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CURSO DE DIREITO
TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
A POLÊMICA LEI 9.434/97 E SUA REFORMA
ALUNA: CLÁUDIA MEIRELES CARRIÃO
R.A. 441597/2 TURMA: 315B1
TELEFONE: (11) 43303504
ORIENTADOR: JORGE SHIGUEMITSU FUJITA
SÃO PAULOFEVEREIRO 2004
CURSO DE DIREITO
TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
A POLÊMICA LEI 9.434/97 E SUA REFORMA
ALUNA: Cláudia Meireles Carrião
R.A.441597/2 TURMA: 315B1
Monografia apresentada ao Curso de
Direito da UniFmu como requisito parcial para
obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob a
orientação do Prof. Jorge Shiguemitsu Fujita
SÃO PAULOFEVEREIRO 2004
BANCA EXAMINADORA
Orientador:_______________________
_________________________________
Arguidor:_________________________
_________________________________
Arguidor:_________________________
_________________________________
Nota( )_____________________
_________________________________
Agradeço a minha família pelo constante
estimulo nos meus estudos e inúmeras
demonstrações de carinho e afeto. E ao
responsável pela elaboração deste
trabalho, por quem tenho enorme
gratidão ao Professor/Orientador Jorge
Shiguemitsu Fujita.
SINOPSE
O tema apresentado “Transplante de órgãos na Legislação Brasileira” representa
um amplo conflito de opiniões, possuindo, como verificaremos, divergências quanto à
sua interpretação, aplicabilidade, legalidade, etc.
Sempre amparados por autores amplamente aceitos em nossa convivência
acadêmica, adentraremos inicialmente na definição do tema, continuando pela
evolução histórica para, então, expormos uma visão geral da legislação sobre o
transplante.
Em continuidade, os aspectos jurídicos do transplante no sistema legal
brasileiro, assim como os assuntos que o seguem, serão colocados da forma mais
singela possível, procurando, assim, prestar auxílio para estudantes e iniciantes na
Ciência do Direito.
Também serão classificadas e comentadas as Leis 9.434/97 e 10.211/01 para,
em seguida, adentrarmos na sempre delicada e difícil questão da polêmica gerada e
sua reforma.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................................01
CAPÍTULO 1: TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS............................................................03
CAPÍTULO 2: HISTÓRIA DOS TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS.................................03
CAPÍTULO 3: DIREITO À VIDA ASPECTOS GERAIS.................................................07
CAPÍTULO 4: OS TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS E TECIDOS E SEUS REFLEXOS
SOCIAIS.........................................................................................................................08
CAPÍTULO 5: O QUE É UM DOADOR..........................................................................10
CAPÍTULO 6: O QUE É UM RECEPTOR......................................................................11
CAPÍTUOL 7: RETRIBUIÇÃO ECONÔMICA................................................................11
7.1: A Última Mercadoria: A Compra, A Venda E O Aluguel De Partes Do
Corpo Humano..............................................................................................................12
7.2: A Venda Do Uso..........................................................................................13
7.3: A Venda De Partes Separadas...................................................................15
7.4: Órgãos Para Transplantes – Sangue E Medula – Gametas E Órgãos De
Reprodução...................................................................................................................17
7.5: Causas Que Favorecem A Mercantilização..............................................23
CAPÍTULO 8: CONDIÇÕES PARA QUE UM TRANSPLANTE POSSA SER
REALIZADO...................................................................................................................26
CAPÍTULO 9: DOAÇÃO E TRANSPLANTES ENTRE VIVOS.....................................26
9.1: O Doador e as Relações Trabalhistas.......................................................28
CAPÍTULO 10: DOAÇÃO DE ÓRGÃOS DE CADÁVER..............................................28
CAPÍTULO 11: EVOLUÇÃO LEGISLATIVA .............................................................30
CAPÍTULO 12: CONSENTIMENTO PRESUMIDO PARA DOAÇÃO DE ÓRGÃOS –
ESTATIZAÇÃO DO CORPO HUMANO SEM VIDA – A POLÊMICA CAUSADA PELA
LEI 9.434/97...................................................................................................................34
CAPÍTULO 13: ÉTICA E RESPONSABILIDADE........................................................36
CAPÍTULO 14: RESPONSABILIDADE DOS INFRATORES DA NORMA JURÍDICA
QUE REGULA OS TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS....................................................38
14.1. Responsabilidade Penal...........................................................................39
14.2. Responsabilidade Civil.............................................................................41
CAPÍTULO 15: SISTEMA NACIONAL DE TRANSPLANTE–SNT CENTRAIS DE
NOTIFICAÇÃO, CAPITAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DE ÓRGÃOS–CNCDOs.................43
CAPÍTULO 16: O APOIO DE ALGUMAS RELIGIÕES.................................................45
CAPÍTULO 17: LEI N.º 10.211/01 ALTERA A LEI N.º 9.434/97...................................46
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................48
BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................51
ANEXOS.........................................................................................................................54
INTRODUÇÃO
O fenômeno dos transplantes não interessa apenas à ciência médica.
A livre evolução ou aplicação da ciência não pode ser considerada ilimitada, seja
porque o homem é evidentemente uma personalidade complexa, seja por outras
exigências no contexto da sociedade humana.
Os transplantes, assunto deveras polêmico, portanto, determinam uma série de
implicações, quer seja no campo da medicina, da ética, da religião, da psicologia, nas
questões sociais, morais.
E não faltam, como a todos os aspectos da vida, os reflexos jurídicos desta
técnica cirúrgica.
Não havia no direito brasileiro qualquer provisão sobre transplantes e os
progressos súbitos no campo médico-cirúrgico, com grande repercussão na opinião
pública, surpreenderam o legislador e obrigaram-no a reagir rapidamente para que o
fenômeno não escapasse à disciplina legal.
De início, apenas se haviam tentado transplantes de vivo a vivo, de pele, ossos
e, de um só órgão duplo que possui todo ser humano vivo. Dos cadáveres se extraíam
as córneas, artérias e ossos. Em dezembro de 1967, efetuou-se a primeira operação de
transplante de coração de um recém-falecido a um vivo.
O Direito foi então chamado a tutelar não propriamente o sentimento de respeito
dos vivos aos mortos, mas o respeito à própria vida. Nunca o conceito morte foi tão
relativo, como na nascente era dos transplantes de órgãos humanos. Se é lícito e
desejável prolongar a vida do paciente-receptor, deve-se respeitar a vida do doador.
O explosivo evolver do fenômeno dos transplantes veio a ser regulamentado por
lei.
A preocupação do legislador foi a de não entravar as experiências que vinham
sendo feitas no campo médico. Empregou inclusive uma fórmula ampla, que permite os
transplantes não apenas de tecidos e partes de cadáveres, como também de qualquer
órgão humano.
Não se estimula a arte de pensar. O paciente ou cliente é um número e o
computador dá o diagnóstico ou a sentença. Esquece-se de que Medicina e Direito não
são só ciências, mas são também arte, amor, calor humano.
E quando a morte vence a vida, a ciência e a técnica, devem o calor humano, o
respeito ao próximo e, sobretudo, o amor aquecer a lousa fria da sala de necrópsia ou a
penumbra do salão do júri.
O mérito e a essência do ordenamento jurídico vigente são mantidos e as
questões com vertentes, foram aos poucos canalizando-se para um raciocínio.
1. TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS
Transplante é a retirada de um órgão ou material anatômico proveniente de um corpo, vivo ou
morto, e sua utilização com fins terapêuticos em um ser humano.1
Todoli entende por transplante a amputação ou ablação de um órgão, com função própria, de um
organismo para instalar-se em outro, afim de exercer neste as mesmas funções que no anterior. Também
são chamados enxertos vitais que deve compreender a secção de uma porção do organismo, próprio ou
alheio, com fins estéticos e terapêuticos, sem exercício de função autônoma.2
Entre os autores nacionais, cremos que foi Daisy Gogliano quem melhor
sistematizou a matéria, esclarecendo, em primeiro plano, que o vocábulo transplante,
no vernáculo, pode, às vezes, aparecer como sinônimo de enxerto ou de implante.3
2. HISTÓRIA DOS TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS
A história dos transplantes de órgãos é procedente possivelmente da
antigüidade, no entanto, as primeiras referências podem ser consideradas lendárias. A
luz do século XXI, podemos notar que o transplante de órgãos e tecidos possui caráter
de meio de cura, mas que a evolução salutar dos usos e costumes fez com que a
medicina sofresse um notável progresso.
Na belicosa Suábia de antanho, região da Alemanha moderna, de acordo com os
relatos da época, o primeiro direito germânico designava que o devedor, no caso de
não pagamento de uma dívida contraída, podia conceder ao credor o direito de se
1 Ricardo Antequera Parili. em sua monografia El derecho, los transplantes y las tranafusiones, p.22.2 Todoli, José. Ética dos trasnplantes, São Paulo, Herder, tradução, p.88.3 Daisy Gogliano. O Direito ao Transplante de Órgãos e Tecidos Humanos; tese de doutorado apresentada àFaculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1986.
apossar de uma parte do seu corpo, dada como garantia da obrigação assumida, ou
seja, o credor detinha o poder de extirpar a quem lhe emprestou dinheiro e não pagou.
De acordo com a tradição chinesa, o cirurgião Pien Chiao realizou com sucesso
a troca de órgãos entre dois irmãos, por volta de 300 anos a.C.. Através de estudos
arqueológicos, os transplantes dentários foram encontrados na Grécia, Roma e mesmo
na América pré-colombiana.4
Já na Idade Média, firmou-se a lenda dos Santos Cosme e Damião, que
caminhavam pelo cemitério na busca de membros que substituíssem a perna
gangrenada que deveria ser amputada. Entre os antigos, os hindus eram conhecidos
pelos primeiros relatos de reconstrução do nariz e pela implantação de pedaços de pele
para a reconstrução facial, realizada pelo cirurgião Sushruta no ano de 750 a 800 a.C..
Nos séculos XV e XVI, foram prescritos vários experimentos primitivos de
extração de tecido animal para os homens, mas devido às infecções muitos terminaram
em fracasso, somente no século XIX e começo do XX, estes inconvenientes foram
superados e as plásticas começaram a ter mais sucesso.
No ano de 1890 na Escócia, Glasgow fez o primeiro transplante ósseo, em 1887
Macewec extirpou toda diáfise umeral (porção mais estreita de um osso longo, situada
entre as duas extremidades deste, as quais são mais largas do que ela e, em geral,
articulares; situada no úmero, osso único do esqueleto de cada braço5) de uma criança
de três anos que estava afetada de osteomielite persistente (o conteúdo da cavidade
medular e o tecido ósseo tornam-se infectados por uma bactéria que entra no corpo
4 Daisy Gogliano. O Direito ao Transplante de Órgãos e Tecidos Humanos; tese de doutorado apresentada àFaculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1986, p. 143.5 Dicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e J.E.M.M. Editores. Rio de Janeiro; Editora Nova Fronteira S.A.,1988, p.220 e 658.
através de um furúnculo ou outro tipo de ruptura da pele, convertendo o tecido
gorduroso da cavidade medular em pus e destruindo o tecido ósseo, antes da
descoberta dos antibióticos a osteomielite era uma doença muito grave com uma alta
taxa de mortalidade6), alguns anos mais tarde outro médico implantou um grande
número de cunha óssea ressecada em seis pacientes. As tentativas de transplantes
continuaram e, em 1931, foi realizada na Itália um transplante de glândula genital pelo
médico Gabriel Janelli, que pelo fato do doador vivo ter cedido a glândula por dinheiro,
criou uma polêmica na ciência médica, jurídica e na opinião pública.
Já o transplante renal se iniciou em 1954 em Boston: o cirurgião Joseph Murray,
extraiu o rim de um gêmeo para implanta-lo em seu irmão. Contudo, a problemática dos
transplantes adquiriu corpo em dezembro de 1967, no hospital Grotte Shuur da cidade
do Cabo, África do Sul, quando o doutor Christian Barnard, retirou o coração de Denise
Ann Darvall, de 25 anos morta em acidente de trânsito, no qual o seu cérebro fora
praticamente destruído para colocá-lo no comerciante Louis Washkansky. Esta prática
trouxe à luz uma discussão bastante concisa tanto na medicina como no direito, ao que
determina a morte do doador, baixa possibilidade de sobrevivência normal do receptor
ou mesmo relacionada a inconveniência da rejeição.
O comerciante aceitou o risco da operação, pois além de ser diabético tinha o
fígado hipertrofiado e desta forma, sabia que não tinha outra possibilidade de
sobreviver. A família de Denise, permitiu a operação, ciente de que não restava
esperanças para a filha. A cirurgia durou cerca de cinco horas, mas após dezoito dias
Louis faleceu.
6 Spence, Alexander P. .Anatomia humana básica/Alexander P. Spence; tradução Edson Aparecido Liberti, SãoPaulo; Manole, 1991, 2º Edição, p. 106.
Ainda durante o ano de 1968, mais de cem corações foram transplantados no
mundo, 54 nos EUA e 10 na França, mas em quase todos os casos o receptor
prolongou a sua vida. Com o avanço tecnológico e vasta experiências, em 12 de maio
de 1987, pela primeira vez na história dos transplantes, uma pessoa viva foi doadora de
coração, na cidade americana de Baltimore, envolvendo três pessoas, o primeiro
doador foi um homem de 32 anos vitima de um acidente de carro fatal, no qual a equipe
de médicos, através da conservação no gelo, retirou seus pulmões e coração, que
passou para um rapaz de 28 anos que sofria de fibrose cística. O coração do rapaz, em
bom estado, passou para um terceiro paciente com graves problemas cardíacos. A
grande novidade desse caso, é o fato de uma pessoa viva ter doado seu coração e ao
mesmo tempo ter recebido outro.
As fases pioneiras dos transplantes foram em 1963, em Denver o primeiro
transplante de fígado e no mesmo ano o primeiro transplante completo de pâncreas em
Mineapolis, e finalmente em 1970, o primeiro de medula óssea. No dia 19 de dezembro
de 1986, foi criada em São Paulo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos
(A.B.T.O.), contudo, desde 1965, já foram realizados 1.247 transplantes renais somente
no Hospital das Clínicas, sendo que 300 deles através de doadores cadáveres. Em
outros hospitais do Estado, cerca de 1.342 transplantes e nos demais estados
brasileiros 1.640, ou seja, aproximadamente 4.229 transplantes somente de rins. 7
7 Maria Celeste Cordeiro Leite Santos. Transplante de Órgãos e Eutanásia. São Paulo; Saraiva,1992, p.128.
3. DIREITO Á VIDA ASPECTOS GERAIS
Vida não é apenas a incessante auto-atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas é algo
dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade.
A prática cotidiana prova que o desenvolvimento é contínuo de distintas formas
de atuação. Em sua tese de Doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo, Deisy Gogliano nos oferece o conceito de vida sob o aspecto médico-
biológico;
“(...) vida é a atividade biológica sociológica e psicológica, manifestada por
um dinamismo mantido por processos intrínsecos ao organismo – elementos naturais –
e sustentada por outros fatores extrínsecos adquiridos pelo próprio homem – cultura”.
Seja lá como for, não há como negar que o primeiro e mais importante de todos
os direitos é a vida. É o primeiro dos direitos naturais que o Direito Positivo pode
simplesmente reconhecer, mas que não tem a condição de criar.
É um direito condicionante, já que dele dependem os demais direitos. Ainda que
o direito à vida não fosse tutelado pelo sistema jurídico, sua natureza de Direito Natural
legitimaria a imposição erga omnes, pois trata de um direito fundamental, o mais
essencial dos direitos.
Carlos Alberto Bittar, no mesmo sentido, afirma que dentre os direitos da ordem
física, ocupa posição de primazia o direito à vida, como o bem maior na esfera natural e
também na jurídica, porque, em seu torno e como conseqüência de sua existência,
todos os demais gravitam, respeitados, no entanto, aqueles que dele extrapolam,
embora constituídos ou adquiridos durante o seu curso tais como direito à honra, à
imagem, etc.8
Trata-se de direito que se reveste, em sua plenitude, de todas as características
gerais dos direitos da personalidade, devendo-se enfatizar o aspecto da
indisponibilidade, uma vez que se caracteriza, nesse campo, um direito à vida e não um
direito sobre a vida.
O direito ao respeito da vida não é um direito à vida. A vida não é uma
concessão jurídico-estatal, nem tampouco um direito de uma pessoa sobre si mesma.
Como se vê, o direito natural é primordial e sublime e, como tal, deve ser
respeitado por todos e tutelado rigorosamente. Direito natural pois a vida não é, como
vimos uma concessão jurídica-estatal, mas um bem maior, que apenas o reconhece.
4. OS TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS E TECIDOS E SEUS REFLEXOS SOCIAIS
Há vinte anos atrás, doutrinadores renomados já se preocupavam com os reflexos sociais dos
transplantes de órgãos e tecidos na sociedade brasileira. O problema já era inquietante, pois, como
sabemos, o índice de analfabetismo no Brasil atinge escala altíssima se o compararmos com o dos povos
civilizados. A escassez sociocultural somada ao baixo poder econômico são fatores que, há muito,
prejudicam o desenvolvimento do Brasil, e, por vezes, contribuem para distorcer a compreensão de
fenômenos que tem tomado a sociedade mundial de sobressalto. A situação não é diferente com os
transplantes de órgãos e tecidos.
Antônio Chaves relata que em outubro de 1982 foi veiculada pesquisa popular
sobre o Anteprojeto da Lei reguladora dos transplantes de órgãos e tecidos humanos
que visava suprimir do artigo 1º da antiga lei de transplantes (Lei n.º 5.479/68) a
expressão “sem risco de morte ou de lesão corporal de natureza grave” por entenderem
os estudiosos que risco de morte ou risco de vida é a mesma coisa, além de não haver
intervenção que não envolva risco.
8 Carlos Alberto Bittar. Os Direitos da Personalidade. Rio de Janeiro; Forense Universitária, 2000, p. 89.
Ademais, todo transplante, especialmente o realizado “inter-vivos”, provoca lesão
de natureza grave (a retirada de um órgão, por exemplo, o rim, uma vez extraído,
deixará o doador automaticamente e forçosamente debilitado permanentemente da
função renal). Ora, sob esse aspecto essencial, já que espelharia a verdadeira
realidade da cirurgia de transplante.9
Não foi essa, contudo, a opinião majoritária dos entrevistados. O inquérito levado
a efeito pela Folha de São Paulo, em outubro de 1982, como se disse, dava a entender
que nada menos de 98% das pessoas ouvidas manifestaram-se contra o Anteprojeto da
Lei do Governo.
A maioria temia ser vítima de “eutanásia” nos hospitais ou de tomar a “injeção da
meia-noite”; se for fácil tirar seus órgãos depois de mortos, suas vidas poderão ser
abreviadas para a comercialização de corpos, com perigo de serem deixados morrer
para efetuar o transplante.
Mal sabemos como justificar essa triste constatação da ignorância de nosso
povo.
Não podemos negar que a situação foi alterada no decorrer dos anos, embora,
ainda hoje, existam os que pensem de forma retrógrada.
Outro problema que existe, contudo, é o que esta calcado no pequeno número
de doadores diante do imenso conglomerado de receptores. Esse ato cirúrgico
envolvendo córneas, pele, rins, ossos, entre outros órgãos e tecidos, atinge resultados
tão satisfatórios que a procura de órgãos acaba sendo maior que a oferta.
9 Antônio Chaves. Direito à Vida e ao Próprio Corpo. São Paulo; Revista dos Tribunais, 1986, p. 223.
Devido a esse obstáculo, a Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul foi a
pioneira ao aprovar lei no sentido de oferecer incentivo aos doadores. Seguindo seus
passos, a Assembléia Legislativa da Bahia aprovou o projeto de lei n.º 7.801/89, de
autoria de Sebastião Castro, que instituiu naquele Estado legislação semelhante à
gaúcha. Acreditamos que foram projetos como este que acabaram por levar a efeito a
promulgação da nova Lei de Transplantes de Órgãos e Tecidos Humanos (Lei n.º
9.434/97 alterada pela Lei nº10.211/01), que ajuda na realização da cirurgia de
transplantes de órgãos e tecidos.
Todavia, no Brasil, ainda persiste o quadro em milhares de pacientes que poderiam ter seus
males solucionados e suas vidas salvas, esperando meses ou anos por transplante sem que os possam
realizar, pela falta de doadores, vivos ou mortos. Eis a principal razão que estimula, educa e desperta os
indivíduos para este gesto humano, democrático e solidário de doar órgãos e tecidos com único objetivo
de salvar vidas humanas. Sejamos nós os precursores desses gestos para que, no futuro, possa existir
maior esperança de vida saudável entre os homens.10
5. O QUE É UM DOADOR
Doador é a pessoa que não implica em nenhum momento sobre a disponibilidade gratuita do
próprio corpo. È a pessoa maior e capaz, apta a fazer doação em vida, ou “post mortem” de tecidos,
órgão ou parte de seu corpo, com fins terapêuticos e humanitários.
6. O QUE É UM RECEPTOR
10 Freitas Nobre .O Transplante de Órgãos Humanos à Luz do Direito. p. 81.
É a pessoa em condições de receber por transplante tecidos, órgãos ou partes do corpo de outra
pessoa viva ou morta e que apresenta perspectivas fundadas de prolongamento de vida ou melhoria de
saúde.11
7. RETRIBUIÇÃO ECONÔMICA
A sociedade médica e científica envolvida em transplantes tem procurado manter a população
sempre informada, de forma honesta e clara, sobre o real procedimento do transplante, mostrando que a
doação de órgãos não é feita de um doador para um receptor específico e sim de maneira geral para os
bancos de órgãos, que escolhem qual o melhor par doador-receptor. É preciso que se esclareça que a
doação é feita à humanidade. É um ato nobre, que não visa lucro algum aos doadores, mesmo que estes
(órgãos) sejam entendidos como bens do indivíduo, bens fora do comércio, previsto em lei penal, em
caso de descoberta do comércio ilegal de órgãos.
A maioria dos juristas recusa a procedência da retribuição econômica para o doador, pois
recorrem a antigos preceitos, como: “o cadáver não é uma mercadoria, o cadáver é coisa fora do
comércio, o cadáver não pode ser apropriado por seus herdeiros e parentes”, ou mesmo por que
evidência uma falta de solidariedade humana.12
7.1. A Última Mercadoria: A Compra, A Venda E O Aluguel De Partes Do
Corpo Humano
Apesar das irregularidades e ilegalidades do mercado de órgãos humanos, os
transplantes constituem uma das maiores conquistas da ciência. Sem dúvida os abusos
registrados podem desacreditar a prática, assim como suscitar repressão a muitos
aspectos do progresso científico.
11 Antônio Chaves. Direito à Vida e ao Próprio Corpo. São Paulo; Revista dos Tribunais, 1986, p. 249.
Com crescente freqüência, a imprensa internacional vem veiculando notícias
sobre a compra e venda de órgãos humanos para transplantes; existem denúncias até
mesmo de seqüestros e mortes de crianças, com a retirada de partes de seus corpos
para os mesmos objetivos. Em geral, trata-se de informações sensacionalistas e pouco
documentadas. No entanto, já existem processos penais contra médicos que
favoreceram esse tipo de comércio, além de substanciosa documentação sobre
agências que colocam órgãos à venda, bem como de pessoas dispostas a vendê-los.
Fortes discussões sobre a legalidade de tais procedimentos têm sido levantadas em
revistas especializadas como Transplantation proceedings e Journal of medical
bioethics.
Um dos processos aconteceu na Inglaterra contra o Dr. Raymond Crockett, que
transplantou em quatro doentes ingleses os rins de cidadãos turcos classificados como
rewarded donors (doadores gratificados). Na sentença de condenação, o juiz
pronunciou as seguintes palavras: “A vossa tragédia pessoal e profissional, Dr.
Crockett, é que o vosso comportamento desacreditou profundamente a prática dos
transplantes renais, que o senhor mesmo tanto estimulou de forma útil e ativa na
Inglaterra.
Essa tragédia, contudo, tem implicações muito mais amplas. Os transplantes de
órgãos constituem uma das maiores conquistas da ciência, proporcionando um número
crescente de casos de sobrevivência a doentes anteriormente condenados à morte. Os
abusos registrados neste campo podem não somente desacreditar esta prática, como
também suscitar viva repulsa com relação a muitos aspectos do progresso científico,
12 Maria Celeste Cordeiro Leite Santos. Transplante de Órgãos e Eutanásia. São Paulo; Saraiva,1992, p. 145.
principalmente aqueles relacionados com o mais profundo da existência humana e que
podem originar uma ambivalência de aplicação, em direção ao bem ou ao mal.
Como conseqüência das razões acima mencionadas, originam-se fortes
controvérsias filosóficas e jurídicas que se dividem entre a ética e a ciência, entre a
liberdade e o mercado.13
7.2. A Venda Do Uso
Entendemos por venda do uso a troca de moeda por função corporal, que seja
baseada na igualdade jurídica (teórica) entre os sujeitos contraentes, e que seja
revogável. Neste campo o fenômeno mais freqüente, razão de enormes controvérsias
teóricas e dos maiores conflitos sociais, é a venda da força de trabalho, que Marx
identificou no século XIX como essência do trabalho assalariado e como causa de
alienação. A força ou capacidade de trabalho é entendida como o processo no qual o
homem põe em funcionamento as forças naturais pertencentes ao seu corpo, braços e
pernas, mãos e cérebro, para apropriar-se da matéria-prima da natureza de forma
utilizável para a própria vida.
Além da venda da capacidade laboral, podem ser identificadas outras esferas do
mercado do uso do corpo humano. Uma delas, relacionada à função sexual, se
manteve de formas variadas na sociedade pós-primitiva: a prostituição. Outra, surgida
há pouco tempo, compreende a venda de funções reprodutivas. Pertence a este último
grupo, o caso das amas de leite, uma atividade muito difundida antes da introdução do
aleitamento artificial com métodos modernos, assim como, em tempos mais recentes, o
sistema de ‘úteros de aluguel’ para a procriação assistida. Existem ainda os casos de
cessão do próprio corpo para experimentos, sobretudo no campo dos fármacos,
estimulado por pagamento ou outras vantagens materiais (por exemplo, redução de
penas para encarcerados). E, por fim, começam a se difundir também as adoções
mediante pagamento: esta prática consiste na transferência de crianças, muitas vezes
recém-nascidas - ou mesmo nascituras - de pais naturais a pais adotivos, através de
quantias repassadas aos familiares ou a intermediários. Nesta troca, é comprada a
renúncia dos genitores naturais a uma função - materna ou paterna - em benefício do
adquirente: a transferência da função filial é compreendida como objeto da negociação.
Como conseqüência deste elenco resumido de situações, a venda do uso
compreende: fenômenos que atravessam os tempos, como a prostituição; fenômenos
que são típicos da sociedade capitalista, como o trabalho assalariado; fenômeno que
estão relacionados ao equilíbrio demográfico e econômico entre as diversas regiões do
mundo, como a adoção de crianças.
Mesmo que a barganha compreenda como contrapartida algumas vantagens
materiais, a venda do uso é freqüentemente acompanhada de conseqüências negativas
para a saúde física e mental de quem vende. Referimo-nos, por exemplo: ao maior
risco de transmissão de doenças pela via sexual, assim como o emprego de violência
pessoal, nas prostituição; aos acidentes, doenças profissionais e menor expectativa de
vida dos trabalhadores da indústria, comparativamente com a média da população, á
subtração da nutrição dos próprios filhos pelas amas de leite; à interrupção brusca da
13 Berlinguer, Giovanni; Guarrafa, Volnei. A Mercadoria Final: ensino sobre a compra e venda de partes do corpohumano. Tradução: José Colaço Barreiros. Portugal: Difel, 1997. Título original: La Merce Finale.
relação psicofisiológica entre mãe e filho durante a gravidez, no caso dos úteros de
aluguel.14
7.3. A Venda De Partes Separadas
A venda de partes separadas do corpo humano era quase impossível antes
deste século. Houve alguns precedentes como a amputação estética dos cabelos para
a fabricação de perucas ou, no caso mais grave, uma vez que é também debilitante, a
venda de dentes sadios para a confecção de próteses. Podemos recordar a
personagem Fantina de Os Miseráveis, a mulher que, para criar Cosetta, vende seus
belos cabelos loiros por dez francos, depois seus dentes incisivos por dois napoleões
de ouro e, enfim, torna-se prostituta. “O que significa a história de Fantina?”, interroga
Vítor Hugo. Significa a sociedade que compra uma escrava. A miséria oferece, a
sociedade aceita.
A retirada de outras partes do corpo para encaminhá-las ao mercado, porém,
era irrealizável. Em outro texto literário, o mercador de Veneza, Shakespeare narra o
pacto de Antônio com Shilock pela cessão de uma libra de carne em troca de um
empréstimo, contestado por Porzia, no papel de jurista, com base no seguinte
argumento: O contrato não te concede nem mesmo uma gota de sangue; as palavras
precisas são ‘uma libra de carne’; mas, se ao cortá-la verteres uma só gota de sangue
cristão, a terra e teus bens, pelas leis de Veneza, serão confiscados em favor do
Estado.
14 Berlinguer, Giovanni; Guarrafa, Volnei. A Mercadoria Final: ensino sobre a compra e venda de partes do corpohumano. Tradução: José Colaço Barreiros. Portugal: Difel, 1997. Título original: La Merce Finale.
Nas leis de Veneza havia, provavelmente, qualquer salvaguarda com relação a
contratos similares àquele imposto por Shilock, não sabemos se em base ao direito
natural ou ao desejo de tutela dos cristãos com relação aos judeus. No entanto, nem a
lei antiga nem as constituições modernas previram que a retirada de algumas gramas
ou libras de tecidos e órgãos fosse possível “sem verter uma só gota de sangue”, e de
modo que parte da matéria humana viva pudesse constituir, danosamente ou não ao
corpo alheio, objeto de mercado.
Procedendo-se a um exame mais sistemático de toda a questão, muitas
diferenciações são possíveis, ou mesmo necessárias.
Uma primeira diferenciação pode ser feita com base nas condições do corpo:
vivo ou morto. Este aspecto traz à discussão, obviamente, a definição de morte e seu
reconhecimento, a garantia contra a remoção apressada e prematura de órgãos, o tema
da propriedade e da disponibilidade do cadáver e de suas partes.
Uma outra, no caso de remoção de órgãos de pessoas vivas, pode ser feita com
base na vontade da pessoa, isto é, na diferença profunda constatada entre a doação
(do sangue ou de órgãos, por exemplo) e a compra e venda. È oportuno ressaltar que
existem diversas formas de preservação dos doadores, as quais localizam-se entre
duas situações extremas e antagônicas. Tais situações variam desde a manutenção
da jornada de repouso, a que têm direito os doadores de sangue segundo as leis de
muitos países, até aqueles episódios em que o indivíduo se vê obrigado a vender os
próprios órgãos.
Uma terceira diferença é possível de ser estabelecida com base nas partes do
corpo: existem partes regeneráveis, como sangue; partes não-regeneráveis, como os
rins, e partes únicas e essenciais, como o coração. Esta distinção envolve um juízo
sobre a conseqüência da remoção quoad vitam et quoad valetudinem, com respeito à
sobrevivência e saúde da pessoa; implica diversas interpretações gerais e em certos
casos até mesmo uma avaliação prognostica individual.
Qualquer uma destas diferenças pode suscitar enormes discussões de caráter
científico e filosófico, relacionadas com escolhas que possam trazer implicações
práticas imediatas. Estes aspectos específicos serão discutidos mais adiante. No
momento nos ateremos a uma outra diferença possível: uma classificação com base
biológica ou anátomo-funcional, relacionada com o objeto concreto do possível
mercado.
Deixamos de mencionar neste trabalho outros dois aspectos do problema. O
primeiro deles, que é totalmente novo, consiste no uso industrial das células humanas
modificadas com a técnica de DNA recombinado, que tem originado discussões morais
e controvérsias legais sobre o direito de propriedade (a célula e os ganhos dela
derivados pertencem à pessoa da qual provém ou quem financiou e desenvolveu a
pesquisa para transformá-la?). E o segundo, que poderia ser resumido em uma
pergunta que exige resposta tão difícil quanto complexa: as situações aqui descritas
constituem apenas casos extremos e isolados ou estamos realmente diante da
propagação dramática de diferentes formas de mercantilização do corpo humano?15
7.4. Órgãos Para Transplantes - Sangue E Medula - Gametas E Órgãos De
Reprodução
15 Berlinguer, Giovanni; Guarrafa, Volnei. A Mercadoria Final: ensino sobre a compra e venda de partes do corpohumano. Tradução: José Colaço Barreiros. Portugal: Difel, 1997. Título original: La Merce Finale.
Nos últimos trinta anos os transplantes de órgãos experimentaram um notável
progresso devido ao maior conhecimento biológico, às novas técnicas cirúrgicas, ao
uso de medicamentos imunossupressores. Os centros internacionais mais qualificados
têm obtido resultados de sobrevivência de um ano para os pacientes em 90% dos
casos de transplantes de rim de pessoas vivas (80% de cadáveres), em 75% nos
casos de fígado, 85% para o coração, 50% para a combinação coração-pulmão. Outros
centros apresentam percentuais menores de sucesso. De qualquer modo, tanto a
difusão dos transplantes como a escassa disponibilidade de órgãos para atender às
necessidades cirúrgicas têm forçado a procura de outras formas de obtenção dos
mesmos, além da busca e cessão de cadáveres.
Em um congresso realizado em 1990 e que teve como tema ‘ética, justiça e
comércio nos transplantes’, a Transplantation Society apresentou cinco possibilidades
de doações a partir de pessoas vivas: 1) Doações de parentes; 2) doações de
pessoas ligadas sentimentalmente; 3) doações com fins altruísticos; 4) doações
através de pagamento (rewarded donors); 5) comercialismo crescente (rampant
commercialism). A respeito desta útil classificação, podem ser feitas duas observações.
A primeira é que a palavra ‘doação’ é imprópria à possibilidade 4 (doação através de
pagamento). Não só no emprego usual, como na linguagem jurídica, a partir da lex
cincia de donis et muneribus (204 a.C.) e em toda legislação posterior, a doação exclui
qualquer contrapartida e pressupõe, por sua vez, um animus donandi, uma vontade
desinteressada, portanto, o termo mais adequado para definir a quarta situação, ainda
que pareça brutal, é ‘venda de órgãos’. A outra observação se refere ao ‘comercialismo
crescente’; também esta expressão mostra-se açucarada e insuficiente para definir
fenômenos diferentes entre si que vão desde a compra-venda sem regras, até o roubo
de órgãos e assassinatos com a justificativa de busca ou procura de matéria-prima
para os transplantes, devendo por isso constituir um sexto ponto da classificação
proposta. Não nos ocuparemos neste capítulo dos três primeiros pontos da
classificação sugerida pela Transplantation Society, mas somente dos dois últimos
aspectos, partindo de algumas notícias provenientes de diversos países.
Inglaterra - Além do caso dos quatro cidadãos turcos, já citado, existem
denúncias da venda de rins feita por instituições da Índia para hospitais privados
ingleses. Como conseqüência do primeiro episódio, foi aprovada uma lei sobre
transplantes com base na qual o contrato de cessão de órgãos não é válido; tanto quem
vende como quem compra, é penalmente punido.
Canadá - Em 1990 o professor J. Harvey, da Universidade de Britsh Columbia
apoiou um artigo escrito por M. Evans no Journal of medical ethics, que defendia a
‘doação’ de órgãos por parte de não-parentes vivos: Existe tanta coação comercial
contra os não-parentes, quanto coação emocional e psicológica contra os parentes...
Não existem argumentos morais conclusivos contra este tipo de pagamento pela
doação.
Estados Unidos - Embora o Congresso norte americano tenha aprovado uma lei
que prevê penas pecuniárias e prisão de até cinco anos pela compra e venda de órgãos
(apesar de ser permitida a compra e venda de sangue), existem enormes pressões
vindas inclusive de setores da profissão médica, para que isso seja revisto. Foi proposto
por Peters, por exemplo, uma recompensa de mil dólares como uma espécie de caução
aos parentes de pessoas mortas que tenham tido algum órgão retirado. Por outro lado,
jornais e revistas brasileiras informam que o Instituto de Transplantes de Pittsburg
propôs à Associação Brasileira de Transplantes um acordo nas seguintes bases: a
formação de especialistas e a instalação de instituto para transplante de fígado no
Brasil, em troca de fornecimento de órgãos para os Estados Unidos. O Dr. Starzl, diretor
do Instituto de Pittsburg, quando indagado a respeito declarou: “Este tipo de acordo não
tem nada de amoral. Nós já desenvolvemos intercâmbios similares com a Índia, o
Paquistão, o México e alguns países africanos.
Alemanha - O jornal brasileiro O Globo publicou ampla matéria sobre um livro, de
Siegfriend Pater e Ashwin Raman, intitulado Organhadel - Ersatzeille aus der Dritten
Welt (Comércio de órgãos - peças de substituição do Terceiro Mundo). O livro descreve
um quadro sombrio relacionado a um mercado de órgãos estabelecido entre os países
subdesenvolvidos e a Europa; segundo os autores, os referidos órgãos estariam sendo
obtidos até mesmo através de homicídios. Esta notícia, assim como outra similar,
referida em uma denúncia anterior, requer confirmação posterior com documentação
mais conclusiva.
Brasil - Este país, onde não é raro nem mesmo o roubo de cabelos à mão
armada para a confecção de perucas, é mencionado freqüentemente como fornecedor
de órgãos para outras nações. Paralelamente a tais especulações, no entanto, parece
existir um ativo mercado interno que se desenvolve diretamente ou através de países
vizinhos. Os jornais Folha de São Paulo (Brasil) e La Repubbica (Itália) informaram que,
segundo a polícia federal brasileira, foi confirmado um movimento de aproximadamente
duzentos rins. A polícia uruguaia prendeu sete pessoas que repassavam para um
hospital de São Paulo pela quantia de 40 mil dólares, rins obtidos por dois mil dólares
nos bairros pobres de Montevidéu. O que existe de concreto, contudo, é que vem se
mantendo com inusitada freqüência nos últimos anos, através dos ‘classificados’ dos
principais jornais brasileiros, o oferecimento de rins (assim como de úteros para
aluguel) por valores que variam de dez mil dólares.
Em dezembro de 2003, foi notificado pelo programa Fantástico da Rede Globo
de Televisão que quatro pernambucanos foram presos em Durban, Africa do Sul
acusados de vender rins por US$ 6 mil. Trata-se de uma quadrilha internacional de
compra e venda de órgãos humanos. Segundo o Diário de Pernambuco a quadrilha
recrutava os vendedores em bairros pobres do Recife, e o gerente dessa quadrilha no
Brasil é um oficial da Reserva da polícia militar, as investigações continuam (maiores
detalhes estão em anexos pg.71).
Itália - Os jornais italianos divulgam freqüentemente casos de pessoas que, por
motivos variados, oferecem os próprios órgãos para o pagamento de alguma dívida.
Entre estes, pode ser citado o caso de uma senhora de Lamezia Terme que ofereceu o
próprio rim para saldar as contas com os credores da sua empresa; trata-se de um
episódio muito semelhante àquele encontrado na história de O Mercador de Veneza.
Quando começou a difusão da compra e venda de órgãos, os presidentes de
duas sociedades inglesas - Transplantation Society e Bristsh Transplantation Society -
P. J. Morris e R. A. Selles, escreveram uma carta à revista The lancet na qual diziam:
As pessoas não devem jamais ser operadas sob tal constrangimento ou em
conseqüência da corrupção. Tais estímulos não só destroem a natureza totalmente
especial da doação, como ainda ameaçam as normas de proteção usualmente
utilizadas para preservar a saúde, seja do doador, seja do receptor... Esta última
objeção é confirmada pelas experiências com transfusões de sangue nos países onde
vigora a doação paga... No entanto, consideramos agora mais importante fato que tais
transações monetárias corrompem e aviltam as relações entre o doador e o receptor,
que deveriam ser de altruísmo ou de caridade. Seja qual for o benefício que o
pagamento possa trazer para a melhoria do bem estar e nível de vida do doador e de
sua família, não pensamos que existam justificativas morais possíveis para a venda de
um órgão.
A carta era concluída confirmando-se a decisão, tomada em 1983 pelas duas
sociedades, de vetar aos próprios membros qualquer operação que implicasse
aquisição de órgãos.
Nos anos seguintes, todavia, além de haver se difundido na prática ainda mais, a
compra e venda de órgãos tem encontrado com freqüência sempre crescente
justificativas econômicas e até mesmo morais para sustentá-la. A legalização é
defendida com o argumento de que desta maneira se evitaria a clandestinidade. Afirma-
se também que o doador ou melhor, o vendedor (que continua a ser impropriamente
chamado de doador), submete-se a uma operação cirúrgica com risco mínimo, ajuda
outra pessoa necessitada e é recompensado financeiramente; enfim, tudo é vantajoso
para todos. A conclusão de quem defende todos estes argumentos é que “os vínculos
econômicos induzem as pessoas a cometer muitos atos, alguns deles nocivos à
sociedade, que são proibidos e punidos pela justiça, outros bons e úteis para outras
pessoas e que por isso as éticas não são absolutas e modificam-se de acordo com as
condições e os constrangimentos econômicos”.
A preocupação principal é freqüentemente transferida dos problemas morais e
sociais para os inconvenientes derivados do afrouxamento das condições de
segurança, já previstos na citada carta de Morris e Sells. Existem referências nas
revistas especializadas quanto aos riscos conseqüentes dos transplantes realizados
muito apressadamente e das possíveis infeções que possam vir em decorrência. São
também publicadas numerosas pesquisas sobre a preservação, seguimento ou controle
das condições pós-operatórias dos sujeitos transplantados com órgãos provenientes de
rewarded donors (doadores gratificados). Não encontramos nenhum trabalho sobre a
preservação ou seguimento dos “doadores” que após a remoção do órgão e
recebimento do pagamento, evidentemente, são deixados ao próprio destino.16
7.5. Causas Que Favorecem A Mercantilização
A partir dos diversos exemplos aqui apresentados fica claro que a
mercantilização do corpo humano tem uma origem muito complexa. Em termos morais
ela deriva da tendência, típica do século XX, de mercantilizar qualquer coisa: não
somente os produtos mas também a natureza, o conhecimento, os sentimentos, o
próprio corpo. Em termos científicos deriva das descobertas que tornaram possíveis a
troca e a utilização de partes do corpo, assim como do fato que alguns campos de
pesquisa e de atuação foram privilegiados em detrimento de outros. Em termos
econômicos origina-se no flagrante desequilíbrio entre o excesso de demanda e a
insuficiência de oferta, como é evidente na questão do sangue e dos órgãos utilizados
nos transplantes.
Relacionadas com estas condições basilares, existem algumas causas que
favorecem a compra e venda, as quais listamos e comentamos a seguir.
Desigualdades sociais e culturais - As denúncias sobre o comércio com órgãos
estruturas ou funções do corpo humano referem-se, invariavelmente, a pessoas pobres
como ‘doadores’-vendedores e a indivíduos com poder de compra como receptores-
16Berlinguer, Giovanni; Guarrafa, Volnei. A Mercadoria Final: ensino sobre a compra e venda de partes do corpo
compradores. Entre estes dois, quase sempre se coloca uma terceira figura: o
intermediário ou ‘despachante’, que atua isoladamente ou mesmo como empresário;
algumas vezes são os próprios médicos que associam a este encargo suas atividades
profissionais. A constatação de comércio nestes casos pressupõe inequivocamente
cidadãos com duas necessidades vitais bem diversas: os primeiros, tendo que vender
uma função ou uma parte - regenerável ou não - do seu corpo e os segundos, na falta
de órgãos ou estruturas disponíveis para a recuperação dos seus estados de saúde,
tendo que comprá-las para continuar vivendo.
A relação entre esta nova área do mercado e as desigualdades sociais preocupa
principalmente por dois aspectos: o primeiro é que este problema não diz respeito às
experiências humanas isoladas (nutrir-se, trabalhar, morar, estudar, etc.), mas ao
conceito essencial de que o corpo é o lugar de moradia da vida, o outro é que cria-se
em uma população aquela que pode - o interesse em manter sob sujeição sócio-
econômica e cultural uma outra população - aquela que pode - o interesse em manter
sob sujeição sócio, da qual pode adquirir as condições indispensáveis para a própria
sobrevivência.
Raramente as entidades médicas intervém para corrigir as distorções. Pelo
contrário, é desagradável constatar que vem crescendo a freqüência de artigos
publicados nas revistas científicas que tendem a legitimar e estimular formas de
pagamento de partes ou funções do corpo humano provenientes de cadáveres ou de
seres vivos. De uma forma geral, pode-se dizer que estas tendências representam uma
exasperação e uma metáfora da perda dos valores humanos, além da característica
humano. Tradução: José Colaço Barreiros. Portugal: Difel, 1997. Título original: La Merce Finale.
mercantil que vem assumindo, em muitos casos, o exercício da medicina nos nossos
tempos.
Faltam leis que possam limitar a pesquisa científica, e normas que
desestimulem e excluam o uso das funções e das partes do corpo humano como
mercadoria. Nos países onde tais normas não existem ou são imprecisas, tal comércio
é facilitado ou fica encoberto pela impunidade. Ao contrário, onde as intervenções são
feitas de modo apropriado coloca-se uma barreira, como aconteceu na França com a
gestação por procura, na Inglaterra com a punição contra os transplantadores de rins
comprados de cidadãos turcos e na Itália com a sentença que assegurou à mãe natural
o filho gerado com o ‘útero de aluguel’.
A derradeira mercadoria é uma novidade extraordinária; há poucas décadas, não
havia ainda sido prevista pela ciência, pela filosofia, pelo direito, pela política, somente
o cinema e a literatura a haviam intuído e assinalado. Ela dirige-se ao final do século
XX e pode mesmo vir a condicionar muitos desenvolvimentos práticos e culturais do
próximo século. Felizmente está ainda circunscrita ao aspecto quantitativo, pois até o
presente momento não faz parte dos fenômenos que envolvem as multidões humanas
ou os potentes interesses multinacionais. Mas, no futuro, o problema poderá alcançar
estas dimensões. De qualquer forma, na medida em que lida com o que há de mais
profundo do ser humano, exige, a partir de agora, reflexões e ações que dizem respeito
a muitos campos de atividade.
A questão social e o tema da justiça - Já falamos sobre estes aspectos em
vários pontos. Podemos agora agregar uma consideração sumarizada: em todo
casuística da compra e venda de células, tecidos, órgãos ou funções, são raríssimos os
relatos de que a estrutura retirada venha de uma pessoa rica para beneficiar um pobre,
ou mesmo que o comércio se desenvolva com material biológico levado dos países do
norte em vantagem dos países do sul. Deve-se ainda assinalar que este fato, ou seja, a
questão social e o tema da justiça, é quase completamente ausente nos debates
promovidos sobre bioética nas nações desenvolvidas. A explicação pode ser a
seguinte: o privilégio de viver no Primeiro Mundo ofusca a objetividade, fazendo com
que as discussões sobre o tema não se desenvolvam e a realidade continue ignorado.
As leis e os comportamentos - Diante dos fenômenos que descrevemos
anteriormente e da perspectiva de que todas estas distorções se estendam e se
generalizem nos próximos decênios, pode surgir espontaneamente um movimento
propondo uma proibição total da pesquisa, da experimentação e das práticas que
conduzem à derradeira mercadoria. Mas, além disso ser impossível, criaria obstáculos à
evolução real do conhecimento e às vantagens que este progresso traria para muitas
pessoas.17
8. CONDIÇÕES PARA QUE UM TRANSPLANTE POSSA SER REALIZADO
A lei brasileira determina que o doador de órgãos tecidos ou partes do corpo vivo seja pessoa
maior e capaz. E o transplante só será realizado se não houver outro meio de prolongamento ou melhora
da qualidade de vida ou melhora da saúde do indivíduo enfermo e se houver conhecimento consolidado
na medicina que admita algum êxito na operação, ficando vedada a tentativa de experimentação no ser
humano.
9. DOAÇÃO E TRANSPLANTES ENTRE VIVOS
17Berlinguer, Giovanni; Guarrafa, Volnei. A Mercadoria Final: ensino sobre a compra e venda de partes do corpohumano. Tradução: José Colaço Barreiros. Portugal: Difel, 1997. Título original: La Merce Finale.
Em se tratando de retirada de órgãos ou partes de pessoas em vida, o ponto basilar de qualquer
regulamentação legislativa é a eliminação de qualquer risco de morte ou lesão corporal de natureza
grave.
Trata-se de exigência fundamental, para se evitar a possibilidade de verdadeiros crimes, por
omissão ou mesmo comissão, diante da possibilidade, por maiores que sejam as cautelas, de surpresas.
Só é permitido à pessoa maior e capaz dispor de órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins
humanitários e terapêuticos.
Podem ser objeto da doação de órgãos e de tecidos cuja a extração não altere a saúde do
doador de forma permanente e não ponha em perigo a sua vida. O doador não pode ter diminuída a sua
capacidade física ou psíquica, nem perder nenhuma função importante do organismo.
Por esta razão não poderão ser objeto de doação órgãos ímpares, nem membros ou outras
partes que produzam uma diminuição funcional, nem que afetem o seu aspecto estético. A retirada de um
órgão hígido de uma pessoa saudável não lhe traz nenhum benefício, pois deixa-a situação vulnerável,
pois passa dispor de apenas um órgão, que se lesado não terá mais seu par para suprir-lhe a função,
ainda que parcialmente.
A doação intervivos exige informação clara ao doador sobre todos riscos imediatos e tardios do
processo de doação, a fim de que ela possa exercer a sua autonomia de forma esclarecida.
Em conseqüência é necessário realizar um minucioso exame no doador que permita prever se,
por seu estado de saúde atual, pode ver-se seriamente prejudicado no futuro pela doação, também são
analisados possíveis transtornos psíquicos causados pela perda do órgão.
A utilização de órgãos de criança é condicionada ao consentimento dos pais e, em vários países
à autorização judicial. Outro ponto a discutir é quanto à utilização de órgãos de fetos inviáveis como, por
exemplo, na anencefalia, uma mal formação congênita do sistema nervoso central em que não se
desenvolvem os hemisférios cerebrais que poderiam ser considerados apenas meros bancos de órgãos.
Este tipo de doação somente tem sido aceito quando existe relação de parentesco entre doador e
receptor, a doação de órgãos por parte de amigos ou até mesmo de desconhecidos tem sido fortemente
evitada.
A doação de órgãos é um ato irreversível, sem possibilidade de arrependimentos ou revisões
diferentemente, de uma opção religiosa feita pelos pais e que poderá ser mais tarde modificada pelo
filho.18
9.1. O Doador e as Relações Trabalhistas
O ato de doação de um órgão ou parte anatômica apresenta interessantes aspectos na natureza
trabalhista.
O efeito pré e pós operatórios do doador não surge em conseqüência de enfermidade, nem de
um acidente, ao contrário surge de uma lesão causada por vontade própria.
Suas ausências no trabalho seriam injustificadas acarretando sua demissão. Por outro lado
muitas extrações ocasionam uma diminuição na capacidade do doador, circunstâncias releváveis nos
casos em que o paciente desempenha um ofício onde prevalece o esforço físico, resultando na sua
incapacidade, silencia a lei brasileira a respeito.
10. DOAÇÃO DE ÓRGÂOS DE CADÁVER
O direito do homem sobre seu cadáver é da mesma natureza do direito que tem sobre seu
próprio corpo. Se o homem tem o direito de viver conforme suas concepções filosóficas e religiosas, ele
também tem direito de exigir que suas vontades sejam respeitadas e executadas após sua morte.
Assim, toda pessoa viva, como sujeito de direitos, pode dispor em vida do destino de seus
órgãos, no exercício legitimo de um direito da personalidade, estabelecendo as condições de
18 Bacchela, Teleforo."Doação de Órgãos: vale a lei ou a decisão da familiar". In: Revista INCOR, ano 04, Número36, 1998, p. 19-24.
sepultamento, embalsamento, proteção e incolumidade, já que esta não reside só na pessoa viva, por
reverência e respeito, mas no reconhecimento da dignidade humana.
O dispoente perde a propriedade do órgão ou parte do corpo que cedeu, o receptor passa a ser
proprietário do bem que se incorporou definitivamente ao seu corpo, a parte que se integra no todo perde
sua individualidade originaria, decorrente da separação e fazendo parte do corpo humano, passa a
pertencer ao sujeito deste.
Uma vez manifestada a vontade por ato de última vontade, para a retirada de órgão e tecidos
após a morte, a renuncia do ato, uma vez expressa, tem o condão de revoga-lo, sem qualquer
justificativa, por se tratar de um direito da personalidade.
O homem ao dar destino ao seu cadáver, não pode ultrapassar os limites éticos em que se
assenta a sociedade, transformando em objeto de negócio.
A decisão pessoal intransferível de quem cede seu corpo ou parte dele em proveito de pesquisa
cientifica ou da vida de seu semelhante, através de documento para valer nos após-morte, deve ser
respeitada, desde que não apresente características de mercantilização.
A retirada de partes do cadáver, sujeito por força de lei à necropsia ou à verificação diagnostica
“causa mortis”, deverá, nos termos da lei ser autorizada por médico legista e citada no relatório da
necropsia ou da verificação diagnostica. A retirada não pode ser acionada por um só médico, nem pode
ser ele membro da equipe que assistiu a pessoa durante o tratamento.
O doador deve evidenciar estado de ausência completa e irreversível das funções do cérebro,
pois a vida humana subsiste até que se declare a cessação da atividade cerebral. Após a retirada de
órgãos ou partes de cadáver, é obrigatória sua recomposição para que seja entregue aos responsáveis
para o sepultamento, sob pena de incorrer na pratica de crime.
11. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA
O primeiro diploma legislativo que entre nós regulou a matéria foi a Lei n.º 4.280, de 06.11.63,
que “dispõe sobre a extirpação de órgão ou tecido da pessoa falecida”.
Foi revogado pela lei n.º 5.479 de 10.08.68, que “dispõe sobre a retirada e transplante de tecidos,
órgãos e partes do cadáver, para finalidade terapêutica e científica, e dá outras providências”.
Regulava não só a retirada e transplante de tecidos, órgãos e partes de cadáver, como indica o
título, mas também a retirada em vida.
Até 18.11.1992, a Lei n.º 5.479 não havia sido regulamentada, a falta do decreto regulamentador
desta, podia levar a discussão sobre a possibilidade de realização de transplante de órgão, perturbando a
atividade médica na especialidade.
Preceitua a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 199, § 4º “A lei disporá sobre as
condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de
transplantes, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus
derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização”.
O regulamento poderia perfeitamente dispensar a expedição de novo diploma, uma vez que o
anterior contempla todos os pressupostos estabelecidos na Constituição e apresenta como modelo para
a cumulação dessa lacuna (apesar de posterior a nossa) a lei Argentina, que teve seu regulamento
expedido pelo decreto n.º 3.071 de 1977.
Houve alguns projetos para alteração dessa lei um deles é do Deputado Geraldo Alckmin Filho,
foi somente em 02.09.92 que a Comissão de Seguridade Social da Câmara dos Deputados aprovou o
projeto, que, com a intenção de elevar o número de transplantes, propunha que, se a pessoa se
manifeste em vida como doadora, não seria mais necessária a consulta à família para retirada de órgãos
depois de sua morte.
O projeto, segundo o relator, Deputado Geraldo Alckmin Filho, seria um dos mais adiantados do
mundo, prova, sem dúvida, de excessivo otimismo.
Converteu-se, finalmente, na Lei n.º 8.489, de 18.11.1992, que dispõe sobre a retirada e
transplante de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, com fins terapêuticos e científicos e dá outras
providências, desta feita o regulamento não tardou tanto Decreto 879, de 22.07.1993.
A Lei n.º 8.501, de 30.11.1992, por sua vez, dispõe sobre a utilização do cadáver não reclamado,
para fins de estudo ou pesquisas cientificas, e dá outras providências.
A Portaria n.º 96, de 28.07.1993, da Secretaria de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde
estabelece normas de credenciamento do hospitais que realizam transplantes para o Sistema Único de
Saúde, e registre-se que a Constituição do Estado de São Paulo determina, art.225, crie a Unidade da
Federação banco de órgãos, tecidos e substâncias humanas.
O Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, sancionou, em 04.02.97, a Lei n.º
9.434, que dispõe sobre remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e
tratamento. Esta lei de transplante é resultado de um substitutivo elaborado pelo Senador Lúcio Alcântara
que reuniu três projetos sobre o assunto (PLS 6/95 – PLS 8/95 – PLS 15/95) que se encontrava em
tramitação conjunta. O substitutivo foi aprovado em 22.02.96 e encaminhado à Câmara dos Deputados
onde o número PL 1.579/96 e, também, foram apensados outros projetos que versavam sobre a matéria.
Uma vez aprovado na Câmara o substitutivo, que naquela Casa teve como relator o Deputado Federal
Carlos Mosconi, retornou ao Senado onde, após apreciação, tiveram algumas mudanças acatadas,
outras não. O ponto discordante foi artigo 4º e seus parágrafos, que pela proposta do Senado instituía o
princípio do consentimento presumido, enquanto na Câmara adotou-se o princípio do consentimento
afirmativo, prevalecendo, no final, a redação dada no Senado. A diferença entre os dois princípios é que,
no consentimento afirmativo, todas as pessoas devem se manifestar se querem ou não doar seus
órgãos, enquanto que no presumido, todos os que não se manifestarem em contrário, são considerados
automaticamente, doadores.
No período em que a Lei, ainda em forma de projeto de lei, tramitou no Congresso Nacional,
houve manifestação de apoio, assim como as de rejeição. Os opositores se apoiaram na idéia de que a
doação presumida, como é denominada na Lei, descaracteriza o ato de doação que deve ser voluntário.
Porém, ela continua a ser voluntária, uma vez que o cidadão tem liberdade de escolher ser um não-
doador. É verdade que há uma inversão, já que ser voluntário implica em uma atitude de dar-se um
passo à frente, mas isso não quer dizer coibir o direito à escolha.
Outro questionamento suscitado foi a possibilidade da sanção da lei propiciar o aquecimento do
comércio ilegal de órgãos. Considerando-se que uma oferta abaixo da demanda é o propulsor do
mercado negro (seja qual for o produto), a doação presumida deve, assim se espera, aumentar a oferta
de órgãos e, consequentemente, minar as bases de tráfico. É bem verdade que a doação presumida não
vai eliminar o problema da carência de órgãos da noite para o dia, mas deve diminuir o problema
consideravelmente.
Entidades médicas se posicionaram contra a idéia, alegando a falta de infra-estrutura dos
hospitais brasileiros para comportar a captação e distribuição de órgãos. Atualmente nem todos os
Estados brasileiros possuem centrais de capitação de órgãos e os hospitais a maioria situada nas regiões
sul e sudeste, realizam transplantes, sendo que alguns apresentam uma produtividade abaixo da
expectativa. Em alguns hospitais, não chegam a ser realizados nenhum transplante durante o período de
um ano.
A Lei, enquanto projeto, previa a criação das centrais de notificação, captação e distribuição de
órgãos, porém este artigo foi vetado no ato de sanção da Lei por tratar-se de matéria da competência do
Presidente da República, conforme o disposto na artigo 61, inciso II, letra e, que diz “São de iniciativa
privada do Presidente da República, as leis que dispunham sobre criação, estruturação e atribuições dos
Ministérios e Órgãos da Administração Pública”. O veto não significou uma divergência quanto ao mérito
da proposta. Seu único objetivo foi o de preservar a ordem constitucional.
O Ministério da Saúde regulamentou a lei e dispõe sobre a criação de uma Central Nacional de
Transplante que é encarregada de realizar o intercâmbio entre as centrais estaduais e os hospitais, que
devem captar os órgãos doados.
O consentimento presumido vai de encontro à tendência verificada em países com Áustria,
Alemanha, Bélgica, França, Itália e Espanha que, sem sombra de dúvida, aponta para a adoção do
princípio da doação presumida.
A princípio, pensou-se que o Presidente vetaria este artigo, diante das manifestações em
contrário de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, Conselho Federal de Medicina,
Secretaria de Saúde do Estado de Alagoas, Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo -
Cremesp, Igreja Católica e outros. Mesmo o Conselho de Saúde do Ministério da Saúde, mostrou-se
resistente em aceitar o projeto, mas reconsiderou sua posição.19
12. CONSENTIMENTO PRESUMIDO PARA DOAÇÃO DE ÓRGÃOS – ESTATIZAÇÃO DO
CORPO HUMANO SEM VIDA - A POLÊMICA CAUSADA PELA LEI 9.434/97
Na maioria dos países civilizados, o cidadão tem a liberdade de escolher entre ser ou não
doador, no Brasil pelas legislações anteriores, a permissão para aproveitamento de órgãos, havia de ser
dada pelo doador, através de manifestação em vida, devidamente documentada.
Poderia ainda ocorrer à doação, quando inexistia manifestação em vida, expressa do doador,
consultando-se sua família e não havendo manifestação contrária à retirada, se operava a doação.
Com advento da lei 9.434/97, que tornou todos os cidadãos doadores obrigatórios, compulsórios,
reservando àqueles que tem direito a não doar, o inconveniente expediente de ter que se deslocar a uma
repartição pública, dirigindo-se a um funcionário e revelando sua vontade de não ser doador, registrando
tal manifestação em documento de identidade.
Assim, os brasileiros que não desejarem ser doadores, terão de enfrentar vários obstáculos pois
os que não quiserem doar seus órgãos terão de tratar desse assuntos com um estranho, sendo um
assunto pessoal, sempre haverá constrangimento. Ocorre que o constrangimento maior é manifestar-se
como não-doador e verificar uma sutil censura de quem quer que seja, pois por essa lei, o indivíduo é
exposto a reprovação, não só do funcionário público que o atende, mas sempre que apresentar seu
documento no qual estiver escrito “NÃO-DOADOR”, que para muitos será traduzido como “EGOÍSTA”.
Falhou o legislador e falhou o governo, e até o Ministro da Saúde, que se manifestou contrário à
lei, reverteu sua posição apesar de considerá-la inconveniente.
O assunto não esta esgotado e causara muitos problemas, posto que provoca reflexões em torno
de temas, também muito delicados, como a eutanásia, tráfico de órgãos humanos.
19 Antônio Chaves. Direito à Vida e ao Próprio Corpo. São Paulo; Revista dos Tribunais, 1986, p.224.
O legislador trabalhou com a hipótese do tráfico, tanto é que previu uma posição severa para
aquele que remove ilegalmente órgãos ou os comercializa, com penas que podem chegar a 20 anos.
Com essa lei inúmeros brasileiros esperam que jamais precise de cuidados médicos tão
delicados que possam os fazer ser vistos como um doador compulsório, ou até, por alguns
inescrupulosos, como uma prateleira de órgãos disponíveis para doação em questão de momentos. O
cidadão tem o direito de ser visto, sempre, como alguém que merece toda atenção e cuidados de seus
médicos, visto somente como uma criatura humana que quer viver.
O corpo humano sem vida que antes pertencia à família enlutada foi confiscado pelo Estado, que
o estatelou, como se fosse uma coisa de ninguém. O corpo inanimado pertence a família e qualquer
parte desse corpo só poderá ser retirada, por vontade daquela mesma criatura manifestada em vida, ou
por um profundo sentimento de caridade dos familiares, confortados pelo gesto da decisão.
13. ÉTICA E RESPONSABILIDADE
A população brasileira tem baixo grau de individualismo ou seja é voltada para sua coletividade.
As pessoas de países com culturas coletivas controlam seus membros através da pressão social externa,
isto é, através da vergonha. Já as sociedades de caráter individualistas controlam seus participantes
através da pressão interna, ou seja, da culpa. Este traço cultural pode explicar porque tantas pessoas
doavam os órgãos de seus familiares, quando consultadas.
O Brasil tem alta intolerância à incerteza, ou seja, as pessoas tendem a utilizar diferentes formas
de controle da situação vigente, seja através de métodos objetivos (planejamento, legislação detalhista)
ou subjetivos (crenças determinadas, fantasias de controle prévio ou externo da situação-destino).
Quando a legislação propunha a doação voluntária, as pessoas exerciam a sua autonomia
declarando-se “doadores”, pois assim controlariam a incerteza de que sues familiares aceitariam doar
seus órgãos. A motivação maior era a beneficência social, isto é, a possibilidade de um benefício para
uma ou mais pessoas. Antes da reforma da lei o cidadão pode exercer sua autonomia, efetivamente,
declarando-se “não-doador”. Os riscos, reais ou imaginários, não importa, incorporam-se ao seu conjunto
de crenças, passando a influenciar o processo de tomada de decisão. O risco, que assusta muitas
pessoas, é o da perda de controle sobre o destino de seu próprio corpo, as pessoas tem medo desta
situação trágica e desconhecida. Desta forma, evitam a incerteza através de sua manifestação contrária a
utilização de seus órgãos. O resultado é a perda de potenciais doadores.
A legislação, que sempre é uma coerção do Estado sobre o indivíduo, pode estabelecer uma
alteração no processo de captação de órgãos para fins de transplantes, contudo, nem sempre o resultado
é o esperado. Os costumes, isto é, as normas morais de uma população, desenvolvem-se em ritmo
diferente do legal. O desconhecido sempre gera angustia, pela nova possibilidade que se oferece.
Assim, a totalidade da sociedade é diretamente atingida por esses atos e por suas
conseqüências prováveis. Com efeito, a partir de 4 de abril de 1997, presumiu-se a decisão autônoma de
que todas as pessoas identificadas no Brasil viessem a ser, “post mortem", doadores de tecidos, órgãos e
partes do corpo, com exceção do sangue, do esperma e do ovulo, para fins de transplantes e tratamento.
E a conseqüência direta dessa disposição foi que qualquer pessoa identificada podia após aquela data
ter seus tecidos, órgãos e partes do seu corpo extraídas “post mortem”, para servirem de meio de
tratamento ou serem transplantadas, sempre que deixarem de fazer constar por desinformação ou por
negligência ou medo de segregação em seus documentos a manifestação de vontade contrária à
doação.
Outro ponto de fundamental importância, é o temor da segregação, de fato, ao introduzir um sinal
de opção moral em um documento de identificação física a lei esta criando potencial elemento de
discriminação ética. È fácil enumerar possíveis situações em que seria notada a gravação “não-doador
de órgãos e tecidos” em documentos de identidade, implicando a pecha de não solidário ao seu portador,
podendo algumas delas assumir um caráter de certa gravidade quando por exemplo, um atendente,
fervoroso adepto da solidariedade social, receber, no serviço de emergência médica, um acidentado cuja
carteira de identidade possui tal gravação.
Seria adequado, portanto numa sociedade liberal e pluralista como é a brasileira que a lei
garantisse que comportamentos diferentes baseados em valores diversos possam conviver sem o
prejuízo da harmonia social.
Por todas essas razões éticas e jurídicas foi que se promoveu um amplo debate social sobre o
tema legitimando-se, assim, o estabelecimento de diretrizes para promover a correção da lei, para
eliminação das irregularidades jurídicas.20
14. RESPONSABILIDADE DOS INFRATORES DA NORMA JURÍDICA QUE REGULA
OS TRASNPLANTES DE ÓRGÃOS
A Lei permite ao lesado a obtenção de respostas distintas, em função dos
interesses visados, estruturáveis, em consonância com os seguintes objetivos:
cessação de práticas lesivas; apreensão de materiais oriundos dessa práticas;
submissão do agente à cominação de pena; reparação de danos materiais e morais;
perseguição criminal do agente.
A diversidade de fórmulas possibilita ao lesado a escolha dos meios de reação,
em função de seu interesse imediato, e dedutíveis em consonância com a situação
fática.
Essas medidas são, no entanto, cumuláveis, podendo vir a coexistir, sucessiva
ou simultaneamente, em concreto, em razão da ação do lesado.
Prosperam, a respeito, as orientações de que, uma vez presentes os
condicionantes próprios, pode-se dar a cumulação de áreas de atuação (civil e penal) e,
ainda, ocorrer a conjugação de efeitos práticos diversos (como por exemplo, a
imposição de cominação e a indenização de danos). Medidas administrativas podem,
ainda, ser inseridas nesse contexto, o que não obsta o ingresso no Judiciário.
20 Antôno Chaves. Direito à Vida e ao Próprio Corpo. São Paulo; Revista dos Tribunais,1986, p. 243.
No plano penal, quando constitutiva de delito a conduta violadora, cabe a
perseguição criminal por via queixa do interessado, ou, quando, for o caso, ação
pública, as responsabilidades civil e penal são independentes.21
14.1. Responsabilidade Penal
Esta em vigor a Lei 9.434/97 reformada pela Lei 10.211/01 dispondo sobre a
retirada e transplantes de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, com fins
terapêuticos e científicos.
A Lei contempla aspectos delicados como a constatação da morte para o efeito
de ser possível ou não a retirada de órgão, adotando o critério da morte encefálica, e
provendo sobre a observância da vontade do disponente ou de seus familiares, o
destino a ser dado aos despojos, etc.. Não há excesso em dotar tais dispositivos da
energia e coação imanentes à sanção penal.
A terapia do transplante só será adotada se inexistente outra possibilidade,
qualquer, clínica ou cirúrgica, de se alcançar por outro modo o restabelecimento da
saúde ou melhora do receptor. Assim, o legislador enfatiza tal condição, com exigência
de indicação terapêutica do transplante se tenha por conprovadamente indispensável
para o receptor.22
Para veicular o elenco dos comportamentos passíveis de sanção criminal,
enunciando seus atributos essenciais a norma incriminadora enuncia os elementos
21 Carlos Alberto Bittar. Os Direitos da Personalidade. Rio de Janeiro; Forense Universitária, 2000, p. 49-51.22 Marrey Neto, José Adriano. Transplante de Órgãos: disposições penais: notas às disposições penais contidas naLei n. 8.489, de 18-11-1992, São Paulo; Saraiva, 1995.
identificadores dos fatos ou condutas penalmente relevantes, sendo a mesma
interpretada e aplicada de forma restrita.
O transplante ou enxerto só poderá se verificar com o consentimento expresso
do receptor após avaliação médica e ciente dos ricos inerente e a sua inscrição em lista
de espera.
É permitida a doação de órgãos se o mesmo for órgãos duplos; de partes de
órgãos; tecidos ou partes do corpo, se a retirada não comprometer gravemente as
aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação e corresponda a
uma necessidade terapêutica comprovada pelo receptor.
O doador deverá autorizar a doação por escrito e diante de testemunhas com a
especificação da parte ou órgão a ser retirado.
Portanto, remover tecidos, órgãos ou partes do corpo em desacordo com a Lei, o
infrator será penalizado com reclusão de dois a seis anos e multa.
Para crimes cometidos mediante paga, recompensa ou motivo torpe a pena é
reclusão de três a oito anos e multa.
Se praticado em pessoa viva que resulte lesão corporal de natureza grave a
pena será de reclusão variando de três a doze anos e multa, e se resultar morte a
reclusão será de oito a vinte anos e multa.
Comercializar órgão humano, intermediar ou facilitar a transação é crime e, o
infrator será apenado com reclusão de três a oito anos e multa. A realização de
transplante utilizando órgão ou partes do corpo sabendo-se que foram obtidos de forma
ilegal penaliza o infrator com reclusão de um a seis anos e multa.
Aquele que recolher, transportar, guardar ou destruir partes do corpo humano
obtidos em desacordo com a Lei comete crime apenado com reclusão de seis meses a
dois anos e multa.
Após a retirada de órgãos, tecidos ou partes do corpo, o cadáver deve ser
condignamente recomposto e entregue aos seus familiares para sepultamento a
inobservância de tal dispositivo implica em pena de detenção de seis meses a dois
anos.
A Lei proíbe também anúncio ou apelo público, somente o Sistema Único de
Saúde - SUS, poderá realizar campanhas esclarecendo os benefícios e estimular
doações de órgãos.
As instituições de saúde e equipes médico-cirúrgicas, receberão sanções
administrativas se incorrerem nos crimes previstos na Lei, podendo ser desautorizadas
temporária ou definitivamente, podendo ocorrer a incidência de multas e, acarretar a
responsabilidade civil e criminal.
14.2. Responsabilidade Civil
A responsabilidade médica deve ser proclamada e cobrada, o médico que,
precipitadamente, aplica métodos ainda não bastante comprovados, o que se descuida,
por pressa, incúria ou excessivo entusiasmo, o que despreza precauções e diligência,
ao medicar ou operar, e o ignorante da sua arte deve ser responsável, por imprudência,
negligência ou impericía.
Assim, todo rigor e cuidado que se deve exigir ao firmar-se o diagnóstico de que
determinado paciente necessita de um transplante ou ao aceitar este ou aquele doador.
A infração de qualquer das disposições legais podem levar a ação penal e a
reparação civil, por ato ilícito a ser apurado e julgado.
Só em uma circunstância a Lei permite intervir no corpo vivo de uma pessoa,
sem razão fundada em sua saúde, para retirar órgãos que, sem risco de vida, tenham
sido doados para fins humanitários ou terapêuticos. Desde que desapareça essa
finalidade, a intervenção não tem respaldo na Lei. O consentimento da pessoa não
torna lícita a ação do médico.
O Código Civil adotou, a mesma linha de entendimento do Código Penal, ou
seja, o médico que exceder os limites do exercício regular de seu direito de intervir no
corpo vivo de pessoas, restituir-lhe a saúde, fica obrigado, a reparar o dano
recorrente.23
No direito brasileiro a responsabilidade civil do médico está consagrada no artigo
951 do Código Civil nos seguintes termos: "o disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-
se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade
profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente,
agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho", e artigo 186 do
mesmo diploma legal dispõe " aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência
ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral,
come ato ilícito".
Em breve análise dos artigos acima mencionados, temos os elementos
essenciais da responsabilidade civil, ação ou omissão, culpa ou dolo do agente, relação
causal e dano experimentado pelo paciente.
23 Antônio Chaves. Direito à Vida e ao Próprio Corpo. São Paulo; Revista dos Tribunais, 1986, p.314.
O Código de Defesa do Consumidor, reafirma o princípio da responsabilidade
aquiliana dos médicos, em seu artigo 14, § 4º. Ampliou para o médico o ônus
probatório, cabendo ao paciente provar-lhe a culpa, ainda que o serviço prestado tenha
suporte em contrato por eles firmado.
O Direito Civil pátrio abraçou a teoria da culpa no que diz respeito à
responsabilidade médica, tendo a vítima do dano provar a imprudência, a negligência e
ou imperícia do profissional para ser plenamente ressarcida.
Por fim, a realização do transplante deve obedecer às normas legais
estabelecidas no citado diploma especial, e sua inobservância pode acarretar infração
com sanções nas esferas civil, penal e administrativa.
15. SISTEMA NACIONAL DE TRANSPLANTE – SNT
CENTRAIS DE NOTIFICAÇÃO, CAPITAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DE ÓRGÃOS – CNCDOs
Pelo Decreto n.º 2.268 de 30 de Junho de 1997, que regulamentou a Lei n.º 9.434 de 04 de Abril
de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, foi criado o Sistema
Nacional de Transplante – SNT, que desenvolve o processo de captação e distribuição de tecidos,
órgãos e partes retiradas do corpo humano para fins terapêuticos.
O SNT tem como âmbito de intervenção as atividades de conhecimento de morte cerebral
verificada em todo território nacional e a determinação do destino dos tecidos, órgãos e partes retirados.
O Ministério da Saúde, exerce a função de órgão central do SNT, e gerenciará a lista única
nacional de receptores, com as indicações necessárias à busca, em todo território nacional, de tecidos,
órgãos e partes compatíveis com as suas condições orgânicas. Também é quem autoriza
estabelecimentos de saúde e equipes especializadas a promover retiradas, transplantes ou enxertos de
tecidos, órgãos e partes. Credencia as CNCDOs.
As Secretárias de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Município ou Órgãos
equivalentes, para que se integrem ao SNT, deverão solicitar ao órgão central o seu credenciamento
junto ao SNT, assumindo certos encargos. Assim, as CNCDOs deverão coordenar as atividades de
transplantes no âmbito estadual, promover as inscrições de potenciais receptores, com as indicações
necessárias à sua rápida localização e à verificação de compatibilidade do respectivo organismo para o
transplante, de que necessite. Classificar os receptores e agrupa-los segundo as indicações anteriores,
em ordem de data de inscrição, fornecendo os necessários comprovantes. Comunicar ao órgão central
do SNT as inscrições que efetuar para a organização da lista nacional de receptores. Receber
notificações de morte encefálica ou outra que enseje a retirada de partes para transplante, ocorrida em
sua área de atuação. Determinar o encaminhamento e providenciar o transporte das partes retiradas ao
estabelecimento de saúde autorizado, em que se encontra o receptor ideal. Notificar o órgão central do
SNT de partes não aproveitáveis entre os receptores inscritos em seus registros, para utilização dentre os
relacionados na lista nacional, encaminhar relatórios anuais a central do SNT sobre o desenvolvimento
das atividades de transplante em sua área de atuação. Exercer controle e fiscalização sobre as
atividades e aplicar penalidades as infrações a lei.
Das muitas questões polêmicas que cercam a legislação, é a estrutura precária das CNCDOs, o
entrave principal não é falta de órgãos, mas sim o mal aproveitamento do potencial doador, que não é
mantido em condições satisfatória para o posterior aproveitamento de sues órgãos em boa parte dos
serviços de emergência do país.
Médicos afirmam que o sistema público de saúde é a principal porta de entrada hospitalar de
pacientes graves, representando o grande potencial para a obtenção de doadores cadáveres para a
utilização de órgãos e tecidos para transplante. A concordância da família com a doação, ao saber da
morte cerebral do paciente é em média de 75% dos casos. É um índice equivalente aos dos serviços que
transplantam no EUA e nos países europeus. O diferencial é em relação ao aproveitamento, muito maior
nestes países.
No Brasil mesmo sendo obrigatória, a notificação ainda é feita excepcionalmente, por falta de
iniciativa dos próprios médicos e incentivo dos hospitais.
Em paralelo, há a enxutíssima estrutura pública para a realização de transplantes. Só a capital
paulista, supera a rotina de transplantes realizado por outros Estados, outro problema de monta é que
ainda há capitais nordestinas que não contam com cncdos.
16. O APOIO DE ALGUMAS RELIGIÕES
É inegável que a doação de órgãos salva vidas e por isso não pode ser condenada. Mas também
é obvio que essa questão envolveu aspetos polêmicos. Não se pode discutir o tema sem revelar as
diferentes religiões e o culto que elas dispensam aos mortos além, é claro dos fundamentos legais.
A Igreja Católica aprova a doação de órgãos, o Papa Pio XII apoiava a intervenção de retirada de
órgão de cadáveres no interesse de salvar os que sofrem, e salientava a necessidade de educar o povo
a respeito do assunto.
O Papa João Paulo II, no dia 29 de agosto, pela primeira vez, deslocou-se para comparecer ao
XVIII Congresso Internacional da Sociedade de Transplantes, no dia 29 de Agosto, dirigindo uma
mensagem aos seus participantes. Em sua alocução em Roma, na praça em frente ao Palácio dos
Congressos, o Sumo Pontífice reafirmou o apoio da Igreja Católica aos transplantes de órgãos como
instrumento de defesa e promoção da vida. O Santo Padre expressou a sua confiança no diagnóstico de
morte tendo por base os critérios neurológicos que definem a morte cerebral, definindo-os como
instrumentos para alcançar a certeza moral, base de todo procedimento ético. O Chefe da Igreja Católica
reafirmou ainda grandes princípios éticos e morais que devem nortear esses procedimentos.
O judaísmo considera fundamental o respeito pelos mortos. Neste contexto, a lei judaica proíbe a
mutilação do cadáver e exige que o corpo seja sepultado intacto e os mais breve possível.
Essas exigências, entretanto, como todas as leis de Tora, a Bíblia hebraica, podem ser postas de
lado diante do mandamento supremo do judaísmo: pikach rijesch, o dever de salvar uma vida. Não pode
haver maior tributo aos mortos do que utilizar seus restos mortais para salvar ou prolongar outra vida
humana.
17. LEI N.º 10.211/01 ALTERA A LEI N.º 9.434/97
A utilização de órgãos de doadores cadáveres tem sido a solução mais
promissora para o problema da demanda excessiva. O problema inicial foi o
estabelecimento de critérios para caracterizar a morte do indivíduo doador. A mudança
do critério cardiorrespiratório para o encefálico possibilitou um grande avanço neste
sentido. Os critérios para a caracterização de morte encefálica foram propostos, no
Brasil, pelo Conselho Federal de Medicina através da resolução CFM 1480/97. Na
doação de órgãos por cadáver muda-se a discussão da origem para a forma de
obtenção: doação voluntária, consentimento presumido, manifestação compulsória ou
abordagem de mercado.
Em 16 de janeiro de 1997, foi aprovada, pelo Congresso Nacional, após uma
longa discussão, a nova lei de transplantes (Lei 9434/97), sancionada pelo Presidente
da República em 4 de fevereiro de 1997, que altera a forma de obtenção para
consentimento presumido. A legislação anteriormente vigente (Lei 8489/92 e o Decreto
879/93) estabeleciam o critério da doação voluntária. Em março de 2001 houve uma
nova mudança, através da lei 10211, que dá plenos poderes para a família doar ou não
os órgãos de cadáver. Todas as manifestações de vontade constantes em documentos
foram tornadas sem efeito.
Ao longo de poucos anos, houve uma mudança muito grande na abordagem
desta questão no Brasil. No período de 1968 a 1997 era válida a vontade do indivíduo,
na sua ausência a família poderia se manifestar. A partir de 1997 houve a mudança
para a possibilidade da utilização dos cadáveres sem a participação da família, salvo
manifestação individual em contrário. Desde março de 2001, apenas a família tem
poderes para permitir ou não a doação, sem que haja espaço legal para a manifestação
do indivíduo.
A alocação dos órgãos para transplante, assim como de outros recursos
escassos deve ser feita em dois estágios. O primeiro estágio deve ser realizado pela
própria equipe de saúde, contemplando os critérios de elegibilidade, de probabilidade
de sucesso e de progresso à ciência, visando a beneficência ampla. O segundo
estágio, a ser realizada por um Comitê de Bioética, pode utilizar os critérios de
igualdade de acesso, das probabilidades estatísticas envolvidas no caso, da
necessidade de tratamento futuro, do valor social do indivíduo receptor, da dependência
de outras pessoas, entre outros critérios mais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O transplante pode suscitar reações contraditórias, como fascínio e inquietação. O seu fascínio
decorre da perspectiva da vida que ele proporciona a pessoas ameaçadas pela falência de um órgão
ou tecido, da mobilização de uma grande cadeia de solidariedade que se forma com o apoio de
tecnologias inovadoras.
A inquietação ocorre porque a transferência de elementos (órgão ou tecido),
com maior freqüência obtidos de um indivíduo morto, proporciona o confronto com a
imagem de nossa própria morte. Torna-se imprescindível, entretanto, que a inquietação
não ultrapasse o fascínio, situação que poderia corresponder a uma sentença de morte
para milhares de pacientes que aguardam por um transplante. Para impedir essa
situação, existe um só remédio. Fazer crescer a confiança, e uma única prescrição, a
informação objetiva, único instrumento capaz de favorecer o processo de análise
racional e o desenvolvimento de uma rede de afeto e solidariedade que podem conduzir
a uma tomada de posição á doação de órgãos.
Outro sentimento, que aflora com freqüência ao se falar em transplantes, é a
justificada angústia daqueles que esperam por um órgão, conscientes de que a sua
vida pode ser ceifada durante a espera. O atendimento a esse direito à vida,
oportunidade ansiosamente aguardada por milhares de brasileiros, só poderá
concretizar-se se tivermos a consciência de que se faz necessária uma construção
coletiva. Nesse mutirão pela vida, cabe papel a cada um de nós, a todos os segmentos
da sociedade.
Às equipes de transplante cabe o compromisso de realizar com qualidade o
maior número possível de procedimentos, servindo-se de sua competência para
otimizar a utilização de órgãos e para que estes sejam alocados segundo princípios
justos e éticos.
Ao Estado compete o controle de todo o processo de transplantes, uma vez que
um órgão ou tecido doado deve, obrigatoriamente, merecer o tratamento de um bem
público, compreendendo-se que ao autorizar a doação de órgãos de um ente querido, a
família entregou-os para que a sociedade os utilizasse da forma mais justa.
Ao Governo Federal cabem, três missões prioritárias: garantir que os órgãos e
tecidos retirados sejam alocados aos pacientes receptores segundo critérios médicos e
princípios de justiça; desenvolver esforços para que todos os pacientes receba o
transplante que necessita; exercer a vigilância para que os transplantes sejam
realizados com toda segurança possível. Como corolário dessas ações, governos
estaduais e municipais devem zelar pela execução da política emanada do poder
central, aí incluindo-se a utilização adequada de recursos por este destinados
especialmente para os programas de transplantes.
A sociedade como um todo cabe o poder de decidir se os transplantes deve ou
não ser realizados, já que ela detém a chave de todo o processo; a autorização para a
doação de órgãos. O doador é o elemento indispensável, sem o qual não se encadeiam
as ações que levam ao transplante. Cabe também a sociedade a exigência de que
todos os procedimentos relacionados a transplantes decorram na mais absoluta
transparência.
A imprensa exerce grande influência no desenvolvimento de um programa de
transplantes. Mensagens positivas tem o poder de impulsionar a doação, enquanto que
o contrário ocorre com qualquer notícia que abale a credibilidade do procedimento.
Informar corretamente e sem distorções nem sempre é tarefa fácil, exige um mínimo de
conhecimento técnico e tem menor impacto e, portanto, menor apoio jornalístico.
A lei que o governo editou, acabando com a doação presumida de órgãos para
transplante, ilustra bem o erro, mais comum entre nós do que se imagina, de legislar
sem prestar a devida atenção à realidade dos fatos.
De acordo com a doação presumida, estabelecida pela Lei n.º 9.434/97, todos
brasileiros que não tiveram manifestação de vontade em contrário, em documento
oficial, se tornavam doadores automáticos de órgãos. Embora a intenção do legislador
fosse a melhor possível, isto é, aumentar o número de doadores e assim salvar mais
vidas, ma a lei feriu os sentimentos e os princípios da população e dos médicos e
acabou por reduzir em vez de aumentar a oferta de órgãos para doação.
A lei da doação presumida não contribuiu para nada, a não ser para intranquilizar
a população. A reforma da lei, como reconheceu o Ministro da Saúde, José Serra, veio
apenas oficializar o que na prática já acontece. Agora tranqüilizados, e se forem bem
esclarecidos por campanhas promovidas pelo governo, os brasileiros com certeza se
disporão a aumentar espontaneamente as doações.
Esse caso deixa lições sobre as quais nossos governantes e legisladores
deveriam meditar. Não bastam boas intenções para produzir leis de boa qualidade.
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