Criança e Consumo Juventude e Bebidas Alcoólicas Entrevistas · Projeto Criança e Consumo...

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Zico Góes consumo jovem Ronaldo Laranjeira causa de todos Fernando Lacerda poder afetivo Edgard Rebouças à luz do dia Ruy Castro interesse público Sueli de Queiroz precocidade Ilana Pinsky padrão binge Juventude e Bebidas Alcoólicas Criança e Consumo Entrevistas

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Zico Góesconsumo jovem

Ronaldo Laranjeira

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Fernando Lacerdapoder afetivo

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Ruy Castrointeresse público

Sueli de Queirozprecocidade

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Juventude e Bebidas Alcoólicas

Criança e Consumo Entrevistas

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Criança e Consumo EntrevistasJuventude e Bebidas Alcoólicas

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Produção e supervisão: equipe Projeto Criança e Consumo

Coordenação Editorial: 2PRÓ Comunicação

Jornalista Responsável: Myrian Vallone - Mtb 18.229

Repórteres: Júlia Magalhães, Juliana Melo e Bartira Betini

Fotos: Grupo de Foto - UFES, Leonardo Aversa, Murillo Medina e

Renata Ursaia

Diagramação: Eliana Borges

Revisão: Patricia Cifre

Ano: 2009

Entrevistas realizadas entre maio e julho de 2009

Instituto Alana

Projeto Criança e Consumo

Presidente: Ana Lucia de Mattos Barretto Villela

Coordenadora Geral: Isabella Henriques

Coordenadora de Educação e Pesquisa: Lais Fontenelle Pereira

Rua Sansão Alves dos Santos, 102 – 4º andar

Cep: 04571-090

Telefone: (11) 3472-1600

E-mail: [email protected]

Site: www.criancaeconsumo.org.br

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Sumário

Introdução .........................................................pág 04

“A sociedade está associada ao mercado, que pressiona para o consumo”Zico Góes ...........................................................pág. 06

“O uso precoce de bebidas alcoólicas é um problema de saúde pública” Ronaldo Laranjeira ...............................................pág. 16

“As empresas de cerveja fazem publicidade do jeito que querem”Fernando Lacerda Dias ..........................................pág. 24 “A autorregulamentação do Conar só funciona no eixo Rio - São Paulo - Cannes” Edgard Rebouças .................................................pág. 34

“O comércio é tão liberal que só falta vender bebida em farmácia”Ruy Castro .........................................................pág. 48

“A publicidade incentiva os jovens a beber. Isso já está comprovado”Sueli de Queiroz ...................................................pág. 54

“A Lei Seca é resultado de uma pressão social” Ilana Pinsky .........................................................pág. 64

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INTRODUÇÃO

No final do ano de 2008, o Projeto Criança e Consumo, do

Instituto Alana, iniciou uma série de entrevistas para sua

newsletter online com o objetivo de abordar os impactos

negativos do consumismo infantil nas esferas social,

ambiental e econômica.

O conteúdo dessas entrevistas foi sendo, ao longo de 2009,

transformado em sete edições impressas, cuja missão é

promover a reflexão a respeito dos padrões de consumo

estabelecidos pela política atual de mercado.

Os livros tratam dos reflexos do consumismo na

sustentabilidade do planeta; na erotização precoce e

exploração sexual infantil; nos altos índices de transtornos

alimentares e obesidade infantil; no alcoolismo entre

crianças e jovens; na convivência familiar; na diminuição

das brincadeiras criativas e na violência e delinquência.

Quarto livro da série, Juventude e Bebidas Alcoólicas traz

depoimentos dos especialistas Edgard Rebouças, Fernando

Lacerda, Ilana Pinsky, Ronaldo Laranjeira, Ruy Castro, Sueli

Queiroz e Zico Góes. Cada um, à sua maneira, afirma que

as estratégias de vendas da indústria do álcool têm forte

impacto no crescimento do padrão de consumo de bebidas

alcoólicas entre adolescentes brasileiros.

A soma dessas visões mostra a realidade do consumo de

álcool no país chamando a atenção para o problema do

alcoolismo entre jovens e pré-adolescentes. Por outro lado,

aponta ideias de como combater o consumo precoce e

excessivo.

A iniciação cada vez mais cedo dos adolescentes ao consumo

de bebidas alcoólicas pede atenção especial do Poder Público

para que sejam implementadas, com urgência, políticas

públicas de prevenção, bem como estabelecidos limites

claros para a publicidade de cerveja no país. Estimular o

consumo de bebidas alcoólicas – inclusive de cerveja – na

população jovem, associando-o à felicidade e ao prazer,

compromete seriamente o futuro de nossos jovens. E quem

paga a conta é a sociedade.

Boa leitura!

Isabella Henriques Coordenadora geral Projeto Criança e Consumo

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No final do ano de 2008, o Projeto Criança e Consumo, do

Instituto Alana, iniciou uma série de entrevistas para sua

newsletter online com o objetivo de abordar os impactos

negativos do consumismo infantil nas esferas social,

ambiental e econômica.

O conteúdo dessas entrevistas foi sendo, ao longo de 2009,

transformado em sete edições impressas, cuja missão é

promover a reflexão a respeito dos padrões de consumo

estabelecidos pela política atual de mercado.

Os livros tratam dos reflexos do consumismo na

sustentabilidade do planeta; na erotização precoce e

exploração sexual infantil; nos altos índices de transtornos

alimentares e obesidade infantil; no alcoolismo entre

crianças e jovens; na convivência familiar; na diminuição

das brincadeiras criativas e na violência e delinquência.

Quarto livro da série, Juventude e Bebidas Alcoólicas traz

depoimentos dos especialistas Edgard Rebouças, Fernando

Lacerda, Ilana Pinsky, Ronaldo Laranjeira, Ruy Castro, Sueli

Queiroz e Zico Góes. Cada um, à sua maneira, afirma que

as estratégias de vendas da indústria do álcool têm forte

impacto no crescimento do padrão de consumo de bebidas

alcoólicas entre adolescentes brasileiros.

A soma dessas visões mostra a realidade do consumo de

álcool no país chamando a atenção para o problema do

alcoolismo entre jovens e pré-adolescentes. Por outro lado,

aponta ideias de como combater o consumo precoce e

excessivo.

A iniciação cada vez mais cedo dos adolescentes ao consumo

de bebidas alcoólicas pede atenção especial do Poder Público

para que sejam implementadas, com urgência, políticas

públicas de prevenção, bem como estabelecidos limites

claros para a publicidade de cerveja no país. Estimular o

consumo de bebidas alcoólicas – inclusive de cerveja – na

população jovem, associando-o à felicidade e ao prazer,

compromete seriamente o futuro de nossos jovens. E quem

paga a conta é a sociedade.

Boa leitura!

Isabella Henriques Coordenadora geral Projeto Criança e Consumo

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“A sociedade está associada ao mercado, que pressiona para o consumo”

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Z i c o G ó e s trabalhou na MTV durante 16 anos. Construiu uma carreira

de sucesso em um canal de videoclipes voltado para jovens

das classes sociais A e B e promoveu grandes mudanças

na sua programação. Após uma década sob sua gestão, a

MTV deixou de ser um canal musical para se aproximar das

características das TVs abertas.

Depois de acompanhar essas mudanças, em 2008 Zico Góes

deixou a emissora, mas manteve contato com os jovens,

quando passou a dar aulas no curso de Rádio e TV na

Pós-Graduação da Fundação Armando Álvares Penteado

[FAAP], em São Paulo. Assim, acabou se aproximando ainda

mais do público para o qual trabalhava.

Apesar de sua atuação na área, a sua formação acadêmica

é bem diferente. Graduou-se em Direito, mas nunca exerceu

a profissão. Nesta entrevista ao Projeto Criança e Consumo,

Zico Góes traça um panorama da juventude brasileira no

contexto atual.

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Projeto Criança e Consumo - Há anos o seu trabalho

é relacionado ao público jovem. Como você percebe

a relação desse público com a bebida alcoólica?

Zico Góes - O jovem se assume como um indivíduo

que pode tudo. O individualismo tem a ver com essa

onipotência, que é inerente ao jovem. Ele pensa que nada

acontece com ele, que é melhor do que todo mundo, que

sabe tudo, e se afirma nisso. A bebida e o comportamento

têm a ver com o “eu posso”, com dizer que pode tomar

as próprias decisões.

Como a MTV mantinha-se informada sobre o

comportamento jovem?

Era preciso entender os jovens para prover o conteúdo.

Fizemos pesquisas que, embora não apontassem o que

ele queria, indicavam quem ele era. Com isso, a MTV

ficou conhecida como aquela que conhecia o jovem.

E os estudos e os resultados ficavam disponíveis para

qualquer um olhar.

Outro dia, a revista Veja publicou uma matéria dizendo

que não existem mais tribos, pois os jovens se espalham

em várias ao mesmo tempo. A MTV falou isso em uma

pesquisa de 2002. Um dos méritos dessas pesquisas

chamadas Dossiê Universo Jovem é que, com elas, a

MTV passou a falar do jovem antes de muita gente.

Juventude e Bebidas Alcoólicas

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Esse dossiê começou a ser feito quando?

Em 2002, e de lá pra cá foram feitos 13 outros dossiês.

Os primeiros tentaram traçar o perfil do jovem e logo

identificaram essa história de tribos. Entre outras coisas

identificadas, muitas saltaram aos olhos. Uma delas foi

que o jovem é conservador e não entra no estereótipo

de contestador, revolucionário.

O jovem de hoje é menos engajado?

A pesquisa mostrou um sujeito menos engajado, mais

individualista e conservador. Um conservadorismo típico

de adulto, que valoriza o emprego, com conceitos que

não têm a ver com a atitude de experimentar, de arriscar,

de paixão. Ele, hoje, se preocupa em fazer uma boa

faculdade, ter um bom emprego, antes de pensar em

sair de casa ou fugir com a namorada. Os pais – e

essa pesquisa também mostrou isso – favorecem esse

ambiente. Em geral, ele tem um quarto que é o seu

mundo, com internet, telefone, televisão. Tudo aquilo

que gostaria de ter em uma vida independente, com o

benefício de ter as contas pagas e o pai e a mãe fazendo

tudo para ele.

Pesquisas, tanto na MTV quanto no mundo, mostraram a

extensão da adolescência. O jovem quer ser jovem por

mais tempo, e o adulto já não se conforma com a idade

e até imita o comportamento do jovem.

ZICO GóES

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Essas pesquisas revelaram a relação com o consumo?

Em relação ao consumo, havia uma espécie de limbo

entre sair da adolescência e entrar na idade adulta. Todo

mundo ficou parecido. Consumia-se a mesma balada, a

mesma roupa. A saudade do passado recente aparecia

nas pesquisas, como, por exemplo, meninas de 15 anos

que tinham saudades do desenho animado que viam

aos 12. Então consumiam brinquedinhos dessa época.

Pessoas de 40 anos consumiam ícones da época em que

tinham 20... E assim por diante.

O consumo aparecia de maneira muito forte quando se

tratava do individualismo, da obsessão pela autoimagem,

pela beleza. Isso identificava padrões de consumo

absurdos. Essa percepção individual exacerbada de ser

bonito, de ser competente e de ser bacana fazia com que

consumissem muitos produtos de beleza e muita moda.

A afirmação e a busca da identidade têm ligação com o

consumo e com a valorização da estética.

O que vocês constataram com relação ao consumo de bebidas alcoólicas?

Nos últimos 10 anos, houve um aumento na ingestão

de bebidas mais fortes em detrimento da cerveja.

A vodca começou a estar mais presente na vida desses

jovens, pois misturadas com açúcar tais bebidas ficam

com gosto de suco, docinho. Aumentou muito o consumo

de vodca por causa dessa cultura. A história dessas

bebidas foi muito bem sacada. Ao longo das pesquisas

identificamos que, nas baladas, isso era normal. Não

Juventude e Bebidas Alcoólicas

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era mais uma garrafinha de cerveja. Era vodca pura ou eram umas misturas de suco em pó com vodca.

Por que essa busca por consumo de álcool?

Quando se fala de droga ou de álcool é preciso lembrar que para algumas pessoas a sensação é gostosa. O sujeito esquece os problemas, relaxa, se diverte, fica mais falante. Tem uma palavrinha que aparece muito na pesquisa (uma marca de cerveja usava e depois foi proibida de usar): experimentar. O jovem se acha preparado para experimentar. E o tempo e a sociedade atuais exacerbaram essa vontade. Hoje, existem 200 mil coisas disponíveis. Compra-se mais. E existem coisas menos ou mais nocivas, como o álcool.

Como a publicidade influencia o comportamento da juventude com relação ao álcool?

Os publicitários têm uma missão: vender. E vender para quem? Para o público que o cliente diz querer vender. E os publicitários não escondem o que fazem. Fazem pesquisa, entendem o seu público para ver o que ele quer consumir. Aproveitam o crescimento do mercado, do poder de consumo e da influência sem nenhum pudor. Porque, em geral, o jovem não tem seu próprio dinheiro, mas cada vez mais influencia os pais.

Como isso funciona na prática?

O publicitário precisa colocar a mensagem na frente do consumidor. O modelo da televisão – e do rádio –

ZICO GóES

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foi inventado nos anos 50, com programação e espaço

publicitário. O único jeito de ter programação era alguém

comprar essa conta e pagar um espaço no intervalo

comercial. É interessante porque quem paga a conta não

é quem vê ou quem consome o produto. Deu o break, o

anunciante faz o que quer, dentro das regulamentações,

é claro.

Mas, de uns tempos pra cá, a atenção de quem vê o

programa está pulverizada. Ele vê a televisão, ouve o

rádio, fala num chat. Com isso, é preciso pulverizar a

mensagem também. Daí a pulverização das ações de

merchandising dentro dos programas.

Como você lidava com isso como diretor de

programação da emissora?

A MTV, diferentemente de outros canais, tinha regras

para o merchandising. O diretor de programação,

por acaso, era o dono desse jogo e dizia ‘não’ para o

pessoal do comercial. Não podia vincular a imagem do

apresentador e do programa a algo que eu era contra.

Havia regras para adequar o máximo da mensagem

publicitária ao seu conteúdo. Uma televisão como a

MTV, que tem programas mais responsáveis, tem de

ser mais consciente do que as outras emissoras. Uma

vez peguei o e-mail de uma menina reclamando da

festa de peão de boiadeiro veiculada na MTV. Dizia que

o anúncio era nocivo porque os bois eram maltratados.

Significa que uma menina da audiência identificou a

MTV como diferente das outras e achava incoerente

algo que fosse contra aquela imagem.

Juventude e Bebidas Alcoólicas

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O que a MTV identificou com relação às drogas e ao álcool?

Era difícil identificar porque ficava entre o cinismo e uma suposta responsabilidade. Veiculava-se que a droga e o álcool eram grandes problemas para o jovem, mas não eram os primeiros problemas. Entre jovens de 14, 15 anos, o primeiro deles é a falta de emprego, seguido por terminar a faculdade. Maconha? Toda a molecada de 14 anos usa. Não é preciso muito esforço para conseguir, então eles não identificavam como problema.

É a mesma percepção sobre consumo de música. “Você faz download de música sem pagar por isso, o que é ilegal”. E eles olhavam com cara de interrogação: “Pagar? Eu tenho de pagar por algo que eu consigo de graça?”. Não passa, na cabeça deles, a questão de que é preciso pagar para ter música. É como televisão: você sabe que precisa pagar para assistir? Não! Só aperta o botão.

Quando os jovens começam a consumir álcool?

Havia registro de pessoas com 10, 11, 12 anos. Claro que alguns casos já estavam ligados a patologias sociais, porque o pai bebe, a mãe bate. Mas o mais comum é a partir dos 14, 15 anos, quando começam a sair à noite.

Isso tem ligação com o ambiente em casa e com educação?

Acho que começa em casa. E quando o jovem fica mais velho, ele vai achando isso natural. Mas, de novo:

ZICO GóES

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o mundo não está atento a isso. O jovem tem cada

vez menos ferramentas que auxiliem a ele e aos pais.

A sociedade está associada ao mercado, que pressiona

para que esse sujeito consuma. Acho um absurdo o

Ronaldo (jogador de futebol) fazer campanha de cerveja.

Mas ele justifica dizendo que não tem problema porque

todo mundo bebe. O cinismo já é a normalidade.

Como está a noção de ética e cidadania do jovem?

Falta exercer. Se ninguém provocar, ele vai ficar

dentro de casa, no quarto dele, assistindo à televisão

ou no computador. O jovem precisa de alguém para

catalisar essa vontade de mudar o mundo. Nesse

sentido, a individualidade, o excesso de possibilidades,

a pulverização das escolhas podem ser um bem. Podem

ajudar o jovem a assumir o seu próprio destino, ser

protagonista de suas ações. Antigamente, ele precisava

fazer faculdade e depois procurar emprego. Agora,

acredita que pode fazer tudo ao mesmo tempo, ser o

que quiser.

Que avaliação você faz hoje da programação voltada para o público infantil e jovem?

À exceção da MTV, a televisão não tem muita programação

para o jovem, porque o Ibope fica pequeno. Quando

você pega Malhação, por exemplo, Caldeirão do Huck e

até mesmo CQC, que é mais bacana do que os outros,

a composição da audiência é de 40 anos em diante.

O programa é feito com cara de jovem, mas com objetivo

de atingir os mais velhos.

Juventude e Bebidas Alcoólicas

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E a qualidade?

O modelo atual de televisão não exige grande qualidade ou muita criatividade. Para atingir a todos ao mesmo tempo basta uma grande massa disforme. Outras mídias são mais propícias para a segmentação, como a internet e as revistas impressas. Quem consome a Capricho é uma menina de 16 anos e pronto.

Você está falando de mercado. Mas em termos de qualidade, e se você analisar os programas e as emissoras mais populares?

É muito padronizado. Não tem nada que chame atenção, mesmo aquilo a que meus filhos assistem, que são séries para adolescentes e desenhos animados. A temática é outra, mas o formato é o mesmo.

A MTV tinha vários programas, um deles era com o Jairo Bauer, que debatia com os jovens. A questão do alcoolismo certamente foi um dos temas tratados. Você acha que falar com o jovem funciona?

Funciona. Nas pesquisas, o jovem mostra interesse por um tipo de assunto, mas não sabe em que formato quer aquilo. A televisão tem de quebrar a cabeça para falar do assunto sem ficar chato. Às vezes, era em formato de documentário; em outras, era feito um debate com o Jairo Bauer, com a Babi, com o Lobão. Eram temas aparentemente áridos, como aborto, alcoolismo, gravidez

na adolescência, política. Dependendo da maneira como

você trata, os temas são bem recebidos.

ZICO GóES

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“O uso precoce de bebidas alcoólicas é um problema de

saúde pública”

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R o n a l d o L a r a n j e i r a é médico psiquiatra e coordenador da Unidade de Pesquisa

em Álcool e Drogas [Uniad] na Faculdade de Medicina da

Universidade Federal do Estado de São Paulo [Unifesp].

Doutor pela London University (Inglaterra), tem um trabalho

extenso sobre dependência de álcool e drogas.

Em 2005, lançou o livro “O Alcoolismo” junto com a

psicóloga Ilana Pinsky, colega de departamento na Unifesp.

Ambos desenvolvem pesquisa nessa área e acompanham

movimentos que pretendem pressionar o Estado brasileiro

para a criação de políticas públicas de prevenção e tratamento

ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas.

Nesta entrevista ao Projeto Criança e Consumo, ele afirma

que, no Brasil, as estratégias de vendas da indústria de

cerveja têm forte impacto no padrão de consumo entre

adolescentes. Assim, a regulamentação desse tipo de

publicidade é necessária e urgente. “O Estado brasileiro está

compactuando com a exposição de crianças à publicidade

de um produto cujo consumo é ilegal para menores de 18

anos. Isso não é um detalhe”, diz Ronaldo.

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Projeto Criança e Consumo - Qual é a influência da publicidade de bebidas alcoólicas no índice de jovens com problemas ligados ao alcoolismo?

Ronaldo Laranjeira - Em um país como o Brasil, a

indústria da bebida não apenas promove como

estimula o consumo precoce de cerveja entre crianças

e adolescentes. A publicidade passa uma imagem de

festa, de diversão e de sexualidade associada à cerveja.

E também passa uma ideia de um produto que poderia

ser consumido de forma indiscriminada sem causar

problemas. A mensagem é sempre: “Experimente,

experimente, experimente”. Essa foi uma publicidade

veiculada em todo o país que, a meu ver, foi a pior do

ponto de vista de saúde pública. Mas, de alguma forma,

ela sintetiza as mensagens de todas as outras marcas de

cerveja. A sociedade brasileira permite que se divulgue

a mensagem de que a experimentação farmacológica

– que também envolve o consumo de cerveja – é

algo que todo jovem deve fazer. Na minha opinião, a

publicidade de cerveja, da maneira como ela é feita hoje,

inviabiliza qualquer programa de prevenção ao consumo

de qualquer outro tipo de droga. Porque deixa-se que o

“experimente, experimente, experimente” bombardeie

a cabeça das crianças a qualquer hora do dia.

Existe diferença de impacto entre as campanhas de cerveja e as de outros tipos de bebida alcoólica?

A publicidade das bebidas destiladas tem de cumprir

um horário para ser veiculada. Há uma restrição maior.

Por isso, as crianças não são tão bombardeadas por ela,

embora a mensagem seja muito parecida.

Juventude e Bebidas Alcoólicas RONALDO LARANJEIRA

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Como você mesmo lembrou, já existe uma

regulamentação para a veiculação de publicidade de

bebidas com alto teor alcoólico. Qual é a sua opinião

sobre o fato de a regra não incluir a publicidade de

cerveja?

Um dos grandes problemas é que a cerveja é a bebida

alcoólica mais consumida em todo o Brasil. Mais de

70% de todo o volume de álcool consumido no país são

em forma de cerveja. Outro ponto é que a cerveja é a

primeira bebida que os jovens começam a consumir. Além

do mais, existe uma grande estratégia de distribuição

de cerveja pelo território nacional que não tem paralelo

no mundo. Qualquer boteco, em qualquer lugar – seja

o lugar mais afastado possível – tem cerveja. Assim, a

droga que mais provoca impactos negativos entre os

jovens fica de fora dessa regulamentação, o que é um

absurdo.

O problema se restringe ao alcoolismo ou o

consumo desse tipo de bebida pode causar outros

problemas?

Todas as evidências mostram o seguinte: quanto mais

precoce é o consumo, maior é o número de problemas.

No Brasil, o consumo regular de bebida alcoólica se dá a

partir dos 14 anos de idade. Isso é grave, pois sabemos

que quanto mais cedo o jovem começa a beber, mais

vulnerável ele fica ao consumo de outros tipos de droga.

Por isso eu falo que essa liberação do consumo de cerveja

no Brasil inviabiliza qualquer prevenção ao consumo de

drogas ilícitas, como a maconha.

Juventude e Bebidas Alcoólicas RONALDO LARANJEIRA

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O que significa consumo regular? É todo dia, todo

fim de semana?

Significa que a pessoa consume bebida alcoólica pelo

menos uma vez por semana. E esse consumo também

tem sido percebido em pessoas muito jovens.

Quando essa mudança de comportamento foi

percebida?

Essa mudança já acontece há alguns anos, mas

tínhamos poucas pesquisas a esse respeito. Fizemos

uma pesquisa há cerca de um ano que nos mostrou

dados de forma inequívoca. O uso precoce de bebidas

alcoólicas entre adolescentes é um problema de saúde

pública.

E quanto às crianças de até 12 anos de idade? De

que forma elas são impactadas por esse tipo de

publicidade?

As crianças são expostas desde a mais tenra idade a

uma mensagem absurda. Elas estão sendo estimuladas

ao consumo precoce e por meio de uma concessão

pública, que é a televisão. A sociedade permite que

aquilo que deveria ser um bem público seja um meio

para vender cerveja. As crianças, até às oito horas da

noite, são expostas de forma vil. Isso é criminoso! O

Estado brasileiro está compactuando com a exposição

de crianças à publicidade de um produto cujo consumo é

ilegal para menores de 18 anos. Isso não é um detalhe.

Juventude e Bebidas Alcoólicas RONALDO LARANJEIRA

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Como é que se permite a veiculação desse tipo de produto

no horário em que as crianças mais assistem à televisão,

sem nenhum tipo de restrição? A gente não pode se

esquecer disso: a televisão é uma concessão pública.

Você percebe algum tipo de mudança na indústria

com relação a essa questão?

Não vejo nenhum esforço. Pelo contrário. A propaganda

no Brasil é agressiva e continua atingindo crianças e

adolescentes. Isso não mudou.

Você apoia uma regulamentação do Estado?

Apoio uma regulamentação da sociedade. Não podemos

mais permitir que se faça publicidade para nossos

filhos, nossas crianças, de produtos que são os mais

danosos.

Quais são os danos que o consumo excessivo de

álcool pode causar em um adolescente?

O problema mais frequente causado por adolescentes

que começam a se intoxicar são os acidentes de trânsito.

Nós não estamos falando do padrão de consumo de

um jovem que toma um copo de cerveja na hora do

almoço com os pais. Estamos falando de um padrão de

consumo que ocorre predominantemente fora de casa,

em ambiente público, e na forma de intoxicação – por

exemplo, tomar 10 cervejas. Esse é o padrão que nós

Juventude e Bebidas Alcoólicas RONALDO LARANJEIRA

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chamamos de ‘binge’ – consumo intenso em curto

espaço de tempo. Isso expõe os jovens a acidentes,

a sexo indesejável, a comportamentos de risco, aos

problemas de saúde física, além da dependência ao

consumo de álcool e outras drogas.

O ‘binge’ é típico dos adolescentes?

Bom, isso ocorre no mundo todo. No Brasil, o consumo

de álcool é predominantemente feito fora de casa. Em

outros países, isso é diferente. Nos Estados Unidos,

por exemplo, os jovens bebem mais dentro de casa,

é outro comportamento. Aqui no Brasil, tudo facilita a

intoxicação. Não há controle social. A lei que proíbe a

venda de bebidas alcoólicas para menores de idade não

é seguida, nem existe fiscalização. Nos Estados Unidos,

isso é bem fiscalizado e a lei só permite o consumo de

bebidas depois dos 21 anos.

Existem outras formas de a indústria de bebidas

alcoólicas chegar ao público jovem sem ser por meio

da publicidade tradicional, como a televisiva?

A indústria tem uma rede de distribuição que facilita o

consumo. O próprio estabelecimento onde se consome

muitas vezes estimula isso. É uma estratégia ampla e

agressiva de vendas que tem o jovem como target, um

alvo muito fácil. A publicidade faz parte dessa estratégia.

Mas há também a rede de distribuição, os eventos –

como o Skol Beats, por exemplo. A promoção da bebida

alcoólica é muito forte.

Juventude e Bebidas Alcoólicas RONALDO LARANJEIRA

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Hoje, as grandes comemorações nacionais estimulam o consumo desse tipo de bebida. É um traço somente cultural?

Isso é estimulado, de alguma forma, pela própria

indústria do álcool. Não é apenas uma manifestação

espontânea, cultural. No meu modo de ver, isso também

faz parte da estratégia de vendas. E tem custo.

Qual é o custo desse cenário para a saúde pública?

Esse é um dado absolutamente importante que o Brasil

não tem.

E com relação aos programas preventivos, há algo sendo feito no Brasil que tenha relevância?

Desconheço. Existe muito jogo de cena, de dizer que

faz. Mas nada que tenha realmente impacto. Na Suécia,

por exemplo, há um trabalho muito interessante nesse

sentido. Eles fazem uma identificação precoce do

problema. Então, se alguém é pego usando droga ou

bebendo demais na rua ou na escola, é encaminhado

imediatamente a um acompanhamento. Há sempre

uma resposta da sociedade. A pessoa não é presa, ela é

tratada por uma rede assistencial que não se restringe

apenas à psiquiatria. Lá, há uma possibilidade de

tratamento e que, aqui, nós nem sonhamos em ter.

Juventude e Bebidas Alcoólicas RONALDO LARANJEIRA

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“As empresas de cerveja fazem publicidade do jeito que querem”

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F e r n a n d o L a c e r d a D i a s é procurador do Ministério Público Federal [MPF] em São

José dos Campos, uma das cidades mais industrializadas

do Estado de São Paulo. Em outubro de 2008, ele propôs

uma ação civil pública contra os três maiores fabricantes

de cerveja do Brasil – Ambev, Primo Schincariol e Femsa.

Foi a primeira vez em que o MPF questionou as estratégias

de comunicação mercadológica dessas marcas, com pedido

de indenização no valor de R$ 2,7 bilhões pelos danos

sociais inerentes ao consumo desse tipo de bebida alcoólica,

que, no entendimento do procurador, está relacionado ao

investimento maciço dos fabricantes em publicidade.

Nesta entrevista ao Projeto Criança e Consumo, Fernando

Lacerda Dias afirma que o Estado precisa regulamentar a

questão e fiscalizar a veiculação de publicidades abusivas,

quase sempre direcionadas ao público infantojuvenil.

Ele explica que a atuação do Conselho Nacional de

Autorregulamentação Publicitária [Conar] é restrita e

ineficiente porque não tem poder legal. Ele ainda defende

“uma atuação sistematizada” do Estado brasileiro.

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Projeto Criança e Consumo - O senhor propôs uma ação civil pública contra os três maiores fabricantes de cerveja do país. O que motivou essa ação? Quais são os fundamentos e os objetivos dela?

Fernando Lacerda - A ação foi preparada com quase um ano de estudo para o levantamento de informações, as quais possibilitaram identificar que a atividade de publicidade no ramo de cerveja gera aumento no consumo dessa bebida. Tal aumento repercute em danos sociais, como violência, tanto urbana quanto doméstica, doenças incapacitantes, acidentes de trânsito, enfim, toda a gama de danos sociais que são inerentes ao consumo de bebidas alcoólicas e que estavam sendo incrementados em razão do investimento em publicidade. Investimento, inclusive, que foi calculado em 2007 em quase R$ 1 bilhão. Então, havia um investimento altíssimo em publicidade de cerveja, e que não estava servindo unicamente para fidelizar clientes.

Essa ação pública não é contra o consumo, não é para ressarcir os danos que são inerentes ao consumo. Ela é para ressarcir o impacto da publicidade nos danos sociais. O enfoque é um pouco diferente do rotineiro.

E isso significa que eles estão sujeitos a pagar indenização?

Sim. O valor dessa indenização foi calculado, em parte, pelo aumento de gastos no SUS [Sistema Único de Saúde] e no aumento de gastos no INSS decorrentes do consumo de bebida alcoólica. Mas, com relação ao restante dos danos sociais que são incomensuráveis – não dá para medir o aumento de violência doméstica, o

Juventude e Bebidas Alcoólicas FERNANDO LACERDA

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aumento de acidentes automobilísticos, porque não há dados para se fazer isso –, pedi que o juiz arbitrasse um valor calculado na proporção do investimento realizado em publicidade. Como esse investimento havia sido de quase R$ 1 bilhão, o valor proposto de indenização foi de R$ 2,7 bilhões.

Essa indenização iria para fundos públicos?

Sim. Existe o Fundo de Direitos Difusos, embora eu peça para que, antes de ir para esse fundo, a indenização vá para o Fundo do Departamento Antidrogas, porque existe uma vinculação direta com o objeto da causa, o alcoolismo.

O senhor conseguiu fazer um cálculo de gastos públicos com a questão da saúde?

Não são dados que tenham uma uniformidade. São dados públicos, mas, dependendo do critério de levantamento, pode haver uma não uniformidade das informações.

Pergunto isso porque alguns especialistas entrevistados pelo Criança e Consumo afirmaram ser muito difícil fazer esse levantamento, até porque os problemas do consumo de álcool não estão relacionados apenas à questão do alcoolismo.

Exato. Há variáveis que interferem. Essa uniformidade de dados é difícil justamente por conta da dificuldade em haver uma unidade de critérios, em se separar as

Juventude e Bebidas Alcoólicas FERNANDO LACERDA

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variáveis. Mas são dados oficiais e podemos trabalhar

com eles.

É a primeira vez que o senhor questiona a comunicação mercadológica de fabricantes de bebidas alcoólicas?

Essa ação contra os três maiores fabricantes de cerveja

é a primeira. Mas, com base até no próprio Código de

Autorregulamentação Publicitária do Conar, questionei

algumas campanhas pontuais, como a publicidade da

Skol no Carnaval de 2009, a da Brahma cujo protagonista

é o Ronaldo (jogador de futebol) e outra, também da

Brahma, de um rodeio. São três publicidades específicas

que já foram ajuizadas.

E por que cerveja?

A minha atuação está direcionada mais especificamente

à cerveja porque, dentre as bebidas alcoólicas, é a

que tem um impacto maior na população, porque é a

mais consumida no país, e porque não existe nenhuma

regulamentação legal de publicidade sobre ela. As

bebidas de maior teor alcoólico estão, bem ou mal,

reguladas pela lei nº 9.294/1996, que limita a questão

do horário de veiculação delas na televisão.

Essa lei acima determina que bebida alcoólica é aquela com mais de 13 graus na escala Gay-Lussac (GL). No entanto, outras leis no Brasil consideram bebida alcoólica aquela com teor de 0,5 grau GL.

Juventude e Bebidas Alcoólicas FERNANDO LACERDA

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Por que a lei que regula a publicidade é diferente das outras?

Não tem explicação que seja razoável ou lógica. Foi uma decisão política do Congresso Nacional, que considerou que, para efeito dessa restrição publicitária, é considerada bebida alcoólica apenas aquela acima de 13 graus GL. Foi, basicamente, pressão política.

Sobre esse aspecto, tem outra ação pública do Ministério Público Federal de Curitiba, da promotora Antonia Lelia. O objetivo dessa ação era que o conceito de bebida alcoólica fosse trazido para 0,5 grau GL. Essa ação foi julgada improcedente.

Qual foi o argumento para julgá-la improcedente? Como o Judiciário trata essa questão?

O juiz entendeu que para efeito dessa questão publicitária poderia haver conceitos diferentes. Ele, inclusive, valeu-se de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que é mais antiga. O Ministro Nelson Jobim era relator, e a composição majoritária do Supremo entendeu que não havia nenhuma inconstitucionalidade nisso e que a lei estava perfeita.

A venda de bebidas alcoólicas é ilegal para menores de 18 anos. Então, em termos legais, quais são os problemas de anunciar esses produtos para o público infantojuvenil?

Esse é um dos fundamentos dessas ações que eu propus contra as publicidades específicas. O próprio Código de

Juventude e Bebidas Alcoólicas FERNANDO LACERDA

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Autorregulamentação Publicitária do Conar prevê que publicidades de cerveja não podem ser atrativas para o público jovem. E quase todas elas são. Usam humor, linguagem juvenil e até símbolos e personalidades que atraem esse público. Não existe nenhuma lei, nenhuma

norma que controle isso no Brasil. Consequentemente,

não há nenhum órgão público que faça essa fiscalização.

Então, o único controle é do Conar.

A minha visão crítica é a seguinte: as normas de

autorregulamentação são limitadas, embora representem

algum avanço. Mas a aplicação e a fiscalização dessas

normas pelo Conar são totalmente falhas. O Conar não

tem uma preocupação realmente efetiva em fiscalizar.

Não tem poder porque não pode aplicar multas. Ele

não pode, sequer, determinar alguma coisa. Ele apenas

recomenda. E, mesmo assim, faz de maneira bastante

tímida. Muitas vezes, o Conar fiscaliza a questão da

concorrência – se alguma marca se sentiu lesada pela

publicidade de outra. E quando recomenda a suspensão

de uma campanha, ela já saiu do ar. Não faz sentido,

fica uma coisa inútil. Na prática, essas empresas de

cerveja fazem publicidade do jeito que querem.

Como tais empresas recebem as denúncias do Ministério Público Federal? Existe um diálogo?

O diálogo é muito restrito. Até porque elas estão

nessa cultura de atuar da forma que bem entendem

sem nenhuma consequência. Quer dizer, a atuação do

Ministério Público Federal ainda não foi revertida, em

termos práticos, em alguma limitação. Ainda não tive

nenhum contato com as empresas, não as procurei e

Juventude e Bebidas Alcoólicas FERNANDO LACERDA

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não fui procurado por elas, mas acho que, dentro do

panorama atual, a realidade daquilo que deve ser está

muito distante. E não vejo uma motivação porque, na

verdade, as autoridades até agora não tiveram sanção

para que as empresas fizessem um ajustamento nos

moldes que eu acho que deveriam ser. E para haver um

ajustamento de conduta que não seja o ideal, melhor não

fazer. O ajustamento de conduta tem de ser integral.

E qual seria o ajustamento ideal?

O Código Brasileiro de Autorregulamentação

Publicitária e o Código de Defesa do Consumidor no

artigo 37 falam de questões relevantes e determinam a

publicidade abusiva. Não é toda publicidade de cerveja

que é abusiva. Pode existir publicidade de cerveja, a

Constituição permite isso. Mas ela será abusiva quando,

primeiro, estimular o consumo do produto. Segundo,

quando descumprir algumas das normas. E quais são

essas normas? Elas têm de se pautar pelo princípio

da responsabilidade social; não podem, em nenhuma

hipótese, ser atrativas para jovens e adolescentes,

muito menos para crianças; não podem estimular o

consumo; têm de se limitar ao produto e às qualidades

do produto.

O senhor também defende a restrição de horário?

Quanto à restrição de horário, acho que não tem outro

caminho senão a aprovação da lei no Congresso Nacional

que restrinja o horário para bebidas com teor alcoólico

Juventude e Bebidas Alcoólicas FERNANDO LACERDA

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menor de 13 graus GL. Outro caminho seria entrar

com uma ação civil pública ou uma Medida Provisória.

Mas aí tudo depende, na realidade, de uma iniciativa

política. E o Ministério Público não tem atuação nesse

campo político.

Essas campanhas têm um propósito claro de cativar

o público jovem?

Sim, 90% das campanhas de cerveja são mais atrativas

para o público jovem do que para o público adulto.

A linguagem que é utilizada está muito mais vinculada

ao universo juvenil do que ao universo adulto. E isso

estimula, cativa e induz ao consumo da bebida alcoólica.

A única marca que eu observo ter uma publicidade

diferenciada é a Bohemia. É uma publicidade mais

voltada ao público adulto, que realça as características

e as qualidades do produto. Essas marcas que investem

maciçamente em publicidade – Skol, Brahma, Nova

Schin, Kaiser, enfim, as mais populares – atingem

diretamente o público jovem.

Além da publicidade tradicional, veiculada na

mídia, o senhor tem interesse em investigar outras

estratégias de marketing dessas empresas?

Acho esse segmento muito relevante também. Mas

eu faço parte do Ministério Público Federal, e o único

fundamento que motiva a minha atuação é a televisão,

por ser uma concessão federal. Nesses outros segmentos

de publicidade, não teria como sustentar uma atribuição

Juventude e Bebidas Alcoólicas FERNANDO LACERDA

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do MPF. Às vezes, as coisas estão um pouco relacionadas,

então estou tentando alguma estratégia que me permita

propor uma ação para que algum órgão do Executivo

comece a fazer a fiscalização que o Conar não faz. Com

a ação do Executivo, seria possível abranger a discussão,

sem ficarmos restritos à publicidade de televisão.

O Poder Judiciário, de modo geral, está preparado para lidar com esse tema no Brasil?

É um tema novo. É difícil avaliar o Judiciário porque,

na verdade, ele nunca foi testado para essas questões.

A primeira ação pública ainda está correndo, e o

Judiciário até agora não se pronunciou. As outras três,

nas quais eu pedi duas liminares, não tiveram uma

boa resposta. De fato, tudo o que é muito novo gera

resistência.

E quais são os principais desafios?

Hoje, o maior desafio é conseguir que essa normatização,

que já existe, que é principalmente do Código de

Autorregulamentação Publicitária, seja aplicada. Para

isso, algum órgão público tem de entrar no campo.

O Conar não vai dar conta disso sozinho. É necessária

alguma atuação do Poder Executivo, porque o Ministério

Público também não dá conta, porque não tem como

virar fiscal de propaganda de cerveja. Eu tenho tido

algumas iniciativas, mas são pontuais, são isoladas.

Precisamos de uma atuação sistematizada.

Juventude e Bebidas Alcoólicas FERNANDO LACERDA

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“A autorregulamentação do Conar só funciona no eixo

Rio - São Paulo - Cannes”

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E d g a r d R e b o u ç a s é jornalista e coordenador do Observatório da Mídia Regional,

que pesquisa e analisa os conteúdos veiculados nos meios de

comunicação. Também é diretor de Relações Internacionais

da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da

Comunicação [Intercom], editor da Global Media Journal

no Brasil e professor da Universidade Federal do Espírito

Santo.

Foi em sala de aula que surgiu a ideia de pesquisar a

publicidade de bebidas alcoólicas veiculadas em rádios.

O resultado chamou atenção para o descumprimento de leis

que regulam o tema, além da constatação de ser urgente

a necessidade de serem criadas regras mais rígidas para

acabar com os abusos cometidos nos meios de comunicação.

Nesta entrevista ao Projeto Criança e Consumo, Edgard diz

que a comparação do Brasil com outros países torna ainda

mais constrangedora a apatia da sociedade.

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Projeto Criança e Consumo - No seminário preparatório

para a I Conferência Nacional de Comunicação

organizado pelo Conselho Federal de Psicologia,

você apresentou o resultado de uma pesquisa que

realizou sobre o panorama da publicidade de bebidas

alcoólicas nas rádios do Recife. Por que o foco em

rádio?

Edgard Rebouças - Essa pesquisa foi feita em 2008

pelo Observatório de Mídia Regional, no Recife. Em

Pernambuco, e em boa parte do Nordeste, há muitas

indústrias de cachaça. De acordo com a Lei nº 9.294/1996,

é proibida a publicidade de bebidas com mais de 13 graus

Gay-Lussac (GL) das 6 h às 21 h. Na ocasião da pesquisa,

eu dava aulas de Ética e Legislação em Publicidade e, no

dia em que falei dessa regulamentação para os alunos,

eles disseram que a publicidade era liberada no Estado.

A lei é federal, portanto, deve ser cumprida em todo o

território nacional. Foi a partir dessa experiência com

meus alunos que criamos um grupo no Observatório para

fazer um acompanhamento. Descobrimos que boa parte

das rádios no Recife veiculava publicidade de cachaça,

de vodca, de rum o dia inteiro, o que seria proibido.

A maioria desses produtos patrocinava o campeonato

pernambucano de futebol, além de vários outros

programas ligados ao futebol pernambucano. No entanto,

a lei também fala que não pode haver associação de

bebida alcoólica com esportes olímpicos. E futebol é

um esporte olímpico. Então, achamos tudo isso muito

estranho. Fizemos um levantamento e constatamos a

ilegalidade no caso de algumas rádios.

Juventude e Bebidas Alcoólicas EDGARD REBOUÇAS

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Há uma noção equivocada de que o rádio é uma mídia menor. No entanto, sabemos que o rádio tem um alcance enorme. Qual o problema, então, de infringir, no rádio, a legislação que regulamenta a publicidade de bebidas com alto teor alcoólico?

O rádio continua sendo, no Brasil, a mídia de maior

penetração. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia

e Estatística [IBGE] mostram que, desde meados dos

anos 90, a televisão passou o número de rádios nos

lares brasileiros. Mas por causa da mobilidade, o rádio

pode ser ouvido em casa, no carro, no MP3. Então,

as pessoas possuem mais de um aparelho de rádio e

continuam usando-o muito, principalmente os jovens,

até por conta da programação musical. Isso leva a uma

incidência grande de publicidades dirigidas, no rádio, a

tal público.

Além da questão do horário, qual é o problema ético em anunciar esses produtos para o público jovem?

A restrição das 6h às 21h foi pensada justamente por

conta do público infantojuvenil. A bebida é um fator

de socialização muito grande, e a publicidade motiva

um consumo cada vez mais intenso. A linguagem é

especificamente direcionada ao jovem. É uma publicidade

feita para novos usuários de bebida alcoólica. Então, é

feita diretamente para o público a partir dos 12 anos

de idade.

A publicidade se vale de seus mecanismos, muito

ligados à Psicologia, para falar diretamente com esse

público que ainda não tem os filtros necessários de

Juventude e Bebidas Alcoólicas EDGARD REBOUÇAS

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discernimento. Além de não ter tais filtros, tem todo o

anseio de pertencimento, de querer fazer parte de um

grupo social. “Fazer parte de um grupo é legal porque

eu tomo cerveja, é legal porque eu tomo cachaça”.

Aliás, o público jovem toma mais cachaça e vodca do

que cerveja. E, no Nordeste, isso é mais forte ainda

porque essas bebidas são muito baratas. Uma garrafa de

cachaça ou mesmo de vodka, dependendo da qualidade,

pode ser vendida por R$ 4.

Que tipo de linguagem a indústria utiliza para

chamar a atenção do público jovem?

São comuns propagandas com personalidades ligadas à

música e, principalmente, personagens ligados à questão

da conquista, da virilidade. A publicidade de bebida

alcoólica trabalha com um elemento básico da Psicologia

que é a identificação, a projeção. A publicidade usa

esses mecanismos da identificação de forma muito forte.

Basta pegar as publicidades de cervejas, que têm cerca

de 4,8 graus GL, ou as de bebidas alcoólicas com mais

de 13 graus GL, para ver que elas exaltam um ideal de

personagem. Não interessa ter a cerveja em casa. Não

interessam as propriedades do objeto. O que interessa

é ser igual a quem consome aquele produto.

O problema do consumo de bebidas alcoólicas por

jovens atinge todas as classes socioeconômicas?

Os jovens, mesmo os jovens de classes mais altas, não

têm muito dinheiro para gastar. Eles recebem mesada,

Juventude e Bebidas Alcoólicas EDGARD REBOUÇAS

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não têm renda própria. Então, eles preferem comprar

uma garrafa de vodca barata porque vão se embriagar

com mais facilidade. Para ir a uma festa, ele vai ter de

tomar cinco, seis latinhas de cerveja. Com esse dinheiro,

ele pode comprar duas garrafas de vodca. E tem outro

detalhe: uma garrafa ele pode compartilhar com os

amigos. A publicidade estimula isso. Você não vê uma

publicidade de bebida em que alguém bebe sozinho.

No ano passado, foi aprovado um projeto de lei em

uma das comissões da Câmara Federal para proibir

publicidade de bebidas com alto teor alcoólico. Mas

esse projeto não inclui cerveja. Por quê?

A lei foi elaborada em 1996 e fala de bebida, de tabaco,

de medicamento e de agrotóxico. Na parte de bebida,

houve uma grande discussão em relação ao horário. Por

que restringir publicidade de 6h às 21h? Para proteger

o público infantil.

Um outro debate foi sobre a questão do teor alcoólico.

O parágrafo único do artigo primeiro dessa lei fala o

seguinte: “para efeitos dessa lei, bebida alcoólica é

aquela bebida potável com mais de 13 graus na escala

Gay Lussac (GL)”. Todas as outras legislações no

Brasil sobre bebida alcoólica, seja de trânsito, seja de

fabricação, fala que bebida alcoólica é aquela potável

com mais de 0,5 graus GL. Só para a publicidade é que

é acima de 13. E a cerveja tem teor alcoólico em torno

de 4,8 GL.

Juventude e Bebidas Alcoólicas EDGARD REBOUÇAS

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Mas por que só para essa lei é considerada bebida alcoólica apenas aquela com mais de 13 graus GL?

Descobri que a bancada do Rio Grande do Sul fez

uma grande pressão para esse número. Existe uma lei,

conhecida como Lei do Vinho, que fala que o vinho de

mesa é todo aquele até 13 graus GL. E como a indústria

de vinho brasileira estava concentrada no Rio Grande do

Sul, se entrasse uma lei que proibisse a publicidade de

vinho, a economia da região seria muito prejudicada.

O pessoal de cerveja nem se manifestou, porque a

concentração de álcool é muito mais baixa. Com essa

pressão, a lei de 96 beneficiou o vinho, as bebidas Ice,

as cervejas e os coolers.

Os fabricantes de bebidas alcoólicas são grandes anunciantes nas rádios do Nordeste?

A base da publicidade da produção radiofônica no

Nordeste é cerveja, cachaça e vinho. Isso foi constatado

na pesquisa do Observatório.

Qual a sua opinião sobre o projeto de lei que sugere a alteração da lei que regulamenta a publicidade de bebidas alcoólicas?

O problema é que esse projeto está sofrendo sérias

resistências do mercado. A indústria da cerveja,

por exemplo, está entrando com a alegação de que

a regulamentação fere a liberdade de expressão

comercial.

Juventude e Bebidas Alcoólicas EDGARD REBOUÇAS

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Recentemente, o ministro da Saúde reforçou que, para

o Ministério, bebida alcoólica é aquela com 0,5 grau

GL. A regulamentação internacional também determina

0,5 grau GL, assim como a regulamentação de bebida

registrada. Só para essa lei da publicidade que é

diferente. E isso é uma discrepância.

Um argumento recorrente do mercado publicitário

com relação aos projetos de regulamentação de

comunicação mercadológica é que já há uma

autorregulamentação. Como você avalia a ação

do Conar?

O que nós descobrimos nessa pesquisa é que o Conar

não tem controle nenhum sobre os anunciantes que não

são ligados à Associação Brasileira de Anunciantes [Aba],

aos veículos de comunicação que não são ligados à

Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão

[Abert] e às agências de publicidade que não são ligadas

à Associação Brasileira das Agências de Propaganda

[Abap].

No Nordeste, os fabricantes de bebidas não são ligados

à Abap. Então, eles não devem nada ao Conar pois não

assinaram o Código de Autorregulamentação Publicitária.

Observamos também que algumas emissoras que

veiculam publicidade de bebidas alcoólicas são ligadas

ao Conar, mas só na matriz em São Paulo ou no Rio de

Janeiro. As afiliadas não dão a mínima para o Conar.

Sempre brinco e digo que a autorregulamentação do

Conar só funciona no eixo Rio -São Paulo - Cannes (este

último onde é realizado o prêmio mais importante da

Juventude e Bebidas Alcoólicas EDGARD REBOUÇAS

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publicidade mundial). Mas no resto do Brasil isso não

acontece.

O Conar quer vender a imagem de que ele é o legítimo

representante dos interesses da sociedade. Não é. Ele

é representante dos interesses dos anunciantes, dos

veículos e das agências.

E o argumento de que a regulamentação do Estado fere a liberdade de expressão comercial?

Não existe em lugar nenhum, seja na regulamentação, na

legislação brasileira, esse termo ‘liberdade de expressão

comercial’. O que existe é ‘liberdade de expressão

artística’ e ‘liberdade de expressão jornalística’. Portanto,

é um argumento furado. O comércio é regulamentado

pelo Estado. Está dentro da ordem econômica, não está

dentro da ordem social. E a liberdade de expressão

aparece em dois pontos da Constituição. Está no artigo

5°, que é dos direitos e garantias individuais, e no

artigo 220, que fala da comunicação na ordem social.

A publicidade está dentro da ordem econômica, que é

outra parte da Constituição.

Há exemplos de países que contemplam a questão da liberdade de expressão comercial e que possuem uma regulamentação forte com relação à publicidade de bebida alcoólica?

Sim. No Canadá, por exemplo, há regulamentação

tanto para publicidade dirigida a crianças como para

publicidade de bebida alcoólica. Há um entendimento

Juventude e Bebidas Alcoólicas EDGARD REBOUÇAS

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de que a regulamentação é de interesse público, e não

de interesse privado. E quando você colide um direito

de liberdade de expressão comercial com a questão da

saúde dos jovens e das crianças, o direito à saúde se

sobrepõe. O que é interessante no Canadá é o seguinte:

a regulamentação não é só na publicidade, mas em todo

o processo produtivo. O marketing tem os quatro P’s:

produto, praça, preço e promoção. Como eles influenciam

nisso? O produto tem de ter o teor alcoólico claramente

especificado. Com relação ao preço, todos os produtos são

sobretaxados, então se você quer comprar uma bebida,

vai pagar muito imposto sobre ela. É o que acontece no

Brasil com o cigarro. No Canadá, não se vende bebida

alcoólica em supermercados, em lojas, em padarias, em

armazéns. Vende-se em bares. Outro ponto importante

é a questão da publicidade: não existe a possibilidade

de ela gerar um desejo, uma necessidade no jovem. Ele

pode até ser influenciado pelo pai, pelos amigos que estão

bebendo, mas não vai sofrer influência do personagem

da série de televisão, da novela, do atleta...

É possível se fazer uma publicidade mais responsável para esses produtos?

Sim. Um exemplo são as publicidades de whisky. Os

grandes fabricantes de whisky são de transnacionais

originadas de países que têm uma regulamentação

forte nesse sentido, como a Inglaterra e o Canadá. Eles

fazem a publicidade para outros países consumidores

responsavelmente. Falam do produto, de suas qualidades.

E não que a pessoa vai conquistar mais ou ter mais

amigos. A publicidade é sobre o produto. A mesma coisa

aconteceu com a indústria de cigarro no Brasil.

Juventude e Bebidas Alcoólicas EDGARD REBOUÇAS

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Há alguma semelhança entre a regulamentação da publicidade de bebidas alcoólicas e a da publicidade de cigarro?

A mesma lei que fala da publicidade de bebida fala da publicidade de cigarro. Mas com relação à publicidade de cigarro, o Governo entendeu que era de interesse público. E olha a diferença que temos dos índices de doenças provocadas pelo cigarro de 2000 para cá! A mesma coisa foi feita com a Lei Seca, embora diga respeito, por enquanto, somente à segurança no trânsito. Os resultados são de médio e longo prazo. E a indústria do cigarro fatura muito mais do que faturava naquela época, porque eles direcionam o produto para aqueles que já são consumidores, ou redirecionam para a exportação. A indústria de bebidas também tem de fazer a mesma coisa.

Até agora, falamos da publicidade tradicional em rádio, TV, internet. Existem outras formas de a bebida alcoólica chegar até o público?

Com relação a essas estratégias, por exemplo, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica [Cade] aplicou uma multa histórica na Ambev – de R$ 3,9 milhões – porque a empresa fazia uma estratégia de venda casada, o que é proibido no país. A Ambev obrigava os bares a vender só os produtos da marca, caso contrário eles não entregavam Guaraná Antarctica. E todo mundo quer Guaraná Antarctica.

Outra estratégia é usar elementos já massificados na publicidade no material impresso colocado dentro dos bares. Então, nos pontos de venda, não tem só o preço

Juventude e Bebidas Alcoólicas EDGARD REBOUÇAS

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da cerveja. Tem a figura da mulher gostosona ao lado

do preço da cerveja. Associa-se sempre a imagem da

sedução e da libido. Também existem os pontos de

degustação dentro dos supermercados. Degustação de

vinho, de cerveja, de vodca. E geralmente isso acontece

aos sábados, quando os supermercados estão cheios.

Para esse tipo de estratégia não existe nenhuma regulamentação?

Não. Também não há proposta de regulamentação.

Uma coisa interessante nessa lei de 1996 é o seguinte:

para agrotóxicos, alimentos e cigarros existe uma série

de restrições, inclusive em relação a pontos de venda.

Para a bebida, é só a restrição de horário.

Quanto ao cigarro, a lei diz que deve existir na embalagem

a informação de que ele faz mal à saúde, que causa

câncer, que causa impotência sexual, etc. No caso das

bebidas, não há nada. A indústria não é obrigada a

comunicar na embalagem que o produto faz mal à saúde

ou causa dependência.

Então essa legislação precisa ser revista?

Tem de ser revista. Mas o peso das agências, dos

anunciantes e dos veículos de comunicação é muito

forte com o discurso escuso da liberdade de expressão,

da suposta censura.

São 146 projetos de lei tramitando na Câmara Federal e

no Senado sobre bebidas alcoólicas. Desde a proibição

Juventude e Bebidas Alcoólicas EDGARD REBOUÇAS

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da fabricação e da venda, até a regulamentação da

publicidade.

Não é uma contradição? Se o próprio Conar entende que é preciso regulamentar esse tipo de publicidade e já identifica que alguns elementos podem impactar um público jovem e infantil, por que ele se coloca contrário a regulamentação estatal?

Porque o Código Brasileiro de Autorregulamentação

Publicitária é de mentirinha. O código é uma ilusão de

que está havendo controle. E não está. É ótimo que

exista o código, mas ele não funciona.

Existe uma apatia da sociedade em relação a essa questão? Falta informação?

Falta informação à sociedade para saber reivindicar seus

direitos. E falta informação à sociedade ao acreditar que

uma entidade com interesses privados nos representa.

Quem nos representa, bem ou mal, são os deputados e

os senadores. Pelo menos, espera-se que eles estejam

defendendo os interesses públicos, por mais que no

final das contas eles defendam os interesses privados

também.

Juventude e Bebidas Alcoólicas EDGARD REBOUÇAS

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Juventude e Bebidas Alcoólicas EDGARD REBOUÇAS

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“O comércio é tão liberal que só falta vender bebida em farmácia”

Foto

: Le

onar

do A

vers

a

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R u y C a s t r o é reconhecido como um dos escritores mais respeitados

do Brasil. Livros como “Anjo Pornográfico”, biografia

de Nelson Rodrigues, e “Chega de Saudade”, sobre a

história da Bossa Nova, são alguns exemplos da obra

do autor, que também é comentarista regular do jornal

Folha de S.Paulo.

Em 2007, Ruy escreveu uma série de artigos para o

jornal, em que criticava duramente as campanhas

de cerveja no Brasil. “Vejo pouco televisão e menos

ainda comerciais. Mas, sempre que um desses me

pega desprevenido, percebo que as imagens contêm

uma das três alternativas: carro em alta velocidade,

garotas de biquíni numa praia de estúdio ou jovens

com jeito e fala de sorvete na testa”, afirmou no texto

“Emoções Assassinas”, publicado na Folha em 28 de

abril daquele ano.

A indignação do autor com a falta de regulamentação

da publicidade de bebidas alcoólicas tem, entre outras,

uma razão clara: ele sofreu na pele problemas de

alcoolismo e não bebe há 21 anos.

Nesta entrevista ao Projeto Criança e Consumo, Ruy

Castro afirma que é um dever chamar a atenção da

sociedade para o problema.

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Projeto Criança e Consumo - Hoje, no Brasil, muitas comemorações populares são regadas a bebidas alcoólicas. Quando foi que a cerveja e a cachaça passaram a fazer parte do Carnaval, do futebol e do São João?

Ruy Castro - Não só hoje, mas em todos os tempos –

no Brasil, desde os tupinambás, antes do primeiro

português – a bebida sempre esteve associada a

comemorações. Não há nenhuma novidade nisso.

Mas e com relação aos patrocínios? O camarote mais conhecido do Carnaval carioca é de uma marca de cerveja...

A novidade, no caso, não está na cerveja, mas no

camarote. O irônico da coisa é que o festival de música

Free Jazz, que interessava à meia-dúzia de pessoas,

teve de acabar porque um evento não podia mais ser

patrocinado por uma marca de cigarros.

Na sua avaliação, qual é o papel da publicidade no desenvolvimento da cultura do álcool? Essa cultura é, de alguma forma, sustentada e legitimizada pela indústria da bebida?

A publicidade está aí pra isso mesmo, pra vender

produtos. É a função dela. No passado, anunciava-se a

cocaína da Bayer, sabia? Hoje, não podem anunciar nem

cigarros. E já há uma certa regulamentação quanto à

propaganda de bebidas, mas, na minha opinião, mal

dirigida.

Juventude e Bebidas Alcoólicas RUy CASTRO

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Você apoia a regulamentação desse tipo de

publicidade? Como você vê o argumento do mercado

de que proibir publicidade fere o princípio de

“liberdade de expressão comercial”?

Não acho que regulamentar a publicidade fere a

liberdade de expressão. Regulamentar não é proibir.

Acho que não haveria problema algum em anúncios

de destilados em revistas ou na televisão depois das

onze horas da noite – nem de cerveja. O que não pode

é a televisão bombardear as crianças com anúncios de

cerveja da manhã até a noite, esses anúncios terem

um apelo infantil e uma cerveja patrocinar a Seleção

Brasileira.

A publicidade de cigarro, que de alguma forma tem um

paralelo com bebida alcoólica, foi totalmente vetada

na TV. Você acredita nesse tipo de política?

Sou contra essa histeria antitabagista, principalmente

a patrocinada pelo governador de São Paulo, ao mesmo

tempo em que existe grande tolerância com a publicidade

de cerveja, que não sofre nenhuma restrição.

Em sua opinião, existe alguma influência da

publicidade no comportamento de crianças e

adolescentes com relação ao consumo de álcool?

Evidente. O objetivo é fazer o jovem se interessar cada

vez mais cedo pela bebida – como se o jovem brasileiro

já não estivesse bebendo desde os nove anos.

Juventude e Bebidas Alcoólicas RUy CASTRO

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Há uma regulamentação para a publicidade de

bebidas de alto teor alcoólico, mas que exclui a

cerveja. Qual é a sua opinião sobre isso?

O invencível lobby dos fabricantes de cerveja se juntou

à ignorância dos políticos – aliás, uma “ignorância” bem

conveniente – para produzir esse absurdo. Três chopes

equivalem, em teor alcoólico, a uma dose de uísque, e

a garotada nunca sai da mesa do botequim sem tomar

10 ou 15 chopes. Ainda vamos pagar caro por essa

liberalidade do Estado.

Dentre as pressões socioculturais, quais são os

outros fatores que contribuem para o aumento dos

índices de alcoolismo?

O Brasil é um dos países mais liberais do mundo nesse

departamento. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde

se bebe muito, há horas em que não se pode comprar

nenhum tipo de bebida, nem em garrafa, nem em

copo. O estabelecimento não pode nem abrir. E, quando

alguém bate o carro, o bafômetro funciona de verdade.

No Brasil, menores de idade enchem a cara de cerveja

na rua, na porta dos botequins, sob vista grossa dos

proprietários, da polícia e de todo mundo. Depois,

pegam o carro, passam por cima de cinco e continuam

com a carteira de motorista. E o comércio é tão liberal

que só falta vender bebida em farmácia – aliás, algumas

farmácias vendem cerveja “sem álcool”, que, como se

sabe, contém álcool.

Juventude e Bebidas Alcoólicas RUy CASTRO

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Como escritor, esse é um tema que desperta seu

interesse? Escrever sobre Garrincha teve relação

com essa questão?

Não só o alcoolismo, mas toda dependência química

me interessa. Vários livros meus, não apenas o “Estrela

solitária”, tratam do assunto. É só ver o “Saudades do

Século 20”, principalmente nos capítulos sobre Billie

Holiday, Anita O’Day, Dashiell Hammett e Raymond

Chandler, e “Carmen – Uma Biografia”, sobre a querida

(e trágica) Carmen Miranda. Fora isso, vivo escrevendo a

respeito em jornais e revistas. Na condição de alcoólatra

em recuperação (não bebo há 21 anos), acho que é

minha obrigação passar o máximo de informação que

puder.

Como você avalia a atuação das diversas esferas

sociais (entidades, governos e empresas) com

relação a esse problema?

Lamentável. Apesar de haver, hoje, uma consciência

muito maior para o problema e de existirem organizações

sérias trabalhando, os resultados ainda são pífios.

O crack por exemplo, já é uma epidemia nas grandes e

pequenas cidades. O alcoolismo é responsável por um

gigantesco índice de violência nas estradas, nas ruas e

nos lares, e esse índice não diminui. E os governos não

sossegarão enquanto não proibirem de vez o cigarro

comercial e, paradoxalmente, liberarem a maconha.

Juventude e Bebidas Alcoólicas RUy CASTRO

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“A publicidade incentiva os jovens a beber.

Isso já está comprovado”

Foto

: Ren

ata

Urs

aia

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S u e l i d e Q u e i r o z é psicoterapeuta há mais de 30 anos. Tem mestrado em

Saúde Pública e fez doutorado sobre fatores de risco para

uso de álcool e drogas por estudantes da Universidade

de São Paulo [USP]. O interesse pelo tema surgiu na

década de 1980, quando a psicóloga começou a receber

em seu consultório pais de jovens usuários de maconha.

Os anos passaram, as drogas tornaram-se mais pesadas e

começaram a ser usadas por pessoas cada vez mais jovens.

Mas as drogas ilícitas ainda não têm o mesmo espaço que

a mais comum das drogas permitidas: o álcool.

Segundo dados do Centro Brasileiro de Informações sobre

Drogas Psicotrópicas [Cebrid], 42% das crianças brasileiras

com idade entre 10 e 12 anos já consumiram bebida alcoólica.

Ainda de acordo com o Cebrid, 10% da população com idade

entre 12 e 17 anos preenche critérios para ser classificada

como dependente do álcool.

Nesta entrevista ao Projeto Criança e Consumo, Sueli de

Queiroz faz um alerta: hoje em dia, a dependência do

álcool está associada, muitas vezes, à dependência de

outras drogas.

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Projeto Criança e Consumo - Quando começou o seu interesse em trabalhar com dependentes de drogas?

Sueli de Queiroz - Nos anos 80, alguns pais vinham ao

meu consultório preocupados porque os filhos estavam

fumando maconha. Na realidade, os filhos não tinham

exatamente um problema com drogas. Eles poderiam

vir a ter, mas os pais já ficavam desesperados e faziam

os adolescentes irem para uma terapia. Por causa dessa

procura, eu fui me especializando cada vez mais nesse

assunto. Hoje em dia, meu consultório tem 75% de

pessoas com problemas de álcool e drogas, e 25% têm

problemas variados.

Dos anos 80 para cá, houve mudança no perfil dessas pessoas?

Completamente. Em primeiro lugar, em relação ao

álcool. Antes viam-se pessoas que tinham problemas

com álcool e só. Hoje em dia, não existe mais isso. Pode

haver um ou dois casos, mas em termos estatísticos são

muito poucos. O que se vê são pessoas que abusam de

drogas variadas, e o álcool, em geral, faz parte desse

“coquetel”.

O uso de medicamentos psicotrópicos também é muito

maior hoje. Além disso, a partir de 1993, tivemos no

Brasil um boom de crack que começou em São Paulo,

chegou ao Rio Grande do Sul, tomou conta do Rio de

Janeiro e continua se espalhando. O crack, que era

droga de criança de rua, virou droga da classe média.

O perfil vem mudando constantemente.

Juventude e Bebidas Alcoólicas SUELI DE QUEIROZ

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Em geral, qual a primeira droga que essas pessoas experimentam?

A primeira droga do jovem, em geral, é o tabaco,

seguido do álcool. Depois disso, vai variando. Muitas

vezes, é o inalante. A criança descobre o cheirinho da

loló, a gasolina, o esmalte. Quase todo adolescente que

vai ter problema com drogas tem esse começo.

O álcool é uma droga que circula livremente dentro das famílias. As crianças até veem os pais bebendo. Essa aceitação em torno da bebida colabora para a dependência em crianças e adolescentes?

A gente diz que o álcool é uma droga muito

“democrática”. É barata, é legal, é aceita pela sociedade

de um modo geral. As pessoas não se horrorizam se

uma criança toma álcool, mas elas ficam horrorizadas

com o uso de outras drogas. O que a gente sabe é

que as crianças estão bebendo cada vez mais cedo.

A experimentação hoje está em torno de nove anos,

até um pouco menos.

O álcool é uma das drogas mais perigosas porque a

sociedade as aceita de uma forma natural. Os pais

acham que se a criança tomar álcool com o aval deles,

na presença deles, está tudo em ordem. Existe essa

ideia ingênua de que “comigo não faz mal”. Não existe a

noção do perigo. Acha-se graça. O fato de uma criança

de quatro anos, que, em uma festa, escondida dos pais,

sai virando os restinhos dos copos com cerveja e fica

bêbada, é encarado como uma traquinagem e tudo

fica engraçado.

Juventude e Bebidas Alcoólicas SUELI DE QUEIROZ

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Juventude e Bebidas Alcoólicas SUELI DE QUEIROZ

Como a família costuma lidar com esses “pilequinhos”?

Vira história da família. Mas, às vezes, isso tem uma

continuidade porque cada pessoa tem a sua história

genética, de educação, de ambiente, de personalidade...

E é essa mistura que faz com que algumas pessoas

sintam um prazer enorme quando usam e quando ficam

alteradas. Tem gente que detesta, tem gente que adora,

para algumas tanto faz. Esses que adoram é que vão

desenvolver, possivelmente, um problema futuro.

Muitos têm medo de repreender os filhos e serem vistos como autoritários?

Muito medo de serem autoritários, de não serem os

pais amigões. Muitos são separados, e aquela frase

incomoda : “Eu gosto da mamãe, o papai é um chato”.

O papai não quer ser chato, o papai quer ser bacana.

E para ser bacana, nada melhor do que permitir tudo.

Os pais, na realidade, não estão beneficiando a criança,

estão beneficiando a si próprios. “O pai do fulano é bárbaro,

ele deixa tudo”. E isso é tudo balela, mas os pais têm

dificuldade de entender isso. Porque se o pai do outro faz

e é adorado, então, ele também quer ser adorado.

É uma vergonha para a família quando o filho se torna dependente?

Na sociedade, o preconceito com o alcoolismo é enorme.

Eu sempre pergunto para a mãe e para o pai se tiveram

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problemas na família com álcool e drogas. Eles sempre

falam: “Ah, eu tenho um tio que era uma pessoa meio

esquisita e foi internado. Eu acho que ele bebia um

pouco”. A pessoa que tinha um problema de drogadição

era cercada de mistérios, era estranha. Eu falo para os

pais que não existe nada melhor do que falar livremente

sobre o problema que existe dentro da família, porque

isso é um aprendizado para as crianças.

O problema é que muitos pais acham que não é o álcool

que causa problemas. O alcoólatra é que não para de usar

porque não quer. É o que acha a maioria dos adultos, e

quando a criança cresce, continua achando que isso é

verdade. Continua achando que o problema não está no

álcool, mas sim em si mesma. E a maioria dos jovens

pensa que pode usar o álcool quando quiser e parar

quando quiser. Essa crença na falta de perigo é um fator

de risco. É o famoso “não vai acontecer comigo”.

Como é possível perceber que o filho se tornou um dependente?

É complicado. Um porre faz parte da história de quase

todos mundo. O problema é quando as coisas vão

se repetindo, quando o filho chega constantemente

alcoolizado.

É preciso observar e manter o contato dos pais com os

filhos. Fala-se da importância do diálogo há 40 anos.

As pessoas ouvem, mas entra por um ouvido e sai pelo

outro. Os pais têm muita dificuldade em entender que o

diálogo é muito mais a escuta e a observação do filho.

Não é fazer sermão, falar, gritar...

Juventude e Bebidas Alcoólicas SUELI DE QUEIROZ

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O adulto está sempre falando, e a criança está sempre

ouvindo, de um jeito ou de outro. O que é muito mais

difícil é o adulto escutar, de fato, o que a criança quer

falar. É isso que faz toda a diferença. Se você conseguir

escutar e observar, vai acompanhar por onde seu filho

está caminhando, o que tem pensado, o que valoriza,

o que acha bacana ou não. Se não for assim, fica muito

difícil. Os pais se perdem completamente e só descobrem

isso quando acontece alguma coisa mais grave. Quando

percebem o indício de uso de alguma droga, ela já

está sendo usada há cinco, seis, sete anos. Eles ficam

desesperados, mas aí já se perdeu o controle.

Sem perceber, muitas vezes os pais estimulam o início do vício?

Em alguns casos sim. Em festas infantis, por exemplo,

os pais acham que tudo bem o filho tomar pelo menos

um coquetelzinho de frutas. Mas esse coquetel tem

um pouquinho de vodca, um pouquinho de rum...

As crianças ficam bêbadas, mas eles acham graça e

pensam: “Foi só hoje, não tem problema”.

Na adolescência, isso ganha outras proporções?

Quem usufrui, de fato, do álcool são, por exemplo,

pessoas muito tímidas. Quando pensa-se em

adolescência, depara-se naturalmente com pessoas

tímidas. Até mesmo porque elas ainda não têm contato

social desenvolvido. E não existe droga melhor para a

timidez do que o álcool. O álcool é a droga que faz ficar

valente, corajoso, dizer o que se quer. O álcool é a droga

Juventude e Bebidas Alcoólicas SUELI DE QUEIROZ

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que tira o freio. E é essa sensação que faz com que se

queira beber outra vez.

Então, o álcool encontra terreno fértil em quem tem baixa autoestima?

Lógico. Todas as sensações que freiam uma pessoa,

que a diminuem, que a deixam tensa, calada, isolada

são minimizadas pelo uso do álcool. Não é só a baixa

autoestima, mas ela faz parte, está sempre junto das

drogas. Quem não tiver baixa autoestima vai adquiri-la

por conta do uso abusivo da droga. Se já tiver, pode

desenvolver o uso abusivo porque inicialmente sente

que a droga aumenta a sua autoestima.

Que fatores podem levar o jovem a usar o álcool?

São muitos. Precisamos até dividir por setores. Um

fator de risco fortíssimo é o preço e a acessibilidade

do álcool. Uma garrafa de pinga, por exemplo, é algo

que pode fazer um estrago razoável. É muito barata e

muito fácil de comprar. E nós temos leis que não são

respeitadas, como a que proíbe a venda de álcool para

crianças. Sabemos que há uma lei que determina que

não podem existir bares abertos a uma determinada

distância de escolas. Mas existem. Essas coisas todas

são fortes fatores de risco.

O outro fator de risco importantíssimo é a personalidade,

os aspectos psicológicos, como a baixa autoestima e a

timidez. Existe ainda outro fator de risco importante:

a propaganda. A nossa propaganda de álcool é

Juventude e Bebidas Alcoólicas SUELI DE QUEIROZ

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direcionada para crianças e jovens, para o início do

uso. O alvo dela é aquela criança que vai ser o futuro

comprador e usuário.

Você acha que esse direcionamento é claro na

publicidade?

Acho que já foi muito mais claro. Hoje em dia, como

estão fechando o cerco em torno disso, está sendo

mais sutil. Mas já chegou a ser claríssimo. Eu me

lembro quando começou aquela propaganda do Zeca

Pagodinho. Era claríssima e ainda acabava dizendo:

“Atenção, se você for menor de idade não faça uso da

cerveja”. Isso é tudo o que a criança e o adolescente

querem ouvir pra poder falar: “É isso que eu quero”.

Então, sutil ou não, eles se direcionam realmente para

esse público. Tanto a indústria da cerveja e do álcool,

quanto a indústria do tabaco.

Com relação à publicidade, você considera que há

necessidade de haver mais regras?

É preciso haver um lobby contrário pressionando. Isso

é uma coisa importantíssima, demorada, difícil, mas eu

acho que tem de ser feito, que é fundamental e que

cada vez mais tem de ser normatizado. É preciso criar

leis. Como a do cigarro. A indústria do tabaco está

muito mais freada que a do álcool.

Quem diria que no automobilismo, totalmente financiado

pela indústria do tabaco, a publicidade de cigarro iria

Juventude e Bebidas Alcoólicas SUELI DE QUEIROZ

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desaparecer? Mas desapareceu. Eu acho que com o álcool

isso teria de ser feito. As pesquisas já mostraram que a

propaganda influencia no comportamento, na tomada

de decisão. E ela é voltada ao público infantojuvenil.

A publicidade incentiva os jovens a beber. Isso já está

comprovado.

Juventude e Bebidas Alcoólicas SUELI DE QUEIROZ

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“A Lei Seca é resultado de uma pressão social”

Foto

: Ren

ata

Urs

aia

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I l a n a P i n s k y é professora afiliada do Departamento de Psiquiatria da

Universidade Federal de São Paulo [Unifesp]. Autora do livro

“Publicidade de Bebidas Alcoólicas e os Jovens”, editado

pela Fapesp, mostra que o álcool é uma das substâncias

psicotrópicas mais utilizadas pelos adolescentes no Brasil e

no mundo. Nesta entrevista ao Projeto Criança e Consumo,

ela aponta caminhos que mostram o que é possível fazer, em

termos de políticas públicas, para mudar essa realidade.

Os números gerais são alarmantes. E para Ilana, a

publicidade não pode estimular o consumo exagerado de

bebida alcoólica, ter como alvo menores de idade e nem usar

a sensualidade como principal conteúdo de divulgação.

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Projeto Criança e Consumo - O consumo de álcool é especialmente prejudicial em alguma fase da vida?

Ilana Pinsky - Existem muitas discussões sobre esse assunto. E para uma pesquisadora científica, depende de muitos fatores. Existe o consumo de álcool, o uso problemático, o abuso... E existe a dependência de álcool. São situações muito diferentes... A grande maioria das pessoas que bebe não desenvolve dependência. Mas o uso não é tão inócuo como se pensava anos atrás. Uma pesquisa recente feita pelo nosso departamento na Unifesp mostra que, no Brasil, metade da população bebe. Parte desta bebe problematicamente. Um quarto dessas pessoas não tem problemas quanto ao excesso de consumo. Quando ocorre um acidente grave de trânsito e pessoas morrem, nem sempre elas tinham problemas com o álcool. Muitas bebiam moderadamente. Mas beberam o suficiente para atrapalhá-las enquanto dirigiam.

Mas isso acontece mais na adolescência?

Em geral, o consumo se inicia na adolescência ou no início da vida adulta. São dois momentos de pico. Na população brasileira, o maior índice do uso de álcool se dá entre jovens e adultos. Até os 35, 40 anos, esse consumo se mantém relativamente estável, principalmente para os homens. Nos Estados Unidos, o consumo é alto na faixa dos 25 anos.

E qual é o papel da publicidade em relação a essa questão?

A publicidade tem um papel significativo, assim como outras questões também têm. Mas não é a culpada de

Juventude e Bebidas Alcoólicas ILANA PINSky

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tudo. Hoje existem vários estudos, inclusive estudos de revisão sobre a relação da exposição à propaganda com o consumo. E não apenas a propaganda na televisão, mas também a publicidade no ponto de venda, aquela ligada ao patrocínio, à internet... A gente se preocupa é com essa parte da população que teoricamente não deveria beber: os menores de idade. O problema é que para o adolescente não se trata de uma publicidade que pode gerar uma troca de marca, como é para os adultos. Para os mais jovens, trata-se do início mais precoce e de um consumo mais pesado.

Como isso deve ser trabalhado para não afetar tanto jovens e crianças, já que há propagandas veiculadas durante o dia às quais qualquer um pode assistir?

A publicidade de álcool segue algumas regras estabelecidas pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). Essas regras restringem os horários em que se podem veicular essas propagandas. Cerveja e vinho não têm restrição de horário.

Como surgiu a ideia do livro e que base você teve para esse estudo?

Na verdade, comecei com esse tema quando ainda estava fazendo mestrado, na década de 90. Em 1997, fui trabalhar com políticas públicas para o alcoolismo, nos Estados Unidos, durante quatro anos. Nesse período, eu ainda não trabalhava com essa área de publicidade. Em 2002 voltei para o Brasil, quando a Organização Mundial da Saúde [OMS] estava reunindo especialistas do mundo inteiro para discutir a questão da publicidade de álcool.

Juventude e Bebidas Alcoólicas ILANA PINSky

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Fui convidada para desenvolver um pequeno trabalho e

fui para Valência, na Espanha, onde aconteceu a reunião

com especialistas do mundo inteiro. Retomei o assunto e

fiz a pesquisa mostrando a relação entre a publicidade de

álcool e o consumo. Em 2003, pedi uma bolsa-auxílio ao

pesquisador da Fapesp e concretizei a ideia do livro com

as minhas experiências. Consegui juntar um grupo de

pós-graduandos interessados no assunto. Aí houve uma

outra feliz coincidência: nessa mesma época, começou-se

a falar muito sobre publicidade, inclusive a de brinquedos

e alimentos, e restringiu-se a publicidade de cigarros. É

um assunto muito difícil de modificar na cultura brasileira,

mas de qualquer maneira fomenta as políticas públicas.

Então, a gente não faz apenas para publicar artigos e

livros. Fazemos para influenciar tais políticas.

O controle do consumo de álcool é um papel dos

pais?

Os pais já têm dificuldades em organizar os horários de

uso do computador, entre outras tarefas relacionadas à

educação, à saúde, à cultura. Como lidar, de fato, com

a questão da propaganda de cerveja? É praticamente

impossível.

Então, qual é o papel dos pais, do Estado e da

indústria?

O Estado e as medidas ambientais são de verdade

as estratégias mais eficazes. O que aconteceu com o

cigarro, por exemplo, foi bastante importante, e só o

Juventude e Bebidas Alcoólicas ILANA PINSky

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Governo pode promover isso. O Estado tem as medidas

mais promissoras e poderosas. Fechar bar mais cedo

e não relacionar a publicidade de álcool a esportes

ou eventos são medidas bastante importantes. E só o

Estado pode fazer. Os pais devem passar valores do que

é importante na vida, desde que a criança é pequena.

Essa confiança que se estabelece é importante. E é

uma questão de conversa. O que você está vendo aqui?

O que você acha que eles estão tentando fazer com

isso? É esse parâmetro que eu costumo trabalhar em

escolas. Quando você faz uma educação para a mídia

e desconstrói a publicidade de cerveja, por exemplo, o

jovem percebe que está sendo manipulado e começa a

olhar de maneira mais crítica esse tipo de situação.

Os educadores podem fazer isso na escola

também?

Uma professora de Filosofia me deu um exemplo. Ela

estava trabalhando o conceito de ”Verdade”, usando a

questão da propaganda do álcool. Isso é muito legal

para o adolescente, que é inteligente e contestador por

natureza. Isso desperta sua reflexão. O papel dos pais é,

na realidade, serem presentes e terem valores corretos.

É uma questão de coerência dos pais. Isso é algo que

deve ser feito desde que a criança é pequena.

E o papel da indústria?

É complicado. Ela tem lançado algumas campanhas,

chamadas de responsabilidade social, em relação ao

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consumo de bebidas para menores ou ao fato de dirigir

alcoolizado. Isso foi feito há dois anos, mas nós não nos

lembramos de nada. Na época, fizeram mais barulho.

Mas nunca mais vi tais campanhas em nenhum meio de

comunicação. O que precisa ser feito é incluir a cerveja

na lista das bebidas de alto teor alcoólico. A luta é dura

porque o lobby do álcool representa muito dinheiro e

poder. Soa muito estranho falar de restrição. É melhor

falar de educação. O Conar é um grupo de publicitários

que regulamentam a si próprios, mas no caso do álcool

ele não é eficiente.

O que você acha que é necessário para fazer valer essa autorregulamentação do Conar?

Ela é muito genérica. Se eu avalio, vou ver violação.

Se um publicitário olhar, não vai ver violação porque

sua preocupação é vender. Ela também não funciona

na Austrália, nem nos Estados Unidos. Não é só no

Brasil.

Quais outras mensagens mercadológicas podem gerar impacto negativo nas crianças em relação ao consumo de álcool?

Cervejas são baratíssimas nas baladas. O suco sempre

é mais caro que a cerveja. Até a água. Sem contar os

patrocínios e as festas com nomes de cervejas. O futebol,

o Carnaval, os rodeios... O álcool está onipresente.

Essa é a mensagem que está na rua. O álcool é ligado

à alegria, à beleza e a tudo de bom. O álcool é divertido

e tem que estar presente em qualquer celebração.

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Só que a verdade é que não é apenas nessas situações

que as pessoas bebem muito. A mensagem que se passa

quando um bloco de Carnaval se chama Skol B e, por

toda parte, lê-se Schincariol, por exemplo, é que só se

pode ter alegria e felicidade sob o efeito do álcool. Não

existe não ter álcool. O preço é baixo, você encontra

álcool em qualquer lugar, mesmo os menores de idade

compram com muita facilidade, porque as regras não

são seguidas.

É uma questão social também?

Sim, é totalmente uma questão social! Nos EUA, 90%

da população bebe. Aqui, são 50%. Mas os problemas

no Brasil são muito mais graves. Problemas ligados à

violência, problemas de trabalho, homicídios... Imagina

se houver expansão do número de pessoas que bebem?

Nos EUA e na Finlândia, por exemplo, toda a população

que poderia beber já bebe. Aqui não. É um mercado

em expansão. Já estamos mal com esse número que

temos. Não dá pra piorar!

E tem saída?

A saída é dar o exemplo em casa e discutir. Quando

comecei nessa área, falávamos sobre heroína. Mesmo a

cocaína e o crack não têm comparação com os problemas

gerados pelo álcool e pelo tabaco. A Lei Seca é resultado

de uma pressão social. O problema é que os jovens

bebem e fazem arruaças. Há cidades em que os pais

já estabelecem horários para os filhos voltarem para

casa.

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Pro

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www.criancaeconsumo.org.br

Zico Góesconsumo jovem

Ronaldo Laranjeira

causa de todos

Fernando Lacerdapoder afetivo

Edgard Rebouçasà luz do dia

Ruy Castrointeresse público

Sueli de Queirozprecocidade

Ilana Pinskypadrão binge

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