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626 CULTURA VISUAL E IDENTIDADE OPERÁRIA: DISPUTAS E ACOMODAÇÕES DOS PROJETOS ASSOCIATIVOS DE ANARQUISTAS E COMUNISTAS ATRAVÉS DA EXPERIÊNCIA VISUAL VIVENCIADA NAS PÁGINAS DE A PLEBE E VOZ COSMOPOLITA MAITÊ PEIXOTO 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História pela PUCRS; bolsista CNPQ Resumo O presente artigo propõe à comunidade acadêmica uma breve reflexão acerca da disputa simbólica empreendida por anarquistas e comunistas nas páginas da A Plebe e Voz Cosmopolita, respectivamente, ambos veiculados entre os anos de 1917 e 1928, no intuito de fortalecer os primeiros contornos de uma identidade política de classe operária no Brasil do início do século XX. Pretende-se compreender ainda, como essa experiência visual se inseriu nessa dinâmica, bem como, analisar de que forma a produção imagética pode ser analisada em meio a esse processo. Palavras-chave: Cultura Visual - Imprensa Operária - Identidade Operária. Abstract This paper proposes to the academic community a short reflection on the symbolic dispute undertaken by anarchists and communists in the pages of A Plebe and Voz Cosmopolita respectively, both running between the years 1917 and 1928 in order to strengthen the first outlines of an identity working class politics in Brazil the early twentieth century. Our objective is to understand yet, how this experience fits into this dynamic visual as well as to examine how the image production can be analyzed through this process. Keywords: Visual Culture - Worker’s Press- Worker’s Identity. O movimento operário brasileiro teve suas raízes fundadas muito particularmente na imigração. As primeiras formas de organização política implantadas no Brasil remetem às práticas que já vinham sendo desenvolvidas na Europa, nos movimentos de contestação nacional, ou ainda, no interior das pequenas agremiações localizadas longe dos grandes centros, próximas da estrutura sindical e conformadas sob o formato de reuniões e assembleias. No Brasil, o processo de industrialização lançou muitos imigrantes provenientes do meio rural nos mundos do trabalho urbano e industrial. As mudanças vinham em ritmo acelerado, acompanhadas pela violência e pela segregação. A inserção do negro no mercado de trabalho confundia-se ainda com as sombras da escravatura ao mesmo tempo em que para ele, não era fácil incorporar à sua mentalidade as novas possibilidades de uma liberdade um tanto quanto limitada. O número de operários, isto é, de trabalhadores no ramo do comércio e da indústria cresceu de forma vertiginosa durante a industrialização do Brasil. Segundo Leandro Konder, “entre 1907 e 1920, o proletariado 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História pela PUCRS; bolsista CNPQ sob orientação do Prof. Dr. Jurandir Malerba.

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CULTURA VISUAL E IDENTIDADE OPERÁRIA: DISPUTAS E ACOmODAçõES DOS PROjETOS ASSOCIATIVOS DE ANARqUISTAS E COmUNISTAS ATRAVéS DA ExPERIêNCIA VISUAL VIVENCIADA NAS

PÁgINAS DE A PLEbE E VOz COSmOPOLITA

Maitê Peixoto1

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História pela PUCRS; bolsista CNPQ

Resumo

O presente artigo propõe à comunidade acadêmica uma breve reflexão acerca da disputa simbólica empreendida por anarquistas e comunistas nas páginas da A Plebe e Voz Cosmopolita, respectivamente, ambos veiculados entre os anos de 1917 e 1928, no intuito de fortalecer os primeiros contornos de uma identidade política de classe operária no Brasil do início do século XX. Pretende-se compreender ainda, como essa experiência visual se inseriu nessa dinâmica, bem como, analisar de que forma a produção imagética pode ser analisada em meio a esse processo.

Palavras-chave: Cultura Visual - Imprensa Operária - Identidade Operária.

Abstract

This paper proposes to the academic community a short reflection on the symbolic dispute undertaken by anarchists and communists in the pages of A Plebe and Voz Cosmopolita respectively, both running between the years 1917 and 1928 in order to strengthen the first outlines of an identity working class politics in Brazil the early twentieth century. Our objective is to understand yet, how this experience fits into this dynamic visual as well as to examine how the image production can be analyzed through this process.

Keywords: Visual Culture - Worker’s Press- Worker’s Identity.

O movimento operário brasileiro teve suas raízes fundadas muito particularmente na imigração. As primeiras formas de organização política implantadas no Brasil remetem às práticas que já vinham sendo desenvolvidas na Europa, nos movimentos de contestação nacional, ou ainda, no interior das pequenas agremiações localizadas longe dos grandes centros, próximas da estrutura sindical e conformadas sob o formato de reuniões e assembleias. No Brasil, o processo de industrialização lançou muitos imigrantes provenientes do meio rural nos mundos do trabalho urbano e industrial. As mudanças vinham em ritmo acelerado, acompanhadas pela violência e pela segregação.

A inserção do negro no mercado de trabalho confundia-se ainda com as sombras da escravatura ao mesmo tempo em que para ele, não era fácil incorporar à sua mentalidade as novas possibilidades de uma liberdade um tanto quanto limitada. O número de operários, isto é, de trabalhadores no ramo do comércio e da indústria cresceu de forma vertiginosa durante a industrialização do Brasil. Segundo Leandro Konder, “entre 1907 e 1920, o proletariado

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História pela PUCRS; bolsista CNPQ sob orientação do Prof. Dr. Jurandir Malerba.

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brasileiro quase duplicou, e o número de estabelecimentos fabris quase triplicou, se elevando de 3.258 para 9.475,” (KONDER, 1988, p.124) o que assinala uma alteração substancial no cenário urbano nesse início de século, para um país, até então, eminentemente rural e dependente dessa estrutura econômica.

Ocorre, entretanto, que a participação desse grupo, recém formado na sociedade brasileira era ínfima em termos de cidadania ou de organização classista. A própria forma classista de união é um tema polêmico, passível de discussões dentro da historiografia relativa aos “mundos do trabalho” no concernente aos primeiros anos de prática política do operariado já que, de acordo com Cláudio Batalha: “a formação de classe é, portanto, um processo mais ou menos demorado, cujos resultados podem ser verificados na medida em que concepções, ações e instituições coletivas de classe, tornam-se uma realidade” (BATALHA, 2003, p.163).

As primeiras iniciativas grevistas (das quais temos registro) foram expressão de uma prática política organizada pelo operariado brasileiro na busca por reconhecimento de suas categorias profissionais com prática política efetiva. Nos anos de 1910 as manifestações operárias organizadas já confluíam interesses coletivos, ainda que estes estivessem presos às categorias de ofício, forma pela qual foram organizadas as primeiras assembleias sindicais no país.

Não há como deixar de mencionar um empecilho fortemente arraigado na cultura da elite brasileira que impedia a atuação desses trabalhadores: a repressão e o indiscriminado uso da violência; ambos restringiam as práticas grevistas, o que nunca impediu que esses indivíduos se organizassem das mais diversas formas.

As deportações, desterros, torturas e intimidações compunham o arcabouço de estratégias de “defesa” da máquina estatal contra os “indesejáveis”, como eram conhecidos os presos políticos pegos em manifestações, reuniões públicas e assembleias. O desterro, não apenas conferia ao sujeito, considerado uma ameaça à sociedade, exclusão social, como, na maioria das vezes, também significava a morte do prisioneiro, já que as condições de transporte dessas pessoas eram desumanas, facilitando a disseminação de doenças ou a morte dos transportados por inanição.

Além das dificuldades de organização criadas pelos mecanismos repressivos do Estado, há também que se levar em conta as diferentes bagagens culturais de que estavam munidos os primeiros grupos operários no Brasil. A extensão territorial brasileira correspondia, em proporção, à variedade de crenças e expectativas fundadas sobre as bases sociais dispostas pelo país. A necessidade de união e atividade dentro de uma república que não garantia direitos aos seus cidadãos fez com que as ideologias operárias, tão apregoadas no velho mundo, ganhassem espaço entre os trabalhadores brasileiros.2 Entretanto, nem só de imigrantes era composto o movimento operário brasileiro, a população negra recém inserida no mercado de trabalho e a população pobre das grandes cidades teve seu papel com relação ao crescimento da indústria no Brasil.

Nos polos econômicos do país, tais como São Paulo e Rio de Janeiro, nos quais a atividade política dos sujeitos históricos que nos interessam neste estudo estava concentrada, a atuação desses militantes se afirmava através de congressos e assembleias que envolviam representantes de diversas localidades do país, na maior parte das vezes distribuídos e organizados por categorias de ofício. Em decorrência, também, da diversidade cultural dos militantes nesse contexto, somado às dificuldades de organização e comunicação num território tão amplo quanto o Brasil, fica a clara a razão pela qual houve a apropriação primeira do anarquismo: pela facilidade que ele incorpora à luta pela obtenção da melhoria da qualidade de vida individual. Num organismo em que os interesses sociais e econômicos são distintos entre seus filiados é praticamente impossível impor uma doutrina única, visto

2 Cf. KONDER, Leandro. A derrota da dialética: recepção das ideias de Marx no Brasil até o começo dos anos trinta. Rio de Janeiro: Campus, 1988. p.84.

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que ela não encontrará ressonância entre os que pretende atingir.3

Nesse período é interessante que tenhamos em mente, que a participação de trabalhadores do campo dentro dessas organizações sindicais, ou mesmo no interior de assembleias e congressos ainda é ínfima. Temos aqui, sobretudo, a atividade política dos sujeitos urbanos, ainda que muitos deles tenham sido deslocados do campo para a cidade a partir da industrialização. O ponto de intersecção entre esses dois sujeitos históricos instalados em um mesmo contexto, mas provenientes de realidades de trabalho distintas se dará, sobretudo, a partir dos ecos da atividade urbana; uma das maneiras pelas quais esse eco se fez notar foi através da imprensa operária, ainda que nesse momento falemos de um país onde poucas pessoas são alfabetizadas e menos ainda formalmente letradas.

1.1 A imprensa operária: ecos de uma luta

Ao nos depararmos com a imprensa operária, independentemente de suas fases, para fins de análise, temos sempre de ter muita cautela quando nos dispomos a interpretar o conteúdo produzido pelos próprios personagens que a compõe. Não devemos nos deixar levar pela atração que a fonte nos provoca; vale lembrar que atrás de uma disputa política ou ideológica pode, e certamente existirá, um conjunto de interesses e dramas pessoais vinculados ao conteúdo impresso.

Tal qual o processo de formação das primeiras organizações operárias no Brasil, as manifestações iniciais do operariado brasileiro, ou dos intelectuais que os representavam, apareceram marcadas na imprensa pela teia de conflitos nos quais estavam inseridos esses sujeitos. Não nos referimos aqui, tão somente aos conflitos sociais externos ao movimento operário, mas sim àqueles originários da própria construção do coletivo. A imprensa operária representava no início do século XX para o movimento operário, além de um veículo de circulação de ideias, um instrumento de educação, de formação política e também de lazer.

As agremiações proletárias dessa época são caracterizadas pela capacidade de incluir em um movimento essencialmente político, além do próprio militante, sua família e amigos. As festas, quermesses, os campeonatos esportivos e de poesias tornavam o sindicato da categoria um centro de sociabilidade, onde as pessoas se encontravam não apenas para discutir política ou economia. As imagens publicadas nos jornais, além de mediar a compreensão de temas de abrangência maior àqueles trabalhadores não alfabetizados, conformavam outra forma de vivenciar a militância através da visualidade, ou seja, a partir do olhar, da percepção de símbolos que representavam uma série de experiências contidas no interior desse universo de lutas e conquistas.

A participação do leitor militante foi sempre de fundamental importância na manutenção dessa ferramenta de luta proletária. Não apenas os textos, mas também as imagens publicadas nos jornais eram produzidas pelos próprios trabalhadores engajados na agremiação. De acordo com John Foster Dulles, “a necessidade de inclusão dos grupos operários dentro da organização sindical, num primeiro momento, fez com que a imprensa operária se expandisse através de diversas publicações” (DULLES, 1977, p.23).

3 Não podemos deixar de mencionar que o anarquismo não é a única corrente político-ideológica que vigorou entre em meios operários no início do século XX. O socialismo aos poucos vai ganhando espaço, seguido pelo comunismo. Isso sem mencionar as várias tendências que compõem aquilo que chamamos de anarquismo no Brasil, e que se configura numa denominação um tanto abstrata, se compreendida a partir de uma unidade ideológica maciça, o que, em verdade, nunca existiu. O anarcossindicalismo foi a doutrina política com maior número de adeptos nesse período, todavia não podemos descartar o papel do mutualismo, do anarquismo revolucionário e do comunismo libertário. No presente estudo, entretanto, concentraremos nossa análise particularmente no anarcossindicalismo e no comunismo, em função do recorte temático e das fontes utilizadas.

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O jornal fosse ele semanário, quinzenal ou de circulação mais espaçada, surgiu em paralelo às transformações ocorridas no interior das organizações operárias, tivessem essas caráter ácrata, socialista ou comunista. Para o movimento operário, o jornal passa a adquirir um papel revolucionário, no sentido que, além da sua função combativa, há também que se considerar as transformações suscitadas em seus leitores no que tangencia a educação, a ética,4 a responsabilidade pela palavra ou pelo símbolo impresso e propagado em nome de um grupo, ou em nome próprio, a capacidade de interação e de identificação com determinado grupo, enfim uma gama de noções intimamente ligadas à sociabilidade, que nem sempre a população de baixa renda, inserida quase que subitamente no mercado de trabalho tinha acesso, domínio ou conhecimento.

A imagem impressa nessas publicações traz consigo um aspecto sensível que podia ser experimentado em pouquíssimos espaços da sociedade por essa parcela da população. Além da música popular produzida por esses sujeitos, e que hoje sabemos ser uma manifestação riquíssima dessa cultura em formação, a imagem política que vinculava símbolos capazes de estabelecer uma integração entre esses sujeitos, suas experiências, seus próprios olhares sobre o mundo que os cerca e sua condição dentro da sociedade, nos parece um elemento rico de significados não só latentes, mas também explícitos, que se estabelecem dentro desse plano sensível e que era tão caro (em termos de acessibilidade) a aos trabalhadores nesse período. Em termos gerais, esse é o cenário de onde emergem os dois periódicos, nos quais foram publicadas as imagens que discutiremos adiante, vejamos o histórico de cada um deles.

1.2 A Plebe: herdeira da tradição ácrata impressa

A Plebe5 (AP) foi uma publicação semanal que surgiu no ano de 1917 na cidade de São Paulo sob a direção de Edgard Leuenroth. O periódico afirmava ser um veículo de propaganda anarquista e anticlerical. Sua distribuição era feita através de representantes que vendiam o jornal em diversas localidades do país. As assinaturas estavam previstas em anuais correspondendo ao valor de 10$000 e semanais por 6$000.

A publicação de AP era feita, em geral, aos sábados e quem executava a seleção de textos era o próprio Edgard Leuenroth; por esta razão é que em todos os números de jornal há um recado em destaque dizendo que toda a correspondência deveria ser enviada diretamente a Edgard Leuenroth, constando, logo abaixo, a caixa postal e a cidade do destinatário. A redação e a administração do periódico estavam localizadas na Rua Cap. Salomão, junto ao Largo da Sé, no centro da cidade de São Paulo, num dos sobrados típicos da região.

De acordo com Iara Maria Aun Khoury, A Plebe se constituía como veículo de uma “imprensa operária livre-pensadora e independente,” (KHOURY, 1988, p.138), isto significa que o jornal divulgava a luta e as conquistas que poderiam interessar, única e exclusivamente, a um grupo, ou seja, o anarcossindicalista, do qual Edgard Leuenroth sempre fez parte. Tal periódico vai assinalar a passagem da organização sindical dos trabalhadores para a organização partidária, a partir da conformação dos primeiros Partidos Comunistas do Brasil, de São Paulo (1919) e do Rio de Janeiro (1919), ambos de caráter libertário.

Outro fator pertinente para compreensão da relevância desta publicação é que ela presenciou o primeiro grande cisma nos meios operários do Brasil, que consistiu na divisão

4 Não nos referimos apenas à ética do trabalho estabelecida no interior das relações de produção ou de reprodução do trabalho, mas também a ética estabelecida nas relações sociais num sentido mais abrangente.

5 Os números de A Plebe analisados nesta pesquisa encontram-se no Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (CEDEM), armazenados no fundo: Archivio Storico Operaio Brasiliano (ASMOB) em propriedade do Instituto Astrojildo Pereira – (IAP).

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organizativa entre anarquistas e comunistas; A Plebe se mantém fiel aos ideais ácratas apregoados em suas páginas. Segundo Maria Nazareth Ferreira, as publicações operárias que estavam inseridas no período que compreende a imprensa anarcossindicalista tinham “formato que variava de acordo com as condições de papel e máquinas disponíveis, predominando, entretanto, o tabloide,” (FERREIRA, 1988, p.21) este foi o caso de AP.

A Plebe costumava abrir o jornal com uma ilustração, charge ou fotografia, ou seja, a experiência visual tinha espaço privilegiado, logo na primeira página do jornal. Essas imagens tinham certo caráter universal, tratavam de questões problemáticas a todos aqueles que militavam nas organizações operárias tais como: a desigualdade social e econômica, a luta de classes e a carestia de vida; ganhavam ainda espaço as denúncias de atos repressivos impetrados pelo Estado, narrados com riqueza de detalhes e também presentes nas representações imagéticas.

1.3 Voz Cosmopolita: órgão dos empregados em hotéis, restaurantes, cafés, bares e classes congêneres

Voz Cosmopolita6 (VC) foi uma publicação quinzenal produzida pelo Sindicato de Empregados em Hotéis e Similares do Rio de Janeiro; tinha caráter ácrata e era um veículo de propaganda e agitação sindical. Sua redação se localizava na Rua do Senado, números 215 e 217 no centro da cidade, e sua distribuição era feita através de listas de subscrição, venda por número avulso no valor de $100, distribuição gratuita (quando necessário), e assinaturas: semestral no valor de 3$000 e anual correspondendo a 5$000. Segundo o grupo editor do jornal, sua função era:

A defesa dos interesses da classe, cooperando pelo seu aperfeiçoamento moral, material e intelectual. Publicar sob o título de Voz Cosmopolita, um jornal cujas colunas serão francas a toda e qualquer manifestação de pensamento dos companheiros, desde que sejam observadas a lógica e a razão, e estejam de acordo com a orientação do Grupo.Promover conferências sociológicas, de propaganda associativa e meios de luta contra a exploração capitalista, batendo-se desta forma pela emancipação coletiva.Corresponder-se e manter assídua correspondência com todos os jornais de classe congêneres. [...]Empenhar seus esforços pelo congraçamento unilateral das classes congêneres de todo o país, criando um organismo máximo e forte.Criar em seu seio uma seção de debates sociais, a fim de aprimorar e desenvolver os conhecimentos intelectuais de seus componentes.7

Os fins da agremiação são apresentados pelo grupo editor através de uma linguagem essencialmente libertária, em termos ideológicos. A classe a que se referem, significa unicamente a categoria profissional a qual o sindicato representa. É comum nesse período os jornais sindicais definirem determinada categoria profissional como classe, entretanto, não devemos perder de vista a diferença conceitual existente no mesmo termo quando empregado

6 Os números de Voz Cosmopolita utilizados nesta pesquisa encontram-se no Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (CEDEM), armazenados no fundo: Archivio Storico del Movimento Operaio Brasiliano (ASMOB) em propriedade do Instituto Astrojildo Pereira – (IAP).

7 Sem autor, Bases de accordo do grupo editor da Voz Cosmopolita, Voz Cosmopolita, Rio de Janeiro, 01.01.1922.p.3.

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em circunstâncias distintas. No que concerne à administração da publicação, o grupo editor8 de Voz Cosmopolita se

preocupou também em fazer claras as suas atribuições. Nesse mesmo texto esclarecedor sobre os objetivos da publicação, o autor deixa evidente que os recursos disponíveis para manter o periódico em circulação advêm das quotas dos aderentes, das assinaturas e dos anúncios. Uma comissão executiva9 seria formada por seis membros para realizar os trabalhos. Essa comissão seria aclamada por uma reunião de todo o grupo que deveria ocorrer uma vez ao mês. Ao secretário geral do grupo caberia a tarefa de redigir um balancete minucioso após a publicação de cada número do jornal com o movimento de receitas e despesas, o qual deveria ser apresentado ao grupo na reunião seguinte. Cada aderente à organização deveria contribuir com a quantia de 5$000 no ato da inscrição, pagando mensalmente, após a adesão, o valor de 2$00010

Como podemos observar, a distribuição das atribuições da administração de VC era muito semelhante à de um partido político, organizado através de uma diretoria subdividida por hierarquias de funções, pouco distante das primeiras expressões organizativas dos sindicatos profissionais.

Cabe acrescentar que Voz Cosmopolita retorna suas atividades no ano de 1922, após a interrupção de três anos desde a sua última publicação. Não coincidentemente este é o ano da fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB) de caráter comunista, ano em que VC se filia ao mesmo e se torna um veículo de propaganda comunista não oficial, visto que o periódico oficial do PC do Brasil era A Classe Operária, criado em 1925 pela direção do próprio partido.

Por estabelecer essa espécie de transição ideológica entre o anarquismo e o comunismo, Voz Cosmopolita se configura numa fonte riquíssima para estudos. Nela encontramos vestígios de um passado político que convive com o presente e o futuro, no que se refere à matriz ideológica deste grupo e daqueles que dele fizeram parte. As imagens veiculadas nessa publicação não têm um espaço garantido na diagramação do jornal. Em geral, costuma-se veicular a imagem na primeira página, mas em VC a imagem é apresentada como suplemento ilustrado, como parte de edições comemorativas, ou ainda inaugurando algum texto, sempre, no entanto, destacando-se em meio aos demais componentes gráficos do periódico.

1.4 A experiência visual nas páginas de A Plebe e Voz Cosmopolita

Estudos recentes e ainda pouco numéricos inauguram essa nova abordagem acerca da história operária no Brasil, interessando-se pelos elementos sensíveis que vão além do discurso articulado nas páginas dos periódicos operários. Muitas dificuldades permeiam a interpretação dos elementos visuais impressos nesses jornais. Trabalhamos, em geral, com uma produção imagética anônima, em que encontramos pouquíssimas referências sobre a

8 O grupo editor de Voz Cosmopolita era constituído por: José Moreira, Sergio Gonzalez Blanco, Eladio Cid, Anthero Corrêa, José Baptista Ferreira, Antônio J. da Costa, Luiz Nascimento, Francisco Bastos, José J. da Costa Junior, Argemiro Doval, Alexandre Rodrigues, Francisco Villar, José Gomes Pereira de Faria, Pedro Giotti, Augusto Moreira, Antonio Soares Valente, Angelo de Souza, Guilherme Saraiva, Antonio Pinto Moreira, Julio Moreno, Bento Alonso, José Ferreira Morgado, Manoel Solfo Aljam, Antonio Belmonte, Verissimo Solha Fernandes, Joaquim Ribeiro e Antonio Pontes. Cf. Sem autor, “Grupo Editor Voz Cosmopolita”, Voz Cosmopolita, Rio de Janeiro, 01.02.1922. p.3.

9 A comissão executiva de Voz Cosmopolita do primeiro semestre de 1922 era composta por: José Moreira (secretário geral), Augusto Moreira (secretário de correspondência), José J. Costa Junior (tesoureiro), Argemiro Doval (corpo de redação), José Baptista Ferreira (corpo de redação) e Antônio Pontos (corpo de redação). Cf. Ibid. p.3.

10 Ibid. p.3.

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técnica e as escolhas desses “artistas engajados”. Algumas características, no entanto, desse tipo de trabalho permitem que mergulhemos nesse universo de possibilidades interpretativas que envolvem essa produção.

As imagens publicadas em A Plebe e Voz Cosmopolita configuram-se enquanto ilustrações, pois tomam como referente o texto, ou a manchete do jornal desenvolvendo novas possibilidades de interpretação acerca do evento narrado em seu “em torno”. Em geral essas imagens são apresentadas com um título (acima ou abaixo), e complementadas com algum texto de sentido direto ou (no caso das edições comemorativas), com alguma poesia assinada pelo autor, ainda que utilizando algum pseudônimo.

Por se tratarem de veículos de propaganda e agitação sindical, esses jornais não dispunham de recursos suficientes para garantir um espaço fixo e frequente para a publicação de imagens. Em geral, elas são poucas, ao menos nesse início de atividade, mas destacam-se em meio aos textos longos e de letras minúsculas que ocupavam todo o espaço disponível nas folhas A3. As ilustrações eram desenvolvidas, em sua grande maioria, através da litografia, utilizando efeitos de granulação observáveis através da variação de tons que algumas imagens apresentam. A técnica era desenvolvida, de acordo com Joaquim da Fonseca da seguinte forma:

Por muitos anos a litografia foi feita usando blocos de pedra calcária como matriz, um tipo especial chamado pedra litográfica. Esses blocos com superfície perfeitamente plane e de granulação finíssima e regular, eram especialmente preparados. O desenho que se desejasse imprimir era marcado ou decalcado e fixado, na superfície lisa da pedra, com tinta e outros materiais gordurosos. A pedra era, a seguir, ensopada de água, e esta ficava retida nas partes porosas não cobertas pelo desenho. A pedra era então entintada, e a tinta, também gordurosa, aderia somente na imagem e não nas partes da pedra impregnadas na água. A impressão no papel era então procedida por meio de uma prensa especial.[...] Com a evolução industrial do processo, a pedra foi eventualmente substituída por outros materiais, como chapas de zinco ou alumínio flexível especialmente granuladas e adequadas para gravação.11

A litografia era uma técnica que possibilitava a publicação de imagens nos jornais com baixo custo e fácil reprodução, sem a necessidade de manter uma grande equipe de trabalho, e ainda produzindo com certa agilidade. Levando-se em consideração a repressão feroz a essas organizações, sobretudo, através da destruição das sedes e das máquinas, os parcos recursos que detinham e a necessidade de manterem a circulação do periódico entre aqueles que contribuíam financeiramente, esses fatores certamente influenciaram na escolha da técnica de produção das ilustrações.

A partir desses elementos é interessante discutirmos o uso que se fazia dessas imagens. Não há como renunciarmos ao fato de que essas ilustrações estavam vinculadas a jornais que buscavam construir e fundamentar um discurso em torno da unidade política e que seus produtores, da mesma forma, tentavam contribuir para este intento; nesse sentido essas ilustrações interagem com o mundo em duplo sentido: por um lado são fruto de intencionalidades determinadas por um grupo, por outro ajudam a construir parte dessas intencionalidades através de uma abordagem diferenciada.

Os leitores, ouvintes12 e observadores desses jornais compartilhavam entre si alguns valores e significados provenientes dos “mundos do trabalho”, entretanto, esses elementos

11 FONSECA, Joaquim da. Caricatura: a imagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999. p.38-39.

12 Por “ouvintes” denominamos aqueles trabalhadores que, sendo analfabetos, não conseguiam ter acesso à leitura formal dos textos dos jornais, a apreensão do conteúdo escrito por parte desses sujeitos, era feita a partir das reuniões desses organismos sindicais, onde os jornais eram lidos em voz alta por alguns representantes e seus temas amplamente debatidos.

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não compunham um referencial homogêneo e integrador. Cada sujeito envolvido nessa teia de relações possuía o seu arcabouço de memórias, e com ele estabelecia suas próprias associações. As imagens, ainda que vinculadas a um discurso, não eram o próprio discurso, mas eram portadoras de ideias. Portanto, quando vemos em VC a representação da anarquia na forma de uma mulher com o dorso nu empunhando uma tocha que ilumina o caminho no qual a sociedade deverá passar, não se trata da anarquia em si, mas da ideia que o artista faz dela, essa ideia de anarquia imposta através de elementos simbólicos provavelmente não é a mesma que tinha o observador antes de contemplá-la. Nesse sentido devemos chamar atenção para o potencial criador dessas ilustrações, pois de acordo com Jean-Claude Schmitt:

As próprias imagens conseguem mais de uma vez nos lembrar que sua função é menos representar uma realidade exterior do que construir o real de um modo que lhe é próprio. Para o historiador, a questão será assim menos a de isolar e de ler o conteúdo da imagem, do que compreender sua totalidade, em sua forma e estrutura, em seu funcionamento e suas funções.13

A riqueza da imagem está justamente na possibilidade que fornece de múltiplas interpretações que vão além do discurso, ela insere outra forma de reflexão, que não se limita à combinação de palavras, visto que não encerra impressões. Segundo Régis Debray “pensar a imagem supõe, em primeiro lugar não confundir pensamento e linguagem, pois a imagem faz pensar por meios que não são a combinação de signos”. (DEBRAY, 1992, p.43).

As ilustrações veiculadas nesses jornais operários funcionavam abrindo espaços de sociabilidade e interação que até então inexistiam na vida desses sujeitos. A reflexão proporcionada pela visualidade trazia um conjunto de vivências novas no interior do movimento operário brasileiro. Em geral, o discurso falado e impresso constituíam os principais mecanismos de comunicação e troca de ideias, a imagem é um elemento novo nesse meio. Em meio às disputas políticas e ideológicas, almejava-se, nesse início de século, o alcance de uma unidade do movimento, era preciso criar vínculos entre os sujeitos inseridos na dinâmica do trabalho, e as ilustrações são colocadas nos jornais também com essa função.

A relação estabelecida entre os trabalhadores e a agremiação sindical não foi alimentada somente pelo dever político, ou seja, pela participação destes em greves, reuniões, assembleias, piquetes, boicotes, etc., o prazer do convívio social, das conquistas compartilhadas, da música, da dança, dos esportes, do teatro, enfim, de todas essas expressões de ordem sensível compunham outra ordem de elementos que ajudaram a sedimentar a percepção coletiva de que existia uma cultura operária que evidenciava, não só através do discurso escrito e falado, experiências e impressões acerca de um universo que era comum a esses sujeitos: o universo das fábricas, das grandes cidades, do ritmo de trabalho, da organização do tempo, da responsabilidade familiar e social, das agruras cotidianas oriundas dos baixos rendimentos, da fadiga semanal, mas, sobretudo, da esperança de que o sofrimento proveniente da lógica estruturada no interior dos mundos do trabalho poderia era finita.

As ilustrações compunham um substrato sensível que propiciava não só as reflexões coletivas, o compartilhamento de ideias semelhantes, mas ao contrário, possibilitava as trocas de reflexões particulares. O significado do visível era múltiplo e se relacionava com aquilo que cada indivíduo trazia no seu “compêndio de vivências”. A rotina da fábrica poderia ser fixa, determinada; o horário marcado pelos ponteiros do relógio do patrão que indicava o início e o fim do expediente era sempre penoso, entretanto, todos esses elementos provocavam sensações e impressões variadas em cada um dos indivíduos envolvidos nessa lógica. Abria-se em meio ao discurso político impresso, um espaço de reflexão diferenciado,

13 SCHIMITT, Jean-Claude. O historiador e as imagens. In: O corpo das imagens. Ensaios sobre a cultural visual na Idade Média. Bauru: EDUSC, 2007. p.27.

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repleto possibilidades interpretativas, tentando contemplar aquilo que as palavras não poderiam fazer. Segundo Régis Debray:

O cérebro direito, fala com o cérebro direito, mas não está em simpatia natural com o outro hemisfério. O comentário e a emoção não mobilizam os mesmos neurônios. Símbolo e indício se olham com hostilidade. Tanto é assim que a emoção começa onde termina o discurso. [...]Contra o intelectual, o artista se levanta como artesão, exerce sua obra contra a linguagem.14

Nessa direção temos de atentar para o fato de que existe uma interação inerente entre aquele que produz a obra e aquele que a observa. O observador, também constrói a imagem a partir das ferramentas imaginárias de que dispõe. A anarquia (figura 2), imagem alegórica tão presente nessas ilustrações, representada morfologicamente como uma mulher, que empunha uma tocha de fogo, indicadora do caminho da liberdade e dos tempos vindouros tem forma definida, seu olhar volta-se para o horizonte, seus pés arrastam correntes rompidas num salto esplendoroso por entre os escombros da “velha ordem”, todavia, a “nova ordem” não é figurada. A presença de alguns signos suscita a reflexão acerca da ausência de outros, e essas imagens ausentes só podem ser visualizadas no processo que se completa somente no olhar e no pensamento do observador.

Contudo, em se tratando das circunstâncias em que essas imagens foram produzidas há que se levar em conta que ainda existe um vínculo muito estreito entre a linguagem escrita, e a construção imagética, isso pode ser observado através desse mesmo exemplo (a representação da anarquia). Enquanto em uma ilustração de A Plebe datada em 12.04.1919 (figura 2), a anarquia é apresentada morfologicamente num corpo de mulher, em imagem datada 11.08.1917, também de A Plebe (figura 1), o anarquismo aparece através de um machado que ceifa os valores da ordem capitalista imbricados no troco e nos galhos de uma árvore. A ideia de masculino e feminino é relacionada à construção semântica do discurso falado, ou escrito. Logo, se falo em anarquia (substantivo feminino) ela deve ser ilustrada num corpo feminino, em contrapartida, se falo anarquismo, devo ilustrá-lo enquanto substantivo masculino.

Algumas características discursivas se fazem presentes nessas manifestações de ordem imagética, e devemos levá-las em consideração enquanto propriedades discursivas que são associadas às imagens; todavia não devemos nos deixar seduzir pela tentação de “ler” as imagens, numa abordagem semiótica fechada e restrita, visto que elas se inserem num plano diferente do discurso e têm, por isso, abrangência maior. Conforme assinala Jean-Claude Schmitt “não se deve aplicar o sentido da cultura letrada às imagens, reduzindo uma a outra” (SCHMITT, 2007, p.29), pois cada uma possui suas especificidades, seus limites e possibilidades interpretativas.

Dentro das possibilidades de análise das imagens, outro fator que devemos levar em consideração é o que Hans Belting chama de “presença-ausência” (BELTING, 2010, p.264). Muitas ilustrações tanto de A Plebe (figuras 1 e 2) quanto de Voz Cosmopolita (figuras 3 e 4) figuram os personagens principais da cena como que se libertando de grilhões e correntes. A antítese entre prisão e liberdade é um recurso muito utilizado. O simbolismo das correntes e dos grilhões faz parte do imaginário dessa sociedade que conviveu por tantos anos com a escravidão; não só os negros recém inseridos no movimento operário, mas os próprios trabalhadores brancos carregam o estigma do cerceamento das suas liberdades individuais. O regime de escravidão já não está mais presente na realidade brasileira, entretanto, as imagens se utilizam desse passado para caracterizar o presente, associando a restrição da liberdade às emoções de um passado que causa mal-estar. O olhar de alguns personagens (figuras 2, 3 e 4), direcionado ao horizonte agrega também a ideia de futuro a essas ilustrações.

14 DEBRAY, Régis. La transmisión simbólica. In: Vida e muerte de la imagen. Barcelona: Paidos, 1992. p.44

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Três tempos caminham juntos numa mesma imagem. A discussão acerca da variação de temporalidades presentes na mesma ilustração se faz pertinente em nosso estudo, pois reitera a ideia de que a arte segue seus próprios princípios e para compreendê-la não podemos nos guiar pela sequencia cronológica que a tradição historiográfica nos legou. A lógica das imagens é peculiar; diferentes temporalidades convivem numa mesma imagem sem que, com isso ela perca sentido, ou impossibilite interpretações. Didi-Huberman insere esse debate em seus estudos atentando para essas variações de temporalidades, na sua concepção a própria sobrevivência da imagem influi sobre a temporalidade. A arte que é produzida no presente direciona-se ao futuro, sobrevive, se mantém através da memória que encerra em si mesma, e daquela que suscita no observador, a partir do momento em que ele interage com a obra. 15

A partir do momento em que o espectador se deixa envolver pela experiência visual, contemplando a ilustração, o conteúdo múltiplo dessa imagem já não pertence mais a ela, é exterior. A imagem é “reconstruída” mentalmente pelo espectador, ele agrega elementos à obra, a percebe de forma única, e mesmo quando uma ilustração se utiliza de textos (figuras 1, 2, e 3), o significado dessas palavras já não estão mais encerrado dentro da configuração linguística. As palavras autoridade e iniquidade moral inseridas no tronco de uma árvore que é abatida pelo machado de um homem (figura 1), não respondem mais apenas pela sua denotação formal; agregam todas as possibilidades de significação vinculadas à composição visual. Dois significados se cruzam nesse tipo de recurso visual, pois segundo Hans Belting:

É imagem em sentido literal de linguagem e em sentido transposto, uma vez que é sabido que a escrita é uma imagem da linguagem: o que vemos nunca são palavras, mas sinais de escritura. [...] Vemos uma só palavra que, contudo, significa um número indefinido de palavras. [...] Se revela a coisificação do que se vê ou do que se fala: das imagens vistas e das palavras faladas emergiram objetos.16

Há uma tendência em compreender essas imagens veiculadas em jornais operários como portadoras de um discurso pronto, que é transmitido pelo periódico através das ilustrações, aos leitores e observadores, essa é, porém, uma concepção equivocada. A relação que se estabelece entre o observador e a ilustração é bem mais complexa, pois ainda que o discurso estivesse conformado em sólidas bases ideológicas (o que nos casos analisados não corresponde à realidade), esse discurso só se legitima se partir dos dois polos de transmissão, sujeito-observador e produção imagética, caso contrário essa relação não grassa êxito. Conforme pontua Belting: “as imagens só podem legitimar um olhar que busque confirmar-se nelas, o olhar, que nunca descansa e nunca se repete, também transforma as imagens” (BELTING, 2010, p.281). Nesse sentido, levando em consideração os sujeitos históricos envolvidos com essas publicações, é impossível pressupormos que seus olhares estavam orientados à determinada compreensão visual do que era publicado.

O mundo em que esses trabalhadores estavam inseridos, por si só, já se constituía numa produção visual interna. A percepção que tinham do ambiente de trabalho, dos espaços de lazer e da própria militância era interiorizada também através de imagens; a diversidade cultural, linguística, étnica existente entre esses sujeitos contribuía para tornar essas percepções ainda mais variadas.

Há quem possa ver na variedade de sentidos possíveis dessas ilustrações um anacronismo entre sua “função política” de promover um sentimento de unidade entre os trabalhadores

15 Cf. DIDI-HUBERMAN, Georges. La imagen-malicia. Historia del arte y rompecabezas del tiempo. In: Ante el tiempo. Historia del arte y anacronismo de lãs imágenes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2008. p.141-145

16 BELTING, Hans. La transparencia del medio. La imagen fotográfica. In: Antropologia de la imagen. Madri: Katz, 2010. p.294-295.

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pertencentes ao sindicato e as possibilidades interpretativas abertas, conferidas a este tipo de expressão artística. Como entender o uso dessas imagens e a pulverização de impressões que suscitam se o objetivo da organização sindical é exatamente o contrário, ou seja, promover unidade sob a “bandeira” de determinada matriz ideológica? A resposta para esse questionamento deve ser buscada nele mesmo, e nesse ponto é importante compreender o funcionamento dos sindicatos desse período.

Tanto A Plebe quanto Voz Cosmopolita promoviam, além das atividades políticas, as atividades sociais e de integração. O próprio jornal e o ato de lê-lo contém um caráter individual. É fato que muitos trabalhadores ainda sofriam com o analfabetismo, no entanto, as reuniões de leitura em voz alta não só possibilitavam ao ouvinte ter acesso ao texto da publicação, como promoviam a integração entre os presentes. A ilustração publicada na maior parte das vezes em destaque era mais um elemento que possibilitava o contato entre os indivíduos que compareciam às reuniões; talvez não fosse tema de amplos debates, como eram os textos, no entanto, forneciam ferramentas mentais (mesmo que inconscientemente) a esses debates.

Como fugir daquilo que se vê? Como negar o visível? A experiência visual era parte da vivência política, fornecia novas reflexões que podiam ser compartilhadas no grupo. A visualidade, enquanto exercício de ordem sensível fomentava o caráter humano da relação entre jornal e leitor e na própria relação política entre os militantes. A ilustração não orientava o olhar como fazia o texto, ela libertava a percepção; o espaço onde estava inserida conferia um tempo de abstração valioso para esses militantes.

A construção de uma cultura de classe operária no Brasil passou também pelo universo simbólico proveniente das produções imagéticas, pois como assinala Michelle Perrot, “não existe consciência de classe sem visão de mundo ou cultura sem a elaboração de uma simbologia” (PERROT, 1988, p.81). Tratamos aqui de conceitos muito fluidos que se entrecruzam e estabelecem relações num âmbito repleto de abstrações, nesse sentido é válido entendermos que a simbologia de que falamos não se manifesta através da construção imposta de signos transmitidos e assimilados numa relação mecânica. Falamos na ilustração de símbolos que, de fato, carregavam consigo significados associados à memória de sua circulação, como é o caso dos grilhões rompidos e da tocha de fogo que ilumina o devir. No entanto, a esses significados tantos outros, certamente foram agregados em meio as referências que cada observador inseria no olhar que dedicava à imagem.

No início do século XX as disputas ideológicas, particularmente, as movimentadas entre anarquismo e comunismo não se colocam na experiência visual com o mesmo ímpeto separatista que impõe o discurso textual impresso. O ponto de identificação máximo lançado pelas ilustrações se concentra na sedimentação da unidade através de memórias que causam, sobretudo, mal estar. A falta de liberdade, a opressão, e as agruras presentes no cotidiano do trabalho são rememoradas simbolicamente suscitando nos observadores a reflexão acerca da sua realidade. A identificação não se constrói no instante em que o olhar capta a imagem, ela é construída através de associações com o que é experimentado, e que de alguma forma se vincula ao que é visto. Segundo Zygmunt Bauman, “as identidades flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta” (BAUMAN, 2005, p.19), é em meio a esse embate de forças invisíveis que se constroem os laços de identificação.

Contudo, nosso objetivo principal não foi identificar os elementos imagéticos que fundamentaram um discurso ideológico. Não se trata de definir hierarquicamente a supremacia do discurso impresso utilizando a imagem como auxiliar ideológico, essa sem dúvidas seria uma abordagem limitadora da percepção que se estabelece sobre nosso objeto de estudo. Procuramos identificar de que formas é possível compreender a visualidade e a importância dela dentro de um contexto de disputas ideológicas entre dois grupos políticos que inauguram sua atuação no Brasil no início do século XX. O trânsito entre essas duas

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tendências também é recorrente na visualidade; as ilustrações são posicionadas acima da disputa ideológica inserida na mensagem textual ou no debate.

O universo imagético, sobretudo, não se limitou à apresentação de ideias do que poderia ser o anarquismo ou o comunismo; a imagem se abre para além dessas fronteiras, e nem mesmo quando a palavra toma a forma de signo (figuras1, 2 e 3), ela não se limita a desempenhar a função denotativa. Compreender o funcionamento dos aspectos sensíveis que ajudaram a compor essas iniciativas políticas de ambição classista no início do século XX é fundamental para reconstituir parte da história do operariado brasileiro, suas lutas, conquistas, medos e anseios, com isso dirigimo-nos finalmente para a concepção de que a identidade operária se constituiu tendo como base a fundação de uma cultura operária, repleta de simbologias e associações mentais não lineares em que a imagem ocupou um espaço de destaque.

Compreender o papel do valor imagético nesse ínterim, e possuir o domínio, sobretudo, das ferramentas interpretativas que se interpõem nesse tipo de análise é o que devem ambicionar àqueles que pretendem se dedicar ao estudo dessa cultura em movimento, e dessa identidade política que transitava entre o mundo sensível buscando alicerçar suas bases num substrato imaginário, ou seja, a concepção classista.

Figura 1: A Plebe. 11.08.1917. Figura 2. A Plebe. 12.04.1919.

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