muitos se lançam numa cruzada para minar o poder social 

dos cientistas naturais e fortalecer o próprio. 

Mas não só setores da academia bebem desta fonte. Boghossian (2006) lembra 

que o medo do conhecimento é natural em culturas minoritárias que defendem teses 

ou crenças míticas que a ciência revela falsas. Movimentos políticos pós‐colonialistas, 

nacionalistas  e  fundamentalistas,  assim  como  o  multiculturalismo,  encontram  no 

construtivismo  social  recursos  para  proteger  culturas  “oprimidas”  pela  razão  e  a 

ciência. Como afirmou Hacking  (1999, p.67), “What  is  true  is  that many science‐haters 

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and know‐nothings latch on to constructionism as vindicating their impotent hostility to the 

sciences. Constructivism provides a voice for that rage against reason”.  

Além disso, um  tipo de desejo muito ancestral se manifesta de novo através 

das  teses do  construtivismo  social. É  o desejo de  não  ser  responsável  sequer pela 

própria mente  e  pelas  próprias  crenças.  É  o  desejo  de  se  livrar  daquilo  que  para 

alguns é um verdadeiro  flagelo: a  responsabilidade pessoal.  Isso é buscado através 

da  adesão  ao mesmo  tipo de  crença defendida por Trasímaco na República,  com  a 

diferença que o valor em questão agora não é só o da  justiça, mas o da verdade. E 

verdade, para estas pessoas, é o que aqueles que interessam dizem que é verdade. 

O  relativismo é um dogmatismo de um dogma  só. Mais ainda, ele é o mais 

primário e estreito dos dogmatismos, pois elimina até a possibilidade de se aderir a 

novos dogmas. Como disse Alain, nada é mais perigoso que uma idéia, quando só se 

tem uma idéia. Quando aqueles que só têm uma idéia, falsa, repetida para tudo, são 

acadêmicos,  professores  e  pedagogos,  o  perigo  para  o  futuro  de  uma  sociedade 

aumenta exponencialmente. 

Minha  esperança  é que  este  trabalho  e os  frutos que dele  ainda possa vir  a 

espalhar  dêem  uma  pequena  contribuição  para  o  esclarecimento  e  o  resgate  da 

respeitabilidade  do  termo  ‘construtivismo’,  assim  como  para  a  evidenciação  de 

inconsistências nas  teses defendidas por  esta  forma pós‐moderna de objetivismo  e 

cientificismo, que usa a denominação de ‘construtivismo social’. 

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