Critic A

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I – Posicionamento da doutrina tradicional – Reflexão inicial A doutrina trabalhista nacional, em regra, aponta a Encíclica "Rerum Novarum", de autoria do Papa Leão XIII, como um dos marcos na conquista dos operários por melhores condições de trabalho. Segadas Viana, apreciando o tema, constata: "o Papa Leão XIII proclama a necessidade da união entre as classes do capital e do trabalho, que têm "imperiosa necessidade uma da outra; não pode haver capital sem trabalho nem trabalho sem capital . A concorrência traz consigo a ordem e beleza; ao contrário, de um conflito perpétuo, não podem resultar senão confusão e lutas selvagens" (1) (grifo nosso) Percebe-se, sem muito esforço, o palpitante medo da Igreja Católica com o avanço das idéias socialistas . A "luta de classes", o "materialismo dialético", o "fim da propriedade privada" etc., incorporavam-se, definitivamente, à "lista negra" da Santa Instituição Romana. Na mesma trilha segue o ilustre jurista José Augusto Rodrigues Pinto, que compõe seu "Curso" com tópico intitulado "Contribuição da Igreja Católica", observando que a obra papal representou "o veículo de entrada em cena " da Igreja Católica nas mazelas da sociedade industrial, afirmando ser "um dos marcos da evolução universal do Direito do Trabalho". Constata, ainda, que o ponto central da encíclica era a "questão social", principalmente no que se refere à dignidade humana do trabalhador. Recomenda, por fim, aos estudiosos do assunto, a leitura da mesma (2) (grifo nosso). Sérgio Pinto Martins, cujas obras têm boa receptividade no meio acadêmico, reserva pouco mais da metade de um parágrafo para traduzir "Rerum Novarum" – "coisas novas" –, indicando o ano de sua publicação – "1891", e o autor (já por nós citado), além de pontificá-la como "uma fase de transição para a justiça social, traçando regras para a intervenção estatal na relação entre trabalhador e patrão" (3). Concluindo essa pequena amostragem, não

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I Posicionamento da doutrina tradicional Reflexo inicial

A doutrina trabalhista nacional, em regra, aponta a Encclica "Rerum Novarum", de autoria do Papa Leo XIII, como um dos marcos na conquista dos operrios por melhores condies de trabalho.

Segadas Viana, apreciando o tema, constata: "o Papa Leo XIII proclama a necessidade da unio entre as classes do capital e do trabalho, que tm "imperiosa necessidade uma da outra; no pode haver capital sem trabalho nem trabalho sem capital. A concorrncia traz consigo a ordem e beleza; ao contrrio, de um conflito perptuo, no podem resultar seno confuso e lutas selvagens" (1) (grifo nosso)Percebe-se, sem muito esforo, o palpitante medo da Igreja Catlica com o avano das idias socialistas. A "luta de classes", o "materialismo dialtico", o "fim da propriedade privada" etc., incorporavam-se, definitivamente, "lista negra" da Santa Instituio Romana.

Na mesma trilha segue o ilustre jurista Jos Augusto Rodrigues Pinto, que compe seu "Curso" com tpico intitulado "Contribuio da Igreja Catlica", observando que a obra papal representou "o veculo de entrada em cena" da Igreja Catlica nas mazelas da sociedade industrial, afirmando ser "um dos marcos da evoluo universal do Direito do Trabalho". Constata, ainda, que o ponto central da encclica era a "questo social", principalmente no que se refere dignidade humana do trabalhador. Recomenda, por fim, aos estudiosos do assunto, a leitura da mesma (2) (grifo nosso).

Srgio Pinto Martins, cujas obras tm boa receptividade no meio acadmico, reserva pouco mais da metade de um pargrafo para traduzir "Rerum Novarum" "coisas novas" , indicando o ano de sua publicao "1891", e o autor (j por ns citado), alm de pontific-la como "uma fase de transio para a justia social, traando regras para a interveno estatal na relao entre trabalhador e patro" (3).

Concluindo essa pequena amostragem, no poderamos deixar de citar o iluminado Orlando Gomes, que, em seu clssico "Curso de Direito do Trabalho", em co-autoria com Elson Gottschalk, v a Encclica "De Rerum Novarum" como o "terceiro perodo marcante da histria do Direito do Trabalho"; revela, entrementes, que a doutrina mundial no unnime em apont-la como "o divisor de guas" entre o segundo e o terceiro perodo histrico, dividindo-se entre ela e a Conferncia de Berlim (1891) (4).

Sobram motivos, aos doutos, para louvarem a Encclica, cuja importncia histrica parece irrefutvel, principalmente no que concerne aos avanos na rea trabalhista, proporcionados pela interveno gradativa do Estado na economia. Porm, com as mximas e obrigatrias vnias que merecem os inatacveis mestres, ousamos lanar novas clulas de discusso quanto a esse perodo to importante para a histria do Direito do Trabalho, opondo, por vezes, veemente discordncia em relao ao posicionamento da doutrina tradicional, superficial em sua "aventura" metajurdica, numa espcie de averso a depuraes polticas, econmicas e sociais, reduzindo o raciocnio mera esfera dogmtica, o que nos impele, de forma incontrolvel, a aprofundar a pesquisa, e, sobretudo, a fazer uso da sociologia, da cincia poltica, da histria, do direito e da teologia para clarear o caminho ainda obscuro do conhecimento cientfico da matria.

II Questionamentos iniciais

No presente estudo, contradizendo o modelo padro, utilizaremos, a priori, o mtodo socrtico, ou seja, o embate iniciar-se- por perguntas sem respostas. Avanaremos, assim, com passos humildes, mas firmes, em busca de uma pequena fasca de sabedoria, longe, entretanto, da verdade absoluta (de existncia duvidosa e alcance inatingvel). A concluso, por fim, revestir-se- de singela e relativa impresso pessoal, nada mais. A origem do caminho que leva ao conhecimento, to intensamente buscado por aqueles que o amam (filsofos "amigos da sabedoria"), encontra-se, indubitavelmente, na dvida, imprescindvel luz que clareia as mentes dos humildes servos do saber.

1)O que levou a Igreja Catlica, conforme afirma a doutrina tradicional, a preocupar-se com a dignidade do homem trabalhador, quando, por muito tempo, omitira-se de piores flagelos humanos, como, p.ex., a escravido?

2)O que motivou essa instituio religiosa a, repentinamente, preocupar-se com uma parcela da sociedade h muito explorada e esquecida?

3)Estariam em cena apenas os ideais cristos, ou haveria algum interesse econmico ou poltico a motiv-la?

4)Por que tamanha preocupao em arrefecer a iminente luta de classes?

5)O Estado Liberal fora seu parceiro por dcadas; por que, ento, atac-lo em seu "calcanhar de Aquiles"?

Ao expor nossos questionamentos, certo, fugimos um pouco da ortodoxia reinante no meio. Porm, torna-se imprescindvel extern-los agora, antes de enfrent-los, abrindo, assim, a possibilidade, ao leitor, de perceber a complexidade do tema, e, mesmo que parcialmente, concluir a linha cognitiva de suas concluses.

III Breve relato histrico e reflexes avanadas

Com a morte de Pio IX, em 1878, assumiu o pice hierrquico da Igreja Catlica Apostlica Romana Luigi Pecci, ex-bispo da Perrgia, adotando o designativo papal de Leo XIII. Era tido como um papa de posies conservadoras, exigindo do Estado uma atitude tradicionalista (5). Era culto (um dos poucos papas modernos a dominar um latim elegante) e seu hobby era escrever e fazer publicar encclicas. Atravs delas buscava difundir princpios cristos. Na opinio do historiador Paul Johnson, entretanto, "quase todas as encclicas refletiam as opinies de um empirista conservador" (5).

Entre suas "obras" encontramos a "Immortale Dei", de 1885, tida como um movimento no sentido de reconhecer os governos eleitos pelo voto popular, onde no houvesse de fato outra alternativa; declarava que "a maior ou menor participao do povo no governo nada tem de repreensvel em si" (5). Nesse documento ratificou sua filosofia poltica, reconhecendo a Igreja e o Estado como representantes da autoridade de Deus na Terra. A liberdade de pensamento e expresso era, em sua opinio, "a origem de muitos males" (5).

J em 1878, em "Quode apostilici muneris", Leo ataca o socialismo, doutrina crescente poca. Em 1880 negou a qualquer Estado o direito de dissolver o casamento cristo (Arcanum). Em "Sapientiae Christianae", de 1890, concordou que a Igreja no se opusesse a nenhum sistema de governo especfico, desde que promovesse a justia e nada fizesse que prejudicasse a religio ou a disciplina moral. Em 1888, curiosamente, vendo que o Brasil finalmente tinha abolido a escravido, alinhou a Igreja Catlica, at ento em posio dbia, com o que era agora senso comum, ou seja, passou a condenar a escravido, usando, para isso, essas palavras: "opunha-se por completo quilo que no era determinado originalmente por Deus e pela natureza" (5). Paul Johnson v a Igreja "conciliando seu pensamento, com elegncia, ao novo alinhamento do pensamento moderno" (5). Inconcilivel, entretanto, restou a antiga e esquecida incapacidade catlica de condenar, antes, a escravido. Fica claro o comprometimento da Igreja para com os interesses polticos e econmicos da poca.

O erudito preferido de Leo era Toms de Aquino, ao qual idolatrava, fazendo-o desejar sistemas de governo e polticas que se conformassem ao mximo aos ideais da Idade Mdia. Era avesso, assim, tecnologia da Revoluo Industrial. Esta o incomodava. Desse incmodo nasceu, em 1891, a Encclica "Rerum Novarum", que tratava, entre outras coisas, das classes trabalhadoras. "Aceitou os sindicatos, desde que autorizados pelo Estado; condenou o capital e o trabalho, em suas expresses radicais. Tanto o socialismo quanto a usura eram errados; a propriedade particular era essencial para a liberdade, e a sociedade sem classes era contrria natureza humana. Os trabalhadores jamais deviam recorrer violncia. Os empregadores deveriam adotar uma atitude paternal para com seus funcionrios, pagar-lhe salrio justo, proteg-los das oportunidades de pecado, aplicar qualquer riqueza "que sobrasse da manuteno de sua posio social" na promoo "do aperfeioamento de suas prprias naturezas" e funcionar como administradores "da providncia divina em benefcio alheio" (5).

Seu discurso era visivelmente favorvel filosofia capitalista, o que no surpreende, face posio poltica ocupada pela Igreja. Dizia que "os pobres se erguessem acima da pobreza e da misria e melhorassem suas condies de vida" (5). Atacou, em aparente (mas s aparente) contradio, o liberalismo, defendendo a "regulamentao estatal" das condies de trabalho. Leo XIII, aos 93 anos, foi sucedido por Giuseppe Sarto, como Pio X, em 1903.

O temor ao socialismo iria justificar-se 14 anos depois, em 1917, com a Revoluo Russa, alando os bolcheviques ao poder. Mas isso uma outra histria.

IV Crtica ao posicionamento da doutrina tradicional

Ao vislumbrar a Encclica como um divisor de guas na luta dos trabalhadores por mais justas condies de vida profissional, a doutrina clssica ignorou, e ainda ignora, os aspectos econmicos, polticos, histricos, teolgicos e sociais que motivaram a Igreja, por meio de seu representante maior, a pregar, mesmo que timidamente, uma maior "humanizao" nas relaes entre patres e empregados. Se houvesse um pouco menos de "pureza jurdica" na anlise, por certo no haveria esse "vcuo cognitivo" a escurecer a importncia do ato em si. Enxergariam, os doutos, abdicando um pouco dessa onipotncia jurdica, to presente em nossa rea, contradies inimaginveis, capazes de, sozinhas, ferirem de morte floridas e convenientes concluses.

Ao enaltecer a "boa inteno" do Sumo Sacerdote, afirmando que sua palavra "ecoou e impressionou o mundo cristo, incentivando o interesse dos governantes pelas classes trabalhadoras, dando fora para sua interveno, cada vez mais marcante, nos direitos individuais em benefcio dos interesses coletivos", o ilustre Segadas Viana (1), permissa vnia, demonstra uma certa "ingenuidade cientfica", tpica em anlises "purificadas".

certo afirmar, contudo, que no perodo ps Kelsen os estudiosos do direito passaram a desprezar pesquisas sociais e histricas, concentrando-se na "pureza do direito". Talvez isso explique o pouco interesse demonstrado pelos renomados doutrinadores na investigao do assunto. Entretanto, resta condenvel a precipitada eloqncia com que sadam, em seus escritos, um ato histrico oportunista, alavancado por um medo aterrorizante, patente, que, como um vrus, mesmo a contragosto, o contaminou para toda a eternidade.

poca da publicao da Encclica "Rerum Novarum", o liberalismo vinha passando por sua pior crise desde a Revoluo Francesa. Teorias como a do "contratualismo", da "autonomia das vontades", do absoluto "pacta sunt servanda", entre outras, nascidas no seio do iluminismo, j no supriam as necessidades da sociedade ocidental. Lembremos que j havia surgido no mundo o que ficou conhecido como "materialismo histrico", ou seja, uma teoria scio-econmica que enaltecia a luta de classes, isto , a luta entre dois extremos inconciliveis: o capital e o trabalho. O eixo dessa tese era a distribuio por igual dos meios de produo, passando-os para o Estado (estatizao dos meios de produo), que, como ente soberano, distribuiria eqitativamente os bens e objetos de primeira necessidade.

Para termos uma idia do choque filosfico entre liberalismo e socialismo, transportamos um pequeno trecho da obra de Karl Marx, citado por Domenico de Masi: "Dado que uma sociedade, segundo Smith, no feliz quando a maioria sofre... necessrio concluir que a infelicidade da sociedade a meta da economia poltica. As nicas engrenagens acionadas pela economia poltica so a avidez pelo dinheiro e a guerra entre aqueles que padecem disso, a concorrncia" (6).

O iluminismo do sculo XVIII, nas letras clebres de Rosah Russomano (7), reservou um plano todo especial razo humana, colocando-a no mesmo nvel antes pertencente Providncia Divina. Sob este aspecto, ento, o liberalismo afrontou o cerne da Igreja Catlica, construdo por via de dogmas axiomticos, inimigos da razo. O homem tratou de buscar explicaes racionais para acontecimentos da natureza dantes no explicveis. Esse desenvolvimento humano na esfera filosfica refletiu em todos os nveis, ferindo de morte as estruturas crists.

Rosah (7), com sabedoria peculiar, coloca o movimento social adotado pelos constitucionalistas daquele tempo como uma cesso aparente de poder, proveniente simplesmente do medo do socialismo. A Revoluo Russa de 1917 foi um verdadeiro turbilho sobre a sociedade ocidental. O trabalho, por meio do campesinato russo, ignorante e grosseiro, vencera politicamente o capital, destruindo as bases de sustentao de uma poltica czarista oligrquica, atrasada, de privilgios e concentrao de renda. Verdade que o "socialismo aplicado" sucumbiu em burocracia e corrupo, rasgando os princpios basilares da filosofia marxista. Porm, o liberalismo tambm implodira, dando lugar a uma espcie de "capitalismo social", inaugurado pelas constituies alem (Weimar) e mexicana.

O Santo Padre, em sua encclica "renovadora", no nega o antagonismo entre capital e trabalho, pelo contrrio, destaca-o; entretanto, reclama pela necessidade de unio entre os dois, afirmando que um no vive sem o outro. At a o Papa nada disse alm do bvio. Mas ao enaltecer a "concorrncia", fazendo-a pressuposto da "ordem" e "beleza", o representante maior da Igreja Catlica mostrou suas verdadeiras intenes. Estava, em verdade, atemorizado pelo crescimento do marxismo e pela crise estrutural do liberalismo, marcada principalmente pela ganncia e avidez dos "capitalistas". Para bem exemplificar o que falamos, basta um pequeno trecho do "Tratado" de Villarm, de 1840, sobre o estado fsico e psquico dos operrios nas fbricas de algodo, l e seda, naquela Frana liberal, que tinha proclamado os Direitos do Homem, quando constata que os escravos das Antilhas trabalhavam nove horas por dia, os condenados ao trabalho forado nas instituies penais, dez horas por dia, enquanto os operrios de algumas indstrias de manufaturas trabalhavam dezesseis horas por dia (6).

O que interessa-nos mostrar, com o presente trabalho, que tanto o marxismo quanto o liberalismo afetaram a base de sustentao religiosa da maior Igreja do Ocidente. Esta, sob pena de pulverizao paulatina, teve de reagir a essas ameaas. A Encclica "Rerum Novarum" nasceu com uma misso principal: conciliar o que parecia inconcilivel, forando o Estado a intervir no liberalismo decadente, impedindo, com isso, a proliferao das idias marxistas, preservando o poderio religioso, ante a radicalizao enfrentada poca. Assim, servindo-se do imenso poder a ela inerente, a Igreja buscou manter seu status quo, "matando dois coelhos com uma s cajadada".

O aumento da atuao do papel estatal na economia, to combatida pelos liberais "puros", veio por uma necessidade de conter o avano das idias de "esquerda", engrandecidas com os acontecimentos na agrria Rssia de 1917. O pavor fez com que sobreviessem algumas mudanas em prol da coletividade, buscando o iderio da justia social, esquecido nas mortas letras da Declarao dos Direitos do Homem.

Leo XIII, como explica Domenico de Masi, estava apavorado tanto com o conflito quanto com os socialistas e os liberais. A Encclica comea assim: "Os prodigiosos progressos das artes e os novos mtodos industriais, as relaes mudadas entre patres e operrios, a riqueza acumulada em poucas mos e a grande expanso da pobreza, o sentimento da prpria fora que se tornou mais vivo nas classes trabalhadoras, assim como a unio entre elas mais ntima, este conjunto de fatores, aos quais se soma a corrupo dos costumes, deflagrou o conflito...". Complementa o Papa: "Um nmero muito restrito de ricos e de opulentos imps a uma multido infinita de proletrios um jugo que quase de servido" (6). Para o Pontfice, entretanto, essa desigualdade, mesmo latente, no justificaria o conflito. Este deve ser evitado a qualquer custo.

O proletrio faz bem em contentar-se com o que tem, pois, diz o papa, "que abundeis em riqueza ou outros bens, chamados de bens de fortuna, ou que estejais privados deles, isto no importa eterna beatitude: o uso que fizerdes deles o que interessa. (...) (6). Assim, os afortunados deste mundo so advertidos de que as riquezas no os isentam da dor; que elas no so de nenhuma utilidade para a vida eterna, mas antes um obstculo..."."Hoje, especialmente, no meio de tamanho ardor de cobias desenfreadas, preciso que o povo se conserve no seu dever (...) Intervenha portanto a autoridade do Estado, e, reprimindo os agitadores, preserve os bons operrios do perigo da seduo e os legtimos patres de serem despojados do que seu" (6).O papa, constata o socilogo italiano, "coloca-se como defensor do status quo e inimigo da luta de classes, propondo o cristianismo como o melhor dos meios para garantir a paz social" (6). A Igreja compreendia que a indstria e a tecnologia eram suas inimigas, pois "racionalizavam o mundo", substituindo a magia da f pela cincia e, principalmente, pelo raciocnio. O papa chega a advertir para "o perigo de que as classes pobres pretendam enriquecer" (6). Quanto menor o nmero de pobres e ignorantes, menor o nmero de fiis.

A Rerum Novarum impressiona pelo dualismo inconcilivel; pelo relativismo; pela ausncia de definio. Odeia liberais e socialistas. Defende a propriedade particular, condenando a coletivizao desta, sob a gide de que ela "direito natural" do homem, sendo, como tal, divino; ao mesmo tempo critica a hipocrisia do ideal liberal, que foi incapaz de garantir a igualdade material. Rosah (7) acerta na mosca em sua assertiva. A sociedade liberal permitiu a socializao das constituies, flexibilizando a rigidez no-intervencionista, procurando "calar a boca" dos insatisfeitos que resolveram gritar. Pregou a unio entre capital e trabalho, ao tempo em que Marx pregava a unio dos proletrios: "Trabalhadores, uni-vos!". O cristianismo seria o nico caminho para a paz!

O mundo vivia o incio da chamada "produo em srie", hoje to em voga. No bastava mais, como dantes, um par de sapatos por pessoa, mas o quanto cada um pudesse comprar. Milhes de pares passaram a ser produzidos, em quantidades outrora inimaginveis, mas a cada dia aumentava o nmero de "ps descalos", mesmo tambm aumentando a produo. Como explicar essa distoro? Cremos, sinceramente, que a Igreja nos deve uma nova encclica, capaz de explic-la.

Essa pregao em defesa de um capitalismo mais justo recheou as pginas mofadas da Rerum Novarum, virando p. Em sua autobiografia, Henry Ford, fundador da famosa empresa automobilstica, e inventor da primeira linha de montagem, comentando uma lei de 1914, constatou, enfaticamente, que "o papel empresarial no fazer caridade crist" (7). Realmente, razo temos que dar ao Mr. Ford, pois o lucro no combina com caridade gratuita, mas apenas com aquela que se pode deduzir no imposto de renda.

Encontramos um mundo hoje globalizado. A globalizao no s econmica, mas principalmente cultural. Essa globalizao foi saudada como redentora. O que vemos, no entanto, uma nuvem cinza de incertezas, um vcuo cada vez maior entre ricos e pobres, seja numa viso micro ou macro. A globalizao lembra muito a poca das colnias, onde os poderosos usufruam dos pauprrimos. A mo de obra "em desenvolvimento" baratssima, sem falar da demanda gigantesca; resultado: explorao desenfreada, amparada por Estados falidos e dominados, poltica, cultural e, principalmente, economicamente.

A contribuio maior da Encclica foi o reforo idia de uma maior participao do Estado na economia. Mas isso no foi pregado com o intuito de salvar do flagelo os esfarrapados e famintos operrios. O objetivo imediato era a manuteno da posio conquistada pela Igreja Catlica, atravs de interminveis e sangrentos sculos, onde as espadas e as oraes confundiam-se em cruzadas e conquistas questionveis.

V Proposta de soluo s questes iniciais Concluso

1)A preocupao imediata da Igreja no foi com a situao do operrio em si, como ser humano despido de direitos bsicos, submetido a um regime que chegou a ser pior do que a escravido (os escravos, assim como os animais, no eram submetidos a longas jornadas de trabalho, pois representavam bens, e, como tais, deveriam ser usados com moderao, para no depreciarem-se; os operrios europeus eram submetidos a uma jornada que chegava a dezesseis horas por dia, sem falar na utilizao das "meias-foras"). A grande preocupao da Igreja era com os efeitos polticos dessa explorao, no os morais ou biolgicos; o fenmeno do associacionismo, vocbulo eternizado por Orlando Gomes, j comeava a incomodar, diminuindo a diferena gritante de foras entre patro e empregado. As conseqncias apocalpticas da luta de classes j estampavam as obras de Marx, como "germes" intelectualizados a dar suporte s pretenses revolucionrias. A estrutura scio-poltica da poca, garantidora de privilgios, inclusive para Roma, estava por um fio. O clamor social era latente. As teorias socialistas vinham num crescente, infiltrando-se, principalmente, nos sindicatos obreiros. O medo da "ebulio social" foi tanto que levou o papa Leo XIII a lanar propostas de conciliao entre capital e trabalho, enaltecendo, contudo, que ambos eram vitais. O Estado Social viria a "corrigir" um desvio de rota do Estado Liberal, sob a superviso de uma Igreja atemorizada. Essa correo, contudo, no deu-se de forma imediata, mas lenta e gradativamente.

2)No h como esconder o fato da Igreja Catlica estar, acima de tudo, defendendo seus prprios interesses. A doutrina marxista sempre foi combatida pela cpula catlica. Para essa constatao basta observar a represso a que foram submetidos os integrantes da chamada "teologia da libertao", chegando a serem apenados com o "silncio". "A difuso das idias crists", que "erodiu as bases da escravido", segundo Eduardo Gabriel Saad (8), no foram, como entende o ilustre jurista, to crists assim, pois, data vnia, estavam recheadas de interesses polticos e econmicos, travestidas de uma santidade apenas formal.

3)A Igreja, em todos os movimentos ditos religiosos, desde as cruzadas, passando pela "catequizao dos selvagens", at as encclicas, sempre atuou como Estado Catlico, defendendo seus interesses de imprio. Os versos de Pablo Neruda resumem com maestria o papel cristo na conquista das Amricas: "A cruz, a espada e a fome dizimaram a famlia selvagem". A espada e a cruz sempre atuaram com extrema cumplicidade.

4)O interesse imediato da Igreja no era o ser humano, mas os efeitos do "caldeiro social" que estava prestes a explodir. Crivou em sua bandeira de luta o corpo, a mente e a alma humana, mas apenas na tentativa de reverter uma posio defensiva, sem o comprometimento total dos dogmas cristos. A maquiagem era antiga, mas eficaz; os objetivos tambm: manuteno do status quo. Utilizou-se de meios dceis para fins vis. O fim social era a mantena de privilgios e posies; os meios, a "palavra santa". Enfim, curiosamente, aprendera um pouco dos ensinamentos da filosofia "subversiva", no jargo "os fins justificam os meios". E quem, ou o que, justificaria os fins? Simples: o poder!

5)No tinha interesse em destruir o Estado Liberal, pelo contrrio, visava conserv-lo. Para isso, entretanto, seria necessrio "calar a boca" dos inquietos operrios. Sentia, na verdade, saudades da indolncia indgena e da dcil subservincia negra, mas as circunstncias eram outras, o que requeria um pouco mais de habilidade negocial. Foi, como todas as estratgias religiosas, uma "sada" de grande habilidade, movendo o "bispo" na hora fatal, e obtendo, assim, um xeque-mate inescrupuloso.