CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES...

59
CURSO DE DIREITO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA A POLÊMICA LEI 9.434/97 E SUA REFORMA ALUNA: CLÁUDIA MEIRELES CARRIÃO R.A. 441597/2 TURMA: 315B1 TELEFONE: (11) 43303504 ORIENTADOR: JORGE SHIGUEMITSU FUJITA SÃO PAULO FEVEREIRO 2004

Transcript of CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES...

Page 1: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

CURSO DE DIREITO

TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

A POLÊMICA LEI 9.434/97 E SUA REFORMA

ALUNA: CLÁUDIA MEIRELES CARRIÃO

R.A. 441597/2 TURMA: 315B1

TELEFONE: (11) 43303504

ORIENTADOR: JORGE SHIGUEMITSU FUJITA

SÃO PAULOFEVEREIRO 2004

Page 2: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

CURSO DE DIREITO

TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

A POLÊMICA LEI 9.434/97 E SUA REFORMA

ALUNA: Cláudia Meireles Carrião

R.A.441597/2 TURMA: 315B1

Monografia apresentada ao Curso de

Direito da UniFmu como requisito parcial para

obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob a

orientação do Prof. Jorge Shiguemitsu Fujita

SÃO PAULOFEVEREIRO 2004

Page 3: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

BANCA EXAMINADORA

Orientador:_______________________

_________________________________

Arguidor:_________________________

_________________________________

Arguidor:_________________________

_________________________________

Nota( )_____________________

_________________________________

Page 4: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

Agradeço a minha família pelo constante

estimulo nos meus estudos e inúmeras

demonstrações de carinho e afeto. E ao

responsável pela elaboração deste

trabalho, por quem tenho enorme

gratidão ao Professor/Orientador Jorge

Shiguemitsu Fujita.

Page 5: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

SINOPSE

O tema apresentado “Transplante de órgãos na Legislação Brasileira” representa

um amplo conflito de opiniões, possuindo, como verificaremos, divergências quanto à

sua interpretação, aplicabilidade, legalidade, etc.

Sempre amparados por autores amplamente aceitos em nossa convivência

acadêmica, adentraremos inicialmente na definição do tema, continuando pela

evolução histórica para, então, expormos uma visão geral da legislação sobre o

transplante.

Em continuidade, os aspectos jurídicos do transplante no sistema legal

brasileiro, assim como os assuntos que o seguem, serão colocados da forma mais

singela possível, procurando, assim, prestar auxílio para estudantes e iniciantes na

Ciência do Direito.

Também serão classificadas e comentadas as Leis 9.434/97 e 10.211/01 para,

em seguida, adentrarmos na sempre delicada e difícil questão da polêmica gerada e

sua reforma.

Page 6: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...............................................................................................................01

CAPÍTULO 1: TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS............................................................03

CAPÍTULO 2: HISTÓRIA DOS TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS.................................03

CAPÍTULO 3: DIREITO À VIDA ASPECTOS GERAIS.................................................07

CAPÍTULO 4: OS TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS E TECIDOS E SEUS REFLEXOS

SOCIAIS.........................................................................................................................08

CAPÍTULO 5: O QUE É UM DOADOR..........................................................................10

CAPÍTULO 6: O QUE É UM RECEPTOR......................................................................11

CAPÍTUOL 7: RETRIBUIÇÃO ECONÔMICA................................................................11

7.1: A Última Mercadoria: A Compra, A Venda E O Aluguel De Partes Do

Corpo Humano..............................................................................................................12

7.2: A Venda Do Uso..........................................................................................13

7.3: A Venda De Partes Separadas...................................................................15

7.4: Órgãos Para Transplantes – Sangue E Medula – Gametas E Órgãos De

Reprodução...................................................................................................................17

7.5: Causas Que Favorecem A Mercantilização..............................................23

Page 7: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA QUE UM TRANSPLANTE POSSA SER

REALIZADO...................................................................................................................26

CAPÍTULO 9: DOAÇÃO E TRANSPLANTES ENTRE VIVOS.....................................26

9.1: O Doador e as Relações Trabalhistas.......................................................28

CAPÍTULO 10: DOAÇÃO DE ÓRGÃOS DE CADÁVER..............................................28

CAPÍTULO 11: EVOLUÇÃO LEGISLATIVA .............................................................30

CAPÍTULO 12: CONSENTIMENTO PRESUMIDO PARA DOAÇÃO DE ÓRGÃOS –

ESTATIZAÇÃO DO CORPO HUMANO SEM VIDA – A POLÊMICA CAUSADA PELA

LEI 9.434/97...................................................................................................................34

CAPÍTULO 13: ÉTICA E RESPONSABILIDADE........................................................36

CAPÍTULO 14: RESPONSABILIDADE DOS INFRATORES DA NORMA JURÍDICA

QUE REGULA OS TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS....................................................38

14.1. Responsabilidade Penal...........................................................................39

14.2. Responsabilidade Civil.............................................................................41

CAPÍTULO 15: SISTEMA NACIONAL DE TRANSPLANTE–SNT CENTRAIS DE

NOTIFICAÇÃO, CAPITAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DE ÓRGÃOS–CNCDOs.................43

CAPÍTULO 16: O APOIO DE ALGUMAS RELIGIÕES.................................................45

CAPÍTULO 17: LEI N.º 10.211/01 ALTERA A LEI N.º 9.434/97...................................46

Page 8: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................48

BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................51

ANEXOS.........................................................................................................................54

Page 9: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

INTRODUÇÃO

O fenômeno dos transplantes não interessa apenas à ciência médica.

A livre evolução ou aplicação da ciência não pode ser considerada ilimitada, seja

porque o homem é evidentemente uma personalidade complexa, seja por outras

exigências no contexto da sociedade humana.

Os transplantes, assunto deveras polêmico, portanto, determinam uma série de

implicações, quer seja no campo da medicina, da ética, da religião, da psicologia, nas

questões sociais, morais.

E não faltam, como a todos os aspectos da vida, os reflexos jurídicos desta

técnica cirúrgica.

Não havia no direito brasileiro qualquer provisão sobre transplantes e os

progressos súbitos no campo médico-cirúrgico, com grande repercussão na opinião

pública, surpreenderam o legislador e obrigaram-no a reagir rapidamente para que o

fenômeno não escapasse à disciplina legal.

De início, apenas se haviam tentado transplantes de vivo a vivo, de pele, ossos

e, de um só órgão duplo que possui todo ser humano vivo. Dos cadáveres se extraíam

as córneas, artérias e ossos. Em dezembro de 1967, efetuou-se a primeira operação de

transplante de coração de um recém-falecido a um vivo.

O Direito foi então chamado a tutelar não propriamente o sentimento de respeito

dos vivos aos mortos, mas o respeito à própria vida. Nunca o conceito morte foi tão

relativo, como na nascente era dos transplantes de órgãos humanos. Se é lícito e

desejável prolongar a vida do paciente-receptor, deve-se respeitar a vida do doador.

O explosivo evolver do fenômeno dos transplantes veio a ser regulamentado por

lei.

Page 10: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

A preocupação do legislador foi a de não entravar as experiências que vinham

sendo feitas no campo médico. Empregou inclusive uma fórmula ampla, que permite os

transplantes não apenas de tecidos e partes de cadáveres, como também de qualquer

órgão humano.

Não se estimula a arte de pensar. O paciente ou cliente é um número e o

computador dá o diagnóstico ou a sentença. Esquece-se de que Medicina e Direito não

são só ciências, mas são também arte, amor, calor humano.

E quando a morte vence a vida, a ciência e a técnica, devem o calor humano, o

respeito ao próximo e, sobretudo, o amor aquecer a lousa fria da sala de necrópsia ou a

penumbra do salão do júri.

O mérito e a essência do ordenamento jurídico vigente são mantidos e as

questões com vertentes, foram aos poucos canalizando-se para um raciocínio.

Page 11: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

1. TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS

Transplante é a retirada de um órgão ou material anatômico proveniente de um corpo, vivo ou

morto, e sua utilização com fins terapêuticos em um ser humano.1

Todoli entende por transplante a amputação ou ablação de um órgão, com função própria, de um

organismo para instalar-se em outro, afim de exercer neste as mesmas funções que no anterior. Também

são chamados enxertos vitais que deve compreender a secção de uma porção do organismo, próprio ou

alheio, com fins estéticos e terapêuticos, sem exercício de função autônoma.2

Entre os autores nacionais, cremos que foi Daisy Gogliano quem melhor

sistematizou a matéria, esclarecendo, em primeiro plano, que o vocábulo transplante,

no vernáculo, pode, às vezes, aparecer como sinônimo de enxerto ou de implante.3

2. HISTÓRIA DOS TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS

A história dos transplantes de órgãos é procedente possivelmente da

antigüidade, no entanto, as primeiras referências podem ser consideradas lendárias. A

luz do século XXI, podemos notar que o transplante de órgãos e tecidos possui caráter

de meio de cura, mas que a evolução salutar dos usos e costumes fez com que a

medicina sofresse um notável progresso.

Na belicosa Suábia de antanho, região da Alemanha moderna, de acordo com os

relatos da época, o primeiro direito germânico designava que o devedor, no caso de

não pagamento de uma dívida contraída, podia conceder ao credor o direito de se

1 Ricardo Antequera Parili. em sua monografia El derecho, los transplantes y las tranafusiones, p.22.2 Todoli, José. Ética dos trasnplantes, São Paulo, Herder, tradução, p.88.3 Daisy Gogliano. O Direito ao Transplante de Órgãos e Tecidos Humanos; tese de doutorado apresentada àFaculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1986.

Page 12: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

apossar de uma parte do seu corpo, dada como garantia da obrigação assumida, ou

seja, o credor detinha o poder de extirpar a quem lhe emprestou dinheiro e não pagou.

De acordo com a tradição chinesa, o cirurgião Pien Chiao realizou com sucesso

a troca de órgãos entre dois irmãos, por volta de 300 anos a.C.. Através de estudos

arqueológicos, os transplantes dentários foram encontrados na Grécia, Roma e mesmo

na América pré-colombiana.4

Já na Idade Média, firmou-se a lenda dos Santos Cosme e Damião, que

caminhavam pelo cemitério na busca de membros que substituíssem a perna

gangrenada que deveria ser amputada. Entre os antigos, os hindus eram conhecidos

pelos primeiros relatos de reconstrução do nariz e pela implantação de pedaços de pele

para a reconstrução facial, realizada pelo cirurgião Sushruta no ano de 750 a 800 a.C..

Nos séculos XV e XVI, foram prescritos vários experimentos primitivos de

extração de tecido animal para os homens, mas devido às infecções muitos terminaram

em fracasso, somente no século XIX e começo do XX, estes inconvenientes foram

superados e as plásticas começaram a ter mais sucesso.

No ano de 1890 na Escócia, Glasgow fez o primeiro transplante ósseo, em 1887

Macewec extirpou toda diáfise umeral (porção mais estreita de um osso longo, situada

entre as duas extremidades deste, as quais são mais largas do que ela e, em geral,

articulares; situada no úmero, osso único do esqueleto de cada braço5) de uma criança

de três anos que estava afetada de osteomielite persistente (o conteúdo da cavidade

medular e o tecido ósseo tornam-se infectados por uma bactéria que entra no corpo

4 Daisy Gogliano. O Direito ao Transplante de Órgãos e Tecidos Humanos; tese de doutorado apresentada àFaculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1986, p. 143.5 Dicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e J.E.M.M. Editores. Rio de Janeiro; Editora Nova Fronteira S.A.,1988, p.220 e 658.

Page 13: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

através de um furúnculo ou outro tipo de ruptura da pele, convertendo o tecido

gorduroso da cavidade medular em pus e destruindo o tecido ósseo, antes da

descoberta dos antibióticos a osteomielite era uma doença muito grave com uma alta

taxa de mortalidade6), alguns anos mais tarde outro médico implantou um grande

número de cunha óssea ressecada em seis pacientes. As tentativas de transplantes

continuaram e, em 1931, foi realizada na Itália um transplante de glândula genital pelo

médico Gabriel Janelli, que pelo fato do doador vivo ter cedido a glândula por dinheiro,

criou uma polêmica na ciência médica, jurídica e na opinião pública.

Já o transplante renal se iniciou em 1954 em Boston: o cirurgião Joseph Murray,

extraiu o rim de um gêmeo para implanta-lo em seu irmão. Contudo, a problemática dos

transplantes adquiriu corpo em dezembro de 1967, no hospital Grotte Shuur da cidade

do Cabo, África do Sul, quando o doutor Christian Barnard, retirou o coração de Denise

Ann Darvall, de 25 anos morta em acidente de trânsito, no qual o seu cérebro fora

praticamente destruído para colocá-lo no comerciante Louis Washkansky. Esta prática

trouxe à luz uma discussão bastante concisa tanto na medicina como no direito, ao que

determina a morte do doador, baixa possibilidade de sobrevivência normal do receptor

ou mesmo relacionada a inconveniência da rejeição.

O comerciante aceitou o risco da operação, pois além de ser diabético tinha o

fígado hipertrofiado e desta forma, sabia que não tinha outra possibilidade de

sobreviver. A família de Denise, permitiu a operação, ciente de que não restava

esperanças para a filha. A cirurgia durou cerca de cinco horas, mas após dezoito dias

Louis faleceu.

6 Spence, Alexander P. .Anatomia humana básica/Alexander P. Spence; tradução Edson Aparecido Liberti, SãoPaulo; Manole, 1991, 2º Edição, p. 106.

Page 14: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

Ainda durante o ano de 1968, mais de cem corações foram transplantados no

mundo, 54 nos EUA e 10 na França, mas em quase todos os casos o receptor

prolongou a sua vida. Com o avanço tecnológico e vasta experiências, em 12 de maio

de 1987, pela primeira vez na história dos transplantes, uma pessoa viva foi doadora de

coração, na cidade americana de Baltimore, envolvendo três pessoas, o primeiro

doador foi um homem de 32 anos vitima de um acidente de carro fatal, no qual a equipe

de médicos, através da conservação no gelo, retirou seus pulmões e coração, que

passou para um rapaz de 28 anos que sofria de fibrose cística. O coração do rapaz, em

bom estado, passou para um terceiro paciente com graves problemas cardíacos. A

grande novidade desse caso, é o fato de uma pessoa viva ter doado seu coração e ao

mesmo tempo ter recebido outro.

As fases pioneiras dos transplantes foram em 1963, em Denver o primeiro

transplante de fígado e no mesmo ano o primeiro transplante completo de pâncreas em

Mineapolis, e finalmente em 1970, o primeiro de medula óssea. No dia 19 de dezembro

de 1986, foi criada em São Paulo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos

(A.B.T.O.), contudo, desde 1965, já foram realizados 1.247 transplantes renais somente

no Hospital das Clínicas, sendo que 300 deles através de doadores cadáveres. Em

outros hospitais do Estado, cerca de 1.342 transplantes e nos demais estados

brasileiros 1.640, ou seja, aproximadamente 4.229 transplantes somente de rins. 7

7 Maria Celeste Cordeiro Leite Santos. Transplante de Órgãos e Eutanásia. São Paulo; Saraiva,1992, p.128.

Page 15: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

3. DIREITO Á VIDA ASPECTOS GERAIS

Vida não é apenas a incessante auto-atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas é algo

dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade.

A prática cotidiana prova que o desenvolvimento é contínuo de distintas formas

de atuação. Em sua tese de Doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de

São Paulo, Deisy Gogliano nos oferece o conceito de vida sob o aspecto médico-

biológico;

“(...) vida é a atividade biológica sociológica e psicológica, manifestada por

um dinamismo mantido por processos intrínsecos ao organismo – elementos naturais –

e sustentada por outros fatores extrínsecos adquiridos pelo próprio homem – cultura”.

Seja lá como for, não há como negar que o primeiro e mais importante de todos

os direitos é a vida. É o primeiro dos direitos naturais que o Direito Positivo pode

simplesmente reconhecer, mas que não tem a condição de criar.

É um direito condicionante, já que dele dependem os demais direitos. Ainda que

o direito à vida não fosse tutelado pelo sistema jurídico, sua natureza de Direito Natural

legitimaria a imposição erga omnes, pois trata de um direito fundamental, o mais

essencial dos direitos.

Carlos Alberto Bittar, no mesmo sentido, afirma que dentre os direitos da ordem

física, ocupa posição de primazia o direito à vida, como o bem maior na esfera natural e

também na jurídica, porque, em seu torno e como conseqüência de sua existência,

todos os demais gravitam, respeitados, no entanto, aqueles que dele extrapolam,

embora constituídos ou adquiridos durante o seu curso tais como direito à honra, à

imagem, etc.8

Page 16: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

Trata-se de direito que se reveste, em sua plenitude, de todas as características

gerais dos direitos da personalidade, devendo-se enfatizar o aspecto da

indisponibilidade, uma vez que se caracteriza, nesse campo, um direito à vida e não um

direito sobre a vida.

O direito ao respeito da vida não é um direito à vida. A vida não é uma

concessão jurídico-estatal, nem tampouco um direito de uma pessoa sobre si mesma.

Como se vê, o direito natural é primordial e sublime e, como tal, deve ser

respeitado por todos e tutelado rigorosamente. Direito natural pois a vida não é, como

vimos uma concessão jurídica-estatal, mas um bem maior, que apenas o reconhece.

4. OS TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS E TECIDOS E SEUS REFLEXOS SOCIAIS

Há vinte anos atrás, doutrinadores renomados já se preocupavam com os reflexos sociais dos

transplantes de órgãos e tecidos na sociedade brasileira. O problema já era inquietante, pois, como

sabemos, o índice de analfabetismo no Brasil atinge escala altíssima se o compararmos com o dos povos

civilizados. A escassez sociocultural somada ao baixo poder econômico são fatores que, há muito,

prejudicam o desenvolvimento do Brasil, e, por vezes, contribuem para distorcer a compreensão de

fenômenos que tem tomado a sociedade mundial de sobressalto. A situação não é diferente com os

transplantes de órgãos e tecidos.

Antônio Chaves relata que em outubro de 1982 foi veiculada pesquisa popular

sobre o Anteprojeto da Lei reguladora dos transplantes de órgãos e tecidos humanos

que visava suprimir do artigo 1º da antiga lei de transplantes (Lei n.º 5.479/68) a

expressão “sem risco de morte ou de lesão corporal de natureza grave” por entenderem

os estudiosos que risco de morte ou risco de vida é a mesma coisa, além de não haver

intervenção que não envolva risco.

8 Carlos Alberto Bittar. Os Direitos da Personalidade. Rio de Janeiro; Forense Universitária, 2000, p. 89.

Page 17: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

Ademais, todo transplante, especialmente o realizado “inter-vivos”, provoca lesão

de natureza grave (a retirada de um órgão, por exemplo, o rim, uma vez extraído,

deixará o doador automaticamente e forçosamente debilitado permanentemente da

função renal). Ora, sob esse aspecto essencial, já que espelharia a verdadeira

realidade da cirurgia de transplante.9

Não foi essa, contudo, a opinião majoritária dos entrevistados. O inquérito levado

a efeito pela Folha de São Paulo, em outubro de 1982, como se disse, dava a entender

que nada menos de 98% das pessoas ouvidas manifestaram-se contra o Anteprojeto da

Lei do Governo.

A maioria temia ser vítima de “eutanásia” nos hospitais ou de tomar a “injeção da

meia-noite”; se for fácil tirar seus órgãos depois de mortos, suas vidas poderão ser

abreviadas para a comercialização de corpos, com perigo de serem deixados morrer

para efetuar o transplante.

Mal sabemos como justificar essa triste constatação da ignorância de nosso

povo.

Não podemos negar que a situação foi alterada no decorrer dos anos, embora,

ainda hoje, existam os que pensem de forma retrógrada.

Outro problema que existe, contudo, é o que esta calcado no pequeno número

de doadores diante do imenso conglomerado de receptores. Esse ato cirúrgico

envolvendo córneas, pele, rins, ossos, entre outros órgãos e tecidos, atinge resultados

tão satisfatórios que a procura de órgãos acaba sendo maior que a oferta.

9 Antônio Chaves. Direito à Vida e ao Próprio Corpo. São Paulo; Revista dos Tribunais, 1986, p. 223.

Page 18: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

Devido a esse obstáculo, a Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul foi a

pioneira ao aprovar lei no sentido de oferecer incentivo aos doadores. Seguindo seus

passos, a Assembléia Legislativa da Bahia aprovou o projeto de lei n.º 7.801/89, de

autoria de Sebastião Castro, que instituiu naquele Estado legislação semelhante à

gaúcha. Acreditamos que foram projetos como este que acabaram por levar a efeito a

promulgação da nova Lei de Transplantes de Órgãos e Tecidos Humanos (Lei n.º

9.434/97 alterada pela Lei nº10.211/01), que ajuda na realização da cirurgia de

transplantes de órgãos e tecidos.

Todavia, no Brasil, ainda persiste o quadro em milhares de pacientes que poderiam ter seus

males solucionados e suas vidas salvas, esperando meses ou anos por transplante sem que os possam

realizar, pela falta de doadores, vivos ou mortos. Eis a principal razão que estimula, educa e desperta os

indivíduos para este gesto humano, democrático e solidário de doar órgãos e tecidos com único objetivo

de salvar vidas humanas. Sejamos nós os precursores desses gestos para que, no futuro, possa existir

maior esperança de vida saudável entre os homens.10

5. O QUE É UM DOADOR

Doador é a pessoa que não implica em nenhum momento sobre a disponibilidade gratuita do

próprio corpo. È a pessoa maior e capaz, apta a fazer doação em vida, ou “post mortem” de tecidos,

órgão ou parte de seu corpo, com fins terapêuticos e humanitários.

6. O QUE É UM RECEPTOR

10 Freitas Nobre .O Transplante de Órgãos Humanos à Luz do Direito. p. 81.

Page 19: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

É a pessoa em condições de receber por transplante tecidos, órgãos ou partes do corpo de outra

pessoa viva ou morta e que apresenta perspectivas fundadas de prolongamento de vida ou melhoria de

saúde.11

7. RETRIBUIÇÃO ECONÔMICA

A sociedade médica e científica envolvida em transplantes tem procurado manter a população

sempre informada, de forma honesta e clara, sobre o real procedimento do transplante, mostrando que a

doação de órgãos não é feita de um doador para um receptor específico e sim de maneira geral para os

bancos de órgãos, que escolhem qual o melhor par doador-receptor. É preciso que se esclareça que a

doação é feita à humanidade. É um ato nobre, que não visa lucro algum aos doadores, mesmo que estes

(órgãos) sejam entendidos como bens do indivíduo, bens fora do comércio, previsto em lei penal, em

caso de descoberta do comércio ilegal de órgãos.

A maioria dos juristas recusa a procedência da retribuição econômica para o doador, pois

recorrem a antigos preceitos, como: “o cadáver não é uma mercadoria, o cadáver é coisa fora do

comércio, o cadáver não pode ser apropriado por seus herdeiros e parentes”, ou mesmo por que

evidência uma falta de solidariedade humana.12

7.1. A Última Mercadoria: A Compra, A Venda E O Aluguel De Partes Do

Corpo Humano

Apesar das irregularidades e ilegalidades do mercado de órgãos humanos, os

transplantes constituem uma das maiores conquistas da ciência. Sem dúvida os abusos

registrados podem desacreditar a prática, assim como suscitar repressão a muitos

aspectos do progresso científico.

11 Antônio Chaves. Direito à Vida e ao Próprio Corpo. São Paulo; Revista dos Tribunais, 1986, p. 249.

Page 20: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

Com crescente freqüência, a imprensa internacional vem veiculando notícias

sobre a compra e venda de órgãos humanos para transplantes; existem denúncias até

mesmo de seqüestros e mortes de crianças, com a retirada de partes de seus corpos

para os mesmos objetivos. Em geral, trata-se de informações sensacionalistas e pouco

documentadas. No entanto, já existem processos penais contra médicos que

favoreceram esse tipo de comércio, além de substanciosa documentação sobre

agências que colocam órgãos à venda, bem como de pessoas dispostas a vendê-los.

Fortes discussões sobre a legalidade de tais procedimentos têm sido levantadas em

revistas especializadas como Transplantation proceedings e Journal of medical

bioethics.

Um dos processos aconteceu na Inglaterra contra o Dr. Raymond Crockett, que

transplantou em quatro doentes ingleses os rins de cidadãos turcos classificados como

rewarded donors (doadores gratificados). Na sentença de condenação, o juiz

pronunciou as seguintes palavras: “A vossa tragédia pessoal e profissional, Dr.

Crockett, é que o vosso comportamento desacreditou profundamente a prática dos

transplantes renais, que o senhor mesmo tanto estimulou de forma útil e ativa na

Inglaterra.

Essa tragédia, contudo, tem implicações muito mais amplas. Os transplantes de

órgãos constituem uma das maiores conquistas da ciência, proporcionando um número

crescente de casos de sobrevivência a doentes anteriormente condenados à morte. Os

abusos registrados neste campo podem não somente desacreditar esta prática, como

também suscitar viva repulsa com relação a muitos aspectos do progresso científico,

12 Maria Celeste Cordeiro Leite Santos. Transplante de Órgãos e Eutanásia. São Paulo; Saraiva,1992, p. 145.

Page 21: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

principalmente aqueles relacionados com o mais profundo da existência humana e que

podem originar uma ambivalência de aplicação, em direção ao bem ou ao mal.

Como conseqüência das razões acima mencionadas, originam-se fortes

controvérsias filosóficas e jurídicas que se dividem entre a ética e a ciência, entre a

liberdade e o mercado.13

7.2. A Venda Do Uso

Entendemos por venda do uso a troca de moeda por função corporal, que seja

baseada na igualdade jurídica (teórica) entre os sujeitos contraentes, e que seja

revogável. Neste campo o fenômeno mais freqüente, razão de enormes controvérsias

teóricas e dos maiores conflitos sociais, é a venda da força de trabalho, que Marx

identificou no século XIX como essência do trabalho assalariado e como causa de

alienação. A força ou capacidade de trabalho é entendida como o processo no qual o

homem põe em funcionamento as forças naturais pertencentes ao seu corpo, braços e

pernas, mãos e cérebro, para apropriar-se da matéria-prima da natureza de forma

utilizável para a própria vida.

Além da venda da capacidade laboral, podem ser identificadas outras esferas do

mercado do uso do corpo humano. Uma delas, relacionada à função sexual, se

manteve de formas variadas na sociedade pós-primitiva: a prostituição. Outra, surgida

há pouco tempo, compreende a venda de funções reprodutivas. Pertence a este último

grupo, o caso das amas de leite, uma atividade muito difundida antes da introdução do

aleitamento artificial com métodos modernos, assim como, em tempos mais recentes, o

Page 22: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

sistema de ‘úteros de aluguel’ para a procriação assistida. Existem ainda os casos de

cessão do próprio corpo para experimentos, sobretudo no campo dos fármacos,

estimulado por pagamento ou outras vantagens materiais (por exemplo, redução de

penas para encarcerados). E, por fim, começam a se difundir também as adoções

mediante pagamento: esta prática consiste na transferência de crianças, muitas vezes

recém-nascidas - ou mesmo nascituras - de pais naturais a pais adotivos, através de

quantias repassadas aos familiares ou a intermediários. Nesta troca, é comprada a

renúncia dos genitores naturais a uma função - materna ou paterna - em benefício do

adquirente: a transferência da função filial é compreendida como objeto da negociação.

Como conseqüência deste elenco resumido de situações, a venda do uso

compreende: fenômenos que atravessam os tempos, como a prostituição; fenômenos

que são típicos da sociedade capitalista, como o trabalho assalariado; fenômeno que

estão relacionados ao equilíbrio demográfico e econômico entre as diversas regiões do

mundo, como a adoção de crianças.

Mesmo que a barganha compreenda como contrapartida algumas vantagens

materiais, a venda do uso é freqüentemente acompanhada de conseqüências negativas

para a saúde física e mental de quem vende. Referimo-nos, por exemplo: ao maior

risco de transmissão de doenças pela via sexual, assim como o emprego de violência

pessoal, nas prostituição; aos acidentes, doenças profissionais e menor expectativa de

vida dos trabalhadores da indústria, comparativamente com a média da população, á

subtração da nutrição dos próprios filhos pelas amas de leite; à interrupção brusca da

13 Berlinguer, Giovanni; Guarrafa, Volnei. A Mercadoria Final: ensino sobre a compra e venda de partes do corpohumano. Tradução: José Colaço Barreiros. Portugal: Difel, 1997. Título original: La Merce Finale.

Page 23: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

relação psicofisiológica entre mãe e filho durante a gravidez, no caso dos úteros de

aluguel.14

7.3. A Venda De Partes Separadas

A venda de partes separadas do corpo humano era quase impossível antes

deste século. Houve alguns precedentes como a amputação estética dos cabelos para

a fabricação de perucas ou, no caso mais grave, uma vez que é também debilitante, a

venda de dentes sadios para a confecção de próteses. Podemos recordar a

personagem Fantina de Os Miseráveis, a mulher que, para criar Cosetta, vende seus

belos cabelos loiros por dez francos, depois seus dentes incisivos por dois napoleões

de ouro e, enfim, torna-se prostituta. “O que significa a história de Fantina?”, interroga

Vítor Hugo. Significa a sociedade que compra uma escrava. A miséria oferece, a

sociedade aceita.

A retirada de outras partes do corpo para encaminhá-las ao mercado, porém,

era irrealizável. Em outro texto literário, o mercador de Veneza, Shakespeare narra o

pacto de Antônio com Shilock pela cessão de uma libra de carne em troca de um

empréstimo, contestado por Porzia, no papel de jurista, com base no seguinte

argumento: O contrato não te concede nem mesmo uma gota de sangue; as palavras

precisas são ‘uma libra de carne’; mas, se ao cortá-la verteres uma só gota de sangue

cristão, a terra e teus bens, pelas leis de Veneza, serão confiscados em favor do

Estado.

14 Berlinguer, Giovanni; Guarrafa, Volnei. A Mercadoria Final: ensino sobre a compra e venda de partes do corpohumano. Tradução: José Colaço Barreiros. Portugal: Difel, 1997. Título original: La Merce Finale.

Page 24: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

Nas leis de Veneza havia, provavelmente, qualquer salvaguarda com relação a

contratos similares àquele imposto por Shilock, não sabemos se em base ao direito

natural ou ao desejo de tutela dos cristãos com relação aos judeus. No entanto, nem a

lei antiga nem as constituições modernas previram que a retirada de algumas gramas

ou libras de tecidos e órgãos fosse possível “sem verter uma só gota de sangue”, e de

modo que parte da matéria humana viva pudesse constituir, danosamente ou não ao

corpo alheio, objeto de mercado.

Procedendo-se a um exame mais sistemático de toda a questão, muitas

diferenciações são possíveis, ou mesmo necessárias.

Uma primeira diferenciação pode ser feita com base nas condições do corpo:

vivo ou morto. Este aspecto traz à discussão, obviamente, a definição de morte e seu

reconhecimento, a garantia contra a remoção apressada e prematura de órgãos, o tema

da propriedade e da disponibilidade do cadáver e de suas partes.

Uma outra, no caso de remoção de órgãos de pessoas vivas, pode ser feita com

base na vontade da pessoa, isto é, na diferença profunda constatada entre a doação

(do sangue ou de órgãos, por exemplo) e a compra e venda. È oportuno ressaltar que

existem diversas formas de preservação dos doadores, as quais localizam-se entre

duas situações extremas e antagônicas. Tais situações variam desde a manutenção

da jornada de repouso, a que têm direito os doadores de sangue segundo as leis de

muitos países, até aqueles episódios em que o indivíduo se vê obrigado a vender os

próprios órgãos.

Uma terceira diferença é possível de ser estabelecida com base nas partes do

corpo: existem partes regeneráveis, como sangue; partes não-regeneráveis, como os

rins, e partes únicas e essenciais, como o coração. Esta distinção envolve um juízo

Page 25: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

sobre a conseqüência da remoção quoad vitam et quoad valetudinem, com respeito à

sobrevivência e saúde da pessoa; implica diversas interpretações gerais e em certos

casos até mesmo uma avaliação prognostica individual.

Qualquer uma destas diferenças pode suscitar enormes discussões de caráter

científico e filosófico, relacionadas com escolhas que possam trazer implicações

práticas imediatas. Estes aspectos específicos serão discutidos mais adiante. No

momento nos ateremos a uma outra diferença possível: uma classificação com base

biológica ou anátomo-funcional, relacionada com o objeto concreto do possível

mercado.

Deixamos de mencionar neste trabalho outros dois aspectos do problema. O

primeiro deles, que é totalmente novo, consiste no uso industrial das células humanas

modificadas com a técnica de DNA recombinado, que tem originado discussões morais

e controvérsias legais sobre o direito de propriedade (a célula e os ganhos dela

derivados pertencem à pessoa da qual provém ou quem financiou e desenvolveu a

pesquisa para transformá-la?). E o segundo, que poderia ser resumido em uma

pergunta que exige resposta tão difícil quanto complexa: as situações aqui descritas

constituem apenas casos extremos e isolados ou estamos realmente diante da

propagação dramática de diferentes formas de mercantilização do corpo humano?15

7.4. Órgãos Para Transplantes - Sangue E Medula - Gametas E Órgãos De

Reprodução

15 Berlinguer, Giovanni; Guarrafa, Volnei. A Mercadoria Final: ensino sobre a compra e venda de partes do corpohumano. Tradução: José Colaço Barreiros. Portugal: Difel, 1997. Título original: La Merce Finale.

Page 26: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

Nos últimos trinta anos os transplantes de órgãos experimentaram um notável

progresso devido ao maior conhecimento biológico, às novas técnicas cirúrgicas, ao

uso de medicamentos imunossupressores. Os centros internacionais mais qualificados

têm obtido resultados de sobrevivência de um ano para os pacientes em 90% dos

casos de transplantes de rim de pessoas vivas (80% de cadáveres), em 75% nos

casos de fígado, 85% para o coração, 50% para a combinação coração-pulmão. Outros

centros apresentam percentuais menores de sucesso. De qualquer modo, tanto a

difusão dos transplantes como a escassa disponibilidade de órgãos para atender às

necessidades cirúrgicas têm forçado a procura de outras formas de obtenção dos

mesmos, além da busca e cessão de cadáveres.

Em um congresso realizado em 1990 e que teve como tema ‘ética, justiça e

comércio nos transplantes’, a Transplantation Society apresentou cinco possibilidades

de doações a partir de pessoas vivas: 1) Doações de parentes; 2) doações de

pessoas ligadas sentimentalmente; 3) doações com fins altruísticos; 4) doações

através de pagamento (rewarded donors); 5) comercialismo crescente (rampant

commercialism). A respeito desta útil classificação, podem ser feitas duas observações.

A primeira é que a palavra ‘doação’ é imprópria à possibilidade 4 (doação através de

pagamento). Não só no emprego usual, como na linguagem jurídica, a partir da lex

cincia de donis et muneribus (204 a.C.) e em toda legislação posterior, a doação exclui

qualquer contrapartida e pressupõe, por sua vez, um animus donandi, uma vontade

desinteressada, portanto, o termo mais adequado para definir a quarta situação, ainda

que pareça brutal, é ‘venda de órgãos’. A outra observação se refere ao ‘comercialismo

crescente’; também esta expressão mostra-se açucarada e insuficiente para definir

fenômenos diferentes entre si que vão desde a compra-venda sem regras, até o roubo

Page 27: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

de órgãos e assassinatos com a justificativa de busca ou procura de matéria-prima

para os transplantes, devendo por isso constituir um sexto ponto da classificação

proposta. Não nos ocuparemos neste capítulo dos três primeiros pontos da

classificação sugerida pela Transplantation Society, mas somente dos dois últimos

aspectos, partindo de algumas notícias provenientes de diversos países.

Inglaterra - Além do caso dos quatro cidadãos turcos, já citado, existem

denúncias da venda de rins feita por instituições da Índia para hospitais privados

ingleses. Como conseqüência do primeiro episódio, foi aprovada uma lei sobre

transplantes com base na qual o contrato de cessão de órgãos não é válido; tanto quem

vende como quem compra, é penalmente punido.

Canadá - Em 1990 o professor J. Harvey, da Universidade de Britsh Columbia

apoiou um artigo escrito por M. Evans no Journal of medical ethics, que defendia a

‘doação’ de órgãos por parte de não-parentes vivos: Existe tanta coação comercial

contra os não-parentes, quanto coação emocional e psicológica contra os parentes...

Não existem argumentos morais conclusivos contra este tipo de pagamento pela

doação.

Estados Unidos - Embora o Congresso norte americano tenha aprovado uma lei

que prevê penas pecuniárias e prisão de até cinco anos pela compra e venda de órgãos

(apesar de ser permitida a compra e venda de sangue), existem enormes pressões

vindas inclusive de setores da profissão médica, para que isso seja revisto. Foi proposto

por Peters, por exemplo, uma recompensa de mil dólares como uma espécie de caução

aos parentes de pessoas mortas que tenham tido algum órgão retirado. Por outro lado,

jornais e revistas brasileiras informam que o Instituto de Transplantes de Pittsburg

propôs à Associação Brasileira de Transplantes um acordo nas seguintes bases: a

Page 28: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

formação de especialistas e a instalação de instituto para transplante de fígado no

Brasil, em troca de fornecimento de órgãos para os Estados Unidos. O Dr. Starzl, diretor

do Instituto de Pittsburg, quando indagado a respeito declarou: “Este tipo de acordo não

tem nada de amoral. Nós já desenvolvemos intercâmbios similares com a Índia, o

Paquistão, o México e alguns países africanos.

Alemanha - O jornal brasileiro O Globo publicou ampla matéria sobre um livro, de

Siegfriend Pater e Ashwin Raman, intitulado Organhadel - Ersatzeille aus der Dritten

Welt (Comércio de órgãos - peças de substituição do Terceiro Mundo). O livro descreve

um quadro sombrio relacionado a um mercado de órgãos estabelecido entre os países

subdesenvolvidos e a Europa; segundo os autores, os referidos órgãos estariam sendo

obtidos até mesmo através de homicídios. Esta notícia, assim como outra similar,

referida em uma denúncia anterior, requer confirmação posterior com documentação

mais conclusiva.

Brasil - Este país, onde não é raro nem mesmo o roubo de cabelos à mão

armada para a confecção de perucas, é mencionado freqüentemente como fornecedor

de órgãos para outras nações. Paralelamente a tais especulações, no entanto, parece

existir um ativo mercado interno que se desenvolve diretamente ou através de países

vizinhos. Os jornais Folha de São Paulo (Brasil) e La Repubbica (Itália) informaram que,

segundo a polícia federal brasileira, foi confirmado um movimento de aproximadamente

duzentos rins. A polícia uruguaia prendeu sete pessoas que repassavam para um

hospital de São Paulo pela quantia de 40 mil dólares, rins obtidos por dois mil dólares

nos bairros pobres de Montevidéu. O que existe de concreto, contudo, é que vem se

mantendo com inusitada freqüência nos últimos anos, através dos ‘classificados’ dos

Page 29: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

principais jornais brasileiros, o oferecimento de rins (assim como de úteros para

aluguel) por valores que variam de dez mil dólares.

Em dezembro de 2003, foi notificado pelo programa Fantástico da Rede Globo

de Televisão que quatro pernambucanos foram presos em Durban, Africa do Sul

acusados de vender rins por US$ 6 mil. Trata-se de uma quadrilha internacional de

compra e venda de órgãos humanos. Segundo o Diário de Pernambuco a quadrilha

recrutava os vendedores em bairros pobres do Recife, e o gerente dessa quadrilha no

Brasil é um oficial da Reserva da polícia militar, as investigações continuam (maiores

detalhes estão em anexos pg.71).

Itália - Os jornais italianos divulgam freqüentemente casos de pessoas que, por

motivos variados, oferecem os próprios órgãos para o pagamento de alguma dívida.

Entre estes, pode ser citado o caso de uma senhora de Lamezia Terme que ofereceu o

próprio rim para saldar as contas com os credores da sua empresa; trata-se de um

episódio muito semelhante àquele encontrado na história de O Mercador de Veneza.

Quando começou a difusão da compra e venda de órgãos, os presidentes de

duas sociedades inglesas - Transplantation Society e Bristsh Transplantation Society -

P. J. Morris e R. A. Selles, escreveram uma carta à revista The lancet na qual diziam:

As pessoas não devem jamais ser operadas sob tal constrangimento ou em

conseqüência da corrupção. Tais estímulos não só destroem a natureza totalmente

especial da doação, como ainda ameaçam as normas de proteção usualmente

utilizadas para preservar a saúde, seja do doador, seja do receptor... Esta última

objeção é confirmada pelas experiências com transfusões de sangue nos países onde

vigora a doação paga... No entanto, consideramos agora mais importante fato que tais

transações monetárias corrompem e aviltam as relações entre o doador e o receptor,

Page 30: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

que deveriam ser de altruísmo ou de caridade. Seja qual for o benefício que o

pagamento possa trazer para a melhoria do bem estar e nível de vida do doador e de

sua família, não pensamos que existam justificativas morais possíveis para a venda de

um órgão.

A carta era concluída confirmando-se a decisão, tomada em 1983 pelas duas

sociedades, de vetar aos próprios membros qualquer operação que implicasse

aquisição de órgãos.

Nos anos seguintes, todavia, além de haver se difundido na prática ainda mais, a

compra e venda de órgãos tem encontrado com freqüência sempre crescente

justificativas econômicas e até mesmo morais para sustentá-la. A legalização é

defendida com o argumento de que desta maneira se evitaria a clandestinidade. Afirma-

se também que o doador ou melhor, o vendedor (que continua a ser impropriamente

chamado de doador), submete-se a uma operação cirúrgica com risco mínimo, ajuda

outra pessoa necessitada e é recompensado financeiramente; enfim, tudo é vantajoso

para todos. A conclusão de quem defende todos estes argumentos é que “os vínculos

econômicos induzem as pessoas a cometer muitos atos, alguns deles nocivos à

sociedade, que são proibidos e punidos pela justiça, outros bons e úteis para outras

pessoas e que por isso as éticas não são absolutas e modificam-se de acordo com as

condições e os constrangimentos econômicos”.

A preocupação principal é freqüentemente transferida dos problemas morais e

sociais para os inconvenientes derivados do afrouxamento das condições de

segurança, já previstos na citada carta de Morris e Sells. Existem referências nas

revistas especializadas quanto aos riscos conseqüentes dos transplantes realizados

muito apressadamente e das possíveis infeções que possam vir em decorrência. São

Page 31: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

também publicadas numerosas pesquisas sobre a preservação, seguimento ou controle

das condições pós-operatórias dos sujeitos transplantados com órgãos provenientes de

rewarded donors (doadores gratificados). Não encontramos nenhum trabalho sobre a

preservação ou seguimento dos “doadores” que após a remoção do órgão e

recebimento do pagamento, evidentemente, são deixados ao próprio destino.16

7.5. Causas Que Favorecem A Mercantilização

A partir dos diversos exemplos aqui apresentados fica claro que a

mercantilização do corpo humano tem uma origem muito complexa. Em termos morais

ela deriva da tendência, típica do século XX, de mercantilizar qualquer coisa: não

somente os produtos mas também a natureza, o conhecimento, os sentimentos, o

próprio corpo. Em termos científicos deriva das descobertas que tornaram possíveis a

troca e a utilização de partes do corpo, assim como do fato que alguns campos de

pesquisa e de atuação foram privilegiados em detrimento de outros. Em termos

econômicos origina-se no flagrante desequilíbrio entre o excesso de demanda e a

insuficiência de oferta, como é evidente na questão do sangue e dos órgãos utilizados

nos transplantes.

Relacionadas com estas condições basilares, existem algumas causas que

favorecem a compra e venda, as quais listamos e comentamos a seguir.

Desigualdades sociais e culturais - As denúncias sobre o comércio com órgãos

estruturas ou funções do corpo humano referem-se, invariavelmente, a pessoas pobres

como ‘doadores’-vendedores e a indivíduos com poder de compra como receptores-

16Berlinguer, Giovanni; Guarrafa, Volnei. A Mercadoria Final: ensino sobre a compra e venda de partes do corpo

Page 32: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

compradores. Entre estes dois, quase sempre se coloca uma terceira figura: o

intermediário ou ‘despachante’, que atua isoladamente ou mesmo como empresário;

algumas vezes são os próprios médicos que associam a este encargo suas atividades

profissionais. A constatação de comércio nestes casos pressupõe inequivocamente

cidadãos com duas necessidades vitais bem diversas: os primeiros, tendo que vender

uma função ou uma parte - regenerável ou não - do seu corpo e os segundos, na falta

de órgãos ou estruturas disponíveis para a recuperação dos seus estados de saúde,

tendo que comprá-las para continuar vivendo.

A relação entre esta nova área do mercado e as desigualdades sociais preocupa

principalmente por dois aspectos: o primeiro é que este problema não diz respeito às

experiências humanas isoladas (nutrir-se, trabalhar, morar, estudar, etc.), mas ao

conceito essencial de que o corpo é o lugar de moradia da vida, o outro é que cria-se

em uma população aquela que pode - o interesse em manter sob sujeição sócio-

econômica e cultural uma outra população - aquela que pode - o interesse em manter

sob sujeição sócio, da qual pode adquirir as condições indispensáveis para a própria

sobrevivência.

Raramente as entidades médicas intervém para corrigir as distorções. Pelo

contrário, é desagradável constatar que vem crescendo a freqüência de artigos

publicados nas revistas científicas que tendem a legitimar e estimular formas de

pagamento de partes ou funções do corpo humano provenientes de cadáveres ou de

seres vivos. De uma forma geral, pode-se dizer que estas tendências representam uma

exasperação e uma metáfora da perda dos valores humanos, além da característica

humano. Tradução: José Colaço Barreiros. Portugal: Difel, 1997. Título original: La Merce Finale.

Page 33: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

mercantil que vem assumindo, em muitos casos, o exercício da medicina nos nossos

tempos.

Faltam leis que possam limitar a pesquisa científica, e normas que

desestimulem e excluam o uso das funções e das partes do corpo humano como

mercadoria. Nos países onde tais normas não existem ou são imprecisas, tal comércio

é facilitado ou fica encoberto pela impunidade. Ao contrário, onde as intervenções são

feitas de modo apropriado coloca-se uma barreira, como aconteceu na França com a

gestação por procura, na Inglaterra com a punição contra os transplantadores de rins

comprados de cidadãos turcos e na Itália com a sentença que assegurou à mãe natural

o filho gerado com o ‘útero de aluguel’.

A derradeira mercadoria é uma novidade extraordinária; há poucas décadas, não

havia ainda sido prevista pela ciência, pela filosofia, pelo direito, pela política, somente

o cinema e a literatura a haviam intuído e assinalado. Ela dirige-se ao final do século

XX e pode mesmo vir a condicionar muitos desenvolvimentos práticos e culturais do

próximo século. Felizmente está ainda circunscrita ao aspecto quantitativo, pois até o

presente momento não faz parte dos fenômenos que envolvem as multidões humanas

ou os potentes interesses multinacionais. Mas, no futuro, o problema poderá alcançar

estas dimensões. De qualquer forma, na medida em que lida com o que há de mais

profundo do ser humano, exige, a partir de agora, reflexões e ações que dizem respeito

a muitos campos de atividade.

A questão social e o tema da justiça - Já falamos sobre estes aspectos em

vários pontos. Podemos agora agregar uma consideração sumarizada: em todo

casuística da compra e venda de células, tecidos, órgãos ou funções, são raríssimos os

relatos de que a estrutura retirada venha de uma pessoa rica para beneficiar um pobre,

Page 34: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

ou mesmo que o comércio se desenvolva com material biológico levado dos países do

norte em vantagem dos países do sul. Deve-se ainda assinalar que este fato, ou seja, a

questão social e o tema da justiça, é quase completamente ausente nos debates

promovidos sobre bioética nas nações desenvolvidas. A explicação pode ser a

seguinte: o privilégio de viver no Primeiro Mundo ofusca a objetividade, fazendo com

que as discussões sobre o tema não se desenvolvam e a realidade continue ignorado.

As leis e os comportamentos - Diante dos fenômenos que descrevemos

anteriormente e da perspectiva de que todas estas distorções se estendam e se

generalizem nos próximos decênios, pode surgir espontaneamente um movimento

propondo uma proibição total da pesquisa, da experimentação e das práticas que

conduzem à derradeira mercadoria. Mas, além disso ser impossível, criaria obstáculos à

evolução real do conhecimento e às vantagens que este progresso traria para muitas

pessoas.17

8. CONDIÇÕES PARA QUE UM TRANSPLANTE POSSA SER REALIZADO

A lei brasileira determina que o doador de órgãos tecidos ou partes do corpo vivo seja pessoa

maior e capaz. E o transplante só será realizado se não houver outro meio de prolongamento ou melhora

da qualidade de vida ou melhora da saúde do indivíduo enfermo e se houver conhecimento consolidado

na medicina que admita algum êxito na operação, ficando vedada a tentativa de experimentação no ser

humano.

9. DOAÇÃO E TRANSPLANTES ENTRE VIVOS

17Berlinguer, Giovanni; Guarrafa, Volnei. A Mercadoria Final: ensino sobre a compra e venda de partes do corpohumano. Tradução: José Colaço Barreiros. Portugal: Difel, 1997. Título original: La Merce Finale.

Page 35: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

Em se tratando de retirada de órgãos ou partes de pessoas em vida, o ponto basilar de qualquer

regulamentação legislativa é a eliminação de qualquer risco de morte ou lesão corporal de natureza

grave.

Trata-se de exigência fundamental, para se evitar a possibilidade de verdadeiros crimes, por

omissão ou mesmo comissão, diante da possibilidade, por maiores que sejam as cautelas, de surpresas.

Só é permitido à pessoa maior e capaz dispor de órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins

humanitários e terapêuticos.

Podem ser objeto da doação de órgãos e de tecidos cuja a extração não altere a saúde do

doador de forma permanente e não ponha em perigo a sua vida. O doador não pode ter diminuída a sua

capacidade física ou psíquica, nem perder nenhuma função importante do organismo.

Por esta razão não poderão ser objeto de doação órgãos ímpares, nem membros ou outras

partes que produzam uma diminuição funcional, nem que afetem o seu aspecto estético. A retirada de um

órgão hígido de uma pessoa saudável não lhe traz nenhum benefício, pois deixa-a situação vulnerável,

pois passa dispor de apenas um órgão, que se lesado não terá mais seu par para suprir-lhe a função,

ainda que parcialmente.

A doação intervivos exige informação clara ao doador sobre todos riscos imediatos e tardios do

processo de doação, a fim de que ela possa exercer a sua autonomia de forma esclarecida.

Em conseqüência é necessário realizar um minucioso exame no doador que permita prever se,

por seu estado de saúde atual, pode ver-se seriamente prejudicado no futuro pela doação, também são

analisados possíveis transtornos psíquicos causados pela perda do órgão.

A utilização de órgãos de criança é condicionada ao consentimento dos pais e, em vários países

à autorização judicial. Outro ponto a discutir é quanto à utilização de órgãos de fetos inviáveis como, por

exemplo, na anencefalia, uma mal formação congênita do sistema nervoso central em que não se

desenvolvem os hemisférios cerebrais que poderiam ser considerados apenas meros bancos de órgãos.

Page 36: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

Este tipo de doação somente tem sido aceito quando existe relação de parentesco entre doador e

receptor, a doação de órgãos por parte de amigos ou até mesmo de desconhecidos tem sido fortemente

evitada.

A doação de órgãos é um ato irreversível, sem possibilidade de arrependimentos ou revisões

diferentemente, de uma opção religiosa feita pelos pais e que poderá ser mais tarde modificada pelo

filho.18

9.1. O Doador e as Relações Trabalhistas

O ato de doação de um órgão ou parte anatômica apresenta interessantes aspectos na natureza

trabalhista.

O efeito pré e pós operatórios do doador não surge em conseqüência de enfermidade, nem de

um acidente, ao contrário surge de uma lesão causada por vontade própria.

Suas ausências no trabalho seriam injustificadas acarretando sua demissão. Por outro lado

muitas extrações ocasionam uma diminuição na capacidade do doador, circunstâncias releváveis nos

casos em que o paciente desempenha um ofício onde prevalece o esforço físico, resultando na sua

incapacidade, silencia a lei brasileira a respeito.

10. DOAÇÃO DE ÓRGÂOS DE CADÁVER

O direito do homem sobre seu cadáver é da mesma natureza do direito que tem sobre seu

próprio corpo. Se o homem tem o direito de viver conforme suas concepções filosóficas e religiosas, ele

também tem direito de exigir que suas vontades sejam respeitadas e executadas após sua morte.

Assim, toda pessoa viva, como sujeito de direitos, pode dispor em vida do destino de seus

órgãos, no exercício legitimo de um direito da personalidade, estabelecendo as condições de

18 Bacchela, Teleforo."Doação de Órgãos: vale a lei ou a decisão da familiar". In: Revista INCOR, ano 04, Número36, 1998, p. 19-24.

Page 37: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

sepultamento, embalsamento, proteção e incolumidade, já que esta não reside só na pessoa viva, por

reverência e respeito, mas no reconhecimento da dignidade humana.

O dispoente perde a propriedade do órgão ou parte do corpo que cedeu, o receptor passa a ser

proprietário do bem que se incorporou definitivamente ao seu corpo, a parte que se integra no todo perde

sua individualidade originaria, decorrente da separação e fazendo parte do corpo humano, passa a

pertencer ao sujeito deste.

Uma vez manifestada a vontade por ato de última vontade, para a retirada de órgão e tecidos

após a morte, a renuncia do ato, uma vez expressa, tem o condão de revoga-lo, sem qualquer

justificativa, por se tratar de um direito da personalidade.

O homem ao dar destino ao seu cadáver, não pode ultrapassar os limites éticos em que se

assenta a sociedade, transformando em objeto de negócio.

A decisão pessoal intransferível de quem cede seu corpo ou parte dele em proveito de pesquisa

cientifica ou da vida de seu semelhante, através de documento para valer nos após-morte, deve ser

respeitada, desde que não apresente características de mercantilização.

A retirada de partes do cadáver, sujeito por força de lei à necropsia ou à verificação diagnostica

“causa mortis”, deverá, nos termos da lei ser autorizada por médico legista e citada no relatório da

necropsia ou da verificação diagnostica. A retirada não pode ser acionada por um só médico, nem pode

ser ele membro da equipe que assistiu a pessoa durante o tratamento.

O doador deve evidenciar estado de ausência completa e irreversível das funções do cérebro,

pois a vida humana subsiste até que se declare a cessação da atividade cerebral. Após a retirada de

órgãos ou partes de cadáver, é obrigatória sua recomposição para que seja entregue aos responsáveis

para o sepultamento, sob pena de incorrer na pratica de crime.

11. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA

O primeiro diploma legislativo que entre nós regulou a matéria foi a Lei n.º 4.280, de 06.11.63,

que “dispõe sobre a extirpação de órgão ou tecido da pessoa falecida”.

Page 38: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

Foi revogado pela lei n.º 5.479 de 10.08.68, que “dispõe sobre a retirada e transplante de tecidos,

órgãos e partes do cadáver, para finalidade terapêutica e científica, e dá outras providências”.

Regulava não só a retirada e transplante de tecidos, órgãos e partes de cadáver, como indica o

título, mas também a retirada em vida.

Até 18.11.1992, a Lei n.º 5.479 não havia sido regulamentada, a falta do decreto regulamentador

desta, podia levar a discussão sobre a possibilidade de realização de transplante de órgão, perturbando a

atividade médica na especialidade.

Preceitua a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 199, § 4º “A lei disporá sobre as

condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de

transplantes, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus

derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização”.

O regulamento poderia perfeitamente dispensar a expedição de novo diploma, uma vez que o

anterior contempla todos os pressupostos estabelecidos na Constituição e apresenta como modelo para

a cumulação dessa lacuna (apesar de posterior a nossa) a lei Argentina, que teve seu regulamento

expedido pelo decreto n.º 3.071 de 1977.

Houve alguns projetos para alteração dessa lei um deles é do Deputado Geraldo Alckmin Filho,

foi somente em 02.09.92 que a Comissão de Seguridade Social da Câmara dos Deputados aprovou o

projeto, que, com a intenção de elevar o número de transplantes, propunha que, se a pessoa se

manifeste em vida como doadora, não seria mais necessária a consulta à família para retirada de órgãos

depois de sua morte.

O projeto, segundo o relator, Deputado Geraldo Alckmin Filho, seria um dos mais adiantados do

mundo, prova, sem dúvida, de excessivo otimismo.

Converteu-se, finalmente, na Lei n.º 8.489, de 18.11.1992, que dispõe sobre a retirada e

transplante de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, com fins terapêuticos e científicos e dá outras

providências, desta feita o regulamento não tardou tanto Decreto 879, de 22.07.1993.

Page 39: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

A Lei n.º 8.501, de 30.11.1992, por sua vez, dispõe sobre a utilização do cadáver não reclamado,

para fins de estudo ou pesquisas cientificas, e dá outras providências.

A Portaria n.º 96, de 28.07.1993, da Secretaria de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde

estabelece normas de credenciamento do hospitais que realizam transplantes para o Sistema Único de

Saúde, e registre-se que a Constituição do Estado de São Paulo determina, art.225, crie a Unidade da

Federação banco de órgãos, tecidos e substâncias humanas.

O Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, sancionou, em 04.02.97, a Lei n.º

9.434, que dispõe sobre remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e

tratamento. Esta lei de transplante é resultado de um substitutivo elaborado pelo Senador Lúcio Alcântara

que reuniu três projetos sobre o assunto (PLS 6/95 – PLS 8/95 – PLS 15/95) que se encontrava em

tramitação conjunta. O substitutivo foi aprovado em 22.02.96 e encaminhado à Câmara dos Deputados

onde o número PL 1.579/96 e, também, foram apensados outros projetos que versavam sobre a matéria.

Uma vez aprovado na Câmara o substitutivo, que naquela Casa teve como relator o Deputado Federal

Carlos Mosconi, retornou ao Senado onde, após apreciação, tiveram algumas mudanças acatadas,

outras não. O ponto discordante foi artigo 4º e seus parágrafos, que pela proposta do Senado instituía o

princípio do consentimento presumido, enquanto na Câmara adotou-se o princípio do consentimento

afirmativo, prevalecendo, no final, a redação dada no Senado. A diferença entre os dois princípios é que,

no consentimento afirmativo, todas as pessoas devem se manifestar se querem ou não doar seus

órgãos, enquanto que no presumido, todos os que não se manifestarem em contrário, são considerados

automaticamente, doadores.

No período em que a Lei, ainda em forma de projeto de lei, tramitou no Congresso Nacional,

houve manifestação de apoio, assim como as de rejeição. Os opositores se apoiaram na idéia de que a

doação presumida, como é denominada na Lei, descaracteriza o ato de doação que deve ser voluntário.

Porém, ela continua a ser voluntária, uma vez que o cidadão tem liberdade de escolher ser um não-

doador. É verdade que há uma inversão, já que ser voluntário implica em uma atitude de dar-se um

passo à frente, mas isso não quer dizer coibir o direito à escolha.

Page 40: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

Outro questionamento suscitado foi a possibilidade da sanção da lei propiciar o aquecimento do

comércio ilegal de órgãos. Considerando-se que uma oferta abaixo da demanda é o propulsor do

mercado negro (seja qual for o produto), a doação presumida deve, assim se espera, aumentar a oferta

de órgãos e, consequentemente, minar as bases de tráfico. É bem verdade que a doação presumida não

vai eliminar o problema da carência de órgãos da noite para o dia, mas deve diminuir o problema

consideravelmente.

Entidades médicas se posicionaram contra a idéia, alegando a falta de infra-estrutura dos

hospitais brasileiros para comportar a captação e distribuição de órgãos. Atualmente nem todos os

Estados brasileiros possuem centrais de capitação de órgãos e os hospitais a maioria situada nas regiões

sul e sudeste, realizam transplantes, sendo que alguns apresentam uma produtividade abaixo da

expectativa. Em alguns hospitais, não chegam a ser realizados nenhum transplante durante o período de

um ano.

A Lei, enquanto projeto, previa a criação das centrais de notificação, captação e distribuição de

órgãos, porém este artigo foi vetado no ato de sanção da Lei por tratar-se de matéria da competência do

Presidente da República, conforme o disposto na artigo 61, inciso II, letra e, que diz “São de iniciativa

privada do Presidente da República, as leis que dispunham sobre criação, estruturação e atribuições dos

Ministérios e Órgãos da Administração Pública”. O veto não significou uma divergência quanto ao mérito

da proposta. Seu único objetivo foi o de preservar a ordem constitucional.

O Ministério da Saúde regulamentou a lei e dispõe sobre a criação de uma Central Nacional de

Transplante que é encarregada de realizar o intercâmbio entre as centrais estaduais e os hospitais, que

devem captar os órgãos doados.

O consentimento presumido vai de encontro à tendência verificada em países com Áustria,

Alemanha, Bélgica, França, Itália e Espanha que, sem sombra de dúvida, aponta para a adoção do

princípio da doação presumida.

A princípio, pensou-se que o Presidente vetaria este artigo, diante das manifestações em

contrário de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, Conselho Federal de Medicina,

Secretaria de Saúde do Estado de Alagoas, Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo -

Page 41: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

Cremesp, Igreja Católica e outros. Mesmo o Conselho de Saúde do Ministério da Saúde, mostrou-se

resistente em aceitar o projeto, mas reconsiderou sua posição.19

12. CONSENTIMENTO PRESUMIDO PARA DOAÇÃO DE ÓRGÃOS – ESTATIZAÇÃO DO

CORPO HUMANO SEM VIDA - A POLÊMICA CAUSADA PELA LEI 9.434/97

Na maioria dos países civilizados, o cidadão tem a liberdade de escolher entre ser ou não

doador, no Brasil pelas legislações anteriores, a permissão para aproveitamento de órgãos, havia de ser

dada pelo doador, através de manifestação em vida, devidamente documentada.

Poderia ainda ocorrer à doação, quando inexistia manifestação em vida, expressa do doador,

consultando-se sua família e não havendo manifestação contrária à retirada, se operava a doação.

Com advento da lei 9.434/97, que tornou todos os cidadãos doadores obrigatórios, compulsórios,

reservando àqueles que tem direito a não doar, o inconveniente expediente de ter que se deslocar a uma

repartição pública, dirigindo-se a um funcionário e revelando sua vontade de não ser doador, registrando

tal manifestação em documento de identidade.

Assim, os brasileiros que não desejarem ser doadores, terão de enfrentar vários obstáculos pois

os que não quiserem doar seus órgãos terão de tratar desse assuntos com um estranho, sendo um

assunto pessoal, sempre haverá constrangimento. Ocorre que o constrangimento maior é manifestar-se

como não-doador e verificar uma sutil censura de quem quer que seja, pois por essa lei, o indivíduo é

exposto a reprovação, não só do funcionário público que o atende, mas sempre que apresentar seu

documento no qual estiver escrito “NÃO-DOADOR”, que para muitos será traduzido como “EGOÍSTA”.

Falhou o legislador e falhou o governo, e até o Ministro da Saúde, que se manifestou contrário à

lei, reverteu sua posição apesar de considerá-la inconveniente.

O assunto não esta esgotado e causara muitos problemas, posto que provoca reflexões em torno

de temas, também muito delicados, como a eutanásia, tráfico de órgãos humanos.

19 Antônio Chaves. Direito à Vida e ao Próprio Corpo. São Paulo; Revista dos Tribunais, 1986, p.224.

Page 42: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

O legislador trabalhou com a hipótese do tráfico, tanto é que previu uma posição severa para

aquele que remove ilegalmente órgãos ou os comercializa, com penas que podem chegar a 20 anos.

Com essa lei inúmeros brasileiros esperam que jamais precise de cuidados médicos tão

delicados que possam os fazer ser vistos como um doador compulsório, ou até, por alguns

inescrupulosos, como uma prateleira de órgãos disponíveis para doação em questão de momentos. O

cidadão tem o direito de ser visto, sempre, como alguém que merece toda atenção e cuidados de seus

médicos, visto somente como uma criatura humana que quer viver.

O corpo humano sem vida que antes pertencia à família enlutada foi confiscado pelo Estado, que

o estatelou, como se fosse uma coisa de ninguém. O corpo inanimado pertence a família e qualquer

parte desse corpo só poderá ser retirada, por vontade daquela mesma criatura manifestada em vida, ou

por um profundo sentimento de caridade dos familiares, confortados pelo gesto da decisão.

13. ÉTICA E RESPONSABILIDADE

A população brasileira tem baixo grau de individualismo ou seja é voltada para sua coletividade.

As pessoas de países com culturas coletivas controlam seus membros através da pressão social externa,

isto é, através da vergonha. Já as sociedades de caráter individualistas controlam seus participantes

através da pressão interna, ou seja, da culpa. Este traço cultural pode explicar porque tantas pessoas

doavam os órgãos de seus familiares, quando consultadas.

O Brasil tem alta intolerância à incerteza, ou seja, as pessoas tendem a utilizar diferentes formas

de controle da situação vigente, seja através de métodos objetivos (planejamento, legislação detalhista)

ou subjetivos (crenças determinadas, fantasias de controle prévio ou externo da situação-destino).

Quando a legislação propunha a doação voluntária, as pessoas exerciam a sua autonomia

declarando-se “doadores”, pois assim controlariam a incerteza de que sues familiares aceitariam doar

seus órgãos. A motivação maior era a beneficência social, isto é, a possibilidade de um benefício para

uma ou mais pessoas. Antes da reforma da lei o cidadão pode exercer sua autonomia, efetivamente,

declarando-se “não-doador”. Os riscos, reais ou imaginários, não importa, incorporam-se ao seu conjunto

Page 43: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

de crenças, passando a influenciar o processo de tomada de decisão. O risco, que assusta muitas

pessoas, é o da perda de controle sobre o destino de seu próprio corpo, as pessoas tem medo desta

situação trágica e desconhecida. Desta forma, evitam a incerteza através de sua manifestação contrária a

utilização de seus órgãos. O resultado é a perda de potenciais doadores.

A legislação, que sempre é uma coerção do Estado sobre o indivíduo, pode estabelecer uma

alteração no processo de captação de órgãos para fins de transplantes, contudo, nem sempre o resultado

é o esperado. Os costumes, isto é, as normas morais de uma população, desenvolvem-se em ritmo

diferente do legal. O desconhecido sempre gera angustia, pela nova possibilidade que se oferece.

Assim, a totalidade da sociedade é diretamente atingida por esses atos e por suas

conseqüências prováveis. Com efeito, a partir de 4 de abril de 1997, presumiu-se a decisão autônoma de

que todas as pessoas identificadas no Brasil viessem a ser, “post mortem", doadores de tecidos, órgãos e

partes do corpo, com exceção do sangue, do esperma e do ovulo, para fins de transplantes e tratamento.

E a conseqüência direta dessa disposição foi que qualquer pessoa identificada podia após aquela data

ter seus tecidos, órgãos e partes do seu corpo extraídas “post mortem”, para servirem de meio de

tratamento ou serem transplantadas, sempre que deixarem de fazer constar por desinformação ou por

negligência ou medo de segregação em seus documentos a manifestação de vontade contrária à

doação.

Outro ponto de fundamental importância, é o temor da segregação, de fato, ao introduzir um sinal

de opção moral em um documento de identificação física a lei esta criando potencial elemento de

discriminação ética. È fácil enumerar possíveis situações em que seria notada a gravação “não-doador

de órgãos e tecidos” em documentos de identidade, implicando a pecha de não solidário ao seu portador,

podendo algumas delas assumir um caráter de certa gravidade quando por exemplo, um atendente,

fervoroso adepto da solidariedade social, receber, no serviço de emergência médica, um acidentado cuja

carteira de identidade possui tal gravação.

Seria adequado, portanto numa sociedade liberal e pluralista como é a brasileira que a lei

garantisse que comportamentos diferentes baseados em valores diversos possam conviver sem o

prejuízo da harmonia social.

Page 44: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

Por todas essas razões éticas e jurídicas foi que se promoveu um amplo debate social sobre o

tema legitimando-se, assim, o estabelecimento de diretrizes para promover a correção da lei, para

eliminação das irregularidades jurídicas.20

14. RESPONSABILIDADE DOS INFRATORES DA NORMA JURÍDICA QUE REGULA

OS TRASNPLANTES DE ÓRGÃOS

A Lei permite ao lesado a obtenção de respostas distintas, em função dos

interesses visados, estruturáveis, em consonância com os seguintes objetivos:

cessação de práticas lesivas; apreensão de materiais oriundos dessa práticas;

submissão do agente à cominação de pena; reparação de danos materiais e morais;

perseguição criminal do agente.

A diversidade de fórmulas possibilita ao lesado a escolha dos meios de reação,

em função de seu interesse imediato, e dedutíveis em consonância com a situação

fática.

Essas medidas são, no entanto, cumuláveis, podendo vir a coexistir, sucessiva

ou simultaneamente, em concreto, em razão da ação do lesado.

Prosperam, a respeito, as orientações de que, uma vez presentes os

condicionantes próprios, pode-se dar a cumulação de áreas de atuação (civil e penal) e,

ainda, ocorrer a conjugação de efeitos práticos diversos (como por exemplo, a

imposição de cominação e a indenização de danos). Medidas administrativas podem,

ainda, ser inseridas nesse contexto, o que não obsta o ingresso no Judiciário.

20 Antôno Chaves. Direito à Vida e ao Próprio Corpo. São Paulo; Revista dos Tribunais,1986, p. 243.

Page 45: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

No plano penal, quando constitutiva de delito a conduta violadora, cabe a

perseguição criminal por via queixa do interessado, ou, quando, for o caso, ação

pública, as responsabilidades civil e penal são independentes.21

14.1. Responsabilidade Penal

Esta em vigor a Lei 9.434/97 reformada pela Lei 10.211/01 dispondo sobre a

retirada e transplantes de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, com fins

terapêuticos e científicos.

A Lei contempla aspectos delicados como a constatação da morte para o efeito

de ser possível ou não a retirada de órgão, adotando o critério da morte encefálica, e

provendo sobre a observância da vontade do disponente ou de seus familiares, o

destino a ser dado aos despojos, etc.. Não há excesso em dotar tais dispositivos da

energia e coação imanentes à sanção penal.

A terapia do transplante só será adotada se inexistente outra possibilidade,

qualquer, clínica ou cirúrgica, de se alcançar por outro modo o restabelecimento da

saúde ou melhora do receptor. Assim, o legislador enfatiza tal condição, com exigência

de indicação terapêutica do transplante se tenha por conprovadamente indispensável

para o receptor.22

Para veicular o elenco dos comportamentos passíveis de sanção criminal,

enunciando seus atributos essenciais a norma incriminadora enuncia os elementos

21 Carlos Alberto Bittar. Os Direitos da Personalidade. Rio de Janeiro; Forense Universitária, 2000, p. 49-51.22 Marrey Neto, José Adriano. Transplante de Órgãos: disposições penais: notas às disposições penais contidas naLei n. 8.489, de 18-11-1992, São Paulo; Saraiva, 1995.

Page 46: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

identificadores dos fatos ou condutas penalmente relevantes, sendo a mesma

interpretada e aplicada de forma restrita.

O transplante ou enxerto só poderá se verificar com o consentimento expresso

do receptor após avaliação médica e ciente dos ricos inerente e a sua inscrição em lista

de espera.

É permitida a doação de órgãos se o mesmo for órgãos duplos; de partes de

órgãos; tecidos ou partes do corpo, se a retirada não comprometer gravemente as

aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação e corresponda a

uma necessidade terapêutica comprovada pelo receptor.

O doador deverá autorizar a doação por escrito e diante de testemunhas com a

especificação da parte ou órgão a ser retirado.

Portanto, remover tecidos, órgãos ou partes do corpo em desacordo com a Lei, o

infrator será penalizado com reclusão de dois a seis anos e multa.

Para crimes cometidos mediante paga, recompensa ou motivo torpe a pena é

reclusão de três a oito anos e multa.

Se praticado em pessoa viva que resulte lesão corporal de natureza grave a

pena será de reclusão variando de três a doze anos e multa, e se resultar morte a

reclusão será de oito a vinte anos e multa.

Comercializar órgão humano, intermediar ou facilitar a transação é crime e, o

infrator será apenado com reclusão de três a oito anos e multa. A realização de

transplante utilizando órgão ou partes do corpo sabendo-se que foram obtidos de forma

ilegal penaliza o infrator com reclusão de um a seis anos e multa.

Page 47: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

Aquele que recolher, transportar, guardar ou destruir partes do corpo humano

obtidos em desacordo com a Lei comete crime apenado com reclusão de seis meses a

dois anos e multa.

Após a retirada de órgãos, tecidos ou partes do corpo, o cadáver deve ser

condignamente recomposto e entregue aos seus familiares para sepultamento a

inobservância de tal dispositivo implica em pena de detenção de seis meses a dois

anos.

A Lei proíbe também anúncio ou apelo público, somente o Sistema Único de

Saúde - SUS, poderá realizar campanhas esclarecendo os benefícios e estimular

doações de órgãos.

As instituições de saúde e equipes médico-cirúrgicas, receberão sanções

administrativas se incorrerem nos crimes previstos na Lei, podendo ser desautorizadas

temporária ou definitivamente, podendo ocorrer a incidência de multas e, acarretar a

responsabilidade civil e criminal.

14.2. Responsabilidade Civil

A responsabilidade médica deve ser proclamada e cobrada, o médico que,

precipitadamente, aplica métodos ainda não bastante comprovados, o que se descuida,

por pressa, incúria ou excessivo entusiasmo, o que despreza precauções e diligência,

ao medicar ou operar, e o ignorante da sua arte deve ser responsável, por imprudência,

negligência ou impericía.

Assim, todo rigor e cuidado que se deve exigir ao firmar-se o diagnóstico de que

determinado paciente necessita de um transplante ou ao aceitar este ou aquele doador.

Page 48: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

A infração de qualquer das disposições legais podem levar a ação penal e a

reparação civil, por ato ilícito a ser apurado e julgado.

Só em uma circunstância a Lei permite intervir no corpo vivo de uma pessoa,

sem razão fundada em sua saúde, para retirar órgãos que, sem risco de vida, tenham

sido doados para fins humanitários ou terapêuticos. Desde que desapareça essa

finalidade, a intervenção não tem respaldo na Lei. O consentimento da pessoa não

torna lícita a ação do médico.

O Código Civil adotou, a mesma linha de entendimento do Código Penal, ou

seja, o médico que exceder os limites do exercício regular de seu direito de intervir no

corpo vivo de pessoas, restituir-lhe a saúde, fica obrigado, a reparar o dano

recorrente.23

No direito brasileiro a responsabilidade civil do médico está consagrada no artigo

951 do Código Civil nos seguintes termos: "o disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-

se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade

profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente,

agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho", e artigo 186 do

mesmo diploma legal dispõe " aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência

ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral,

come ato ilícito".

Em breve análise dos artigos acima mencionados, temos os elementos

essenciais da responsabilidade civil, ação ou omissão, culpa ou dolo do agente, relação

causal e dano experimentado pelo paciente.

23 Antônio Chaves. Direito à Vida e ao Próprio Corpo. São Paulo; Revista dos Tribunais, 1986, p.314.

Page 49: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

O Código de Defesa do Consumidor, reafirma o princípio da responsabilidade

aquiliana dos médicos, em seu artigo 14, § 4º. Ampliou para o médico o ônus

probatório, cabendo ao paciente provar-lhe a culpa, ainda que o serviço prestado tenha

suporte em contrato por eles firmado.

O Direito Civil pátrio abraçou a teoria da culpa no que diz respeito à

responsabilidade médica, tendo a vítima do dano provar a imprudência, a negligência e

ou imperícia do profissional para ser plenamente ressarcida.

Por fim, a realização do transplante deve obedecer às normas legais

estabelecidas no citado diploma especial, e sua inobservância pode acarretar infração

com sanções nas esferas civil, penal e administrativa.

15. SISTEMA NACIONAL DE TRANSPLANTE – SNT

CENTRAIS DE NOTIFICAÇÃO, CAPITAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DE ÓRGÃOS – CNCDOs

Pelo Decreto n.º 2.268 de 30 de Junho de 1997, que regulamentou a Lei n.º 9.434 de 04 de Abril

de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, foi criado o Sistema

Nacional de Transplante – SNT, que desenvolve o processo de captação e distribuição de tecidos,

órgãos e partes retiradas do corpo humano para fins terapêuticos.

O SNT tem como âmbito de intervenção as atividades de conhecimento de morte cerebral

verificada em todo território nacional e a determinação do destino dos tecidos, órgãos e partes retirados.

O Ministério da Saúde, exerce a função de órgão central do SNT, e gerenciará a lista única

nacional de receptores, com as indicações necessárias à busca, em todo território nacional, de tecidos,

órgãos e partes compatíveis com as suas condições orgânicas. Também é quem autoriza

estabelecimentos de saúde e equipes especializadas a promover retiradas, transplantes ou enxertos de

tecidos, órgãos e partes. Credencia as CNCDOs.

Page 50: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

As Secretárias de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Município ou Órgãos

equivalentes, para que se integrem ao SNT, deverão solicitar ao órgão central o seu credenciamento

junto ao SNT, assumindo certos encargos. Assim, as CNCDOs deverão coordenar as atividades de

transplantes no âmbito estadual, promover as inscrições de potenciais receptores, com as indicações

necessárias à sua rápida localização e à verificação de compatibilidade do respectivo organismo para o

transplante, de que necessite. Classificar os receptores e agrupa-los segundo as indicações anteriores,

em ordem de data de inscrição, fornecendo os necessários comprovantes. Comunicar ao órgão central

do SNT as inscrições que efetuar para a organização da lista nacional de receptores. Receber

notificações de morte encefálica ou outra que enseje a retirada de partes para transplante, ocorrida em

sua área de atuação. Determinar o encaminhamento e providenciar o transporte das partes retiradas ao

estabelecimento de saúde autorizado, em que se encontra o receptor ideal. Notificar o órgão central do

SNT de partes não aproveitáveis entre os receptores inscritos em seus registros, para utilização dentre os

relacionados na lista nacional, encaminhar relatórios anuais a central do SNT sobre o desenvolvimento

das atividades de transplante em sua área de atuação. Exercer controle e fiscalização sobre as

atividades e aplicar penalidades as infrações a lei.

Das muitas questões polêmicas que cercam a legislação, é a estrutura precária das CNCDOs, o

entrave principal não é falta de órgãos, mas sim o mal aproveitamento do potencial doador, que não é

mantido em condições satisfatória para o posterior aproveitamento de sues órgãos em boa parte dos

serviços de emergência do país.

Médicos afirmam que o sistema público de saúde é a principal porta de entrada hospitalar de

pacientes graves, representando o grande potencial para a obtenção de doadores cadáveres para a

utilização de órgãos e tecidos para transplante. A concordância da família com a doação, ao saber da

morte cerebral do paciente é em média de 75% dos casos. É um índice equivalente aos dos serviços que

transplantam no EUA e nos países europeus. O diferencial é em relação ao aproveitamento, muito maior

nestes países.

No Brasil mesmo sendo obrigatória, a notificação ainda é feita excepcionalmente, por falta de

iniciativa dos próprios médicos e incentivo dos hospitais.

Page 51: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

Em paralelo, há a enxutíssima estrutura pública para a realização de transplantes. Só a capital

paulista, supera a rotina de transplantes realizado por outros Estados, outro problema de monta é que

ainda há capitais nordestinas que não contam com cncdos.

16. O APOIO DE ALGUMAS RELIGIÕES

É inegável que a doação de órgãos salva vidas e por isso não pode ser condenada. Mas também

é obvio que essa questão envolveu aspetos polêmicos. Não se pode discutir o tema sem revelar as

diferentes religiões e o culto que elas dispensam aos mortos além, é claro dos fundamentos legais.

A Igreja Católica aprova a doação de órgãos, o Papa Pio XII apoiava a intervenção de retirada de

órgão de cadáveres no interesse de salvar os que sofrem, e salientava a necessidade de educar o povo

a respeito do assunto.

O Papa João Paulo II, no dia 29 de agosto, pela primeira vez, deslocou-se para comparecer ao

XVIII Congresso Internacional da Sociedade de Transplantes, no dia 29 de Agosto, dirigindo uma

mensagem aos seus participantes. Em sua alocução em Roma, na praça em frente ao Palácio dos

Congressos, o Sumo Pontífice reafirmou o apoio da Igreja Católica aos transplantes de órgãos como

instrumento de defesa e promoção da vida. O Santo Padre expressou a sua confiança no diagnóstico de

morte tendo por base os critérios neurológicos que definem a morte cerebral, definindo-os como

instrumentos para alcançar a certeza moral, base de todo procedimento ético. O Chefe da Igreja Católica

reafirmou ainda grandes princípios éticos e morais que devem nortear esses procedimentos.

O judaísmo considera fundamental o respeito pelos mortos. Neste contexto, a lei judaica proíbe a

mutilação do cadáver e exige que o corpo seja sepultado intacto e os mais breve possível.

Essas exigências, entretanto, como todas as leis de Tora, a Bíblia hebraica, podem ser postas de

lado diante do mandamento supremo do judaísmo: pikach rijesch, o dever de salvar uma vida. Não pode

haver maior tributo aos mortos do que utilizar seus restos mortais para salvar ou prolongar outra vida

humana.

Page 52: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

17. LEI N.º 10.211/01 ALTERA A LEI N.º 9.434/97

A utilização de órgãos de doadores cadáveres tem sido a solução mais

promissora para o problema da demanda excessiva. O problema inicial foi o

estabelecimento de critérios para caracterizar a morte do indivíduo doador. A mudança

do critério cardiorrespiratório para o encefálico possibilitou um grande avanço neste

sentido. Os critérios para a caracterização de morte encefálica foram propostos, no

Brasil, pelo Conselho Federal de Medicina através da resolução CFM 1480/97. Na

doação de órgãos por cadáver muda-se a discussão da origem para a forma de

obtenção: doação voluntária, consentimento presumido, manifestação compulsória ou

abordagem de mercado.

Em 16 de janeiro de 1997, foi aprovada, pelo Congresso Nacional, após uma

longa discussão, a nova lei de transplantes (Lei 9434/97), sancionada pelo Presidente

da República em 4 de fevereiro de 1997, que altera a forma de obtenção para

consentimento presumido. A legislação anteriormente vigente (Lei 8489/92 e o Decreto

879/93) estabeleciam o critério da doação voluntária. Em março de 2001 houve uma

nova mudança, através da lei 10211, que dá plenos poderes para a família doar ou não

os órgãos de cadáver. Todas as manifestações de vontade constantes em documentos

foram tornadas sem efeito.

Ao longo de poucos anos, houve uma mudança muito grande na abordagem

desta questão no Brasil. No período de 1968 a 1997 era válida a vontade do indivíduo,

na sua ausência a família poderia se manifestar. A partir de 1997 houve a mudança

para a possibilidade da utilização dos cadáveres sem a participação da família, salvo

manifestação individual em contrário. Desde março de 2001, apenas a família tem

Page 53: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

poderes para permitir ou não a doação, sem que haja espaço legal para a manifestação

do indivíduo.

A alocação dos órgãos para transplante, assim como de outros recursos

escassos deve ser feita em dois estágios. O primeiro estágio deve ser realizado pela

própria equipe de saúde, contemplando os critérios de elegibilidade, de probabilidade

de sucesso e de progresso à ciência, visando a beneficência ampla. O segundo

estágio, a ser realizada por um Comitê de Bioética, pode utilizar os critérios de

igualdade de acesso, das probabilidades estatísticas envolvidas no caso, da

necessidade de tratamento futuro, do valor social do indivíduo receptor, da dependência

de outras pessoas, entre outros critérios mais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O transplante pode suscitar reações contraditórias, como fascínio e inquietação. O seu fascínio

decorre da perspectiva da vida que ele proporciona a pessoas ameaçadas pela falência de um órgão

ou tecido, da mobilização de uma grande cadeia de solidariedade que se forma com o apoio de

tecnologias inovadoras.

A inquietação ocorre porque a transferência de elementos (órgão ou tecido),

com maior freqüência obtidos de um indivíduo morto, proporciona o confronto com a

imagem de nossa própria morte. Torna-se imprescindível, entretanto, que a inquietação

não ultrapasse o fascínio, situação que poderia corresponder a uma sentença de morte

para milhares de pacientes que aguardam por um transplante. Para impedir essa

situação, existe um só remédio. Fazer crescer a confiança, e uma única prescrição, a

Page 54: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

informação objetiva, único instrumento capaz de favorecer o processo de análise

racional e o desenvolvimento de uma rede de afeto e solidariedade que podem conduzir

a uma tomada de posição á doação de órgãos.

Outro sentimento, que aflora com freqüência ao se falar em transplantes, é a

justificada angústia daqueles que esperam por um órgão, conscientes de que a sua

vida pode ser ceifada durante a espera. O atendimento a esse direito à vida,

oportunidade ansiosamente aguardada por milhares de brasileiros, só poderá

concretizar-se se tivermos a consciência de que se faz necessária uma construção

coletiva. Nesse mutirão pela vida, cabe papel a cada um de nós, a todos os segmentos

da sociedade.

Às equipes de transplante cabe o compromisso de realizar com qualidade o

maior número possível de procedimentos, servindo-se de sua competência para

otimizar a utilização de órgãos e para que estes sejam alocados segundo princípios

justos e éticos.

Ao Estado compete o controle de todo o processo de transplantes, uma vez que

um órgão ou tecido doado deve, obrigatoriamente, merecer o tratamento de um bem

público, compreendendo-se que ao autorizar a doação de órgãos de um ente querido, a

família entregou-os para que a sociedade os utilizasse da forma mais justa.

Ao Governo Federal cabem, três missões prioritárias: garantir que os órgãos e

tecidos retirados sejam alocados aos pacientes receptores segundo critérios médicos e

princípios de justiça; desenvolver esforços para que todos os pacientes receba o

transplante que necessita; exercer a vigilância para que os transplantes sejam

realizados com toda segurança possível. Como corolário dessas ações, governos

estaduais e municipais devem zelar pela execução da política emanada do poder

Page 55: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

central, aí incluindo-se a utilização adequada de recursos por este destinados

especialmente para os programas de transplantes.

A sociedade como um todo cabe o poder de decidir se os transplantes deve ou

não ser realizados, já que ela detém a chave de todo o processo; a autorização para a

doação de órgãos. O doador é o elemento indispensável, sem o qual não se encadeiam

as ações que levam ao transplante. Cabe também a sociedade a exigência de que

todos os procedimentos relacionados a transplantes decorram na mais absoluta

transparência.

A imprensa exerce grande influência no desenvolvimento de um programa de

transplantes. Mensagens positivas tem o poder de impulsionar a doação, enquanto que

o contrário ocorre com qualquer notícia que abale a credibilidade do procedimento.

Informar corretamente e sem distorções nem sempre é tarefa fácil, exige um mínimo de

conhecimento técnico e tem menor impacto e, portanto, menor apoio jornalístico.

A lei que o governo editou, acabando com a doação presumida de órgãos para

transplante, ilustra bem o erro, mais comum entre nós do que se imagina, de legislar

sem prestar a devida atenção à realidade dos fatos.

De acordo com a doação presumida, estabelecida pela Lei n.º 9.434/97, todos

brasileiros que não tiveram manifestação de vontade em contrário, em documento

oficial, se tornavam doadores automáticos de órgãos. Embora a intenção do legislador

fosse a melhor possível, isto é, aumentar o número de doadores e assim salvar mais

vidas, ma a lei feriu os sentimentos e os princípios da população e dos médicos e

acabou por reduzir em vez de aumentar a oferta de órgãos para doação.

A lei da doação presumida não contribuiu para nada, a não ser para intranquilizar

a população. A reforma da lei, como reconheceu o Ministro da Saúde, José Serra, veio

Page 56: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

apenas oficializar o que na prática já acontece. Agora tranqüilizados, e se forem bem

esclarecidos por campanhas promovidas pelo governo, os brasileiros com certeza se

disporão a aumentar espontaneamente as doações.

Esse caso deixa lições sobre as quais nossos governantes e legisladores

deveriam meditar. Não bastam boas intenções para produzir leis de boa qualidade.

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Marcos. Considerações de Ordem Ótica Sobre o Inicio e o Fim da vida. Material da

Faculdade de Medicina da Universidade São Paulo, 1998.

BACCHELA, Teleforo. “Doação de Órgãos: vale a lei ou a decisão da familiar” . In: Revista INCOR,

ano 04, número 36, ano 1998, p.19-24.

Page 57: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

BERLINGUER, Giovanni; Guarrafa, Volnei. A Mercadoria Final: ensino sobre a compra e venda de

partes do corpo humano. Tradução: José Colaço Barreiros. Portugal: Difel, 1997. Título original: La

Merce Finale.

BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. São Paulo, Editora Forense

Universitária, 2000.

CHAVES, Antônio. Direito a Vida e ao Próprio Corpo. São Paulo, Editora dos

Tribunais, 2ª edição, ano 1994.

FREITAS JR, Antônio de Jesus da Rocha. Direitos da Personalidade Doação de

Órgãos. São Paulo, Editora FPI Teresina, 1995.

GOGLIANO, Daisy. O Direito ao Transplante de Órgãos e Tecidos Humanos. São

Paulo, Tese de doutorado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,

1986.

GOLDIM, José Roberto. Ética Aplicada aos Transplantes de Órgãos. Pesquisa na

Internet ( http:// www.ufrgs.br/HCPA/gppg. Transprt.htm)

LEITE, Rita de Cássia Curvo. Transplantes de Órgãos e Tecidos e os Direitos da

Personalidade : visão comparativa das leis n.º 5.479/68 e 8.489/92, regulamentada

Page 58: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,

pelo decreto n.º 879/93. São Paulo, Dissertação para Mestrado da PUC. São Paulo,

ano 1995.

MARREY NETO, José Adriano. Transplante de Órgãos: disposições penais: notas

às disposições penais contidas na Lei n. 8.489, de 18-11-1992. São Paulo, Saraiva,

1995.

MAUSS, Marcel. As Técnicas Corporais. In: Antropologia e Sociologia. São Paulo,

Editora Zahar, ano de 1984.

RODRIGUES, José Carlos. Tabu do Corpo. Rio de Janeiro, Editora Achiamé, ano 1979.

ROURE, Denise de. Doação Presumida de Órgãos Humanos: Prós e contras de

uma lei polêmica. Pesquisa Internet

SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Transplante de Órgãos e Eutanásia. São Paulo, Editora

Saraiva, ano 1992.

SPENCE, Alexander P.. Anatomia humana básica/Alexander P. Spence; tradução

Edson Aparecido Liberti. São Paulo, Manole, 2º Edição, 1991.

TODOLI, José. Ética dos Trasnplantes, São Paulo, Herder, tradução, p.88.

Page 59: CURSO DE DIREITO - arquivo.fmu.brarquivo.fmu.br/prodisc/direito/cmc.pdf · CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA ... extração de tecido animal para os homens, ... No ano de 1890 na Escócia,