Corpus Literário da VIII Tertúlia literária «Tempo de Máscara»

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2015 BE da ESA Corpus Literário 06-02-2015 VIII Tertúlia Literária

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2015

BE da ESA

Corpus Literário

06-02-2015

VIII Tertúlia Literária

Tertúlia VIII «Tempo de máscara»

1

1 - Carolina Marques

Boa e inesperável oportunidade para fazer uma diabrura – e das grandes! A

Sesinanda partiu para o Algarve serrano por motivo do falecimento de

familiar próximo. É lugar-comum mas sábio, “os males de uns são a sorte

de outros”. Hoje posso meter cá em casa quem eu quiser. Em casa? Na

minha cama, se me der na veneta! Convoco o Bento? Chegaria aqui num

relâmpago. Mas, calma, para já nada de planos.

Mário Zambujal, O diário oculto de Nora Rute

(Pode anteceder o texto de Miguel Esteves Cardoso, Elogio ao amor)

2 - José Jacinto

Tertúlia VIII «Tempo de máscara»

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Elogio ao amor

Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma

coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode

ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível

não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito

claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de

dizê-lo.

O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se

apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível (…).

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de

antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O

amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se

sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor

transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem.

A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor

tornou-se uma questão prática. (…)

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do

amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas,

farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. (…)

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha.

Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a

pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso

"dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas

e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não

se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou

a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é

amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos

Tertúlia VIII «Tempo de máscara»

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compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto

pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar.

O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a

tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma

coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma

convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é

um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a

ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é

para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa

alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe,

não apanha, não larga, não compreende.

O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é

bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é

uma coisa, a vida é outra. (…) A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida

dura a Vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida

inteira. E valê-la também."

Elogio ao amor - Miguel Esteves Cardoso - Expresso

3 - Mariana Cardoso

Tertúlia VIII «Tempo de máscara»

4

Era uma vez uma linda moça que perguntou a um lindo rapaz:

- Você quer casar comigo?

Ele respondeu:

- NÃO!

E a moça viveu feliz para sempre, foi viajar, fez compras, conheceu muitos

outros rapazes, visitou muitos lugares, foi morar na praia, comprou outro

carro, mobiliou sua casa, sempre estava sorrindo e de bom humor, nunca

lhe faltava nada, bebia cerveja com as amigas sempre que estava com

vontade e ninguém mandava nela. O rapaz ficou barrigudo, careca, o pinto

caiu, a bunda murchou, ficou sozinho e pobre, pois não se constrói nada

sem uma MULHER.

Luis Fernando Veríssimo

4 - Carolina Marques, Gabriel Algarve, Mariana Cardoso, Rodrigo,

Sérgio Silva

Tertúlia VIII «Tempo de máscara»

5

Ganho o Norte

Ganho a vida

Ganho um samba de cordão

Tenho a noite já vencida

Na palma da minha mão

5 - Simão Cadete

Tertúlia VIII «Tempo de máscara»

6

Pachos na testa, terço na mão,

Uma botija, chá de limão,

Zaragatoas, vinho com mel,

Três aspirinas, creme na pele

Grito de medo, chamo a mulher.

Ai Lurdes que vou morrer.

Mede-me a febre, olha-me a goela,

Cala os miúdos, fecha a janela,

Não quero canja, nem a salada,

Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.

Se tu sonhasses como me sinto,

Já vejo a morte nunca te minto,

Já vejo o inferno, chamas, diabos,

Anjos estranhos, cornos e rabos,

Vejo demónios nas suas danças

Tigres sem listras, bodes sem tranças

Choros de coruja, risos de grilo

Ai Lurdes, Lurdes fica comigo

Não é o pingo de uma torneira,

Põe-me a Santinha à cabeceira,

Compõe-me a colcha,

Fala ao prior,

Pousa o Jesus no cobertor.

Chama o Doutor, passa a chamada,

Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.

Faz-me tisana e pão de ló,

Não te levantes que fico só,

Aqui sozinho a apodrecer,

Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer

António Lobo Antunes - (Sátira aos HOMENS quando estão com gripe)

6 - Miguel Rodrigues

Tertúlia VIII «Tempo de máscara»

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O Banheiro

Não é o lar o último recesso do homem civilizado, sua última fuga, o

derradeiro recanto em que pode esconder suas mágoas e dores. Não é o lar

o castelo do homem. O castelo do homem é seu banheiro. Num mundo

atribulado, numa época convulsa, numa sociedade desgovernada, numa

família dissolvida ou dissoluta só o banheiro é um recanto livre, só essa

dependência da casa e do mundo dá ao homem um hausto de

tranquilidade. É ali que ele sonha suas derradeiras filosofias e seus

moribundos cálculos de paz e sossego. Outrora, em outras eras do mundo,

havia jardins livres, particulares e públicos, onde o homem podia se

entregar à sua meditação e à sua prece. Desapareceram os jardins

particulares, pois o homem passou a viver montado em lajes, tendo como

ilusão de floresta duas ou três plantas enlatadas que não são bastante

grandes para ocultar seu corpo da fúria destrutiva da proximidade forçada

de outros homens. Não encontrando mais as imensidões das praças

romanas que lhe davam um sentido de solidão, não tendo mais os desertos,

hoje saneados, irrigados e povoados, faltando-lhe as grutas dos

companheiros de Chico de Assis, onde era possível refletir e ponderar,

concluir e amadurecer, o homem foi recuando, desesperou e só obteve um

instante de calma no dia em que de novo descobriu seu santuário dentro de

sua própria casa — o banheiro. Se não lhe batem à porta outros homens

(pois um lar por definição é composto de mulher, marido, filho, filha e um

outro parente, próximo ou remoto, todos com suas necessidades físicas e

morais) ele, ali e só ali, por alguns instantes, se oculta, se introspecciona,

se reflete, se calcula e julga. Está só consigo mesmo, tudo é segredo,

ninguém o interroga, pressiona, compele, tenta, sugere, assalta, Aqui é que

o chefe da casa, à altura dos quarenta anos, olha os cabelos grisalhos, os

claros da fronte, e reflete, sem testemunhas nem cúmplices, sobre os

objetivos negativos da existência que o estão conduzindo — embora

altamente bem sucedido na vida prática — a essa lenta degradação física.

Examina com calma sua fisionomia, põe-se de perfil, verifica o grau de sua

obesidade, reflete sobre vãs glórias passadas e decide encerrar

definitivamente suas pretensões sentimentais, ânsia cada vez maior e mais

Tertúlia VIII «Tempo de máscara»

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constante num mundo encharcado de instabilidade. É nesse mesmo

banheiro que o filho de vinte anos examina a vaidade de seus músculos, vê

que deve trabalhar um pouco mais seus peitorais, ensaia seu sorriso de

canto de boca, fica com um olhar sério e profundo que pretende usar mais

tarde naquela senhora mais velha do que ele mas ainda cheia de encantos e

promessas. É aqui que a filha de 17 anos vem ler a carta secreta que

recebeu do primo, cujos sentimentos são insuspeitados pelo resto da

família. Já leu a carta antes, em vários lugares, mas aqui tem o tempo e a

solidão necessários para degustá-la e suspirá-la. É aqui também que ela

vem verificar certo detalhe físico que foi comentado na rua, quando passava

por um grupo de operários de obras, comentário que na hora ela ouviu com

um misto de horror e desprezo. É aqui que a dona de casa, a mãe de

família, um tanto consumida pelos anos, vem chorar silenciosamente, no

dia em que descobre ou suspeita de uma infidelidade, erro ou intenção

insensata da parte do marido, filho, filha, irmãos. Aqui ninguém a

surpreenderá, pode amargurar-se até aos soluços e sair, depois de alguns

momentos, pronta e tranqüila, com a alma lavada e o rosto idem, para

enfrentar sorridente os outros misteriosos e distantes seres que vivem no

mesmo lar.

Não há, em suma, quem não tenha jamais feito uma careta equívoca no

espelho do banheiro nem existe ninguém que nunca tenha tido um

pensamento genial ao sentir sobre seu corpo o primeiro jato de água fria.

Aqui temos a paz para a autocrítica, a nudez necessária para o frustrado

sentimento de que nossos corpos não foram feitos para a ambição de

nossas almas, aqui entramos sujos e saímos limpos, aqui nos melhoramos o

pouco que nos é dado melhorar, saímos mais frescos, mais puros, mais bem

dispostos. O banheiro é o que resta de indevassável para a alma e o corpo

do homem e queira Deus que Le Corbusier ou Niemeyer não pensem em

fazê-lo também de vidro, numa adaptação total ao espírito de uma

humanidade cada vez mais gregária, sem o necessário e apaixonante

sentimento de solidão ocasional. Aqui, neste palco em que somos os únicos

atores e espectadores, neste templo que serve ao mesmo tempo ao deus do

narcisismo e ao da humildade, é que a civilização hodierna encontrará sua

máxima expressão, seu último espelho — que é o propriamente dito.

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Xantipa, que diabo, me joga essa toalha!

Millôr Fernandes, Crónicas

7 - Rodrigo e Sérgio Silva

Tertúlia VIII «Tempo de máscara»

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Depus a Máscara

Depus a máscara e vi-me ao espelho. —

Era a criança de há quantos anos.

Não tinha mudado nada...

É essa a vantagem de saber tirar a máscara.

É-se sempre a criança,

O passado que foi

A criança.

Depus a máscara, e tornei a pô-la.

Assim é melhor,

Assim sem a máscara.

E volto à personalidade como a um términus de linha.

Álvaro de Campos, in "Poemas"

9 - Ana Paula Teixeira

Tertúlia VIII «Tempo de máscara»

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Era uma vez

Era uma vez... numa terra muito distante... uma princesa linda,

independente e cheia de autoestima.

Ela se deparou com uma rã enquanto contemplava a natureza e pensava

em como o maravilhoso lago do seu castelo era relaxante e ecológico...

Então, a rã pulou para o seu colo e disse: linda princesa, eu já fui um

príncipe muito bonito.

Uma bruxa má lançou-me um encanto e transformei-me nesta rã

asquerosa.

Um beijo teu, no entanto, há de me

transformar de novo num belo príncipe e

poderemos casar e constituir lar feliz no

teu lindo castelo.

A tua mãe poderia vir morar connosco e tu

poderias preparar o meu jantar, lavar as

minhas roupas, criar os nossos filhos e

seríamos felizes para sempre...

Naquela noite, enquanto saboreava pernas

de rã sautée, acompanhadas de um

cremoso molho acebolado e de um

finíssimo vinho branco, a princesa sorria,

pensando consigo mesma:

- Eu, hein?... nem morta!

Luís Fernando Veríssimo

11 - Carolina Marques, Mariana Cardoso

Tertúlia VIII «Tempo de máscara»

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É hora, é hora

É hora de roda

Jogo a vida, jogo a tarde

Jogo a faca e a razão

Jogo o mundo à sua sorte

E a mentira eu jogo ao chão.

12 -

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Carolina Marques, Gabriel Algarve, Mariana Cardoso, Rodrigo

Mendes, Sérgio Silva

A los toros,

A los toros,

A los toros,

Adolfito mata-mouros.

(bis)

Adolfito bigodinho era um toureiro,

Que dizia que vencia o mundo inteiro,

E num touro que morava em certa ilha,

Quis espetar sua bandarilha.

Mas o touro não gostou da patuscada,

Pregou-lhe uma chifrada.

Tadinho do rapaz!

E agora o Adolfito, caracoles,

Soprado pelos foles,

Perdeu o seu cartaz.

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13 - Ana Paula Teixeira, Miguel Assis

O homem trocado

O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda está na sala de

recuperação. Há uma enfermeira do seu lado. Ele pergunta se foi tudo bem.

- Tudo perfeito - diz a enfermeira, sorrindo.

- Eu estava com medo desta operação...

- Por quê? Não havia risco nenhum.

- Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série de enganos...

E conta que os enganos começaram com seu nascimento. Houve uma troca

de bebês no berçário e ele foi criado até os dez anos por um casal de

orientais, que nunca entenderam o fato de terem um filho claro com olhos

redondos. Descoberto o erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais. Ou

com sua verdadeira mãe, pois o pai abandonara a mulher depois que esta

não

soubera explicar o nascimento de um bebê chinês.

- E o meu nome? Outro engano.

- Seu nome não é Lírio?

- Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e...

Os enganos se sucediam. Na escola, vivia recebendo castigo pelo que não

fazia. Fizera o vestibular com sucesso, mas não conseguira entrar na

universidade. O computador se enganara, seu nome não apareceu na lista.

- Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês

passado tive que pagar mais de R$ 3 mil.

- O senhor não faz chamadas interurbanas?

- Eu não tenho telefone!

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Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com outro. Não foram

felizes.

- Por quê?

- Ela me enganava.

Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para pagar dívidas

que não fazia. Até tivera uma breve, louca alegria, quando ouvira o médico

dizer:

- O senhor está desenganado.

Mas também fora um engano do médico. Não era tão grave assim. Uma

simples apendicite.

- Se você diz que a operação foi bem...

A enfermeira parou de sorrir.

- Apendicite? - perguntou, hesitante.

- É. A operação era para tirar o apêndice.

- Não era para trocar de sexo?

Luis Fernando Veríssimo

Tertúlia VIII «Tempo de máscara»

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14 – Adelaide Simões

Restos do carnaval

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou

para a minha infância e para as quartas feiras de cinzas nas ruas mortas

onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata

com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão

extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano.

E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que

me tomava?

E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque

vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano

também fosse uma espécie de máscara.

Não me mascaravam: no meio das preocupações com minha mãe doente,

ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança.

Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não

conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir

pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o

nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas

de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as

pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia

tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de

longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais

belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel

crepom, e muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu apelo

mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já

que sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa

com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na

vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira

tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, em

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baixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se

derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas - à ideia de uma

chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito

anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha - mas

ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só

existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho,

que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de

esmola.

Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser

tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos

enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não

passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da

tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No

entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um

destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel

crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e

ruge - minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino

se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na

farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a

máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil - fui

correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos

de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me

penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como

nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e

desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era

de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma

flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de

sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso

lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é

porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para

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mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim

e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu

meus cabelos, já lisos, de confete: por um instante ficamos nos

defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos,

considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu

era, sim, uma rosa.

Restos do carnaval, de Clarice Lispector

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16 - Miguel Assis

Mas eu desconfio que a única pessoa livre, realmente livre, é a que não tem

medo do ridículo.

Luis Fernando Veríssimo

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17 – Bartolomeu Dutra

Música

Tertúlia VIII «Tempo de máscara»

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Diseur

Autor

1 – Carolina Marques

Mário Zambujal

2- José Jacinto

Miguel Esteves Cardoso

3 – Mariana Cardoso

Luis Fernando

Veríssimo

4 – Gabriel, Rodrigo, Sérgio, Mariana, Carolina

José Carlos Jobim

5 – Simão Cadete

António Lobo Antunes

6 – Miguel Rodrigues

Millôr Fernandes

7 – Sérgio, Rodrigo

Álvaro de Campos

8 - Bartolomeu Dutra

Música

9 - Paulinha

Luis Fernando

Veríssimo

10 – Miguel Assis

Luis Fernando Veríssimo

11 – Mariana, Carolina

José Carlos Jobim

12 - Gabriel, Rodrigo, Sérgio, Mariana, Carolina

José Carlos Jobim

13 - Miguel Assis, Paulinha

Luis Fernando

Veríssimo

14 - Fernanda Bucho

Clarice Lispector

15 – Isabel Tavares

Carlos Lyra e Vinicius de Moraes

16 – Miguel Assis

Luis Fernando

Veríssimo

17 – Bartolomeu Dutra

Música

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